MONOGRAFIA PSICANÁLISE

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INSTITUTO DE ALTOS ESTUDIOS UNIVERSITÁRIOS MÁSTER EN CLINICA DE SALUD MENTAL CÁTIA SUSANA DIAS FERNANDES GARCIA A Linguagem e o Sintoma na Prática Psicanalítica Actual

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INSTITUTO DE ALTOS ESTUDIOS UNIVERSITÁRIOS

MÁSTER EN CLINICA DE SALUD MENTAL

CÁTIA SUSANA DIAS FERNANDES GARCIA

A Linguagem e o Sintoma na Prática

Psicanalítica Actual

BARCELONA2009

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RESUMO

O presente trabalho tem como objectivo procurar compreender a estrutura de linguagem do inconsciente, desde Freud até Lacan, no momento em que este, no seu encontro com a linguística, nomeadamente com Ferdinand de Saussure, defende que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, pretendendo aprofundar esta forma de linguagem e a sua relação com as formações sintomáticas actuais. Os novos sintomas, tais como, toxicodependências, insucesso escolar, depressão, anorexia, bulimia, síndrome de pânico, violência sem precedentes, entre outros, são sintomas que não cumprem os requisitos lógicos das leis do inconsciente de Freud, leis estas onde prevalece a dimensão simbólica do sintoma. Verifica-se, nestas novas manifestações sintomáticas, uma prevalência da dimensão real de gozo do sintoma e, consequentemente, uma primazia da via metonímica em detrimento da metafórica, resultantes do declínio da função paterna. Posto isto, o sujeito necessita de algo que ocupe esse lugar que não pode ficar vazio, precisa de encontrar uma resposta para a sua angústia. Os novos sintomas surgem como resposta a essa angústia que o ser humano quer colmatar. Desta forma, apresentamos como hipótese principal deste trabalho a existência de uma nova leitura do inconsciente, segundo os últimos ensinamentos de Lacan, que vão para além do inconsciente estruturado como uma linguagem, pensado como simbólico e orientado para a instância do real.

Palavras-chave: inconsciente, linguagem, novos sintomas, psicanálise, linguística.

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ÍNDICE

Introdução......................................................................................................................4

Capítulo IInconsciente e Linguagem em Freud e Lacan............................................................71. O inconsciente de Freud.............................................................................................81.1. Inconsciente e linguagem em freudianos.................................................................91.1.1. A interpretação freudiana das afasias...................................................................91.1.2. Das Ding: a coisa, segundo Freud......................................................................111.2. A linguística de Freud.............................................................................................111.2.1. Os sonhos e a sua interpretação: a formação mais autêntica do inconsciente...................................................................................................................111.2.2. A psicopatologia da vida quotidiana: investigação no âmbito linguística............121.2.3. Os chistes: formações mentais sociais...............................................................131.3. Inconsciente e linguagem segundo Lacan.............................................................141.3.1. O retorno da psicanálise à sua origem: pelo caminho da linguagem.................141.3.2. A linguística em Lacan........................................................................................151.3.3. Significante: constitutivo do inconsciente e linguagem materializada................161.4. Língua, fala e linguagem........................................................................................171.5. O inconsciente e os seus mecanismos psicanalíticos e linguísticos.....................18

Capítulo IISintoma e Linguagem em Freud e Lacan..................................................................202.1. A dimensão simbólica do sintoma..........................................................................222.1.1. O sintoma e a figura paterna...............................................................................242.1.2. Metáfora paterna.................................................................................................252.1.3. Declínio do pai: do moderno ao contemporâneo................................................272.2. A dimensão real do sintoma...................................................................................292.2.1. A passagem do nome-do-pai aos nomes-do-pai................................................32

Capítulo IIIOs Sintomas Actuais: Linguagem ou Alíngua, Simbólico ou Real........................333.1. Os sintomas actuais...............................................................................................343.1.1. Os sintomas actuais como “sintomas-gozo”.......................................................363.1.2. A linguagem e os novos sintomas.......................................................................383.1.3. O último ensinamento de Lacan e os novos sintomas........................................393.1.4. Os sintomas actuais: entre a linguagem e a alíngua, entre o simbólico e o real.................................................................................................................................423.1.5. O inconsciente real e os novos sintomas............................................................43

Considerações Finais.................................................................................................47

Referências Bibliográficas.........................................................................................48

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INTRODUÇÃO

As relações entre psicanálise e linguística e, mais precisamente, entre linguagem e inconsciente, são complexas, revelando-se surpreendente o estabelecimento de uma ligação entre esses dois campos. Uma das primeiras surpresas nessa relação é o facto de a psicanálise estar muito mais próxima da linguística do que da psicologia. Daí o maior interesse do presente trabalho, o qual constitui um enorme desafio. O linguista francês Michel Arrivè (1999) - na sua obra Psicanálise e Linguística, inconsciente e linguagem – afirma que é tanto é possível constatar as relações mais estreitas entre as duas disciplinas, como também os desconhecimentos recíprocos de cada uma das áreas. Assim, cada capítulo da dissertação deverá implicar uma discussão de diversos conceitos, tanto da linguística, como da psicanálise.

Para abordar as questões relacionadas com esta interessante, embora complexa e pretensiosa relação, investigaremos a estrutura de linguagem do inconsciente segundo Freud e Lacan, mais precisamente quando este último, no seu encontro com a Linguística e com Ferdinand de Saussure, defende que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, dando especial atenção a esta forma de linguagem e à sua relação com as formações sintomáticas actuais.

Esta questão surge uma inquietação clínica, na medida em que, actualmente, o diagnóstico, ao invés de orientar na direcção da cura, é cada vez mais difícil de classificar, constituindo-se um desafio conduzir um qualquer tratamento clínico que não responde às metamorfoses típicas da noção de sintoma, extrapolando os limites da escuta clínica das estruturas, levando-nos a equacionar sobre uma nova forma de praticar a clínica.

Os novos sintomas, por assim dizer, não têm a mesma configuração dos de algumas décadas atrás, quando o paciente se queixava exaustivamente do seu sofrimento ao analista, o qual supunha possuir todo o saber sobre o seu sintoma. Os novos sintomas são ora muito silenciosos, ora muito falantes, mas nada demandam, nada querem saber, eles simplesmente se apresentam, recusam o inconsciente, como nos diz Lacan no seminário da Angústia – livro 10 (2005). As palavras do analista dirigidas a estes sujeitos não têm ecos, não provocam associações, desvalorizando as formações do inconsciente como os lapsos, os actos falhos, os relatos de sonhos, etc. É como se o rasto que nos conduz à construção do inconsciente do sujeito contemporâneo se estivessse a desvanecer. Há uma “forclusão tecnocientífica da subjectividade”, como chamou Ana Maria Figueiró (2003). A sessão de análise, transforma-se, então, numa “batalha” exaustiva.

E daí surgem as questões: como trabalhar com um inconsciente que não se manifesta? Como não deixar desvanecer o rasto que nos conduziria a ele? Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, segundo Lacan, que linguagem é essa que se apresenta nos novos sintomas? Esta é a questão que se pretende investigar.

Facilmente observamos, não só na clínica, como também no nosso dia-a-dia e na sociedade, que este é o mal-estar da nossa cultura. Observamos que se tratam de sintomas que resistem a manifestar-se no discurso analítico, no discurso em geral, comprometendo inclusive os laços sociais. Possuirão os sintomas uma linguagem sem discurso que conduz, consequentemente, os sujeitos a procurarem respostas para os seus sofrimentos quotidianos, tais como a obesidade, as compras compulsivas, a depressão, o insucesso escolar, a violência, a fobia social, as drogas, os relacionamentos monogâmicos, respostas essas encaradas como soluções actuais para a angústia?

Para Lacan, a angústia é o único afecto do qual o sujeito não pode fugir, pois ela surge para sinalizar que vai sempre haver a verdade da falta. E para colmatar de imediato esse afecto, o sujeito, actualmente, procura soluções assintomáticas,

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soluções que recorrem aos conceitos, aos rótulos, às definições, às promessas, às medicações, ou seja, a respostas imediatas, por serem aparentemente mais eficazes, soluções que minimizam a via simbólica, valorizando saídas da ordem do real, o que, segundo Lacan a partir de Freud, implica um afastamento da fenomenologia, saindo, portanto, do campo das significações, da compreensão.

Os sujeitos que manifestam esses novos sintomas parecem perdidos ao tentarem situar-se no mundo. Nessa multiplicidade de soluções, eles tornam-se “peças avulsas”, as quais se podem encaixar de múltiplas formas. “Peças Avulsas” foi o título do curso de 2004 de Jacques Alain Miller para falar do real em Lacan.

Para tratar o tema proposto neste trabalho, é fundamental iniciar o primeiro capítulo com um retorno ao conceito freudiano do inconsciente, abordando os seus textos iniciais, como forma de demonstrar a estreita relação existente entre inconsciente e linguagem. De seguida, no mesmo capítulo, faremos referência a Jacques Lacan, que, a partir dos ensinamentos de Freud, dialoga com a linguística, enfatizando que a psicanálise freudiana é uma clínica do campo da fala e da linguagem, ou seja, que o inconsciente freudiano é estruturado como uma linguagem. Assim sendo, o conteúdo do primeiro capítulo remete para a relação entre inconsciente e linguagem, segundo Freud e Lacan e, em simultâneo, para a aproximação entre os conceitos da psicanálise e da linguística, esta última fundamentada principalmente nos conceitos de Ferdinand de Saussure.

No segundo capítulo, pretende-se analisar a importância da linguagem na formação dos sintomas, partindo de Freud para chegar a Lacan, de forma a comprovar a existência dos novos sintomas, bem como desenvolver a hipótese colocada nesta dissertação, ou seja, de que os mesmos estão teoricamente mais próximos da chamada segunda clínica de Jacques Lacan, pretendendo comprovar que a teoria de que “o inconsciente está estruturado como uma linguagem” já não é suficiente para trabalhar as formações sintomáticas actuais, questões estas a serem aprofundadas nos terceiro e último capítulos. Para tal, revela-se pertinente dissecar os avanços lacanianos e as suas propostas nos últimos anos de vida deste mestre.

Partindo da discussão anterior, contextualizaremos a estrutura da linguagem do inconsciente através dos chamados novos sintomas, permitindo-nos pensar numa outra forma de leitura do inconsciente, a qual passaria das leis do simbólico para o campo do real. Assim, o terceiro capítulo reveste-se da máxima importância para a confirmação da hipótese central deste trabalho.

O último capítulo será desenvolvido no sentido de discutir as manifestações sintomáticas actuais, partindo da já referida hipótese de que as mesmas não são mais da ordem simbólica, ou seja, estruturadas como uma linguagem. Os novos sintomas parecem prescindir da palavra e desprovidos da capacidade de metaforizar, o que os conduz para um processo de “dessimbolização”, termo utilizado pelo francês, Dany-Robert Dufour no seu livro A arte de reduzir as cabeças e que “designa uma consequência do pragmatismo, do utilitarismo e do “realismo” contemporâneos”. (2005). Segundo este autor: “O valor simbólico é assim desmantelado, em proveito do simples e neutro valor monetário da mercadoria, de tal forma que nada mais, nenhuma outra consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental...) possa entravar a sua livre circulação. Daí resulta uma dessimbolização do mundo.” (Dufour, 2005).

O autor vai mais longe, referindo que a dessimbolização afecta a língua e as formas de dialogar, acrescentando que, “com efeito, é todo o peso do simbólico nas trocas humanas, que fez os tempos da grande Antropologia do século XX (de Mauss a Lévi-Strauss, chegando a Lacan), que se encontra deste modo questionado”. (2005).

Do ponto de vista da psicanálise, podemos dizer que a dessimbolização é um fenómeno onde o discurso do inconsciente não se forma, o que nos leva a equacionar a prática clínica e a direcção do tratamento. Nesta perspectiva, será abordada uma nova leitura, levantando questões que dizem respeito à prática psicanalítica de orientação lacaniana, teoricamente fundamentada na obra de Jacques Lacan e seus

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seguidores, como Jacques Alain Miller, Erich Laurent e diversos autores da Associação Mundial de Psicanálise, e linguistas que dialogam com a psicanálise, como Michel Arrivè e Jean Claude Milner, o que nos permitirá perceber e tentar pensar a questão dos novos sintomas como parte de uma estrutura de linguagem simbolicamente comprometida, seguindo, dessa forma, uma lógica diferenciada das leis do inconsciente freudiano.

Com base nesta hipótese, poderíamos afirmar que há uma prevalência da dimensão real do sintoma, levando-nos a questionar as estruturas clínicas tais como a neurose, a psicose e a perversão, como se estas já não nos facultassem uma orientação na compreensão do problema e na direcção do tratamento do sujeito contemporâneo, na medida em que este, como ser único, aproxima-se mais de uma visão de um inconsciente da ordem do real, já não estruturado como uma linguagem, mas sim como uma língua, ou seja, de um inconsciente puramente lacaniano, que se manifesta pelo significante e que posteriormente se vai chamar de “alíngua”, isto é, a língua singular de cada sujeito. A partir dos últimos ensinamentos de Lacan, podemos dizer que “os novos sintomas” nos impelem a pensar numa outra abordagem do inconsciente, ou seja, num inconsciente estruturado como “alíngua”. E a questão que se coloca é a seguinte: o inconsciente é linguagem ou língua? Ou ambas as coisas? Ou nenhuma delas? Para tentar responder a essa pergunta, é imprescindível debruçarmo-nos sobre o que Lacan diz no seminário 23, O sinthoma, sobre O inconsciente real. E aprofundando a questão: de que forma se pode definir actualmente a relação entre inconsciente e linguagem?

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CAPÍTULO I

Inconsciente e Linguagem segundo Freud e Lacan

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1. O inconsciente de Freud

A sobrevivência de um conceito está directamente relacionada com a sobrevivência da teoria à qual pertence. O conceito psicanalítico de inconsciente tem mais de um século de existência e, embora Freud seja considerado o pai da Psicanálise, não foi o primeiro pensador ou inventor do conceito. No entanto, foi o grande responsável pelo desenvolvimento do mesmo, tornando-o num dos conceitos mais importantes da sua doutrina. Não obstante a enorme importância do conceito freudiano de Inconsciente, tal não significa que este seja imutável, pois com o passar do tempo, poderá, tal como outros conceitos, sofrer alterações e renovações, próprias da construção do Saber.

Com Freud, o inconsciente deixou de ser uma instância para além do consciente ou um “subconsciente”, para ser encarado, pela psicanálise, como uma instância bem mais profunda, à qual o consciente não tem acesso, mas que se manifesta através dos sonhos, dos lapsos de linguagem, dos actos falhados, entre outros. Embora seja interno ao sujeito e à sua consciência, é externo a qualquer forma de domínio do pensamento consciente.

É notória, desde cedo, a preocupação de Freud em fazer a distinção entre consciente e inconsciente como dois processos psíquicos distintos, independentemente da sua localização anatómica. Posteriormente, em 1915, no seu artigo “O Inconsciente”, Freud defenderá que não pode ser estabelecida qualquer relação ou comparação entre regiões psíquicas e localizações anatómicas, não possuindo estas últimas qualquer importância no estudo das primeiras.

Na obra Esboços para a comunicação preliminar (1990), podemos encontrar o seguinte trecho de uma carta de Freud dirigida a Breuer: “Formamos a nossa opinião sobre os ataques histéricos tratando pacientes por meio da sugestão hipnótica e, deste modo, investigamos os seus processos psíquicos a respeito do ataque histérico; e devemos preliminarmente assinalar que, para a explicação dos fenómenos histéricos, é indispensável supor a presença de uma dissociação - uma divisão no conteúdo da consciência.”

A presença dessa dissociação, segundo Freud, traduz-se no retorno de uma lembrança de conteúdo psiquicamente traumático. Essa lembrança que se manifesta através de um ataque histérico possui um carácter inconsciente, pois de forma consciente nunca originaria quaisquer sintomas histéricos. No entanto, nesta altura ainda não era utilizado o termo inconsciente e Freud referia-se a ele como um segundo estado da consciência, quando se questionou: “o que decide se uma experiência (uma ideia, intenção, etc.) se deve localizar na segunda consciência, e não na consciência normal?” (Freud, 1990). É a partir daqui que se começa a elaborar a hipótese da existência do inconsciente.

Na sequência de um interesse de carácter prático, Freud desde sempre quis provar a existência de processos psíquicos inconscientes, pois de outra forma seria impossível descrever ou explicar os diversos fenómenos com que se confrontava. Desta forma, começou a descrever os fenómenos psicopatológicos através do método neurológico, na época de Breuer.

Em 1915, aquando da elaboração do seu artigo sobre o inconsciente, escreveu a Fliess: “Estou tão profundamente mergulhado na “Psicologia para Neurologistas”, que ela consome-me inteiramente, a ponto de me ver obrigado a interromper as minhas actividades por excesso de trabalho. Jamais estive tão intensamente preocupado com alguma coisa. E será que isto redundará em alguma coisa?” (Freud, 1974).

Este trabalho de Freud acabou por resultar na sua conhecida obra incompleta, ou Projecto para uma psicologia científica (1895), com o objectivo de explicar toda a variedade do comportamento humano, normal e patológico, assumindo este projecto já

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um carácter psicanalista e não tanto neurológico, tendo sentido que apenas a linguagem dos processos mentais poderia explicar os respectivos fenómenos.

1.1. Inconsciente e linguagem freudianos

1.1.1. A interpretação freudiana das afasias

Freud foi o primeiro a estabelecer uma relação entre inconsciente e linguagem, através das suas manifestações simbólicas na fala e na escrita, após a confirmação clínica da existência daquela instância. Para o autor, a palavra, quando veiculada pela fala ou pela escrita assume um carácter bastante complexo, combinando diferentes elementos e sensações, tais como auditivos, visuais, corporais. Segundo Freud, era possível localizar uma doença orgânica quando, na manifestação da palavra, faltasse algum desses elementos.

No último artigo sobre o inconsciente (1915), de seu nome Palavras e coisas, Freud apresenta quatro componentes da apresentação da palavra: a “imagem sonora” da palavra, a “imagem visual da letra”, a “imagem motora da fala” e a “imagem motora da escrita”. “Essa combinação, porém, torna-se mais complicada quando se entra no processo provável da associação que se verifica em cada uma das várias actividades da fala”. (Freud, 1974).

No decorrer da sua investigação sobre a Linguagem, Freud inseria-se já, inadvertidamente, no campo da Linguística, muito embora nunca se tenha encontrado com o mestre da Linguística, Ferdinand de Saussure, embora os seus conhecimentos se tenham cruzado. Freud acabou por concluir que a palavra representa um complicado processo associativo dos quatro componentes já referidos, acrescentando: “Uma palavra, contudo, adquire seu significado ligando-se a uma ‘apresentação do objecto’”, (Freud, 1974).

