EM DEFESA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: POR UM … · origem nas raízes do descobrimento e que perdura...

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1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia EM DEFESA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: POR UM AMANHÃ QUE HÁ DE RENASCER SEM PEDIR LICENÇA Ilana Lemos de Paiva Natal 2003

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Universidade Federal do Rio Grande do NorteCentro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

EM DEFESA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: POR UM AMANHÃ QUE HÁ DE RENASCER SEM PEDIR LICENÇA

Ilana Lemos de Paiva

Natal2003

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Ilana Lemos de Paiva

EM DEFESA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: POR UM AMANHÃ QUE HÁ DE RENASCER SEM PEDIR LICENÇA

Dissertação elaborada sob orientação do Prof. Dr. Oswaldo Hajime Yamamoto e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre emPsicologia.

Natal2003

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A dissertação "Em defesa da Reforma Psiquiátrica: por um amanhã que há de renascer

sem pedir licença", elaborada por "Ilana Lemos de Paiva", foi considerada aprovada por

todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em

Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA.

Natal, RN, __ de ________ de 200__

BANCA EXAMINADORA

Prf. Drª Maria Lúcia Boarini ___________________

Prof. Dr. Herculano Ricardo Campos ____________________

Prof. Dr. Oswaldo Hajime Yamamoto ____________________

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Nesta hora, as vozes, que se calam, são vozes que se acumpliciam e os braços, que se cruzam, são braços que colaboram.

MILTON CAMPOS

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Agradecimentos

Ao Prof. Dr. Oswaldo Hajime Yamamoto, meu orientador, cujo apoio, incentivo,

carinho e paciência com que me orientou durante toda a minha trajetória acadêmica

excedem qualquer possibilidade de agradecimento.

Ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia e seus professores, por todo o

conhecimento adquirido e apoio fornecido para a realização do Mestrado.

À Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de

estudo que possibilitou a realização deste trabalho.

A todos os que fazem a Base de Pesquisa Marxismo e Educação, em especial a Alex

Reinecke, Denis Carvalho, Isabel Fernandes e Herculano Campos, por todas as

contribuições que deram a este trabalho.

À Coordenação de Saúde Mental de Natal pela atenção e disponibilidade em contribuir

com este trabalho e pelos dados fornecidos.

A todos os entrevistados que me receberam com carinho e me ajudaram a contar um

pouco dessa história.

Aos técnicos e usuários dos NAPS que fazem diariamente a verdadeira defesa da

reforma psiquiátrica.

A minha família, por absolutamente TUDO, em especial à minha mãe, Eliana, pela

dedicação e disponibilidade em me ajudar com este trabalho, ao meu pai, Hugo, pela

presteza em todas as horas que precisei, e à minha irmã Uliana, pela sua alma poética

que me ajudou nos momentos de pouca inspiração.

A todos os amigos que me apoiaram e me ajudaram, em especial a Vander Adriani, por

ser companheiro de todas as horas.

Aos que de alguma forma contribuíram para este trabalho, em especial Eduardo

Capucho, Profª. Elizabete Matalo, Airles, Suelaine e Maria Emília Yamamoto (pela

ajuda), aos amigos do CVV (pela solidariedade) e do CEDB (pelo incentivo de sempre).

Enfim a TODOS os que estiveram comigo durante este percurso o meu muito obrigada!

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Sumário

Lista de Figuras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . vii

Lista de Tabelas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . viii

Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ix

Abstract . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . x

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Parte I: A exclusão social da loucura e as primeiras experiências de reforma

psiquiátrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

Capítulo I: Breves considerações sobre a loucura e sua marcha histórica.. . . . 25

Capítulo II: O sopro da idéia de mudança: a luta pela derrocada do modelo asilar à guisa

de lançar um novo trato da questão da loucura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56

Parte II: Da reforma psiquiátrica brasileira à experiência do Rio Grande do Norte.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

Capítulo I: A reforma psiquiátrica no Brasil: Corações insones em defesa dos “insanos”.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74

Capítulo II: Ressignificando a loucura: contribuições à história da reforma psiquiátrica

no Rio Grande do Norte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

101

Capítulo III: Diagnóstico da situação atual: o papel da Psicologia e do NAPS em

concretizar os ideais de ressocialização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

Considerações finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159

Anexos

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Lista de figuras

Figura Página

1 Histórico de internação dos usuários antes do tratamento nos

NAPS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

2 Histórico de internação dos usuários durante o tratamento nos

NAPS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .123

3 Admissão anual de usuários nos NAPS . . . . . . . . . . 145

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Lista de tabelas

Tabela Página

1 Financiamento para saúde mental no Rio Grande do Norte. . . . 143

2 Média de custo mensal e diário dos pacientes internos em hospitais

psiquiátricos e nos NAPS e CAPS no período de janeiro/março de 2002.

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Resumo

A loucura foi vítima de inúmeras arbitrariedades cometidas em nome da ciência. A reforma psiquiátrica constitui um importante movimento que tenta resgatar a dignidade e a humanização no tratamento dos portadores de transtornos mentais. Alguns países avançaram na implementação de modelos substitutivos que constroem um novo lugar social para a loucura. O modelo de atenção à saúde mental brasileira também sofreu amplas modificações em face do esgotamento do modelo manicomial. No município de Santos, localizado no estado de São Paulo, encontraremos um dos marcos maisimportantes na concretização de uma política antimanicomial, através da criação de umserviço de atenção diária com proposta de atendimento voltado para a reabilitação psicossocial. É nesse contexto que são criados em Natal, Rio Grande do Norte, os NAPS e o CAPS (Núcleos e Centro de Atenção Psicossocial), estratégias municipaispara a efetivação da lei nº 10. 216/2001, que prevê a gradativa extinção dos Hospitais Psiquiátricos. Este trabalho constituiu-se de um estudo acerca do processo histórico de implantação da reforma psiquiátrica no estado do Rio Grande do Norte, destacando-se os atores envolvidos nesse processo, sua trajetória, conquistas, avanços e perspectivas desse movimento em concretizar os ideais de ressocialização do portador de doença mental. Para realizar este resgate, fez-se necessário compreender o processo ocorrido na Secretaria Municipal de Saúde de Natal, a partir do ano de 1992, por ter sido a experiência impulsionadora das reflexões sobre a reforma psiquiátrica em todo o estado do Rio Grande do Norte. Os instrumentos utilizados para esse estudo foram a análise documental, através de relatórios, legislações e prontuários, bem como a coleta de depoimentos das pessoas envolvidas nesse processo. Através da análise dos depoimentos, buscou-se construir a identidade dos atores sociais, sua percepção dos fatos, ressaltando-se congruências e incongruências a respeito da história da reformapsiquiátrica no estado do Rio Grande do Norte. Analisou-se também o papel da Psicologia nesse processo, que se tornou um protagonista na luta pelos direitos dos portadores de transtornos mentais.

Palavras-chaves: reforma psiquiátrica, saúde mental e reabilitação psicossocial.

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Abstract

Insanity was victim of several arbitrary acts perpetrated on behalf of the science. Psychiatric reform constitues an important movement which has attempted to rescue dignity and humanity in the treatment of mental disorder patients. Some countries have advanced in the implement of substutive models that work on the construction of a new social place for madness. The model of attention to mental health in Brazil has also suffered extensive modifications due to the wearing out of the psychiatric hospital model. In Santos, a town in the State of Sao Paulo, we have found a landmark in the development of an anti internment politics, through the creation of a dail care service, including psychosocial assistance. It is in this context that it has been founded in Natal, Rio Grande do Norte, the NAPS and CAPS ( Nucleus and Centres of Psychosocial Attention), municipal strategies that put into effect the law # 10.216/2001, which estabilishes the gradual extinction of psychiatric hospitals. This work has the purpose ofcarrying out a study about the historical process of psychiatric reform implantation in the State of Rio Grande do Norte, emphasizing the actors involved in process, their trajectory, achievements, improvements, and the movement’s perspectives of achieving the ideal of reinstating mental disorder patients. In order to accomplish this purpose, it was necessary to understand the process occurred at the Municipal Secretary’s Office for Health, since 1992, for it was the impelling experience towards the reflections about the psychiatric reform in the State of Rio Grande do Norte. The instruments used for this work were documentary analysis, through reports, legislation and handbooks, as well as the staments of people involved in this process. Through the statements analysis, we attempted to estabilish the social actors identity, their perception, emphasizingcongruences and incongruences concerning the history of psychiatric reform in the State of Rio Grande do Norte. It is also analyzed the contribution of Psychology in this process, which has become a protagonist in the struggle for the rights of mental disorder patients.

Key words: mental health, psychiatric reform and psychosocial rehabilitation.

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Introdução

Apesar de você amanhã há de ser outro diaAinda pago para ver o jardim florescer qual você não queria Você vai se amargar vendo o dia raiar sem lhe pedir licença E eu vou morrer de rir que esse dia há de vir antes do que você pensa (Chico Buarque de Holanda)

Analisando a história social e cultural do Brasil, encontraremos marcas

indeléveis de dominação e exploração de um povo. Tais marcas refletem hoje uma

cultura darwinista em que impera a lei do mais forte sobre o mais fraco. Marilena

Chauí (2000) questiona-se: o que podemos comemorar em 500 anos de História do

Brasil? Para a autora, não há muito a comemorar, tendo em vista que o Brasil ocupa o

terceiro lugar mundial em índice de desemprego e o segundo lugar mundial nos índices

de concentração de renda e má distribuição da riqueza: dois por cento possuem noventa

e oito por cento da renda nacional.

A sua análise aponta também para uma cultura senhorial que tem sua

origem nas raízes do descobrimento e que perdura até os dias atuais. Essa “cultura

senhorial” impede a existência de uma flexibilidade entre a base da sociedade e a sua

cúpula, criando o conhecido abismo entre as classes, tornando as desigualdades sociais

intransponíveis no nosso país. Nessa lógica, as classes populares percebem o Estado

como “poder dos outros”, oscilando entre a sacralização e a adoração dos “bons”

governantes e a satanização e execração dos maus governantes (Chauí, 2000), mas

nunca visto do ponto da participação.

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O autoritarismo social e político que se instaura no Brasil, desde então,

vem reforçando a predominância de um capitalismo semi-feudal, em que o Estado

deveria harmonizar as relações entre capital e trabalho. No entanto, harmoniza-se

apenas com o capital, tornando a ascensão dos trabalhadores um sonho distante.

Há de se pensar, no entanto, que vivemos uma democracia, um país onde

todos os seus cidadãos deveriam ter vez e ter voz, ter as suas necessidades atendidas e,

enfim, viver com dignidade.

Não se faz necessário dizer que a nossa democracia é bastante distorcida

e a realidade social brasileira está muito longe de se chamar democrática. Basta lembrar

que cidadania e democracia andam juntas, e numa nação onde existem milhares de

pessoas sem-teto, sem-comida, sem-educação, não poderia se intitular democrática, a

bem da verdade.

Poderemos encontrar as raízes dessa cultura de exploração na formação

do Brasil.1 Basta analisarmos a questão dos grandes latifúndios, a má distribuição das

terras e a colonização dos índios ao longo de toda a história do país.

Nessa sociedade autoritária, que se constituiu baseada numa cultura

senhorial, as diferenças e desigualdades são naturalizadas. Os altos índices de

concentração de renda e de pobreza não são vistos como socialmente inaceitáveis, mas

como algo normal, atribuído à preguiça, à ignorância e à incompetência dos miseráveis.

Além disso, a formação da sociedade brasileira trabalhou historicamente

no sentido de bloquear a emergência dos conflitos advindos das contradições sociais,

econômicas e políticas. Uma sociedade organizada, que expõe esses conflitos e essas

1 Sobre isso ver Ribeiro (1998), Chauí (2000), Prado Júnior (1971), Holanda (1995).

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contradições, é vista como perigosa para o Estado. Por outro lado, a classe dominante

brasileira é extremamente eficaz em inibir as ações sociais, como assistimos claramente

na época da ditadura. Atualmente, ocorreram mudanças estruturais nos mecanismos

que controlam a sociedade: a dominação baseada na força perde espaço para a

dominação baseada no convencimento.

Assistimos a 500 anos de exploração, de domínio, de poder... Será que

raízes tão profundas, culturas senhoriais tão arraigadas no nosso povo, marcas tão

dolorosas podem ser modificadas?

Infelizmente, o modelo econômico vigente no nosso país, sustentado nas

raízes do liberalismo, não aponta para a construção de uma sociedade diferente. A

política neoliberal reforça a estrutura histórica da sociedade brasileira, focalizada na

divisão social e nos privilégios da classe dominante. No Brasil, essa política econômica

leva ao extremo o abismo entre as classes sociais e a exclusão das camadas pobres,

através do desemprego, da desorganização política e da difusão da alienação. A

sociedade brasileira, outrora organizada em movimentos sociais e populares, caminha

para trás na história da construção da cidadania.

Diante do esfacelamento das conquistas históricas de cidadania as

relações sociais são vistas sempre hierarquicamente, verticalizadas em todos os seus

aspectos, com um superior que manda, e um inferior que obedece. Segundo Chauí

(2000), as diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades:

O outro jamais é reconhecido como sujeito nem comosujeito de direitos, jamais é reconhecido comosubjetividade nem como alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de ‘parentesco’, isto é, de cumplicidade ou de compadrio; e entre os que são vistos como desiguais o relacionamento assume a forma de favor, da clientela, da tutela ou da cooptação. Enfim,quando a desigualdade é muito marcada, a relação social

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assume a forma nua da opressão física e/ou psíquica (p. 89).

Em nome de uma sociedade “indivisa, pacífica e ordeira” (Chauí, 2000,

p. 91), as relações tornaram-se intoleráveis às diferenças e aos conflitos, utilizando

diferentes mecanismos de opressão para excluir as “minorias” da paisagem social.

O presente estudo faz referência a um tipo de opressão e exclusão de

minorias: a opressão física e psicológica sofrida por milhares de portadores de doença

mental ao longo de décadas.

Lembrando as palavras de Maltzman (citado por Desviat, 1999): “E eles

se deram conta de que as necessidades das pessoas com distúrbios mentais não são

fundamentalmente diferentes das do resto: moradia digna, trabalho, renda fixa, amigos,

vizinhos receptivos e tudo o mais” (p. 87). É impossível, então, pensar isoladamente a

cidadania dessas pessoas, sem compreender minimamente a realidade social brasileira e

o que é ser cidadão no nosso contexto atual. Como se não bastassem todos os desafios

para que sujeitos expurgados do meio social, em nome dessa ordem citada

anteriormente, pudessem ser reinseridos na sociedade, os desafios desse movimento não

estão desvinculados de todas as conquistas que as classes oprimidas deste país terão que

efetuar.

Os manicômios, encarregados de “curar” e “tratar” os ditos insanos, são

a materialização concreta dos mecanismos de opressão e de ditadura instaurados na

nossa sociedade. Historicamente, eles sempre se constituíram como espaços de

violência e arbitrariedade contra a população por eles assistida, como se reflete na

argumentação de Castel (1978a):

Locais vetustos e superpovoados, de uma feiúra chocante, a sujeira, a rigidez militar do regulamento, a penúria das modernas aparelhagens técnicas, os processos de tomada

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de decisão caracterizados pela total ausência de harmonia,a lentidão com que caminham as informações percorrendo os circuitos mais irracionais, o desperdício de tempo e de energias, a estagnação na ociosidade e no tédio (p. 150).

Diante da crise desse modelo de assistência, o debate mundial acerca do

destino social do doente mental ganha força e começa a fazer eco entre os setores

profissionais, governamentais e sociais, que vêm manifestando-se sobre os efeitos

nocivos das práticas manicomiais. No Brasil, é inegável o percurso de transformação

que ocorreu nas últimas décadas no campo da saúde mental.

No município de Santos, localizado no estado de São Paulo, encontramos

um dos marcos na concretização de uma política antimanicomial, através da criação de

um serviço de atenção diária, com proposta de um atendimento voltado para a

assistência psicossocial. Entre os anos de 1990 e 2001 são criados em todo o Brasil

cerca de 300 NAPS e CAPS (Núcleos e Centros de Atenção Psicossocial).

É nesse contexto que são criados em Natal, Rio Grande do Norte, os

NAPS e CAPS, estratégias municipais para a efetivação do que se denominou reforma

psiquiátrica.

Após essas significativas conquistas, o projeto de uma rede substitutiva

ao modelo manicomial parece estagnar. Em Natal, o movimento apóia-se, atualmente,

em três núcleos de assistência. Dessa forma, como podemos pensar na eficiência desses

serviços, quando não se encontram estruturados como uma grande rede de apoio? Quais

os objetivos atuais desses serviços diante da presente configuração e qual o seu grau de

resolutividade?

Tais perguntas são de extrema pertinência, tendo em vista a relevância

social e científica do tema abordado. É importante recordar, nas palavras de Lobosque

(1997), que a questão da loucura não se limita a uma discussão “psi”, mas trata-se de

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um movimento em prol da construção da cidadania. E se, como cidadãos, temos o

dever de sermos engajados socialmente, como profissionais que lidam com seres

humanos, nossos deveres são duplamente cobrados.

É importante ressaltar que a noção de cidadania utilizada neste trabalho

vai muito além do conhecimento dos direitos e deveres, conceito admitido por grande

parte da população brasileira. Tal conceito não é suficiente, tendo em vista que

apresenta direitos e deveres como algo pronto, transformando o sujeito em ser passivo e

a-crítico da realidade. O conceito de cidadania proposto por este trabalho está baseado

em Gramsci, entendendo a cidadania como uma perspectiva ético-política, ou seja,

cidadão é o sujeito do seu próprio destino e da comunidade em que vive. Nessa

perspectiva, cidadania é a participação dos indivíduos em determinada comunidade, em

busca da igualdade, ajudando a construir a sua própria história.

O conceito de reforma psiquiátrica (bem como demais categorias teóricas

nela presentes), utilizado neste trabalho, será tratado detalhadamente ao longo da sua

apresentação. No entanto, acredita-se que qualquer perspectiva de reforma que não leve

em consideração a construção da cidadania dos usuários, não concretizará plenamente

os seus ideais.

Lobosque (1997) nos lembra que temos denunciado com veemência o

fracasso do manicômio. Resta-nos saber, entretanto, quais os efeitos possíveis de obter-

se nesses novos espaços, indagando aos seus trabalhadores e usuários “sobre essa

clínica que principia desarmada” (p. 31). Afinal, a derrubada de muros não será

suficiente se os mesmos preceitos, os mesmos preconceitos e o mesmo comodismo

continuar a imperar no pensamento dos cidadãos e na atuação prática dos nossos

profissionais, como nos diz Fernandes (1999):

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Temos hoje pela frente, em relação à reflexão sobre a extinção dos manicômios, que enfrentar um desafio: desvendar as brechas através das quais os processos manicomiais continuam a se insinuar sob as vestes dos novos discursos e das novas práticas. A incorporação de um discurso e a criação de novas modalidades de ação emsaúde não garantem a extinção dos mecanismos de exclusão e segregação (p. 39).

Segundo Boarini (2000), ainda são pálidos os sinais de implantação de

uma rede de atendimento que paulatinamente vá substituindo os hospitais psiquiátricos.

A autora chama a atenção para a aplicação da portaria 224, do Ministério da Saúde, que

prevê o atendimento às pessoas portadoras de transtornos mentais na rede pública extra-

hospitalar e por equipe multiprofissional. O que assistimos, na realidade, é a falta de

equipes mulitiprofissionais nas unidades básicas de saúde, havendo muitos municípios

que contam apenas com o psicólogo para dar conta das demandas em saúde mental. E

aqui encontramos um outro problema, tratado por este estudo, que é a confusão de

papéis na chamada Psicologia da Saúde. Para Boarini, a questão central da reforma

psiquiátrica, a desinstitucionalização, não está clara para a maioria desses profissionais.

A implantação de uma rede articulada de serviços substitutivos é uma

outra grande dificuldade dos estados que iniciaram o processo de reforma psiquiátrica

tardiamente. Daúd Jr. (2000) aponta que muitos municípios acabam optando pela

criação de “modelos espaçocêntricos” em detrimento da utilização da rede de atenção

integral à saúde (p. 58).

Tudo isso faz com que o conjunto de produções que subsidiam a nossa

reforma psiquiátrica, como Conferências, Resoluções e Portarias, vá se transformando

em “letra morta” (Boarini, 2000, p. 68)

A avaliação cuidadosa dos rumos que a reforma psiquiátrica vem

tomando leva-nos a verificar se os novos serviços estão assumindo o caráter

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substitutivo, ou apenas “criando uma nova demanda, formando uma rede paralela,

talvez medicalizante/psicologizante, talvez cronicizante” (Amarante et al., 2001, p. 58).

O momento atual, no que diz respeito à reforma psiquiátrica no nosso

país, é de avaliação destes novos serviços. É preciso, então, conhecer este passado, para

que possamos vislumbrar aonde queremos chegar e como caminharemos até lá.

Este trabalho objetiva contribuir para esta avaliação, através da

realização de um estudo acerca de como se processou a reforma psiquiátrica no Rio

Grande do Norte, os atores envolvidos no processo, sua trajetória, conquistas, avanços e

perspectivas do movimento em concretizar o ideal de ressocialização do portador de

doença mental.

Acreditamos que os resultados deste estudo, ao enfocar a implantação da

reforma no âmbito estadual, podem trazer algumas reflexões à compreensão da reforma

psiquiátrica brasileira. Afinal, a reforma psiquiátrica no Rio Grande do Norte é um

exemplo do que está se configurando no país; apesar das especificidades desta

experiência, ela não deixa de fazer parte do todo desse processo histórico.

Para realizar este resgate, fez-se necessário compreender o processo

ocorrido na Secretaria Municipal de Saúde de Natal, a partir de 1992. A experiência do

município de Natal foi a impulsionadora das reflexões sobre a reforma psiquiátrica no

estado do Rio Grande do Norte, tornando-se a referência de uma proposta de mudança,

sendo, por isso, o foco principal deste trabalho.

Nesta perspectiva, o presente estudo pretendeu responder à seguinte

pergunta básica: como se processou a implantação da reforma psiquiátrica no estado do

Rio Grande do Norte? A partir desta pergunta norteadora, a pesquisa focalizou a sua

atenção em outras questões importantes, como: quais discussões teóricas sustentaram a

prática dos novos modelos de atenção à saúde mental? Quais eram as principais

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dificuldades enfrentadas pelos protagonistas do movimento para efetivar o modelo

proposto pela reforma psiquiátrica no estado? Que contribuição traz a Psicologia para o

debate teórico a respeito do destino social do doente mental?

Os instrumentos utilizados para a realização desta análise foram a análise

documental, através de relatórios, legislações e prontuários, bem como coleta de

depoimentos das pessoas envolvidas nesse processo. A perspectiva adotada foi a de que

os depoimentos orais, além de completar as lacunas das fontes escritas, possuem valor

próprio, na tentativa de reconstrução de um processo vivido historicamente. Através da

história oral, buscou-se construir a identidade dos atores sociais envolvidos, sua

percepção dos fatos, ressaltando-se congruências e incongruências nos depoimentos a

respeito do percurso da reforma psiquiátrica. Com estes instrumentos, foram obtidos os

seguintes dados:

- Dados sobre o processo de implantação da reforma psiquiátrica no

estado (nos níveis da legislação, do planejamento e da execução);

- Dados sócio-demográficos;

- Dados sobre a avaliação do processo de reforma psiquiátrica no estado,

na percepção dos atores sociais envolvidos.

Uma primeira etapa do trabalho constituiu-se na identificação das

pessoas envolvidas nesse processo, sendo ouvidos membros das equipes dos serviços

substitutivos, incluindo NAPS-Leste, NAPS-Oeste e CAPS, protagonistas da reforma

psiquiátrica no estado e membros da comunidade que contribuíram com o movimento.

O que se evidenciou diante das mudanças ocorridas no campo da saúde

mental em Natal, bem como em todo o estado do Rio Grande do Norte, é a construção

de um modelo que não consegue sair inteiro do papel, impossibilitando a almejada

desinstitucionalização dos portadores de doença mental. Entretanto, temos a efetivação

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de ações necessárias, que trazem reflexões importantes para a consolidação de uma

reforma psiquiátrica no estado.

Por isso, é extremante importante a reconstrução dessa trajetória, para

que se possa entender como caminhou a reforma psiquiátrica após a implantação dos

NAPS, quais avanços foram obtidos, o que de fato consegue ser efetivado do projeto

original, quais motivos seriam determinantes para o seu desenvolvimento e investigar se

os profissionais que adentraram este trabalho encontravam-se devidamente preparados

para efetuar esta proposta inovadora.

