Elisabeth Roudinesco - Psicanálise é a Medicina Da Alma Do Nosso Século

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 'Psicanálise é a medicina da alma do nosso século' Elizabeth Roudinesco P ARIS - Poucos intelectuais traduziram tão bem sua época como Sigmund Freud fez com o século 20. Em sua obra, estão expressas as bases de conceitos tão poderosos e, ao mesmo tempo, tão legíveis, que se tornaram parte do cotidiano com a velocidade característica de sua época. É o caso do inconsciente - um conceito já elaborado nos séculos 18 e 19 por autores como Leibniz e Edward von Hartmann. Reinterpretada por Freud, a ideia de que o que falamos pode ter significados ocultos que fogem à esfera da consciência e, portanto, ao nosso domínio, é hoje reconhecível por todos. Resumir seu pensamento a esse conceito, porém, é limitar uma obra enérgica e influente, alerta Elisabeth Roudinesco. Psicanalista, historiadora, docente, escritora, discípula de Jacques Lacan, amiga de Jacques Derrida, Elisabeth é, aos 64 anos recém-feitos, um dos pensadores vivos mais importantes de sua área, a psicanálise - um dos legados de Freud à humanidade. Segundo a intelectual marxista, o médico neurologista conv ertido em gênio está por trás, de uma forma ou de outra, de todas as formas de emancipações vividas pela sociedade do século 20, das quais o feminismo e a liberação sexual são só dois e xemplos evidentes.  Além de suas atividades acadêmicas, que a levam a viajar o mundo todo, Elisabeth, uma das intelectuais mais respeitadas da França, se mantém hiperativa como escritora. E no centro de seus interesses está Freud. Ele explicaria a efervescência da autora, que lançará dois novos livros - Histo ire de la Psyc hana lyse en France (La Pochotèque) e Retour à la Question Juive (Albin Michel) - nos próximos dias. Previsto par a out ubro, Em Defesa da Psicanálise (Jorge Zahar, 248 págs.) é o seu próximo lançamento no Brasil. Nessa obra, estão reunidos entrevistas e ensaios da autora inéditos no País. Organizados pelo psicanalista Marco Antonio Coutinho Jorge, os textos são de épocas diversas e abordam temas polêmicos: a falta de participação dos psicanalistas na vida pública, a homossexualidade, o antissemitismo e a ciência, além das conexões da psicanálise com a medicina e a filosofia. No livro, a resposta da autora para os que falam da morte da psicanálise é direta: "Que ilusão!" Em 23 de setembro de 1939, Freud morria em Londres. Às vésperas do aniversário de 70 anos de seu desaparecimento, o Estado pediu ajuda a Elisabeth para esmiuçar a herança de um mestre. Em seu apartamento, em um quartier pequeno-burguês de Paris, na quarta-feira, foram registradas mais de duas horas de entrevista exclusiva. A seguir , sua síntese.

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  • 'Psicanlise a medicina da alma do nosso sculo'Elizabeth Roudinesco

    PARIS - Poucos intelectuais traduziram to bem sua poca como Sigmund Freud fez com o sculo 20. Em sua obra, esto expressas as bases de conceitos to poderosos e, ao mesmo tempo, to legveis, que se tornaram parte do cotidiano com a velocidade caracterstica de sua poca. o caso do inconsciente - um conceito j elaborado nos sculos 18 e 19 por autores como Leibniz e Edward von Hartmann. Reinterpretada por Freud, a ideia de que o que falamos pode ter significados ocultos que fogem esfera da conscincia e, portanto, ao nosso domnio, hoje reconhecvel por todos.

    Resumir seu pensamento a esse conceito, porm, limitar uma obra enrgica e influente, alerta Elisabeth Roudinesco. Psicanalista, historiadora, docente, escritora, discpula de Jacques Lacan, amiga de Jacques Derrida, Elisabeth , aos 64 anos recm-feitos, um dos pensadores vivos mais importantes de sua rea, a psicanlise - um dos legados de Freud humanidade. Segundo a intelectual marxista, o mdico neurologista convertido em gnio est por trs, de uma forma ou de outra, de todas as formas de emancipaes vividas pela sociedade do sculo 20, das quais o feminismo e a liberao sexual so s dois exemplos evidentes.Alm de suas atividades acadmicas, que a levam a viajar o mundo todo, Elisabeth, uma das intelectuais mais respeitadas da Frana, se mantm hiperativa como escritora. E no centro de seus interesses est Freud. Ele explicaria a efervescncia da autora, que lanar dois novos livros - Histoire de la Psychanalyse en France (La Pochotque) e Retour la Question Juive (Albin Michel) - nos prximos dias.Previsto para outubro, Em Defesa da Psicanlise (Jorge Zahar, 248 pgs.) o seu prximo lanamento no Brasil. Nessa obra, esto reunidos entrevistas e ensaios da autora inditos no Pas. Organizados pelo psicanalista Marco Antonio Coutinho Jorge, os textos so de pocas diversas e abordam temas polmicos: a falta de participao dos psicanalistas na vida pblica, a homossexualidade, o antissemitismo e a cincia, alm das conexes da psicanlise com a medicina e a filosofia. No livro, a resposta da autora para os que falam da morte da psicanlise direta: "Que iluso!"Em 23 de setembro de 1939, Freud morria em Londres. s vsperas do aniversrio de 70 anos de seu desaparecimento, o Estado pediu ajuda a Elisabeth para esmiuar a herana de um mestre. Em seu apartamento, em um quartier pequeno-burgus de Paris, na quarta-feira, foram registradas mais de duas horas de entrevista exclusiva. A seguir, sua sntese.

