Elogio Da Bobagem

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O ELOGIO DA BOBAGEM Alice Viveiros de Castro palhaços no brasil e no mundo  lh ços no br sil e no mundo

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Livro fantástico sobre a Palhaçaria

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    O ELOGIODABOBAGEM

    Al i ce V ive i ros de Cast ro

    palhaos no brasi l e no mundo lh os no b r s i l e no mundo

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    Al i ce V ive i ros de Cast ro

    Palhaos no Bras i l e no Mundo

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    2005 Alice Viveiros de Castro

    Impresso no Brasil / Printed in BrazilFeito o depsito legal na Biblioteca Nacional

    Catalogao na fonte / AVC

    Castro, Alice Viveiros de

    O Elogio da Bobagem palhaos no Brasil

    e no mundo / Alice Viveiros de Castro Rio de Janeiro:

    Editora Famlia Bastos, 2005

    ISBN 85-89853-03-9

    1. Palhaos: Artes circenses 2. Circos Histria I.

    Ttulo. II. Ttulo: Palhaos no Brasil e no mundo.

    CDD - 791.33

    Alice Viveiros de Castro

    Estrada do Contorno, 7 Fazenda da Grama

    27460-000 Rio Claro - RJ

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    Se a alegria faz parte do brasileiro, o circo e sua magia fazem parte da alegria.

    E algum imaginaria um circo sem palhao? Para que no se perca de vista que

    o mundo do circo muito mais srio do que pode parecer primeira vista,

    vale recordar que tampouco houve, nos tempos de antanho, uma Corte sem bufo,

    ou uma feira sem saltimbancos. Ao longo da histria, l estiveram eles

    palhaos, bufes, saltimbancos espalhando a seriedade da alegria. L estiveram e,

    pensando bem, c esto: fazem parte das tradies que perduram.

    Ento, contar a histria do palhao de circo ao longo dos tempos misso rdua,

    de objetivos srios. E, muito em especial, a hi stria do palhao no Brasil.

    Como tudo, ou quase tudo, neste pas de singularidades, o palhao brasileiro vem

    de razes diferentes, e se expressa com linguagem absolutamente pessoal nas diversas

    regies do pas. H desde o animador das pastorinhas ao Catirina do bumba-meu-boi,

    chegando aos palhaos de circo que fizeram, alm de escola, a alegria de geraes.

    Este livro tambm aborda outro aspecto normalmente deixado de lado quando

    se menciona a profisso do palhao: sua funo social, direta e sem disfarce algum.

    So os Doutores da Alegria nos hospitais, os Palhaos sem fronteira nas zonas de

    conflito armado. Enfim, alm de manifestao cultural, profundamente mergulhada nas

    tradies brasileiras, a profisso de palhao se renova e ganha novas responsabilidades.

    Sempre atenta importncia de se documentar e preservar os aspectos maisrelevantes da cultura brasileira, a Petrobras patrocina este projeto.

    Maior empresa do pas e maior patrocinadora das artes e da cultura no Brasil,

    a Petrobras tem, alm de suas responsabilidades empresariais, uma outra,

    que prevalece sobre todas: contribuir para o desenvolvimento do nosso pas.

    Um pas que no conhece, preserva e respeita sua cultura,

    sua identidade, jamais ser uma Nao desenvolvida. Temos essa conscincia.

    E tambm por essa razo, apoiamos iniciativas como esta.

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    In memoriam de

    Oscar Polydoro, Joo Angelo Labanca

    e Julinha

    A meus pais, que me ensinarama dar valor ao que realmente importa

    nessa vida: amor, amizade e festa.

    A meus irmos e sobrinhos,

    cmplices na farra e nas horas difceis.

    Nasa e Faf por tanto,

    e mi Nena, por tudo.

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    INTRODUO 10

    1. PALHAOS SAGRADOS E PROFANOS 16O Riso e a Razo O Riso e o Rito

    Egito China ndia Grcia Os Mimos

    Roma O Santo Palhao

    2. O CMICO NA IDADE MDIA E NO RENASCIMENTO 26O mundo ao contrrio, a festa dos loucos e dos asnos

    Jograis, goliardos, bufes, trejeitadoresOs Bobos da Corte

    Os saltimbancos e as feiras

    Commedia dellarte e a farsa atelana

    Charlates e Prestidigitadores

    A Arte de Tabarin

    3. O CLOWN E O PALHAO DE CIRCO 50Richard Tarlton o clown da rainha

    William Kemp e Robert Armin os clowns de Shakespeare

    O Circo e o palhao de Circo

    Nomes e nomes

    Os espetculos de circo no final dos setecentos e incio dos oitocentos

    O palhao a cavalo e o palhao da cena

    Joe Grimaldi

    A inveno da evoluo dos palhaos

    A lenda do nascimento do augusto

    Foottit e Chocolat o modelo da relao dominadora

    Os Hanlon-Lees e a comicidade fsica

    4. E NO BRASIL? 84Diogo Dias, o primeiro palhao no Brasil

    O Circo no Brasil

    Volantins e Saltimbancos no Novo Mundo

    Os precursores

    O Circo no sculo XIX

    A Barraca do Telles

    indice

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    5.UM JEITO BRASILEIRO DE SER PALHAO 102Em linguagem de preto, surge o palhao cantor brasileiroAlcazar Lirique e a moda das canonetas e couplets

    Os palhaos cantores

    Payadores, o Circo-criollo e Pepe Podest

    6.PALHAOS DE FOLIAS E FOLGUEDOS 116Folias de Reis

    O Velho do Pastoril

    Mateus e Biricos, os cmicos do Boi

    O Palhao nos Mamulengos

    7.GRANDES PALHAOS DO BRASIL 1381. Polydoro2. Alcebades Pereira

    3. Benjamin de Oliveira

    4. Eduardo das Neves

    5. Pomplio

    6. Juan Cardona e os Stuart Teresa, a famlia do Oscarito

    7. Chicharro e todos os Queirolo

    8. Piolin

    9. Pedro Gonalves Dudu, o palhao empresrio.

    10. Arrelia

    11. Carequinha T certo ou no t ?12. Picolino I e II

    8. A FESTA CONTINUA! 204Os palhaos do sculo XXI

    O Teatro redescobre o Circo

    Do lado de c do muro

    Palhaos de Palco

    Xuxu

    So Paulo

    Viva a Arte do Encontro

    Palhaos de Picadeiro

    E a palhaa o que ?

    Palhaos de Hospital e os Doutores da Alegria

    9.A TICA DO RISO 256

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    Per ludum, per jocum Por brincadeira, por prazer

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    INTRODUO

    O PaPalhao a gura cmica plhao a figura cmica por excelncia. Ele a mais enlou-or excelncia. Ele a mais enlou-quecida expresso da comicidade: tragicamente cmico. Tudoquecida expresso da comicidade: tragicamente cmico. Tudoque alucinante, violento, excntrico e absurdo prprio do pa-que alucinante, violento, excntrico e absurdo prprio do pa-lhao. Ele no tem nenhum compromisso com qualquer aparn-lhao. Ele no tem nenhum compromisso com qualquer aparn-cia de realidade. O pcia de realidade. O palhao comicidade pualhao comicidade pura.ra.

    O palhao no um personagem exclusivo do circo. Foi no picadeiro que ele atingiu a plenitude

    e finalmente assumiu o papel de protagonista. Mas o nome palhaosurgiu muito antes do chamado

    circo moderno. Alis, seria melhor dizer os nomes. Uma das grandes dificuldades que a maioria dos

    autores encontra ao estudar a origem dos palhaos est na profuso de nomes que essa figura assume

    em cada momento e lugar. Clown,grotesco, truo, bobo, excntr ico, tony, augusto, jogral, so apenas

    alguns dos nomes mais comuns que usamos para nos referir a essa figura louca, capaz de provocar

    gargalhadas ao primeiro olhar.

    O que nos interessa neste estudo o arqutipo. Esse ser que parece vindo de um outro planeta to

    semelhante ao nosso, essa figura que no ningum que conhecemos e que no entanto reconhecemos ao

    primeiro olhar, no surgiu em um momento definido, foi sendo construda ao longo dos sculos e assumin-

    do papis e formatos diferenciados, tendo como nica funo provocar, pelo espanto, o riso.

    Em portugus temos um nome comum para todas as possveis formas assumidas por essa figura:

    PALHAO. Mais adiante, vamos enfocar essas diferentes facetas e nomes. Agora, no entanto, o que

    queremos ressaltar que ningum tem dvida quando se depara com uma dessas figuras: Este um

    palhao! E no importa se sua cabeleira vermelha e os sapatos enormes ou se, ao contrrio, ele vesteum sbrio terno e est sem nenhuma maquiagem. Identificamos um palhao no apenas pela forma,

    mas principalmente pela sua capacidade de nos colocar, como espectadores, num estado de suspenso

    e tenso que, em segundos - sabemos de antemo -, vai explodir em risos.

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    Imagino que o primeiro palhao surgiu numa noite qualquer em uma indefinida caverna enquanto

    nossos antepassados terminavam um lauto banquete junto ao fogo. Em volta da fogueira, numa roda de

    companheiros, jogavam conversa fora. Comentavam a caada que agora era jantar e falavam das arti-

    manhas usadas, dos truques e da valentia de cada um. quando um deles comea a imitar os amigos e

    exagera na atitude do valento que se faz grande, temerrio e risvel na sua nsia de sobrepujar a todos.

    E logo passa a representar as momices do covarde, seus cuidados para se esquivar do combate, sempre

    exagerando os gestos, abusando das caretas, apontando to absurdamente as intenes por trs de cada

    ao e o ridculo delas que o riso se instala naquela assemblia de trogloditas. E todos descobrem o prazer

    de rir entre companheiros, de rir de si mesmo ao rir dos outros...Esse nosso personagem imaginrio sobreviveu a todas as ca-Esse nosso personagem imaginrio sobreviveu a todas as ca-tstrofes naturais, inclusive s construdas pelos homens. Estevetstrofes naturais, inclusive s construdas pelos homens. Estevepresente nas batalhas, nas festas e nos rituais mais sagrados,presente nas batalhas, nas festas e nos rituais mais sagrados,sempre cumprindo o mesmo papel: provocar o riso.sempre cumprindo o mesmo papel: provocar o riso.Muitos estudos j foram feitos sobre este fenmeno: o riso. O Homem o nico animal que ri

    - disse Aristteles. Mas por qu? Qual a funo do riso? No vamos aqui nos dedicar a essa discusso,

    no esta a nossa questo. Rimos porque bom e isso basta. O prazer tem sentido em si mesmo,

    no precisa de explicao. E a talvez esteja um dos pontos mais importantes da figura do palhao: sua

    gratuidade. Sua funo social fazer rir e dar prazer. Ele no descobre as leis que regem o universo, mas

    nos faz viver com mais felicidade. E esta sua incomparvel funo na sociedade. Enquanto milhes se

    dedicam s nobres tarefas de matar, se apossar de territrios vizinhos e acumular riquezas, o palhao

    empenha-se em provocar o riso de seus semelhantes. Ele no se dedica s grandes questes do esprito

    nem s altas prosopopias filosficas; gasta seu tempo e o nosso com... bobagens.