Os pontos discutidos abaixo são norteadores da compreensão do

processo que se deu no estado e confirmadas pelos depoimentos:

- Os profissionais que atuaram e ainda atuam nestes serviços não

conseguiram falar a mesma língua, tornando suas posições pessoais e referenciais

teóricos como verdades absolutas para desenvolver o seu trabalho. Isso se deveu, em

grande parte, à fragilidade teórica do modelo proposto, já que este ainda está em

construção;

- A formação precária dos profissionais na área de saúde mental, a má-

vontade política, o lobby dos hospitais psiquiátricos, bem como a resistência de outros

setores da sociedade, bloquearam os avanços, prejudicando o êxito pleno do trabalho;

- Os profissionais de Psicologia ocuparam um papel decisivo no processo

de implantação da reforma psiquiátrica no estado, tornando-se um dos seus principais

protagonistas, estando o modelo de assistência à saúde mental em Natal, condicionado

aos posicionamentos teóricos dos psicólogos que se encontravam à frente do

movimento.

Como vimos, não é por acaso que a Psicologia toma essa dimensão na

discussão sobre a reforma psiquiátrica. Após a portaria 224, um grande espaço se abriu

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para esses profissionais. Acontece que a formação das universidades ainda é muito

tímida com relação à prática do psicólogo na rede pública. No entanto, a inserção

desses profissionais na rede é uma realidade concreta e importante, que precisa ser

analisada.

Durante a minha formação no curso de Psicologia, passei a me interessar

por trabalhos de cunho social, que ultrapassassem as paredes do consultório e

atingissem uma parcela maior da população, considerada excluída. Por que esperar as

pessoas adoecerem e virem bater à sua porta, enquanto você passivamente espera nas

confortáveis salas da clínica? A minha grande preocupação sempre foi como o

psicólogo poderia atuar de forma a contribuir com a transformação social, sendo um

agente ativo no despertar de consciências.

Com a realização deste trabalho, pude também resgatar um pouco dessas

questões, na tentativa de reconstruir a história do “louco” em busca de sua dignidade,

reconhecendo os atores que estão envolvidos nesse processo.

Trabalha-se com a defesa da reforma psiquiátrica, por ela estar

imbuída dos ideais de uma sociedade realmente igualitária e humana, primando pela

reinserção social dos excluídos, como são os loucos, baseando-se nos princípios da

liberdade, igualdade e fraternidade. Enfim, por uma sociedade livre da opressão,

preconceito e ignorância.

O percurso deste trabalho tenta reconstruir a história de sofrimento e

exclusão desses sujeitos, na tentativa de se compreender minimante como nasce a sua

exclusão social, para que, olhando esse passado, possamos argumentar a defesa da

reforma psiquiátrica.

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Desta forma, o trabalho divide-se em duas partes. Na primeira, discorre-se sobre a

exclusão social da loucura, durante o tempo, e sobre as primeiras experiências

de reforma psiquiátrica no mundo. No primeiro capítulo, há uma breve reconstrução

dos caminhos sombrios percorridos pela loucura desde a idade média até a chamada

medicalização da loucura, quando ocorre o nascimento dos hospitais psiquiátricos. O

surgimento dos primeiros hospitais e tratamentos, baseados na manutenção da ordem

pública, são tratados neste capítulo. O segundo capítulo trata do início da efervescência

das idéias reformistas. Várias experiências iniciais de reforma psiquiátrica são citadas,

inclusive a experiência italiana, fonte de inspiração para a reforma psiquiátrica

brasileira.

A segunda parte do trabalho descreve o processo de reforma psiquiátrica

no Brasil e no Rio Grande do Norte.

O primeiro capítulo, sobre a reforma psiquiátrica no Brasil, destaca o

contexto político da época, as mudanças estruturais na área da saúde e as primeiras

experiências de substituição do modelo asilar, como a que ocorreu em Santos, no estado

de São Paulo. O segundo capítulo trata da reforma psiquiátrica no âmbito estadual. É

neste capítulo que se encontra a contribuição que se pretende dar às reflexões da

reforma psiquiátrica no Brasil. A experiência no estado do Rio Grande do Norte foi

reconstruída com base nos instrumentos citados anteriormente. No entrelaçar dos

depoimentos, a história da reforma psiquiátrica no estado vai sendo contada, bem como

várias reflexões sobre esse processo vão surgindo ao longo do texto. A fim de conferir

uma maior ênfase aos depoimentos, eles são tratados diferencialmente de citações

bibliográficas, estando sempre em itálico e com recuo menor. O terceiro e último

capítulo da segunda parte, trata de um balanço da reforma psiquiátrica nesses dez anos

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de implantação no estado, destacando-se reflexões sobre o papel desempenhado pelos

NAPS e pela Psicologia na concretização dos seus ideais.

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PARTE I: A exclusão social da loucura e as primeiras experiências de reforma psiquiátrica

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Capítulo I: Breves considerações sobre a loucura e sua marcha

histórica

1. A loucura através dos tempos

“Não espereis que, de acordo com o costume dos retóricos vulgares, eu vos dê a minha definição e muito menos a minha divisão.Com efeito, que é definir? É encerrar a idéia de uma coisa nos seus justos limites. E o que é dividir? É separar uma coisa em suas diversas partes. (...) Como poderia limitar-me, quando o meu poder se estende a todo o gênero humano?” (Erasmo de Rotterdam)

Árdua tarefa a de conceituar a loucura, pergunta que acompanha

a humanidade há séculos. Mentes racionais inquietas que acreditavam a tudo

compreender e controlar, perguntam-se perplexas: afinal, o que é a loucura? É

possível defini-la? Os questionamentos em torno da loucura vão ainda além.

Por que as pessoas enlouquecem?

Tais perguntas trazem à lembrança a obra de Goethe

(1774/2001) – “Os sofrimentos do Jovem Werther”, em que seu personagem

principal afirma: “a natureza humana (...) é limitada: ela suporta a alegria, a

tristeza, a dor, até certo ponto; se o ultrapassar, irá sucumbir” (p. 50). Será

verdade, então, que “todo homem tem um ponto de ruptura” que poderá levá-lo

a paixões extremas, ações impensadas, ou quem sabe, à loucura?O escritor

Lima Barreto (1993)2 descreveu sua experiência como interno em hospital

psiquiátrico, onde conviveu com vários tipos de loucura. A sua definição,

2 Vivências do autor descritas no livro “Diário do hospício”, quando foi internado no hospital Pinel, Riode Janeiro, por problemas desencadeados pelo alcoolismo.

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então, é um problema que o inquieta, pois, apesar das várias nomenclaturas e

terminologias designadas à loucura, não se consegue uma explicação para ela:

“Todas essas explicações da origem da loucura me parecem absolutamente

pueris. Todo problema de origem é sempre insolúvel”, e mais adiante,

questiona a credibilidade científica nesta área: “(...) e os doutores mundanos

ainda gritam nas salas diante das moças embasbacadas, mostrando os colos e

os brilhantes, que a ciência tudo pode” (p. 8).

Segundo Porter (1997), até hoje não encontramos um consenso

com relação à natureza da doença mental3, ela continua sendo algo que nos

escapa. Quando recorremos ao dicionário, encontramos a seguinte definição:

“falta de discernimento, irreflexão, absurdo, insensatez”, ou ainda: “tudo o que

foge às normas, que é fora do comum, extravagante”. São muitas palavras

para designar um termo que é, na verdade, essencialmente complexo e

impreciso.

Ao analisarmos o sentido histórico da loucura, iremos nos deparar

com significações diversas, variando de acordo com o contexto social,

econômico e cultural de cada época. O que há de comum é o fato de o

sofrimento mental ser inerente ao ser humano, sendo sua presença registrada

em todas as fases da história da civilização (Foucault, 1972).

Pessotti (1999) também encontra um ponto de convergência nesta

discussão. Para ele, apesar das inúmeras variações de espécies ou subespécies

atribuídas à loucura durante esse percurso histórico, há conservado um conceito básico

que a define como “(...) perda da liberdade e da autonomia psicológica, perda do

3 Fazemos uma divisão clara, posteriormente, a respeito da distinção entre os conceitos de loucura e doença mental, já que este último surge apenas com o aparecimento da chamada medicina mental. Nesteperíodo, a loucura ganhou status de doença, passando os loucos a serem considerados “doentes mentais”.

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autogoverno, seja porque a razão se perde ou se perverte, seja porque a força do apetite

atropela o controle racional do comportamento” (p. 7).4

Na verdade, essa figura denominada louco e, posteriormente, doente

mental, traz consigo comportamentos considerados inadequados e muitas vezes

incompreensíveis para os homens. Para Foucault (1989), é preciso olhá-lo sem medo,

porque veremos muitas verdades a nosso respeito refletidas naquela figura:

O louco desvenda a verdade elementar do homem: esta o reduz a seus desejos primitivos, a seus mecanismossimples, às determinações mais prementes de seu corpo. A loucura é uma espécie de infância cronológica e social, psicológica e orgânica, do homem (p. 512).

É essa incapacidade, presente nas definições de Pessotti e Foucault,

atribuída ao louco, que fará com que ele vá perdendo paulatinamente sua essência

humana, tornando-o um ser estranho, diferente de nós, que num determinado período

histórico precisou ser expurgado do convívio social. Não caberá aqui, então, um

“elogio à loucura”, como “a única que pode trazer alegria aos homens e aos deuses”

(Rotterdam, 1509/2000, p. 15), mas o reconhecimento do sofrimento psíquico que aflige

as pessoas tidas como loucas.

No entanto, o debate acerca da loucura não se esgota nesta questão. A

sua história traz marcas profundas de preconceito e estigmas que permitiram inúmeras

arbitrariedades cometidas em nome de um “tratamento científico”. É nesse sentido que

se tenta atualmente um tratamento eficaz, que, ao mesmo tempo, resgate a dignidade e a

humanidade dessa condição.

4 Pessotti (1999) faz um mergulho histórico através do conceito de loucura e de suas divisões, desde Hipócrates até as definições atuais do Diagnóstico de Saúde Mental - DSM. É interessante perceber que cada pesquisador é marcado pelas concepções de sua época, tornando a definição de loucura um termoextremamente impreciso.

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Para entender o destino social do portador de doença mental nos dias

atuais, é necessário compreender, minimamente, como se dá este processo histórico de

total intolerância com a figura do louco. Faz-se conveniente lembrar ainda que, ao

estudar o passado, não se deve partir da premissa de que a fase atual da humanidade

sinaliza o final de um progresso, o que legitimaria o homem moderno a lançar um olhar

de superioridade aos primórdios do mundo e a conceber como perfeito o tempo

presente. A esse respeito, pontifica Foucault (2000) que se faz necessário “(...) ter em

relação a nós mesmos, a nosso presente, ao que somos, ao aqui e agora, este ceticismo

que impede que se suponha que tudo isto é melhor ou que é mais do que o passado. (...)”

(p. 140). Veremos, ao longo de todo este trabalho, que as questões relacionadas à

loucura não se encerram com a construção de rumos diferentes, mas que tais caminhos

são embrionários na construção de um novo olhar sobre a loucura.

Enfim, pretende-se desvendar onde e quando nasce a exclusão social do

louco, para compreendermos a origem do conceito de doença mental e o conseqüente

processo de desumanização que ocorre nas internações em instituições psiquiátricas. A

esse processo de desumanização refere-se Carrano (2001): “Era uma visão triste:

aquelas pessoas reduzidas àquilo. Eram pessoas sim, seres humanos, mas pareciam feras

torturadas, agoniadas, com alguma coisa mordendo seus corpos e rasgando-lhes também

a alma” (p. 54).5

5 Carrano (2001) escreveu sua história como interno em hospitais psiquiátricos na época da ditaduramilitar, tornando-se hoje membro do Movimento da Luta Antimanicomial. Seu depoimento nos faz pensar em alguns procedimentos dolorosos vividos em instituições psiquiátricas. Lembramos ainda queseu livro deu origem ao filme “Bicho de Sete Cabeças”, dirigido por Laís Bodanzk, que se transformouem importante aliado do movimento da Reforma Psiquiátrica. No entanto, um erro de interpretação podelevar a uma idéia equivocada de que o personagem principal não era louco, e portanto, não “merecia”estar ali. Na verdade, deve-se questionar a ética da equipe médica e a instituição como um todo.

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Os manicômios, na tentativa de salvaguardar a sociedade dos temores da

loucura, criaram verdadeiros “cemitérios de vivos”, que desqualificaram, excluíram e

seqüestraram dessas pessoas o direito à dignidade e à vida.

1.1. “Os Deuses devem estar Loucos”: um olhar sobre a Antiguidade e o

Renascimento

“A loucura zomba de todas as vaidades e mergulha todos no insondável mar de seus caprichos incompreensíveis” Lima Barreto

Na Idade Antiga, os fatos encontravam explicação no misticismo, logo, a

loucura era significada como manifestação dos deuses. Não havia status algum de

doença atribuído à loucura, sendo perfeitamente possível o convívio com ela. Temos

aqui a loucura sendo cultuada e reverenciada. Durante todo o período que se estende da

Antiguidade à Idade Média, o louco gozava de um certo privilégio, que tempos depois

parecer-lhe-ia impossível: a liberdade (Foucault, 1972; Resende, 2000).

Na Idade Média, contraditoriamente, o louco era visto como pobre de

espírito, digno de pena e caridade. Ao analisarmos esse contexto histórico,

perceberemos que a manipulação e o domínio da Igreja foi a grande responsável pela

construção deste imaginário social da loucura.

Nas horas de crise, porém, devia-se procurar um bode expiatório,

encontrando-se uma relação entre loucura e bruxaria. Nessa relação, percebe-se um

novo fator que influenciará o nosso olhar atual sobre a loucura: a idéia da periculosidade

do louco. Na verdade, para a época, o louco perigoso era aquele que ia de encontro com

o verdadeiro e o inquestionável, necessitando-se afastá-lo do convívio para que não

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fosse mais ameaça à Igreja.6 Mackay (2001) lembra-nos de que as execuções ocorridas

neste período refletiam perseguições político-religiosas. O autor alertou para a loucura

das massas, representada aqui pelo aval dado pela sociedade para tamanha

arbitrariedade, afirmando que muitas vezes os homens enlouquecem em bandos, ao

passo que só recobram a lucidez lentamente e um a um.

Manifestações dos deuses, pobreza de espírito, periculosidade...O louco

sempre esteve presente no imaginário social, que constrói e desconstrói significados

para lidar com ele, inclusive, segregando-o de uma forma ou de outra.

Percebemos, então, que havia uma maior tolerância na Idade Média, que,

entretanto, não significava um “paraíso” para os loucos. Na história ocidental, a loucura

percorreu caminhos sombrios que a levaram a pactos com demônios, bruxarias, domínio

de tendências de animais selvagens etc. Entretanto, ainda a convivência com a loucura

era suportável; como referido alhures, conseguia-se ouvir a sua voz sem ser

atormentado pelo discurso da razão. Apenas com a transformação da ideologia religiosa

numa ideologia científica e com o nascimento da ciência experimental, durante o

Renascimento, esqueceu-se da caça às bruxas, e a antiga ignorância a respeito das

feitiçarias deu lugar aos novos conhecimentos científicos (Szasz, 1984).

Segundo Resende (2000), foi o fim do campesinato como classe e o

declínio dos ofícios artesanais que possibilitaram tachar a loucura como problema

social. Novas formas de divisão social do trabalho, surgidas na Europa ao final do

século XV, desenvolveram um espírito de avidez pelo lucro e de luta pela

sobrevivência, levando as pessoas ao pensamento de que deveriam viver para trabalhar.

Na sociedade capitalista, o conceito de indivíduo e de cidadania decorre da noção

6 Szasz (1984) faz uma análise a respeito do que ele considera o mito da doença mental, pautando-se no engano cometido em relação às bruxas na Idade Média. No entanto, que não se confunda com a negação do real sofrimento causado pela doença mental, reconhecendo as inúmeras arbitrariedades cometidas emnome da ciência.

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burguesa de propriedade. O indivíduo era livre, dono de si mesmo para, inclusive,

vender a sua força de trabalho. Dessa forma, a liberdade individual deveria tornar-se

compatível com a subordinação a um processo de trabalho. Fez-se necessário varrer do

cenário social tudo e todos que fugissem ao novo conceito de normalidade, inspirado

pela nova ordem de produção.

Interessante observar que os conceitos de “normal” e “anormal”,

“normal” e “patológico”, são frutos tanto da cultura quanto das necessidades

econômicas de uma sociedade (Porter, 1997; Resende, 2000). A mendicância, a

ociosidade e a própria loucura começam a sofrer repressões. É nesse contexto que a

loucura é silenciada. Quando ela começa a assombrar a imaginação do homem e a gerar

incômodo no seio da sociedade, várias são as tentativas de reprimi-la. Esta fica sendo a

principal preocupação: tirá-la defronte dos olhos assustados das pessoas ditas normais,

afastá-la dos ouvidos perturbados pelos absurdos proferidos pelos insanos, ocultar,

excluir, manter longe o discurso da “desrazão”.

No século XVII, tais mudanças ocorridas na Europa resultaram

num “grande enclausuramento” como resposta para a desorganização social e

a crise econômica. Oito mil pessoas foram recolhidas em Salpêtrière (Hospital

Geral de Paris). Dörner (citado por Desviat, 1999) enumera os cidadãos

possíveis de serem presos, incluindo-se os mendigos e os vagabundos,

pessoas sem trabalho e sem domicílio, criminosos, rebeldes políticos e

hereges, as prostitutas, os loucos, os idiotas, entre outros que precisavam

tornar-se invisíveis.

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2. A Medicalização da Loucura e o surgimento dos Hospitais Psiquiátricos: um

mal necessário?

“Não tem dó no peito, não tem jeito, não tem ninguém que mereça, não tem coração que esqueça”.

Geraldo Azevedo

Até então, os loucos estavam nas mãos da justiça, destinados a

cumprirem medidas legislativas de repressão em hospitais gerais, que apesar da

nomenclatura, não tinham função curativa. Sua única função, como vimos alhures, era

manter a cidade limpa “desses perturbadores da ordem pública” (Resende, 2000, p. 24).

Segundo Foucault (1972), foi ao final do século XVIII que a figura do

médico e a do louco começam a se aproximar mais intimamente, na tentativa de tornar a

doença algo privado, ou seja, transformá-la em assunto de exclusividade e domínio

médico. Assistimos à entrada de um novo ator social, o médico, no desfecho da história

da loucura. A questão que se coloca neste contexto é: como um sujeito com transtorno

mental deve ser tratado? Será ele culpado ou não pelo seu “pathus”?

O suposto “crime” cometido pelos loucos deixa de ser, então, um

problema da Justiça e da Moral para ser problema da Medicina, como bem explicita

Szasz (1980): “Essa transformação (...) de crime em doença, de Direito em Medicina,

Criminologia em Psiquiatria e de punição em terapia é (...) entusiasticamente abraçada

por muitos médicos, cientistas sociais e leigos” (p. 15). O referido autor é bastante

enfático ao mencionar o surgimento da Psiquiatria, lembrando que os antigos “castigos”

aplicados ao louco não mudam com a conotação de “tratamento” destinado aos doentes

mentais, mas que a tirania passará a ser justificada pela terapia (p. 13).

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O que veremos a seguir é que esta apropriação total, por parte da

Medicina, daqueles comportamentos que implicam no desvio da norma social

dominante, respondia a um mecanismo social de controlar a diferença na sociedade

capitalista.7

Castel (1978a) relata-nos o percurso da responsabilidade sobre a loucura

durante o Antigo Regime e após a Revolução Francesa. No Antigo Regime, a “Lettre

de Cachet”, ou ordem do rei, foi responsável por arbitrariedades cometidas em nome do

poder. O poder judiciário também foi responsável pela efetivação de leis severas de

repressão, que igualavam os loucos a animais ferozes que, quando não domesticados,

precisavam ser recolhidos do convívio. Na história da assistência psiquiátrica, a França

foi o primeiro país a institucionalizar a atenção médica ao louco.

Em 27 de março de 1790, a Assembléia Constituinte decretava, no artigo

9, que abolia as “Lettres de Cachet” (Castel, 1978a):

As pessoas detidas por causa de demência ficarão (...) sob os cuidados de nossos procuradores, serão interrogadas pelos juízes (...) visitadas pelos médicos (...) a fim de que, segundo a sentença proferida sobre seus respectivos estados, sejam relaxadas ou tratadas nos hospitais indicados para este fim (p. 9).

Com a abolição da ordem do rei, o alienado não podia mais ser

enclausurado, mas destinado a um tratamento específico. Faz-se necessário

compreender quais circunstâncias propiciaram determinantes mudanças. Como bem nos

lembra Desviat (1999), tais mudanças foram possíveis “(...) porque as novas normas

sociais necessárias ao desenvolvimento econômico proibiam a privação da liberdade

sem garantias jurídicas” (p. 17). É assim que o isolamento passa a ter uma função

7 Vários autores discutem o papel de controle exercido pela Psiquiatria. Ver também Laing (1964, 1968), Cooper (1968, 1971), Basaglia (1977, 1979), Castel (1978a) e Porter (1997).

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terapêutica. A justiça não poderá mais se responsabilizar pelo controle da loucura,

cabendo à Medicina este papel.

A lei francesa de 30 de junho de 1838 foi a primeira grande medida

legislativa que reconheceu um direito à assistência e à atenção para a categoria dos

doentes mentais, idealizando os famosos asilos, que tempos depois viriam a se chamar

hospitais psiquiátricos. A loucura assume um novo caráter e é vestida com o status de

doença.

Convém lembrar que os internamentos, ou melhor chamados,

confinamentos do louco, nada tinham a ver com o pensamento médico. Dessa forma, a

Psiquiatria demora a firmar-se como parte importante da ciência médica, justamente por

não se enquadrar na orientação materialística, mecanística e racional dominante. O

psiquiatra era incumbido de guardar o louco, não de curá-lo: “Ao mesmo tempo em que

era suspeita, a Psiquiatria era também necessária e, por isso, foi limitada principalmente

ao cuidado custodial de casos adiantados, em sua maioria sem esperanças ou perigosos

para si próprios e para os outros” (Alexander & Selesnick, 1980, p. 25).

O que se pretende discutir aqui não é a necessidade do surgimento da

Psiquiatria como ciência. É inegável que o louco precisava esquivar-se das mãos

ferozes da justiça e amparar-se sob um olhar que lhe inspirasse os cuidados dos quais

necessitava. Alguns questionamentos são anteriores a essa discussão, como por

exemplo, analisar o controle exercido pela Psiquiatria, que culminou, a posteriori, na

violação total dos direitos humanos dos portadores de doença mental, bem como

analisar os métodos duvidosos utilizados pela mesma no seu exsurgir (sendo que alguns

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conseguiram perdurar até os dias atuais). Tais análises levam-nos a questionar as

funções terapêuticas dos hospitais psiquiátricos e colocar em xeque a sua existência.8

Basta lembrarmo-nos de que o aparecimento dessa nova ciência

é mais conseqüência do que causa do surgimento dos asilos. A Psiquiatria

floresce quando os manicômios já estão abarrotados dos ditos “lunáticos”

(Porter, 1997). Convém evocar as palavras de Foucault (2000) para reforçar a

discussão:

A crise atual dessas disciplinas não coloca em questão simplesmente seus limites e incertezas no campo do conhecimento. Coloca em questão o conhecimento, a forma de conhecimento, a norma sujeito-objeto. Interroga as relações entre as estruturas econômicas e políticas de nossa sociedade e o conhecimento, não em seus conteúdos falsos ou verdadeiros, mas em suas funções de poder-saber. Crise por conseqüência histórico-política. (p. 118)

Dessa forma, a partir do século XVIII, temos um novo saber especialista,

que se utilizava de tratamentos bastante distintos e bizarros, como choques, banhos

quentes, sangrias, chuveiradas frias, uso de algemas e camisas de força. Ainda segundo

Porter (1997), as intenções de tais métodos eram de contenção: “Acabando com as

agitações do físico, o objetivo último era acalmar a mente, e assim torná-la receptiva às

carícias da doce razão” (p. 28).

Szasz (1980) descreveu o novo quadro que se delineia para a loucura:

“(...) enquanto que na Idade Média a ideologia era a cristã, a tecnologia era clerical e o

perito era o sacerdote, na Idade da Loucura a ideologia é médica, a tecnologia é clínica,

e o perito é o psiquiatra” (p. 12). O que se pretende mostrar com o início do saber

8 Faz-se importante compreender que não é só o saber psiquiátrico o responsável pelo lugar que a loucuraocupa na sociedade, mas outros saberes construídos pela Psicologia, pela Psicanálise, pelo Direito e pelosdiscursos religiosos. No entanto, a Psiquiatria, em determinado período histórico, toma para si a responsabilidade sobre o louco e define como seu direito o destino social do mesmo, sendo disto que tratamos neste capítulo.