Podemos dizer que a fala e a escrita se apresentam através de restos mnémicos de palavras oriundas de percepções acústicas, as quais se associam, originando uma interpretação ao nível do inconsciente. As componentes visuais da apresentação, por sua vez, facultam imagens às palavras, assumindo um papel de suporte perante as mesmas. Desta forma e seguindo Freud, que defende que a palavra é o resto da memória da palavra ouvida, a palavra traduz-se na combinação dos restos das percepções acústicas e visuais.

Assim, podemos constar que Freud, mesmo sem intenção, direccionava a sua investigação para o campo da linguagem, encontrando nos seus estudos sobre a afasia uma ideia de signo semelhante à de Saussure, passando o inconsciente a manifestar-se ao nível linguístico e não tanto neurológico. Importa referir aqui algumas palavras de Freud a respeito: “Recordo ter-me julgado em perigo de vida por duas vezes e em ambas as vezes essa percepção sobreveio de modo inesperado. Em ambos os casos pensei: “Estás tramado!”, e enquanto o meu falar interior se processa habitualmente por imagens acústicas indistintas e com uma sensibilidade pouco intensa, por ocasião do perigo ouvi essas palavras como se me fossem gritadas ao ouvido e vi-as, ao mesmo tempo, como que impressas numa folha ondulante no ar.” (Freud por Verdiglione, 1977).

Na abordagem que Verdiglione faz ao trabalho de Freud A interpretação das afasias, o autor refere que o pai da Psicanálise parece qualificar o significante como imagem acústica antes do mestre da Linguística, Saussure, afirmando: “A actividade associativa do elemento acústico é o ponto central de toda a função da linguagem. O facto de que o significante seja qualificado aqui, ainda antes de Saussure, como imagem acústica, aponta a sua incidência por uma atenção flutuante em torno de um

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objecto móvel, de um semblante, o que parece arrastar precisamente para o lapso, ou para uma economia impossível.” (Verdiglione, 1977).

Aquando do tratamento de um paciente afásico – Frau Emmy Von – mais propriamente da sua anamnese, Freud emprega pela primeira vez o termo “inconsciente”, no âmbito de uma perturbação da fala, considerada posteriormente como uma patologia relacionada com a linguagem. O mestre da Psicanálise junta então Inconsciente e Linguagem, o que nos permite começar a pensar na hipótese de o Inconsciente se encontrar estruturado como uma Linguagem.

A primeira obra escrita de Freud foi A interpretação das afasias, datada de 1891. Com base nesta obra, Verdiglone (1977) refere que o trabalho de Freud com pacientes afásicos “leva já ao estudo dos lapsos, dos actos falhados, dos chistes, dos sonhos”, na medida em que as afasias remetiam para os “buracos” da linguagem. Verdiglone afirma: “Freud faz aqui linguística”. Nesta obra é ainda notório o afastamento de Freud da Neurologia e o surgimento de um interesse em estudar as regiões psíquicas, defendendo o autor que se trata mais de uma questão estrutural do que neurológica. Desta forma, através da Linguagem, Freud dá os primeiros passos na Psicanálise.

É ainda na sua obra sobre as afasias que Freud cria o modelo teórico por ele denominado de “aparelho da linguagem”, mais tarde considerado como “aparelho neurónico”, “aparelho de memória” e, por fim, na sua obra A interpretação dos sonhos (1900), como “aparelho psíquico”.

Voltando às perturbações da fala, estudadas por Freud, este concluiu que a apresentação da palavra se relaciona com a apresentação do objecto, ao nível sensorial, através de imagens acústicas, defendendo, assim, dois tipos de perturbações da fala: na primeira, a qual ele denominou de “afasia verbal”, encontram-se perturbadas as associações entre diferentes elementos na apresentação da palavra; na segunda, por ela denominada de “afasia assimbólica”, Freud refere: “parece-me que a relação entre a apresentação da palavra e a apresentação do objecto merece muito mais ser descrita como ‘simbólica’.” (1974). Novamente aqui se observa uma reflexão ao nível da linguagem, ou seja, de ordem simbólica. Daí Freud denominar de assimbólica uma perturbação nessa relação. O autor defendeu ainda a existência de uma terceira perturbação, “afasia agnóstica”, que implicam igualmente um perturbação na fala e que apenas ocorre em situações de lesões corticais bilaterais e extensas.

Freud denominou ainda de “associações de objecto”, as relações existentes entre a apresentação da palavra e a apresentação do objecto, em que a apresentação-objecto apenas existe em função da ligação que estabelece com a apresentação-palavra. Desta forma, através desta relação, o objecto adquire a sua singularidade, a apresentação-palavra a sua significação e, consequentemente, a apresentação-objecto designa o significado.

Nesta relação estabelecida por Freud, vislumbramos algumas semelhanças com a relação estabelecida por Saussure, no campo da linguística, entre Significante/Significado. Segundo este autor, o signo linguístico liga um conceito a uma imagem acústica, ou seja, a uma impressão psíquica do som da palavra, assumindo o conceito a função de significado da imagem acústica como significante.

Importa referir que Freud deu o nome de Palavras e coisas ao texto onde abordou as relações anteriormente referidas, o que nos pode levar a pensar que o seu trabalho seria já uma antecipação ao signo linguístico de Saussure.

Freud dedicou-se bastante à linguística, sem dar conta disso. Outro exemplo é o facto de o autor utilizar o termo “sistema” quando defende que o sistema Inconsciente engloba apenas as apresentações do objecto, enquanto que o sistema Consciente abrange estas e as apresentações da palavra.

Mais uma vez comprovamos a aproximação entre Freud e Saussure, Inconsciente e Linguagem e Psicanálise e Linguística, situação que nos serve como

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argumento e apoio no desenvolvimento da questão central deste trabalho, ou seja, o Inconsciente estruturado como uma Linguagem, segundo Lacan.

1.1.2. Das Ding: a coisa, segundo Freud

Para entendermos o termo “A Coisa”, desenvolvido por Freud, importa referir dois termos alemães cuja tradução pode ser “A Coisa”, muito embora não sejam termos sinónimos entre si: Das Ding e Die Sache.

A Sache pode ser considerada a coisa enquanto resultado da acção humana influenciada pela linguagem, enquanto que Das Ding nada tem a ver com a relação estabelecida pelo Homem com as suas palavras e as coisas que delas derivam. Segundo Lacan, na obra A Ética da Psicanálise, “O que há em Das Ding é o verdadeiro segredo”. (Lacan, 1985). Nesta perspectiva, Das Ding pode ser considerado como significante.

Para Freud, Das Ding é a coisa, o objecto perdido que o sujeito luta por reencontrar, luta essa na qual se procura a satisfação perdida e não o objecto, em função do Princípio do Prazer. O objectivo é procurar e esperar o objecto, tirando prazer dessa situação, e não reencontrá-lo.

Voltando a Lacan, o autor refere, no Seminário da ética (1985) que Das Ding representa o objecto perdido da espécie humana e não de cada sujeito individualmente, objecto esse que vai sempre acompanhar inevitavelmente todos os seres humanos, para além dos “pequenos” objectos que cada um vai encontrando e substituindo ao longo da sua vida. Para o Psicanalista, Das Ding é então o significante pelo qual o sujeito procura “A Coisa”.

1.2. A linguística de Freud

Posteriormente aos seus estudos sobre afasias, Freud inicia outro tipo de investigações, todos eles fundamentando a estrutura de linguagem do inconsciente, pois todos os caminhos das suas pesquisas entram no campo da linguagem, como forma de explicar o que falta ou falha no inconsciente.

1.2.1. Os sonhos e a sua interpretação: a formação mais autêntica do inconsciente

Como já vimos, Freud muda o rumo das suas investigações, passando do campo da neurologia para enveredar pelo caminho do inconsciente e esta mudança é notória quando surge, em 1900, a sua obra A Interpretação de Sonhos, em que se pode constatar que: “Não só o relato neurológico da psicologia desaparecera completamente, como também grande parte do que Freud escrevera no Projecto em termos de sistema nervoso se tornara agora válido, e muito mais inteligível, ao ser traduzido em termos mentais.” (Freud, 1974). É neste momento que nasce o Inconsciente freudiano e o objecto de estudo de toda a teoria psicanalítica.

Na primeira grande obra da psicanálise, A interpretação de sonhos (1900), Freud estabelece em definitivo a relação entre linguagem e inconsciente, na medida em que defende que apenas através da linguagem dos sonhos se consegue chegar ao inconsciente. E da mesma forma que qualquer linguagem engloba vários dialectos, o mestre da psicanálise observa que as formações do inconsciente têm igualmente

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diversas formas de se manifestar, considerando os sonhos como as formações inconscientes mais genuínas.

Freud defende que os conteúdos e os pensamentos dos sonhos podem ser vistos como dois dialectos completamente diferentes de uma mesma linguagem. Ele vai mais longe, comparando ambas as dimensões e concluindo que se observa um grande trabalho de condensação, difícil de medir, afirmando que os sonhos são demasiado curtos comparativamente aos pensamentos que deles derivam. E acrescenta: “se um sonho for escrito, talvez ocupe meia página, enquanto a sua análise que expõe os pensamentos subjacentes a ele poderá ocupar seis, oito, ou doze vezes mais espaço.” (Freud, 1987).

No processo de transformação de um sonho, ou seja dos pensamentos latentes no conteúdo manifesto onírico, para além da condensação, intervém ainda outro mecanismo: o deslocamento. Este mecanismo permite que as ideias inconscientes transfiram o seu valor para outras ideias, através da censura, de forma que sejam aligeirados determinados conteúdos dos sonhos, difíceis de suportar e manifestados verbalmente, muitas vezes, de forma contrária ao seu conteúdo original.

Os mecanismos de condensação e deslocamento são a prova de que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, na medida em que os referidos mecanismos representam duas versões diferentes de um mesmo sonho.

1.2.2. A psicopatologia da vida quotidiana: investigação no âmbito da linguística

Raymond de Saussure, filho de Ferdinand de Saussure, durante os seus estudos, faz a seguinte observação: “O Sr. Freud, em Psicopatologia da vida quotidiana, apresenta alguns casos de lapsos, que ele tenta explicar psicologicamente. Parece-me que esse seria um novo campo de investigação para a linguística”. (Raymond De Saussure por Arrivè, 1999).

Freud faz a primeira referência a um acto falhado numa carta que escreve a fliess, em 1898, utilizando o termo alemão “fehlleistung” – “operação falhada”, conceito este que não existia no campo da Psicologia. Na sua 94ª carta a Fliess, Freud afirma: “finalmente compreendi uma coisinha de que suspeitava há muito tempo, o modo como um nome às vezes nos escapa e em seu lugar nos ocorre um substituto completamente errado”. (Freud, 1987).

O esquecimento de nomes próprios é o título do primeiro capítulo da obra Psicopatologia da vida quotidiana. Numa revista de neurologia, em 1898, Freud realiza análises psicológicas aos casos frequentes de esquecimento temporário de nomes próprios, baseando-se em exemplos da sua auto-observação. O autor defendia que em consequência da ansiedade de se tentar recuperar um nome esquecido, outros nomes surgem na consciência, impondo-se de forma pertinente, ainda que a falha seja reconhecida de imediato. Trata-se de um processo de deslocamento que ocorre quando se tenta recordar o que foi esquecido. Freud levanta a seguinte hipótese: “é que esse deslocamento não está entregue a uma escolha psíquica arbitrária, mas segue vias previsíveis que obedecem a leis.” (Freud, 1987). O mestre, aqui, estabelece, novamente, a relação entre a linguagem e o inconsciente, suspeitando que o nome que emergia à consciência estaria, de alguma forma, relacionado com o nome esquecido.

Um dos exemplos mais destacados por Freud acabou por dar origem à publicação de um artigo seu, em 1989. Trata-se de uma situação em que ele se tenta recordar do nome do artista Signorelli, mas apenas lhe vinham à consciência os nomes de outros dois artistas, Botticelli e Boltraffio. Partindo daqui, Freud empreende uma investigação com o objectivo de perceber a associação/ligação existente entre o nome esquecido e os nomes substitutos, concluindo que o esquecimento do nome se

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deveu a diversas associações estabelecidas com alguns fragmentos de experiências por ele vivenciadas. Essas falhas no funcionamento psíquico embora possam ter o seu sentido e explicação (de origem fonética e/ou psicológica), os motivos pelos quais acontecem são desconhecidos pelo consciente, ainda que se manifestem através desta instância.

1.2.3. Os chistes: formações mentais sociais

Foi por influência de alguns professores seus que Freud se dedicou ao estudo dos chistes, dando origem à obra Os chistes e sua relação com o inconsciente, em 1905. Um dos primeiros exemplos que Freud destaca é o de uma personagem do poeta Heinrich Heine, de origens bastante humildes, que se vangloria por ter sido tratado pelo grande barão Rothschild como um Senhor: bastante “familionariamente”. Em relação a este termo, Freud refere: “Aqui, a palavra veículo desse chiste parece, a princípio, estar erradamente construída, ser algo ininteligível, incompreensível, enigmático”. (FREUD, 1995).

A utilização deste termo provoca confusão mas, em simultâneo tem um efeito esclarecedor e cómico. Segundo um dos professores de Freud, Lipps (1898), “o primeiro estágio do esclarecimento, ou seja, que a palavra desconcertante signifique isto ou aquilo é seguido de um segundo estágio, no qual percebemos que a palavra sem sentido que nos havia confundido, nos mostra então o sentido verdadeiro, essa descoberta de que a palavra sem sentido, conforme o uso linguístico normal é a responsável por todo o processo, essa solução do problema no nada, é apenas esse segundo esclarecimento que produz o efeito cómico.” (Freud, 1995).

Freud questiona-se: “Em que consiste, pois, a técnica desse chiste do ‘familionariamente’? O que acontece ao pensamento, como expresso, por exemplo, na nossa versão, de modo a torná-lo um chiste que nos faz rir entusiasticamente?”. (1995).

Freud começa a trabalhar na relação entre o chiste e o inconsciente, abordando a forma como o processo decorre, e referindo que a formação do chiste pode ser descrita como uma condensação e uma consequente formação de um substituto. No exemplo em questão, o substituto forma-se através da produção de uma palavra composta, “familionar”, a qual é, por si só, incompreensível, porém perfeitamente compreendida no seu contexto e provida de sentido, constituindo-se no motor do efeito cómico do chiste.

Freud conclui que o processo de formação dos chistes manifesta algumas semelhanças com a “produção onírica”, levando-o a estabelecer uma relação entre os chistes e o inconsciente, tal como estabeleceu um relação entre os sonhos e o inconsciente: “Constatamos que as características e efeitos dos chistes ligam-se a certas formas de expressão ou métodos técnicos, entre os quais os mais surpreendentes são a condensação, o deslocamento e a representação indirecta. Processos, entretanto, que levam aos mesmos resultados foram por nós reconhecidos como peculiaridades da elaboração onírica. (Freud, 1995).

Ao contrário do sonho, o chiste consiste numa função mental social que visa a obtenção de prazer, assumindo um carácter inteligível: “Está, portanto, preso à condição da inteligibilidade; pode utilizar apenas a possível distorção do inconsciente, através da condensação e deslocamento, até ao ponto em que possa ser reconstruído pela compreensão de uma terceira pessoa”. (Freud, 1995).

Aqui, mais uma vez, entramos no campo da linguística. Segundo Arrivè, a obra de Freud sobre os chistes “é uma verdadeira linguística freudiana, atenta a todos os aspectos da linguagem”. (Arrivè, 1999).

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1.3. Inconsciente e linguagem segundo Lacan

Lacan, Psiquiatra e Psicanalista francês provocou diversas mudanças na forma como era visto o inconsciente, desde a sua descoberta, em 1900. Foi a partir das leituras que fez sobre o trabalho de Freud que Jacques Lacan construiu a sua teoria, também influenciado pela linguística de Saussure. O autor não pretendeu colocar em causa a psicanálise, mas sim validar a sua existência, afirmando, em 1987, que a psicanálise apenas faria sentido “se, e somente se, o inconsciente estiver estruturado como uma linguagem”. (Miller, 1987). Está afirmação é a questão central dos ensinamentos que nos deixou Lacan.

Segundo Arrivè, uma análise literal e perfeita da hipótese lacaniana encontra-se no seu artigo O Aturdito de 1973: “O inconsciente, “por ser estruturado como uma linguagem”, isto é como a alíngua que ele habita, está sujeito à equivocidade pela qual cada uma delas se distingue. Uma língua entre outras não é nada além da integral dos equívocos que a sua história deixou persistirem nela.” (Lacan, 2003).

Importa referir que Lacan não era um opositor de Freud, pelo contrário, era fiel ao pai da psicanálise e afirmava-se um seu seguidor. No início da década de 70, na conhecida segunda clínica lacaniana, altura do final dos seus ensinamentos, é notória a mudança da hipótese de Freud, muito embora Lacan não pretendesse que fosse descartada a hipótese do seu mestre ou que fosse abandonado o conceito freudiano em favor de um seu. Pretendia sim defender as teorias freudianas dando-lhes, muitas vezes, inevitavelmente, um seguimento ou desenvolvimento diferentes do original.

A afirmação de Lacan de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” fundamentou-se também numa diversa experiência clínica. Enquanto que a clínica de Freud descobre o inconsciente através do trabalho com pacientes histéricas, onde se coloca a questão “O que o Outro quer de mim?”, a clínica de Lacan descobre aquela instância através da psicose, onde o Outro do inconsciente assume um papel imperativo: “tu deves”. É no campo da psicose e no trabalho analítico efectuado com esta patologia que Lacan vai fundamentar a relação existente entre o inconsciente e a linguagem.

O grande objectivo de Lacan, ao reler a obra de Freud, foi o de manifestar o seu descontentamento em relação à forma incorrecta como estavam a ser praticadas as psicoterapias de base analítica, na medida em que se estavam a afastar dos pressupostos da psicanálise, focando-se apenas numa perspectiva comportamental, com o objectivo de adaptar e conduzir os sujeitos às boas práticas sociais. A preocupação de Lacan era, portanto, retornar a Freud e defender os conceitos psicanalíticos originais do pai da psicanálise. Para tal, Lacan serviu-se da linguística como instrumento.

Desta forma, quando Lacan se diz seguidor de Freud, é no sentido de manter viva a psicanálise freudiana, defendendo que o conceito de inconsciente pressupõe a existência de uma força de natureza sexual no sujeito, a qual não é compatível com a boa adaptação moral e social nem acessível à consciência dos indivíduos.

1.3.1. O retorno da psicanálise à sua origem: pelo caminho da linguagem

É na década de 50 que se regista o início dos ensinamentos de Jacques Lacan, através do texto Função e campo da fala e da linguagem, onde ele começa a manifestar o seu desagrado relativamente à forma como estava a ser praticada a psicanálise. Nessa época, para os psicanalistas, o inconsciente poderia ser explicado pela neurofisiologia, sendo a linguagem apenas uma consequência da relação privilegiada entre o cérebro e o inconsciente.

