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    Revista IcarahyEdio n.04 / outubro de 2010

    ELIZABETH COSTELLODIALOGANDO COM A HISTRIA

    Paulo Alex Souza1

    RESUMO: EmElizabeth Costello, de John Maxwell Coetzee, deparamos-nos com um

    romance de fato instigante para o leitor, tanto por sua estrutura, quanto pelas questes

    propostas ao longo de seus diferenciados captulos. Este artigo investiga o

    comparecimento da categoria histria no romance, a partir das questes histricas

    trazidas ao primeiro plano e discutidas pelas personagens, gerando sentidos para o

    presente delas por meio de um dilogo com o passado. Para essa leitura, faremos uso

    das contribuies tericas de Walter Benjamin, a partir de sua filosofia da histria.

    PALAVRAS-CHAVE: Coetzee; histria; humanidades; contemporaneidade; Walter

    Benjamin.

    ABSTRACT: InElizabeth Costello, written by John Maxwell Coetzee, we come across

    an intriguing novel to the readers, not only by its structure, but by the question

    suggested during its differentiated chapters as well. This article investigates the

    appearance of the category history in the novel, with historical questions that were

    brought to the first plan and discussed by the characters, producing senses to their

    present through a dialogue with the past. For this reading, we will use the theoretical

    contribution of Walter Benjamin, by his philosophy of the history.

    KEY-WORDS: Coetzee; history, humanity, contemporaneous; Walter Benjamin.

    Neste comeo de milnio, vemos muitos escritores se debruarem sobre a

    Histria, trazendo para suas obras variadas situaes e questes que percorreram a

    humanidade. Tais escritores vm mostrar que essas questes no esto perdidas no

    tempo, nem podem jazir no passado ou no esquecimento, antes, devem ser trazidas para

    a atualidade e postas em exame. Ao nos ocupar de assunto to vasto em abordagem de

    1

    Especialista em Estudos Literrios (UERJ) e Mestre em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura(UFF).

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    uma obra literria, estamos percorrendo um caminho que a prpria obra oferece, uma

    perspectiva histrica aberta pelo escritor quando traz para sua composio artstica um

    fato, uma discusso ou um dilema que num dado momento do decurso humano foi

    significativo, e ainda o , motivo pelo qual se justifica sua retomada.

    No romance Elizabeth Costello, objeto de investigao deste estudo, do escritor

    sul-africano John Maxwell Coetzee2, a categoria histria entra com fora e vigor, pois a

    obra chama a ateno para o conceito, em diversos momentos. O presente e o passado

    so postos em dilogo constante a partir dos problemas levantados pelas personagens ou

    relativos a elas. Todavia, no uma perspectiva memorialista que buscaremos na

    narrativa, embora em determinado momento ela verse com a memria da personagem.

    Focaremos numa polmica levantada e discutida pelos personagens de Coetzee

    em um captulo especfico do romance, composto de oito captulos que guardam

    afinidades entre si, mas que, no geral, podem ser tomados independentemente, em

    virtude dos assuntos abordados por cada um, pois tratam de questes distintas, como

    indica o subttulo da obra Oito palestras. Temos ento, discursos autnomos,

    tematizando cada qual uma srie de questes de carga subjetiva e tica. Alm disso, um

    argumento que borra a noo corrente de anlise literria, mas que pode ser trazido para

    contribuir junto a esta, repousa no fato de o livro trazer uma parte final intitulada

    Agradecimentos, na qual explicada a origem das palestrasdas quais formada aobra. Pelos esclarecimentos, vemos que os textos originais foram publicados

    separadamente e em diferentes rgos, e o fato por si s de colocar essas explicaes j

    aponta para uma inteno esttica de explorar e expandir os limites do romanesco.

    2O autor nasceu em 1940, na Cidade do Cabo, frica do Sul, viveu na Inglaterra e Estados Unidos, ondeestudou literatura e iniciou sua carreira de professor universitrio. o nico autor premiado duas vezes

    com o Booker Prize britnico (por Vida e poca de Michael K, em 1983, eDesonra, em 1999). Em 2003,recebeu o prmio Nobel de literatura pelo conjunto de sua obra literria e crtica.

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    Assim, no quinto captulo-palestra intitulado As humanidades na frica,

    encontramos novamente a protagonista do romance em viagem. Dessa vez, Elizabeth

    Costello, uma romancista de prestgio, no vai proferir uma palestra em alguma

    instituio, como faz em outros captulos. Agora, ela convidada a ir frica para

    assistir cerimnia na qual sua irm, Blanche Costello, receber um ttulo honorrio

    concedido por uma universidade. Embarquemos no passeio da escritora, sua estada no

    continente guarda um sem-nmero de caminhos a serem percorridos. Assim como o

    texto de Coetzee uma teia muito bem tecida, contendo pistas e armadilhas onde parece

    no haver nada, o narrador deixa uma dessas pistas, em determinado momento, ao

    afirmar que h Algo ali capaz de ser trabalhado, sem dvida. Algum tipo de histria se

    escondendo, inconspcua como um camundongo num canto (COETZEE, 2004: 135).

    um convite para que o leitor v atrs desse algo a ser trabalho, dessa histria espera

    que lancem luz sobre ela.