    O palhao o sacerdote da besteira, das inutilidades, da bobeira... Tudo o que no tem importncialhe interessa. corriqueira a cena em que o palhao vai fazer alguma coisa muito sria e importante

    - como, por exemplo, tocar uma pea de msica clssica - e acaba nos entretendo com algum detalhe

    absolutamente insignificante. o caso do grande Grock tocando violino: ele chega, cumprimenta

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    a platia, posiciona o instrumento e, num gesto de pura futilidade, frescura e bobeira, atira para o alto

    o arco do violino esperando peg-lo no ar. Mas ele falha. Contrariado com o detalhe, esquece-se do

    principal e se dedica a tentar pegar o arco no ar. E ento, hipnotizados, nos esquecemos do concerto e

    passamos um tempo enorme nos deliciando com aquele tonto que no consegue pegar o arco do violino

    no ar! Bobagem pura, mas um momento mgico e inesquecvel...

    Durante milnios e at nos dias de hoje valorizamos a sabedoria e a capacidade para vencer,

    seja l o que isso signifique. Por isso, a apologia do trabalho, da moderao, do equilbrio. Grandes

    valores, sem dvida, mas a vida no s isso: existe a farra, a festa, o prazer! E assim o homem vai

    vivendo, equilibrando-se entre os contrrios, compreendendo a necessidade de ganhar o po com o

    suor do seu rosto, mas criando mecanismos para escapar das presses cotidianas, reagir aos exage-

    ros dos puritanos e se contrapor tristeza e violncia do mundo.

    Millr Fernandes complementou Aristteles dizendo que o homem o nico animal que ri e rindo

    que ele mostra o animal que . Pronto. A principal funo do riso nos recolocarA principal funo do riso nos recolocardiante da nossa mais pura essncia: somos animais. Nem deusesdiante da nossa mais pura essncia: somos animais. Nem deusesnem semi-deuses, meras bestas tontas que comem, bebem, amamnem semi-deuses, meras bestas tontas que comem, bebem, amame lutam desesperadamente para sobreviver. A conscincia disso e lutam desesperadamente para sobreviver. A conscincia disso que nos faz nicos, humanos.que nos faz nicos, humanos.

    A frase de Millr nos traz tambm outras leituras. Existe tica no riso? Rimos de qualquer coisa? E onde

    fica o politicamente correto to em voga nos nossos tempos? Piadas sexistas, racistas, excludentes, refor-

    adoras de preconceitos provocam o riso? Claro que sim. O ser humano uma besta, no mesmo?

    Este livro pretende contar a histria desse personagem fascinante e ajudar os futuros palhaos a

    compreenderem melhor as imensas possibilidades do seu papel social. Que cada um se sinta vontade

    para realizar suas escolhas. Que riso provocar? Rir do qu? Com quem? Reservamos um espao todo

    especial para a tica no final deste livro. Compreendendo melhor o que um palhao poderemos esco-

    lher, com mais conscincia, o palhao que queremos ver e aquele que queremos ser.

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    P A L H A O S S A

    G R A D O S E P R O F A N O S

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    PALHAOS SAGRADOS E PROFANOS - O RISO E OS RITOS

    O Riso e a Razo

    Quando Aristteles diz que o homem o nico animal que ri est chamando a ateno para o quanto

    a capacidade de rir nos aproxima dos deuses. Se s o homem ri porque o riso est ligado ao esprito

    e razo, capacidades prprias do humano, portanto o riso nos faz superior aos outros animais. Rimos

    com o esprito, com a inteligncia. Como bem sabe aquele que ri por ltimo porque demorou a entender

    a piada, preciso compreender para achar graa.

    Amigos riem juntos de histrias que s tem graa para eles mesmos. Quem no faz parte do grupo,

    ao ouvir as mesmas histrias esboar apenas um leve e educado sorriso: Lembra daquela vez em que

    o professor de matemtica pegou o Luca colando e ele disse que era a lista de compras da me dele?

    E os amigos que estudaram juntos morrem de rir relembrando momentos s deles. Quem no estudou

    naquela escola no consegue achar graa alguma, a no ser que se lembre de suas prprias aventuras

    escolares. Pois comigo aconteceu uma parecida..... Henri Brgson, no seu livro clssico O Riso, conta

    a histria do ingls assistindo a um sermo do qual ria toda a congregao. Por que voc no ri?,

    pergunta algum ao seu lado. Porque no sou desta parquia, responde o ingls. E est explicado.

    O riso pressupe uma relao de cumplicidade e o conhecimento de inmeras e sutis informaes

    prvias. possvel rir em qualquer lugar: num velrio, num batizado, dentro da cela de uma priso. Mas

    o riso s se instala quando faz sentido para o grupo. Qualquer contador de piadas em festinhas sabe quepode errar se no estiver muito atento ao ambiente. A mesma piada pode ser um sucesso ou se trans-

    formar na mais constrangedora gafe. Temos um ditado - no fale de corda na casa de enforcado- que

    exemplifica bem esta questo. Da mesma maneira no se ter sucesso ao contar uma piada poltica ou

    histrica para quem no conhece os personagens envolvidos, no entende de poltica nem de histria.

    Ter que explicar a piada das coisas mais sem graa que pode acontecer a um cmico...

    O riso sempre o resultado de complexas associaes e conexes cerebrais, mesmo quando rimos

    de uma simples careta. Na verdade, a careta capaz de provocar risos nunca uma simples careta.

    Se rimos de algum com a cara propositalmente deformada porque nosso crebro capaz de compar-la

    a um rosto harmonioso e podemos compreender e imaginar os movimentos necessrios para chegar queladeformao. Ela pode nos lembrar um animal ou algum que conhecemos, ou podemos ainda estar nos

    deliciando com a capacidade de transformao facial do outro. interessante que nem toda careta leva

    ao riso. Algumas so bvias demais, outras esto sendo feitas em momento no apropriado. preciso

    uma grande conjuno de fatores para que possamos rir de uma simples careta.

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    O Riso e o Rito

    O palhao est presente em todas as culturas, e a mais antiga expresso do personagem a quese faz presente nos rituais sagrados. Desde o incio dos tempos, o riso foi e ainda utilizado como

    elemento ritual para espantar o medo, especialmente o medo da morte.

    O riso surge nos momentos mais dramticos, como uma vlvula de escape nas tenses do grupo. Os an-

    tigos perceberam isso e o riso sempre fez parte de rituais sagrados. Assim, em diferentes culturas encon-

    tramos figuras de mascarados que do gritos e danam danas exageradas, provocando espanto, medo

    e, por isso mesmo, o riso. Algo prximo ao medo que as crianas pequenas sentem do palhao. Medo

    e atrao, medo e fascinao: tudo junto. Esse era o mesmo sentimento provocado pelos mascarados

    nos rituais de morte e ressurreio em diferentes culturas.

    O diabo - cone do Mal - assume inmeras vezes um papel cmico. Ridicularizar o Mal uma dasmelhores formas de venc-lo... O mesmo se d com o medo, com o nojo e com o terror da opresso.

    Chaplin fez em O Grande Ditadora melhor crtica a Hitler e a todos os ditadores. Na poca, houve

    quem o criticasse por estar simplificando uma figura to terrvel, mas ele estava cumprindo seu

    papel de palhao: reduzindo o Mal sua inerente estupidez.

    Na comicidade, a figura do grandalho grosseiro e amedrontador exagerada a tal ponto que

    comeamos a perder o medo dele. Meu pai contava uma piada de um cara grande, feio e forte que

    todo dia chegava para um aougueiro fracote e bradava: Me d o meu pedao de carne, seno...!

    E deixava no ar a terrvel ameaa. Os dias se sucediam e a mesma cena se repetia. Me d o meu

    pedao de carne, seno...! At que um dia o pobre e franzino aougueiro se enche de coragem epergunta: Seno, o qu? E o cara grande, feio e forte responde: Seno eu no como carne hoje.

    Como ter foras para encarar o Mal? Como ter foras para fazer a pergunta que liberta? O riso, ao

    apontar o ridculo do outro e de si mesmo, foi a resposta do homem para esse desafio desde o incio dos

    tempos. Medo da chuva? Do trovo? Das doenas? Da morte? Vamos rir dos nossos medos... A morte

    vai continuar matando, mas no vamos deixar que o medo dela nos mate em vida.

    Em inmeras pocas e culturas encontramos a prtica de rituais em que se imitam coxos, cegos e

    leprosos, provocando a hilariedade dos participantes. Crueldade? Falta de respeito? No, apenas uma

    maneira das sociedades primitivas se protegerem do medo e do mal. Trao tpico da bufonaria, a re-

    presentao de aleijes fsicos e morais era feita pelos Astecas em grandes cerimnias em que o grupotinha ataques de riso com imitaes de enfermos e tambm de comerciantes e ilustres cidados no

    muito honestos. O sanguinrio invasor Cortez ficou to impressionado com os palhaos corcundas e

    anes que encontrou na corte de Montezuma, que resolveu levar dois deles como parte do tesouro com

    que presenteou o papa Clemente VII na volta de sua expedio. Na cultura iorub as seis mscaras

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    da cerimnia Egun-gun so um corcunda, um albino,

    um leproso, um prognata, um ano e um aleijado,figuras presentes entre os bufes de todos os tempos.

    Os ndios norte-americanos tm a figura dos heyokas,

    cuja principal funo a de lembrar a tribo o absurdo

    dos comportamentos humanos e a necessidade de no

    levar as regras demasiadamente a srio. Um heyoka

    monta no cavalo ao contrrio, a cabea voltada para

    o rabo do animal. Quando toda a tribo avana numa

    batalha, o heyokacorre na direo oposta. Ele dorme de

    dia e fica acordado de noite. Nas cerimnias rituais roda

    em sentido contrrio ao de toda a tribo. Quando algum

    sonha com um raio, no dia seguinte deve tornar-se um

    heyoka-sob o risco de morrer at o anoitecer daquele

    mesmo dia. O nome heyoka a inverso do grito de

    guerra dos ndios Plain: Hoca-hey!Os calmos e controlados monges budistas tibetanos

    tm a figura de Mi-tshe-ring - o velho bufo sbio -

    que atrapalha todas as solenes cerimnias religiosas,

    incapaz de se controlar e de fazer silncio. Ele o no-

    zen em tudo. Na ndia, encontramos figura semelhanteno Rotgs-Ldan, parlapato por excelncia que fala sem

    parar toda espcie de bobagem e nos ajuda a compre-

    ender melhor o porqu do voto de silncio dos yogues.

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    Uma das mais antigas profisses...

    No incio, fazer palhaadas era uma atividade espordica e o palhao uma figura presente apenasnos rituais. Mas, pouco a pouco, os que se destacavam foram ficando famosos, recebendo convites para

    apresentaes especiais e acabaram por ter uma profisso: cmico. Ricos e poderosos se sentiam mais

    ricos e mais poderosos se pudessem ostentar o seu palhao exclusivo, garantindo risos e diverso a seus

    convidados. E mesmo os que no eram nobres gostavam de ter um palhao nos momentos especiais:

    casamentos, batizados e festas para os deuses... tudo pedia a presena dessas figuras que garantiam

    a alegria da festa.

    Do que riam os antigos? Provavelmente das mesmas coisas de que rimos at hoje: de uma figura

    excntrica, do inesperado, de imitaes de figuras conhecidas, de crticas aos acontecimentos do

    momento. Em todas as cortes da Antiguidade encontramos referncias a bufes e bobos. Os termosvariam, mas no sua funo: fazer rir.