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especialista da Psiquiatria, é a responsabilidade que esta tomou para si ao reivindicar o

poder sobre a loucura. Os especialistas definem a realidade para a sociedade leiga. Ao

diagnosticar o louco, o psiquiatra traça o seu destino, transformando-se em seu deus e

carrasco. Segundo Castel (1978a), quem dá ao psiquiatra o seu mandato para

transformar completamente a definição de loucura e condicionar o status antropológico

do louco é o outro sistema de poder. E desta negociação é definido o destino social do

doente: “É sempre uma questão de equilíbrio, de intercâmbio, de concorrência entre

representantes de aparelhos: da justiça, da administração, da polícia...” (p. 145).

No século XVIII, numerosos são os gêneros e as classificações da

loucura, época em que se consolida o domínio hegemônico da Medicina neste campo

(Pessotti, 1999). Sobre isso, Basaglia (1979) afirma que a história da Psiquiatria é a

história dos psiquiatras, com suas extravagantes classificações da doença mental. De

lembrar-se, entretanto, que não se pode negar o pioneirismo de alguns médicos da

época, como o francês Philippe Pinel, o inglês William Tuke, o italiano Chiaruggi e o

alemão Reil, além de outros apontados pela literatura, introduzindo técnicas na

“melhora” do tratamento dos doentes mentais. Sob sua orientação, os hospitais

deixaram de acorrentar seus pacientes e começaram a tratá-los de modo mais “humano”:

“sua contribuição primordial foi mudar atitude da sociedade em relação aos insanos, de

modo que esses pacientes pudessem ser considerados seres humanos enfermos,

merecedores e necessitados de tratamento médico” (Alexander & Selesnick, 1980, p.

161).

Philippe Pinel foi um construtor teórico e prático, que definiu um

estatuto patológico para a loucura. Foi um dos primeiros a acreditar na possibilidade de

cura do doente mental, através do tratamento moral. Podemos considerar que Pinel

inaugura o nascimento da clínica psiquiátrica.

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Convém, neste momento, ressaltar que não podemos perder de vista que

o tratamento moral, bem como outras formas posteriores de tratamento, falaram

prioritariamente em nome da repressão, da ordem social. A liberdade, neste contexto,

não significa o direito de sair do asilo, mas ao tratamento na instituição que é autorizada

para isso. Amarante (1996) também analisa o tratamento moral, ressaltando que sua

principal base encontra-se no isolamento. Concorda-se aqui com Castel (1978a),

quando o mesmo afirma que o movimento alienista visa, fundamentalmente, abolir da

paisagem social esse foco que é a loucura.

É, no entanto, o século XIX que merece, de acordo com Pessotti (1996),

o título de “século dos manicômios”. Para esse autor, também é o manicômio o núcleo

gerador da Psiquiatria como especialidade médica, este lugar que “aparece como um

cenário de grandes combates, de uma imensa tragédia” (p. 9), onde o homo sapiens se

encontra com sua negação.

No começo do século XIX, os médicos de todo o mundo reconheceram

as doenças mentais como uma forma de enfermidade, e elas se tornaram objeto de

pesquisa e tratamento médico. Seguindo um critério nosológico de classificação, a

loucura passa a ser entendida como qualquer outra doença, devendo ser descrita e

classificada segundo os padrões clínicos9 (Amarante, 1996; Foucault, 2000; Pessotti,

1999). O prestígio da Neurologia começa a questionar o tratamento moral. Modernas

teorias sobre a loucura encaixam-se perfeitamente com a solidez das bases científicas

que dominavam o pensamento da época. Em 1892, Kraepelin na Alemanha classificou

a loucura em dois grandes grupos de doenças, que eram as manias e depressões e as

9 Segundo Pessotti (1999), ao longo do tempo podemos observar diversos critérios de classificação da loucura: etiológico (atribuído às causas), sintomatológico (segundo manifestações sobre o paciente),psicológico (manifestações emocionais), filosófico (alusão às faculdades da alma), e nosológico.

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demências precoces. Os estudos psiquiátricos de Kraepelin são considerados um passo

decisivo na consolidação da Psiquiatria como ciência médica (Elói, 1989).

O hospício passa a ser o lugar da loucura, como nos afirma Machado

(1978): “De todas as moléstias a que o homem é sujeito, nenhuma há cuja cura dependa

mais do local em que é tratada do que a loucura” (p. 380). Para o isolamento do louco,

muitas eram as necessidades terapêuticas que o justificavam, como por exemplo,

garantir a segurança da própria pessoa e da família, a imposição de novos hábitos

intelectuais e morais, liberá-los de influência externa etc.

Atualmente, percebe-se claramente que a evolução dos conceitos

psiquiátricos que observamos no trajeto histórico de Pinel a Kraepelin não elucida o

dilema da institucionalização: o traçado miserável do destino do doente mental,

relegado à estigmatização e à invalidação social (Amarante, 1996). A Psiquiatria de hoje

ainda é incapaz de responder à indagação inicial que encetou a nossa discussão. No

entanto, fala-nos com bastante propriedade sobre sintomas e novas doenças que surgem

a cada dia, sem conseguir enxergar a pessoa que adoece.

Faz-se interessante a abertura de um parêntese, para que se possa analisar

cenas assistidas diariamente em hospitais psiquiátricos, públicos ou privados10. Um

desses episódios será descrito aqui por ter sido assistido com bastante estranheza:

quando um novo paciente é trazido pela família para ser internado pela primeira vez,

todos estão sentados na sala de espera junto a outros que aguardavam, e a recepcionista,

ali mesmo, começa um verdadeiro inquérito, sem ao menos olhá-lo nos olhos. E nem

poderia, pois olhava fixamente para a tela do computador, digitando as respostas dadas

pelo novo paciente:

- Já teve alucinações?

10 A cena descrita acima refere-se a observações realizadas no hospital psiquiátrico São Camilo de Lélis,em Mossoró, Rio Grande do Norte, em março de 2001.

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- Hum?!? Pergunta o senhor sem compreender.

- O senhor já teve ALUCINAÇÕES? Repete a recepcionista

impaciente.

- Já... Responde o paciente meio vacilante.

- Tentativa de suicídio?

O paciente olha em volta, desconfiado e encontra olhos curiosos que

tentam compreender aquele diálogo.

- Não...

Após uma série de questionamentos, o paciente já pode ser internado,

pois preenche os requisitos de “louco”. Do outro lado, a irmã que o trouxe, dirige-se a

ele com bastante raiva:

- Você vai ficar aqui para aprender a lição! Vai ficar de castigo! Agora

eu quero ver você se comportar! Enfermeira, ele vai ficar aqui sem visita, viu?

Diante da cena exposta acima, são muitas as questões que se colocam. A

primeira, e mais importante, é sobre a propriedade deste procedimento. Quem é essa

pessoa? Quais os seus medos, suas angústias? O que foi tão forte emocionalmente para

ele que não agüentou e “sucumbiu”? E, principalmente, essa internação era de fato

necessária?

Além disso, podemos perceber que o papel exercido pelos hospitais

psiquiátricos é de fato, de controle e coerção, e que o papel da família e da sociedade

leiga em geral, é muitas vezes imprescindível na perpetuação do modelo manicomial.

Szasz (1980) faz uma crítica à internação de um paciente, na tentativa de atender às

expectativas da família que estaria cansada da situação, com a qual concordamos:

Aliviar pessoas aborrecidas pelas excentricidades, falhasou maldade deliberada das pessoas assim chamadas

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mentalmente perturbadas requer que se faça algo aospacientes não por eles. Aqui o objetivo é salvaguardar a sensibilidade não do paciente, mas daqueles a quemperturba. Esse é um problema moral e social, não médico(p. 86).

A política da segregação propriamente dita traz à lembrança a fantástica

obra de Franz Kafka (1912/1997) – “A metamorfose”, em que a família do jovem

Gregor Samsa, ao vê-lo metamorfoseado num “inseto monstruoso”, simplesmente

segrega-o em seu quarto e, quando muito, envia-lhe algum alimento. Deixam-no à

míngua, abandonado à própria sorte, até que a morte vem ceifar uma existência triste e

solitária. Mas a consciência não se fazia pesar para a nobre família: “(...) procuramos

fazer o que é humanamente possível para tratá-lo e suportá-lo e acredito que ninguém

pode nos fazer a menor censura” (Kafka, 1997, p. 74). Esta tem sido também a resposta

da sociedade leiga em relação à loucura. Acreditam que os manicômios cumprem bem

o seu papel, independente do tratamento degradante e desumano. É como se essas

pessoas tivessem perdido sua humanidade ao enlouquecerem, tornando-se seres

grotescos, cujo convívio seria impensável.

As questões subjetivas e sociais não parecem encontrar espaço nas

instituições psiquiátricas, onde não se enxerga além dos sintomas. Ao revés, o paciente,

ao adentrá-la, possui algum equívoco que precisará ser tratado. Tal tratamento forçá-lo-

á a encaixar-se no “Leito de Procusto”, para que, adaptado, volte à sociedade (Cooper,

1973). O que ocorre é que esse período de “tratamento” numa instituição psiquiátrica

fará com que o sujeito se distancie cada vez mais desta “sociedade normatizada”,

fazendo com que ela própria não mais o aceite no seu convívio.

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O avanço dos psicofármacos acaba por prometer “paraísos artificiais” à

sociedade, além de ampliar de forma assustadora o terreno de intervenção psiquiátrica.11

Neste ponto, impossível é olvidar a impecável obra machadiana - “O

Alienista”, que perfeitamente reproduziu o terror provocado pela internação

compulsória de todo aquele que por um motivo qualquer, vinha a ser tachado de louco.

Este é o rumo mais perigoso em que pode a Psiquiatria enveredar-se, como afirma

Porter (1997): “A Psiquiatria tinha uma tendência a ser grandiosa porém circular: via

loucura em toda parte” (p. 30).12

Szasz (1980) reforça este argumento:

A partir do início do século [XX], especialmente depois de cada uma das duas guerras mundiais, o ritmo dessa conquista psiquiátrica cresceu rapidamente. O resultado é que hoje, em particular no “rico” Ocidente, todas as dificuldades e problemas da vida são considerados doenças psiquiátricas e todos (exceto aqueles que diagnosticam) são considerados doentes mentais (p. 12).

O autor alerta para o argumento que pretendemos discutir. Hoje, existem

cerca de 70.000 (setenta mil) pessoas internadas em hospitais psiquiátricos somente no

Brasil. Grande parte são pacientes crônicos, a vagar pelo que Carrano (2001) batizou de

“canto dos malditos”:

O conceito geral daquele pátio é uma grande jaula, onde as feras ficavam, umas deitadas, outras sentadas emdiversos lugares, os olhares perdidos horas e horas, olhando não se sabia para onde. Todos mantidosescondidos, como animais contaminados e que deviam ser trancados em algum lugar (p. 55).

11 Não se trata aqui de negar a evolução dos medicamentos na área da Psiquiatria. No entanto, os medicamentos concentram-se no controle dos sintomas, o que faz com que os psiquiatras concordem quenão é o bastante.12 Sobre isso, o renomado psiquiatra Jorge Alberto da Costa e Silva em entrevista à revista Veja (27 de jun. 2001) critica a psiquiatrização que vem ocorrendo na sociedade: “se o sujeito é tímido e você forçar um pouquinho, ele pode ser enquadrado na categoria de fobia social. Se ele tem uma mania, leva umdiagnóstico de transtorno obsessivo-compulsivo. Se a criança está agitada na escola, podem achar que está tendo um transtorno de atenção e hiperatividade. Coisas normais da vida estão sendo encaradas como patologias” (p. 11).

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As marcas de sofrimento, maus tratos e preconceito são indeléveis. E,

por isso, a nossa questão central, a substituição do modelo manicomial, é perpassada por

princípios éticos, políticos, técnicos e estéticos, que pretendem reconhecer a pessoa

portadora de doença mental como um sujeito de direitos.

Ao analisarmos os manicômios da nossa atualidade, veremos que

instituições encarregadas de “cuidar” do louco, curá-lo, não parecem estar conseguindo

cumprir bem o seu papel. O ambiente intra-muros é extremamente degradante e

desumano, fazendo o sujeito se despir de sua individualidade e de seus papéis sociais.

O controle exercido pela instituição é tão repressor que impossibilita qualquer tentativa

de individualização. “Será que realmente precisamos mais desta espécie de

Psiquiatria?”, pergunta-se Szasz (1977, p. 87).

Na verdade, não. As evidências mostram que é preciso romper com

certas “verdades cientificas” incorporadas pela Psiquiatria. Michel Miaille (1989)

explicita muito bem essa idéia:

E se o que é afirmado como “verdade” evidente pudesse ser objecto de um ataque radical? Talvez seja possível ir mais longe, ou melhor, por outro caminho, em relação às vias já traçadas. Talvez haja portas que possamos abrir que as doutrinas precedentes e as afirmações de hoje mantêm fechadas. É esse ultrapassar a que vos convida toda a reflexão científica: e, como qualquer reflexão científica, ela reveste de algum modo o caráter de umaaventura. Ninguém sabe o que afinal de contas será descoberto, ninguém sabe que dificuldades nos esperamnessa exploração. Mas vale bem a pena tentar a experiência, mesmo se ela nos conduzir por caminhos solitários, mesmo se ela nos opuser a tudo o que se encontra “normalmente” dito e explicado (p. 25). (grifos nossos)

A temática da loucura é bastante complexa por abarcar diferentes fatores

determinantes. As questões que aqui foram discutidas, quando bem compreendidas, são

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essenciais para enfrentar novos desafios em relação ao tratamento de pessoas portadoras

de doenças mentais, evitando-se cometer os mesmos erros. Afinal, não se trata de

melhorar o pensamento anterior, mas “propor um outro modo de colocar o problema”

(Miaille, 1989).

3. Notas sobre a história da Psiquiatria em terras brasileiras

“Só se entra no hospício para não sair ou, na melhor das hipóteses, para logo depois voltar”.

Machado

“O hospício é como um poço profundo no qual se entra rápido mas do qual é difícil sair, pois suas paredes são escorregadias como na incompreensão e no abandono e não há onde agarrar-se”.

Moffatt

Vimos que a Psiquiatria surgiu na Europa em determinado período

histórico e que a loucura nem sempre foi considerada doença mental, passível de

tratamento. E no Brasil, como se configura a chamada medicalização da loucura?

Ao falar sobre a institucionalização da loucura no Brasil, corre-se o risco

de ser repetitivo e seguir um pensamento circular. No entanto, é exatamente este

aspecto da Psiquiatria no Brasil que será enfatizado: a repetição de um modelo

importado da Europa e a hegemonia do pensamento da chamada Medicina mental.

Ressaltam-se, entretanto, certas peculiaridades existentes na vida

econômica e social brasileira da época que certamente determinam diferenças ao

emergir da loucura como problema social.

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Se, na Europa, a loucura como problema social emerge diante do

estabelecimento concreto da sociedade rural pré-capitalista, aqui esse processo se dá no

período do Brasil colônia. Neste período, o trabalho era baseado na atividade servil,

caracterizado pela presença maciça de escravos encarregados de todo o trabalho pesado

das propriedades, tanto no que diz respeito às atividades de produção, quanto às

atividades domésticas: “Enquanto na Europa se transita da servidão feudal para o

salariato, através do trabalho independente de camponeses e artesãos, no mundo

colonial acentuava-se a dominância do trabalho compulsório e, no limite, a escravidão”

(Novais, 1997, p. 33).

Percebe-se, então, um grande estreitamento das relações de trabalho.

Existiam, de um lado, grandes senhores, poderosos proprietários de terras,

representando, é claro, uma ínfima parcela desta sociedade, e, do outro, estava aquela

massa de escravos, constituindo a maioria social. Alheia a tudo isso, restava uma classe

indefinida, composta por homens livres, “sem trabalho”, “sem renda”, como mestiços,

mulatos e também brancos “puros”.

Define-se essa massa como os desadaptados, que são relegados ao

preconceito e à miséria. Além dos empregos serem escassos, eram poucos os que se

dispunham a se engajar em alguma atividade, pois o trabalho era marcado pelo estigma

insuperável que o identificava com servidão (Novais, 1997). Dessa forma, eles

encontravam-se nas seguintes situações: permaneciam afastados da civilização, vivendo

no campo como verdadeiros ermitãos; agregavam-se aos senhores, vivendo sob seu

olhar de cuidado em troca de favores; e, ainda, vagavam pelas ruas, sem nome e sem

rumo. Esses últimos, considerados “vadios criminosos”, causavam medo à população,

que chegava a evitar lugares ermos da cidade (Resende, 2000).

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Neste eterno retorno, voltamos ao ponto de partida: depois de quase 300

anos sem incomodar nossos olhos e ouvidos, a loucura nos obriga a enxergá-la em nome

da ordem e da paz social e contra a vagabundagem e a ociosidade daqueles que não

possuíam bens.

Quando Foucault (1972) nos relata as circunstâncias que envolveram o

“grande enclausuramento”, não encontramos diferenças com o que ocorreu no Brasil,

embora vivendo um contexto econômico distinto. Para serem varridos deste cenário em

terras brasileiras, os loucos também eram seqüestrados da sua liberdade e recolhidos às

Santas Casas de Misericórdia, onde recebiam tratamento marcado por maus tratos, que

por muitas vezes levavam à morte.

Em 1841, o imperador Dom Pedro II determinou a criação de um

hospício no Rio de Janeiro, para o tratamento dos doentes mentais, que viria a ser

inaugurado em 1852, marcando o nascimento da Psiquiatria brasileira13. As Santas

Casas de Misericórdia não podiam mais se responsabilizar pelos loucos, que se

misturavam com todo tipo de “despejo humano”.

Desde 1830, alguns médicos engrossavam o debate acerca do destino

social do louco, indicando o hospício como o único lugar possível de tratamento.

Segundo Machado (1978), é a Medicina Social que legitima no Brasil o conceito de

periculosidade relacionado à loucura e a necessidade de seu afastamento social. A

construção do hospício aparece aqui como parte integrante deste projeto normalizador

que caracteriza a Medicina Social.

Após o marco institucional da assistência psiquiátrica, em 1852, vários

são os hospícios construídos ao longo do tempo, como construções que se seguiram em

São Paulo, Pernambuco, Bahia e Pará. Vale a pena lembrarmo-nos de que a estrutura

13 Sobre o assunto, consultar as obras de Machado (1978), Resende (2000), Costa (1978), Daúd Jr.(2000), entre outras.

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do primeiro hospício inaugurado no Brasil tinha as mesmas características da estrutura

elaborada por Pinel e Esquirol na França (Resende, 2000). Sua função segregadora e

normalizadora da ordem é evidente, como faz referência Daúd Jr. (2000):

O Hospital Psiquiátrico desde o primeiro criado em 1841 no Rio de Janeiro, capital do império, passando pelo maismoderno do mundo criado em 1898, o Juquerí, e todos os outros criados pelo poder público até 1960, vêm se somaràs outras instituições de repressão e controle social voltados a disciplinar a mão-de-obra excedente, a mão-de-obra fabril, a pobreza, a reprodução da raça negra (...) (p. 36).

Após a proclamação da República, a Psiquiatria empírica começa a ceder

espaço para a considerada Psiquiatria científica. O que ocorre nesse período é um

ordenamento no processo de urbanização no país, que vem responder ao

desenvolvimento mercantil e suas novas políticas.

No início do século XX, alvorecer da República, o Brasil foi cenário de

violentas transformações político-sociais, com movimentos sociais operários em

organização e respostas agressivas do Poder. O caos social fez com que a

disciplinarização da sociedade fosse ainda mais necessária, como bem explicita Luz

(1979):

A formação de favelas, cortiços, vilas operárias, confirmacada vez mais o espaço urbano como espaço social, espaço político, isto é, desenhado pela lógica da hierarquia social. Sujeito, portanto à organização e ao controle políticos, isto é, à institucionalização da Ordem(p. 158).

Tal disciplinarização levou às particularidades no estatuto dos doentes

mentais (Daúd Jr., 2000).

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O tratamento basicamente restringia-se à chamada praxiterapia, a qual

pretendia devolver os indivíduos aptos para o trabalho. Dentro desse recorte histórico, a

Psiquiatria mais uma vez assume os mesmos critérios da ordem vigente para definir o

que é normal e o que é patológico. Baseava-se na crença de que o trabalho seria

responsável em recolocar o louco, recuperá-lo para o convívio social, como nos explica

Machado (1978):

Trabalho significa coordenação de atos, atenção, obediência a um encadeamento de fases da produção que permitirá chegar ao produto; significa existência de regras às quais o alienado deve se adequar. É uma fonte poderosa de eliminação de desordem, de submissão a umaseqüência coordenada e ordenada (...). O trabalho é, portanto, em si mesmo terapêutico, ocupando assim umaposição central no tratamento (p. 441).

Ainda segundo Daúd Jr. (2000), na década de 1850, ocorreu no Brasil a

Reforma Teixeira Brandão, que inaugurou a “Era das Colônias Agrícolas”, sendo

estimulada por todo o país a criação de campos de trabalho (p. 39). Com a implantação

de colônias, o trabalho agrícola torna-se o mais usual, principalmente entre os pobres,

pois a ocupação daqueles que tinham condições financeiras favoráveis era restrita a

jogos e leituras.

Resende (2000) nos lembra bem que as colônias agrícolas para doentes

mentais não tiveram efeitos terapêuticos, mas reforçavam a exclusão. Afinal, as

colônias localizavam-se em lugares muito distantes das cidades, efetivando o seu mais

importante papel, que é o da exclusão social. Vale à pena lembrar que a moral e os bons

costumes da época também foram responsáveis por novas categorias de doença mental,

não sendo difícil encontrar diagnósticos que refletiam seus valores sociais, como

“moças namoradeiras desvirginadas”, “arruaceiros” etc.

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Rotelli (1994) não concorda com a relação simplificada de trabalho como

fato terapêutico, mas trabalho deve ser entendido como direito. Segundo ele,

terapêutico, na verdade, seria tudo aquilo que dá acesso aos direitos, que nos permite

viver com um mínimo de dignidade e qualidade. Dessa forma, é importante

compreender o trabalho como um dos aspectos constituintes do sujeito de direitos. O

trabalho alienado do sistema capitalista, tão bem retratado no filme “Tempos

Modernos”, contribui apenas para a constituição de seres automáticos e impensantes,

obedientes às regras do nosso sistema de produção. Para o portador de doença mental, é

importante fazê-lo sentir-se integrado no mundo do trabalho, sem ser visto como

incapaz, por não se adequar ao rigor do trabalho formal (Silva, 2000). Dessa forma, o

trabalho não deverá ser mais um fator de alienação desse sujeito, mas a sua expressão de

criatividade e capacidade produtiva.

Encontraremos ainda duas reformas no cenário psiquiátrico brasileiro

que ampliaram a “assistência” aos doentes mentais em instituições manicomiais. A

reforma Adauto Botelho, na década de 1940, utiliza-se da assistência médica como

estratégia de sedução de novas massas populares, sendo criados hospitais psiquiátricos

em todo o país, também como resposta aos problemas de saúde14 (Daúd Jr., 2000; Luz,

1979).

Na década de 1960, assistimos a um papel ainda mais assustador dos

hospitais psiquiátricos. Com a reforma Leonel Miranda, inaugura-se a “Era de Ouro

dos Hospitais Privados”, fazendo com que o número de hospitais psiquiátricos crescesse

14 Luz refere-se ao poder do Estado no tocante às condições de vida da população da época, “um sistemade poder que tentará a realização de um processo de industrialização da sociedade brasileira com omínimo de transformações sociais que impliquem em repartição da riqueza ou decisões” (p. 160). Dessaforma, afirma ainda que, “a subnutrição permanece, mas a tuberculose passará a ser combatida” (p. 160).

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rapidamente15. Durante a ditadura militar, esses hospitais acolheram presos políticos

em sessões de tortura, a serviço do Estado: “Os presos políticos, dados como

desaparecidos, foram submetidos a condutas médicas de tortura, como aplicação de

escopolamina, como medida punitiva, e... mortos” (Lopes, 1999, p. 29).16

15 Sampaio, citado por Daúd Jr., mostra que de 1964 a 1982 os leitos psiquiátricos cresceram dezesseis vezes mais rapidamente do que a população brasileira. 16 O livro Instituição Sinistra – Mortes violentas nos Hospitais Psiquiátricos no Brasil, editado peloConselho Federal de Psicologia, relata vários casos de mortes em hospitais psiquiátricos, levantados nas pesquisas realizadas por entidades de defesa dos Direitos Humanos em diversos manicômios do país.