    HISTRIA, HUMANIDADES E CONTEMPORANEIDADE

    Blanche, mais conhecida como Irm Bridget, formada em filosofia clssica,

    mudou-se para frica para exercer a vocao de missionria, onde administradora do

    Hospital da Abenoada Maria na Colina, em Marianhill, zona rural da Zululndia. Doisanos antes, escrevera um livro chamado Viver de esperana, sobre o trabalho

    desenvolvido no hospital. O livro ganhou notoriedade e sua autora fez palestras no

    Canad e nos Estados Unidos, divulgando o trabalho e angariando dinheiro. Agora,

    encontra-se num hotel para logo receber um ttulo acadmico, numa cerimnia de

    graduao de alunos, situao em que ter de proferir um discurso. desse discurso que

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    partiremos para desenvolver nossa anlise voltada para pr em evidncia a categoria

    histria dentro da narrativa de Coetzee.

    Deixando de lado a esperada atmosfera de celebrao e gratido prpria de

    ocasies como essa, o assunto abordado por Blanche foge da temtica de seu trabalho, o

    motivo pelo qual ela agraciada, mas diz respeito cultura acadmica, quilo que

    fundamenta a existncia dos diplomas a serem entregues em instantes. Ela discursa

    sobre a tradicional rea do saber conhecida como humanidades, ou, como prefere,

    studia humanitatis, os estudos humanos: gostaria de usar esta oportunidade para falar

    alguma coisa sobre as humanidades, sobre sua histria e situao presente; e tambm

    alguma coisa sobre humanidade (p. 137). As palavras da missionria soam

    desconfortantes, pois so uma crtica bem articulada e direta situao atual desses

    estudos. Esse discurso abre como uma porta para que a Histria adentre na narrativa de

    maneira explcita, fecundando-a de temas de alto valor para a contemporaneidade, ou

    seja, tambm a Histria, mas encarnada no tempo presente.

    Vale a pena expor o que vem a ser as chamadas humanidades, a fim de esclarecer

    o assunto a ser abordado, isto , estabelecer uma definio mais normativa e

    delimitadora para o tema. Fornece essa definio o filsofo Sergio Paulo Rouanet, no

    captulo Reinventando as humanidades de seu livroAs razes do Iluminismo:

    Proponho chamar de humanidadesas disciplinas que contribuam para a formao (Bildung)do homem, independentemente de qualquer finalidade utilitria imediata, isto , que notenham necessariamente como objetivo transmitir um saber cientfico ou uma competnciaprtica, mas estruturar uma personalidade segundo uma certa paidea, vale dizer, um idealcivilizatrio e uma normatividade inscrita na tradio, ou simplesmente proporcionar umprazer ldico (ROUANET, 1987: 309).

    Estabelecido um conceito que nos permite visar com maior propriedade a temtica

    abordada pela palestrante, achamos propcio sintetizar seu discurso. Primeiramente, ela

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    faz um breve relato da histria desse campo de estudos, observando que a universidade

    enquanto instituio no deu origem aos estudos humanos, mas apenas os acolheu sob a

    forma de interpretao de textos. Esta forma tornou-se o elemento vital, a chama viva,

    das humanidades, entendidas neste momento como o histrico movimento humanista.

    Com o tempo, esse elemento foi sendo esquecido, diz a personagem, e a histria da

    interpretao de textos desde ento tem sido a histria de uma tentativa aps outra de

    ressuscitar essa vida, em vo (p. 138).

    Segundo a palestrante, a Bblia foi o livro que deu origem interpretao de texto,

    nesse ponto Blanche comea a estabelecer o nexo entre Palavra Divina e as

    humanidades. Os estudiosos do texto bblico visavam obter sua mensagem verdadeira

    por intermdio de um imbricado processo: a recuperao do texto verdadeiro, a

    obteno da verdadeira traduo desse texto e a verdadeira compreenso de sua matriz

    histrico-cultural. A partir disso, estava aberto o caminho para a reunio dos estudos

    lingusticos, literrios, culturais e histricos, sob a denominao humanidades.

    Esses mesmos estudiosos sentiram que era necessrio conhecer aspectos da vida

    humana, antes da possibilidade de redeno oferecida por aquele em que acreditavam

    ser o filho de Deus. Esse conhecimento s podia ser obtido pela leitura dos textos pr-

    cristos, pois eles constituam o nico registro consistente que cobre todos os aspectos

    da vida (p. 139), ou seja, os textos da Antiguidade greco-romana, que, por essanecessidade, foram associados interpretao de textos e ambos passaram a ser

    conhecidos desde ento como humanidades.