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Lacan discorda por completo desta ideia e para se contrapor a ela, retorna a Freud e aos fundamentos da psicanálise freudiana, a qual considera o sujeito como ser falante, sendo a fala e a palavra, a única via e o único instrumento, respectivamente, capazes de permitir o acesso ao inconsciente. Estes fundamentos inviabilizam quaisquer pressupostos biológicos e neurológicos, pois para o psicanalista francês, não há uma relação entre o cérebro e o inconsciente, mas sim entre este e a linguagem, como já vimos.

Neste sentido, Lacan trabalha arduamente no sentido de, através da linguística, trazer a psicanálise de volta ao seu campo de actuação original – o da linguagem – do qual os analistas pós-freudianos se tinham afastado. Esta postura polémica de Lacan, sem margens para ambiguidades, foi fundamental e determinante no posicionamento da psicanálise até aos nossos dias e todo o seu trabalho se baseou nos pressupostos analíticos de Freud e nos fundamentos linguísticos de Saussure, criando, assim, uma nova teoria, a do inconsciente estruturado como uma linguagem.

Na defesa desta sua hipótese, e abordando a perspectiva freudiana do sonho, onde ocorrem dois tipos de mecanismos – a condensação e o deslocamento – Lacan retoma estes dois conceitos, equiparando-os a outros dois de carácter linguístico – a metáfora e a metonímia: “São basicamente estes os elementos que Lacan utilizará para fundar, bem como para apoiar, a analogia estabelecida entre o funcionamento dos processos inconscientes e o funcionamento de certos aspectos da linguagem”. (Dor, 1992).

Em 1960, Lacan afirma o que viria a ser posteriormente publicado em O Escrito: “É preciso, sobre o inconsciente, entrar no essencial da experiência freudiana. O inconsciente é um conceito forjado no rastro daquilo que opera para constituir o sujeito. O inconsciente não é uma espécie que defina na realidade psíquica o círculo daquilo que não tem o atributo ou a virtude da consciência.” (Lacan, 1998).

Mais tarde, em 1964, no Seminário 11, o mestre francês afirma: “O inconsciente freudiano nada tem a ver com as formas ditas do inconsciente que o precederam, mesmo as que o acompanhavam, mesmo as que o cercam ainda”. (Lacan, 1985).

Lacan, nesta altura, defende que o inconsciente é o discurso do Outro (o Outro do próprio sujeito, que lhe escapa à consciência). Ao introduzir este termo, o autor pretende demonstrar a dimensão simbólica do sujeito, o Outro da linguagem, o Outro externo ao sujeito, mas que é sempre deveras determinante para este e que pré-existe a ele. “As necessidades do ser humano são nele completamente transformadas pelo facto de que fala, pelo facto de que dirige demandas ao Outro.” (Miller, 1987).

1.3.2. A linguística em Lacan

No decorrer do seu longo e dedicado trabalho, Lacan diz: “A linguística é o meio pelo qual a psicanálise se poderia prender à ciência”. O autor afirmou ainda: “Uma oportunidade, contudo, que se oferece para nós, no que diz respeito ao inconsciente, é que a ciência da qual ele depende é certamente a linguística, primeiro facto de estrutura. Digamos que ele é estruturado porque é feito como uma linguagem, que ele se desdobra nos efeitos de linguagem.” (Lacan por Coutinho, 2002).

Muitas vezes o sujeito utiliza a linguagem, falando sem saber o que dizem as suas palavras, assumindo a linguagem um carácter subjectivo: “Este algo totalmente diferente institui-se fundamentalmente como o inconsciente que escapa ao sujeito falante, porque dele está constitutivamente separado”. (Dor, 1992). Esta é a dimensão simbólica do sujeito, o qual é traduzido pela linguagem enquanto condição do inconsciente.

Segundo Nóbrega (2002), os trabalhos que estabelecem uma aproximação entre Saussure e Lacan apontam para as diferenças e semelhanças entre o

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significante lacaniano e o significante/signo saussuriano. Nesse mesmo artigo, a autora cita Lacan em relação ao facto de este afirmar que é toda a estrutura da linguagem o que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente. Podemos aprofundar esta questão com Lacan no seminário VII, A ética da psicanálise, quando afirma que “a articulação significante fornece a verdadeira estrutura do inconsciente.” (Lacan, 1985).

Lacan acrescenta: “A noção de estrutura já é por si própria uma manifestação do significante.” (Lacan, 1988). A dinâmica da estrutura, diz o psicanalista francês, conduz-nos à questão do significante a ponto de, ao nos interessarmos pela estrutura, não podermos negligenciar o significante. Ao observar a relação entre significante e significado, percebe-se que há entre eles uma sincronia e diacronia, como se vê também numa análise estrutural, acrescenta Lacan. Ou seja, a noção de estrutura e de significante surge-nos inseparável.

Ainda sobre o significante, Lacan afirma: “É impossível estudar o funcionamento desse fenómeno que se chama linguagem, se não se fizer, no início a distinção do significante e significado. O significante tem leis próprias, independentemente do significado. (Lacan, 1985).

1.3.3. Significante: constitutivo do inconsciente e linguagem materializada

Em 1953, Lacan definiu o significante como o conjunto dos elementos materiais da linguagem, ligados por uma estrutura. O significante é o suporte material do discurso: “a letra” ou os “sons”. Não é nem o sinal nem o signo da coisa, menos ainda o significado. O significado é o sentido, comum a todos, de uma experiência relatada no discurso. Exterioriza-se na globalidade dos significantes sucessivos e não se situa em parte alguma a não ser no significante da frase.

Segundo Lemaire (1989), no seu texto Óptica lacaniana da linguística, a originalidade de Lacan foi ter defendido que o significante age separadamente da sua significação e à revelia do sujeito. O carácter literal do significante, como elemento constitutivo do inconsciente, tem os seus efeitos na consciência, sem que o sujeito tenha a menor possibilidade de se aperceber disso.

No mesmo texto, Lemaire ilustra com o exemplo: “Se ocorrer um acto copulatório na presença de uma criança, sem que esta tenha maturidade biológica suficiente para o prover da sua exacta significação, ele vai-se inscrever no inconsciente, mas desprovido de significação. Inscrever-se-á em significantes puros.” (LEMAIRE, 1989).

Lacan ficou reconhecido mundialmente no domínio das ciências humanas, fortalecido pelo encontro que teve com a linguística e com a antropologia estrutural, resultando no prolongamento de Freud. Ele repensa e reformula a estrutura do sujeito a partir da ideia fundamental, ou seja, do papel do simbolismo sobre o homem e da importância que o simbólico exerce sobre o mesmo. Baseado nos ensinamentos de Saussure, estabelece, segundo Lamaire (1989), uma divisão do ser humano em três níveis: “1. Entre o aquém do inconsciente, impossível de conhecer, e o próprio inconsciente; 2. entre o inconsciente como linguagem e a linguagem consciente e, 3. Ao nível da própria linguagem consciente, entre o significante e significado.” (Lamaire, 1989).

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1.4. Língua, fala e linguagem

Ferdinand de Saussure no seu Curso de linguística geral (CLG), defendeu existirem duas teses que se revelam inseparáveis: “a definição da língua como sistema de signos e a instalação da semiologia”. (Arrivè, 1999). A semiologia, ainda sempre foi uma preocupação de Saussure nos anos que ele ministrava os cursos de linguística geral, pois o mesmo insistia na importância de uma ciência geral. Tal importância aparece assim no CLG: “Pode-se conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social; ela faria parte da Psicologia social e, por conseguinte, da Psicologia geral; chamá-la-emos de Semiologia (do grego semeion, “signo”). Ela ensinar-nos-á em que consistem os signos e que leis os regem. A Linguística não é senão uma parte dessa ciência geral; as leis que a Semiologia descobrir serão aplicáveis à Linguística, e esta ficará vinculada a um domínio bem definido no conjunto dos factos humanos.” (Saussure, s/d).

Arrivè acrescenta, citando Saussure: “A língua é um sistema de signos que exprimem ideias e, por isso, é comparável à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, aos sinais militares etc. Ela é o factor principal desses sistemas. (Saussure, s/d).

A língua como sistema específico de signos é objecto da linguística e está inserida na semiologia como o mais importante dos sistemas que fazem parte desta ciência. Mas para os linguistas, não se deve confundir língua com linguagem. Este é um problema fundamental não só para a teoria saussuriana, mas para a leitura que Lacan faz dela, principalmente quando este defende a sua tese do “inconsciente estruturado como uma linguagem”, tese esta que exige saber de que linguagem se trata. Arrivè coloca a seguinte questão: Não seria essa “uma linguagem” da qual fala Lacan, “vizinha da língua saussuriana?”. (Arrivè, 1999).

Para Saussure, a língua faz parte da linguagem e uma e outra não são a mesma coisa. A língua é uma parte essencial da linguagem, é verdade. A linguagem, por sua vez, abrange diferentes domínios, sejam o físico, o fisiológico, o psíquico, o social e o individual.

A prática da linguagem, ou a capacidade de constituir uma língua, para Saussure, é de ordem natural, ao passo que a língua é adquirida e convencional. Para o mestre da linguística, a língua que faz parte da linguagem e a fala representa o objecto que, em conjunto com a língua, formam a linguagem. A respeito disto, Arrivè diz: “Evitando estéreis definições de palavras, distinguimos inicialmente, no seio do fenómeno total, que a linguagem representa dois factores: a língua e a fala. A língua é para nós a linguagem menos a fala. Ela é o conjunto dos hábitos linguísticos que permitem a um sujeito compreender e fazer-se compreender.” (Arrivè, 1999).

Lacan reconhece a importância da fala na teoria de Saussure, ao contrário de muitos linguistas, porque como psicanalista, o exercício da fala é o instrumento fundamental da sua profissão. “Quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a psicanálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente”. (Lacan, 1998).

A partir daqui, Lacan desenvolveu uma teoria acerca da função da fala na análise. Ele refere que no trabalho analítico há uma divisão entre o que se diz e o que se quer dizer. O que se quer dizer, na realidade, não se diz, sendo o significado da fala decidido pelo receptor.

É na distinção entre fala e língua que podemos observar as diferenças entre o significante lacaniano e o significante saussuriano (signo). Para Lacan, o significante tem um carácter simbólico e externo ao sujeito, impondo-se e moldando-o de acordo com as regras sociais, sendo a linguagem, como já vimos, a condição do inconsciente. Segundo o psicanalista francês, apenas através do retorno à consciência se pode conhecer a linguagem do inconsciente.

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Segundo Miller, no seu texto O monólogo de Aparrola (1998), a essência da fala traduz-se na vontade de dizer do sujeito. A fala implica uma acção que envolve sempre o Outro. Ela é sempre um acto de pergunta e resposta. A interpretação do analista apresenta-se sempre como uma resposta e essa resposta é, ao mesmo tempo, uma pergunta, a famosa “que queres?”. A resposta interpretativa do analista é sempre uma pergunta sobre o desejo do analisando.

Para Saussure, o significante não existe fora da sua associação com o significado. Mesmo sendo distintos, fazem parte da unidade do signo. Essa distinção é postulada no interior do sistema social da língua. Há uma equivalência entre eles como se fossem duas faces de uma folha de papel. A relação entre significante e significado é continuamente remodelada por deslizamentos entre os dois.

Assim, podemos pensar que o significante lacaniano se diferencia do significante saussuriano porque quando há uma manifestação do inconsciente, “isso fala” diz Lacan, independentemente da vontade do sujeito. Desta forma, o inconsciente elimina qualquer equivalência entre significante e significado, como se o significante fosse autónomo em relação ao signo, eliminando o carácter social da língua, tornando-se numa linguagem privada, peculiar a cada sujeito, ou seja, alíngua. A partir daqui, Lacan interessa-se bastante pelos conceitos de letra e alíngua, afastando-se dos pressupostos da linguística estrutural (mas não da linguagem!)

1.5. O inconsciente e os seus mecanismos psicanalíticos e linguísticos

Lacan insiste sempre que a psicanálise opera essencialmente através de um único meio, a palavra do analisando, estabelecendo, com base na obra de Freud, a relação entre as diversas formações do inconsciente e a linguagem, e observando ser comum a todas elas o facto de se estruturarem como uma linguagem. Neste trabalho, Lacan baseia-se em três textos freudianos - A interpretação dos sonhos (1900), A psicopatologia da vida quotidiana (1901) e Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905).

Com a hipótese de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, num dos seus artigos dos Escritos - Função e Campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan defendeu que a estrutura do inconsciente também segue as dimensões sincrónica e diacrónica do discurso. As leis da metáfora e metonímia indicam tanto o sentido como é produzido, como se torna fixo ou como se desloca infinitamente. A operação da metáfora (substituição significante) e a operação da metonímia (combinação significante) produzem efeitos de sentido a partir da operação de retroacção de um segundo significante, S2, sobre um significante anterior, S1. Na metonímia, há o deslocamento de sentido de um significante para outro, produzindo um efeito de sentido inerente à cadeia significante. Na metáfora, um segundo significante, S2, substitui um primeiro significante, S1, ocupando o seu lugar na cadeia significante que ficou vazio em função do processo criador estabelecido.

Lacan equipara a metáfora e a metonímia, descritos pelo linguista Jakobson, à condensação e ao deslocamento, encarados por Freud como sendo os mecanismos básicos do trabalho do sonho. Estes mecanismos são encontrados não só no sonho e no chiste, como também são considerados por Freud como os traços distintivos de todo o processo primário e, portanto, mecanismos fundamentais do inconsciente.

A equiparação anteriormente referida fundamenta e reforça a tese de Lacan, segundo a qual o inconsciente é estruturado como uma linguagem, assim como podemos observar uma aproximação da aplicação do princípio da arbitrariedade do signo linguístico saussuriano aos conteúdos do inconsciente. Mas falamos de uma arbitrariedade relativa, pois o inconsciente tem a sua própria lei, isto é, nada é por acaso, existe uma escolha, nem que seja uma escolha forçada e aí entra a questão do

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sujeito, que não é da ordem da linguística, mas que Saussure em vários momentos do CLG nos permite pensar nessa categoria quando usa o termo espírito em vários capítulos, a saber: O valor linguístico, Relações sintagmáticas e relações associativas, Mecanismo da língua, entre outros.

É no capítulo sobre Mecanismo da língua que Saussure fala do arbitrário absoluto e do arbitrário relativo. Ele refere que apenas uma parte dos signos é absolutamente arbitrária. Noutras partes ocorre um fenómeno que permite reconhecer pontos no arbitrário sem o suprimir. E afirma: “o signo pode ser relativamente motivado.” Neste sentido, ele dá o seguinte exemplo: “Assim, vinte é imotivado, mas dezanove não o é no mesmo grau, porque evoca os termos dos quais se compõe e outros que lhe são associados, por exemplo, dez, nove, vinte e nove, dezoito, setenta, etc.; tomados separadamente, dez e nove estão nas mesmas condições que vinte, mas dezanove apresenta um caso de motivação relativa.” (Saussure, s/d).

Saussure vai defender que a noção do relativamente motivado implica dois fenómenos: em primeiro lugar, a análise do termo dado, ou seja, uma relação sintagmática e, em segundo, a evocação de um ou vários termos, ou seja, uma relação associativa. Conclui ainda que, mesmo nos casos mais favoráveis, a motivação nunca é absoluta, conclusão essa que nos permite pensar no movimento do inconsciente como um fenómeno, como diz Saussure, que reconhece algo no arbitrário sem o suprimir.

A arbitrariedade de que se fala no âmbito do signo linguístico de Saussure refere-se ao laço que une o significante e o significado, não sendo este mecanismo da ordem do natural. Desta forma, podemos afirmar que na língua só há diferenças. Este é o princípio fundamental da linguística saussuriana. No seu Curso de linguística geral, (s/d), Saussure afirma que a linguagem não é constituída essencialmente por nomes dados às coisas e que também ela não é uma nomenclatura. O signo linguístico não é constituído pela união de uma coisa a um nome, mas sim pela união de um conceito a uma imagem acústica. Se quiséssemos estabelecer uma relação fixa entre o objecto e o signo, a linguagem transformar-se-ia num mero sistema de sinais, como acontece no mundo animal.

Para concluir este capítulo, devemos concordar com Lacan quando ele afirma que não pretende elaborar uma teoria do conhecimento, mas defende que as coisas do mundo humano são coisas de um mundo estruturado em palavras e que a linguagem, os processos simbólicos, governam tudo. O facto de o homem estar integrado nos processos simbólicos de uma forma inacessível a qualquer outro animal, não poderia ser resolvido em termos de psicologia, pois implica que tenhamos primeiro um conhecimento completo do que significa a ordem do simbólico.

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CAPÍTULO II

Sintoma e Linguagem segundo Freud e Lacan

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De todas as formações do inconsciente abordadas por Freud e retomadas por Lacan, o sintoma é a formação que iremos considerar neste capítulo, pois a psicanálise começou o seu trabalho pelo estudo dos sintomas ditos neuróticos. A trajectória do sintoma até ao inconsciente passa por vários conceitos, como a pulsão, a sexualidade, o recalcamento, que não serão aqui trabalhados, mas que é importante serem mencionados, de forma a esclarecer o que Freud nos quer transmitir, no início da sua teoria, quando afirma que os sintomas neuróticos são expressão de conflitos entre o eu e as pulsões (as instâncias inconscientes) que, por serem incompatíveis com a integridade ou com os padrões éticos do eu, são recalcadas, ou seja, são impedidas de se tornarem conscientes, bem como são afastadas, de início, da possibilidade de satisfação.

O recalcamento, no entanto, facilmente fracassa e a libido reprimida, insatisfeita, que foi afastada pela realidade, procura agora outras saídas do inconsciente, outras formas de satisfação, seguindo por caminhos indirectos, operação denominada de retorno do reprimido. Assim, a libido regride a fases anteriores do desenvolvimento infantil e a atitudes anteriores em relação aos objectos – pontos de fixações infantis – e surge na consciência, obtendo satisfação. O resultado deste processo é um sintoma e, consequentemente, uma satisfação sexual substitutiva para desejos sexuais não realizados, ou seja, um substituto de algo que foi afastado pelo recalcamento, indicação de um retorno do reprimido; uma satisfação substituta deformada, irreconhecível, uma vez que o sintoma não escapa inteiramente à censura, submetendo-se, assim, a modificações e deslocamentos. Os sintomas consistem ou numa satisfação de algum desejo sexual, ou em medidas para impedir tal satisfação e, normalmente, têm a natureza de conciliação, de formação de compromisso entre as duas forças que entraram em conflito.

Para abordarmos a questão dos novos sintomas, importa analisar o conceito de sintoma em Freud e em Lacan, acrescentando ainda a relação entre sintoma e função paterna, estando este último conceito revestido da máxima importância na compreensão de uma das hipóteses levantadas neste trabalho, ou seja, de que as formações sintomáticas actuais parecem prescindir da figura paterna.