  • Estamos a 70 anos da morte de Freud. O que ainda to representativo em sua obra? Por que ele uma referncia para a prpria humanidade?Ele o nico a ter teorizado, assim como seus herdeiros, o que chamamos de inconsciente. No falo do subconsciente nem do inconsciente dos psiclogos. Eu me refiro ao inconsciente, que pode ser traduzido pela noo de que, quando algum fala, no sabe o que diz. H milhes de exemplos concretos, como o ministro do Interior da Frana (Brice Hortefeux), que fez declaraes racistas na semana passada. Conscientemente, ele no racista. Inconscientemente, sim. Mas julgamos algum por seu inconsciente? Sim, se ele ministro. Mas, via de regra, no podemos enviar algum aos tribunais por seu inconsciente. Podemos dizer: "Comporte-se!" Muitas pessoas so inconscientemente racistas e antissemitas. Quando no h lei, esses sentimentos se exprimem.Est no inconsciente? inexorvel? inexorvel. Freud dizia, com razo, que a nica maneira de impedir o crime a lei, a civilizao. No fim do sculo 19, havia pessoas e governos pblica e oficialmente racistas. No era proibido.Permita-me retomar a questo: por que Freud ficou marcado como o homem que sintetiza o sculo 20?Porque ele aportou algo de novo. Ele estava no prolongamento da filosofia do sujeito. Ele trouxe explicaes que a filosofia havia pensado, mas ele lhes deu um assento terico. E isso no me surpreende. Alm disso, Freud permite compreender os dois totalitarismos do sculo 20: o nazismo, sobre o qual pensou e anteviu melhor do que qualquer outro, e o comunismo, que no teve nada a ver com sua ideia original, com o marxismo. Os dois, alis, so diferentes: o nazismo se inscreveu desde seu incio, sabia-se o que esperar; o comunismo caminhou para o lado errado. Mesmo assim, Freud viu que ele no funcionaria. verdade que ele era conservador, assim como muitos de seus herdeiros. Mas h muitos freud-marxistas, muitos freudianos de esquerda - que so os meus preferidos, alis. Nessa poca, psicanlise era uma teoria da regenerao do homem, da emancipao. Quatro coisas nasceram ao mesmo tempo: o sionismo, o ltimo movimento de emancipao dos judeus; a psicanlise, que a emancipao do inconsciente; o socialismo, a emancipao social; e o feminismo, a emancipao da mulher. Era um grande movimento. O sculo 20, como anteviu Freud, foi o triunfo do contrrio - o que pode ser resumido no nazismo. Freud afirmou que o triunfo do contrrio j estava l, entre ns, naquela poca. E disse ainda: "Ateno, eu sou a favor da emancipao, mas o homem habitado pelo contrrio disso." Eu creio que ele foi o nico a diz-lo. um dos motivos pelos quais o Homem do Sculo 20. Por outro lado, ele jamais abandonou a ideia do progresso. Freud foi um homem progressista. Contra Schopenhauer, contra os grandes conservadores de seu tempo, contra os que eram inteiramente pessimistas em relao ao progresso, acusando-o de no servir para nada, Freud disse: "Sim, ele serve." Foi por isso que eu o chamei, depois de Adorno e outros, como a "luz sombria", marcada pelo iluminismo, mas sem muitas iluses. Esse vnculo, o fato de ter pensado a relao entre as duas coisas, o levou a pensar ao mesmo tempo que o pior e o melhor podem acontecer com o homem. Ele nunca foi antiprogressista, ao contrrio do que se diz. Por tudo o que mencionei, ele est no centro dos dias de hoje. Voc no pode pensar o sionismo, o feminismo, a liberao das mulheres, a transformao da famlia, sem passar por Freud em determinado momento.Se Freud o homem do sculo 20, qual o seu lugar no sculo 21? o mesmo. A maioria dos psicanalistas tornou-se conservadora. No 100%, mas a maioria conservadora. Por qu? uma de minhas grandes interrogaes. Eu no o sou, e no Brasil eles so menos. Diria at que so menos na Amrica Latina. Mas eles so conservadores por diversas razes. Os lacanianos no deveriam s-lo, j que Lacan relanou o pensamento da rebelio, da contestao. A Internacional Freudiana tornou-se conservadora porque caiu na repetio do dogma. Eles no se renovaram, tornaram-se um movimento dogmtico, centrado sobre a clnica e no sobre a reflexo a respeito da sociedade e do indivduo. Alm disso, cometeram o erro de dialogar demais com as cincias duras, ao crer que o debate sobre o crebro e os neurnios era essencial. Sempre afirmei que esse debate no era essencial, porque o crebro e os neurnios no precisam de psicanlise. No h muito o que fazer com isso, seno