    Desse ponto em diante, Blanche se dirige ainda mais diretamente ao pblico para

    criticar o que considera um descaminho iniciado h cinco sculos, quando o movimento

    humanista, tambm conhecido como Renascimento, foi buscar na Antiguidade Clssica

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    o ideal de valor e temtica para enformar sua viso de mundo. Para a missionria, essa

    atitude significou o afastamento daquela inteno primeira de encontrar a interpretao

    da palavra verdadeira, ou seja, a palavra divina, redentora, pois A palavra no pode ser

    encontrada nos clssicos, quer entendamos por clssicos Homero e Sfocles, quer

    entendam-nos como Homero, Shakespeare e Dostoievski (p. 140).

    Sem entrar no mrito das colocaes da personagem, limitamos a dizer que a

    temtica escolhida por Blanche Costello pe em discusso o estatuto das humanidades

    no limiar do novo milnio, propondo sua reviso histrica. Ao fazer isso, a prpria

    histria que est sendo discutida. Coetzee lana uma visada crtica sobre a crise que de

    fato atinge a rea, uma crise correlata s mudanas pelas quais passa a humanidade

    neste tempo de modernidade lquida, segundo a definio de Zygmunt Bauman. Para o

    socilogo (2001: 9), o estgio atual do capitalismo marcado pelos caracteres da

    liquidez, decorrncia imediata da modernidade que, desde o seu incio, foi um processo

    de liquefao, de derretimento das slidas estruturas da sociedade, includo nesse bojo,

    o esprito de profanao das velhas e pesadas tradies. Aqui, podemos incluir como

    alvo dessa empreitada modernizante, as humanidades, no que elas de certa forma

    representam de uma herana tradicional dentro do campo do saber, tambm elas

    passaram pelo repdio e destronamento do passado, e, antes e acima de tudo, da

    tradio isto , o sedimento ou resduo do passado no presente (2001: 9).Exatamente a respeito disso, Rouanet (1987: 305) faz um relato focando na

    experincia brasileira de modernizao por volta dos anos 1950, almejada por muitos,

    segundo ele, como abandono de um conceito de humanidades atrelado a uma cultura

    livresca, beletrista e alienada, na qual predominavam ideias estrangeiras e que no

    poderia preparar a sociedade, especificamente os jovens, para o processo de

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    desenvolvimento do pas. A mudana ocorreu: o Brasil se modernizara e com ele a

    decepo se instalou, pois o pas assistiu emergncia de um sistema cultural

    empobrecido, no qual havia mais gente com formao superior que em toda a histria

    passada do Brasil. Mas, culturalmente, reinava o analfabetismo (Idem: 306). Como se

    no bastasse, segundo o filsofo, o fim do estudo das humanidades de alguma forma

    beneficiava o regime poltico autoritrio que se instalou no Brasil na dcada de 1960.

    Fato de certo ligado seguinte concluso: com o fim das humanidades acabou

    tambm, em grande parte, o pensamento crtico (Idem: 307).

    sabido, mas vale reafirmar: o ensino das humanidades e toda a gama de

    disciplinas afins, tais como lnguas estrangeiras e suas respectivas literaturas, artes,

    histria e, claro, sociologia e filosofia, desempenha um papel fundamental no

    desenvolvimento da capacidade imaginativa e reflexiva do sujeito. A supresso desse

    contedo limita o pensamento abstrato e conceitual, fazendo com que o estudante

    encontre maior dificuldade em compreender questes mais complexas, impedindo a

    construo do senso crtico. Esta situao relatada por Rouanet est muito prxima das

    crticas de Terry Eagleton situao contempornea dos Estudos Culturais, em virtude

    no de uma mera coincidncia, mas sim, como reflexo de uma crise de dimenso maior.

    Em linhas gerais, o terico ingls polemiza com a teoria cultural por consider-la

    insuficientemente crtica em suas abordagens, aps dcadas mais produtivas e com apresena de pensadores inovadores como Michel Foucault, Roland Barthes, Fredric

    Jameson e Jurgen Habermas. Em um irnico comentrio, diz:

    Questes intelectuais j no so mais um assunto tratado em torres de marfim, mas fazemparte do mundo da mdia e dos shopping centers, dos quartos de dormir e dos motis. Comotal, elas retornam ao domnio da vida cotidiana mas s sob a condio de correrem o riscode perder a habilidade de criticar essa mesma vida (EAGLETON, 2005: 15).

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    Analisando alguns proveitos dos novos temas de interesse da teoria cultural,

    advindos da preocupao de investigar aspectos da vida humana at ento tidos como

    sem importncia, tais como a sexualidade e a cultura popular, Eagleton denuncia que

    essa virada temtica, no entanto, veio acompanhada de uma postura acrtica,

    despolitizada, carente de orientaes tericas slidas e entusiasta de assuntos

    irrelevantes no mbito da prpria rea da qual fazem parte.

    luz das observaes de Sergio P. Rouanet e de Terry Eagleton, notamos de

    modo ainda mais evidente o valor da temtica abordada por Coetzee em As

    humanidades na frica. Ao retomar um assunto de tamanha profundidade e pertinncia

    para a atualidade, o escritor sul-africano est engrossando o coro contra o culto

    superficialidade to marcante em nossos dias, em que qualquer coisa que exija do

    sujeito a mnima anlise, descartada como maante ou intil. O filsofo brasileiro, o

    terico britnico e o romancista se insurgem igualmente contra um panorama de

    esvaziamento do pensamento reflexivo e de abandono de contedos capazes de

    transformar o indivduo e a sociedade. Como observa ainda Terry Eagleton:

    A teoria cultural de hoje um pouco mais modesta. No gosta da idia de profundidade, efica perturbada quando se trata de fundamentos. Estremece diante da noo de universal, edesaprova perspectivas abrangentes ambiciosas. Em geral, s pode ver essas perspectivascomo opressivas. Ela acredita no local, no pragmtico, no particular. E, com essedevotamento, ironicamente, difere muito pouco da erudio conservadora que detesta, e que

    tambm s acredita apenas no que pode ver e pegar (Idem: 106).

    O quadro apresentado e criticado por Eagleton , em linhas gerais, o mesmo de

    que trata Zygmunt Bauman (2001: 31), em anlise da situao da crtica no mundo

    contemporneo, onde a reflexo no vai longe o suficiente para alcanar os complexos

    mecanismos que conectam nossos movimentos com seus resultados e os determinam, e

    menos ainda as condies que mantm esses mecanismos em operao. No se trata da

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    inexistncia do pensamento crtico, mas sim, que este tem se tornado ineficaz em sua

    ao: nossa crtica , por assim dizer, desdentada, incapaz de afetar a agenda

    estabelecida para nossas escolhas na poltica-vida (Idem).

    Nossa inteno ao trazer as contribuies desses tericos e p-las em cotejo com o

    texto de Coetzee, tentar montar um painel da situao do pensamento crtico no

    contexto mundial e entrever um possvel sentido do texto literrio dentro deste painel. O

    ficcionista, atento s mudanas pelas quais passa a humanidade, por meio de narrativas

    que conjugam fico e ensaio, tem se debruado para a crise que parece afetar o saber.

    Se falar de humanidades hoje pode parecer anacrnico, isso por si s ndice da

    banalizao do prprio ser humano, que j no sabe olhar para si mesmo como unidade

    que faz parte de uma enorme comunidade, ou como possuidor de valores mais

    universalizantes. Se h tempos no tem mais valia falar de grandes narrativas, a

    tambm podem ser includas, infelizmente, as humanidades, j que esto voltadas para a

    construo da humanidade como um todo, por meio da educao do indivduo. Dessa

    forma, a temtica abordada por Coetzee pe em perspectiva o processo de formao do

    sujeito na contemporaneidade e com ele, a prpria humanidade que est sendo visada.

    Est a uma bela perspectiva abrangente para ocupar as mentes de intelectuais e de

    estudantes em geral.

    HISTRIA COMO RUPTURA

    Uma outra perspectiva de leitura de As humanidades na frica nos aberta ao

    refletirmos sobre o captulo tendo em mente a filosofia da histria de Walter Benjamin.

    O filsofo alemo rompeu com a tradicional viso historicista que enxerga a histria

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    como uma marcha em linha reta e constante, na qual os fatos produzidos pela

    humanidade esto situados no passado de maneira estanque e sem possibilidade de

    conexo com o presente. Tal viso, segundo Rouanet (1987: 42), pe no horizonte do

    homem representaes fantasmagricas, tanto ideolgicas como manifestaes mais

    sensveis, fazendo dele um prisioneiro do mito incapaz de identificar a mudana e o

    novo. Contra essa concepo linear, Benjamin defende uma histria baseada na ruptura,

    isto , ao invs de um fluxo contnuo, a descontinuidade se torna a marca da histria,

    que, vista dessa forma

    no uma sucesso de fatos mudos, mas uma sequncia de passados oprimidos, que tmconsigo um ndice misterioso, que os impele para a redeno. Essa redeno s possvelse cada presente se reconhece como visado por esse passado que lhe sincrnico, pois docontrrio o encontro marcado entre as geraes atuais e passadas no se realiza, e as vozesque ecoam do fundo dos tempos, ignoradas pelo presente, emudecem para sempre (Idem: 43).

    Em suma, a filosofia da histria benjaminiana tem como objetivo pr lado a lado o

    presente e o passado, para que bem prximos, um dilogo possa ser efetuado e as vozes

    passadas sejam ouvidas e atualizadas pelo e para o presente. So inegveis os proveitos

    dessa virada epistemolgica, porque ela abre uma infinidade de possibilidades de

    investigao e compreenso do passado e do presente, e com isso, multiplica os

    caminhos pelos quais o conhecimento pode ser construdo. Imbudos por esse

    pensamento, passemos para a leitura do texto de Coetzee, a partir da discusso de

    Elizabeth e Blanche, cujos momentos altos devemos destacar para uma efetiva

    compreenso.