Para Freud, a pulsão está implicada no sintoma e, como tal, importa abordar os casos paradigmáticos das duas grandes neuroses – histeria e obsessão. Na histeria, o sintoma apresenta-se como a defesa contra o desejo recalcado, o qual, para se manter recalcado, precisa encontrar uma forma de descarga. O sintoma forma-se por um mecanismo de substituição, onde o desejo se satisfaz. Na neurose obsessiva, por sua vez, o sintoma é uma resposta a uma satisfação insuportável, o qual expressa o conflito entre a satisfação e a defesa, combinando as duas de forma a obter satisfação na própria defesa. Desta forma, o que se satisfaz no sintoma é a pulsão e esta satisfaz-se sempre. No modelo da histeria, a interpretação do desejo recalcado dominava o sintoma, porém o mesmo não sucedia na neurose obsessiva. É nela que se articula de forma mais evidente o carácter intransigente da pulsão.

Para Lacan, nas suas primeiras concepções do sintoma, estas encontram-se divididas em sintoma como mensagem e sintoma como sentido e gozo. Na concepção do sintoma como mensagem, o sintoma pode ser eliminado através da sua interpretação, porquanto é estruturado como linguagem. Esta forma de entender o sintoma é de grande importância histórica, pois tenta combater uma série de ilações dos pós-freudianos que conduziam a psicanálise para um campo muito próximo da adivinhação, desconsiderando as postulações freudianas sobre a expressividade do sintoma. É neste sentido que Lacan retoma a diferença entre o latente e o manifesto, através da concepção da fala como plena e vazia, considerando a primeira como expressão do inconsciente e a segunda como expressão do eu. Esta forma de entendimento permite lidar com o sintoma como se de um sentido aprisionado se tratasse, o qual a interpretação irá libertar. A interpretação representa um momento dos ensinamentos de Lacan onde o gozo era concebido como imaginário, opondo-se à ordem simbólica e desarticulada do significante.

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2.1. A dimensão simbólica do sintoma

Afinal qual é o sentido de tudo isto? Actos falhados, sonhos e sintomas neuróticos têm um sentido, “conforme verificamos, possuem uma determinada conexão com a experiência do paciente.” (Freud, 1976). “O sentido dos sintomas” é o título da XVII conferência do livro em que Freud expõe muitas das suas ideias sobre a presente questão. Os sintomas, neste sentido, pertencem ao mesmo registo, ou seja, ao registo simbólico, porquanto se decifram, são passíveis de leitura. Relativamente ao sintoma histérico, o qual foi a porta de entrada para a psicanálise, quando interpretado, desaparecia. Porém, numa segunda etapa freudiana, o mestre percebe que o sintoma não desaparecia totalmente, retornava. Chamava-se a isso “reacção terapêutica negativa”. Havia uma repetição e essa repetição ficou evidente para Freud na neurose obsessiva, pois era a fundamentação do próprio sintoma obsessivo.

Na mesma conferência, Freud refere-se à Psiquiatria actual e à forma como ela actua em relação aos problemas da Neurose obsessiva. A Psiquiatria somente atribui nomes às diferentes obsessões, defendendo que os portadores de tais sintomas são “degenerados”. Esta afirmação não constitui uma explicação, mas sim um julgamento de valor. A Psiquiatria preocupa-se pouco com as formas de manifestações e com o conteúdo de cada sintoma; a Psicanálise, por outro lado, dá atenção a ambos os aspectos e consegue comprovar que cada sintoma tem um sentido e que está ligado à singularidade de cada sujeito.

A teoria freudiana de que os sintomas têm um sentido, o qual pode ser decifrado como as restantes formações do inconsciente, é abordada por Lacan com base nos recursos da linguística estrutural. Se o sintoma for uma mensagem que pode ser decifrada e dirigida ao Outro, é porque mantém a latência significante, isto é, mantém algo que pertence a um processo especial da sua formação e que fundamenta o seu sentido e a sua significação. O sintoma é, assim, definido como “o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito” (Lacan, 1998), um sem-sentido, uma opacidade no discurso do sujeito, por representar uma irrupção de verdade.

Em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, Lacan (1998) afirma que o sintoma se resolve por inteiro numa análise à luz da linguagem, por ser ele próprio estruturado como uma linguagem, uma linguagem cuja fala deve ser libertada. O sintoma é, tal como o inconsciente, estruturado como uma linguagem, porque partilha da linguagem e das suas leis. É também a fala dirigida ao Outro, lugar de onde o sujeito recebe o sentido e a significação do seu sintoma, ou seja, “a sua própria mensagem de forma invertida” (Lacan, 1998).

Lacan utiliza este termo nos anos 50 para elaborar a sua teoria do simbólico, na qual esse Outro surge como uma terceira figura da fala. Neste sentido, mesmo antes do nascimento de um filho, as relações entre os seus pais são organizadas pela palavra; “elas situam-se no mesmo quadro das leis de linguagem”. (Miller, 1987).

É num banho de linguagem que a criança se encontra mergulhada à nascença. Esse lugar que representa o tesouro dos significantes, que se dirige ao sujeito, Lacan denomina de lugar do Outro, Outro da linguagem que fará emergir uma vida subjectiva, permitindo ao ser humano alcançar uma constituição psíquica. Nesse domínio familiar produzem-se, entre mãe e filho, os significantes privilegiados pela mãe perante a demanda do filho, formando um campo discursivo em torno do desenvolvimento da criança.

Miller acrescenta ainda que o entendimento das mensagens e a comunicação não são o essencial da linguagem; para a psicanálise é importante o facto de a mesma ter por função a identificação o sujeito. E é essa identificação que lhe permite incluir-se no registo simbólico. Esse Outro tem as suas próprias leis, as quais foram

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desenvolvidas por Lacan como sendo as leis dos significantes, através da sua leitura de Saussure e Jakobson.

Para Freud, o sintoma nunca é simples; ele é sempre sobredeterminado, sendo esse facto, para Lacan, somente concebível na estrutura da linguagem. A sobredeterminação não é mais do que a sobredeterminação simbólica do significante, ao nível do inconsciente, ou seja, é a articulação das cadeias significantes ao ser decifrado o sintoma, isto é, ao fazer deslizar e desdobrar os significantes recalcados que a ele estão ligados. Nesta dimensão, o processo de análise é o processo de deciframento da articulação significante, que ocorre no desdobramento e no desenrolar das cadeias de associação de significantes.

A associação livre, regra fundamental da psicanálise, faz-se pela via do significante e não do significado. Para se chegar ao significado, o que importa é o lugar do significante em relação a um outro significante. A psicanálise, então, opera sobre o inconsciente, que dá prevalência ao significante. O significado não é mais do que outro significante que, junto com o primeiro, retroactivamente, produz efeito de sentido. Essa é a própria estrutura do significante. Na relação S1 e S2, o sentido de S1 é fornecido por S2. É necessário sempre outro significante para rever o sentido do anterior.

Desde o seu trabalho com a histeria, Freud encarou o sintoma como o efeito da linguagem sobre o sujeito. A cura pela fala, demonstrada no tratamento aplicado às histéricas, mostra que o acontecimento traumático gerador do sintoma se modifica quando nele se insurge a fala. Assim, sintoma e fala são homogéneos, ou seja, partilham o mesmo campo: o da linguagem. Neste sentido, o sintoma seria a fala aprisionada que, mesmo sendo libertada, não desaparece totalmente, havendo algo nele que resiste, ou seja, um resto de satisfação que não pôde ser expressa, algo que não pôde ser dito. Mais tarde, Lacan vai dizer que esse resto é da ordem do real, impossível de ser dito.

O sintoma, como formação do inconsciente, estruturado como uma linguagem, segundo Lacan, acentua-lhe a condição humana, coloca o sujeito numa situação de ruptura com o mundo animal. Lacan não reduz o sintoma ao campo simbólico, mas afirma decididamente a supremacia da dimensão simbólica.

No seu retorno a Freud, Lacan tinha definido o sintoma como um constructo originário de um signo mnémico da representação traumática, formado no inconsciente ao interpretá-lo à sua maneira. O traumático acaba por ser o que se repete no sintoma, para fazer surgir o significante da sua origem, significante este apenas conhecido através de uma operação ao nível inconsciente, no discurso analítico.

Na conferência de Genebra sobre o Sintoma, em 1975, Lacan afirma que quando Freud realça que o sintoma tem um sentido, um sentido que se interpreta correctamente, isso quer dizer que o sujeito revela uma parte dele em função das suas primeiras experiências, isto é, no facto de não poder falar sobre a sua realidade sexual. E nesse momento ele cita o caso do ”pequeno Hans”, quando este se dá conta da própria erecção e vai encarná-la num objecto externo, num cavalo que vai e vem, que dá coices e que é o melhor exemplo daquilo que ele tem que enfrentar, sem nada entender, graças ao facto, diz ainda Lacan, de ele ter um certo tipo de pais. O sintoma do pequeno Hans é a expressão, a significação, dessa recusa.

A recusa de Hans é o medo que ele tem dessa erecção que lhe acontece, desenvolvendo assim uma fobia por cavalos. A fobia é o sintoma com o qual Hans conseguiu traduzir a angústia perante o primeiro contacto com a erecção do seu pénis. Hans não entende esse fenómeno devido aos pais que tem. Segundo Lacan, o sintoma da criança pode representar a verdade do casal familiar. Esta é a primeira versão do sintoma: o sintoma infantil está sempre relacionado com a verdade dos pais.

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2.1.1 O sintoma e a figura paterna

O sintoma e a função paterna são conceitos fundamentais na teoria e na prática psicanalítica de Freud e Lacan e destacam-se profundamente no percurso de cada um deles, quer pelas suas mudanças de paradigma, quer pelas suas diversas referências e também, principalmente, pelo facto de a teoria lacaniana ser permeável ao cruzamento entre diferentes conceitos e épocas, cedendo às suas influências, quando estas são pertinentes, mas também interpretando-a e aspirando a que a Psicanálise vença.

O sintoma é um conceito freudiano ligado essencialmente à figura paterna, absorvido do campo do Pai, ou seja, do campo do sentido. Surge como uma mensagem dirigida ao lugar onde o Nome-do-Pai sustenta a relação impossível entre o desejo e a lei.

É suposto que a psicanálise adquira a subjectividade própria de cada época. Por este facto, é natural que assistamos a mudanças de conceitos entre a época de Freud e a de Lacan. Se observarmos com alguma atenção, podemos perceber que as mudanças que têm ocorrido na clínica correlacionam-se com as mudanças na subjectividade. E são estas mudanças que se manifestam nos novos sintomas, os quais desconsideram por completo a figura paterna. Voltando atrás, o conceito freudiano de sintoma está sempre ligado à figura paterna, ou seja, sintoma e pai são metáforas.

Existe um dito romano citado por Freud, segundo o qual a figura paterna é incerta e a figura materna é uma figura certa. Desta perspectiva, podemos considerar o sintoma freudiano como o “instrumento” do qual o sujeito dispõe para lidar com a incerteza do pai, sintoma esse que adquire as peculiaridades inerentes a cada indivíduo.

O nascimento da psicanálise resulta precisamente da relação que Freud estabelece, em 1913, entre o sintoma histérico e a paternidade, aquando da explicação por ele inventada acerca das origens do pai, registada na obra Totem e Tabu. Essa invenção sobre a origem do pai resultou na consideração da figura paterna como função simbólica. Segundo o mestre da psicanálise, o Pai começa com o assassinato do pai, com a separação entre as dimensões real e simbólica, ou seja, a função paterna apenas se revela através da negação da dimensão real do pai. Desta forma, apenas através desta separação, negação, surge um vazio para ser preenchido pela dimensão simbólica. A função simbólica do Pai permite interpretar a ausência da dimensão real do pai, à qual Freud chamou de assassinato.

Importa referir que o pai real é totalmente distinto do pai simbólico, imaginário, o qual assume características terríveis, assustadoras. Esta função está relacionada, sim, com a palavra. A utilização da palavra, por parte do pai, torna-se necessária para justificar a preservação dessa função, agindo este, assim, como agente efectivo da castração. Esta função está relacionada com a autoridade que consiste no direito ou poder de fazer obedecer, de dar ordens, de tomar decisões e agir. O termo deriva da palavra autor e remete para a função de dar garantia de valor, aos outros, naquilo que faz. A função do pai é, então, a de proporcionar segurança ao sujeito, pois de outra forma, o sujeito fica à deriva.

Freud vinculou o nascimento da psicanálise ao declínio das religiões. Ele constatou que as neuroses se multiplicaram a partir desse declínio. “A autoridade do pai e o seu poder sugestivo revelam-se, assim, como a resposta das religiões perante a inconsistência interna dos seres humanos”, diz Gorostiza (2006). O lugar designado como Nome-do-Pai na psicanálise é idêntico ao ocupado por Deus-Pai na religião.

Para Freud, o pai é o representante e agente da renúncia pulsional que a cultura e a sociedade exigem. Consequentemente, concebeu a função paterna de um modo homogéneo, no eixo da proibição do incesto e do auto-erotismo. Desta forma, a figura paterna assumiu, na sua teoria, um carácter fortemente hostil.

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2.1.2. Metáfora paterna

Em 1957, aquando do seu seminário intitulado, “As formações do inconsciente” Lacan é questionado sobre os assuntos que pretendia abordar no decorrer desse ano de estudos. Lacan respondeu que “esperava abordar questões relativas à estrutura”. (Lacan, 1999). É desta forma que ele dá início ao capítulo chamado A metáfora paterna. Obviamente que, como ele próprio diz, as questões de estrutura referem-se às formações do inconsciente. Ou seja, ele pretendia estudar os enganos da linguagem que todas as pessoas cometem diária e involuntariamente, as quais têm já um carácter tão banal que ninguém se questiona sobre isso.

A noção de estrutura é central na obra de Lacan, na medida em que ela é constantemente referenciada à estrutura de linguagem. Seguir a estrutura é comprovar os efeitos da linguagem, diz Lacan em 1970, numa entrevista a uma rádio, da qual resultou o texto Radiofonia, incluído na sua obra Outros escritos. Este texto refere-se essencialmente à forma como esta estrutura se relaciona com o inconsciente, pois é apenas através do acto de falar que o inconsciente se manifesta e nos permite ter acesso a ele.

Como foi dito anteriormente, se o sintoma e o pai são metáforas, ambos são significantes que vêm no lugar de outros significantes. A metáfora, de acordo com Dor (1989), está presente nos atropelos do discurso como uma figura de estilo fundada em relações de similaridade, de substituição. Neste sentido, trata-se de um mecanismo de linguagem que intervém ao longo do eixo sincrónico (sintagmático), ou seja, um dos eixos da língua para Saussure. A metáfora consiste, basicamente, em designar alguma coisa através do nome de uma outra coisa. No sentido pleno do termo, é considerada como uma substituição significante.

Segundo Lacan, no seu seminário número cinco, As Formações do inconsciente, datado de 1957, a metáfora paterna, que diz respeito à função do pai, é a forma complicada como cada pessoa a utiliza, ou seja, é a forma singular como cada um lhe vai atribuir um significado. No fundo, a metáfora paterna tem uma função estruturante, na medida em que é fundadora do sujeito psíquico como tal.

Importa destacar que foi igualmente em 1957 que Lacan começou a escrever A instância da letra, começou a abordar os assuntos “linguísticos”, ou seja, Lacan iniciou nessa época o seu trabalho com a linguística, o qual teve como consequência o surgimento da metáfora paterna.

Lacan acaba por formalizar a metáfora paterna com Jackobson, com base na sua releitura do mito edípico freudiano. O mito é algo que demonstra àqueles que o ouvem que já foi dito anteriormente tudo o que se podia dizer a respeito e que, como tal, é inútil passá-lo à escrita, pois isso não o tornaria original. Se, na origem, se colocam “pai” e “mãe”, então nomear estas funções significa explicar o começo de todas as coisas. Este é talvez o primeiro modelo de uma determinada comunidade expressar a sua originalidade. O mito é popular, todos o conhecem, qualquer um pode contá-lo, transmiti-lo. O mito representa o povo.

Lacan diz que numa cidade desprovida de mitos, cada significante se representa a si próprio. Ao trabalhar com os mitos freudianos, Lacan impõe-lhes, como diz Miller (por Pérez, 2005), a exigência de representar algo que deve ser interpretado. Impõe, “portanto, (a exigência) de extrair a estrutura, cujo revestimento são os mitos” (Pérez, 2005). Nesta leitura dos mitos freudianos, Pérez acrescenta ainda que se observa bem a forma como Lacan é influenciado por Freud: extrai dos seus mitos fundadores a essência da estrutura, que se traduz naquilo que determina a metáfora paterna.

Lacan refere que a função do pai é ser um significante substituto do primeiro significante, o significante materno. Neste sentido, trata-se de “um princípio de separação”. Tal substituição significa que a ligação ao pai substitui a ligação com a

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mãe, intervindo o primeiro no desejo da segunda. É a partir desta substituição, da mãe pelo pai como significante, que se produz a referida metáfora. “O papel da metáfora paterna, substituindo o desejo da mãe pelo Nome-do-Pai é, assim, o de permitir um acesso aos discursos, mediante uma perda de gozo. Não se trata aí, em termos lacanianos, de nada diferente daquilo que a castração, em termos freudianos opera”. (Skriabine, 2005).

Se tomarmos como exemplo o jogo do for-da, descrito por Freud, podemos dizer que este consiste na ilustração mais explícita da realização da metáfora do Nome-do-Pai no processo de acesso ao simbólico por parte da criança, isto é, a simbolização do objecto perdido (Skriabine, 2005).

A esse respeito, Freud afirmou: “Certo dia, fiz uma observação que confirmou o meu ponto de vista. O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera puxá-lo pelo chão atrás de si, por exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro. O que o menino fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por cima das cortinas da sua caminha, de forma que aquele desaparecia por entre as mesmas, ao mesmo tempo que proferia o seu expressivo ‘o-o-o-ó’. Puxava o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre ‘da’ (ali).” (Freud, 1976).

Desta forma, o jogo consistia no desaparecimento e retorno do objecto; praticamente apenas se via o primeiro acto, que era incansavelmente repetido como um jogo, embora não houvesse dúvida de que o maior prazer estava ligado ao segundo acto. A interpretação do jogo não apresentava mais dificuldades. O jogo estava relacionado com os resultados de ordem cultural obtidos pela criança, com a renúncia pulsional que tinha realizado (renúncia à satisfação da pulsão) para poder aceitar as ausências da sua mãe. Esta, por sua vez, encontrava uma reparação, por assim dizer, encenando ela mesma, com os objectos que tinha ao seu alcance, o mesmo processo de ‘desaparecimento-retorno’. Assim, há neste jogo um duplo processo metafórico. O carretel é uma metáfora da mãe, bem como o jogo presença-ausência. Através deste movimento lúdico, a criança controla a situação que a angustia: para não se sentir abandonada pela mãe, ela abandona-a simbolicamente nessa operação. O jogo do fort-da ilustra precisamente a expressão lacaniana “substituição significante”. O acesso ao simbólico por parte da criança através da linguagem é signo incontestável do controlo simbólico do objecto perdido. Face a isto, podemos dizer que a criança conseguiu mobilizar o seu desejo de ter a mãe junto de si, para objectos substitutivos dessa falta.