  • dar medicamentos. Mas se a psicanlise se ocupa apenas disso, afastando-se das moeurs (expresso francesa para costumes), ela se torna conservadora, familiarista. Os psicanalistas se desinteressaram dos assuntos sociais. Foi assim que se tornaram conservadores.Por que a psicanlise brasileira menos conservadora?A Amrica Latina, e sobretudo o Brasil, uma sociedade que espelha a Europa. Os psicanalistas brasileiros so eclticos. Em alguns momentos so culturalistas, e nos chateiam com a sua brasilidade - no esquea que houve na Frana a francilidade e na Alemanha a germanidade. Mas, fora isso, eles, como espelho da Europa, importaram conhecimento. Ao importar, misturaram-no. E o ecletismo dos brasileiros - mais do que dos argentinos, que so menos eclticos - se formou pegando um pouquinho de Freud, um pouquinho de Lacan e por a foi. Isso funciona porque questiona o dogmatismo. Eles desconstruram, para empregar a expresso de Derrida, o dogma europeu. Voltemos a Freud. Ele no avanou em dois domnios: as crianas e os psicticos. Por qu?Sim, ele avanou sobre o tema da infncia. Ele nos deu a base da anlise da infncia. O que se pode dizer que sua corrente no triunfou no mundo psicanaltico quando se fala em infncia, e sim a de Melanie Klein. Nisso, estou completamente de acordo com voc. Foi ela quem fundou a psicanlise da infncia. No entanto, tudo isso psicanlise. Ela engloba todas as correntes. Sobre os psicticos, voc tem razo. Freud no acreditava que seria possvel analisar os psicticos. Muito cedo, quando ele compreendeu que essa era a "Terra Prometida" - bem antes da apario dos medicamentos -, quando ele percebeu que quase todos os seus discpulos eram psiquiatras e trabalhavam com a psicose, ele se desinteressou, embora no tenha desestimulado ningum. verdade que um domnio muito problemtico. A anlise se faz para os neurticos. A "cura" analtica funciona muito para os neurticos, porque, como eles no se curam, se acomodam. E, como transformamos a neurose de fracasso em neurose de sucesso, a cura funciona. A psicanlise torna mais inteligente, mais corajoso, mais apto na sociedade. A psicanlise funciona muito bem. Entretanto, verdade que no curamos bem a psicose, embora tenhamos nos desenvolvido muito nesse tema tambm. Os loucos hoje buscam na psicanlise um complemento, j que os psiquiatras s querem saber de medicamentos. Se no h a psicanlise, o paciente vira um legume, um morto em vida.No incio, com Freud, a psicanlise era um processo breve, rpido. Hoje, o contrrio, estende-se por anos, dcadas s vezes. O que mudou?Era rpido porque Freud fazia seis sesses por semana de uma hora. Era intensivo. H tambm o fato de que estendemos a anlise para domnios no previstos de incio, o que a tornou mais difcil. Mudou-se a modalidade da cura, tambm. H pessoas que precisam falar sempre, ao longo de sua vida. Mas verdade que Freud ficaria chocado hoje. Duas vezes por semana, durante 10 anos? No! Para Freud, era de seis meses a um ano, todos os dias, por uma hora. Quando no era possvel, como Marie Bonaparte, tudo bem. Ela ficou 14 anos em anlise.Freud esforou-se muito para dar psicanlise o status de cincia, mas ela sempre esteve na ala de mira de cientificistas ortodoxos. Como a psicanlise responde a essas crticas? E por que ela deve ser considerada uma cincia?Freud oscilou, hesitou muito entre o status de cincia, no sentido de cincia dura - ele queria no fundo que a psicanlise fosse uma "neurologia da alma" - e um outro status, que ele no chamava filosofia, mas ainda assim estava do lado da especulao, da literatura e da filosofia. Ele renunciou completamente e muito cedo ao status de cincia dura, porque se deu conta de que no se tratava de uma cincia no sentido que se conhece. Logo, preciso inscrever a psicanlise no registro das cincias humanas. uma cincia, no sentido da racionalidade, mas no no mesmo sentido da biologia e da neurologia. Freud se dividia entre as duas concepes. No estamos mais no tempo do darwinismo, e a biologia reconhecida como uma cincia, uma cincia da natureza. A psicanlise no o de modo algum. No tem metodologia, resultados ou a positividade das cincias duras. uma cincia mais prxima das Humanas, como a Antropologia, a Sociologia, a Histria. Mas mesmo essa concepo, a de parte das cincias humanas, j foi