    Aps o discurso na universidade, seguiu-se um almoo, durante o qual um

    caloroso debate aconteceu, girando em torno das palavras de Blanche. Ao voltarem

    ambas para o hotel, todo o ocorrido inquieta Elizabeth, que se pergunta se aquela

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    hostilidade de Blanche com as humanidades no seria dirigida a ela. Uma nova

    discusso comea. A crtica de Blanche se dirige ao movimento humanista, que,

    segundo argumenta, teria o helenismo como nica alternativa ao cristianismo, para o

    estabelecimento de uma boa vida. O problema para ela repousa na secularizao

    caracterstica daquele movimento: E dessa forma revelam-se [as pessoas do almoo]

    verdadeiros seguidores de seus ancestrais humanistas. Que ofereciam uma viso secular

    da salvao. O renascimento sem a interveno de Cristo. Trabalhando apenas o

    homem (p. 150-1).

    No dia seguinte, Elizabeth visita o hospital no qual a irm trabalha, a capela do

    hospital e tambm o ateli de um escultor, onde a personagem fica intrigada ao ver que

    o trabalho do arteso se resumia em reproduzir, insistentemente, uma nica figura: a de

    Jesus Cristo crucificado, a representao de um homem em agonia. Isso suscita uma

    discusso em torno da cultura grega e do cristianismo, pois Elizabeth, no contendo a

    inquietao diante do que considera obsesso pela figura gtica e feia da

    crucificao, inquire sua irm:

    Por que um Cristo morrendo em contores em vez de um Cristo vivo? Um homem nafora da idade, de trinta e poucos anos: o que voc tem contra mostrar esse homem vivo emtoda a sua beleza viva? E, j que estamos nisso, o que voc tem contra os gregos? Osgregos nunca fariam esttuas e pinturas de um homem nos extremos da agonia, deformado,feio, para depois se ajoelharem na frente dessas esttuas em adorao (p. 157).

    Partindo da crtica escolha da Igreja ocidental pela imagem em questo,

    Elizabeth retoma a polmica anterior relacionada cultura da Antiguidade Clssica,

    contrapondo assim os valores desta poca ao perodo medieval da histria europia, no

    que ele tinha de retrgrado e pobre. Mais frente, a personagem diz: Estou

    perguntando o que voc, voc, pessoalmente, tem contra a beleza. Por que as pessoas

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    no podem olhar para uma obra de arte e pensar:Isto o que ns, como espcie, somos

    capazes de ser, isso o que eu sou capaz de ser (p. 157-8). E logo em seguida: Se tem

    de importar a Europa para a frica, no seria melhor importar os gregos? (p. 158). A

    indignao da protagonista est voltada para a recusa da tradio crist catlica de

    explorar as virtualidades de padres estticos como os da Antiguidade Clssica e, por

    conseguinte, da Renascena, em favor de uma histria focada no sofrimento, na morte e

    na promessa de redeno do homem pela ao divina.

    Blanche contra-argumenta recuperando os primeiros momentos de contato entre

    os europeus e a populao da Zululndia. Segundo ela, quando os britnicos

    conheceram o povo zulu, apresentaram a cultura grega a eles como um modelo do tipo

    de povo que deviam ser, que podiam ser. Receberam a oferta e recusaram. Em vez

    disso, foram procurar em outra parte do mundo mediterrneo. Escolheram ser cristos

    (p. 159). O fundamento dessa recusa aos valores dos gregos, de acordo com Blanche,

    est na sofrida realidade africana, isto , as condies adversas de vida do povo

    africano: a realidade de agora e a realidade do futuro at onde podemos vislumbrar.

    E por isso que o povo africano vem igreja ajoelhar diante de Jesus na cruz, as

    mulheres africanas sobretudo, que tm de suportar o peso da realidade (p. 159-60).

    Nesse ponto a discusso acaba. Aps uma visita igreja de Blanche, onde sente-se

    mal e desmaia, Elizabeth despede-se da irm com o sentimento de ter perdido umabatalha para ela. A argumentao de Blanche, somada experincia religiosa, parecem

    ter desarmado a combativa escritora, que parte com uma amargura no corao por ser

    talvez a ltima vez que v a irm, mas tambm pela sensao de ter aprendido, como

    suspeitara no incio, uma lio. Diz Blanche no momento da despedida:

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    Voc apostou num perdedor, minha querida. Se tivesse colocado seu dinheiro num outrogrego, ainda teria uma chance. Orfeu em vez de Apolo. O xtase em vez do racional.Algum que muda de forma, muda de cor, de acordo com o ambiente. () Mas voc nofez isso, e perdeu. Foi atrs dos gregos errados, Elizabeth (p. 163).