Ao dizermos “Nome-do-Pai”, tal expressão implica, por si só, que não se trata apenas do “pai”, mas também do seu “Nome”; que essa categoria se refere a um significante que, como tal, nomeia, é “nomeante”, diz Lacan, é o “pai do nome”, o qual, se existir para o sujeito enquanto significante, representa aquele que cumpre a função e não necessariamente o pai biológico. Para Lacan, a função do pai estabelece-se ao nível do pai real como construção e efeito de linguagem. Não é o pai da realidade: “pois a realidade é outra coisa (...) Até poderia ir um pouco mais longe, fazendo-vos reparar que a noção do pai real é cientificamente insustentável. Só há um pai real, é o espermatozóide e, até segunda ordem, ninguém jamais pensou dizer que é filho de tal espermatozóide. (Lacan,1992).

Retomando a questão da metáfora paterna, Lacan destaca que a fórmula da metáfora é decididamente a troca de uma palavra por outra. Ele insiste em dizer que a metáfora não resulta de dois significantes igualmente actualizados, como na metonímia, mas sim de dois significantes em que “um substitui-se ao outro, tomando o seu lugar na cadeia significante; e o significante escondido continua presente pela sua ligação (metonímica) com o resto da cadeia” (Lacan, 1998).

Na retórica clássica, a metáfora e a metonímia ligavam-se ao pensamento lógico, como duas figuras de linguagem, em que o orador, quase sempre o poeta, se tornava senhor da significação produzida. Lacan não concordava com esta ideia. “A

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metonímia está estreitamente ligada aos significantes, abstracção feita da sua significação. É sobre a palavra por palavra da conexão dos significantes que a metonímia se apoia”. (Miller, 1987). A metonímia seria, assim, como uma figura de estilo que explicita a relação entre os significantes na cadeia, sendo a metáfora, por sua vez, a que permite o surgimento do sentido.

Segundo Gerard Miller (1989), é com base nesta ideia que vamos considerar o termo Nome-do-Pai como metáfora.

Neste avanço ideológico realizado por Lacan, destaca-se a influência de Jakobson, que enfatiza o pólo metafórico e o pólo metonímico da estrutura de linguagem. Conforme Miller refere: “Se uma palavra, na sua definição, remete para outras palavras que, elas também, remetem para palavras – falando de cadeia significante - isto dá-nos a estrutura sincrónica da linguagem, em que nenhuma realidade exterior a essa linguagem limita a significação.” (Miller, 1989).

Tal como o signo saussuriano, o significante não é uma mensagem. Assim sendo, não há significante que se signifique a ele próprio. O que pode então limitar a significação? Se percebermos que há sempre, por parte da língua, uma palavra que falta para fechar a cadeia sobre ela mesma, o que a faz parar, acrescenta Miller, não é portanto um significante último que se igualaria à sua significação, mas sim uma função que Lacan, retomando Freud, chama de função paterna. É o Nome-do-Pai que vai travar o desejo avassalador da mãe, representando o Outro anterior, fazendo parar a ordem da significação fálica.

Há uma mudança ideológica importante no início do ensinamento de Lacan, com o seu retorno a Freud, até ao seu fim. Esta mudança diz respeito à função do pai. Para Freud, o Édipo é um mito universal válido para todos os sujeitos. Lacan, por sua vez, avança no sentido de considerar o pai do Édipo como o Nome-do-Pai. “Essa passagem do Édipo freudiano ao Nome-do-Pai equivale à passagem de um mito universal para um matema da significação universal” (Steves, 1998, p. 104). Steves insiste no termo universal porque que no tempo de Lacan, tal como no de Freud, há UM pai. E mesmo que esse pai possa apresentar muitas variações, de um para outro, deduz-se apenas uma única entrada numa significação comum, numa significação que serve e é válida para todos.

2.1.3. Declínio do pai: do moderno ao contemporâneo

Para podermos abordar devidamente esta questão, importa estabelecer a diferença entre o mundo moderno e o mundo contemporâneo. Podemos dizer que o primeiro ficou marcado pelo surgimento da ciência que instala o poder da razão e questiona a autoridade simbólica do pai. A modernidade consiste no espaço em que surgem grandes ídolos, grandes sujeitos, como diz o escritor francês Dufour. Grandes sujeitos como o Deus único do monoteísmo, o catolicismo, o rei, a República, etc., figuras sustentadas pela tradição. Outro aspecto importante da modernidade relaciona-se com o sujeito em termos filosóficos. A modernidade é marcada principalmente por dois sujeitos: O sujeito crítico de Kant, que é dominado por três grandes questões: “O que posso conhecer? O que devo fazer? O que posso esperar?” (Dufour, 2005) e o sujeito neurótico de Freud, refém da culpabilidade.

Quando a ciência é questionada, colocada em causa, o declínio do poder de Deus acaba por atingir o seu representante terreno: o pai de família, o principal “Grande Sujeito” da modernidade. Tal facto traz consequências para a organização social, política e familiar; a moral perde a força como bem maior de um indivíduo. A queda dos valores tradicionais, dos ideais, o desaparecimento das grandes histórias de vida, não têm ocorrido sem as devidas consequências. Uma delas e a mais grave é a condição da subjectividade, que é afectada com a mudança histórica, ou seja, qual o estatuto desse novo sujeito, sem sentido crítico e sem culpabilidade?

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A psicanálise surge precisamente no momento em que a contestação ao pai e à moral criam conflitos e geram sintomas. A psicanálise entra no mundo para autorizar o desejo e sua difusão corrobora o declínio, já iniciado, da função paterna.

Segundo Bernard Nominé (1998), em 1975, Lacan, no final do seu ensinamento, revê a sua concepção da posição paterna. Já não se trata do pai simbólico representante do desejo da mãe. Esse pai revela-se insuficiente para essa função. Esse pai é insuficiente para representar a falta imaginária da mãe, que é uma falta que remete para a infância dessa mãe, conduzindo a criança ao encontro do sintoma.

De acordo com Machado (2005), a contemporaneidade radicaliza as consequências da modernidade, fazendo com que os valores morais e a hierarquia sejam substituídos pela liberdade individual como bem supremo. Esta mudança faz com que o ideal perca valor em relação ao objecto que, inserido na lógica capitalista, ascende ao zénite social. Como consequência, os conflitos em relação aos ideais paternos são substituídos, na actualidade, pela compulsão ao gozo. Assim, podemos considerar a clínica actual como diferente da clínica freudiana, necessitando de reajustamentos conceptuais que orientem uma prática que permita alcançar as novas subjectividades.

Em 1972, numa conferência em Milão, Lacan transmitiu aos seus ouvintes que o discurso capitalista andava às mil maravilhas, andava até rápido demais. O regime capitalista indica que “o escravo antigo foi substituído por homens reduzidos ao estado de produtos”. (Dufour, 2005).

O resultado desse triunfo do capitalismo, segundo Dufour, é um enfraquecimento e até uma alteração da função simbólica, o que nos conduz para a análise do simbólico na pós-modernidade.

Ainda de acordo com Dufour (2005), este diz que a partir do momento em que toda a garantia simbólica das trocas entre os homens tende a desaparecer, é a própria condição humana que muda. Consequentemente, muda a nossa posição no mundo, pois o sentido da vida deixa de se relacionar com uma busca de acordo com os valores simbólicos que representam o papel de garantias, mas sim de acordo com os fluxos móveis da circulação dos produtos de mercado. É melhor aderir a esse “real” do que se opor a ele, pois o mesmo é doce, sedutor, belo, desejado. O autor então prenuncia: “Bem cedo veremos que formidável violência se dissimula atrás dessas fachadas soft”. (2005).

O Outro da contemporaneidade não é o Outro todo da modernidade, pois já não temos a garantia de que a função de excepção do pai confirma a regra para todos. Sem essa função a operar como barreira ao discurso da ciência, não há sujeito submetido ao ideal. O que temos actualmente é um mundo onde não há um sentido universal para orientar o sujeito, o que estimula as soluções particulares. O mundo não-todo actual não é o mundo onde falta alguma coisa, pelo contrário, é o mundo onde tudo está disponível para ser comprado. Ele é não-todo porque não articula a identificação a um S1. Na verdade, existe um enxame de S1, uma multiplicidade que impele o sujeito a identificações que negam a herança paterna, portanto, a via do ideal. A multiplicidade de identificações dificulta a estabilidade da identificação, fazendo com que o gozo do sujeito seja mascarado pelo mercado de consumo. Desta forma, o sujeito apresenta-se à deriva em relação a um real, isto é, a um sintoma com outra dimensão, a dimensão do real, resultado da queda dos valores tradicionais, consequência do declínio do pai.

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2.2. A dimensão real do sintoma

A psicanálise surge, como foi referido anteriormente, como uma oposição ao saber científico e ao seu poder silenciador, defendendo que há um saber na dimensão do real que não fala. O termo real, juntamente com o termo simbólico e o termo imaginário, é um dos nomes com os quais Lacan designou os três registos que estruturam a subjectividade. Estes termos têm um lugar de destaque em todo o seu ensinamento, a partir da década de setenta.

Lacan denomina o registo do imaginário como o lugar das identificações, o lugar do Eu, dos fenómenos como o amor, o ódio e o lugar das relações duais. O simbólico é o campo da linguagem, do significante; é o registo marcado pela ligação do desejo com a falta e a lei. O real é aquilo que resiste à simbolização. “Seremos levados a definir o real como o impossível”. (Lacan, 1985). Lacan afirma ainda a respeito do real: “é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente”. (Lacan, 1985). A partir daqui, Lacan vai cada vez mais priorizar o registo do real.

No seguimento deste trabalho, destaca-se uma outra forma de considerar o sintoma, desta feita como algo que não funciona. Segundo Lacan, é como função de significante que o sintoma se enuncia, situando assim um efeito bem particular do simbólico no real. Uma leitura que nos dá a indicação da dimensão de real que existe no sintoma, pois segundo o psicanalista francês, o sintoma é o que muitas pessoas têm de mais real.

A psicanálise, em consonância com a ciência, trata do real, mas de uma forma diferente. A psicanálise trata o real a partir do sintoma, pois este representa o real de cada sujeito.

Através da histeria, causadora do nascimento da psicanálise, e do discurso histérico, Freud pôde demonstrar que o sintoma tem um sentido, um sentido inconsciente, ou seja, o sintoma diz alguma coisa, mesmo que o sujeito não se aperceba disso. E não somente diz, como também serve a um fim de satisfação, uma “satisfação real”, reconhecida pelo sujeito como um sofrimento. Os sintomas pertencem à mesma ordem das formações do inconsciente, sendo, portanto, decifráveis, e inscrevem-se na cadeia significante, permitindo uma interpretação dos mesmos. Para além de decifrável, o sintoma é também um paradoxo onde o sujeito, sem o saber, tem a sua satisfação sexual e também o seu sofrimento. Essa satisfação real, reconhecida como sofrimento, é apontada por Lacan como a referência freudiana, na teoria do sintoma, ao real traumático, que escapa à decifração do sintoma, pois o mesmo não é somente manifesto e decifrável, ele tem um “sentido profundo”. (Vincens, 1998).

Seguindo ainda Vincens, a interpretação de um sintoma implica sempre que se perca o controlo sobre algo referente ao seu sentido. O acto obsessivo é uma prova disso, o seu sentido escapa ao sujeito que se sente obrigado a realizar um acto de forma compulsiva. O sujeito queixa-se que esse acto não tem sentido para ele, é aí que ele se divide e pode-se, então, iniciar um tratamento. Observemos: “Freud, do mesmo modo que para encontrar a significação dos sonhos começa pelo sonho infantil, para o estudo da significação dos sintomas parte da neurose traumática. É que nela pode-se ler de forma quase imediata a referência real ao sintoma, a sua Bedeutung, que se reproduziria literalmente ao pé da letra no mesmo sentido do sintoma. Na neurose traumática, o sentido e a significação do sintoma quase se confundem.” (Vincens, 1998).

Na obra Os caminhos da formação dos sintomas (1917), Freud esclarece que: “pelo caminho indirecto, pela via inconsciente e por antigas fixações, a libido finalmente consegue achar sua saída até uma satisfação real – embora seja uma satisfação extremamente restrita e que mal se reconhece como tal”.

Com o objectivo de eliminar o recalcamento, a libido encontra as fixações necessárias nas experiências do início da vida sexual, que, por ocorrerem numa época

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de desenvolvimento incompleto e marcadas pelo desamparo infantil, são capazes de provocar efeitos traumáticos. “É traumático, em princípio, o que, por causa de um excesso de estímulo, deixa uma impressão no aparelho anímico. E aqui não se pode generalizar, porque uma mesma vivência pode ser traumática para uns e não para outros”. (Vincens, 1998).

Freud vai dizer que, de alguma forma, o sintoma repete essa forma infantil de satisfação, deformada pela censura que surge no conflito, normalmente transformada numa sensação de sofrimento e misturada com factores provenientes da causa da doença. A forma de satisfação que o sintoma alcança tem em si muitos aspectos estranhos ao próprio sintoma, parecendo incompreensíveis como meio de satisfação libidinal. Freud constata ainda que esses sintomas não são similares em nada com o que se denomina de satisfação. Normalmente desprezam os objectos, prescindindo de qualquer relação com a realidade externa, o que implica uma rejeição do princípio da realidade e um retorno ao princípio do prazer, ou seja, um retorno a um tipo de auto-erotismo difuso, semelhante ao que proporcionava a pulsão sexual nos primeiros momentos de satisfação. É o sintoma como satisfação pulsional que resiste à interpretação. Ao constatar essa resistência, Freud reconhecia que, pela palavra, não era possível tratar completamente o sintoma, embora muito dele pudesse ser colmatado por ela.

Importa referir que, para a psicanálise, satisfação e prazer não são equivalentes, pois o sujeito encontrar satisfação naquilo que o faz sofrer. “É o que demonstram a neurose traumática, a compulsão à repetição e as brincadeiras infantis. Se eliminarmos o que nos faz sofrer, eliminamos também o que nos satisfaz”. (Machado, 2005)

É importante destacar que já nessa época Freud parece antecipar o novo sintoma nessa dimensão do real, o qual será tratado no capítulo a seguir. Observemos a citação que nos conduz a essa hipótese: “Em lugar de uma modificação no mundo externo, essas satisfações substituem-na por uma modificação no próprio corpo do indivíduo: estabelecem um acto interno em lugar de um externo, uma adaptação em lugar de uma acção – uma vez mais, algo que corresponde filogeneticamente, a uma regressão altamente significativa. Somente compreenderemos isto se ligado a algo novo que ainda teremos de aprender nas pesquisas analíticas da formação dos sintomas.” (Freud, 1976).

Nesse mesmo texto, ao procurar a resposta para a questão de como a libido encontra o caminho para chegar a esses pontos de fixação, Freud realça a importância assumida pela fantasia na formação dos sintomas e afirma que todos os objectos e tendências que a libido abandonou, não foram ainda abandonados em todos os sentidos. Estes objectos e tendências permanecem ainda, com alguma intensidade, nas fantasias. Assim, ainda segundo Freud, a libido necessita apenas retirar-se para as fantasias, a fim de encontrar o caminho que conduz a todas as fixações recalcadas. E conclui: “partindo daquilo que, agora, são fantasias inconscientes, a libido movimenta-se para trás, até às origens dessas fantasias no inconsciente, ou seja, até aos seus próprios pontos de fixação” (Freud, 1976). A questão da fantasia é relevante porque representa o núcleo central da interpretação do sintoma, pois ela recorre às cenas que se fixaram e organiza a forma que pode adquirir para o sujeito aquilo que não tem forma, ou seja, a realidade do sexo.

Posteriormente, Oliveira refere, na obra Além do princípio do prazer (1920): “O trauma para Freud deixa de ser pensado como causa dos sintomas para ser pensado como estrutural e estruturante, atingindo, portanto, todos os sujeitos e não apenas aqueles que adoecem”. (Oliveira, 2007). Neste sentido, é como uma porta de entrada no aparelho psíquico, criada pela pulsão. A pulsão é então caracterizada como o que permite “restaurar um estado anterior de coisas” (Oliveira, 2007), ou seja, como o que permitiria ao impossível uma satisfação total, tendo em conta que pulsão apenas consegue obter uma satisfação parcial.

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Freud conclui que o trauma é, normalmente, suposto ou inferido, o que conduz o autor ao abandono da teoria do trauma e à concepção da teoria da fantasia, em que o trauma é considerado como parte da realidade psíquica do sujeito e fundamento da fantasia. O sintoma é, então, definido como a realização de uma fantasia de conteúdo sexual, ou seja, representa, na totalidade ou em parte, a actividade sexual do sujeito originária das fontes das pulsões parciais, normais ou perversas.

O mestre freudiano avança no sentido de comprovar que, para além do princípio do prazer, há ainda um real de gozo impossível de ser representado, o que demonstra o carácter problemático da realidade psíquica que se expressa no sintoma. Lacan define mais uma vez a satisfação freudiana como gozo e diz que o sintoma é um modo de gozar. Ao citar Freud anteriormente, percebemos que ele se deparou com esse limite, isto é, com algo do sintoma como uma satisfação irredutível pela via da fala e que se manifesta pela pulsão. Seguindo este caminho, Lacan fala do gozo como a satisfação da pulsão.

Lacan, no seu último ensinamento, refere que o sintoma caracteriza o real como aquilo que não anda. Por seu lado, o sintoma – embora não seja a mesma coisa que o real, é o que provém dele; é a manifestação do real no ser humano. Nesta perspectiva, podemos dizer que somos sempre afectados pelo sintoma, ou seja, estamos sempre doentes, como diz Gorostiza (2006).

Mais tarde, ainda com Lacan, o gozo passa a obter um significado e a pulsão passa a sofrer os efeitos da linguagem. Isto restringe a satisfação pulsional em termos simbólicos e redu-la ao desejo. O sintoma como sentido e gozo é por ele colocado num sistema de escrita, apontando para algo no sintoma que transcende a significação. O sintoma, agora, não se esgota na significação produzida no lugar do Outro, há nele uma vertente que se liga ao significante sob a forma de letra, ou seja, há uma coordenação do gozo do corpo com o significante. É desta concepção do sintoma que resultará, nos anos 70, o sinthoma como identificação do próprio gozo.