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3.1. Histórico da evolução psiquiátrica no Rio Grande do Norte

“Às vezes é bom acreditar na evolução e pensar que o homem ainda não está

concluído”.(Jonh M. Henry)

A vinculação entre a história da Psiquiatria do Rio Grande do Norte com

todo o processo de assistência à saúde mental no estado, que vem a se desenvolver

posteriormente, faz-se mister no desenrolar deste trabalho. É importante perceber o

discurso sinuoso, cheio de avanços e retrocessos, também marcado pelos erros da

prática assistencial no país. A primeira etapa da Psiquiatria hospitalocêntrica – a

ocupação de enfermarias das Santas Casas – aconteceu no Nordeste da mesma forma

que nas outras regiões do país.

No período da República, foram inaugurados hospícios destinados ao

trato exclusivo dos “insanos”, instalando-se em Recife - Hospício da Visitação de Santa

Isabel, em 1864 -, Salvador - Asilo de João de Deus, em 1874 -, Fortaleza - o Asilo São

Vicente de Paula, em 1886 -, Maceió - Asilo Santa Leopoldina, em 1891 - e na Paraíba -

Asilo do Hospital Santa Ana, em 1892.

Seguindo os mesmos passos da trajetória percorrida pela assistência

psiquiátrica no Nordeste, foi inaugurado em Natal, no ano de 1882, a sua primeira

instituição, o Lazareto da Piedade.17 O Lazareto abrigava toda espécie de indigentes

que necessitassem de abrigo. Apenas em 1911, quando o Lazareto é transformado em

Asilo da Piedade de Natal, passa-se a atender exclusivamente os indigentes

considerados loucos. A atuação médica no asilo inicia-se algum tempo depois, no ano

de 1916.

17 Duas obras são importantes para compreender o percurso histórico da Psiquiatria do Rio Grande do Norte, às quais faremos referência durante todo este capítulo: Elói (1988) e Sucar (1993).

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A imagem social que se tinha do asilo era de uma “prisão de doidos”

(Sucar, 1993, p. 25). O louco era visto como essencialmente perigoso, e as reformas

feitas no asilo restringiam-se ao aumento do número de grades, reforçando-se o

imaginário social. Os tratamentos resumiam-se a confinamentos nas celas, camisas de

força e outros tipos físicos de contenção.

O que chama mais atenção, durante esse período de assistência

psiquiátrica no Rio Grande do Norte, é o rápido crescimento do número de internos,

bem como dos casos de óbitos dentro dessas instituições (Elói, 1989; Sucar, 1993). O

caos tomava conta dos asilos, que chegavam a comportar mais de duzentos internos,

quando só se dispunham de setenta leitos, obrigando os pacientes a dormirem no chão,

sem vestimentas, sem alimentação e sem os cuidados médicos necessários.

Em 22 de abril de 1921, para dar respostas aos questionamentos da

sociedade em torno da eficiência desse modelo, realiza-se a primeira reforma no asilo,

que culminou com a elaboração de um regulamento, passando a instituição a

denominar-se “Hospício de Alienados”. Em contrapartida, as estatísticas mostram que

mesmo após a publicação do decreto, o quadro de óbitos aumentou, não havendo

melhora alguma na situação de penúria na qual viviam os doentes mentais. O descaso

das autoridades locais era massacrante para aqueles que de alguma forma denunciavam

as arbitrariedades cometidas no local.

Segundo Sucar (1993), um ofício emitido pelo psiquiatra João Machado

ao Departamento de Saúde Pública do estado, viria a se tornar um grande divisor de

águas no que diz respeito à assistência psiquiátrica em Natal. O referido autor considera

este um momento de ruptura com a mentalidade que imperava até então. Além de

denunciar maus tratos, João Machado enumerava algumas soluções para o problema,

como por exemplo, a criação de um ambulatório para evitar internamentos

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desnecessários e o reinternamento freqüente, e o início da praxiterapia. Segundo ele,

Natal estava atrasada em mais de um século de “avanços” na área da Psiquiatria.

Seguidor de Ulisses Pernambucano, psiquiatra responsável pela

disseminação de uma Psiquiatria Social no Brasil que tivesse como base a profilaxia e a

higiene mental, João da Costa Machado lutou pela implantação de suas idéias em Natal.

No entanto, o que se observava na cidade era a estagnação de um modelo considerado

ultrapassado e inútil para o fim a que se propunha. Os anos passavam e o modelo

vigente parecia se perpetuar também no imaginário social, dificultando ainda mais as

tímidas propostas de mudança, que exigiam uma reformulação do que se entendia por

loucura até então. Tentava-se, na verdade, separar o joio do trigo. Não se poderia

inserir todo tipo de loucura na categoria de doenças mentais, como enfatizou Sucar

(1993):

A denominação do louco, não era, ou é dada apenas a quem seja doente mental, mas a todos aqueles que não se enquadram nos esquemas de trabalho produtivo normatizado, aos poetas que revelam a possibilidade e a transcendência do amor e da liberdade, aos escritores que de um modo geral estabelecem uma crítica à realidade e criam possibilidades de mudança, aos cientistas que são capazes de ir além do método, ou ainda, como vimos, ao cidadão comum, que no seu cotidiano descobre e tenta revelar as diferenças do seu momento histórico-vital (p. 63).

Em 1947, as denúncias contra os abusos cometidos no Hospital de

Alienados levam o governo a concordar com a construção do Hospital Colônia, que

deveria atender pacientes e crônicos em condições mais adequadas, e também

utilizando-se de novos tratamentos baseados na cura pelo trabalho (laborterapia), na

arteterapia, na assistência hetero-familiar18 e na assistência social.

18 O psiquiatra João da Costa Machado acreditava que a permanência dos doentes mentais no meio de famílias estranhas trariam melhoras no seu “estado mental”, no que se chamaria assistência hetero-

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A construção do Hospital Colônia demorou cerca de dez anos para ser

finalizada. Essa lentidão na concretização de um novo espaço para assistência ao louco

leva um grupo de psiquiatras, os doutores Otto Marinho, Aldo Xavier e Severino Lopes,

a criar a Casa de Saúde de Natal, uma instituição de caráter privado. Na década de

1970, há uma maior proliferação deste tipo de instituição no Rio Grande do Norte,

seguindo uma tendência observada em todo o território nacional, inaugurando-se

instalações como a Casa de Repouso Santa Maria, em Natal, e a Casa de Saúde São

Camilo de Lélis, em Mossoró.

Com o fechamento definitivo do Hospital de Alienados, é inaugurado no

dia 15 de janeiro de 1957 o Hospital Colônia, que passa a atender, ainda em situação

precária, todos os pacientes transferidos do antigo hospital.

A morte do psiquiatra João Machado, em 1965, é considerada por Sucar

(1993) uma quebra no movimento da Psiquiatria Social e um retrocesso aos tempos das

arbitrariedades cometidas no Hospital de Alienados. Além disso, ele atribui a grande

volta à “era das trevas” ao novo sistema de governo, a ditadura, que cria um Estado

totalitário, reforçador das arbitrariedades, em nome das repressões e proibições no

âmbito social e individual.

Após um longo período de silêncio, em que todos pareciam estar

conformados com o destino do doente mental, os hospitais psiquiátricos do Rio Grande

do Norte parecem querer provar, atualmente, que podem desenvolver um tratamento

digno e humano.

Isso é percebido claramente ao analisarmos diversas reportagens

publicadas n os principais jornais da cidade, que apontam para esta tendência. Como

exemplo, podemos citar o Diário de Natal, na reportagem intitulada “Pacientes Ganham

familiar. No entanto, apesar da tentativa de implantar tal prática no Hospital Colônia, nunca chegou a se viabilizar (Sucar, 1993).

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Diversão e Arte” (2001), que trata do clima natalino vivido pelos internos do Hospital

Colônia João Machado, com terapia que inclui músicas e peças teatrais: “É uma forma

de libertá-los da doença e ressocializá-los no cotidiano” (p. 8).

Esse exemplo nos faz pensar que as tentativas de humanização dos

hospitais psiquiátricos não conseguem trazer à tona a discussão sobre o resgate da

cidadania dos doentes mentais, e da reinserção social, como veremos mais

detalhadamente no próximo capítulo.

Vimos, ao longo da história, a necessidade de desacorrentar a loucura de

seu mais cruel tirano: o preconceito. Devolver ao louco a condição de cidadão e fazer

valer seus direitos tornou-se, para muitos, uma bandeira a ser erguida com fervor. O

hospital psiquiátrico representa o “lugar dos loucos”, que o exclui e o estigmatiza.

Torná-lo mais limpo, mais confortável e mais “terapêutico” não caracterizará mudanças

efetivas, pois mais do que uma estrutura física, ele carrega em si mesmo uma cultura

manicomial que extrapola seus muros e faz perpetuar mitos e crenças a respeito do

doente mental, que o lança para longe dos nossos olhos assustados. Esta instituição

sempre representará um sistema de poder que tenta adaptar seres humanos aos padrões

de normalidade em curso, como explica Goffman (1974):

Quanto mais “médico” e “progressista” for um hospital – quanto mais tenta ser terapêutico e não apenas “depósito” – mais precisa enfrentar a afirmação da alta administraçãode que seu passado foi um fracasso, que a causa disso está nele mesmo, que sua atitude diante da vida é errada, e que, se desejar ser uma pessoa, precisa mudar sua maneirade lidar com as pessoas e suas concepções de si mesmo(p. 128).

Parafraseando Chico Buarque de Holanda, a Psiquiatria, que inventou o

pecado dos homens tidos por “insanos”, esqueceu-se de inventar o perdão. Resta-nos

saber se é possível tratar a loucura com alteridade e cidadania; descobrir como é

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possível reintegrar o louco à sociedade que o “enxotou” do seu convívio outrora; tentar

salvaguardar a loucura da miséria e da opressão. Resta-nos, afinal, uma missão muito

difícil, que é a de apagar as marcas deixadas através dos tempos. Como bem nos lembra

Bobbio (1992): “Com relação às grandes aspirações dos homens de boa vontade, já

estamos demasiadamente atrasados. Busquemos não aumentar esse atraso com nossa

incredulidade, com nossa indolência, com nosso ceticismo. Não temos muito tempo a

perder” (p. 64).

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Capítulo II: O sopro da idéia de mudança: a luta pela derrocada do

modelo asilar à guisa de lançar um novo trato da questão da loucura.

1. Influências e caminhos da reforma psiquiátrica

No fundo da prática científica existe um discurso que diz: “nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar (Foucault).

Após a Segunda Guerra Mundial, houve um período marcado por fervorosas

críticas aos modelos asilares e movimentos a favor da desinstitucionalização começam a

ganhar força em vários países. Surge, por um lado, a abundante bibliografia crítica contra

as formas de entender a “loucura” e os transtornos mentais por parte da Psiquiatria

biologicista, de corte mais repressivo que terapêutico, e por outro os movimentos

“alternativos” ao hospital psiquiátrico. Destacam-se algumas experiências importantes,

como as inglesas e norte-americanas de Comunidades Terapêuticas, a Psicoterapia

Institucional na França, e mais tarde a Psiquiatria Democrática na Itália, sobre as quais

comentaremos a seguir.

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O contexto da época evidenciava um cenário de crescimento econômico e

reconstrução social dos destroços deixados pela guerra. Ao mesmo tempo, houve um

grande desenvolvimento dos movimentos sociais que lutavam por uma sociedade mais

justa, tolerante, sensível às diferenças e às minorias. Basaglia (1979) nos lembra que a luta

pela emancipação da sociedade tomou outro colorido, trazendo-nos a esperança de que o

mundo poderia ser efetivamente diferente.

Dessa forma, a luta nas instituições psiquiátricas une forças ao eco das

reivindicações sociais, juntamente com os grandes movimentos dessas últimas décadas,

como a revolta dos estudantes, os movimentos dos operários e a luta dos movimentos

comunistas.

Além da vontade coletiva de criar uma sociedade mais livre e solidária,

ecoada pelo término da Segunda Guerra Mundial, alguns fatores contextuais funcionaram

como elementos propulsores dos diferentes movimentos de reforma psiquiátrica no mundo.

Dentre estes fatores estão a descoberta dos medicamentos psicotrópicos e as demandas

sociais de reorganização do espaço hospitalar, surgidas com os ares de modernidade que

ganhavam este novo período, bem como a adoção da Psicanálise e da Saúde Pública nas

instituições de Psiquiatria (Amarante, 1995, Desviat, 1999).

Apesar destes marcos históricos comuns, as experiências de reformulação

das práticas psiquiátricas, ocorridas nos diversos países, obedeceram às suas características

sócio-políticas, criando, portanto, alternativas diferentes. Faz-se importante o

entendimento da contextualização da reformulação de uma práxis vista por anos como

verdade científica absoluta, como bem reflete as palavras de Amarante (1995): “Assim,

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podemos atribuir à história uma potência demarcadora de diferença e, com isso, tê-la como

instrumento de desconstrução dos dispositivos institucionais percebidos como a-históricos

e, assim, eternos, espontaneamente produzidos e imutáveis” (p. 46). Isto quer dizer que os

novos modelos são frutos de uma época, precisando estar em constante processo de

reflexão e reformulação para não repetirmos erros do passado, quando a referida “boa

vontade cega” dos psiquiatras não os deixava enxergar os efeitos nocivos e irreversíveis dos

tratamentos utilizados. Laing (1968) censurou estes profissionais:

(...) mas os seres humanos que fazem essas coisas em outras pessoas tendem a sentir sincero interesse, dedicação e piedade; e praticamente não podem evitar sentirem-se cada vez maisindignados, tristes, horrorizados e escandalizados comaqueles que, dentre os seus colegas, estão horrorizados e escandalizados com os seus atos (p. 18).

Evidentemente que o modelo clássico é amplamente difundido até os dias

atuais, mesmo tendo surgido tantos outros modelos comprovadamente exitosos. Tais

profissionais apóiam-se em argumentos defensivos de sua prática e partem para o ataque,

muitas vezes emocional, aos modelos substitutivos19. Assim, a aceitação ou resistência a

novas práticas também estará relacionada com o momento político de cada país, tendo em

vista que mudanças estruturais como as propostas por estes movimentos devem ter apoio de

todos os níveis de poder (executivo, legislativo e judiciário).

19 As críticas aos modelos substitutivos são muitas vezes infundadas, pautando-se no desespero dosprofissionais que vêem seus “reinos” ameaçados por novas leis e novas perspectivas de assistência. Ementrevista concedida ao jornal Diário de Natal, em 11 de abril de 1999, o psiquiatra Severino Lopes, dono de um dos maiores hospitais psiquiátricos privados do estado do Rio Grande do Norte, criticou veementementemovimentos de reforma psiquiátrica: “É normal que a humanidade apresente vários pensamentos e modos de agir, e, também neste século têm aparecido movimentos esotéricos que mascaram as reais situações das doenças mentais (...). Então o movimento anti-psiquiatria, a psicanálise, os movimentos de Foucault, Sartre, Marx exacerbados a partir de 1968 com os memoráveis movimentos estudantis de Paris e Berlim, atrasamainda mais o avanço e as pesquisas” (“Naps e Caps”, 1999, p. 3).

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Dessa forma, cabe-nos a leitura cuidadosa e diferenciada de cada reforma,

no intuito de mapear as experiências exitosas, perceber as dificuldades de cada modelo e

identificar os pontos que influenciaram a trajetória da reforma psiquiátrica no nosso país.

Desviat (1999) classifica os movimentos de reforma psiquiátrica em dois

grupos. O primeiro grupo busca a transformação do manicômio em uma instituição

terapêutica, como pretenderam a Psicoterapia Institucional ou as Comunidades

Terapêuticas. A outra alternativa proposta pelo segundo grupo é o fechamento do

manicômio como precondição da reforma, e aqui encontramos a Psiquiatria Democrática

italiana e a Desinstitucionalização dos Estados Unidos. Birman e Costa (1994)20 observam

essas mesmas características, seguindo uma ordem lógica dos movimentos: a Psicoterapia

Institucional e as Comunidades Terapêuticas representando reformas restritas ao âmbito

asilar; a Psiquiatria de Setor e Psiquiatria Preventiva, representando um nível de superação

das reformas referidas ao espaço asilar; por fim, a Antipsiquiatria e as experiências surgidas

a partir de Franco Basaglia, como instauradoras de rupturas com os movimentos anteriores,

colocando em questão o próprio dispositivo médico-psiquiátrico e as instituições e

dispositivos terapêuticos a ele relacionados21.

Perceberemos características comuns, bem como as diferenças essenciais

constantes em cada modelo, ao nos depararmos com as propostas descritas a seguir.

A noção de Comunidade Terapêutica surge em 1946, criada por T. H. Main

e tendo, posteriormente, Maxwell Jones como o mais representativo dos psiquiatras que se

20 Também citados por Amarante (1995) 21 Várias obras transcorrem cuidadosamente a respeito das experiências de reforma psiquiátrica em todo o mundo. No presente estudo apenas citamos as experiências mais importantes. Para um maioraprofundamento, sugerimos Desviat (1999), Amarante (1995, 1996), Cooper (1973), Basaglia (1979, 1985),Moffat (1980) e Forti (1982).

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ocupavam dessa experiência. A idéia de Comunidade Terapêutica resume-se no tratamento

de grupos de pacientes como se fossem um único organismo psicológico e a desarticulação

da estrutura hospitalar, como explica Basaglia (1979): “Uma comunidade torna-se

terapêutica porque tem em si princípios que levam a uma atividade comum, não se

limitando somente ao chefe da instituição: o grupo cura-se a si próprio” (p. 84).

Sua maneira de abordar o problema foi bem recebida e imitada por muitos

psiquiatras da época. Segundo Schittar (1985), alguns estudiosos de microssociologia do

hospital psiquiátrico, como Stanton e Schwartz, Barton, os Cumming, Caudill, Belknap,

entre outros, contribuíram decisivamente para que se realizassem as terapias comunitárias,

em favor de uma reforma psiquiátrica institucional.

É importante perceber que apesar da importância da experiência inglesa de

Comunidade Terapêutica, a sua reforma reduz-se ao espaço asilar, não conseguindo

resolver o problema da exclusão. Neste sentido, vários autores já começavam a chamar a

atenção para os efeitos nocivos da institucionalização22, necessitando-se de propostas que

visassem a superação do espaço manicomial.

Por outro lado, suas idéias influenciaram o movimento antipsiquiátrico

inglês, um movimento contracultural nascido nos anos 60, que questionou a própria doença

mental e a Psiquiatria, representado por nomes como Laing, Cooper, Esterson e Berke.

Laing (1968) afirmou que a Psiquiatria é a morte da alma. Sua tentativa em

enxergar os sujeitos que estavam sendo massacrados pela ideologia de repressão

psiquiátrica, expressa muito bem a inquietação do movimento da antipsiquiatria: “Comecei

22 Sobre o assunto, imprescindível ver Goffman (1974), na sua obra “Manicômios, Prisões e Conventos”, emque demonstra os aspectos nocivos e cronificadores das instituições totais.

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a ver que estava envolvido no estudo de situações e não apenas de indivíduos (...) a pessoa

que era o paciente no sistema, estando isolada deste, não podia ser encarada como uma

pessoa” (p. 17). Cooper (1973) fala-nos da violência exercida pelos hospitais psiquiátricos,

que conceitua como uma ação corrosiva da liberdade de uma pessoa sobre a liberdade da

outra (p. 36).

Enfim, a Antipsiquiatria consolida-se com críticas contundentes na tentativa

de desconstruir o saber médico-psiquiátrico sobre a loucura, e reconstruir as relações entre

as pessoas e a instituição. A primeira crítica radical a este saber tentava desautorizar

conceitos tidos como verdades absolutas e denunciar as arbitrariedades cometidas por esta

ciência.

Em 1963, o Congresso dos Estados Unidos aprovou o ato dos Centros

Comunitários de Saúde Mental (Community Helth Centers – CMHC), com áreas de alcance

específico (regiões geográficas com uma população de 75.000 habitantes). Cada CMHC

deveria proporcionar cinco serviços psiquiátricos básicos: internamento, serviços de

emergência que funcionassem 24 horas por dia, consultoria à comunidade, cuidados

diurnos (incluindo programas de hospitalização parcial), serviços para pacientes externos,

pesquisa e educação. A lei pública 94/63 da legislação norte-americana exigiu o acréscimo

de serviços para crianças e idosos, avaliação pré-hospitalização, serviços de

acompanhamento de egressos de hospitais, serviços de abrigo transitório, de prevenção ao

alcoolismo e abuso de drogas (Kaplan & Sadock, 1993).

Apesar de ser considerada como uma ruptura radical com o hospital

psiquiátrico, Basaglia (1979) considera que a experiência dos Estados Unidos foi uma

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“gestão repressiva com colorido de liberdade”, pois “nada se destrói transportando as

pessoas para outros lugares, ou outros manicômios” (p. 48). Para ele, a ideologia de

repressão era a mesma, sendo necessário romper não apenas com o espaço institucional,

mas, como afirmamos, com a lógica de tratamento psiquiátrico vigente.

Nada obstante, como referido alhures, essas foram experiências pioneiras

que fizeram emergir várias reflexões acerca do assunto e tentaram aprofundar as propostas

alternativas ao modelo de atendimento, no intuito de efetivar o desmonte do aparelho

manicomial.

Segundo Delgado (2000), a substituição do modelo asilar vem sendo a

principal característica da assistência à saúde mental a partir dos anos 60. De acordo com o

autor referido, o processo de desinstitucionalização foi rápido no Estados Unidos, com a

criação dos Centros Comunitários. Na Europa, o processo torna-se mais gradual,

principalmente porque não recebeu os incentivos oficiais de forma tão incisiva como nos

Estados Unidos. Na Itália, a experiência de desinstitucionalização constitui uma exceção,

por ser um modelo mais participativo e político do que administrativo.

Uma outra proposta, que apesar de fundamental para a história da reforma

psiquiátrica não supera a instituição do manicômio, é a Psicoterapia Institucional francesa,

uma tentativa de conciliação da Psiquiatria com a Psicanálise. Este modelo, utilizado por

Daumezon e Koechlin em 1952, espelhava-se na prática de Tosquelles, que havia levado a

Psicanálise aos hospitais franceses em 1940, e pretendia recuperar o potencial terapêutico

dos hospitais psiquiátricos, numa tentativa de salvar o manicômio. Segundo seus

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idealizadores, a instituição tem características doentias e devem ser tratadas, considerando-

as como uma linguagem, uma cartografia do inconsciente.23

Com um enfoque diferente, mas surgida também no contexto da França do

pós-guerra, a Psiquiatria de Setor buscava tratar o paciente dentro do seu próprio meio

social. Uma das suas principais contribuições foi a criação da denominação de territórios,

os quais seriam setores geográficos que atenderiam uma população não superior a 70.000

habitantes. A criação de equipes e de uma rede de instituições que tinham a

responsabilidade de tratar esses pacientes psiquiátricos em seu meio social e cultural

constituía recursos terapêuticos importantíssimos, que iam além do hospital psiquiátrico.

A crítica que Rotelli24 faz a este modelo diz respeito à aceitação da função

dos hospitais psiquiátricos, tendo em vista que muitos pacientes eram atendidos pela

Psiquiatria de Setor, após internações em instituições. Ao mesmo tempo em que

popularizava a Psicanálise, esse movimento fez com que ela ficasse dirigida aos ditos

“normais”, retirando o foco da demanda dos hospitais psiquiátricos.

Nos anos 70, na tentativa da superação total dos manicômios, a reforma

italiana partiu de uma crítica política e ideológica à consideração da doença mental e dos

hospitais psiquiátricos. Em 1978, com a aprovação pelo parlamento italiano da lei 180,

conseguiu-se a desinstitucionalização das formas de atenção psiquiátricas e o

desmantelamento dos hospitais psiquiátricos, substituído-os por formas de atenção na

comunidade.

23 Sobre isso, ver também Castel (1978b). 24 Citado por Amarante (1995).

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O modelo de reforma psiquiátrica desenvolvido na Itália por Basaglia, que

pode ser considerado um marco na tentativa de reinserção social plena do doente mental,

foi a influência mais importante recebida pelos trabalhadores de saúde mental do nosso

país. A experiência de Trieste fez eco por todo o mundo, chegando também a despertar

ouvidos brasileiros que se encontravam adormecidos.

Após analisar os países que desenvolveram experiências de algum tipo de

reforma no sistema de assistência psiquiátrica, é preciso estar claro o que é reforma

psiquiátrica, e de que reforma estamos falando. Para tanto, evoco a definição proposta por

Amarante (1997): “processo permanente de construção de reflexões e transformações que

ocorrem a um só tempo nos campos assistencial, cultural e conceitual (p. 165)”. O

processo de desinstitucionalização objetiva ressignificar as relações que se estabeleceram

com a loucura, construindo com ela uma nova relação que vise a coexistência, a troca, a

solidariedade e os cuidados necessários.