    Os trechos aqui destacados tm a finalidade de deixar bem explcitas as posies

    conflitantes de cada uma das personagens, assim como o encaminhamento ondulante e

    complexo do debate travado. Ondulante porque Coetzee confere a mesma fora lgico-

    argumentativa para todos os personagens. Dessa forma, a narrativa em parte constitui-se

    de um debate com momentos altos e baixos para cada plo envolvido, sem contudo

    diminuir a profundidade da abordagem temtica e o alto nvel da reflexo,

    caractersticas do autor, como observa Lucia Helena (2006: 157), sobre o romance em

    questo e outros dois ttulos de Coetzee, Vida e poca de Michael KeDesonra: Todos

    eles recusam as explicaes fceis, as anlises ligeiras, e sublinham que preciso

    elaborar uma provocao (e resposta, por que no?) artstica que tome a cargo discutir

    formas de representao alm de um sociologismo primrio.Todo o captulo exemplifica, a seu modo, a afirmao acima, na medida em que o

    autor lana uma avaliao crtica sobre os valores de vrias pocas da Antiguidade

    Clssica at aos dias atuais , sem contudo, cair no saudosismo ou na defesa exacerbada

    de um ponto de vista ou de outro. Essa avaliao constitui-se, na verdade, de uma

    complexa provocao de carter histrico-filosfico, tanto para o leitor como para a

    prpria personagem, pois ambos se veem num redemoinho de proposies instigantes a

    exigir uma reflexo sria sobre o passado e o presente.

    Consoante a isso, vemos como os dias na frica renderam uma experincia sui

    generispara Elizabeth Costello, que, um ms depois, ainda encontra-se inquieta sobre

    as colocaes de sua irm. Exemplo de um aspecto muito expressivo desta personagem

    idosa e de pouco vigor fsico, exatamente porque sua fora reside alhures. Possuidora de

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    uma perspiccia aguda que no deixa nada passar despercebido, aliada a um carter

    guerreiro, a todo instante ela d mostra de sua caracterstica reflexiva e de seu esprito

    crtico, colocando no horizonte de reflexo do leitor, o papel do intelectual na sociedade

    contempornea, com seu credo do trabalho e do consumo.

    Como fruto dessa inquietao, Elizabeth escreve uma resposta Blanche em

    forma de carta, na verdade, apenas uma resposta a si mesma. Os momentos vividos do

    reencontro com a irm e, mais especificamente, as colocaes tericas desta, so um

    passado muito prximo imobilizado em seu consciente, um passado tornado em objeto

    de ruminao, fazendo com que a fronteira com o tempo presente seja tornada tnue,

    sendo plausvel considerar esses momentos como ainda pertencentes ao presente da

    personagem se no na perspectiva temporal rigorosa, pelo menos no tocante a

    influncia sobre Elizabeth. Alm disso, esses momentos so tambm tornados em

    mnada, pois como assevera Walter Benjamin (1985: 231):

    Pensar no inclui apenas o movimento das idias, mas tambm sua imobilizao. Quando opensamento pra, bruscamente, numa configurao saturada de tenses, ele lhes comunicaum choque, atravs do qual essa configurao se cristaliza enquanto mnada. O materialistahistrico s se aproxima de um objeto histrico quando o confronta enquanto mnada.

    Com efeito, a experincia vivida pela romancista uma configurao saturada de

    tenses que lhe ocupam o pensamento, que cristaliza essa configurao numa mnada

    para deix-la sempre prxima, redundando em consequncias que veremos mais

    frente. A citao acima faz parte da dcima stima tese de Benjamin, do conjunto

    intitulado Sobre o conceito de histria, j aludido por Sergio P. Rouanet no incio

    desta parte, e do qual outras teses se aproximam da anlise que objetivamos aqui. Na

    terceira tese, por exemplo, lemos:

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    O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, levaem conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdidopara a histria. Sem dvida, somente a humanidade redimida poder apropriar-setotalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado citvel, em cada um dos seus momentos (Idem: 223).

    Afirmar que o que aconteceu no pode se perder para a histria, ir na contramo

    de um conceito de histria que no se restringe ao tradicional historicismo, mas que,

    inclusive, deita razes no imaginrio popular, como mostram certos ditos: O que

    passou, passou, ou, Passado passado. So falas que denotam um passado que se

    quer perdido, sem a possibilidade de nexo com o presente, um passado morto, numa

    postura oposta atitude da personagem central de Coetzee.

    Na carta-resposta que escreve tendo a irm como destinatria imaginria,

    Elizabeth Costello conta uma situao vivida por ela quando possua quarenta anos de

    idade, envolvendo Mr. Phillips, um amigo de sua me que tinha o hobby de pintar

    aquarelas. Aps passar por uma cirurgia que o deixou com um buraco no pescoo e

    impossibilitado de falar de modo compreensvel, ele permanecia todo o tempo dentro de

    casa, por vergonha. Estimulada por sua me, Elizabeth posa para ele em algumas tardes

    de sbado, porm, em um desses encontros, algo inusitado acontece: ele manifesta o

    desejo de pint-la nua. Ela hesita, mas ao ver o desnimo de Phillips, tira o xale e o

    suti, exibindo o seu colo nu.