No ensinamento de Lacan, encontramos duas formas de situar o sintoma: “O sintoma como metáfora e o sinthoma como letra”. (Baptista, 2006). No começo do seu ensinamento, o sintoma é considerado como uma mensagem codificada dirigida ao Outro e, no seu último ensinamento, o sintoma refere-se ao gozo – sinthoma que exige outra forma de tratamento, pois já não pertence ao campo do significante, nem é já passível de interpretação. Esse sintoma que não se reporta ao Outro, é um sintoma auto-suficiente e que se refere ao inconsciente enquanto separado do saber, não se tratando já de uma linguagem que comunica alguma coisa, mas sim de uma forma de gozo. Lacan passa a chamar essa nova forma de sintoma de sinthoma, dedicando um seminário a essa questão, o Livro 23. O sinthoma adquire outro registo, demonstrando que a relação sexual já não se inscreve, tornando-se na forma pela qual cada um goza do seu inconsciente.

Na prática clínica, encontramos pacientes que nunca estão satisfeitos com o que são. Mas o que eles são e suas experiências de vida são os seus próprios sintomas que dizem respeito a um tipo de satisfação. Lacan vai dar a categoria de impossível a essa satisfação paradoxal, portanto, da ordem do real. Ele insiste na separação desse real em relação ao campo do princípio do prazer, “pelo facto de que sua economia admite algo de novo, que é justamente o impossível”. (Lacan, 1985). O real atinge o sujeito na sua vertente de gozo, no seu resto, revelando-se esta acção improdutiva.

O impossível diz respeito igualmente à relação sexual que não existe. Em 1972, no seminário 20, ele desenvolve a questão da impossibilidade da existência da relação sexual relacionada com a impossibilidade da inscrição da relação entre dois corpos de sexo diferente. Também no texto O aturdito (1973), Lacan se referiu à não existência de relação sexual com base na suposição de que apenas existe um enunciado de relação (relação em geral), ou seja, “da relação do homem e da mulher, justamente no que seriam eles adequados, por habitarem a linguagem, para fazer

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dessa relação um enunciado”. (Lacan, 2003). A noção de relação está relacionada com a diferença dos sexos, que se fundamenta na linguagem.

Segundo Lacan, a identificação sexual não reside no facto de uma pessoa acreditar ser homem ou mulher. O que existe é o desejo em relação ao falo e não de um parceiro em relação ao outro; é em relação ao falo que ambos os sexos se posicionam e o impossível da relação diz respeito ao não recalcado dessa relação, desse desencontro.

O sintoma surge como uma tentativa de invalidar essa suposta inexistência da relação sexual, apontando para a existência de algo que não funciona no campo do real. O neurótico encontra um gozo no sintoma, mesmo que pouco satisfatório. Gozo é um termo introduzido por Lacan, em referência ao que representa o gozo dos bens, dos objectos, distinguindo-se assim do campo do desejo.

Para Gérard Miller (1989), o sintoma consiste, portanto, nessa anomalia no campo do real, ou seja, traduz-se no gozo, e afirma que o sujeito, embora se queixe dessa relação com o gozo, não a reconhece. Esta nova categoria do sintoma, como pertencente à ordem do real, será desenvolvida no capítulo seguinte, quando for abordada a questão dos novos sintomas, questão central desta investigação.

2.2.1. A passagem do nome-do-pai aos nomes-do-pai

O significante do pai, referido anteriormente, responsável pela introdução do sujeito no campo da lei, pode apresentar diversas variações nos efeitos singulares, pelo facto de o pai possuir uma cadeia significante, um imaginário, variáveis da sua história, ou inclusive formas diferentes em relação ao pai da realidade. Partindo desta ideia, Lacan, nos seus seminários posteriores, deixa de se referir ao Nome-do-Pai, mas sim aos Nomes-do-Pai, alterando o estatuto do Pai. Falar dos Nomes-do-Pai significa que o Nome-do-Pai já não é o mesmo significante para todos os sujeitos, ou seja, cada um tem o seu significante do Pai, podendo até ter vários significantes do pai.

Na fase final do seu ensinamento, no início da década de 70, Lacan vai destacar a ordem do particular em relação à do universal. Já não se trata do Pai da lei, mas sim do S1. Alguns S1 vão dotar o sujeito do seu modo de inscrição no Outro. Esses S1 representam as significações mais importantes de um sujeito, podendo ser mais que um significante, pois podem ser um traço, uma marca, uma letra que o gozo particular de cada sujeito escreve, e essa letra tem efeitos reais. Não representam, então, efeitos de significantes, na medida em que têm efeitos de verdade, efeitos de gozo no real. Esta transição para a letra é o que conduz à passagem do Nome-do-Pai e dos Nomes-do-Pai para o sintoma. Já não se trata do Pai, mas sim do sintoma, os quais podem representar significantes muito diferentes para cada um.

Como conclusão deste capítulo, podemos observar que a primeira clínica de Lacan é uma clínica binária, clínica do Pai, em que o Nome-do-Pai é forcluído ou não, em que se trata de uma neurose ou de uma psicose. Trata-se de uma clínica do significante, enquanto a segunda clínica é ternária, é a clínica onde o significante já não predomina, mas sim o gozo. Já não se trata de uma clínica do simbólico, mas sim do real.

A transição do Nome-do-Pai para os Nomes-do-Pai permite-nos considerar a clínica actual com base nos novos sintomas, sendo notório um declínio da função paterna. Os novos sintomas mostram-nos o limite de respostas dadas em função do pai. Uma resposta com base na função paterna, actualmente, não satisfaz as questões levantadas pelo avanço da ciência actual.

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CAPÍTULO III

Os Sintomas Actuais: Linguagem ou Alíngua,

Simbólico ou Real

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Nos capítulos anteriores foi realizado um percurso entre Freud e Lacan, situando a estrutura de linguagem no inconsciente e no sintoma. O capítulo seguinte tem como objectivo analisar essa estrutura a partir dos novos sintomas, que não parecem ser tão novos assim, pois como já vimos em Freud e Lacan, estes já se referiam a determinados sintomas como algo impossível, indecifrável, permitindo-nos equacionar uma outra leitura do inconsciente, já não estruturado como uma linguagem metafórica, uma linguagem que se dirige ao Outro. Este inconsciente de ordem simbólica já não responde à manifestação dos sintomas actuais. Para isso, devemo-nos debruçar sobre o último ensinamento de Lacan, ou seja, um ensinamento que mesmo não se separando dos fundamentos teóricos de Freud, concebe a sua própria letra. Podemos observar a passagem de um Lacan que faz uma releitura freudiana, para um Lacan por original.

Na obra Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, de 1953, Lacan afirma que quem não conseguir alcançar a subjectividade da sua época, deve renunciar à sua função de analista. Mesmo sendo um texto do início do seu ensinamento, o psicanalista francês manifestava preocupação com a cultura da sua época, sentindo que a psicanálise precisava de se envolver com a cultura onde estava inserida e respectivos conflitos.

Lacan afirma que o inconsciente se constitui na relação do sujeito com o Outro, ou seja, a partir do laço social. E como o inconsciente é o núcleo do trabalho do analista e da psicanálise, estes estão sempre relacionados com o laço social, ou seja, têm que lidar com tudo aquilo que produz um laço com o Outro e com os outros, aquilo que os colocam “frente a frente com a cidade e com a subjectividade da sua época”. (Brousse, 2003)

Em 2003, Romildo do Rego Barros, psicanalista brasileiro, afirmou acerca do tema O inconsciente hoje: “Se o inconsciente se define pela exterioridade do simbólico, parece-me que podemos dizer que se está a tornar relativamente frequente os psicanalistas serem procurados por pessoas que se queixam da exterioridade do real e não do simbólico.”

Podemos observar, então, um deslocamento do seu modelo clínico, pois já não pode ser o mesmo da tradicional histeria freudiana.

3.1. Os sintomas actuais

Como vimos, há bastante tempo que se discutem os novos sintomas, e somos obrigados a concordar que há um “desnorteamento” do sujeito moderno e contemporâneo. Jacques Alain Miller, no texto Uma fantasia (2005), refere-se a esse desnorteamento na medida em que durante muito tempo existiu uma bússola, que consistia numa moral civilizada que actualmente se encontra abalada. Segundo Miller, ocorreram mudanças, passaram a existir duas metáforas: a primeira foi a substituição da agricultura pela indústria e, actualmente, encontra-se a decorrer uma segunda metáfora, a substituição da natureza pelo real. Senão vejamos: desde que a prática da agricultura foi substituída pela indústria, nunca mais foi dada a devida importância à primeira. A comunidade agrícola tinha como bússola a natureza, as estações do ano, o clima, o tempo, as tradições. Com a revolução industrial, todos esses factores foram esquecidos. Os produtos industriais foram anulando a natureza. Actualmente existe uma produção industrial de gadjets, o que provoca no ser falante algo que vai para além da satisfação da sua necessidade, para além do prazer, ou seja, um gozo puro. A natureza foi substituída pelo artificial, o qual representa um real sem bússola, sem lei.

As novas formações de sintomas são diferentes daquelas que ocorriam no início da psicanálise, são próprias do laço social inerente à globalização, ou seja, são consequência da unificação do mercado em escala mundial, produzida pelo discurso

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capitalista, enfim, resultado da universalização do discurso científico. Alguns exemplos como o fracasso escolar, violência gratuita, toxicodependência, anorexia, bulimia, síndrome de pânico, depressão, aumento do suicídio em adolescentes, doenças psicossomáticas, hiperactividade, entre outros, são resultado do declínio dos ideais, do declínio da função paterna e, consequentemente, da família.

Como se pode demonstrar a eficácia de uma prática clínica numa sociedade que não acredita no saber? Numa sociedade onde todo o saber deriva dos números e dos produtos da tecnologia e o que interessa é o prazer individual, ou seja, o gozo de cada um? Há uma total liberdade desse gozo perverso, o que se traduz em sintomas-gozo, e já não em sintomas como mensagens, surgindo assim novas formas de angústia. O sintoma como mensagem faz emergir o sujeito do seu lugar no desejo do Outro, que representa o saber e lugar dos significantes. É ao Outro que ele se dirige, comprovando que o sintoma é estruturado como uma linguagem e extremamente dependente desse Outro, é dele que o sujeito receberá o sentido do seu sintoma, ou seja, a sua própria mensagem de forma invertida, ao ponto de, por momentos, sintoma e inconsciente se confundirem.

Nos novos sintomas, o sujeito não tem uma referência com a qual se identifique, na medida em que há uma decadência do significante-mestre e dos ideais. Na cultura actual já não existe o Outro no lugar da verdade e o sujeito não tem nenhuma significação para o orientar; consequentemente, a sua subjectividade fica comprometida. Assim, surge a questão: Que sujeito é este?

Miller, no texto O sintoma e o Cometa (1997), diz que há muitos anos atrás, num encontro internacional, ele iniciou o seu discurso com um grito “A clínica muda”. Com isso, ele quis dizer que deveríamos “enfatizar o novo ao invés do sintoma, na fórmula “As novas formas de sintoma”. Não há razão para esconder que esperamos algo novo quando nos reunimos sob tal fórmula, algo novo na psicanálise”. (Miller, 1997, p. 05).

Segundo este autor, actualmente existe uma tensão que acompanha o desejo pelo novo. Refere ainda que tal facto tem uma dimensão social, que há um Supereu nos tempos actuais que ordena a aquisição de algo novo e que sempre houve um desejo pelo novo. Este apelo pelo novo é a nova formação sintomática da nossa cultura, porque estamos sempre à procura de algo novo e cada vez mais o novo dura menos tempo; depressa se torna ultrapassado, obsoleto. “O culto ao novo encaixa-se bem com a valorização da juventude e o desespero de envelhecer”. (Miller, 1997). Trata-se claramente de um sintoma social.

Perante este quadro, é difícil não cair numa clínica do consumo, que deseja constantemente a novidade, como por exemplo os Alcoólicos Anónimos, o condicionamento das anorécticas, o controlo da comida nos bulímicos, os grupos que tratam os vícios, as drogas, o sexo, o consumo desenfreado de medicações, entre muitas outras coisas. Para os psicanalistas de orientação lacaniana, esta clínica vai contra todos os princípios analíticos, pois deixa de considerar a posição do sujeito no seu mundo, de o responsabilizar pelos seus actos e pelo seu gozo.

Relativamente ao inconsciente, como deve ser este encarado perante os novos sintomas? Podemos chamar estas patologias de sintomas, se as mesmas forem desprovidas da devida simbolização e subjectividade? Como estabelecer a relação entre o inconsciente e a linguagem nestas novas formações sintomáticas? Como encarar o inconsciente fora da ordem simbólica, um inconsciente que já não é estruturado como uma linguagem? Como é o inconsciente da actualidade?

Inevitavelmente, retornamos a Freud para destacar sua genialidade e originalidade em relação ao seu tempo. Importa citar um fragmento de um texto surpreendente, de 1908, intitulado A moral civilizada e a doença nervosa moderna: “As extraordinárias realizações dos tempos modernos, as descobertas e as invenções em todos os sectores e a manutenção do progresso, apesar da crescente competição, só foram alcançadas e só podem ser conservados por meio de um grande esforço mental. Cresceram as exigências impostas à eficiência do indivíduo, e só reunindo

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todos os seus poderes mentais ele pode atendê-las. Simultaneamente, em todas as classes, aumentam as necessidades individuais e a ânsia de prazeres materiais; um luxo sem precedentes atingiu camadas da população para quem, até então, era totalmente estranho; tudo é pressa e agitação. Os conflitos religiosos, sociais e políticos, a actividade partidária, a agitação eleitoral inflamam os espíritos, exigindo violentos esforços da mente e roubando tempo à recreação e ao lazer. A vida urbana torna-se cada vez mais sofisticada e intranquila. Os nervos exaustos procuram refúgio em estímulos maiores e em prazeres intensos, caindo numa maior exaustão (...)” (Freud, 1976).

Não parece tratar-se de um texto de há um século atrás. Parece um texto actual, dos dias de hoje. Freud cita ainda todos os observadores da época, na passagem do século XIX para o século XX e diz que eles perceberam os novos sintomas que marcaram essa época. Miller afirma que, desta forma, Freud antecipa uma teoria do gozo na civilização. Esta teoria faz-nos pensar exactamente nos sintomas da nossa época. Freud, ao pensar assim, já questionava a subjectividade da sua época, deparando-se com uma limitação na sua prática clínica: alguma coisa do princípio do prazer no sofrimento sintomático ia para além disso, tendo ainda observado que existia algo a mais entre o sentido que desfazia o sintoma e uma outra satisfação que o sustentava, irredutível pela fala, revelada pela intensidade da pulsão.

Lacan vai então nomear essa outra satisfação freudiana com o conceito de gozo, como o vertente real da satisfação pulsional.

3.1.1. Os sintomas actuais como “sintomas-gozo”

A partir do seminário XX, Lacan associa a fala ao gozo, quando afirma que o ser, ao falar, goza. Mais tarde, Lacan diz que o sintoma é o modo como cada um goza do inconsciente. Nesta perspectiva, o sintoma fica situado entre o simbólico e o real, consistindo na ponte entre o inconsciente e o gozo.

É conhecida a complexidade em se delimitar, num sintoma, o que é da ordem do significante e da ordem do gozo, pois a clínica demonstra-nos que não há uma divisão clara entre ambos. Falar de sintoma é falar de um enunciado que é, simultaneamente, indizível. É a mensagem fundamental do sujeito, algo particular que indica o seu modo de gozar.

Em Escroqueria Lacan diz que “o sintoma é real. É mesmo a única coisa verdadeiramente real, é o que conserva um sentido no real. E é por esta razão que o psicanalista pode intervir simbolicamente para o dissolver no real.” (Lacan, 1998).

Na clínica actual, deparamo-nos com dificuldades a que alguns autores chamam de “a clínica das suplências, onde a generalização do conceito de sintoma, homólogo ao de forclusão generalizada, aproxima neuroses e psicoses, abrindo a necessidade de construir uma nova clínica diferencial”. (Kruger, 1998).

Um sintoma como gozo, na sua forma metonímica de se apresentar, faz obstáculo à cura pela sua forma resistente e inerte de ser, pois não tem nada a dizer. O gozo toma o valor ao que corresponde a parte do significado que não se realiza no significante. Em Subversão do sujeito (1998), Lacan diz que o sintoma é feito de significação e fantasia, ou melhor, é uma articulação entre efeito significante e a relação do sujeito com o gozo.

Nos sintomas actuais parece que até o próprio sintoma está forcluído. Este é o grande desafio, lidar com estes fenómenos onde a tendência ao gozo tende a eternizar-se, numa repetição interminável. É como se estes sintomas não fossem sintomas no sentido analítico do termo, como se fossem constituídos para além do sentido, sem relação metafórica com o conflito psíquico, manifestando resistência a toda a interpretação. O sujeito fala sem implicação ou consequência alguma.

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Freud referiu-se ao “mal-estar” da civilização na sua época, enquanto Lacan, por outro lado, se referiu ao sinthoma na civilização como um efeito particular do discurso do mestre contemporâneo, o qual denominou de discurso capitalista. “Esse discurso produz o objecto a, provocando a falta da mais-valia. A mais-valia forcluída é um significante e, como tal, retorna no real como gozo”. (Laurent, 2007). Essa mais-valia na teoria marxista era resultado do trabalho, um direito do trabalhador; na civilização actual, ela torna-se o objecto perdido, estimulando a cadeia incessante das trocas, aumentando o consumo dos produtos do mercado.

Segundo Laurent, torna-se necessário descrever rapidamente – o que não é fácil, pois trata-se da grande criação de Lacan e resultaria num outro trabalho – o que é o objecto a na teoria lacaniana. Existe uma diferença entre a concepção freudiana de objecto, como Coisa perdida para sempre — Das Ding, o objecto perdido da espécie humana — e o conceito lacaniano de objecto a — o objecto perdido da história de cada sujeito.

Este objecto a, como objecto perdido da história de cada sujeito, pode ser reencontrado nos sucessivos substitutos que o sujeito encontra nos seus deslocamentos simbólicos e investimentos libidinais imaginários. Mas nesses reencontros, por trás dos objectos privilegiados do seu desejo, o sujeito irá deparar-se com a Coisa perdida da espécie humana, o que significa que se trata sempre, nos reencontros com o objecto, da repetição de um encontro com o real, onde falta sempre algo. Esta diferença pode ser considerada como o objecto impossível (objecto a) em Lacan e o objecto perdido (Das Ding) em Freud.

Se considerarmos que o recalcamento consiste na essência da teoria freudiana, na teoria lacaniana esse estatuto pertence ao objecto a. Porém, Lacan sempre se questionou sobre a função deste objecto, tendo o mesmo sofrido alterações constantes na sua obra: de pequeno outro ou semelhante, nos primeiros seminários, a objecto causa de desejo, no seminário VIII, a transferência, a objecto de gozo, no seminário XVII, posição esta não reconhecida pela psicanálise.