    Egito

    Os faras, tal qual os nobres medievais, no viviam sem um bufo ao seu lado. Parece que os deuses

    na terra, que exerciam um poder de vida e morte sobre todos os seus sditos, adoravam o contraste de

    ter a seus ps algum autorizado a contradizer e ridicularizar o prprio fara. Devia ser muito difcil tal

    ofcio, pois nem sempre os poderosos aceitavam bem as brincadeiras e o castigo vinha rpido e definitivo:

    a morte. Os mais hbeis eram considerados verdadeiros sbios, conseguindo manter o sutil equilbrio dedivertir sem se comprometer muito. Como os bufes medievais, os palhaos das cortes egpcias eram, em

    sua maioria, anes ou corcundas. A deformidade lhes colocava em posio de inferioridade, o que facili-

    tava a aceitao de seu comportamento ousado. Afinal, o que vem de um ser to desprezvel no deve

    ser levado a srio, s uma piada....

    O bufo mais famoso em Tebas foi Danga, pigmeu que alegrava o corao do soberano. No sabe-

    mos nada sobre as suas piadas, mas devem ter sido boas o bastante para que seu nome seja lembrado h

    4 mil anos...

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    China

    A China tem o mais antigo personagem cmico ainda em atividade: o Macaco da pera chinesa.Tal qual um Arlequim, o Macaco, atravs de suas trapalhadas, responsvel por corrigir a histria des-

    mascarando o Mal e premiando as boas intenes. Mas l tambm os Imperadores no dispensavam a

    presena de um bufo para alegrar o palcio. A histria conservou o nome de Yu Sze, bufo do Impera-

    dor Shih Huang-Ti, que no ano 300 A. C. promoveu uma reforma completa na Grande Muralha. O traba-

    lho era intenso e realizado em condies to adversas que milhares de trabalhadores morreram de fome

    e frio. O Imperador insistiu em continuar a obra a todo custo e cismou que era preciso pintar a muralha

    em toda sua extenso. nesse momento que Yu Sze entra para a histria. No sabemos exatamente que

    cena ele fez, mas graas a sua representao de como ficaria a China com a morte de mais trabalhado-

    res, o Imperador suspendeu a pintura da muralha e o palhao Yu Sze virou um heri nacional.

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    ndia

    O teatro indiano uma das formas dramticas mais antigas do mundo. O drama snscrito teatra-

    lizava as grandes sagas picas hindus, como o Mahabharatae o Ramayana. O personagem cmico

    Vidusaka no aparece nas histrias originais, mas fundamental no momento de sua transcrio

    para a cena. Vidusaka o servo do heri mtico que, com suas intervenes cmicas, ajuda o povo

    a compreender todo o enredo. Ele o nico a falar em prakr it, o dialeto das mulheres e das classes

    inferiores, ajudando uma significativa parcela da audincia que no falava o snscrito - lngua dos

    deuses e dos reis - a acompanhar o enredo.

    Vidusaka um careca nanico, quase ano, de dentes proeminentes e olhos vermelhos. Criado fiel

    ao patro, um comilo, beberro, desajeitado e facilmente enganado. Um de seus versos favoritos

    : Abenoados se jam os que esto embriagados de bebida, abenoados os bbados de bebida, aben-oados os encharcados de bebida e abenoados todos os que esto afogados na bebida!

    Constantemente Vidusaka aparece acompanhado de outro personagem cmico: Vita. E quando os

    dois se juntam formam uma das mais antigas duplas de cmicos que se conhecem. A juno de um

    malandro sagaz Vita - com um estpido idiota Vidusaka - uma das mais felizes combinaes

    da comdia, sendo encontrada em todas as culturas, em todos os tempos.

    Da ndia nos vem ainda a exemplar histria de Birbal, o bufo do Imperador Akbar, narrada no Akbar

    Namz, a biografia de Akbar. Numa noite de tdio o Imperador d um tapa no bufo. Um tapa bem estalado,

    no meio das bochechas, sem motivo nenhum. Imediatamente Birbal se vira para o nobre que estava mais

    prximo e lhe d um tapa igual ao que recebeu. Parece que o nobre era de fora, no conhecia muito bem osrituais da corte e, no sabendo que atitude tomar, fica alguns segundos sem ao at que resolve dar um

    tapa no convidado mais prximo, que imediatamente passa o tabefe adiante. A coisa se estende por toda

    a corte, cada um recebendo um tapa e esbofeteando a pessoa seguinte. Nessa mesma noite, a mulher do

    Imperador lhe prega na cara um belo tapo. Akbar j ia reagir quando a mulher explica: um jogo. Voc

    recebe um tapa e passa adiante. A nica regra que no se pode bater na pessoa que lhe bateu, cada um

    bate numa outra pessoa. Como foi voc quem comeou, agora o crculo se fechou, o ciclo se cumpriu...

  • 5/24/2018 Elogio Da Bobagem

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    Grcia

    A Grcia herdou de outros povos a figura dosgelotopoioi- os que fazem rir. Havia os que trabalhavamem espetculos pblicos e os que frequentavam a mesa dos ricos e ossymposiunsdos filsofos. Hiplico

    faz uma descrio interessante de uma dessas reunies em que se discutia alta filosofia, bebia-se muito

    e assistia-se a espetculos especiais:

    Ento, entram as tocadoras de flauta, as cantoras e vrias originrias de Rodes, toca-Ento, entram as tocadoras de flauta, as cantoras e vrias originrias de Rodes, toca-doras de sambuca. Essas moas me pareceram completamente nuas, mas alguns a r-doras de sambuca. Essas moas me pareceram completamente nuas, mas alguns afir-maram que elas vestiam tnicas...maram que elas vestiam tnicas... Depois, entraram danarinas itiflicas, malabaristas,Depois, entraram danarinas itiflicas, malabaristas,mulheres nuas que faziam toda sorte de equilibrismo com espadas e lanavam fogo pelamulheres nuas que faziam toda sorte de equilibrismo com espadas e lanavam fogo pelaboca... Durante esse tempo, chegara o palhao Mandrgenes, um descendente, ao queboca... Durante esse tempo, chegara o palhao Mandrgenes, um descendente, ao quese diz, do clebre palhao ateniense Estrato. Fez-nos rir muito com suas brincadeirasse diz, do clebre palhao ateniense Estrato. Fez-nos rir muito com suas brincadeirase, depois, danou com sua mulher, que tinha mais de oitenta anos. (Hiplico,e, depois, danou com sua mulher, que tinha mais de oitenta anos. (Hiplico, Festa deFesta deCaramosCaramos, citado por Ateneu, IV, 129-130), citado por Ateneu, IV, 129-130)

    Os gregos tinham ainda a figura dos parasitas . Esta palavra no tinha o sentido pejorativo que tem

    hoje. Parasita significava conviva, aquele que alegrava um banquete divertindo o anfitrio. No incio,

    o termo se referia ao sacerdote que participava de um banquete dedicando-o aos deuses, mas acabou

    sendo usado para todos os convidados encarregados da diverso, fossem eles palhaos ou filsofos.

    A histria guardou o nome de Philipos, exmio imitador que arrancava gargalhadas de todos. Scrates

    tentou cal-lo, mas o parasita imitou-o com tal perfeio e graa que quem teve que se calar foi o filsofo.

    Outra figura que sofreu na mo dos cmicos foi Hrcules, o semi-deus, retratado como um bruta-montes burro e incapaz de compreender pensamentos mais sutis. Em algumas comdias de Aristfa-

    nes percebe-se que o autor deixava espao no enredo para as improvisaes dos palhaos especiali-

    zados em ridicularizar Hrcules.

  • 5/24/2018 Elogio Da Bobagem

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    Os mimos

    O teatro comea na Grcia com as peas curtas representadas pelas trupes ambulantes, vindasda regio drica. Temos notcias da presena desses grupos em Esparta h, pelo menos, 2.700 anos atrs.

    Eram os deikelistai os que mostravam. Estes artistas itinerantes apresentavam um espetculo de varieda-

    des com as cenas cmicas entremeadas de nmeros de acrobacia, malabarismo e funambulismo.

    Os palhaos dricos, assim como as peas curtas que eles apresentavam, so chamados de mimos.

    Hoje o termo associado mmica e pantomima, artista e espetculo sem palavras. No entanto, o ter-

    mo originalmente se referia ao ato de imitar e ao artista que se especializava em imitar tipos caractersti-

    cos e as personalidades da sociedade, que todos reconheciam na cena. Ao contrrio dos mmicos atuais,

    os mimos gregos eram conhecidos por sua capacidade de fazer humor tambm com as palavras.

    Comdia vem do grego komos, nome dado s orgias noturnas nas quais os cavaleiros se entrega-vam loucura, bebendo, danando e amando em nome de Dioniso. Essa seria a origem dos espe-

    tculos dos mestres dricos, com suas imensas barrigas e falos falsos, e seus dilogos cheios de

    referncias sexuais improvisados na hora.

    Os personagens dessas comdias atravessaram os tempos. Vamos encontr-los nas farsas Atelanas,

    em Roma, nas cenas dos saltimbancos, na Commedia dellarte, em Molire e nos picadeiros e praas

    dos dias de hoje...

    Roma

    Todo nobre romano mantinha em casa uma trupe de palhaos anes; dizia-se que ter ano em

    casa trazia sorte. Num mundo que supervalorizava a beleza e a fora fsica, onde todo cidado devia

    lutar e servir ao exrcito, o simples fato de ver algum disforme era uma grande piada. Anes, cor-

    cundas e feios de um modo geral tinham no humor uma possibilidade de sobrevivncia e de ascenso

    social. Essa sociedade to ligada s aparncias recebia com tanta surpresa o fato de que aqueles

    seres desprezados tinham inteligncia, que uma simples resposta bem dada transformava um palhao

    num sbio... Na corte de Augusto fez fama um palhao de nome Gabba, reconhecido como homem

    de esprito, um verdadeiro sbio.

    Cicirrusera o nome que se dava aos bobos, aos tontos que faziam rir por suas trapalhadas e por

    suas figuras desajeitadas e disformes. Deles teriam se originado os bobos da corte.

    Alm destes havia tambm o stupidus: palhao especializado em realizar imitaes, fazendo tro-

    cadilhos e dizendo barbaridades. O stupidususava um gorro de feltro em forma de cone e um traje

    feito de inmeros retalhos multicoloridos, muito semelhante ao do Arlequim.

  • 5/24/2018 Elogio Da Bobagem

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    O Santo Palhao

    Em 287 da era crist, o Imperador Diocleciano grande perseguidor de cristos baixou uma leique deveria ser cumprida imediatamente: todos os cidados deveriam prestar homenagem pblica aos

    deuses pagos. Foi quando um cristo rico e pragmtico acreditou ter encontrado uma sada para ficar

    bem com Deus e com o Imperador. Resolveu contratar o mais famoso dos stupidus, Philemon, emrito

    imitador, para representar uma farsa: ir at o templo, substituindo-o, e l cumprir as obrigaes com

    os deuses em seu nome. O palhao disfarou-se com perfeio e j ia comear seus rituais quando, de

    repente, d um grito: No o farei! Todos se espantam, e imediatamente ele reconhecido. Algum

    rindo diz: Philemon, ostupidus! E logo todo o templo comea a rir da mais nova piada do palhao.

