Elogio da filosofia

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ELOGIO DA FILOSOFIA Nenhuma coisa humana é digna de uma admiração incondicional. Também a filosofia não é possuidora de todas as virtudes, como piedosamente nos fazem crer os manuais escolares da disciplina. Podemos até pôr em causa o seu valor, alegando que as teorias filosóficas são, por vezes, jogos de palavras sem sentido, ou terem algumas teorias servido para justificar a atuação de tiranos (falemos, apenas, da ditadura dos mais sábios, proposta na obra A República, pelo filósofo Platão, no século IV a.c. ,e que sempre colheu o agrado dos aspirantes a déspotas iluminados; ou ainda, o mito do grandioso destino a que estaria votado o povo alemão, mito alimentado por pensadores tão distintos como Nietzsche ou Heidegger, e que foi usado por Hitler para justificar o seu sonho louco de poder e a guerra total). Contudo, uma civilização teórica como a ocidental, que fez da busca do conhecimento uma paixão e apurou o conhecimento científico-tecnológico ao ponto de ser o mais poderoso instrumento de mudança social e ecológica, não pode deixar de reconhecer à filosofia o mérito histórico de ter modificado para sempre a nossa compreensão da realidade: A intuição grega (Pitágoras, Platão) de que o funcionamento do universo obedece a padrões fixos (leis), e pode ser compreendido matematicamente; a desconfiança sistemática (Galileu, Descartes) relativamente à fiabilidade dos órgãos dos sentidos e que se traduz, na

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ELOGIO DA FILOSOFIA

Nenhuma coisa humana é digna de uma admiração incondicional. Também a filosofia não é possuidora de todas as virtudes, como piedosamente nos fazem crer os manuais escolares da disciplina. Podemos até pôr em causa o seu valor, alegando que as teorias filosóficas são, por vezes, jogos de palavras sem sentido, ou terem algumas teorias servido para justificar a atuação de tiranos (falemos, apenas, da ditadura dos mais sábios, proposta na obra A República, pelo filósofo Platão, no século IV a.c. ,e que sempre colheu o agrado dos aspirantes a déspotas iluminados; ou ainda, o mito do grandioso destino a que estaria votado o povo alemão, mito alimentado por pensadores tão distintos como Nietzsche ou Heidegger, e que foi usado por Hitler para justificar o seu sonho louco de poder e a guerra total).

Contudo, uma civilização teórica como a ocidental, que fez da busca do conhecimento uma paixão e apurou o conhecimento científico-tecnológico ao ponto de ser o mais poderoso instrumento de mudança social e ecológica, não pode deixar de reconhecer à filosofia o mérito histórico de ter modificado para sempre a nossa compreensão da realidade: A intuição grega (Pitágoras, Platão) de que o funcionamento do universo obedece a padrões fixos (leis), e pode ser compreendido matematicamente; a desconfiança sistemática (Galileu, Descartes) relativamente à fiabilidade dos órgãos dos sentidos e que se traduz, na actualidade, numa ciência em ruptura completa com as falsas evidências do senso comum; a crítica cerrada às crenças de que o Homem é um ser racional (Schopenhauer) e espiritual, desenraizado da sua História e condições materiais de existência (Marx); e, para não me alongar mais, a ideia de que o Homem é a medida de todas as coisas (a afirmação de Protágoras implica um relativismo moral, religioso, artístico e cognitivo), perspectiva que já vinha da antiga Grécia – a nossa dívida para com os gregos antigos é colossal! – e que foi retomada em força por Nietzsche, no século dezanove, bem como pelas ciências sociais então emergentes.

Naquilo que me toca, é um privilégio e um prazer requintado ler e “conversar”, numa relação madura de trinta anos, com esses livres pensadores que produzem longas, belas e majestosas cadeias de

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raciocínios destinadas a nelas compreender todos os seres e relações do Universo (como se isso fosse possível !...). E como esses espíritos livres nos ajudam a perceber os mecanismos económicos, políticos, religiosos e científicos utilizados por quem nos quer dominar! Descortinar os fios secretos que castram a tua energia vital, que limitam os movimentos da tua energia criadora, é já tornares-te livre.

professor de Filosofia : José Fernando Carvalho