Retomando Laurent (2007), de forma a acompanhar o percurso do objecto a na nossa civilização, importa referir a afirmação lacaniana em relação ao efeito de angústia e que o próprio Lacan diz ser o verdadeiro efeito de linguagem. É no seminário X – A angústia, (1963), que o psicanalista francês faz uma verdadeira apologia ao objecto a.

Ainda segundo Laurent, este destaca determinados momentos do percurso do objecto a, começando com o fim da Primeira Guerra Mundial, que marca a entrada no século XX, quando o mundo do pensamento foi invadido por um afecto particular. Na mesma época, Freud, na obra Mal estar da civilização (1930), equipara o sentimento inconsciente de culpa à angústia.

Antes da segunda guerra, o homem lidava com as suas angústias através da tentativa de restaurar um todo, numa civilização que já se apresentava como não-toda. Desse movimento surgiram os grandes líderes e os grandes ideais, os quais Freud já tinha antecipado no seu texto Psicologia de grupo e análise do ego (1921), quando se referiu ao exército e à igreja.

Logo após a Segunda Guerra Mundial, o sujeito começou a lidar com a sua angústia através de vários significantes mestres, como o Partido Comunista, a busca de Deus e os Estados Unidos como vencedores da guerra, os quais mostravam sua competência apoiando-se na primazia científica dos anos 50.

Posteriormente, nos anos 60, Lacan apresenta um novo significante mestre: o mercado comum. E a crise de 1968 revelou que todos esses significantes mestres foram perdendo essa sua posição e estatuto privilegiados, pois “em vez da crença no futuro dos mercados comuns, reina a incerteza do mercado global. Os mercados procuram um significante mestre e não o encontram”. (Laurent, 2007).

A angústia é um afecto que resulta da descrença do sujeito no significante mestre, o qual tenta refazer esse significante, esse todo, de forma a encontrar a garantia e segurança de que necessita. No esforço de recuperar esse Outro, emerge o

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sentimento insuportável dessa falta. Neste sentido, segundo Laurent, assistimos a um duplo movimento: “De um lado, apelos populares para refazer o todo. De outro, tentativas de reencontrar o gozo por intermédio de um acesso em curto-circuito”. (Laurent, 2007).

Aquilo que observamos nos sintomas contemporâneos é a procura desenfreada pelo prazer imediato, numa verdadeira overdose do gozo, não só pelo uso de drogas, pelos actos suicidas, mas também pela entrega exagerada ao trabalho, pela escolha de desportos perigosos, caminhando para o gozo da sua própria morte. Todos estes factores são manifestações das tentativas de lidar com a angústia, com base na necessidade de encontrar o Outro.

3.1.2. A linguagem e os novos sintomas

Os novos sintomas, mesmo manifestando-se de forma estranha, não parecem estar fora do campo da linguagem, pois na prática clínica o que se trabalha é um ser falante. Este facto implica a existência de uma demanda, embora esta não se apresente. Que estatuto podemos dar a este tipo de linguagem? E que estatuto tem a linguagem e o inconsciente nestes sintomas na última fase do ensinamento de Lacan?

Na trajectória do que se chama o último ensinamento de Lacan, surge uma outra dificuldade no que diz respeito à linguística. Lacan considera a metodologia desta ciência exemplar, mas no texto Radiofonia (1970) ele afirma: “A linguística fornece o material da análise ou o aparelho com que nela se opera. Mas um campo só é dominado pela sua operação. O inconsciente pode ser, como disse, a condição da linguística. Esta, no entanto, não tem sobre ele a menor influência. É que ela deixa em branco o que surte efeito nele.” (Lacan, 2003).

Lacan, no seminário 20, diz: “Se eu disse que a linguagem é aquilo como o que o inconsciente é estruturado, é porque a linguagem, de início, não existe. A linguagem é o que se tenta saber concernentemente à função da alíngua”. No mesmo seminário, Lacan afirma: “O inconsciente, não é que o ser pense, no entanto, o que dele se diz na ciência tradicional – o inconsciente significa que o ser, falando, goze e, acrescento, não queira saber de mais nada. Acrescento o que isto quer dizer – não saber de coisa alguma.”

Nesta perspectiva, é complicado trabalhar o inconsciente e a sua relação com a linguagem pois, segundo Lacan, esta não existe. A linguagem tem a estrutura de alíngua – é a redefinição deste psicanalista. O inconsciente estruturado como uma linguagem é uma leitura que Lacan faz do inconsciente freudiano. Para falar do inconsciente lacaniano patente no seu último ensinamento, é necessário recorrer a uma outra leitura, que ultrapassa a noção anterior, passível de ser deduzida da obra do psicanalista francês.

Lacan cria um termo, unindo o artigo “a” ao substantivo “língua”. Segundo Miller, essa invenção tinha como objectivo mostrar que os elementos da língua que consideramos discerníveis não o são tanto assim. Alíngua, para Miller, parece não ser uma estrutura, embora tenha relação com a mesma. Miller afirma que alíngua não é uma estrutura porque não é um objecto desprovido de sincronia, pelo contrário, ela tem uma dimensão totalmente diacrónica, “visto que é feita de aluviões que se acumulam de mal-entendidos, das criações linguísticas de cada um”. (Miller, 1998).

Ainda no seminário XX, Lacan insiste na noção de inconsciente: “Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua. (…) É nisto que o inconsciente, a sua codificação, só se pode estruturar como uma linguagem, uma linguagem sempre hipotética em relação ao que a sustenta, isto é, a alíngua.” (Lacan, 1985).

Lacan fala de um inconsciente como uma linguagem hipotética e que tem estrutura de alíngua. Mas afinal, o que é alíngua?

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Para os linguistas, o início do período linguístico é o período no qual a actividade fonética se traduz na emissão de sons e estalos que consistem em manifestações respiratórias, expressões sonoras mais extensas do que aquelas que serão utilizadas na língua. Para eles, é a fase quando a criança começa a manifestar alguma compreensão em relação à fala do adulto para com ela.

Partindo do início do período linguístico, Lacan concebeu o conceito de alíngua. Numa conferência em Genebra sobre o sintoma, em 1975, ele referiu ter procurado um termo que estivesse próximo do início da actividade fonética, definindo-o como restos de significantes que se depositam como aluviões no período de aquisição da linguagem. Numa outra ocasião, ao se referir à clínica, chegou a afirmar que a prática consiste em procurar o equívoco nessas primeiras palavras ouvidas, essa é uma forma de fazer com cada um tenha o seu inconsciente, bem como enfatizar o modo como cada criança escuta. Assim, ele definiu a alíngua como constituída pelos primeiros significantes com que o sujeito entra em contacto, antes mesmo de conhecer a sua significação.

A partir deste pensamento, Lacan modifica a sua teoria do significante, utilizando o significante de uma nova forma, distinta em relação ao uso que a linguística faz dele.

Se a alíngua emerge dos equívocos na língua, é porque se engana quanto ao significante. A aprendizagem da alíngua é um processo lento, de acordo com a aquisição da língua.

Para o linguista Jean Claude Milner, no seu livro Amor da língua (1987), a alíngua é um língua entre outras, embora quando se apresente, manifeste não se incluir em nenhum grupo de línguas, pois constitui-se como a língua materna, “da qual basta um pouco de observação para admitir que em qualquer hipótese é preciso uma torção bem forte para alinhá-la no lote comum”. (Milner, 1987). Mesmo assim, segundo este autor, a alíngua é uma língua como qualquer outra para o ser falante, ou seja, língua materna e, simultaneamente, é o que faz com que uma língua não seja comparável a outra, pois não tem outra para se comparar; a alíngua é algo particular de cada sujeito, tendo como grande característica o equívoco da língua. Ainda segundo Milner, a linguagem empresta à alíngua os traços para que esta se torne compatível com um grupo e se possa inserir na língua. E a alíngua é algo onde, através de um só movimento, se encontra a língua e o inconsciente.

3.1.3. O último ensinamento de Lacan e os novos sintomas

O último ensinamento de Lacan, tal como o apresenta Jacques Alain Miller, indica-nos as vias pelas quais se conduz a nossa prática, contrária à freudiana, ou seja, ao reino do pai, à consistência do Outro, inclusive ao que “a psicanálise tem sustentado como elaboração de saber para fazer do Pai e do semblante um uso que permita renovar o sentido do sintoma”. (Tarrab, 2006).Para Freud, a descodificação é a chave do sintoma. No entanto, essa descodificação fracassa perante os novos sintomas, pois estes rejeitam o inconsciente e prescindem do Outro. Importa destacar que devemos ter cuidado em não homogeneizar aquilo que dos sintomas actuais é chamado de “novos sintomas”. Cada um desses sintomas tem as suas particularidades e diferenças e Lacan já os considerava como sintomas que não se enquadravam na ordem simbólica como mensagem, como uma “operação selvagem do sintoma”. (Tarrab, 2006).

Ainda segundo Tarrab, preservar a heterogeneidade é uma orientação para o tratamento desses sintomas que não pedem nada, que são fixações de gozo, pois não podemos negligenciar esses fenómenos que parecem estar fora do processo analítico.

Na sua conferência intitulada Uma fantasia, Jacques-Alain Miller (2005) usou o termo crucial: “inventar a prática lacaniana dos nossos dias”.

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Para trabalhar os novos sintomas e a relação entre inconsciente e linguagem, devemos recorrer a Lacan quando o mesmo diz, como já foi referido, que o sintoma, embora não seja a mesma coisa que o real, provém dele. É a manifestação do real nos seres falantes.

Na fase final do seu ensinamento, a estrutura clínica na qual Lacan vai apoiar as suas inovações teóricas é a psicose, não como um deficit, mas sim como parte da estruturação subjectiva. Neste percurso, a noção de sujeito, que sempre teve importância no seu ensinamento, adquire uma maior relevância.

Lacan, ao reler Freud e beber na fonte da linguística, descobriu a eficácia simbólica, termo rebuscado de Lévi-Strauss. Essa noção introduz na causa significante S1-S2/$, o efeito sujeito, que é uma operação automática da cadeia. Este produz-se porque o sujeito é um ser falante.

Se pensarmos nos sintomas actuais como aqueles que não se dirigem ao Outro, como se o saber já lá estivesse, como acontece na psicose, mesmo não se tratando de psicose, mas sim de casos singulares independentes da sua estrutura clínica, a ideia principal que devemos ter em conta é a de que há sempre um sujeito e não devemos procurar uma primeira orientação através das estruturas, ou seja, direccionar o tratamento a partir da estrutura clínica, pois isso poderia negligenciaria o sujeito em questão, isto é, a experiência particular de cada um. Por exemplo: Um neurótico obsessivo é diferente de outro obsessivo e assim por diante.

Se existe sempre sujeito é porque existe linguagem e se o sujeito da psicanálise é o sujeito do inconsciente, nos novos sintomas isso não aparece, ou seja, não se apresenta nem o sujeito, nem o sintoma, apesar de terem sido nomeados esses casos de “novos sintomas”. No entanto, não podemos dizer que estes estão fora da linguagem. Deparamo-nos com um impasse. O sujeito da psicanálise é o sujeito do inconsciente e a condição da sua existência é a linguagem. O sintoma, segundo Lacan, é uma manifestação do real e caracteriza-se por uma formação do inconsciente. Podemos então afirmar que os novos sintomas são uma manifestação de um inconsciente real? Ou melhor, ainda podemos estabelecer uma relação entre inconsciente e linguagem?

Desta forma, deparamo-nos com uma dificuldade no campo da clínica. Depois de uma primeira clínica, do inconsciente estruturado como uma linguagem e da metáfora paterna, surge uma outra clínica, para além do inconsciente freudiano e do Nome-do-Pai. Este é o corte que observamos no primeiro ensinamento lacaniano, onde se localiza o paradigma da estrutura rumo a uma outra leitura do inconsciente, do sintoma e, consequentemente, uma outra concepção da linguagem.

Posteriormente, em 1971, no seminário 20, Mais ainda, Lacan (1985) diz, dirigindo-se a Jakobson: “Um dia percebi que era difícil não entrar na linguística, a partir do momento em que o inconsciente estava descoberto”. No entanto, ele coloca uma única objecção a Jakobson, quando este afirma que tudo o que é da linguagem depende da linguística, ou seja, do linguista. E afirma ainda: “Se consideramos tudo o que, pela definição da linguagem, se segue quanto à fundação do sujeito, tão renovada, tão subvertida por Freud, que é lá que se garante tudo o que da sua boca se afirmou como inconsciente, então será preciso, para deixar a Jakobson o seu domínio reservado, forjar uma outra palavra. Chamarei isto de “linguisteria”. (Lacan, 1985).

O neologismo “linguisteria” pode ser visto como uma junção das palavras linguística e histeria, já que a linguística é do campo da linguagem e a histeria é, por excelência, a estrutura clínica psicanalítica do sujeito do inconsciente.

Para Milner, a lição do seminário XX, dedicada a Jakobson, é a despedida de um antigo discurso, do relatório de Roma de 1953, que resultou do seminário V As formações do inconsciente. Jakobson, que estava presente, diz: “mudamos de discurso”; e Lacan acrescenta: “um novo amor”. (Milner, 1996). Este seminário, Mais ainda, é o que inaugura o segundo ensinamento de Lacan, o qual, embora distinto do primeiro, vincula-se a ele.

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Ainda no mesmo seminário, Lacan salienta que a sua ideia de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem não pertence ao campo da linguística; esta apenas lhe deu o suporte para poder comprovar a estrutura “linguageira” do inconsciente.

O termo “linguisteria” surge para substituir o que anteriormente dizia respeito à linguística, mas que modifica pelo aparecimento da alíngua. Este termo aborda a questão da significação em oposição ao sentido, ou seja, há uma direcção do sentido para a letra. A “linguisteria” parece estar mais ligada à relação necessária entre o analista e a linguagem, e que é irredutível à linguística. “A linguisteria estaria relacionada com a realidade contingente da linguagem enquanto fundadora do sujeito, porém, ela mesma, dependente da alíngua”. (Leite, 2001).

Se for para procurar um sujeito da linguística, este é o sujeito falante, o que vem do pensamento através do processo secundário. O sujeito da “linguisteria” é um ser incompleto, por isso Lacan dizer que a “linguisteria” exige a experiência analítica para a sustentar, sublinhando, em 1971, que não há outra linguística para além da “linguisteria”. Mas tal facto não quer dizer que a psicanálise seja toda do campo da linguística, conclui o psicanalista francês.

A partir daqui, o avanço do ensinamento de Lacan demonstra um esforço em formalizar uma materialidade para o inconsciente, operando assim uma mudança radical no uso que faz do termo linguagem. Mais tarde, este esforço concretiza-se, quando vai utilizar a concepção de “letra” e abordá-la como um significante fora do simbólico.

Se, inicialmente, Lacan colocou em evidência o significante como materialidade da linguagem, constitutivo do inconsciente, pertencente ao registo simbólico e aquele que representava o sujeito para um outro significante, parece-nos que, no seu último ensinamento, a formalização de um inconsciente constituído pela letra, não mais pelo significante, compromete a estrutura de linguagem do mesmo. Nesta perspectiva, seria uma linguagem de outra ordem. Mas, se seguirmos o pensamento de Lacan que, nessa fase final de seu ensinamento, vai da linguagem para alíngua e do significante para a letra, essa passagem indica-nos uma mudança no que ele disse sobre estrutura e sobre linguagem.

Neste sentido, podemos considerar um inconsciente estruturado como alíngua e que se revela pela letra, pela escrita? Como se expressam essas formações do inconsciente através de uma letra? Como realizar uma interpretação ao nível da alíngua?

A partir destas questões o objectivo desta investigação é perceber qual é a estrutura de linguagem do inconsciente na perspectiva manifestada pelos novos sintomas.

Segundo Milner, a letra não é o significante, a distinção entre eles ficou um pouco confusa no primeiro Lacan, mas esclarece-se no segundo ensinamento. O linguista descreve assim as diferenças entre letra e significante: “O significante é apenas relação: ele representa para e é aquilo através do que isso representa; a letra mantém, decerto, relações com as outras letras, mas não consiste apenas na relação. Sendo apenas relação de diferença, o significante é sem positividade; mas a letra é positiva na sua ordem. A diferença significante, sendo anterior a toda a qualidade, o significante é sem qualidades; a letra é qualificada (ela tem uma fisionomia, um suporte sensível, um referente, etc.). O significante não é idêntico a si, não tendo um si ao qual uma identidade possa ligá-lo; mas a letra, no discurso em que se situa, é idêntica a si mesma. O significante, sendo integralmente definido pelo seu lugar sistémico, é impossível ser deslocado; mas é possível deslocar uma letra (testemunha a teoria dos quatro discursos).” (Milner, 1996).

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3.1.4. Os sintomas actuais: entre a linguagem e a alíngua, entre o simbólico e o real

No decorrer desta investigação, procurou-se demonstrar a relação existente entre linguagem, sintoma e inconsciente, para chegar aos novos sintomas como paradigma de um inconsciente revestido por uma nova leitura, a partir da segunda clínica de Jacques Lacan. É importante destacar que essa nova leitura não descarta totalmente a primeira elaborada por este psicanalista, quando considerou o inconsciente freudiano estruturado como uma linguagem. Quer isto dizer que a linguística marcou todo o ensinamento de Lacan, fazendo-nos pensar que a sua leitura sobre inconsciente, definido como alíngua, não se distancia nem do conceito freudiano (ordem simbólica), nem do campo da linguística, na medida em que é parte integrante de uma língua como qualquer outra.

Importa destacar que Lacan, em 1980, um ano antes da sua morte, afirmou: “vocês podem-se dizer lacanianos, eu sou freudiano”. Como ele se considerou freudiano até ao final da sua vida, podemos continuar a acreditar que o seu conceito sobre o inconsciente permanece no campo da linguagem. Embora a relação seja diferente, isso não quer dizer que não exista uma ligação entre inconsciente e linguagem. O inconsciente é redefinido por Lacan como alíngua porque esta destaca a particularidade de cada sujeito e, principalmente, porque comprova que há um impossível inerente à língua, um real. Se o inconsciente é o real da língua e esta, para Saussure, é o objecto da linguística, podemos pensar o inconsciente como um fenómeno linguístico. Embora Saussure não tivesse interesse no que ia para além da língua, tal não significa que o linguista não reconhecesse falhas nela. Esse para além do objecto da linguística interessa ao campo da psicanálise porque implica a questão do sujeito do inconsciente.

Lacan, ao definir o inconsciente como alíngua, leva-nos a pensar que esta definição sustenta o que o inconsciente tem de linguístico, enquanto real da língua. Até porque o termo alíngua não representa uma negação da língua, mas sim o facto de ela ser considerada como não-toda.

Os novos sintomas, assim, não são tão novos como se pensava, pois Lacan denominava este fenómeno de “operação selvagem do sintoma”. Ao longo de diversas épocas certamente vamos ter diversas “operações selvagens de sintomas”.