    Elizabeth relata essa histria a Blanche por consider-la ligada conversa que

    tiveram sobre os zulus, os gregos e as humanidades. A relao entre esses dois fatos

    apresenta uma lgica prpria, de carter dialtico, que comea a ser desvendada por

    essas palavras: O episdio que estou contando, a passagem na sala de Mr. Phillips, to

    sem importncia em si mesma, me intrigou durante anos; s agora, depois de voltar da

    frica, que acho que consigo explic-la (p. 167). Um episdio acontecido h mais de

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    vinte e seis anos, ele tambm uma mnada permanecida na memria como uma

    incgnita, resgatado pela personagem e posto lado a lado com a experincia na

    Zululndia, num encontro inusitado entre dois tempos, dois lugares distintos,

    relacionado a pessoas distintas, mas, engendrando uma fecundao recproca cujo fruto

    a emergncia de um sentido para o episdio na sala:

    Era to fora do meu jeito de ser. De onde tirei aquela idia?, pensava sempre. Onde aprendiaquela pose, mirando calmamente distncia com o vestido cado em volta da cintura comouma nuvem e meu corpo divino mostra?Dos gregos, entendo agora, Blanche: dos gregose do que geraes de pintores do Renascimento fizeram dos gregos. Sentada ali eu no eraeu, ou no era apenas eu. Atravs de mim uma deusa estava se manifestando, Afrodite ouHera, ou talvez at mesmo rtemis. Eu era uma imortal (p. 167-8).

    Voltando s palavras de Rouanet e cruzando-as com a situao em questo,

    podemos dizer que Elizabeth Costello empreende uma busca de compreenso do ndice

    misterioso que sua atitude passada contm, executando atravs de sua rememorao o

    encontro marcado entre os tempos e, dessa forma, no deixando emudecer a voz que

    ecoa do passado, porm, fazendo-se sensvel ao sentido que brota desse encontro. As

    palavras da personagem no deixam dvidas quanto relao entre os dois fatos

    situados em tempos distantes e sem nenhuma conexo. A discusso tida com Blanche,

    com resultado favorvel a esta, fez com que Elizabeth exercitasse o pensamento e a

    memria com o intuito de encontrar uma resposta s proposies da irm. Sua

    concluso est alicerada no legado cultural da Antiguidade Clssica e da Renascena,

    no apenas concretizado nas obras de arte produzidas pelos artistas dos perodos, mas

    tambm, por um outro legado, imaterial e entranhado no imaginrio coletivo em forma

    de valor e sublimao. Da a comparao com as deusas da mitologia grega, pois ao

    posar em parte despida para Phillips, a prpria personagem sublimada pelo seu ato.

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    Para ilustrar isso, ela evoca a obra Sainte Famille, do pintor renascentista

    Correggio, na qual a figura de Maria puxa o mamilo com dois dedos e oferece-o ao

    menino em seu colo, uma pintura que alia a beleza artstica temtica crist. E que,

    segundo sua argumentao, serve para mostrar a existncia de uma mstica em torno do

    corpo da mulher, especificamente, em torno dos seus seios, uma mstica relacionada

    gerao da vida, que alcanaria os ares da adorao: A Zululndia tem alguma coisa

    comparvel com esse momento, Blanche? Duvido. No com essa embriagante mistura

    de exttico e esttico. S acontece uma vez na histria da humanidade, na Itlia

    renascentista, quando imagens e ritos cristos imemoriais invadem o sonho de Grcia

    antiga dos humanistas (p. 169).

    Desse jeito, a protagonista rebate o argumento da irm que defendia uma imagem

    de Cristo em agonia, porque estaria mais prxima do sofrimento do povo zulu, e d a

    dose de xtase reclamada anteriormente por Blanche, juntamente, como no poderia

    deixar de ser, ao elemento esttico, ao Belo artstico. Obras de arte como a citada seriam

    expresses de humanidade, representaes de tudo aquilo que nos faz ser seres

    humanos: quando eu, imitando Maria, descubro meus seios para o velho Mr. Phillips,

    praticamos atos de humanidade (p. 169). Dessa forma, conclui Elizabeth: As

    humanidades nos ensinam a humanidade. Depois da noite crist de muitos sculos, as

    humanidades nos devolvem nossa beleza, nossa beleza humana. Foi isso que vocesqueceu de dizer. isso que os gregos nos ensinam, Blanche, os gregos certos (p.

    169-170).

    A reflexo empreendida por Elizabeth Costello aponta em mais de uma direo.

    Desejando clarear o seu pensamento, a personagem rememora um episdio de sua vida

    porque ele contm a chave para a rplica s provocaes de Blanche, e, ao mesmo

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    tempo, resulta na compreenso desse mesmo episdio, do que ele continha de

    enigmtico. Uma atitude muito semelhante quela que Benjamin espera do historiador

    materialista, que a partir do processo dialtico, ponha em dilogo o presente e o

    passado, com intuito de apropriar-se legitimamente de ambos, pois para o filsofo o

    presente enquanto momento do despertar o instante em que se deve tomar o passado

    as imagens onricas enquanto imagens dialticas para realizar a sua interpretao tal

    como elas afloram nesse agora (SELIGMANN-SILVA, 1999: 182). Ou seja, o presente

    como ponto de partida para a compreenso do passado.