    Mas no, no era uma piada. Philemon recebera a graa divina e acabara de se converter. Tomado pela

    f no Deus nico, continua gritando que jamais prestaria homenagem aos falsos deuses. Preso e tortu-

    rado para que abjurasse de sua recente f, Philemon resiste e termina sendo martirizado e executado.

    Mais tarde vira So Filomeno, santo e mrtir da Igreja, protetor dos msicos, dos comediantes e dos

    palhaos, festejado no dia 1- de novembro.

    Essa , praticamente, a mesma histria de So Gensio. Tambm palhao, igualmente martirizado

    por Diocleciano no ano de 303. Numa festa, o palhao Gensio resolve fazer um deboche do batismo

    cristo, mas na hora em que seu comparsa, num arremedo do sacramento, lhe unge com o leo e diz

    as palavras sagradas, eis que se d o milagre: Gensio se converte e declara para todos sua f na dou-

    trina do Cristo. Mesmo ameaado, no renega suas convices e acaba condenado s feras no Circo.

    Gensio, o palhao santo, festejado em 25 de agosto, padroeiro dos atores, palhaos, advogados,

    epilticos e vtimas de torturas.

  • 5/24/2018 Elogio Da Bobagem

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    O

    C

    M I C O

    N A I D A D E M

    D I A E N O

    R E N A S C I M E N T O

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    O CMICO NA IDADE MDIA E NO RENASCIMENTO

    Quando o Imprio Romano se torna cri sto os artistas sofrem muito, especialmente os artistas do riso

    e das diverses em geral. Fundamentalistas no costumam curtir os prazeres mundanos...

    E tudo fica pior ainda com a queda do Imprio Romano do Ocidente. Comea a Idade Mdia, as cidades

    se desestruturam, o poder central desaparece e os artistas viram bandos itinerantes, apresentando-se nos

    castelos, em feiras e festas de aldeia. Durante muitos sculos, s teremos notcias de espetculos religiosos

    os Mistrios medievais e de trupes itinerantes alegrando banquetes da nobreza e se exibindo nas

    cidades e aldeias durante as festas e as feiras.

    Conhecer melhor o humor medieval, compreender como no auge da religiosidade no seio do

    mais intenso fundamentalismo o humor explode em festa, escrnio e gargalhadas colossais, fun-

    damental para o estudo do palhao tal como o conhecemos hoje.

    A Europa medieval preciso recordar que falamos de um perodo de mil anos complexa e

    muito diversa daquela antiga imagem de era das trevas. A Idade Mdia durante muito tempo foi

    vista como um perodo em que pouco ou nada aconteceu, em que a humanidade viveu imersa na mais

    profunda ignorncia, hibernando at ser redimida pelas luzes do Renascimento. Muito desta viso

    preconceituosa e simplista foi criada pelos historiadores do sculo XIX, fascinados por viverem no

    que consideravam o pice da histria, os tempos modernos, cheio de mquinas e cientificismos. Hoje,

    tenta-se compreender a Idade Mdia em todas as suas complexas relaes e, para isso, preciso no

    esquecer jamais que o ser humano por essncia contraditrio.

    O Mundo ao Contrrio, A Festa dos Loucos e dos Asnos

    A religiosidade fazia parte do cotidiano medieval de uma forma to intensa que difcil para ns,

    do sculo XXI, compreendermos. Talvez um talib do Afeganisto, se ele quisesse estudar a histria

    da Europa, pudesse compreender o que uma sociedade unanimemente mergulhada numa religio

    nica e absoluta. Mas um talib radical cr to absolutamente em sua f que ver qualquer outra

    cultura como inimiga e jamais tentar compreender coisa alguma que diga respeito outra tal

    como um tpico medieval.

    O homem medieval acreditava no cu, no inferno, nos anjos, nos demnios, em todos os santos da

    Santa Madre Igreja e na vida eterna com a intensa f dos simples. Naquela poca, ia-se missa todos

    os dias, rezava-se muito, mesmo sem que se compreendesse xongasdo latinrio dos padres. Os servi-

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    os religiosos duravam horas e o resto do tempo a imensa maioria das pessoas passava no campo, no

    trabalho pesado e rotineiro de todos os dias. At hoje, uma grande parcela da humanidade vive o diaa dia entregue ao trabalho duro, aceitando as coisas como elas so, acreditando nos padres, pasto-

    res, gurus, aiatols e polticos, sem nenhum questionamento. Mas a verdade que o ser humano, inde-

    pendente de viver h dois mil, mil e quinhentos anos, ou ontem e, com certeza, amanh no pode

    abrir mo de uma boa festa. Somos festeiros por natureza. E, mesmo quando vivemos numa sociedade

    onde a religio o centro de tudo, onde essa vida terrena considerada uma mera passagem e onde

    o que importa se dedicar a louvar a Deus sobre todas as coisas, no resistimos a uma boa baguna!

    E assim que, em plena Idade Mdia, uma velha tradio romana banida pela Santa Igreja para todo

    o sempre volta com fora total. As Saturnais eram celebradas em Roma nas calendas de janeiro e, neste

    perodo, os escravos se vestiam como patres, sentavam-se mesa com eles e celebravam a Idade de Ouro,aquela em que a igualdade imperava e todos os homens confraternizavam em harmonia.

    Na Europa medieval, as Saturnais foram transformadas na Festa dos Loucos, quando estudantes e

    membros inferiores do clero invertem a hierarquia e instalam a esbrnia nas igrejas. Um bispo ou arce-

    bispo dos Loucos era eleito, rezando uma missa cmica onde abundavam verses satricas e picantes das

    rezas. Os padres se vestiam de modo extravagante, muitos com roupas femininas, e se punham a cantar, a

    comer salsichas e chourios no altar, danando lascivamente, jogando dados e cartas, promovendo a mais

    absoluta pndega dentro das igrejas e em torno delas.

    Ao longo dos anos, as festas de esbrnia e escrnio foram se tornando cada vez mais ousadas,

    envolvendo toda a cidade, atraindo uma massa enlouquecida pelo vinho e envolta na mais absoluta

    permissividade. Uma grande procisso era formada, um longo cortejo de loucos. Cantava-se, danava-

    se, bebia-se muito, satirizava-se os sacramentos e ridicularizava-se as autoridades... Aqueles que se

    recusavam a participar da folia sofriam constrangimentos, recebiam farelos nos olhos, eram vaiados

    pelos folies e acabavam sendo obrigados a danar e saracotear pela cidade, mesmo que a contragosto,

    para a diverso dos loucos em festa.

    Os nomes mudam. Em alguns lugares era a Festa do Asno quando um burro era sagrado bispo ,

    em outros eram chamadas de As Liberdades de Dezembro. Ou ento eram festas relacionadas s grandes

    datas da igreja, como o Domingo de Ramos, o Natal e a Epifania. Uma caracterstica comum a todas essas

    festividades era a instaurao de um mundo ao contrrio, onde tudo virava de ponta cabea, as regras se

    invertiam e os poderes tambm.

    Muitas autoridades da Igreja, Santo Agostinho inclusive, clamaram contra os abusos cometidos nessas

    festas, mas durante sculos elas serviram de vlvula de escape contra os rgidos cdigos religiosos e a dura

    vida do cotidiano medieval.

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    O humor custico e lascivo das Festas dos Loucos forma um pblico vido por poesias satricas e

    pardias e, consequentemente, estimula o surgimento de poetas e cmicos, que se dedicam a alimentar,com sua arte, a fome de riso de seus contemporneos.

    Jograis, goliardos, bufes, trejeitadores...

    O termo jogral um bom exemplo dos inmeros tipos de cmico que podem se abrigar sobre um mes-

    mo nome. Jogral vem do latimjocus, brincadeira, diverso. Em portugusjocus a origem de jogo e jocoso,

    em ingls,joke(piada, brincadeira e tambm o coringa do baralho, que um bobo da corte), e tanto em

    ingls como em francs a origem para malabarista:jongleurejuggler1.

    Mas, afinal, o que era um jogral na Idade Mdia?

    Em 1274, Afonso X, rei de Castela, deu-se ao trabalho de estabelecer 6 diferentes tipos de jogral. O

    primeiro seria ojogral propriamente dito, que tangia instrumentos, contava novas e recitava e cantava

    versos de outros, portando-se com dignidade; o segundo, o cazurro, palavra que na poca referia-se a

    um tipo reles de cmico, idiota e bobo, muito bobo mesmo e muito grosseiro, que descrito como o que

    declamava sem nexo pelas ruas e praas, ganhando dinheiro de qualquer modo. Hoje, o termo ainda

    usado em espanhol como sinnimo de teimoso, cabea dura.

    O tipo seguinte de jogral, segundo D. Afonso, era o bufon, que fazia danar animais e tteres entre

    a arraia mida. Havia ainda o remedador, imitador e contorcionista; o segrier- geralmente um nobre

    arruinado que errava pelas cortes, e, por ltimo, o trovador, que sabia achar o verso e a toada, cabendo-

    lhe o ttulo de don doctor de trobarquando compunha poesias perfeitas.

    Em Portugal, encontramos a mesma preocupao em distinguir o jogral - que ganhava a vida nos

    castelos e nas vilas - dos trejeitadoresou trues- que se exibiam nas praas pblicas -, dosgoliardos-

    que bebericavam nas tavernas - e dos bufes, que vendiam quinquilharias. Essas diferenciaes estavam

    nas Ordenaes Afonsinas, o cdigo de leis que regeu Portugal de 1390 at 1540, no qual se proibia

    aos clrigos essas formas de vadiagem...

    1H quem, como eu, acredite que a est a origem de ejacular e gozar. A nal, rir e gozar, tudo prazerH quem, como eu, acredite que a est a origem de ejacular e gozar. Afinal, rir e gozar, tudo prazer......

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    Todas essas tentativas de determinar um nome para cada tipo e de fixar cada um dos tipos com seu

    devido nome so sempre vs. Para comear temos a questo da traduo. Em francs, o bobo da corte fou(louco), em ingls fool (louco), mas muitas vezes o termo usado jester, que seria melhor traduzido

    para o portugus como jogral. Em portugus temos o termo bobo designando o bobo do rei, mas este

    tambm era chamado de bufo, louco ou gracioso. S que muitas vezes bufoera o termo usado para

    o louco da aldeia e, louco,apenas um padre que gostava da pndega nas festas da Quaresma, ou um

    goliardo, que andava pelas tavernas cantando e contando histrias cmicas carregadas de sensualidade e

    erotismo.Jograle menestrelviraram na nossa lngua atual figuras lricas que recitam versos para as amadas

    e tangem um alade, mas, como vimos, podiam ser tambm os nomes dados a saltimbancos, graciosos e

    rsticosde feiras.

    So Francisco de Assis chamava-se a si mesmo dejoculatores Domini, que tem sido traduzido porjograldo Senhor. Uma traduo mais exata para os nossos dias, considerando o significado de jogral hoje e na

    poca, seriapalhao do Senhor. Ele sempre recomendou a seus discpulos que tivessem um rosto riso-

    nho (vultus hilaris) e sua primeira regra dizia: que eles no se mostrem exteriormente tristes e sombrios

    hipcritas, mas que se apresentem felizes ao Senhor, alegres e agradveis como convm. Ficaram famosas

    as sesses de riso solto a que se entregavam os jovens franciscanos em seus conventos e os sermes

    de seus frades, considerados por muitos como verdadeiras palhaadas.