O debate acerca da reforma psiquiátrica é algo anterior a qualquer debate

médico ou científico, é uma discussão humana, a qual sugere a cidadania e os direitos

humanos do doente, que incluem também o direito a um verdadeiro e digno tratamento.

Quando se considera o louco como sujeito e não apenas como doente

mental, a assistência é modificada. Dessa forma, o paciente psiquiátrico passa a ser

compreendido na interface das questões jurídicas, políticas, culturais e econômicas

presentes na sociedade, implicando a relação entre qualidade de vida e a saúde das pessoas

(Silva, 2000).

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Segundo Amarante (1999), os princípios fundamentais da reforma estão em

(1) romper com a tradição científica psiquiátrica, (2) desconstruir as marcas negativas

impostas à loucura pela instituição e o saber médico e (3) conquistar para a loucura um

lugar social de tolerância e respeito às diferenças dos outros.

Por isso, faz-se mister a transposição de um ato científico para um ato

político, na tentativa de exsurgir um novo olhar sobre a loucura, envolvendo-se todas as

esferas da sociedade com a questão. Dentro das discussões acadêmicas, a questão irá para

além da responsabilidade da Psiquiatria, tão discutida até aqui, para toda a comunidade dita

científica. Afinal, a reforma psiquiátrica vem lembrar também a que serve a ciência, como

bem se questiona Moffatt (1980):

Esse povo precisa de uma Sociologia, uma Psiquiatria, umaPsicologia, uma História, uma Antropologia que o ajude a enfrentar o sistema ideológico dos opressores. E esse mesmopovo nos está dizendo, do fundo das favelas, das fábricas, das fazendas, dos cárceres e dos manicômios: “De que lado estão vocês?...A quem servem?...Aos exploradores...Ou a nós? (p. 11).

Se a Psiquiatria, bem como outras ciências “psi”, não estiver próxima, aliada

aos pacientes, ela continuará a ser uma ciência asséptica e descompromissada. É

importante que a ciência empreste o seu poder para que os pacientes possam se

ressocializar, e não para bani-los da sociedade.

A análise dos movimentos de reforma psiquiátrica faz perceber que, além da

superação do modelo manicomial vigente e da violência da Psiquiatria Custodial, existem

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conceitos comuns que irão constituir as categorias primordiais de uma cultura universal da

reforma psiquiátrica (Desviat, 1999):

1) a divisão em zonas, encontradas nos conceitos do setor francês, do

território psiquiátrico italiano, das áreas inglesas ou espanholas;

2) a continuidade do atendimento;

3) a integração dos três níveis de atendimento (primário, secundário e

terciário), preconizados por Caplan na sua Psiquiatria Comunitária.

Dessa forma, tais pressupostos deverão estar presentes na nova assistência

proposta pelo Brasil no campo da saúde mental, tendo em vista que estamos lidando com

uma concepção específica de reforma psiquiátrica. Isto quer dizer que só poderemos

considerar reformas efetivas as que estiverem de acordo com tais concepções. Fora disso,

estaremos realizando ações insuficientes, ao deixar resquícios de um modelo que se deseja

ultrapassado.

Pretende-se, então, discorrer sobre as principais transformações ocorridas no

Brasil, no campo da saúde mental, que foram cruciais para a implantação de um novo

modelo de assistência.

Antes, porém, faz-se relevante o entendimento deste modelo inaugural de

reforma psiquiátrica, que rompe definitivamente todos os vínculos com o modelo anterior.

É importante ressaltar que o modelo desenvolvido por Basaglia em Trieste, desde o ano de

1971, tornou-se a influência mais importante, principalmente pelo apoio direto deste

psiquiatra italiano, que em várias visitas pelo Brasil acompanhou de perto propostas de

mudanças inspiradas pelo seu trabalho:

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Seria redutor ou errado dizer que a linha iniciada por Basaglia tenha sido a única a informar os movimentos de transformação da prática psiquiátrica no Brasil, mas pode-se afirmar semsombra de dúvida que tem sido a mais importante para aqueles que se empenham na verdadeira transformação da instituição psiquiátrica (...) (Rotelli & Amarante, 1992, p. 48).

Além disso, o Brasil vivia um período político bastante particular, tendo

encontrado seu próprio modelo de reforma psiquiátrica. O que não poderia deixar de ser,

como bem enfatizou Basaglia (1979), em uma de suas vindas ao Brasil: “Não sei qual é a

técnica que servirá para a destruição dos manicômios brasileiros. Não será inglesa, francesa

ou italiana, muito menos americana. Será uma técnica brasileira. É disto que o Brasil

precisa (p. 48)”.

2. A Reforma Psiquiátrica Italiana

“Plenária: O que se pode fazer enquanto a instituição não se abre? Basaglia: Abrir a instituição!”25

“Meu Deus, vem olhar, vem ver de perto uma cidade a cantar a evolução da liberdade até o dia clarear... Ah que vida boa, o estandarte do sanatório geral vai passar...”Chico Buarque de Holanda

25 Conferência proferida por Franco Basaglia no Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo, em 18 de junho de 1979.

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Como foi mencionado alhures, Franco Basaglia, psiquiatra italiano, nascido

no ano de 1924 em Veneza, foi o idealizador de um processo de desmonte de uma estrutura

que já parecia enraizada por duzentos anos de história de Psiquiatria. Quando era estudante

de Medicina, militou contra o Fascismo na Resistência Italiana, tendo sido preso por este

motivo até o final da Segunda Guerra Mundial. Posteriormente, depois de 12 anos de

carreira acadêmica na Faculdade de Medicina de Padova, ingressou no Hospital

Psiquiátrico de Gorizia, onde iniciou mudanças no intuito de transformá-lo numa

comunidade terapêutica.

Em sua obra mais famosa, “A Instituição Negada”, Basaglia (1985) relata a

experiência de Gorizia, uma tentativa de humanização do espaço manicomial. A rotina no

Hospital de Gorizia girava em torno das reuniões, em que se definiam quanto ao salário ou

às saídas dos pacientes. É interessante observar que aqui o trabalho não é visto como

“veículo de colonização”. Trata-se de uma tentativa de dar um significado a esse trabalho,

de forma que os doentes passaram a receber pequenas quantias pelos trabalhos prestados no

hospital.

O trabalho desenvolvido por Basaglia e seus colaboradores é uma negação à

instituição; não é a negação da doença mental, nem da Psiquiatria, muito menos o simples

fechamento do hospital psiquiátrico, mas diz respeito à negação da incumbência que as

instituições sociais delegam à Psiquiatria para isolar, exorcizar, negar e anular os sujeitos à

margem da normalidade social (Rotelli, 1991).

A partir de Gorizia, experiências semelhantes começam a ser desenvolvidas

em outras cidades italianas, como Perugia, Arezzo, Régio-Emília, Parma etc. (Rotelli &

Amarante, 1992).

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Após implantar o processo de transformação no Hospital Providencial de

Gorizia, de 1961 a 1968, Basaglia amadureceu uma crítica a respeito da inviabilidade da

mera reorganização da instituição psiquiátrica, seja ela técnica, administrativa,

humanizadora ou política. Segundo ele, “a única possibilidade de enfrentar a doença

mental ou a loucura seria eliminar o manicômio” (Basaglia, 1979, p. 87). Era urgente a

superação da simples humanização do espaço manicomial.

A tentativa de superação de Gorizia se deu devido às reflexões em torno da

superficialidade das ações que humanizavam o manicômio, deixando de lado discussões

essenciais como as relações de tutela e custódia, além do conceito de periculosidade social

contido no saber psiquiátrico (Amarante, 1995). Assim, buscou-se, a partir de Gorizia,

inventar uma prática apoiada na comunidade e nas relações estabelecidas com o louco.

Em outubro de 1971, ele chega a Trieste a fim de iniciar uma verdadeira

demolição do modelo manicomial, extinguindo os tratamentos violentos, abrindo cadeados

e grades e destruindo muros que dicotomizavam o mundo externo e o interno, reforçando a

segregação social. Além disso, constituiu novos espaços e formas de lidar com o doente

mental (Basaglia, 1985):

Uma vez transpostos os portões, sempre abertos, o visitante ocasional avança ao longo das alamedas do parque com o objetivo, talvez de ir ao bar da comunidade, situado a 300 metros além da entrada. (...) A essa altura o visitante, inteiramente perplexo, não tem condições de discernir o doente do médico ou do enfermeiro. Então, talvez tentando estabelecer termos de comparação, perguntará fatalmente:“Onde estão os perigosos?” (p. 23).

Deste modo, promoveu a substituição do tratamento hospitalar e manicomial

por uma rede territorial de atendimento, da qual faziam parte serviços de atenção

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comunitários, emergências psiquiátricas em hospital geral, cooperativas de trabalho

protegido, centros de convivência e moradias assistidas (chamadas por ele de “grupos-

apartamento”) para os loucos.

Basaglia e sua equipe pretendiam, com a derrubada dos muros, ir além da

reformulação do espaço manicomial, como muitos outros países já vinham tentando. A

proposta, com essa atitude radical de abrir a instituição, pretendia dizer um ressoante não,

não à Psiquiatria, mas, sobretudo, à miséria social a que estavam relegadas essas pessoas.

Almejava também olhar a pessoa e colocar a doença entre parênteses, afinal o doente não é

apenas um doente, mas um homem com todas as suas necessidades.

Basaglia fez com que se olhasse para o problema social em que tinha se

transformado a questão da loucura, despertando para o sofrimento de inúmeras pessoas que

viviam em condições degradantes e de violência. Quis fazer entender que o problema da

loucura, ou da doença mental, não era um problema apenas dos psiquiatras, ou dos que

fazem o hospital psiquiátrico, mas um problema que diz respeito a todo o mundo civilizado.

É claro que é necessário dialogar com a sociedade para que ela possa

assimilar tais mudanças, afinal, abrir as portas do manicômio, derrubar seus muros, é jogar

no rosto das pessoas “sujeirinhas” que gostaríamos de varrer para sempre para debaixo do

tapete. Ocorre que o velho sentimento de exclusão do louco ainda se faz presente no

inconsciente coletivo; ainda vigora a mentalidade de que se deve fazer com que o louco

permaneça afastado da sociedade, protegendo-a de seres perigosos, incômodos e inúteis.

Vencer as barreiras impostas pela própria sociedade, fazê-la aceitá-los no seu convívio não

foi (e não continua sendo) uma tarefa fácil, mas Basaglia conseguiu realizá-la com vitória.

Nas palavras de Desviat (1999):

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Hoje em dia, mais de 20 anos depois de iniciada a experiência basagliana, entrar no velho manicômio de Trieste, o Ospedale S. Giovanni, e percorrer os amplos espaços onde antigamenteera enclausurada a loucura, produz – derrubados os muros e recuperados os pavilhões para uso sanitário, profissional, educativo e cívico – uma agradável sensação de bem-estar, de triunfo (p. 48).

Em 1973 surge o movimento da Psiquiatria Democrática, cujo objetivo era

construir bases sociais amplas para a viabilização da reforma psiquiátrica em todo o país.

Por iniciativa do Estado italiano, foi proposta a revisão da legislação em vigor. Na ocasião,

promulgou-se a lei 180, em 13 de maio de 1978, que ficou conhecida como “Lei Basaglia”,

proibindo a recuperação de velhos manicômios e a construção de novos, além de

reorganizar recursos para a rede de cuidados psiquiátricos, restituindo, assim, condições

para a conquista da cidadania dos doentes mentais e a garantia do direito a um tratamento

psiquiátrico qualificado. Na mesma época, a Organização Mundial de Saúde (OMS)

credenciou o Serviço Psiquiátrico de Trieste como principal referência mundial para uma

reformulação da assistência em saúde mental.

A importância do apoio na esfera política, inclusive com a criação de leis

que dêem subsídios para a efetivação da reforma psiquiátrica, é aqui mais uma vez

reforçada. Os países que enfrentam dificuldades com oposição política à implementação de

novos serviços têm o processo das suas reformas lentas ou paralisadas, muitas vezes até

assistindo ao retrocesso das suas propostas, conseqüência dessa falta de apoio

administrativo, político e financeiro. Conseguir tal apoio também não é tarefa fácil, pois

como comentamos anteriormente, editar leis de proteção ao louco não é nada popular, e

como diz o jargão, “não dá votos”, não interessando a muitos políticos empunhar esta

bandeira.

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Com o apoio necessário, a partir de 1976, o hospital psiquiátrico de Trieste

foi fechado oficialmente, e a assistência em saúde mental passou a ser exercida em sua

totalidade na rede territorial montada por Basaglia.

As críticas ao modelo asilar clássico na tradição basagliana, advento de

inspiração para os trabalhadores de saúde mental no Brasil, firmam-se em três bases

fundamentais, quais sejam (Amarante, 1995):

1) a ligação de dependência entre Psiquiatria e Justiça;

2) a origem de classe das pessoas internadas;

3) a não-neutralidade da ciência

Isso quer dizer que as reformas inspiradas na experiência italiana não

deverão esquivar-se da discussão desses pilares, correndo-se o risco de não se resolver

questões que constituem a raiz do problema.

A chegada de Basaglia a Trieste, em 1971, e o evidente apoio do Estado

dado posteriormente às suas idéias, fez com que os muros derrubados, pesados conceitos

enraizados nas nossas culturas, como aqueles concretos destruídos, pudessem dar lugar a

uma reinvenção do lugar da loucura na sociedade e do papel da Psiquiatria frente a essa

demanda.

Desviat (1999), mais uma vez, nos dá a exata noção da importância da

reforma italiana: “Trieste está encerrando com êxito uma página da história da Psiquiatria

na Itália e da história universal do manicômio” (p. 48).

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PARTE II: Da Reforma Psiquiátrica Brasileira à Experiência do Rio Grande do Norte

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Capítulo I: A Reforma Psiquiátrica no Brasil: corações insones em

defesa dos “insanos”

1. Os “anos de chumbo” e os movimentos sociais de libertação: a reforma psiquiátrica

como um dos (tantos) gritos contidos na garganta.

“O que será que será que andam suspirando pelas alcovas, Que andam sussurrando em versos e trovas Que andam combinando no breu das tocas Que anda nas cabeças anda nas bocas Que andam acendendo velas nos becos Que estão falando alto pelos botecos...” Chico Buarque de Holanda

O período a partir de 1964, chamado de “anos de chumbo” em virtude da

desenfreada perseguição promovida pelos governos militares a todos quanto manifestassem

posição contrária ao Regime vigente na época, tachados de “subversivos”, deixou fortes

seqüelas na vida cultural e política do país.

Foi um período sombrio da história do Brasil, em que estudantes,

professores, escritores, jornalistas, intelectuais, artistas, profissionais liberais das mais

diversas áreas, lideranças políticas e da classe trabalhadora, e até mesmo militares, que

discordavam do Regime, ou demonstravam simpatia por ideologias “esquerdistas”, eram

caçados, cassados, presos, torturados nos porões da ditadura, ou forçados a exílios no

exterior.26

26 Yamamoto (1996) escreve sobre o papel dos intelectuais no processo de democratização no Brasil.

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Os órgãos de repressão dos governos militares realizaram verdadeiras

batalhas contra a cultura brasileira, destruindo bibliotecas inteiras e censurando obras de

arte, peças de teatro, filmes, músicas, jornais, revistas. Ao calar essas vozes, os governos

militares estagnaram a produção cultural de toda uma geração.27

A ruptura com o regime militar foi lenta e gradual, com anistia, em 1979,

que possibilitou o perdão aos torturadores e concedeu direitos políticos e civis aos

considerados inimigos internos do regime de segurança nacional.28

Por todo o país surgiram movimentos sociais clamando por libertação, que

eram duramente enfrentados, com toda a força armada disponível naquela época.

O que nos interessa ressaltar é que, apesar da precária organização social

vivida por nosso país, o período da ditadura militar suscitou grandes movimentos de

protestos advindos de todas as esferas da sociedade. Mesmo caracterizado, num primeiro

momento, como uma oposição de elite29, o processo de transição democrática teve um

período de emergência de um movimento popular configurado pela aliança entre as

comunidades ligadas à Igreja Católica30, os grupos associativos e o novo movimento

sindical. Segundo Alves (1985), a revogação do Ato Institucional Nº 5 abriu possibilidades

27 Sobre a censura no período militar, ver Soares (1989). 28 Vários autores fazem uma análise detalhada sobre o período da ditadura. Foge aos objetivos deste trabalho realizar tal análise, entretanto, é importante destacar as obras de Alves (1985) e Yamamoto (1996), que descrevem esse processo de democratização que ocorreu no Brasil, partindo da “política de distensão” do governo Geisel ao momento de abertura política.29 Alves (1985) pergunta-se o que levou certos setores da elite da sociedade civil a retirarem seu apoio ao Estado e passarem a grupos de oposição. A autora considera três fatores: “Primeiro, importantes grupos de elite sentiam-se profissionalmente ameaçados pela manutenção dos rígidos controles e da centralização do poder. Segundo, os integrantes de tais grupos de elite também se sentiam pessoalmente ameaçados pela violência da repressão. Finalmente, passaram a considerar o próprio Estado autoritário desnecessário à proteção dos seus interesses, e a encará-lo antes como um estorvo do que como um aliado” (p. 220). 30 A Igreja Católica também muda de aliada para oposição, como bem nos lembra Yamamoto (1996), tornando-se, posteriormente, importante no processo de combate ao regime militar. Ver também L. G. S. Lima (1979), Alves (1985), Cava (1988).

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legais para a organização das bases, tornando o movimento popular um ator decisivo nesse

processo político.

A sociedade emergiu, então, com força inusitada dos porões da repressão,

com manifestação de rua, formação de comitês, articulação de organismos, estruturação de

abaixo-assinados, organização de lobbies. Fizeram-se ouvir as vozes de mulheres, índios,

negros, além de empresários, trabalhadores, ruralistas, evangélicos, na disputa por seus

interesses na Assembléia Nacional Constituinte. Houve mais de 383 grupos ou lobbies

atuantes. Cada artigo da Carta Constitucional foi objeto de muita disputa e negociação

entre os blocos de forças. A Constituição se colocou como liberal-democrática-

universalista, expressando as contradições da sociedade brasileira e fazendo conviver as

políticas estatais com as políticas de mercado nas áreas de saúde, da previdência e da

assistência social. A saúde e a assistência social passam a ser direitos do cidadão e dever

do Estado.

Não poderia ser diferente na área de saúde mental; afinal, os fatos que se

evidenciavam contra as instituições psiquiátricas asilares já eram insuportáveis aos olhos de

grupos sociais sensibilizados com a causa. Dentro do campo da saúde, o Movimento dos

Trabalhadores em Saúde Mental – MTSM é um exemplo.

No período da ditadura, privilegiou-se os interesses corporativos e

econômicos de empresários da rede privada do setor, que aumentava num crescente, às

custas do dinheiro público. Com o aumento da crise econômica no país, iniciou-se o

processo de “abertura política” para formação de um Estado Democrático e o

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desenvolvimento de idéias reformistas.31 Houve a oportunidade para que os movimentos

sociais conseguissem reconhecimento para o exercício de controle social das políticas

públicas e sociais no planejamento, gestão, execução e avaliação de serviços e programas

de saúde.

E é justamente nesse clima social de luta pela democracia e dos direitos dos

cidadãos, que alguns profissionais de saúde mental encontram fôlego para lutar pela

mudança do status quo na Psiquiatria (Amarante, 1997; Vasconcelos, 1999).

Não há dúvidas sobre a importância histórica dos movimentos nas últimas

décadas para a consolidação de novas lutas e novas estratégias de atuação.32 Outrossim,

não existem dúvidas nas leituras referentes à história da reforma psiquiátrica, sobre a

influência do movimento de reforma sanitária na sua constituição, como veremos a seguir.

A ênfase no direito e na participação de qualquer pessoa e grupos da sociedade passou a ser

a chave na definição da reforma sanitária. É impossível entender a reforma psiquiátrica

sem inseri-la nas mudanças de concepções que ocorreram na saúde como um todo.

Assim, é inegável o percurso de transformação que ocorreu nas últimas duas

décadas no campo da saúde mental no Brasil, devido a todo esse contexto reformista que

vivia o país e, mais especificamente, no âmbito da saúde.

31 Alguns autores questionam esse processo de democratização. De fato, é interessante notar que numdeterminado momento, o Estado vê-se obrigado a buscar novas bases de legitimação política. Sendo assim, o processo de abertura política é conduzido segundo regras impostas pelo próprio regime. Netto (1990) entende que a própria hegemonia no campo da oposição democrática nunca escapou das mãos da corrente burguesa. Sobre isso, ver também Nogueira (1988). 32 Vale a pena lembrar que a noção de movimento social foi criada em meados do século XIX, na Europa, para designar modos de participação no seio da sociedade. A denominação “movimento popular” foi originária na América Latina, sendo cunhada em tempos como esse, de autoritarismo político, para referir-se à uma vasta gama de movimentos reivindicatórios relacionados ao mal-estar social (Silva, 2000).

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2. A Reforma Sanitária e a reestruturação do campo da saúde mental no Brasil

“O seu olhar agora O seu olhar nasceu

O seu olhar me olha O seu olhar é seu

O seu olhar melhora o meu” Arnaldo Antunes

Ao se propor uma reformulação no campo da assistência à saúde mental,

logo renascem os medos da sociedade que pareciam controlados pelo manicômio. Os mitos

de periculosidade e da invalidação social, que foram designados ao louco, compõem

grandes obstáculos aos avanços. Além disso, existe a resistência dos próprios profissionais,

que se agarram a suas verdades científicas e temem perdê-las. No Brasil, ainda

encontraremos um terceiro “inimigo”, a chamada indústria da loucura (Lobosque, 2001).

Apesar “deles”, os portadores de doença mental tiveram seus gritos contidos escutados por

muitos e começaram a assistir a “novas manhãs renascendo”, longe dos espaços

claustrofóbicos dos hospitais psiquiátricos. Tudo isso, numa longa trajetória, envolvendo

por um lado derrotas e retrocessos, mas por outro, conquistas e avanços importantíssimos.

Vasconcelos (1999) divide a história das principais transformações ocorridas

no Brasil no campo da saúde mental em quatro períodos33. A crise da Dinsam (Divisão

Nacional de Saúde) e a greve dos técnicos de saúde mental, em abril de 1978, são

considerados o estopim da reforma psiquiátrica brasileira. Esses acontecimentos

culminaram com o nascimento do Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental – MTSM,

considerado pelos estudiosos o ator político fundamental para o desenvolvimento de um

33 Sobre a trajetória da reforma psiquiátrica brasileira, ver também Amarante (1995).

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projeto reformista. Entre 1978 e 1982, destaca-se o período de mobilização da sociedade

civil que se insurgia contra o modelo vigente, bem como o surgimento das idéias iniciais

que posteriormente iriam consolidar as Ações Integradas de Saúde – AIS.

Nesse período, o MTSM, que já vinha bastante estimulado pela aprovação

da lei 180 na Itália, ganha força com a visita de Basaglia ao país, delineando novos

objetivos de lutas pelos ideais de mudança. Além disso, pode-se perceber nesse momento a

influência das obras de vários autores citados no presente trabalho, como Foucault,

Goffman, Szaz e Castel, dentre outros, que revelavam a função social da Psiquiatria.

O Movimento visava, entre outras coisas, revelar a desumanização

encontrada nos hospitais psiquiátricos, denunciar a indústria da loucura, reivindicar

melhores condições de trabalho na área de saúde mental, apresentar as primeiras

reivindicações pelos serviços ambulatoriais em saúde mental. Na mesma época, houve a

primeira tentativa de mudança do sistema global de saúde, com a apresentação do plano

PREV-SAÚDE – Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde. Esse programa tinha,

em suas diretrizes fundamentais, a responsabilidade pública pelos serviços básicos e o

controle do sistema global, a descentralização do poder decisório, a regionalização da oferta

de serviços e a participação comunitária.34 Por outro lado, a implementação do PISAM –

Plano Integrado de Saúde Mental, foi responsável pela formação das primeiras equipes

multiprofissionais destinadas a atuar na área da saúde mental, tendo grande impacto nos

estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.

34 É importante ressaltar que esse plano foi amplamente aceito pelos setores progressistas, mas rejeitado pelos representantes do setor privado, aqui representado principalmente pela Federação Brasileira de Hospitais (FBH), de forma que não passou de uma proposta sem aplicação de fato.

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Convém ressaltar que os planos surgidos nessa época eram inspirados no

preventivismo ou nos modelos das Comunidades Terapêuticas, na Psicoterapia Institucional

ou na Psiquiatria de Setor. Na verdade, buscavam a humanização das relações no hospital

psiquiátrico, não havendo ainda rupturas radicais com o modelo vigente. Nem por isso as

propostas deixavam de representar ameaça aos setores privados, principalmente para a

Federação Brasileira de Hospitais (FBH), que lutavam pela não aprovação dos projetos.