    No entanto, se a experincia no presente empreendeu um sentido para o seu

    passado prximo, este mesmo passado prximo confere um sentido a um passado bem

    mais distante, num jogo temporal que se faz por saltos. E novamente aqui vislumbramos

    uma aproximao com a filosofia da histria de Benjamin, j que o filsofo ensina que o

    materialista histrico deve arrancar o fato do continuumda histria, fixando-o como

    imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que reconhecido

    (BENJAMIN, 1985: 224). Coetzee, ao construir um texto ficcional cuja temtica central

    a discusso a respeito das humanidades, lana os olhos para os momentos da histria

    imediatamente ligados construo dessa rea do saber.

    Fazendo um painel simblico das imagens temporais lanadas pelo texto literrio,

    vemos que o encontro das irms suscita uma reflexo sobre os valores do Humanismo,que por sua vez visou uma outra poca, o passado mais distante da Antiguidade

    Clssica. Por conseguinte, toda a polmica desenvolvida ao longo da experincia no

    continente africano, leva a protagonista a recuperar uma experincia do seu passado e

    relacion-la aos dois perodos histricos, desenrolando diante do leitor um profcuo

    dilogo entre o tempo presente e os passados, j que se trata, a rigor, de trs momentos

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    que se situam na histria pretrita. Momentos que Coetzee fixa para que no passem

    como relmpagos fugazes, ante a viso deste mundo contemporneo, vidrado que est

    em imagens velozes e simulacros de realidade.

    Afirmar que pelas humanidades aprendemos a humanidade, isto , um sentido

    positivo de humanidade como uma construo a um s tempo coletiva e individual das

    potencialidades do ser humano, ao mesmo tempo acreditar na realizao desse sentido

    no presente, projetando-o do passado para a atualidade. re-inscrever o passado nas

    linhas atuais impedindo-o de se perder no esquecimento, enfim, salvando-o da morte

    para gerar sentidos no presente.

    CONSIDERAES FINAIS

    A leitura empreendida de Elizabeth Costello buscou trazer tona formas

    diferenciadas com que a categoria histria penetra na narrativa, ou seja, de que possveis

    maneiras o romance focaliza a histria. Vimos que o autor detm o seu olhar e sua

    sensibilidade esttica tanto para o passado retomando aquilo que no pode ser

    esquecido quanto para o presente buscando alternativas para os impasses

    contemporneos. As questes levantadas ao longo do captulo analisado mostram a

    relevncia para os nossos dias de se voltar o olhar ao passado, enxergando nelepossibilidades de dilogo com o presente, conforme ensina Benjamin, cuja filosofia da

    histria foi preponderante para que vssemos o intercmbio entre o passado e o presente

    no interior do texto literrio como um contedo em si mesmo a ser destacado, lanando

    proposies significativas e instigantes para o leitor. Isso nos remete escrita de

    Coetzee, cujo texto evoca a imagem de uma floresta mida, densa e cheia de vida, onde

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    cada rocha ou tronco de rvore cado no cho esconde um submundo povoado de

    pequenas criaturas. As palavras desse autor so como essas rochas ou troncos, elas

    guardam consigo um rico e complexo jogo de referncia e sentido, que uma leitura

    ingnua passar longe de perceber. preciso chegar bem perto e levant-las, palavra

    por palavra, para descobrir o que trazem guardado, para ver alm do bvio e do

    aparente. Fica a o nosso convite.

    Recebido em setembro de 2010

    Aprovado em outubro de 2010

    REFERNCIAS

    BAUMAN, Zygmunt. Modernidade lquida. Trad. Plnio Dentzien. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 2001.

    BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de histria. In:______.Magia e tcnica, arte epoltica. Obras completas I. Ensaios sobre literatura e histria da cultura. Trad. SergioPaulo Rouanet, pref. Jeanne Marie Gagnebin. 4aed. So Paulo: Brasiliense, 1985, pp.222-232.

    COETZEE, John Maxwell. Elizabeth Costello: Oito palestras. Trad. Jos RubensSiqueira. So Paulo: Companhia das Letras, 2004.

    EAGLETON, Terry. Depois da teoria. Um olhar sobre os Estudos Culturais e o ps-modernismo. Trad. de Maria Lucia Oliveira. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,2005.

    GAGNEBIN, Jeanne Marie. Prefcio. In: BENJAMIN, Walter. Op. cit. pp. 7-19.

    HELENA, Lucia. Runas do moderno nas fices do ps-moderno: a fico da crise e opensamento trgico. In: Via Atlntica, n. 9. Revista da rea de Estudos Comparados deLiteraturas de Lngua Portuguesa, Departamento de Letras Clssicas e Vernculas daFFCLCH da USP, 2006: pp. 139-162. Disponvel em:http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via09/Via%209%20cap11.pdf.Acesso em 29/06/2008.

    ROUANET, Sergio Paulo.As razes do Iluminismo. So Paulo: Companhia das Letras,1987.

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    SELIGMANN-SILVA, Mrcio.Ler o livro do mundo. Walter Benjamin: romantismo ecrtica potica. So Paulo: Iluminuras, 1999.