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    Os padres mendicantes, especialmente os franciscanos, eram conhecidos pelas fbulas cmicas que

    inseriam em seus sermes, os exempla. Jean Pauli, franciscano, gostava de contar a histria de umarepresentao do Mistrio da Paixo: numa noite de muito calor, quando o artista que vivia o papel de

    Cristo disse Tenho sede, o ator que representava um dos ladres presos na cruz ao lado achou que

    o colega estava realmente com sede e, sem perder tempo, pediu: Tragam uma cerveja, por favor!

    A anedota lembra muito as inmeras histrias acontecidas nas montagens dO Martyr do Calvrioem

    circos e teatros por todo o Brasil.

    Os Bobos da Corte

    Durante a Idade Mdia, onde houvesse um senhor, um poderoso, fosse ele um conde, baro, bispo,

    abade, prncipe ou rei, haveria um bobo. Uma corte que se prezasse deveria ter pelo menos um bobo paradivertir o senhor e seus convidados.

    O costume teria comeado no oriente. Egpcios, chineses e hindus no dispensavam essa figura

    inslita, feia, ridcula, mas dotada de perspiccia inaudita e a quem era dado o direito de dizer ver-

    dades ao rei ou fara. Grcia e Roma tambm tiveram seus bobos, mas foi na Idade Mdia que essa

    figura cmica encontrou seu apogeu.

    Na cabea, um chapu cheio de longas pontas com guizos em cada uma delas. Na mo, um cetro - a

    marotte-, smbolo da loucura. A roupa colorida, com tringulos de cores diferentes, como a de um Arle-

    quim. Na cintura, uma espada de madeira e um basto com uma bexiga de porco cheia de ervilhas secas

    que, de quando em quando, ele bate no cho, pontuando suas brincadeiras com um som forte e cmico.

    Os bobos usavam, preferencialmente, verde e amarelo - e essas cores no eram aleatrias. O verde

    era a cor do chapu colocado sobre a cabea dos devedores expostos no pelourinho, no meio da praa.

    Verde era tambm a cor do solidu dos condenados s gals. J o amarelo era a cor da traio, da

    felonia. O carrasco pintava a porta da casa dos acusados de lesa-majestade de amarelo. Era a cor dos

    lacaios e a marca dos judeus.

    O bobo, essa figura inslita e ridcula - comumente um ano, um corcunda ou um ano corcunda -,

    atraa a inveja de muitos cortesos, pois privava da intimidade dos poderosos.

    A histria guardou o nome de inmeros bobos, que se destacaram pelo talento, pela dedicao ao seu

    senhor e pela amizade e amor com que foram tratados.

    Thvenin foi o bufo mais amado de Carlos V, da Frana. Quando morreu, o rei mandou construir um

    fabuloso mausolu na Igreja de So Maurcio de Senlis, com uma bela escultura representando o bobo em

    seu traje, tendo na mo sua marottecom duas bolsas cheias de ouro pousadas no estmago. Na lpide foi

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    gravado o epitfio: Aqui jaz Thevenin de Saint Legier louco do Rei nosso Senhor, que faleceu no dcimo

    primeiro dia de julho no ano da graa de 1374. Reze a Deus por sua alma.Um dos mais famosos bobos de todos os tempos foi Triboulet, bufo de Luiz XII e depois de Francisco

    I. Seu nome verdadeiro era Fevrial e algumas de suas histrias so um bom exemplo da insolncia que

    se permitia a um bobo de talento. Quando Francisco I, em 1524, organizava a expedio a Milo, Tribou-

    let estava presente nas reunies do Conselho onde se discutiam as melhores estratgias para invadir a

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    Itlia. Eis que, diante de todos, Triboulet, o bobo que no faltava a uma reunio do Conselho, dirigiu-se

    ao rei com a sua costumeira irreverncia: Primo, voc quer ficar na Itlia? No! responde o Rei.E o bobo prossegue: Pois esta reunio est muito aborrecida, meu primo. Vocs s falam em como

    entrar na Itlia, quando o mais importante saber como sair de l... Alguns meses depois todos se

    lembrariam das sbias palavras do bobo, pois a expedio foi um fracasso e o rei, feito cativo, teve muita

    dificuldade em sair da Itlia...

    Triboulet inspirou Victor Hugo em Le Roi samuse(O Rei se diverte), que acabou sendo a fonte para

    Verdi escrever a pera O Rigoleto, a trgica histria do bobo corcunda que v sua filha ser seduzida

    pelo devasso Duque, seu Senhor. No h referncias de que Triboulet tivesse filhos, mas a histria

    mostra bem a importncia dos bobos na vida da corte. Poderosos como poucos, atraindo inveja, mas

    sempre submissos aos desejos de seu Senhor.

    Outro bobo clebre foi Jehan-Antoine Lombart, o Brusquet, que serviu com vivacidade a Henrique II

    de Frana. Uma de suas famosas anedotas o coloca no papel do bobo autorizado pelo rei a agir como

    juiz. Essa s ituao cmica, um tolo-sbio como juiz, pode ser encontrada em inmeros contos e anedo-

    tas populares ao redor do mundo e foi usada por Brecht no Crculo de Giz Caucasiano.

    Conta-se que um comerciante foi se queixar ao juiz de um miservel mendigo que passava o dia

    na porta de seu estabelecimento, incomodando os fregueses e prejudicando os negcios. O juiz, que era

    ningum mais do que Brusquet, o bobo do rei, manda chamar o miservel e pede que ele se explique.

    Senhor juiz, fico ali roendo o meu po duro, o cheiro do po quentinho me ajuda a conseguir engolir

    minha cdea velha..., justifica-se o mendigo. Pois que pague ento pelo cheiro do po retruca o

    insensvel padeiro. Muito bem! diz Brusquet Ele deve pagar pelo cheiro do po. E imediatamente

    manda colocar no bolso do pobre umas tantas moedas e diz: Sacode as moedas, meu bom amigo. Deixa

    elas tilintarem no seu bolso.. Que o som do dinheiro pague o cheiro do po...

    Mulheres tambm exerciam o ofcio de bobo da corte. A histria guardou o nome de Madame Ram-

    bouillet, na corte de Francisco I, e de Cathelot, que serviu Margarida de Navarra, depois Margarida

    de Valois e, ainda, Eleonora da ustria e s suas filhas Madalena e Margarida. Catarina de Mdicis

    tinha a seu servio anes, ans, um mouro, um turco e bobas, das quais sabemos o nome de duas:

    Jardinire e Jacquete.

    A mais famosa de todas as bobas foi Mathurine, que serviu a Henrique III, Henrique IV e ainda

    estava na folha de pagamento de Luiz XIII, que detestava os graciosos e bufes, mas mantinha-os

    porque respeitava a tradio.

    Antiga cantineira do exrcito, Mathurine vestia-se como um soldado e dizem que sabia brigar como

    o mais valente deles. Sua linguagem era a de um carroceiro, mas parece que essa era justamente sua

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    graa uma mulher de modos repugnantes, que falava tudo o que os outros pensavam mas no tinham

    coragem de expressar. Privava da intimidade de Henrique IV e estava com ele mesa quando, em 27de dezembro de 1594, h uma tentativa de assassinato contra o rei. Arma-se uma grande confuso

    e, por um momento, o rei chega a pensar que foi a boba quem lhe agrediu, quebrando-lhe um dente - o que

    bem demonstra a delicadeza da donzela... Mas, entre todos os presentes, Mathurine, a boba, quem tem

    a presena de esprito de fechar a porta, impedindo que o assassino escape.

    Georges Minois, no seu livro Histria do Riso e do Escrnio, chama ateno para o fato de que Henri-

    que IV o ltimo rei de Frana a ter com seus bobos uma relao prxima e intensa. Homem de esprito,

    grande poltico, soube como ningum equilibrar-se para sobreviver s intrigas de seu tempo. Protestante,

    renunciou a sua f para sagrar-se rei dos franceses. Pragmtico, foi autor da famosa frase usada at hoje

    por polticos na hora de fechar inslitos acordos: Paris bem vale uma missa.Henrique IV via a poltica como um jogo. Era um ambicioso que conscientemente movia suas peas para

    alcanar o poder. E o bobo fala pelo rei o que esse no pode dizer claramente. Chicot, o bobo imortalizado

    por Alexandre Dumas, diz, na frente de todos, o que Henrique IV no podia dizer: Para um rei, pouco im-

    porta a religio, Deus e o diabo; s o poder conta. Em outra ocasio, Chicot d este conselho ao rei diante

    de toda a corte: Senhor, meu amigo, vejo bem que tudo o que fazes no te serve de nada se no te fazes

    catlico. preciso que vs Roma, prostre-te diante do Papa para que todo mundo te veja. Depois, faze

    um clister de gua benta para acabar de lavar o resto de teus pecados.

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    Como diz Minois:

    Esse ogo s pode funcionar se o poder permanecer cido. Se ele engana a si prprio, se acabaEsse jogo s pode funcionar se o poder permanecer lcido. Se ele engana a si prprio, se acabapor acreditar em suas prprias motivaes nobres, por identi car-se com seus pretextos moraispor acreditar em suas prprias motivaes nobres, por identificar-se com seus pretextos moraise religiosos, ento o jogo est terminado. Se o rei muito cristo e o rei catlico se imaginame religiosos, ento o jogo est terminado. Se o rei muito cristo e o rei catlico se imaginamverdadeiramente muito cristo e catlico, e querem que os outros tambm acreditem ver-verdadeiramente muito cristo e catlico, e querem que os outros tambm acreditem ver-dadeiramente, ento cai-se na tragdia. No se brinca mais, no se ri mais, leva-se tudo adadeiramente, ento cai-se na tragdia. No se brinca mais, no se ri mais, leva-se tudo asrio. No haver lugar para um bobo na corte com Luiz XIV. Um monarca que pode, semsrio. No haver lugar para um bobo na corte com Luiz XIV. Um monarca que pode, semrir, comparar-se ao sol muito srio para ser sensato.rir, comparar-se ao sol muito srio para ser sensato.

    Os Saltimbancos e as feiras

    Depois que os grandes circos romanos foram abandonados, por muitos anos a Europa no viu nada que

    pudesse se chamar de um espetculo circense ou mesmo simplesmente de um espetculo, no importa

    se de circo, teatro ou dana.

    A Europa dos primeiros sculos da Idade Mdia no era o melhor palco para nenhum artista. Mas, pouco

    a pouco, a prpria Igreja vai incentivar a realizao de autos e Mistrios, espetculos que contavam a vida

    de Cristo e dos santos, teatralizavam a Paixo, a vida dos Santos e passavam ensinamentos moralizantes.

    No incio, eram pequenas cenas representadas dentro das igrejas. Mas a coisa foi crescendo, tomou as ruas

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    e, ao final, envolvia toda a cidade. As Guildas - associaes profissionais passaram a se responsabili-

    zar pelos espetculos e cada uma queria se mostrar mais rica e competente, suplantando as outras.

    A cidade medieval esperava ansiosa o momento em que seria o palco de um evento de grandes pro-

    pores e os espetculos comeam a atrair gente de outros lugares, a promover o comrcio e a venda

    de produtos da regio. Esse fenmeno artstico acontece estreitamente l igado ao crescimento das feiras.

    Desde sempre os espetculos ajudaram a movimentar a economia.