O segundo período, ainda segundo Vasconcelos (1999), é marcado pela

expansão do modelo sanitarista, que formalizava as Ações Integradas de Saúde e o Sistema

Único de Saúde - SUS. Uma das ações desenvolvidas nesse período, no interregno de 1980

a 1987, é o desenvolvimento do plano CONASP – Conselho Consultivo de Administração

de Saúde Previdenciária, responsável pela entrada de lideranças do MTSM nas Secretarias

Estaduais de Saúde. O CONASP lançou o “Plano de Reorientação da Assistência à Saúde

no Âmbito da Previdência Social”, que buscava uma melhoria da qualidade assistencial,

humanização dos atendimentos e um maior acesso das populações rurais e urbanas aos

serviços de saúde. Por isso, dava prioridade às ações básicas de saúde, com ênfase na

atenção primária e no atendimento ambulatorial.

Como derivação desse plano, foi aprovado, em agosto de 1982, o “Programa

de Reorientação Psiquiátrica Previdenciária”, que buscava desenvolver a rede ambulatorial

e incrementar novas formas intermediárias de assistência psiquiátrica, orientadas pelos

novos princípios de saúde mental e pelas postulações técnicas da Organização Pan

Americana de Saúde e da Organização Mundial de Saúde. Em 1983, como parte da

operacionalização do CONASP, foram implementados os projetos AIH – Autorização de

Internação Hospitalar e as referidas AIS. Dentro dos seus objetivos estavam a não-criação

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de novos leitos em hospitais psiquiátricos e a redução dos existentes, a regionalização das

ações em saúde mental e o controle das internações. Para mais, o programa previa a

expansão em 50% da oferta de ambulatórios, o que se tornou elemento central de

assistência psiquiátrica.

Entre 1987 e 1992, apontam-se algumas conquistas, como a Constituição de

1988, a aprovação da Lei Orgânica de Saúde em 1990, o lançamento do projeto de lei nº 3.

657 do deputado Paulo Delgado, em 1989, prescrevendo a extinção progressiva dos

hospitais psiquiátricos. Este projeto de lei é o centro dos debates da reforma psiquiátrica

nos dias atuais, tendo sido sancionado pelo Presidente da República tempos depois, em

abril de 2001.

É importante ressaltar que a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, foi

responsável pela definição das bases do projeto da Reforma Sanitária brasileira. Esta

conferência reformulou a concepção de saúde, ampliando-a e incorporando determinantes

sociais no processo saúde-doença. Procurou-se romper, então, com o modelo assistencial

vigente para a construção de uma proposta de atenção à saúde, baseada no perfil

epidemiológico da população. As ações passam a ter um caráter coletivo, voltadas para a

vigilância à saúde, dentro de uma rede articulada de serviços, em vários níveis de atenção.

Esse novo conceito integrado de saúde traz consigo a necessidade de se incluir novos

personagens, compondo-se uma equipe multiprofissional que atue mediante os diversos

fatores econômicos e sociais, que resultam na organização social de produção e é geradora

de grandes desigualdades nos níveis de vida.

Além do conceito ampliado de saúde, o relatório da 8ª CNS definiu

princípios que foram incluídos na nova Constituição Federal, tornando a saúde direito de

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todos e dever do Estado, instituindo um Sistema Único de Saúde e incentivando a

participação popular na concepção dos serviços públicos de saúde, através de suas

entidades representativas. A própria Conferência teve caráter de consulta e participação

popular, contando com representantes de vários setores da comunidade. Dessa forma,

procura-se garantir a universalidade do acesso, da eqüidade, da descentralização dos

recursos e decisões, priorizando-se o nível local e garantindo o controle social, tornando a

saúde uma área pioneira (Lobosque, 2001).

Com o desdobramento da 8ª CNS, houve eventos importantíssimos,

como a I Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em junho de 1987, no

Rio de Janeiro, que aprovou a redução progressiva de leitos em hospitais

psiquiátricos e sua substituição por leitos em hospitais gerais, e serviços

alternativos à internação psiquiátrica. O segundo Congresso de Trabalhadores

em Saúde Mental, realizado em Bauru, SP, em 1987, promoveu grandes

transformações no MTSM, caracterizando-o, sobretudo, como um movimento

social. A luta da reforma psiquiátrica sai do âmbito dos técnicos para atingir a

sociedade civil. “Por uma sociedade sem manicômios” foi o lema sugerido no

encontro de Bauru, fazendo ressurgir o projeto da desinstitucionalização na

tradição basagliana. Outrossim, uma característica inovadora foi o surgimento, a

partir de Bauru, das associações de usuários e familiares como um novo ator no

movimento pela reforma psiquiátrica (Amarante, 1995; 1997).

Em dezembro de 1992, realiza-se no Brasil a II Conferência de Saúde

Mental, considerada um marco na história da Psiquiatria brasileira, aprovando a criação de

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uma rede de atenção integral em saúde mental, substituindo os hospitais psiquiátricos e

trazendo à luz a discussão sobre a cidadania dos usuários.

Lobosque (2001) lembra-nos, com bastante pertinência, que o início dos

anos 90 traz consigo uma novidade no cenário político-administrativo, quando se elegem

pela primeira vez, prefeitos ligados a partidos democráticos e populares. Assim, são

realizados verdadeiros “laboratórios de cidadania” nesses municípios, partindo de

conquistas legislativas que representaram avanços inigualáveis na área da saúde.

A experiência do município de Santos, no estado de São Paulo, é o marco

inaugural de uma prática antimanicomial de atendimento aos portadores de transtornos

mentais, sendo de extrema importância para experiências semelhantes que surgem

posteriormente. Ocorre que, a partir da administração da prefeita Telma de Souza, do

Partido dos Trabalhadores, instaurou-se um processo de revitalização da cidade, com a

expansão de uma cultura política que visava a participação coletiva nas decisões, em

detrimento da política das estruturas partidárias tradicionais, pautada nas relações de poder.

Estas condições políticas foram propiciadoras de mudanças significativas em todo o cenário

social do município.

Em 3 de Maio de 1989, a prefeitura de Santos resolveu intervir na clínica

psiquiátrica privada Casa de Saúde Anchieta, desmontando o aparato institucional

manicomial. É nesse contexto que são instituídos os Núcleos de Atenção Psicossocial –

NAPS, que são “centros de saúde mental fortes, isto é, com funcionamento ininterrupto (...)

que são responsáveis por todo e qualquer tipo de demanda psiquiátrico-psicológico de uma

determinada região geo-político-cultural da cidade”, (Amarante, 1997, p. 171). Os NAPS

têm leitos de apoio para acompanhamento de situações de crise, atende às demandas em

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residências, locais de trabalho ou públicos, além de preocupar-se com os atendimentos

ambulatoriais e emergenciais. Quando uma unidade como essa é aberta, pode-se fechar

uma área correspondente no interior do hospital, conseguindo-se, gradualmente, o esperado

desmonte do aparelho manicomial, substituindo-o por uma rede de serviços descentralizada

e regionalizada (Sampaio, 1993).

O mais importante do modelo santista de atenção está na característica de

atendimento a várias demandas sociais, sendo o aspecto clínico apenas um dos níveis de

atenção, como se almejava. Os conceitos utilizados pelo NAPS tinham inspiração na

experiência basagliana, trazendo à tona questões como territorialidade, tomada de

responsabilidade, cidadania, transformação cultural, atenção psicossocial,

desinstitucionalização etc..

Outras estratégias foram lançadas na tentativa de efetivação da reinserção

social do doente mental, como por exemplo, a rádio Tam-tam, o Centro de Valorização da

Criança e as Cooperativas Sociais.

Também é concebido, no mesmo contexto reformista, o Centro de Atenção

Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira, na cidade de São Paulo, que tinha por

objetivo ser uma instância intermediária entre o hospital e a comunidade. O CAPS pode ser

considerado um passo inicial na reformulação da rede de atenção à saúde mental no Estado

de São Paulo.35

35 Existem diferenças relevantes entre a experiência de Santos (NAPS) e o CAPS de São Paulo. Em seus projetos iniciais, o CAPS era posto como um serviço intermediário, enquanto o NAPS era tido como umserviço substitutivo, por nascer da desconstrução de um manicômio. Além disso, o NAPS era um projetovoltado para o campo político- asistencial, enquanto o CAPS estava voltado para o campo técnico-assistencial. Sobre isso, ver também Amarante et al. (2001).

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Na mesma época, o Ministério da Saúde adota a portaria 189/91,

possibilitando o financiamento de novas estruturas assistenciais. Essa portaria é

responsável pela construção de 48 hospitais-dia, 57 CAPS/NAPS e 1.765 leitos

psiquiátricos em hospitais gerais, em vários municípios do país (Amarante, 1997).

Vasconcelos (1999) define o quarto período, a partir de 1992 até os dias

atuais, como o de mudanças mais significativas. Entre os anos de 1991 e 1996, foram

fechados 17. 575 leitos em hospitais psiquiátricos, número que mostra a grande conquista

do movimento antimanicomial.

Os Núcleos de Atenção Psicossocial de Santos expandiram-se por todo o

país, além de outras experiências semelhantes terem sido implantadas, como a Casa das

Palmeiras, no Rio de Janeiro, a Pensão Nova-Vida, no Rio Grande do Sul, ou ainda

programas de desinstitucionalização em hospitais psiquiátricos tradicionais. Tais espaços

têm desenvolvido programas bastante flexíveis, sendo mais efetivos na caracterização da

atenção psicossocial, incluindo-se a família, a rede social, as agências sociais e de saúde, os

espaços de cultura e lazer, na “estratégia de pluralizar as potências reabilitadoras desses

centros, frágeis e pequeninos para enfrentar um problema de tão grande dimensão” (Pitta,

1994, p. 650).

Lopes (1999) descreve a contribuição do estado de São Paulo à reforma

psiquiátrica no Brasil. A autora considera a construção do Código da Saúde do Estado de

São Paulo, a Declaração de Caracas de 1990, a Declaração da ONU de 1991, a II

Conferência nacional de Saúde Mental, em 1992, o I Encontro Nacional do Movimento de

Luta Antimanicomial, em 1993, o III Encontro Nacional de Entidades Familiares e

Usuários, em 1993, e as Resoluções do Conselho Federal de Medicina, de 1994, um

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acúmulo histórico de produção antimanicomial, propulsora de implantações significativas

na rede de assistência à saúde mental em São Paulo.

De fato, a Declaração de Caracas e, posteriormente, a Declaração da

Organização das Nações Unidas (ONU) foram documentos internacionais importantes para

o Brasil, pois serviram de referencial para os projetos reformistas.

A Declaração de Caracas (1990) propõe a reorientação da atenção

psiquiátrica, de maneira que esta não se limite ao hospital psiquiátrico como única

modalidade assistencial, ampliando as alternativas. A carta da ONU, de 17 de dezembro de

1991, define princípios para a proteção de pessoas com enfermidade mental e a melhoria da

assistência à saúde mental, baseados na Declaração Universal de Direitos Humanos (Silva,

2000).

Ainda segundo Lopes (1999), estudos epidemiológicos realizados na região

de São Paulo demonstram uma estreita relação entre salário mínimo e distúrbios mentais,

sugerindo que as relações de trabalho e as condições de vida da população constituem

determinantes sociais envolvidos na produção de sofrimento mental. Com base nesses

estudos, surge a necessidade de pensar abordagens sócio-culturais de intervenção, em que a

clínica seja apenas uma das dimensões do processo, o que viria ao encontro das propostas

no campo da saúde.

Os estudos indicaram, ainda, a emergência de algumas ações que

superassem o modelo asilar, como por exemplo, a criação de um novo estatuto do doente

mental que viesse a derrubar o aparato jurídico-institucional que confere poder à instituição

manicomial; a promoção de ações que possibilitassem ressignificar a loucura perante a

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sociedade; e a substituição total e progressiva do hospital psiquiátrico por um modelo de

atenção integral à saúde mental antimanicomial.

Destarte, o paradigma da atenção psicossocial será o motor da

reforma brasileira atual, redimensionando todo o campo da saúde mental. O

princípio do nosso projeto antimanicomial será, então, a extinção gradativa do

hospital psiquiátrico e a sua substituição radical por um modelo de atenção

diferenciado, como preconiza a referida Lei Paulo Delgado. Com efeito:

1) Fica proibida, em todo o Brasil, a construção de novos hospitais psiquiátricos e a

contratação pelo serviço público de leitos e unidades particulares deste tipo;

2) As administrações regionais de saúde (secretarias estaduais, municipais e outros)

estabelecerão o planejamento necessário para o funcionamento do modelo de

atendimento não-manicomial, como unidade psiquiátrica em hospital geral, hospital-

dia, hospital-noite, centro de atenção, centros de convivência, pensões e outros, bem

como a progressiva extinção dos leitos com características de manicômio;

3) As administrações regionais de saúde terão o prazo de um ano, a partir da data de

promulgação da nova lei, para apresentarem o planejamento e o cronograma de

implantação dos novos recursos técnicos de atendimento;

4) As secretarias estaduais deverão formar um Conselho Estadual de Reforma Psiquiátrica,

no qual estejam representados os trabalhadores de saúde mental, usuários e familiares, o

poder público, a Ordem dos Advogados do Brasil e a comunidade científica. O grupo

terá a missão de acompanhar a elaboração dos planos regionais e municipais de

desospitalização;

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5) A internação médica compulsória deverá ser comunicada, pelo profissional que a

determinou, no prazo de 24 horas, à autoridade da Justiça local, preferencialmente da

Defensoria Pública, quando houver;

6) Fica definida como internação compulsória aquela que ocorre sem o desejo do paciente;

7) O representante da Defensoria Pública, ou outra autoridade da Justiça que o substitua,

deverá ouvir o paciente, médicos e equipe, familiares e outras pessoas que achar

necessárias para, em 24 horas após a internação, emitir parecer sobre a legalidade do

procedimento;

8) A Defensoria Pública deverá fazer auditorias periódicas em estabelecimentos

psiquiátricos, com o objetivo de identificar casos de seqüestro ilegal e zelar pelos

direitos dos cidadãos internados.

Mais uma vez, resta-nos saber se a lei da reforma psiquiátrica está sendo

aplicada nos municípios. Como estes pontos essenciais estão sendo efetivados? É

importante destacar, a partir deste ponto, como se deu a passagem das leis para o

planejamento e para a sua execução.

O evento mais recente no campo da saúde mental mostra-nos que, após

períodos de avanços significativos, talvez o processo de reforma psiquiátrica tenha ficado

mais lento, encontrando dificuldades que outrora não existiam. A III Conferência

Nacional de Saúde Mental reuniu, em dezembro de 2001, mais de mil usuários e

profissionais dos serviços de saúde mental do SUS, representando 27 estados, contando

também com observadores da OPAS (Organização Pan Americana de Saúde) e da OMS

(Organização Mundial de Saúde). O documento final da III Conferência Nacional de Saúde

Mental apóia reformas no atendimento em saúde mental no país, como a redução de leitos

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em hospitais psiquiátricos e a criação de mais centros comunitários (Centros de Atenção

Psicossocial - CAPS), que deverão ser adotadas pelo Ministério da Saúde. Na verdade, são

reafirmações do que a lei descrita acima já demandava, ou seja, são batalhas ainda não

vencidas que emperram o desenvolvimento de uma reforma psiquiátrica plena.

E o que se espera de uma reforma efetiva é que ela não possa mais conviver

com o modelo anterior, num ambiente onde forças contraditórias duelam a respeito de

quem tem a “razão” no universo da loucura. Chega o momento de se questionar, afinal,

quem são os (novos ou velhos) “inimigos ocultos” da reforma psiquiátrica no nosso país?

Não obstante a importância dos acontecimentos, das realizações

concretizadas nessa trajetória, Amarante (1995) já alertava para o surgimento de novos

problemas enfrentados pelo movimento:

E, finalmente, em que pesem ainda a participação social, a aprovação de legislações de Reforma Psiquiátrica e o surgimento de um grande número de serviços, o modelopsiquiátrico asilar tradicional em pouco foi afetado. Até o momento, as doenças mentais estão entre as causas que maisincapacitam as pessoas para o trabalho, entre as principais internações e ocupam o primeiro lugar com gastos públicos com assistência hospitalar no Brasil (p. 85).

De fato, dados do ano de 2001 do Ministério da Saúde mostram que se gasta

R$ 530.000.000,00 por ano em saúde mental, sendo que R$ 450.000.000,00 vão para os

hospitais psiquiátricos (Ministério da Saúde, 2001).

A redução dos leitos psiquiátricos precisa caminhar junto com a

implantação de novas formas de assistência. Para tanto, faz-se necessário o aumento dos

financiamentos para a rede substitutiva. A substituição dos hospitais psiquiátricos deve ser

criteriosa, mas não deve haver medo dos pacientes ficarem abandonados. De uma forma

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ou de outra, abandonados eles já estão nos hospitais. No entanto, a sociedade, e mais uma

vez as famílias, não compreendem o processo gradativo e cauteloso de reforma

psiquiátrica, exigindo por muitas vezes a reversão dos quadros conquistados. Para

ilustrarmos essa discussão, recorreremos à enquete realizada pelo jornal “Diário de Natal”,

de 11 de abril de 1999, quando perguntaram para várias pessoas nas ruas se elas eram

favoráveis à redução de leitos psiquiátricos. Percebe-se, em sua maioria, a total

incompreensão da proposta reformista, como nas respostas que seguem:

Não, absolutamente. Em vez de diminuir eles deveriam aumentar. Quem já viu, a saúde pública precisa melhorar e não piorar. Se diminuir, sem dúvida vai prejudicar pessoas que dependem desse tratamento. Sou totalmente contra.(C. V., 34 anos, atendente)

Sou contra a diminuição. Acho que deve ter espaço para essas pessoas. Os próprios parentes já os abandonam. Se diminuir os leitos, onde é que eles vão ficar? É indispensável um lugar para tratá-los. Tem mais é que aumentar a quantidade disponível.(J. S., 32 anos, fotógrafo)

O tão comentado medo dos “loucos à solta” é reforçado no imaginário

popular por críticas infundadas sobre o destino social do portador de doença mental, após a

reforma psiquiátrica. A substituição do modelo asilar por uma rede integrada de atenção e

cuidados parece não estar posta de forma clara, de modo a alcançar leigos e outros

profissionais da área. A cultura manicomial está arraigada nas mentes e atitudes da

sociedade. Vê-se, claramente, que a ressignificação da loucura perpassa por um longo

processo de educação, em que se construa novos conceitos e se destrua antigos

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preconceitos relacionados à doença mental. A discussão sobre a reforma psiquiátrica

deverá ir além dos círculos de profissionais engajados nesse movimento.

Diante desse quadro, para a não estagnação da reforma psiquiátrica no

Brasil, faz-se mister repensar as práticas implantadas, avaliar os novos serviços, analisar o

poder de articulação do movimento com setores políticos e sociais, identificar as barreiras

e tentar avançar nas propostas.

Discutiremos, a seguir, dois pontos da reforma psiquiátrica no Brasil: o

modelo de atenção psicossocial e os direitos humanos e a cidadania dos usuários, por

serem questões relevantes para a efetivação dos princípios da reforma psiquiátrica.

3. O modelo de atenção psicossocial

Ao se propor a extinção gradativa dos hospitais psiquiátricos, os

profissionais de saúde mental levaram à frente o desafio de construir um modelo que

considerasse a total libertação dos pressupostos que sustentavam a prática manicomial. Um

modelo radicalmente diferente, que enxergasse o usuário para além do seu sintoma, que o

encarasse como um sujeito de direitos, enfim, que o ouvisse em sua subjetividade. Assim,

todo o território nacional respondeu a esse chamado, lançando-se sobre propostas que

tivessem como concepção de trabalho dois aspectos básicos: “uma busca do consentimento

do sujeito para engajar-se em seu próprio tratamento, e uma direção do tratamento que

aponta para sua presença e produção no espaço da cultura” (Lobosque, 2001, p. 25).

Costa-Rosa (2000) analisa o paradigma do modelo psicossocial como prática

substitutiva ao modelo asilar, diferenciando-os essencialmente em quatro âmbitos: as

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concepções do objeto e dos meios de trabalho, as formas de organização institucional, as

formas de relacionamento com a clientela e a concepção dos efeitos típicos em termos

terapêuticos e éticos.

Em cada caso, o modelo psicossocial distingue-se do modelo asilar,

principalmente, na sua concepção de loucura:

Há no modo psicossocial, quanto a este aspecto, umdeslocamento fundamental das mudanças, do indivíduo para a instituição e o contexto. A loucura e o sofrimento psíquico não têm mais de ser removidos a qualquer custo, eles são reintegrados como partes da existência, como elementoscomponentes do patrimônio inalienável do sujeito. Os conflitos são considerados constitutivos e designam o posicionamento do sujeito e o lugar sociocultural do homem(Costa-Rosa, 2000, p.155).

Para mais, o modelo psicossocial coloca a questão da ética no estatuto da

prática em saúde mental, incluindo o respeito aos direitos humanos dos pacientes e à

conquista da cidadania no cerne das suas ações.

Para a atenção integral do paciente em saúde mental, foi preciso ir muito

além de unidades humanizadoras de tratamento (NAPS/CAPS), na tentativa de fazer valer o

ideal de ressocialização. Criou-se, portanto, um “emaranhado” de ações que constituíram

uma imensa rede de atenção à saúde mental, importando-se a interdependência de todas as

unidades referidas para assistirmos a uma substituição completa do modelo asilar. Para

tanto, some-se um pouco de vontade política, renovação de compromissos e competência

profissional para fazer a rede funcionar.

O modelo de atenção em saúde mental que vem sendo montado em São

Paulo, desde 1989, inclui uma rede inteira de assistência que seja realmente substitutiva do

modelo anterior:

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Esse sistema se opõe ao modelo hospitalocêntrico e propôs que, gradativamente, torne-se desnecessária a internação asilar. Emprega uma forma de tratamento que, além de humanizar a atenção ao doente mental, amplia as técnicas terapêuticas oferecidas, inclui a família no tratamento,mantendo aberto o canal entre esse indivíduo e a sociedade. Isto possibilita o resgate e o exercício de sua cidadania (Leite, Tiveron & Silva, 1999, p. 104).

A rede de saúde mental inclui Unidades Básicas de Saúde - UBSs, Centros

de Convivência e Cooperativas, Emergência Psiquiátrica e Enfermaria de Saúde Mental em

Hospital Geral e Hospital-Dia em Saúde Mental.36

As UBSs contam com equipes multidisciplinares (psiquiatras, psicólogos,

assistentes sociais, terapeutas ocupacionais etc.) que tenham uma visão ampliada de saúde e

são consideradas portas de entrada da rede, com resolutividade de 80% dos problemas de

saúde da população. Os Hospitais-Dia são pequenas casas inseridas na comunidade

(denominadas “casas de passagem”), as quais facilitam a convivência e funcionam com a

finalidade de terapia intensiva: “Com característica mais especializada, o hospital-dia

buscava a assistência ampla para o indivíduo que não necessariamente carecia de uma

conduta mais extrema como a internação” (Lopes, 1999, p. 64).

Os Centros de Convivência e as Cooperativas são espaços alternativos de

convívio, aberto a todos, possibilitando trocas e aproximações entre os usuários e a

população em geral. Têm por objetivo:

Facilitar e estimular a participação coletiva, promover a experimentação artística e criativa, a aprendizagem, o encontro entre pessoas, propiciando condições que favorecessem a reinserção e a reintegração social desses

36 Vários estados contribuíram para a consolidação da reforma psiquiátrica no país, como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul etc. No entanto, fazemos menção ao estado de São Paulo na tentativa de expor uma experiência modelo que sirva como referência para discussões posteriores.

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indivíduos através de atividades coletivas, como atividades culturais, esportivas, entre outras, disparadoras de experiências comuns, ao mesmo tempo singulares, construindo um território que produzisse sentido ao coletivo (Galletti, 1999, p. 186).

Emergências de saúde mental em prontos socorros gerais, bem como

enfermarias em hospitais gerais, garantem o atendimento qualificado e a internação sem

características asilares, sempre que necessário. Além disso, uma outra forma de acolher o

portador de doença mental que já havia perdido todos os seus vínculos familiares e sociais,

é a construção de lares abrigados, isto é, moradias no seio da comunidade que abrigam os

portadores de doença mental cronificados pela internação asilar.

Outra ação importante resultante deste movimento é a criação dos Centros

de Referência de Saúde do Trabalhador, que desenvolvem programas voltados para a

vigilância à saúde relacionada ao trabalho, tendo em vista diversos estudos apontando para

distúrbios mentais causados por atividades laborativas.