  • contestada. O pensamento de Freud ntegro e poderoso ainda hoje? Sua fora criativa ainda existe?Sem dvida. Creio que vamos assistir a um grande retorno a dois pensadores, inclusive: Marx e Freud. No ao comunismo e psicanlise, mas a Marx e Freud. Autores como Marx, Freud, Nietzsche e toda a filosofia da rebelio se tornaram malditos nos ltimos 20, 30 anos, quando camos em um estado de neoconservadorismo. A crise econmica, em especial como a que se passou nos Estados Unidos, vai desempenhar um papel considervel. Vamos voltar ao pensamento da rebelio. Como as ideias de Freud retornaro? Com que aplicao?Retornaro com as de Marx. Mas no sei como sero aplicadas. O que est voltando com muita fora a ideia de que temos um inconsciente, de que o desejo capital. A psicanlise, bem pensada, permite compreender a moeurs, o inconsciente, o desejo e a sexualidade de uma forma inteligente. uma teoria do desejo, afinal.A senhora v conceitos de Freud confirmados pelos progressos da cincia ou por novas tecnologias?No. Os progressos da cincia so os progressos da cincia. Nenhum dos conceitos de Freud confirmado pela biologia. So dois domnios diferentes. A psicanlise a medicina da alma. especial.Assim como a psiquiatria, em sua origem?Hoje no h mais psiquiatria. E, logo, nos damos conta de que existem cada vez mais loucos. Porque so usados apenas medicamentos, ela no funciona mais. til, mas no resolve. muito interessante o que se passou na psiquiatria. Biologizaram-na. At ento, era um equivalente da psicanlise. Era uma medicina da alma. Mas a deslocaram para a biologia. Curamos a loucura? No. Acalmamos os loucos? Sim. Vivemos um recuo de 50 anos com a psiquiatria "biologizada".A obra de Freud marcada por sua didtica, sua clareza. E esse no me parece ser o caso dos pensadores da psicanlise contempornea. De onde vem esse problema de comunicao?Esse problema enorme. Os psicanalistas escrevem em clichs. Mesmo que Lacan seja um autor difcil de ler, no se trata de um clich. Alm disso, mesmo que os seguidores de Lacan escrevam em secto, os freudianos tambm o fazem. Freud era um autor claro, o que influenciou todo o movimento psicanaltico. Hoje, quando leio psicanalistas freudianos norte-americanos ou ingleses fico impressionada com os clichs que esto presentes. um smbolo muito grave de encerramento sectrio. Quando os intelectuais se fecham em torno de si mesmos, eles falam a linguagem de uma tribo. No interior, a tribo se compreende. Eu sempre compreendi a tribo, mas no posso escrever como ela. No sei fazer. Sou muito clara. s vezes os antroplogos e socilogos que queriam se divertir me perguntavam se eu, como psicanalista, no me sentia como o antroplogo que chega Melansia e que deve decifrar a linguagem da tribo. uma alegoria exata. Eu decifro facilmente essa linguagem. Mas para voc, que a l, no deve ser fcil. A psicanlise mais afetada pelos clichs que a filosofia, por exemplo.O meu ponto : se o problema da clareza da comunicao existe, o que torna a psicanlise to popular em todo o mundo?Ela popular em todo o mundo, mas o de uma forma inconveniente. Por exemplo, ela popular em muitos pases, infelizmente, pela forma da psicologia interpretativa dos chefes de Estado. Eu recuso todos os pedidos de entrevista sobre as fantasias dos chefes de Estado. Mas isso a TV adora, sob a forma da psicologia. Todos os antifreudianos, todos os que no gostam da psicanlise, diro que ela est em todo lugar. Sim, os psicanalistas esto em todo lugar, mas sob que formas! ridculo!

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