    A feira de Saint Denis, instituda por Dagoberto em 629, logo virou ponto de encontro de artistas de

    todas as artes e habilidades: danarinos de corda, funmbulos, volantins, malabaristas, jograis, trovadores,

    adestradores de animais, pelotiqueiros, msicos, domadores de ursos, danarinos, prestidigitadores, bone-

    queiros e acrobatas. Os artistas dispersos vo se reencontrar nas estradas que l igam uma feira outra.

    Nos sculos XII e XIII, as feiras tornam-se o principal instrumento de troca, transformando a

    economia e desenvolvendo as relaes entre os povos. A feira de Saint Germain foi criada em 1176

    e, depois dela, surgiram a de Saint Lazar mais tarde transformada em Saint-Laurent , a de Saint-

    Barthlemy, a de Lyon, de Bruges e, logo, as de Sturbridge e Southwark, na Inglaterra; Franckfurt,

    Colnia, Nuremberg e Leipzig, na Alemanha; Florena, Npoles, Veneza, Milo e Gnova, na Itlia;

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    Medina, na Espanha, e Nijni-Novgorod, na Rssia. Toda a Europa tinha suas feiras. Havia as de inver-

    no e as de vero. De incio, elas duravam algumas semanas, mas logo passaram a durar meses.Especiarias do oriente, jias, verduras, legumes, gros, remdios miraculosos, roupas, tecidos, sapatos,

    vacas tudo estava venda. Circulando por ali, toda uma fauna de gente que vinha vender, comprar ou

    simplesmente olhar aquele movimento inaudito.

    Para chamar a ateno no meio da balbrdia, armava-se um pequeno tablado tipo um banco e,

    em cima dele, eram realizados espetculos. Vem da o termo saltimbanco,sal tare in banco. a mes-

    ma origem de banqueiro tambm, pois era em cima de bancos que os cambistas trocavam moedas,

    avalizavam emprstimos e vendiam promissrias.

    No incio bastava um banco, depois um tablado com cortinas e, mais tarde, nas feiras maiores,

    foram sendo construdos verdadeiros teatros. O mais interessante nos espetculos de feira era a va-riedade de opes oferecida ao pblico. Numa barraca apresentava-se um cavalo de seis patas capaz

    de realizar inmeros saltos. Na outra, macacos e cachorros adestrados. E anes vindos da Holanda,

    venezianos fortes, danarinos na corda tesa, marionetes, lees, equilibristas, contorcionistas, magia e

    prestidigitao, funmbulos atravessando a feira em grande altura, um rinoceronte... tudo era poss-

    vel de ser admirado em troca de alguns tostes.

    Os primeiros teatros de feira surgiram no final do sculo XVI. Ao que tudo indica, os espetculos eram

    descosturados, uma sucesso de cenas sem ligao e bastante repetitivas. Uma verdadeira revoluo ocor-

    re quando, em 1678, com o espetculo Les forces de lamour et de la magie, comeam a ser montadas

    peas em atos com atores de carne e osso. Antes disso, os espetculos se assemelhavam mais a umasesso de variedades ou eram feitos por bonecos.

    Les forces de l amour et de la magie um interessantssimo espetculo teatral cmico, com

    msica, dana e acrobacia, ou, como disseram os autores, um divertimento cmico, representado

    pelos acrobatas (sauters) da trupe dos senhores Maurice Allemand e Allard Parisien . A propaganda

    explica que se trata de uma trupe composta por 24 acrobatas de todos os pases, os mais ilustres

    que jamais se apresentaram na Frana.

    A moda pega e novas trupes so formadas montando espetculos que no se preocupam com as

    regras aristotlicas e que mesclam diabos saltadores, o mago Merlim, Arlequins e Polichinelos sem

    nenhum pudor. O sucesso enorme e a inveja dos teatros oficiais tambm.

    Ser artista nunca foi fcil. Msicos, pintores, escultores, atores, bailarinos e outros que tais viviam da

    dependncia dos grandes senhores. Todos buscavam um mecenas, um protetor. Na Europa renascentista,

    as companhias de atores disputavam os privilgios de reis e nobres e, quando os conseguiam, no queriam

    saber de concorrentes. O teatro das feiras ameaava essa proteo to duramente conquistada.

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    Em 1680, a Commedie Franaiseconquista o privilgio de ser a nica companhia autorizada a repre-

    sentar em francs. Uma intensa luta se estabelece por quase dois sculos. Os teatros oficiais conseguemleis que garantem que ningum mais possa representar comdias em atos, nem utilizar dilogos em

    cena. A resposta dos teatros populares de feira ir burlando as regras e enganando as autoridades

    policiais. Os espetculos no podem ser feitos em atos? Surgem as peas de cenas curtas. proibido

    dialogar? Inventam o monlogo. Criam cenas em que um personagem fala e o outro responde de fora

    de cena. Criam tambm a genial estratgia de escrever as falas em cartazes e o pblico que faz a

    leitura aos gritos. A necessidade havia criado o teatro de participao popular...e o sucesso aumenta

    cada vez mais. Como costuma acontecer em todos os tempos com os inmeros tipos de censura, as proi-

    bies acabam servindo de incentivo criatividade. Nesse processo de superar as restries impostas

    para manter velhos privilgios, algum acaba tendo a idia de voltar aos ditirambos gregos e cantar ostextos, inventando assim a pera Cmica.

    Esta luta entre os artistas privilegiados pelo rei e pela nobreza e os artistas das feiras acaba promoven-

    do a pera e tambm a arte da pantomima, elevando a expresso mmica a um nvel tcnico e artstico

    jamais alcanado em outro perodo da histria da arte. Jean-Louis Barrault definiu a mmica como a lin-

    guagem do povo a quem o poder retirou a palavra.

    A Assemblia Nacional - rgo dos revolucionrios franceses - reconhece, em janeiro de 1791,

    o direito de todo cidado de construir um teatro e de nele apresentar o espetculo de sua escolha.

    Mas, apenas em 1864, a cena francesa fica realmente livre de qualquer tipo de proibio, garantindo

    a liberdade de criao.

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    Commedia dell Arte

    O termo Commedia dell Artesurge no incio do sculo XVI como forma de diferenciar o tradicionalespetculo popular baseado na improvisao e na habilidade dos atores - da Commedia erudita, o teatro

    literrio, culto. O termo dell Artesignificava feito por artesos, especialistas, profissionais.

    A origem da Commedia dellartese perde nos tempos. Ela herdeira da fbula Atelana que, por

    sua vez, herdeira da comdia drica grega. H historiadores que insistem em duvidar dessa afirma-

    o, pois faltariam provas de uma relao direta capaz de atravessar mais de mil anos ligando

    o teatro que se fazia em Roma, no sculo II antes de Cristo, a um gnero cmico popular, na Itlia,

    que se espalharia por toda a Europa renascentista. Faltam provas, mas as evidncias so marcantes.

    A arte da comicidade parece seguir uma linha contnua que, s vezes, some, mas nunca se detm.

    As piadas e os personagens cmicos atravessam os sculos, renascem e florescem em diferentesmomentos e culturas, sempre mantendo uma relao direta com seus antepassados. Uma espcie de

    DNA estampado e bvio que demonstra que o humor de um grego do sculo V antes de Cristo no

    assim to diferente do de um brasileiro dos dias de hoje... Personagens estpidos, maridos trados,

    velhos babes, avarentos e fanfarres so engraados, hoje, como h 5 mil anos atrs. A comdia

    trabalha com mitos e esteretipos bvios, aparentemente simples, mas que habitam as profundezas

    do nosso inconsciente desde tempos imemoriais. A arte consiste em captar a essncia dos tipos con-

    seguindo, a cada vez, renovar-lhes o frescor e a comicidade. Afinal, o ser humano o mesmo animal,

    seja segurando um tacape ou apertando o boto de uma bomba nuclear.

    A Farsa Atelana

    No sculo II antes de Cristo, atores da farsa popular tpica da cidade de Atela, na Campnia, se dirigiram

    Roma levando com eles um estilo de farsa baseado numa galeria de tipos bem definidos cada qual com

    sua mscara grotesca e em dilogos improvisados, irreverentes e cheios de malcia e obscenidades.

    Em Roma, a Comdia Atelana fincou razes e passou a ser responsvel por garantir um final alegre para

    as representaes das peas histricas srias e das tragdias. No sculo I a.C., os dramaturgos Pompnio

    e Nvio deram forma mtrica farsa rstica e obscena, mas conservaram o dialeto dos camponeses latinos

    e sua expressividade prpria. Mantiveram tambm os tipos e mscaras que atravessaram os sculos.

    A descrio das caractersticas fsicas e psicolgicas dos tipos da Comdia Atelana nos d a mais

    contundente prova da vitalidade da linhagem gentica dos personagens cmicos.

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    Maccusera um corcunda, careca, com imensas orelhas, nariz longo e rubicundo, que compensava sua

    figura grotesca com perspiccia e esperteza: sempre conseguia o que queria. considerado o antecessor

    do Polichinelo.

    Pappus,velho avarento e ciumento, desconfiado e crdulo, que ao final sempre passado para trs,

    seria o antecessor de Pantaleo.

    Sannio,bufo da comdia grega, que usava um chapeuzinho branco ou preto, trajava uma roupa

    feita de pequenas peas de mltiplas cores e divertia os espectadores com suas caretas e troas, a

    origem doArlequim.

    Temos ainda Bucco, gordo, simplrio, descarado, mentiroso, que s pensa em como garantir sua prxi-

    ma refeio, visto por muitos como a origem de Brighela.

    Dossenusera a caricatura do pedante, metido a intelectual, pretenso sbio que tenta impingir a todos

    seus medicamentos e preparados mgicos. Eis o Dottoresda Commedia dell arte.

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    O tempo passou, o imprio romano se desfez na poeira, mas os tipos da Comdia Atelana nunca saram

    de cena. Ficaram morando nos campos e, de tempos em tempos, ressurgiam nas festas e em espetculospopulares. Sobreviveram nos repertrios dos jograis, mimos e saltimbancos que rodavam a Europa me-

    dieval. Tudo que vivo se transforma. Os tipos e as situaes dos personagens da farsa atelana foram se

    adaptando aos tempos e s modas locais e acabaram encontrando terreno frtil nos cortejos carnavales-

    cos, adquirindo nova fora como teatro do povo em oposio ao teatro literrio dos humanistas.

    Angelo Beolco de Pdua, que passou a ser conhecido como o Ruzzantepor causa do persona-

    gem do esperto campons que criou e interpretou por toda a vida, foi um marco na estruturao da

    Commedia dellarte.Sua pequena companhia apresentou-se pela primeira vez em Veneza, durante o

    carnaval de 1520.

    Ruzzantefoi o elemento de ligao entre a comdia popular e a erudita. A estrutura de seus espet-culos respeitava as caractersticas da Commedia erudita, com seus 5 atos, mas os tipos, que caracterizava

    por diferentes dialetos, eram todos oriundos da antiqussima famlia dos tipos populares cuja origem se

    perde nos tempos.

    E assim surge um novo tipo de comdia que toma conta primeiro da Itlia e acaba por influenciar

    o teatro de toda a Europa. Os personagens usam mscaras, falam em dialetos especficos e suas carac-

    tersticas so to bem definidas que os atores acabam assumindo o seu personagem por toda a vida.