A este respeito Ana Maria Rudge, psicanalista, no seu artigo As teorias do sujeito contemporâneo e os destinos da psicanálise (2006), diz que devemos ter cuidado para não criar uma teoria sobre os novos sintomas e, dessa forma, criar uma teoria da subjectividade contemporânea. Na verdade, o que devemos fazer é procurar recursos teóricos para compreender os fenómenos actuais, pois como já referimos, os sintomas contemporâneos vão ser sempre contemporâneos, de acordo com a especificidade de cada cultura e de cada época. É de fundamental importância organizar um saber teórico coerente como forma de abordar a problemática em questão.

O sujeito ao qual a psicanálise se dedica é o sujeito da ciência e, portanto, o da civilização ocidental. Entretanto, um sujeito e as suas singularidades ultrapassam sempre as construções teóricas sobre ele.

Foi a prática clínica que nos impulsionou a fazer esta pesquisa teórica. Sintomas frequentes como a depressão, as compulsões e as dependências ao mundo virtual da internet, na maioria por parte de adolescentes e jovens adultos, que não conseguem expressar um saber sobre o que sentem; dizem apenas que algo aconteceu ao seu corpo, ou que estão gordos, ou que estão magros, ou que dormem demais, ou que não conseguem dormir e ficam na internet, sentem tremor, medo, pensam demais, fazem cirurgias plásticas, colocam próteses, etc.

Lacan questiona, no seminário 20, em que consiste o saber dos que não falam. Segundo o psicanalista francês, o ser, enquanto falante, é afectado pelo inconsciente,

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é o sujeito do significante e este, por sua vez, representa um sujeito para outro significante. O que o significante define é a sua diferença em relação a outro significante, “é a introdução da diferença enquanto tal, no campo, que permite extrair da alíngua o que é do significante”. (Lacan, 1985). O significante, insiste Lacan, é signo de um sujeito e é nisso que ele se torna ser. E daí surge a questão central para Lacan: O que é o corpo então? “É ou não é saber do Um?” (Lacan, 1985). O saber do Um, segundo este mestre, não é o do corpo, é o do significante Um, o do significante mestre que estabelece a ligação do sujeito ao saber. No entanto, ainda segundo Lacan, esse significante Um não é um significante qualquer, representa a ordem que faz toda a cadeia subsistir, encarnando na alíngua aquilo que se manifesta indeciso entre o fonema, a palavra, a frase e o pensamento.

3.1.5. O inconsciente real e os novos sintomas

Jacques Alain Miller, genro de Lacan e responsável pela transcrição e publicação dos seus seminários, foi o fundador da Associação Mundial de Psicanálise, com sede em Paris. Essa instituição inclui diversas Escolas freudianas de orientação lacaniana, em vários países. Todos os anos, Miller realiza um curso sobre um novo seminário publicado de Lacan. O curso de 2007 intitulou-se O Inconsciente Real e aqui ele faz muitas referências ao seminário 23, O sinthoma, publicado em 2007. Neste seminário, Lacan atribui uma ortografia nova à palavra sintoma que, segundo Miller, no seu curso sobre o inconsciente real, não é mais uma formação do inconsciente, tendo com este uma relação muito mais complexa e diferente.

O sinthoma, para Lacan, é o que há de mais singular em cada ser falante. Neste sentido, podemos considerá-lo estruturado como alíngua, para não o deixar fora da linguagem. Mais tarde, no seu seminário 24, L’une-bévue, ainda não publicado, mas citado por Miller nesse curso de 2007, há uma outra inovação no seu último ensinamento, quando refere que o inconsciente não é o que o sujeito tem mais de singular, pois para o apreender ele teve necessidade de alojar o grande Outro. O sinthoma, nesta nova concepção, aloja-se no Um e Lacan define, neste seminário, o UM pelo sinthoma, opondo este, como diz ainda Miller, ao inconsciente, ou seja, ele introduz algo que vai para além do inconsciente.

No seminário O sinthoma, no capítulo intitulado Do inconsciente ao real, Lacan afirma: “É pelo facto de Freud ter verdadeiramente feito uma descoberta que se pode dizer que o real é a minha resposta sintomática”, acrescentando ainda: “Digamos que é pelo facto de Freud ter articulado o inconsciente que reajo a ele”. (Lacan, 2007).

Em 2001, no âmbito da comemoração dos 100 anos de Lacan, os seus seguidores prepararam e divulgaram, em França, uma colectânea de textos, que resultou no livro Outros escritos. No final deste livro, há um artigo intitulado “Prefácio à edição inglesa do seminário 11”, o qual Lacan inicia com as seguintes palavras: “Quando o esp de um laps já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos a certeza de estar no inconsciente”. (Lacan, 2003).

Segundo Miller, a frase “o esp d’um laps” pode ser distorcida no sentido de significar que “o inconsciente é o real”; no entanto, ele acrescenta que essa proposição não é evidente, que precisa de ser trabalhada. O texto sobre o lapso foi escrito logo depois do seminário O Sinthoma, em 1976.

Retornando a 1956, nesta altura Lacan refere, em “resposta ao comentário de Jean Hypolite sobre a Verneinung de Freud” que, uma vez desprovido de toda a manifestação simbólica, reaparece “erraticamente”. Essas manifestações erráticas, valorizadas na psicose, surgem já em Lacan no que ele chamou de “real sem lei”, ou seja, um real separado do simbólico e que o supera. Segundo Miller, o espaço de um lapso refere-se a uma disjunção entre o inconsciente e a interpretação, afirmando que

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há uma exclusão entre estas duas funções no que se refere ao inconsciente. Há uma desconexão entre o significante do lapso e o significante da interpretação.

A intervenção psicanalítica é evidente no estabelecimento da transferência como S1-S2, sendo S1 o significante da transferência na sua ligação com S2, um significante qualquer. Desta ligação, surge o sujeito suposto de saber, como significado de determinado significante.

Quando Lacan coloca a questão do espaço de um lapso, o esquema S1-S2 muda de configuração, perdendo-se a ligação nele existente. O autor insiste que só se tem certeza de que há inconsciente quando não surge essa referida ligação, transferencial e isso muda tudo porque nega o inconsciente sob transferência.

A intervenção analítica, nesta perspectiva, será realizada através da apreensão dessa atenção no espaço de um lapso. E essa atenção, segundo Miller, condiciona a associação. A associação livre, regra principal da psicanálise, apenas acontece se houver um analista. O interveniente habilitado para fazer essa atenção funcionar é o sujeito suposto saber, ou seja, a associação livre apenas acontece a partir da atenção do analista, como se ele a ajudasse a emergir. Se assim acontecer, a associação livre não é tão livre assim, ela liberta uma verdade falhada, ou uma falsa verdade. Segundo Lacan, não há verdade que, ao ser filtrada pela atenção, não minta. Neste sentido, o protagonista não é mais o analista, mas sim o UM-sozinho.

Lacan, em 1975, numa palestra nos Estados Unidos, afirmou que não estava absolutamente comprovado que as palavras fossem o único material do inconsciente, salientando que nunca teria dito que o mesmo fosse um conjunto de palavras. O que ele quis dizer, nesse seu último ensinamento, era que existia alguma coisa que não era um significante, mas que mesmo assim pertencia ao inconsciente, ou seja, aquilo que ele acabou por denominar de objecto, objecto causa de desejo.

Esta nova forma de leitura do inconsciente, aparte do significante, muda a definição de estrutura que, se antes era vista como somente organizada pelo Simbólico, no último ensinamento de Lacan ela é entendida como um Simbólico organizado por um Real.

Desta forma, a prática clínica desloca-se para a intervenção do analista com base no intervalo da cadeia, ou seja, o que acontece entre S1 e S2, o que acontece no espaço de um lapso. A prática da psicanálise lacaniana, no seu primeiro tempo, tinha como referência o retorno da articulação de S1 e S2, provocando um efeito de verdade. O esp de um laps, do qual fala Lacan no livro Os Outros Escritos, retira desse esquema o valor de S1 sozinho, sem efeito de verdade; é o que acontece quando não se atinge o sentido nem a interpretação, o S1 fica desarticulado. Para Lacan, a verdade depende da crença numa articulação. No seminário O Sinthoma (2007), o psicanalista tenta afastar a psicanálise da crença na verdade, retirá-la dessa posição.

Segundo Miller, a crença no verdadeiro é o que há de comum entre psicanálise e religião, mas a verdade da psicanálise só tem uma palavra, o real. No es d’um laps, Lacan defende que o verdadeiro está à deriva quando se trata do real.

Seguindo este raciocínio, podemos considerar que a estrutura do inconsciente, no último Lacan, estaria no intervalo entre S1 e S2? A prática analítica, neste sentido, torna-se numa prática de atenção para uma leitura e não uma interpretação; trata-se de um exercício de se ler o que está nesse intervalo. O inconsciente estaria estruturado numa escrita existente nesse espaço de um lapso? Afinal, o que o intervalo da cadeia impõe é da ordem do sem-sentido.

Assim, o desafio seria apreender esse sem-sentido e procurar fazer uma leitura a partir daí, isto é, captar o real dessa língua, ou seja, captar a alíngua.

Na civilização actual, podemos constatar, retomando o pensamento de Miller no seu texto Uma fantasia (2005), referido anteriormente, quando o mesmo destacou a existência de duas metáforas, a da agricultura pela indústria e a da natureza pelo real, que poderia existir uma terceira metáfora, a da passagem da estrutura de linguagem do inconsciente como simbólica, para uma outra estrutura com estatuto de real,

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revelada pelos novos sintomas. Esta terceira metáfora seria obviamente um desdobramento da segunda e não uma exclusão da mesma.

Nos últimos anos do seu ensinamento, Lacan realizou algumas alterações importantes, todas elas referentes à relação do Real com o Simbólico. Ainda no já referido seminário O Sinthoma (2007), Lacan afirma que inventou o que se escreve como real, referindo inclusive que muitas pessoas o escreveram antes dele; porém, a sua escrita sobre o real tem a forma do nó borromeano, uma cadeia de três elos formada por um só fio, elos esses denominados de Simbólico, Imaginário e Real.

Este nó é a forma como se unem os elos e ocupa um lugar particular na teoria lacaniana. Essa cadeia borromeana “é uma cadeia tal que, se cortarmos qualquer um dos seus anéis, todos se desligam”. (Lafont, 1990).

A partir desta leitura, Lacan adopta um aparelho que não é da psicanálise freudiana, mas sim da matemática e da lógica, o qual se mostra adequado para trabalhar as noções freudianas. O psicanalista francês referiu que esse esquema do nó se traduziu numa grande ajuda para o seu trabalho e para os seus ensinamentos. Todo o seu esforço no final do seu ensinamento “é no sentido de referir, nomear, escrever, formular, criar as palavras que convêm para falar das relações que o Simbólico, o Real e o Imaginário mantêm entre si”. (Lafont, 1990).

Segundo a mesma autora, “trata-se de depreender as relações que mantêm entre si o Real, o Simbólico e o Imaginário, e elas definem-se, respectivamente, pela existência, pelo furo e pela consistência”. (Lafont, 1990).

Segundo Lacan, os três elos só se compreendem nas suas relações, na sua ligação. Esta escrita é utilizada por ele para demonstrar que está relacionada com a criação do sentido e das suas relações com o inconsciente e com o sintoma, o que é particularmente interessante, ou seja, quando colocamos a questão do inconsciente real como sendo da ordem da letra, que difere do significante, ela é, segundo Milner, manipulável e transponível para a letra, acrescentando este linguista: “Transmite aquilo do que ela é, no meio de um discurso, o suporte; um significante não se transmite e nada transmite: ele representa, no ponto das cadeias onde se encontra, o sujeito para um outro significante. O significante não pode ser instituído; seja ele arbitrário (Saussure) ou contingente (Lacan).” (Milner, 1996).

Assim, refere Milner, o significante deriva do registo do Simbólico, enquanto a letra, que deriva da instância do real, vincula os três anéis, que são heterogéneos.

Ao reler literalmente o trabalho de Freud, Lacan conseguiu observar que o pai da psicanálise distinguiu um outro movimento do inconsciente diferente do recalcamento, ao usar a palavra verwerfung, que mais tarde o discurso analítico traduziu como sendo forclusão. Este termo, segundo Miller, serve para falar sobre uma abolição simbólica, bem como sobre uma falta no significante. Portanto, Freud já se apercebia de um elemento inexistente, “dado que, para ele, tal como o traduz Lacan, o simbólico é uma condição de existência na realidade”. (Miller, 2006). Isto quer dizer, segundo este psicanalista, que o que não está escrito no simbólico, in-existe. No seminário O Sinthoma, Lacan afirma que a simbolização é a condição para que haja existência, para que algo venha a ser para o sujeito.

Ao consideramos que os novos sintomas nos revelam uma forclusão do simbólico, indicando-nos que não existe um retorno do recalcado, como fica, então, o estatuto do sujeito nesses fenómenos? Miller ajuda-nos a encontrar a resposta a esta questão quando diz que mesmo assim algo advém do que está forcluído para o sujeito e que para Lacan esse algo que emerge sem a forma de retorno do recalcado, sem retorno daquilo que faz parte da história do sujeito é o real e não a história, estabelecendo, dessa forma, uma diferença entre história e real, distinção fundamental presente no pequeno texto onde se refere ao l’esp d’um laps. Lacan faz esta distinção quando começa pensar a psicanálise a partir do real e, a história, nessa perspectiva, é um fenómeno de interpretação.

Pensar a partir da história permite a articulação entre S1 e S2 e uma relação com o Outro, o que não parece ser o caso dos sintomas actuais. Miller refere, no seu

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curso O inconsciente é real, que o retorno do recalcado se pode considerar como um retorno legal e o que surge no fenómeno onde o simbólico está forcluído é algo de uma outra dimensão, emerge no real, isto é, de forma ilegal, erraticamente, como diz Lacan. É algo que acontece sob a forma de resistência sem transferência, algo que não é para o Outro, mas sim para o sujeito sozinho, só ele que sabe, consigo, tal como enfatiza Lacan no Prefácio da edição inglesa do seminário XI.

Ao desenvolver essa pesquisa teórica para compreender o movimento dos novos sintomas, encontramos em Lacan, na última fase do seu ensinamento, uma teoria do inconsciente elaborada, não a partir da histeria e da história, como aconteceu com Freud, mas sim a partir de uma teoria a partir da psicose, ocorrendo assim, como diz Jacques Alain Miller, uma reviravolta no seu ensinamento. Esse indício já existia mesmo antes desse escrito, O esp d’um laps, quando Lacan, ainda jovem, evoca a personagem Aimée na sua tese de psiquiatria, entrando assim na obra de Freud pela via da psicose. No começo da psicanálise, com a histeria e com a história, existe uma suposta simbolização, enquanto que, na psicose, a operação de forclusão do simbólico origina o real. Nesta perspectiva, percebemos que os novos sintomas colocam frente a frente histeria e psicose, tornando a prática psicanalítica um desafio, uma prática que põe em jogo o real, isto é, um real separado da fala, um real que nada espera da fala, diz Lacan em O Sinthoma, um real que fala sozinho. Miller acrescenta que não é um significante que falta, pelo contrário, é uma significação tão estranha que o sujeito não consegue comunicá-la ao Outro.

Desta forma, o inconsciente, para Lacan, é o testemunho de um saber que muitas vezes escapa ao ser falante e este dá-nos a oportunidade de observar os efeitos da alíngua. O ser falante apresenta sempre afectos cheios de enigmas e estes afectos enigmáticos são apresentados pela alíngua, que articula coisas que vão muito para além daquilo que o falante suporta saber acerca do que diz. O inconsciente representa um saber lidar com isso, um saber trabalhar com a alíngua, trabalho esse que implica muito mais coisas do que a linguagem nos permite conhecer.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações finais aqui apresentadas, como o próprio nome indica, não se tratam de conclusões, pois não é possível concluir, nem fechar, apresentar certezas ou negações em relação ao tema em análise, pelo contrário, tratam-se apenas das últimas considerações acerca das hipóteses levantadas neste trabalho.

As questões aqui trabalhadas centraram-se na relação entre psicanálise e linguagem, o que não se traduziu numa tarefa fácil, pois abordaram-se conceitos linguísticos e psicanalíticos deveras complexos e delicados, os quais, por si só, implicariam uma investigação e análise inesgotáveis.

Importa referir que o tema em questão é actual e recente, cujas discussões teóricas ainda estão em construção, o que nos faz deparar com algumas limitações que, se por um lado geram alguma frustração, por outro é interessante perceber que as questões ficarão em aberto, aguardando por outros tempos e novas e mais respostas. De qualquer forma, considera-se que as questões aqui apresentadas foram devidamente trabalhadas, tendo em conta o contexto onde se inserem.

Os novos sintomas e a relação do inconsciente com a linguagem, tema escolhido para o presente trabalho, foi resultado de uma inquietação surgida da prática clínica, que tem como instrumento principal a fala e a linguagem. Para além disso, a referida inquietação emerge ainda das rápidas mudanças aos níveis do pensar, do sentir, do ser e do ter que têm ocorrido na sociedade e cultura actuais.

O primeiro capítulo desta dissertação teve como objectivo apresentar uma constatação do inconsciente como uma linguagem, antes mesmo de Freud falar sobre esta instância através de seus estudos com as afasias. Foram destacados textos clássicos freudianos que comprovam essa realidade. Cada artigo escrito pelo mestre austríaco comprovava o seu afastamento da medicina e sua entrada no campo da linguagem, culminando na publicação de um artigo sobre a grande descoberta do inconsciente. A partir desse movimento, surgiram várias questões sobre as estruturas de linguagem que compõem as diversas formações do inconsciente e as suas aproximações com alguns conceitos linguísticos como signo, significante, entre outros.

As questões e dúvidas mantêm-se no segundo capítulo, em relação ao sintoma segundo Freud e Lacan, o qual, como qualquer formação do inconsciente tem uma linguagem e sentido, fazendo-nos recorrer aos mecanismos linguísticos da metáfora e metonímia, retomados por Lacan na leitura que este fez de Jakobson.

No último capítulo, as questões assumem contornos mais insistentes e mais complexos, ao abordar-se a questão central deste trabalho, ou seja, os novos sintomas, o que implicou avanços e retrocessos na análise do ensinamento de Lacan, suscitando dúvidas constantes no que diz respeito à relação do inconsciente com a linguagem e com a linguística. Na tentativa de encontrar respostas, foram trazidas questões relacionadas com a alíngua e com o inconsciente real. Nesta construção, o inconsciente, nos novos sintomas, mantém uma estrutura de linguagem, mas que vai para além dela, possuindo estatuto de alíngua, para além do simbólico, adoptando uma forma real.

Embora as questões não tenham sido respondidas com certezas, nem tenha sido resolvido o problema central, a presente investigação não foi certamente infrutífera, tentando-se transpor, com cautela, a barreira existente entre a linguística e a psicanálise.

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