Vê-se que a almejada reforma psiquiátrica acaba por definir novos papéis

aos atores sociais envolvidos. A ponta do novelo estaria nas universidades, responsáveis

pela preparação dos estudantes na área de saúde mental, tendo em vista que muitos outros

profissionais foram envolvidos na nova forma de atenção. Em outras palavras, a questão

posta não mais diz respeito somente aos psiquiatras e enfermeiros. Além da reformulação

dos papéis destes importantes técnicos de saúde mental, a reforma preconiza outros

recursos terapêuticos, que não medicamentosos ou de contenção, que por sua vez

demandam outros tipos de técnicos. Assim, psicólogos, assistentes sociais, arte-

educadores, educadores físicos, etc., ganharam papel de novos protagonistas da odisséia da

reforma psiquiátrica, deixando de ser meros coadjuvantes nesta prática.

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Inúmeros profissionais, aqueles que já trabalhavam em hospitais e novas

equipes, passam por qualificações e requalificações, participando de constantes reflexões

acerca de seu papel. Ainda assim, teremos profissionais resistentes e impregnados de

conceitos caducos. O que dizer, então, dos profissionais que são formados pelas

universidades que não têm acesso aos novos rumos que a assistência psiquiátrica tomou,

levando em consideração que seus catedráticos ainda são aqueles senhores que imaginam a

loucura como a corrupção da humanidade, e seus currículos apregoam disciplinas que não

vão além do fazer médico-psiquiátrico que parecem datar de mil anos?

Vê-se que o saber que já foi de domínio absoluto da Psiquiatria, ou em

tempos remotos, caso de polícia, passa a ser uma preocupação social que demanda atitudes

políticas dos profissionais de saúde, da comunidade e da universidade, incluindo nas pautas

de discussões questões relacionadas à cidadania, direitos humanos, organização e

participação política. Sem a discussão que propomos a seguir, a reforma psiquiátrica estará

se eximindo de um dos pontos que constrói o seu alicerce: a transformação de um ser

outrora alienado, “coisificado”, em um sujeito de direitos dentro da sociedade na qual está

inserido.

4. A construção da cidadania dos usuários – O movimento de luta antimanicomial

“Tenho direito à igualdade quando adesigualdade me inferioriza. Tenho direito àdesigualdade quando a igualdade medescaracteriza” (Boaventura de Souza Santos)

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A organização política dos usuários, como afirma Lobosque (1999), é sem

dúvida um aspecto decisivo numa cultura antimanicomial que se pretende conquistar.

Desde o início dos anos 90, avançou-se muito nesta organização, que tem por objetivo

torná-los protagonistas e sujeitos dessa história de mudança.

É bem verdade que essa luta por direitos e pela reinvenção da cidadania não

pode ser isolada de toda a discussão a respeito das conquistas humanitárias nesse campo.

Como a própria Lobosque (2001) argumenta:

Nada, nem uma única de nossas conquistas, deu-se, por assimdizer, naturalmente; nenhuma delas resultou da tranqüila colheita de frutos que amadurecem no ritmo seqüencial das estações, e, sim, de um plantio feito a partir de uma dura disputa pela terra (p. 32).

As afirmações e reafirmações de que a reforma psiquiátrica não se reduz a

uma reforma no campo assistencial, traz à luz algumas considerações a respeito dos direitos

fundamentais humanos e do conceito de cidadania.

A priori, é preciso esclarecer que direitos fundamentais são esses. Pode-se

dizer que são aqueles inerentes à condição humana, os quais objetivam “criar e manter os

pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana”, conforme

teoriza Konrad Hesse (citado por Bonavides, 1998, p. 514). Tratam-se de princípios

universais, frutos do evolver do pensamento humano.

Em verdade, liberdade e dignidade humana são valores históricos e

filosóficos que remontam à idéia de universalidade. De fato, a relevância que se dá

atualmente aos direitos fundamentais é conseqüência da convicção da existência de direitos

mínimos que, de tão essenciais, não se restringem ao homem isolado, mas se estendem ao

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gênero humano. E essa concepção é herança do racionalismo francês do século XVIII,

manifestado, primeiramente, através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,

de 1789.

Tal Declaração representa um verdadeiro marco histórico daquilo que se

viria chamar de “geração dos direitos humanos”. Com efeito, a referida Declaração teve

por suporte o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, representando, respectivamente,

os direitos de primeira, segunda e terceira geração (Bonavides, 1998).

Os direitos de primeira geração são os direitos de liberdade (direitos

individuais, civis e políticos), que tiveram maior ênfase no século XVIII, não apresentando

uma maior preocupação com a questão social, o que não poderia deixar de ser; afinal, a

Revolução Francesa foi uma exaltação à burguesia e ao seu individualismo e liberalismo

extremo.

Já no século XX, elevam-se os direitos de segunda geração, os sociais.

Trata-se de conseqüência da extrema desigualdade social gerada pelo anterior “Liberalismo

Puro”. Como o espírito revolucionário francês afastou o intervencionismo estatal,

exaltando o individualismo, o cenário do século XX sentiu o quão perigoso é deixar os

homens abandonados à própria sorte, aflorando-se o lobo voraz existente no âmago da alma

humana, como bem pontificou Hobbes (“O homem é o lobo do homem”). Inferiu-se que a

intervenção estatal deve garantir a concretização dos direitos sociais (culturais, econômicos

e coletivos), na busca da efetivação de uma justiça social, sendo relevante as contribuições

marxistas a esse respeito.

Na fase subseqüente, buscou-se uma nova dimensão dos direitos

fundamentais, com ênfase na fraternidade: os direitos de terceira geração, chamados

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difusos. Têm por destinatário a coletividade humana: direito ao desenvolvimento (tanto do

Estado como do indivíduo), à paz, à comunicação, à proteção ao patrimônio comum da

humanidade.

Vislumbra-se, por fim, em tempos hodiernos, um clamor pelos direitos de

quarta geração: direito à democracia, à informação e ao pluralismo.

É assim que se está posta a questão relativa aos direitos humanos

atualmente. Afinal, o pensamento a esse respeito tem hoje como ponto principal a

Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1948, a famosa Carta das

Nações Unidas, a qual tratou de assentar os direitos das três gerações, colocando-os no

mesmo patamar de importância, tendo como critério orientador, sempre, o respeito à

dignidade humana:

A Declaração Universal dos Direitos do Homem é o estatuto de liberdade de todos os povos, a Constituição das Nações Unidas, a carta magna das minorias oprimidas, o código das nacionalidades, a esperança, enfim, de promover, semdistinção de raça, sexo e religião, o respeito à dignidade do ser humano (Bonavides, 1998, p. 531).

Assim, todos os países que assinaram a carta de 1948 têm o dever de

proteger os direitos nela contidos como fundamentais e invioláveis. E ao Brasil, também,

cabe essa função, por ter consentido com a Declaração da ONU, com seus princípios e

valores.

Sabe-se que o Brasil tratou de inserir na Constituição Federal de 1988 os

direitos e garantias fundamentais, na condição de país signatário da Carta das Nações

Unidas. A questão que se coloca é: trata-se de plano meramente teórico ou há efetivamente

uma aplicabilidade de tais direitos?

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Essa é uma questão um tanto rotineira: afinal, é notório que o Brasil vive

uma desigualdade social gritante, em que os direitos e garantias fundamentais são

pisoteados e ignorados numa naturalidade revoltante. Entretanto, tem-se em foco um ponto

específico dessa violação: o desrespeito aos direitos fundamentais dos portadores de doença

mental. E essa não é uma questão rotineira, não está na ordem dos debates prioritários do

país. Não sendo os loucos tidos (nem tratados) como cidadãos, seria desnecessária a

preocupação em salvaguardar seus direitos fundamentais. Afinal, nas últimas décadas, o

louco, independente da sua situação de enfermidade, é considerado incapaz pelo Código

Civil Brasileiro: “os loucos de todo gênero são absolutamente incapazes”.37

Poder-se-ia pensar, então, que a aprovação da Lei Paulo Delgado, bem como

das legislações municipais que se comprometem com os princípios da reforma psiquiátrica,

traria proteção aos direitos dessas pessoas.

No entanto, casos de mortes violentas de pacientes, como um recente

episódio ocorrido no Hospital Psiquiátrico Dr. Milton Marinho, no município de Caicó,

região do Seridó no Rio Grande do Norte, vêm mostrar que ainda estamos deveras

atrasados nessa tarefa. Apesar das Comissões de Direitos Humanos do Sistema Conselhos

de Psicologia terem iniciado uma campanha nacional pelo descredenciamento do hospital

pelo SUS, nenhuma providência foi tomada.38

37 Apenas com o Novo Código Civil, em vigor a partir de 11/01/2003, a expressão “loucos de todo gênero” é extinta, dando lugar ao seguinte texto:“Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: (...)II – os que por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a práticadesses atos” (p. 1). 38 A violência no hospital começou a vir à tona quando um paciente foi encontrado morto em uma "cela-forte", enrolado em um colchão e com o corpo completamente queimado. Apesar da perícia haver constatadoindícios de incêndio criminoso, médicos da entidade apontaram como causa mortis queimadura e asfixia provocadas por suicídio (!). Segundo testemunhas naquele hospital, já ocorreram vários casos de mortes

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Tendo em vista a preocupação com a garantia dos direitos humanos, é

inviável a permanência de instituições que maltratam, violam, mortificam pessoas que

precisam de cuidados médicos, psicológicos, sociais e, por que não, afetivos.

O movimento de luta manicomial, composto de técnicos, familiares e

usuários, deverá, então, sensibilizar a opinião pública, os gestores, o setor privado de que,

como proferia Basaglia, a questão da loucura diz respeito a todo um mundo que se quer

chamar civilizado.

Apenas a organização política, a formação de movimentos sociais

organizados poderão formular as políticas sociais de interesse da população e, o mais

importante, cobrar do Estado o seu cumprimento, como pontificou Silva (2000):

Para a manutenção dos avanços no campo da saúde mental,que hoje são preeminentes, é necessário reconhecer o vigor da história, o contexto dos acontecimentos, as contradições, as esperanças, as conquistas e as frustrações presentes, que explicitam na Reforma Psiquiátrica o poder de atuação do importante ator que é o movimento social organizado na saúde mental (p. 103).

violentas. Em 1998, outro paciente teria morrido vítima de pauladas no pátio do hospital. No ano de 2000também teria ocorrido uma morte, em ocasião em que uma auxiliar de enfermagem foi demitida, segundo relatos, por haver denunciado os maus tratos. Ver, no anexo A, resposta dada pelo Ministério da Saúde sobre o assunto.

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Capítulo II: Ressignificando a loucura: contribuições à história da

Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Norte

“Sonhar mais um sonho impossível

Lutar quando é fácil ceder

Vencer o inimigo invisível

Negar quando a regra é vender

Sofrer a tortura implacável

Romper a incabível prisão

Voar num limite improvável

Tocar o inacessível chão”

Chico Buarque de Holanda

Diante de tudo o que foi exposto até aqui, ficamos com a seguinte questão:

como se processou a reforma psiquiátrica no estado do Rio Grande do Norte? Quais os

atores envolvidos no processo, sua trajetória, conquistas, avanços e perspectivas do

movimento em concretizar o ideal de ressocialização do portador de doença mental?

Vimos que, a partir da década de 1990, o processo de reestruturação da

assistência psiquiátrica no Brasil teve grande desenvolvimento, respaldado pelas portarias

ministeriais que apontavam para a criação de uma rede de cuidados em saúde mental,

incluindo-se Núcleos e Centros de Atenção Psicossocial (NAPS/CAPS), ambulatórios em

saúde mental, centros de convivência, leitos de curta permanência em hospitais gerais,

emergências em pronto socorro geral, residências terapêuticas, etc.

Vários municípios e estados de todo o país se adequaram às novas

normatizações na área de saúde mental, fazendo com que os serviços de atenção diária aos

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portadores de sofrimento psíquico passassem de 03 a 295, no período compreendido entre

os anos de 1990 a 2001. É nesse contexto que são criados, em Natal, os NAPS e o CAPS,

estratégias municipais para efetivação da lei Paulo Delgado, dos quais falaremos mais

detalhadamente em seguida.

Para compreender a experiência da Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do

Norte, faz-se necessário, então, descrever o processo de construção de novos modelos de

assistência à saúde mental implantados pela Secretaria Municipal de Saúde de Natal, a

partir do ano de 1992. Escolheu-se a cidade de Natal, por ter sido a experiência

impulsionadora das discussões sobre a reforma psiquiátrica no estado, tendo avançado

muito nesse período. No entanto, chega-se a um momento em que os avanços não são mais

vislumbrados, os profissionais parecem cansados e sem fôlego. Que rumos terão tomado os

ventos favoráveis que anunciavam o início de uma revolução de conceitos na área de saúde

mental? Resta-nos saber o que acontece com um projeto que se tornava referência nacional

e, alguns anos depois, parece congelar no tempo.

Reconstruindo os caminhos percorridos desde então até os dias atuais,

poderemos analisar os percalços, as dificuldades enfrentadas, bem como ressaltar as

conquistas e os avanços, no intuito de avaliar esses novos serviços: o modelo de atenção

proposto, seus conceitos, estratégias de ação, formas de implantação etc.

1. A Reforma Sanitária no Rio Grande do Norte

A reforma sanitária foi desencadeada no Rio Grande do Norte com a

implantação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde – SUDS, no governo do

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PMDB, em julho de 1987. Essas mudanças representaram a continuidade das políticas

implementadas com as Ações Integradas de Saúde, que transferia recursos do governo

federal para as secretarias de saúde.

C. M. de Vasconcelos (1997)39 lembra-nos que a política de saúde no estado

do Rio Grande do Norte sempre esteve ligada aos interesses do sistema político no poder.

Dessa forma, as decisões se concentravam nas mãos dos secretários de saúde, que

negociavam tais interesses com prefeitos, vereadores, deputados e lideranças políticas

locais. O preço dessa política é uma assistência à saúde em moldes extremamente

clientelistas, visando a conquista de votos e a manutenção no poder.

Só iremos assistir, no Rio Grande do Norte, a presença de profissionais de

saúde envolvidos em questões significativas, a partir da década de 1980, quando a sua

atuação se volta principalmente para a luta salarial, melhores condições de trabalho e para a

denúncia contra esse tipo de política, o que vem a reforçar as reivindicações pela

democratização do setor de saúde.

É importante notar também que, apesar da organização em prol de melhores

condições de trabalho, a prática profissional no setor de saúde pública sempre foi

caracterizada nos moldes liberais ou semi-liberais, prevalecendo a atuação isolada de cada

categoria, ao invés de um trabalho realizado em equipe, e priorizando as ações individuais

(C. M. de Vasconcelos, 1997).

De qualquer forma, no início dos anos 80, já articulados com entidades de

âmbito nacional, esses profissionais, organizados nas suas categorias, através de sindicatos,

ou conselhos profissionais, foram importantes atores na difusão das idéias da reforma

39 O trabalho de C. M. de Vasconcelos (1997) trata dos “Atores e Interesses na implantação da reformasanitária no RN”, assunto bastante complexo sobre o qual faremos apenas uma breve introdução nesta seção.

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sanitária, pressionando as instituições de saúde no estado. A realização da VIII

Conferência Nacional de Saúde, em março de 1986, deu bastante fôlego a esse processo.

Para a preparação da referida Conferência, ocorre no Rio Grande do Norte a I Conferência

Estadual de Saúde, da qual também fizeram parte as discussões sobre a assistência à saúde

mental. Outro evento importante no processo da reforma sanitária foi o Seminário

Interinstitucional sobre Reforma Sanitária e Organização dos Serviços de Saúde no Rio

Grande do Norte, que discutiu, principalmente, estratégias de implantação do SUDS no

estado. A Universidade Federal do Rio Grande do Norte também participou desse processo

da reforma sanitária, promovendo cursos de especialização em saúde pública, que

difundiam as críticas sobre as políticas de saúde da época.

Após esses eventos importantes, o processo de difusão dos princípios da

reforma sanitária se dá rapidamente, inclusive em razão dos avanços legais conquistados

com a inserção das suas propostas na Constituição Federal, em 1988.

Após as eleições presidenciais e a vitória de Fernando Collor, assistiu-se, no

Rio Grande do Norte, a um declínio dessas propostas, gerado pela crise no setor,

diminuição no repasse financeiro e pelos confrontos com os profissionais de saúde.

Em outubro de 1991, realizou-se a II Conferência Estadual de Saúde, que foi

um importante espaço de discussão sobre a implantação do SUS, mobilizando um número

significativo de profissionais e lideranças populares. Nessa ocasião, novamente foram

realizadas conferências específicas de recursos humanos, saúde mental, saúde bucal e saúde

do trabalhador. Com relação à saúde mental, concluiu-se em seu relatório final que os

problemas dessa área decorrem em grande parte das condições sócio-econômicas da

população e da inadequação dos serviços para atendê-la, refletindo a falta de uma política

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de saúde mental no Estado. As propostas na área de saúde mental se direcionaram para a

realização de uma Conferência Estadual de Saúde Mental, criação de um conselho estadual

de reforma psiquiátrica e implantação de propostas de desospitalização de atenção ao

doente mental.

Uma análise cuidadosa da reforma sanitária no Rio Grande do Norte, feita

por C. M. de Vasconcelos (1997), irá mostrar que, na realidade, apesar desse amplo

processo de discussão de idéias, de mobilização dos profissionais para mudanças no setor,

de avanços na legislação, não ocorreram mudanças significativas na condução política de

saúde e as providências anunciadas no plano administrativo não produziram mudanças

significativas no plano assistencial. O autor alerta ainda para um fato bastante

significativo:

A universalidade e equidade, asseguradas por lei, não se concretizaram, em face das dificuldades de acesso, da baixa qualidade e resolutividade dos serviços, criando um quadro de múltiplas exclusões, tanto nos segmentos de baixa renda, por falta de informações e pelas barreiras existentes, comonos segmentos de maior renda, que migraram para o mercadode saúde (p. 130).

Um outro fator curioso da realidade local, que difere do processo em outros

estados é a participação incipiente dos principais beneficiários dessas mudanças, os

usuários, conjunto de cidadãos que passariam a ter acesso a serviços de saúde de qualidade,

e em momento algum se apresentam como defensores da reforma sanitária. Um fato que

pode explicar esse comodismo político da população norte-rio-grandense é, principalmente,

a falta de uma consciência de cidadania disseminada, que pode ser observada através da

hegemonia dos “grupos político-familiares locais”, revelando uma incipiente cultura de

participação política pela grande maioria da população (C. M. de Vasconcelos, 1997).

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Sabemos que a reforma psiquiátrica está intimamente vinculada ao processo

de reforma sanitária no país. Esse quadro que se configurou no Rio Grande do Norte, de

descaso político, de ampla disparidade entre políticas planejadas e ações efetivadas, além

da pouca participação popular, são elementos que iremos retomar na seção seguinte.

2. A assistência à saúde mental no município de Natal

A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Natal, como dito anteriormente,

foi criada em 1986, influenciada pela nova política de saúde que estava sendo gestada no

país. Como reflexo das resoluções da II Conferência Nacional de Saúde Mental, que

viabilizaram a criação de uma rede de atenção integral de saúde mental em substituição aos

hospitais psiquiátricos, é organizada formalmente em Natal, no ano de 1992, a assistência à

saúde mental na rede pública do município. Até então, Natal contava apenas, como

serviços de saúde mental, com os leitos de hospitais psiquiátricos.

A Secretaria Municipal de Saúde – SMS - buscou estabelecer um modelo de

atenção que tivesse como referência os princípios decorrentes do projeto de reforma

sanitária brasileira, que são a universalização, a democratização, a hierarquização, a

regionalização e a integralidade das ações. A proposta da SMS visava estruturar os

serviços de atenção em saúde mental em seus diversos níveis de assistência, focalizando a

prevenção, a promoção, o tratamento e a reabilitação em saúde mental. Assim, em um

sistema integrado de atendimento, a saúde passaria a ser assistida em três níveis de atenção.

É importante resgatar a história da estruturação desses serviços, tendo em

vista observar o processo de evolução dos conceitos de assistência à saúde mental e as

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conseqüentes transformações ocorridas em Natal. Dividiremos o processo de implantação

da reforma psiquiátrica em Natal em quatro momentos distintos. O primeiro momento

corresponde aos anos de 1986 a 1992, com a etapa de planejamento e organização de uma

nova rede de assistência em saúde mental.

Como vimos, em 1986, a partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde,

ampliam-se as discussões em torno do conceito de saúde, abrindo-se possibilidades para a

inserção de psicólogos e outras categorias profissionais, como assistentes sociais e

enfermeiros, na perspectiva de uma nova organização dos serviços, anunciando a

importância da ação interdisciplinar no âmbito da saúde e reconhecendo a

imprescindibilidade das ações realizadas por diferentes profissionais – como justifica a

resolução Nº 218, de seis de março de 1997, do Conselho Nacional de Saúde.

Em Natal, o profissional de Psicologia é um dos primeiros a entrar na

Secretaria Municipal de Saúde com o intuito de realizar ações voltadas para a saúde mental,

tornando-se um importante ator político dentro do processo de reforma psiquiátrica.

Realizava-se, nesse período, um diagnóstico sanitário para a implantação de cada unidade

de saúde do município, avaliando-se desde as condições sanitárias e a qualidade de vida da

população - como questões relacionadas a problemas emocionais, conflitos familiares, a

violência contra a mulher, dificuldades de aprendizagem de alunos da rede pública, o

alcoolismo e outras dependências, enfim, agravos relacionados à saúde mental da

população.

Além da Psicologia já ter ocupado seu espaço em vários estados na rede de

saúde pública e assistência de saúde mental, em Natal, ela desempenhou um papel de

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protagonista nesse processo, principalmente pela falta de psiquiatras afinados com as idéias

inovadoras, conforme explica o depoimento abaixo:

Houve pouquíssima renovação no quadro da Psiquiatria em Natal. Não é por acaso que durante muito tempo não houve concursos na Universidade para a área de Psiquiatria, não tinha residentes... Não tivemos novos quadros de profissionais com idéias novas para atuar no campo. Isso reforçou muito a visão mais tradicional da Psiquiatria defendendo o asilo, defendendo o espaço do hospital psiquiátrico (Paulo Rocha, ex-Secretário de Saúde de Natal).

É nesse contexto que começam a chegar os primeiros psicólogos na

Secretaria, em 1987. A Secretaria possibilitou aos novos profissionais de saúde pública um

treinamento de ingresso, para que se discutisse o papel do psicólogo dentro desse trabalho.

Em 1988, já com um grupo de psicólogos nas unidades, foi realizado o 1º Seminário de

Saúde Mental, que teve como um dos seus objetivos reforçar a discussão do papel do

psicólogo na assistência à saúde mental. O depoimento abaixo deixa claro que a Psicologia

e a atenção à saúde mental ainda eram questões embrionárias na rede de saúde pública:

Se tinha uma certeza naquele momento, que precisávamos nos instrumentalizar de recursos, de informações, em poder acolher bem, atender bem do ponto vista clínico, mas sem perder de vista a contextualidade desse paciente. E que um usuário... ele é aquele indivíduo, como é um grupo coletivo de uma escola, como é um grupo de mães, como é um grupo de jovens (...). Todas as questões seriam em parte relevantes para uma formulação de necessidades, de problemas determinantes para o usuário, para que ele pudesse levar até uma unidade (Elisabete Freitas, ex-Coordenadora de Saúde Mental).

Naquele momento, discutia-se o planejamento das ações desses

profissionais, pautado na prevenção e na educação à saúde. Além disso, as psicoterapias

eram também instrumentos presentes nas unidades de saúde de Natal. O psicólogo era uma

espécie de “clínico geral” dentro da unidade, devendo estar disponível para atender

qualquer tipo de demanda em saúde mental, seja ela da criança, do adolescente ou do

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adulto, neuroses, psicoses, ou problemas ligados à depressão e alcoolismo, como afirma o

depoimento abaixo:

Eu trabalhava com Psicanálise na unidade de saúde de Pajuçara, atendendo criança, adolescente e adulto. Depois atendendo só adolescente e adulto, por não me identificar com o trabalho com crianças. Inicialmente eu atendia crianças por exigência da Secretaria, pois éramos uma espécie de clínico geral dentro da unidade (Wagner Lima, ex-psicólogo do NAPS).

Uma das questões mais relevantes para a definição do papel do psicólogo em

uma unidade básica de saúde é a possibilidade de integração de suas atividades ao conjunto

de ações desenvolvidas pela unidade. Para R. C. Silva (1998), o modelo tradicional de

psicoterapia tem feito com que o psicólogo não desenvolva ações de atenção primária à

saúde. O que se observa na prática do psicólogo, desde a sua entrada na rede de saúde

pública até os dias atuais, é um conceito de saúde “psicologizante”, que exclui a esperada

ação integrada dos profissionais de saúde, sobre o qual falaremos mais adiante.