    No havia necessidade de um texto consolidado. Antes do espetculo, combinava-se um plano de ao:

    intriga, desenvolvimento e soluo. Tudo mais era improvisado ao sabor do momento, de acordo com o

    pblico, as necessidades e os talentos dos atores envolvidos. As piadas, os trocadilhos, os jogos e brin-cadeiras que sustentaram os improvisadores por sculos so os lazzi, truques,gags, pequenas cenas que

    podem ser introduzidas ao sabor dos acontecimentos e que todos os atores j conhecem de antemo.

    Quando Chaplin come os cordes do sapato ao invs do macarro, ou quando, no teatro infantil, vemos

    dois atores numa cena de perseguio - um de costas para o outro, dando voltas pelo palco sem jamais

    se encontrarem -, estamos assistindo a velhos lazzi, capazes de tirar risos da platia dependendo da

    maestria com que so executados.

    Os lazziesto na base dasgagsde palhao, especialmente nas chamadasgags fsicas. Todas as cenas

    de p na bunda, tapas, trambolhes, perseguies e esconde-esconde que encontramos nos picadeiros e

    palcos de hoje tm sua origem em tempos imemoriais, e foram reelaboradas e transformadas com apurotcnico e maestria, durante os sculos XVI, XVII e XVIII, pelos Mestres dellArte.

    Entre os inmeros personagens da Commedia dellartevamos destacar os Zanni. Provenientes de

    Bergamo, eram comumente os servos e, entre as inmeras variantes de seu nome, podemos citarZannoni,

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    Zan ou Sanni, o que sugere uma corruptela para Giovanni, mas tambm nos remonta ao bobo grego, o

    Sannos, e ao latino Sannio, personagem da farsa atelana e sinnimo de pantomimeiro.OZanniconstantemente aparece em dupla. Um esperto, malicioso, o outro bonacho e estpido, mas

    os dois so glutes. Inmeras figuras tm origem noZannie em seu duplo: Brighella, Arlechino, Tuffaldino,

    Trivellino, Pedrolinoe Pulchinella, todosZanni. Pulchinellatransformou-se em Punch, na Inglaterra, Polichi-

    nelona Frana e Petruskana Rssia.Zanni, servo estpido, era tambm o Pagliacci, origem depalhaoem

    portugus, e que em italiano e em portugus significa o mesmo que clownem ingls.

    Na metade do sculo XVI, a Commedia dellartechega ao norte dos Alpes indo para Nuremberg, Es-

    trasburgo e Stuttgart, alcanando Linz e Viena. Chega a Paris, primeiro no Petit Bourbon e depois no Hotel

    de Bourgogne, sendo chamada de commdie italienne e transformando-se em grande sucesso, a paixo

    da cidade. At que, ao desagradarem Mme de Maintenon, a amante de Luiz XVI, so expulsos em 1697.Todos os comediantes italianos so obrigados a deixar a cidade imediatamente e s retornam em 1716,

    liderados por Luigi Riccoboni. Neste retorno que se consuma a transio da pea improvisada para a pea

    escrita e a companhia dos italianos aceita apresentar dramas franceses em seu repertrio. A autntica pea

    improvisada, a tradicional Commedia dellarte, abriga-se nas feiras e encontra seu pblico entre o povo de

    Paris, nas feiras de Saint-Germain e Saint-Laurent.

    A primeira apresentao da Commedia dellartenas Amricas teria acontecido em 1739, em Nova

    York, anunciada como Uma nova diverso pantommica, com personagens grotescas, chamada Aventuras

    de Harlequim e Scaramouch ou o Espanhol Enganado.

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    Charlates e Prestidigitadores a palavra que diverte e vende!

    A vida dura, sempre foi. Sobreviver uma arte: exige percia, destreza, habilidade e, muitas vezes,

    malcia e malandragem para arrancar algum dos trouxas e garantir o leite das crianas. Quem nunca

    parou no meio da rua para ouvir, fascinado, as maravilhas apregoadas por um camel e acabou levando

    para casa um negcio qualquer que jamais usou e nem mesmo se lembra muito bem para que serve, no

    ser capaz de compreender a importncia de um bom charlato para o desenvolvimento da humanidade

    e para a evoluo da arte da bobagem...

    Nesse exato momento, no meio de uma praa em Istambul, na Cracvia, no Rio de Janeiro ou em

    Nova York, existe algum tentando convencer os passantes a dar um minutinho de sua ateno para

    conhecerem, sem qualquer compromisso, uma novidade sen-sa-ci-o-nal, que no requer prtica nem

    habilidade e que vai resolver todos os seus problemas - mesmo que se trate de uma esquisitssimafaquinha para descascar batatas.

    Esse vendedor de rua herdeiro de uma linhagem que se perde na noite dos tempos e est presente

    em todos os povos. Charlato, farsante, prestidigitador, mercadejador... Independente do nome que

    tenha, para sobreviver na profisso preciso dominar a palavra, ter lbia e saber entreter o passante.

    Primeiro necessrio fazer o transeunte parar e olhar, depois usa-se de todos os artifcios possveis para

    entret-lo, mantendo-o ali, praticamente hipnotizado. Quando o sujeito pra e comea a escutar a canti-

    lena de um vendedor j mais do que meio caminho andado para tornar-se um comprador. A, vale o apoio

    de um ajudante, que se passa por comprador, tece elogios ao produto e adquire logo dois, retirando-se

    da roda sem nunca deixar de incentivar os incautos a comprarem tambm... Esse truque foi usado naGrcia antiga e ainda hoje faz sucesso no Largo da Carioca, em pleno Rio de Janeiro.

    Alguns charlates eram to talentosos que acabaram entrando para a histria da arte, e seus truques

    e gracejos sendo utilizados por cmicos de todos os estilos como forma de entreter o pblico.

    O contrrio tambm acontece. Muitas vezes foi o vendedor de rua que bebeu no teatro popular, nas

    graas das marionetes e nas piadas dos palhaos para atrair a simpatia da platia e conseguir manter a

    ateno de seus potenciais compradores.

    Se anteriormente falamos das gags fsicas, agora vamos falar da arte dos parlapates. Falar, falar,

    falar e, com a fala, levar ao riso, hipnotizar, tomar conta, dominar. A palavra funciona como texto cmico

    para vender o produto ou atrair o incauto, mas tambm usada para distrair a roda enquanto se esperaque o nmero de basbaques aumente. O vendedor-prestidigitador-charlato usa sua agilidade verbal

    para enaltecer o produto ou a habilidade; sabe que, quanto mais engraado e divertido for, mais poder

    contar com o beneplcito da audincia que, muitas vezes, acaba pagando no por algo de que no

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    precisa, mas sim pelo prazer de admirar o trabalho do artista. O dinheiro colocado no chapu o paga-

    mento mais justo dado a um artista. O pblico paga depois. Primeiro v, depois julga e s ento paga.

    Curiosamente essa figura em ingls chamada de mountebank, literalmente o que monta no banco,

    mesma origem de saltimbanco. Se em italiano, portugus e francs o termo sempre foi mais utilizado

    para o artista acrobata e o ator de feira, em ingls passou a designar o charlato vendedor de unguen-

    tos, pomadas e elixires.

    A Arte de Tabarin

    Antoine Girard, o Tabarin, passou para a histria como o exemplo de palhao de charlato. Charlatoque se prezasse tinha como ajudante um palhao e o mais famoso deles foi Tabarin.

    O palhao esquentava a platia. Dizia bobagens, contava histrias absurdas, brincava com um

    macaco amestrado e preparava a audincia. Servia de contraponto para o charlato, especialista em

    inmeras especialidades, que vinha a seguir para vender, por preos irrisrios, os mais interessantes e

    eficazes medicamentos...

    Tabarin surgiu em Paris, em 1618, como o servo-palhao de Mondor, que alguns autores supem

    seu irmo. Num tablado armado na Place Dauphine, junto Pont Neuf, Mondor vendia seus remdios

    enquanto Tabarin falava bobagem atrs de bobagem... Pouco se sabe sobre sua origem. s vezes ele

    se dizia italiano, mas era comum os artistas de rua e de feira apresentarem-se como estrangeiros. Issoaumentava o charme e o mistrio e atraa a curiosidade da platia. Truque, alis, que costuma funcionar

    at nos dias de hoje.

    Tabarin ficou famoso com suas estapafrdias questes: Quando que as mulheres mijam com mais

    asseio? Qual a diferena entre a mulher e a garrafa? Quem no usa luva no inverno? Quem que no

    deve nada a ningum? Por que as mulheres so mais brancas que os homens? E cada vez que Tabarin

    perguntava, Mondor tentava responder de maneira inteligente, citando Aristteles, a Bblia, alegando

    profundas razes filosficas - sempre com um palavreado pretensioso, vazio e absurdo. Ao final, Tabarin

    dava a resposta certa. Normalmente alguma besteira ridicularizando soldados, advogados, mdicos ou

    algo referente a tripas, peidos, ventosidades, fedores e cu.

    Um bom exemplo das questes tabarinescas a dvida Por que peidamos quando mijamos?

    TabarinTabarin Meu Mestre, diga-me por que, constantemente, quando mijamos peidamos ?Meu Mestre, diga-me por que, constantemente, quando mijamos peidamos ?MondorMondor Mas isso se faz naturalmente. A natureza nos pede que esvaziemos e evaMas isso se faz naturalmente. A natureza nos pede que esvaziemos e evacuecuemosmos

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    nossos excrementos pois j no nos so mais teis nem necessrios. Nossanossos excrementos pois j no nos so mais teis nem necessrios. Nossanutrio se faz primeiramente com a introduo do alimento no esfago, quenutrio se faz primeiramente com a introduo do alimento no esfago, queo conduz cavidade do estmago pela capacidade expulsatria que lhe o conduz cavidade do estmago pela capacidade expulsatria que lhe prpria. Posto l o alimento transformado num bolo, numa massa, entran-prpria. Posto l o alimento transformado num bolo, numa massa, entran-do ento nas tripas, depois as veias mesentricas, que vem do fgado, retiramdo ento nas tripas, depois as veias mesentricas, que vem do fgado, retiram- por uma sutil e pujante capacidade que detm, retiram dessa massa tudo- por uma sutil e pujante capacidade que detm, retiram dessa massa tudoo que alimento e o que intil passa adiante, segue caminho pelos canaiso que alimento e o que intil passa adiante, segue caminho pelos canaisque esto disponveis.que esto disponveis.

    TabarinTabarin Essa no a razo nem o foco da pergunta feita. No sois um bom tanoeiroEssa no a razo nem o foco da pergunta feita. No sois um bom tanoeiro .O que faz tonis ou o que cuida de abrir os tonis de vinho)(O que faz tonis ou o que cuida de abrir os tonis de vinho). Ento, no sabeis. Ento, no sabeis

    queque quanquando um tonel est cheio precisamos dar-lhe um pouco de ar para lhedo um tonel est cheio precisamos dar-lhe um pouco de ar para lhetirar qualquertirar qualquer coisa? Acoisa? A razo porque peidamos quando mijamos que norazo porque peidamos quando mijamos que nopodemos tirar nada pela nossa torneira sem que deixemos escapar um poucopodemos tirar nada pela nossa torneira sem que deixemos escapar um poucode ar pela traseira...de ar pela traseira...

    Outra questo tpica a pergunta Se colocarmos num saco um moleiro, um aougueiro, um oficial de

    justia e um procurador, quem sair primeiro?

    TabarinTabarin Meu mestre, interrompa por um momento o voluptuoso curso de seus pensa-Meu mestre, interrompa por um momento o voluptuoso curso de seus pensa-mentos, gostaria de apresentar-lhe uma pergunta plena de sutileza: se tiverdesmentos, gostaria de apresentar-lhe uma pergunta plena de sutileza: se tiverdesfechado dentro de um saco um moleiro, um aougueiro, um o cial de justia efechado dentro de um saco um moleiro, um aougueiro, um oficial de justia eum procurador, desses quatro quem sair primeiro se ns zermos uma abertura?um procurador, desses quatro quem sair primeiro se ns fizermos uma abertura?MondorMondor Na verdade, Tabarin, preciso confessar com certa ingenuidade que estou im-Na verdade, Tabarin, preciso confessar com certa ingenuidade que estou im-pedido de resolver esta demanda uma vez que no vejo razo alguma que mepedido de resolver esta demanda uma vez que no vejo razo alguma que mefaa conhecer qual dos quatro seria o primeiro a sair; isto indiferente e asfaa conhecer qual dos quatro seria o primeiro a sair; isto indiferente e asaes que so indiferentes no podem ser resolvidas facilmente, porquanto osaes que so indiferentes no podem ser resolvidas facilmente, porquanto oslsofos digam que toda a vez que duas causas so apresentadas para produzirfilsofos digam que toda a vez que duas causas so apresentadas para produzir

    um efeito, que non est major ratio unius quam alterius, tune non datur actio,um efeito, que non est major ratio unius quam alterius, tune non datur actio,o efeito no resulta; assim preciso que haja alguma disposio que disponha oo efeito no resulta; assim preciso que haja alguma disposio que disponha oagente a sair, seu efeito extra causas; mas no encontro nenhuma razo formalagente a sair, seu efeito extra causas; mas no encontro nenhuma razo formalque justi que porque um sairia mais cedo que o outro pois omnia sunt paria,que justifique porque um sairia mais cedo que o outro pois omnia sunt paria,seno que possa dizer que ser o primeiro aquele que estiver mais prximo daseno que possa dizer que ser o primeiro aquele que estiver mais prximo daboca do saco, este ser o primeiro.boca do saco, este ser o primeiro.

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    TabarinTabarin Vejo que preciso ensinar-lhe esse segredo, meu Mestre, a troco de que meVejo que preciso ensinar-lhe esse segredo, meu Mestre, a troco de que mepagues um trago.pagues um trago.MondorMondor No h nada que um homem virtuoso esteja impedido de fazer em trocaNo h nada que um homem virtuoso esteja impedido de fazer em trocade aprender mais de qualquer cincia...de aprender mais de qualquer cincia...

    TabarinTabarin O primeiro que sair de um saco se um moleiro, um aougueiro, um o cial deO primeiro que sair de um saco se um moleiro, um aougueiro, um oficial dejustia e um procurador estiverem dentro dele ser um ladro, meu Mestre: nojustia e um procurador estiverem dentro dele ser um ladro, meu Mestre: noh nada mais certo do que eu disse.h nada mais certo do que eu disse.

    Tabarin ficou famoso tambm por seu chapu. Conseguia fazer 52 personagens diferentes apenas

    modificando o formato do chapu. Fazia uma velha namoradeira, um nobre metido, um policial malvado,

    um soldado covarde tudo com pequenas modificaes no seu malevel e imenso chapu. A expresso

    como o chapu de Tabarin entrou para o uso corrente por muitos e muitos anos. E at hoje um espetculo

    estapafrdio chamado de une tabarinade.

    Com o sucesso, Tabarin ganhou muito dinheiro e teve suas histrias vendidas em pequenos panfletos

    e mais tarde editadas em livros. Em 1630, retira-se da vida artstica e, segundo alguns autores, compra

    uma linda propriedade nos arredores de Paris. Seus vizinhos, no entanto, teriam se sentido ofendidos

    com a presena de um Pantaleo, um enganador de basbaques entre abastados e respeitados bur-

    gueses. Em 1633, teria sido assassinado a mando de seus preconceituosos vizinhos.

    Tabarin vira lenda e, em 1634, em Paris, comea a circular um livreto com O Encontro de Gaultier-GarguilleeTabarin no outro mundo, farsa deliciosa que mostra o encontro de Tabarin com o recm

    falecido cmico do Hotel de Bourgogne.

    Gaultier-Garguille e Gros Guillaume fizeram imenso sucesso durante o liberal reinado de Luiz XIII, de

    quem receberam o privilgio real que lhes assegurava que ningum teria o direito de fazer canes mais

    dissolutas que a deles. Tinham a proteo do rei para serem os mais devassos.

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    O

    C L O W N E O

    P A L H A O

    D E C I R C

    O

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    O CLOWN E O PALHAO DE CIRCO

    Clown uma palavra inglesa derivada de colonus e clod, palavras de origem latina que designam

    os que cultivam a terra, a mesma origem da portuguesa colono. Clown o campons rstico, um roceiro,

    um simples, um simplrio, um estpido caipira. De incio, o sentido era apenas o de roceiro, mas a conota-

    o pejorativa vai se entranhando aos poucos e clownpassa a identificar um roceiro estpido e bronco.

    As primeiras referncias ao clownso do sculo XVI quando, na Inglaterra, os espetculos de Mistrios

    e Moralidades, que baseavam-se na vida dos Santos e em histrias livremente adaptadas da Bblia, incor-

    poram um terceiro personagem cmico: o rstico. At mais ou menos 1550, a comicidade desse tipo de

    espetculo estava a cargo do Diabo e do Vice, personagem recorrente que representava todas as fraquezas

    humanas. O Vice era um campons velhaco, canalha, pecador incorrigvel, fanfarro e covarde que, por

    algum motivo, deparava-se com o Diabo, sempre acompanhado de um squito de pequenos demnios e

    metido em situaes cmicas que o transformavam numa figura ridcula. Esse tipo de espetculo contribuiu

    muito para a representao do Prncipe das Trevas com rabo, capa vermelha, chifres e um grande garfo com

    o qual empurrava os pecadores para a Boca do Inferno. O Diabo e o Vice sempre acabavam em algum tipo

    de disputa ou aposta que o Vice vencia usando de alguma esperteza ou tramia. No final o Diabo levava

    uma grande surra do Vice, para alegria e gozo da platia.

    Em algum momento, a partir dos anos 1550, o Vice ganhou um companheiro, um parceiro - o rstico

    -, campons ingnuo, medroso e supersticioso. Ao longo dos anos, o personagem do rstico vai se de-

    senvolvendo e se transformando num elemento risvel, motivo de chacota de todos os personagens. Por

    volta de 1580 o termo clown, para o rstico, j aparece na cena elizabetana. E, entre 1580 e 1590, a

    qualificao do personagem passa de umclownpara oclown. Agora ele um tipo de caractersticas

    bem definidas. O clownelizabetano adquire um novo status: continua um grosseiro, mas ganha es-

    perteza e passa a ocupar uma posio social mais elevada. Sua linguagem tambm evolui. Expressa-se

    com palavras difceis, num linguajar complicado, cheio de hiprboles, que o aproxima dos Dottoresda

    Commedia dellarte e dos charlates de feira.

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    Richard Tarlton ( ? 1588), O Clown da Rainha

    Msico, compositor, danarino, autor, ator e clownnasceu em Condover, Inglaterra, e faleceu emLondres no dia 3 de setembro de 1588. Foi o mais famoso cmico de sua poca, sendo considerado o

    criador do personagem rstico e um dos melhores clownsde todos os tempos. Baixinho, quase ano,

    apresentava-se com suas botas de campons, seu gibo grosseiro, culotes e sempre carregando um

    pequeno tambor. Shakespeare inspirou-se nele quando criou Bottom, de Sonho de uma noite de vero,

    e o Yorick, de Hamlet.

    Por muitos anos Tarlton foi taberneiro em Londres e era l, na sua taberna, que ele realizava seus es-

    petculos, cantando e tocando suas baladas para um pblico que mesclava pobres e nobres. Seu primeiro

    sucesso a entrar para a histria foi uma balada sobre o dilvio, composta em 1570. Em 1579, j era famoso

    e cmico favorito da rainha Elizabeth I, o nico que sabia como lidar com ela nos seus momentos de mauhumor e que ousava apontar-lhe os erros.

    O danarino e o escritor - Os Clownsde Shakespeare

    William Kemp (1560 1603) Em 1589, William Kemp fazia parte da companhia teatral Lord Stranges

    Men, da qual Shakespeare era dramaturgo. Mais tarde os dois foram para a Lord Chamberlains Men, onde

    em 1598 ele representou o papel de Dogberryna pea Como Gostais (As You Like it). Kemp ganhou fama

    pelas danas que apresentava no intervalo ou no final dos espetculos. Cantando e danando a jiga,

    fazia piadas em verso, improvisando com a platia. Ao que tudo indica, seu estilo pesado e grosseiro noagradava seus colegas e especialmente a Shakespeare, que estaria se vingando de Kemp quando escreve

    no Hamleta crtica aos clownse sua mania de colocar improvisos que descaracterizavam o texto. Kemp

    deixa a companhia em 1599 e obrigado a enfrentar as dificuldades de uma carreira solo. Pouco tempo

    depois, em 1600, numa brilhante jogada de marketing, anuncia que vai fazer o percurso de 160 km,

    de Norfolk a Londres, danando a jiga. Kemp realiza o feito e obtm retumbante sucesso. O Prefeito de

    Norfolk entra na promoo e concede ao palhao uma penso vitalcia. Infelizmente Kemp no viveu muito

    tempo para desfrutar a tranquilidade de ter a subsistncia assegurada: a peste de 1603 o levou. Em 2000,

    quatrocentos anos depois de sua caminhada-danada, a prefeitura de Norfolk organizou um festival em

    homenagem a William Kemp e reeditou seu feito, mantendo viva a memria do palhao danarino.

    Robert Armin (1568 1615) Quando Kemp deixa a companhia de Shakespeare substitudo por Ro-

    bert Armin, filho adotivo de Richard Tarlton. Armin tinha um estilo bem diferente de Kemp e isso pode ser

    sentido nos personagens que Shakespeare escreveu especialmente para ele. Enquanto Kemp brilhava nos

    tipos obtusos e simplrios, Armin sobressaa-se nos bobos da corte aparentemente tolos, mas cheios de

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    sabedoria e de sutilezas. Para ele Shakespeare escreveu o papel de Feste, o bufo de Noite de Reis (Twelfth

    Night), e o bufo que acompanha o rei Lear em sua desgraa. Robert Armin foi autor de livros e peaspara teatro, tendo sido um dos primeiros a escrever uma histria do humor com o seu Foole upon Foole,

    livro em que conta a histria de diversos bobos da corte e faz uma coletnea de piadas e brincadeiras.

    O Circo e o palhao de Circo

    Em 1768, o sargento ingls Philip Astley (1742-1814) construiu um anfiteatro a cu aberto onde pela

    manh dava aulas de hipismo e tarde apresentava espetculos equestres. Astley no era o nico. Nessa

    poca, em Londres, apresentavam-se tambm as companhias equestres de Hayam, Jacob Bates e Price.

    Mas foi Astley quem teve a idia que acabaria por revolucionar o mundo d