A partir de 1988, os psicólogos começam a se tornar referência na rede de

saúde pública de Natal ao se responsabilizarem pelas chamadas atividades de saúde mental.

Este grupo viria a se constituir, posteriormente, como a atual Coordenação de Saúde Mental

do município.

No interregno de 1989 a 1990, acontece em Natal a primeira etapa de

municipalização, um processo de organização política, social, geográfica e econômica, no

qual o poder e o planejamento em saúde foi descentralizado. A expectativa era que, quanto

mais municipalidade e trabalhos realizados por áreas distritais, mais próximo se ficaria dos

problemas daquela população e, conseqüentemente, mais questões relacionadas ao campo

social e à saúde mental emergiriam. Na época, Wilma de Faria assumiu a sua primeira

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gestão na prefeitura (de 01 de janeiro de 1989 a 31 de dezembro de 1992), sendo enfática

na promoção de mudanças e reformas, numa linha populista, no sentido de melhorar as

condições para o povo, melhorar o atendimento etc. Apesar de não se ter muita clareza de

como e o que se faria nesta direção, essa postura da prefeitura se somava às idéias de

reformas na área de saúde. Assume, então, a Secretaria Municipal de Saúde o irmão da

prefeita, Rui Faria, que convidou um conjunto de técnicos da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte e da própria Secretaria para pensarem as mudanças na área da saúde.

Quando a SMS recebe algumas unidades do estado, mais psicólogos são

inseridos na rede através da realização de um concurso público, no ano de 1990, como

explicam os depoimentos abaixo:

Nós começamos a fazer um trabalho inclusive recuperando experiências que a SMS já estava começando a desenvolver. Tinha uma colega psicóloga, Elisabete Freitas, e ela já começava a desenvolver um trabalho de discussão de mudança na área de saúde mental (Paulo Rocha, ex-Secretário de Saúde de Natal)

Por que nós já tínhamos um certo lugar naquele modelo e definimos critérios técnicos, que aquelas unidades que estavam chegando, precisavam ser contempladas com aquelas ações que estavam dando certo (Elisabete Freitas, ex-Coordenadora de Saúde Mental).

É a partir do trabalho de prevenção e tratamento e das intervenções

terapêuticas nas UBS, que se começa a trilhar novos horizontes na assistência à saúde

mental, mas sem se saber ao certo aonde se queria chegar:

Então, gradativamente, de acordo com o perfil epidemiológico de cada unidade, foram sendo desenvolvidos trabalhos excelentes, seja com adolescentes, seja com gestantes, seja com um grupo de pessoas que estava com um quadro mais depressivo e aí começam a surgir na unidade questionamentos mesmo, confusões, eu diria até, convulsões, sobre o papel do psicólogo (Elisabete Freitas, ex-Coordenadora de Saúde Mental) (grifos nossos).

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Ocorria que a equipe se via na tarefa de atender a uma população que cada

vez mais trazia demanda na área de saúde mental para as Unidades Básicas de Saúde, como

era esperado. Entretanto, a UBS não estava instrumentalizada suficientemente para a nova

demanda que batia à sua porta. Ou seja, chegavam psicóticos e neuróticos graves às

unidades, egressos de hospitais psiquiátricos, os quais a equipe não se considerava

preparada para atender, seja por questões de estrutura física da própria unidade, seja por

características da formação desses profissionais. O depoimento acima expressa que uma

certa confusão do papel do psicólogo neste serviço era observada, não só pelos próprios

profissionais, que sentiam a carência de uma melhor formação, mas também por outros

profissionais da unidade, que o viam como “extintor de incêndios” ou “milagroso”, para dar

conta de problemas surgidos na unidade que ninguém mais conseguia resolver.

Na verdade, o problema do papel do psicólogo nas unidades de atenção

primária não parece ter sido resolvido, conforme o depoimento da atual coordenadora de

saúde mental de Natal:

Eu acho que a prática profissional terminou reproduzindo muito dos consultórios, nas próprias unidades (...). E é uma reprodução muito clássica, eu dentro do meu consultório, eu atendo meus cinco ou seis, e lá vou eu embora, a minha responsabilidade é muito restrita àquelas seis pessoas que chegaram ali (Maristela Pinheiro, Coordenadora de Saúde Mental).

Mais uma vez nos deparamos com dificuldades relacionadas à prática da

Psicologia. De fato, a literatura vem apontar que parece uma pura e simples transposição

do modelo hegemônico da atuação clínica para a saúde pública, sem levar em consideração

as inúmeras implicações decorrentes de tal fato. Segundo R. C. Silva (1998), esse modelo

de atuação torna-se descontextualizado perante a rede integrada de atenção à saúde.

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Priorizam-se as atividades individuais, de consultação, em detrimento de ações conjuntas

em equipes. Em outras palavras, estas ações derivadas da clínica têm tomado o lugar de

atividades dirigidas ao nível de atenção esperado. A autora ainda atribui esse viés à

formação profissional dos psicólogos, que “tem levado à manutenção de um modelo único

de atuação” (p. 35). A nossa formação não insere no seu currículo discussões acerca do

contexto social, características “reais” da população, bem como temas sobre saúde pública

e instituições públicas. Tais discussões evitariam a concepção de um individuo a-histórico

e a-social, e igualmente submetido às técnicas psicoterápicas.

Não poderíamos, entretanto, reduzir as dificuldades dessa assistência ao

profissional de Psicologia, tendo em vista a precariedade das condições de atendimento.

Por isso, começou-se a vislumbrar, através dos treinamentos, um novo planejamento para o

atendimento em saúde mental.

Dentro das discussões suscitadas nos treinamentos, destaca-se a necessidade

da criação de uma melhor estrutura de atendimento, como por exemplo, um Centro 24

horas que pudesse atender às urgências, um grande problema para os profissionais que

lutavam contra a internação psiquiátrica compulsória. A idéia, baseada em outras

experiências, era criar um Centro 24 horas em cada distrito sanitário de Natal, que

atendesse em tempo integral, com plantonistas à noite, leitos de curta permanência que

pudessem acolher as crises e, em algum outro momento, o usuário pudesse participar de

atendimentos individuais ou em grupos.

Nesse momento, começa-se a discutir acerca da solidão do psicólogo no

trabalho de saúde mental, levando-o a procurar um conjunto de alianças, na tentativa de

trabalhar a interdisciplinaridade nessa assistência. Formaram-se parcerias com outros

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profissionais, principalmente com assistentes sociais e enfermeiros, considerados na época,

juntamente com o psicólogo, o “trio da unidade”. Estamos falando de uma conjuntura

favorável para a área da saúde, em todos os níveis, principalmente pela euforia que as

diretrizes do SUS tinham despertado nos profissionais da área e pelo momento político que

estava vivendo o país:

A gente estava vivendo um momento de muita mudança no país, vindo da Assembléia Constituinte, a nova Constituição de 1988, que criou o SUS, em seguida as Leis Orgânicas de Saúde ... E ao mesmo tempo que esse aparato jurídico-institucional e mobilização política estava acontecendo no país, no sentido de reformas e de mudanças, a gente já vinha acumulando experiências práticas em vários lugares do Brasil, no sentido de fazer mudanças nesse modelo de atenção que a gente tinha. E aí entrava a questão da saúde mental. A reforma psiquiátrica, como ficou conhecida na época, já vinha em gestação nos anos 80 e nesse início dos anos 90 ela já apresentava possibilidades de consolidação, de experiências práticas concretas . E a gente, nessa época na Secretaria Municipal de Saúde de Natal, conseguiu implantar algumas criações na direção da idéia da reforma da assistência em saúde mental (Paulo Rocha, ex-Secretário de Saúde de Natal).

Sendo assim, a SMS promove um segundo concurso, em 1992, abrindo

possibilidade para novos profissionais se integrarem à rede básica, contemplando as

equipes mínimas de saúde mental preconizadas pela Organização Mundial de Saúde. Neste

ano, assume a SMS o psiquiatra Paulo Rocha, que já vinha participando das discussões e

impulsionou mais ainda o trabalho de Elisabete Freitas e do grupo da Coordenadoria de

Saúde Mental.

Então, enfermeiros, assistentes sociais e outros profissionais médicos, além

dos psicólogos, tornaram-se atores desse processo de transformação:

Aí a gente percebe que outros profissionais estavam preocupados com a saúde mental, não era só o psicólogo. O psicólogo sai da sua onipotência, que não é só ele que vai dar conta disso aí, que ele começa

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a abrir mais as portas para as outras categorias, e a gente começa a perceber que nós temos um problema sério de saúde pública, de saúde mental no país, a questão da segregação social do doente mental, um modelo de atenção voltado em cima da doença, de uma forma cronificadora, medicamentosa excessiva e de isolamento (Elisabete Freitas, ex-Coordenadora de Saúde Mental).

Com o fortalecimento dessas equipes, através da credibilidade em suas

propostas e ações, segundo seus depoimentos, começa-se a idealizar uma rede de serviços

de atenção integral em saúde mental. Diversas outras oficinas foram realizadas, o que

culminou com a 1ª Conferência Municipal de Saúde Mental, em outubro de 1992, contando

com a participação de 500 profissionais da área, com o apoio do Ministério da Saúde e

parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Lembramos que, naquele

ano, as discussões em torno da criação de novos dispositivos de atenção em saúde mental já

haviam estourado em todo o país, principalmente em decorrência das experiências exitosas

em vários municípios. É uma época também na qual o Ministério da Saúde lança portarias

normativas que deram subsídios às secretarias estaduais e municipais para a implantação

desses dispositivos, principalmente a portaria nº 224, de 29 de janeiro de 1992, publicada

no Diário Oficial da União do dia 30 de janeiro de 1992, que cria os serviços de Saúde

Mental NAPS/CAPS, tendo como diretrizes os princípios da reforma sanitária e

preconizando métodos e técnicas terapêuticas nos vários níveis de complexidade

assistencial. Segundo a sua conceituação dos tipos de Unidades de Saúde Mental, oferecem

atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação

hospitalar por uma equipe multiprofissional. Devem funcionar 24 horas, durante os 7 dias,

podendo contar com leitos de repouso eventual.

Outrossim, através dessas portarias, e depois da Conferência Municipal, em

1992, foi deliberado um avanço no processo, através de uma reestruturação da assistência

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em saúde mental, com a criação de uma rede hierarquizada de serviços, descentralizada,

sendo contemplados os princípios da reforma psiquiátrica de uma forma mais efetiva:

A partir do nosso trabalho nas UBS e nas discussões do serviço que fazíamos dentro das supervisões, a então coordenadora de saúde mental convidou uma equipe de elaboração da proposta em saúde mental, porque nesse período a reforma psiquiátrica já havia explodido em todo o Brasil. Começamos a elaborar um plano de assistência em saúde mental. Até então, com relação à saúde mental nós só tínhamos os atendimentos nos postos de saúde, praticamente efetivado pelos psicólogos...(Wagner Lima, ex-psicólogo do NAPS).

A assistência à saúde mental no município de Natal vai se estruturando, de

modo que, em novembro de 1992, ela é organizada na rede pública, através de uma

“Proposta de Reorganização da Atenção em Saúde Mental no Município de Natal”. O

documento propõe que, em um sistema integrado de atendimento, a saúde mental passe a

ser assistida em três níveis de atenção, como foi mencionado anteriormente. No nível

primário, o trabalho da equipe de saúde mental constrói sua intervenção com atendimentos

ambulatoriais (consulta médica, atendimento psicológico, consultas de enfermagem e

serviço social, etc.), além das ações preventivas, como discussões sobre os mais diversos

temas que afligem a saúde da população, objetivando informação e obtenção de

diagnósticos precoces de possíveis comprometimentos. Os trabalhos nesse nível seriam

prestados a indivíduos ou grupos nas unidades de saúde. No nível secundário e terciário, o

atendimento seria dado também a indivíduos ou grupos, encaminhados das UBS através de

acompanhamento clínico realizado por equipe multiprofissional especializada, oferecendo

apoio aos que apresentassem maiores agravos à saúde mental, implicando riscos de

internação, como surtos em quadros depressivos, psicóticos, entre outros (Secretaria

Municipal de Saúde, 1992)

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É importante reforçar que a implantação de uma rede de atenção à saúde

mental em Natal pretendia somar esforços ao projeto de reforma psiquiátrica no país. Para

tanto, seria essencial contar com uma rede de apoio às unidades básicas, que eram as únicas

responsáveis pelo atendimento a essa demanda, mas que vinha apresentando diversos

problemas em cumprir esse papel. Na concepção de uma rede articulada de serviços, o

projeto da Secretaria Municipal de Saúde contemplava policlínicas especializadas, os

referidos Centros de Atendimento 24 horas, leitos psiquiátricos em hospital geral, Centros

de Atenção Psicossocial, abrigos protegidos, etc. O trabalho era pensado de forma

multidisciplinar, estando os psicólogos à frente desse planejamento. A coordenação ficou,

então, a cargo da psicóloga Maria Elisabete C. Freitas Barbosa, que já vinha organizando o

serviço em equipes multiprofissionais.

Inicia-se, então, o segundo momento da reforma psiquiátrica no Rio Grande

do Norte, o período de implantação das propostas, que corresponde aos anos de 1993 a

1995.

Dessa forma, dentro das unidades básicas foram criadas unidades de

referência em saúde mental e em dependência química. Nesse contexto, começa-se

também a viabilizar a implantação do NAPS, que seria um dispositivo intermediário entre a

UBS e o hospital.

A priori, tinha-se o objetivo de tornar o NAPS um núcleo de atendimento

integral, que funcionasse 24 horas, sete dias na semana. Os seus principais objetivos

seriam o atendimento de pacientes com distúrbios psiquiátricos graves, na faixa etária

compreendida entre 15 e 60 anos, alcoolistas e drogaditos em surto psicótico; a realização

de investigações clínico-epidemiológicas e organizacionais voltadas para uma clientela com

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maiores comprometimentos psíquicos; e ser referência para os ambulatórios de saúde

mental do SUS. A equipe deveria ser composta por assistente social, arte-educador,

clínico-geral, enfermeiro, farmacêutico, educador físico, nutricionista, psicólogo,

psiquiatra, auxiliar de enfermagem, agente administrativo, cozinheiro, auxiliar de cozinha,

auxiliar de serviços gerais e vigia.

Esse projeto demora um pouco para sair do papel, tendo sido exaustivamente

discutidos critérios para o seu funcionamento. Um fator que vem atrasar a sua

consolidação é a polêmica gerada por psiquiatras tradicionais locais, conforme

depoimentos:

Isso gerou problemas polêmicos a nível da Psiquiatria em Natal (...), de certa forma houve muita pressão, ameaças, no sentido do profissional médico que dava depoimento no jornal, que os psiquiatras queriam que o Conselho de Medicina atuasse contra eles, por serem favoráveis à reforma psiquiátrica (Elisabete Freitas, ex-Coordenadora de Saúde Mental).

Havia muita resistência por parte dos donos de hospitais psiquiátricos, públicos e privados, que faziam pressão para inviabilizar o projeto. Quando a gente começou a trabalhar no NAPS, teve um período em que havia um policial na porta, porque o diretor na época, o psiquiatra Hilton Vilas Boas, estava sendo ameaçado e precisava andar com segurança (Wagner Lima, ex-psicólogo do NAPS).

O problema é que já houve abaixo assinado aqui de donos de hospitais, por mais de duas ou três vezes, exigindo a substituição dessa equipe por psiquiatras, entendeu? Representantes da rede hospitalar... pelos que fazem a ´política dos chamados NAPS` e queremos a substituição por psiquiatras... (Maristela Pinheiro, Coordenadora de Saúde Mental).

Na verdade, a polêmica ia mais além da questão da concordância ou não

com os princípios da reforma psiquiátrica. O que estava em jogo era a retirada de leitos da

rede privada, que eram conveniados com o SUS para se poder implantar os serviços 24

horas:

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Quando nós fizemos esses serviços, eles podiam ser credenciados para serem serviços 24 horas. Para a gente implantar esses serviços 24 horas, precisaria credenciar leitos. Nós temos um quantitativo de leitos definido pelo número da população. (...) A retirada desses leitos deveria ser dos hospitais privados, porque é assim, o SUS tem uma cota de leitos, quando ele não tem esses leitos nos seus serviços, na sua rede, ele contrata leitos privados. Se eu estou criando novos serviços, eu tenho que retirar leitos desse privado para colocar nos serviços (...). Nós tínhamos a ambição, ou a ilusão, não sei, acho que era mais a ambição mesmo... a possibilidade... nós já queríamos trabalhar nessa perspectiva, de já implantar um serviço com essa retaguarda de leitos 24 horas. Porque num momento de crise, nós não temos leito de emergência em hospitais gerais, seria uma tentativa de dar um passo até maior do que o que foi o primeiro serviço (...). E nós não tivemos, naquele momento, força política para retirar esses leitos do hospital privado para os serviços” (Maristela Pinheiro, Coordenadora de Saúde Mental) (grifos nossos).

Dessa forma, não se consegue implantar em Natal os Centros 24 horas,

modificando-se o projeto inicial para o que se configura hoje como o NAPS. A

Coordenação de Saúde Mental chegou a passar um ano com uma casa alugada, esperando

condições financeiras e administrativas para colocar o projeto em funcionamento. Apesar

do apoio do novo prefeito, Aldo Tinoco, à proposta da Secretaria, os interesses econômicos

dos donos de hospitais falaram mais alto nesse momento. O depoimento de Paulo Rocha

explicita muito bem as dificuldades e as contradições enfrentadas por esse movimento na

época:

É importante lembrar que esse movimento não foi uma coisa linear. Esses movimentos históricos, de reforma social, eles têm os avanços e as dificuldades. Por um lado, a gente tinha as leis favoráveis, essa grande mobilização popular, a Constituição. Mas havia resistências ao processo, de não concordar, setores ligados à área hospitalar. E isso se consolidou no governo Collor, no início dos anos 90. Houve uma grande dificuldade de avançar naquele momento. Passamos dois anos para serem promulgadas as leis orgânicas de saúde. Ele vetou pedaços dessa lei, principalmente no que diz respeito à participação social e à transferência de recursos. Isso favorecia também esses setores que

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obstaculizavam a idéia da reforma psiquiátrica (Paulo Rocha, ex-Secretário de Saúde de Natal).

Em 1994, consegue-se implantar o primeiro NAPS, na zona leste de Natal,

com capacidade para atender 60 usuários, sendo, apenas em seu primeiro ano, procurado

por 147 (cento e quarenta e sete) pessoas, de todos os distritos sanitários de Natal, criando

listas de espera para ingressar no serviço40. As dificuldades eram superadas pelo otimismo

da equipe:

Depois de muito tempo... passamos um ano com a casa alugada, depois mais seis meses para vir os móveis e a casa funcionar. Apesar do apoio do prefeito Aldo Tinoco, esse processo foi um parto a fórceps, muito demorado... (Wagner Lima, ex-psicólogo do NAPS).

Em Natal, a reforma psiquiátrica, se coloca inicialmente como um avanço. Em 1992, a gente começou a fazer um plano de reestruturação em saúde mental. E a gente fez o projeto do NAPS, com muitas dificuldades, porque a saúde pública como um todo tem muitas dificuldades. Mas tinha uma equipe batalhando por isso, que na época Betinha [Elisabete Freitas] estava à frente. Então, nós começamos com uma estrutura super precária, a gente tinha a casa, mas não tinha os móveis. Tinha muitas dificuldades mesmo, mas estávamos tentando e tinha uma equipe muito boa (Aparecida França, ex-diretora do NAPS-Leste e Secretária de Saúde de Natal).

Como a demanda que procurava o serviço era muito grande, foi implantado,

um ano depois, em 1995, mais um núcleo em Natal, o NAPS-Oeste e um Centro de

Atenção Psicossocial – CAPS, criado para atender exclusivamente a dependentes químicos

e alcoolistas, com o apoio do vereador Hermano Moraes, o Secretário de Saúde do

município na época.

Sobre a implantação do NAPS-Oeste, o depoimento abaixo mostra as

dificuldades na implantação de um serviço que não teve tanto tempo para preparar os

40 Dados colhidos dos prontuários e livro de triagem do ano de 1994, do NAPS-Leste.

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profissionais contratados, de acordo com a sua proposta, o que acabou causando algumas

confusões de papéis, como veremos adiante:

Quando eu cheguei no NAPS-Oeste, em 1995, ele tinha algumas cadeiras e um som, e funcionava dentro da unidade de saúde da Cidade da Esperança. Quando foi inaugurado, tinha um salão e tudo se passava naquele espaço, reuniões administrativas, oficinas... Depois disso foi alugada uma casa e começou a funcionar assim: os usuários e a boa vontade dos técnicos, que nem sabiam direito o que era o NAPS (Eline Montenegro, ex-psicóloga do NAPS).

Convém, mais uma vez, a abertura de um parêntese, já que as terminologias

utilizadas para designar esses serviços acabaram se configurando de formas diversas pelo

país, o que poderia causar alguma confusão41. O NAPS em Natal seguiu os mesmos

princípios básicos que orientaram a constituição do CAPS na cidade de São Paulo, isto é,

seria apenas um plano inicial, por ainda aceitar a existência do hospital psiquiátrico,

tornando-se uma alternativa à não-internação, mas não a podendo substituir por completo

(Amarante, 1997; 2001). Para um melhor esclarecimento do projeto terapêutico desses

núcleos, acredita-se ser interessante caracterizar os primeiros serviços alternativos,

seguidores dos princípios da reforma psiquiátrica no Rio Grande do Norte.

De acordo com o seu projeto terapêutico, os serviços criados pela SMS têm

o objetivo de prestar assistência à pessoa portadora de distúrbios mentais graves (neuróticos

e psicóticos) e dependentes de álcool e outras drogas (crônicas e graves), tendo como

finalidade a promoção da reinserção social e a desospitalização dos usuários, e,

conseqüentemente, a redução das internações. Os NAPS/CAPS passaram a funcionar em

horário integral, das 07h00 às 18h00 , acolhendo os usuários nas diversas atividades da casa

41 O Ministério da Saúde emitiu a Portaria 336, que normatiza a implantação desses novos serviços, inclusive organizando as nomenclaturas de acordo com as características de cada serviço (CAPS 1, CAPS 2 etc.), mas a mudança ainda não foi efetivada em Natal.

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e oferecendo três refeições diárias. As equipes trabalham em dois turnos, em regime de

seis horas contínuas cada um, reuniões técnicas no horário de 12h00 às 13h00,

posteriormente dando continuidade às atividades. Nos serviços são também realizadas

supervisões clínicas e institucionais.

Inicialmente, as pessoas que procuram os serviços passam por uma triagem e

acolhimento; posteriormente, vão freqüentando e se integrando às atividades da casa. Caso

a demanda não seja caracterizada para os serviços, será encaminhada à instituição

referenciada para o tratamento adequado. A clientela assistida nesses serviços deve ter

idade a partir de 14 anos, sendo trazidos ao serviço por demanda espontânea ou

referenciada. A assistência é definida como psicossocial e multidisciplinar, exercida

através de intervenções terapêuticas no âmbito individual (atendimento clínico,

psiquiátrico, psicológico, nutricional, etc.) e grupais, através de oficinas (artes plásticas,

música, argila, beleza, esporte, poesia, psicodrama, coral, jardinagem e horta, escrita,

origami, dança, teatro, trabalhos manuais, rádio, jornal), espaços coletivos (debates sobre

Saúde e Sociedade, Espaço Aberto, Bom Dia/Boa Tarde NAPS, assembléia com técnicos,

usuários e familiares) e espaços sócio-culturais (apresentações dos corais em eventos

públicos, realização de festas comemorativas, passeios culturais, visitas a museus, pontos

turísticos e históricos da cidade, etc.). O projeto prevê, ainda, ações interinstitucionais, que

seriam a articulação dos usuários dos NAPS/CAPS com os diversos setores da sociedade,

como instituições públicas e privadas, e ações de inclusão/reinserção social, que

possibilitariam o retorno à escola, ao trabalho e ao convívio familiar e o resgate da

cidadania.

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A criação de um serviço como o CAPS, destinado à reabilitação de usuários

de drogas e alcoolistas, com essa nomenclatura, é uma característica particular do

município de Natal. Este serviço faz-se importante dentro da rede na medida em que o

alcoolismo é, mundialmente, um dos mais sérios problemas de saúde pública. Seu

tratamento em serviço público, contudo, é recente e exige a construção de um novo modelo

de atenção e tratamento. Além disso, o tratamento de usuários de drogas ilícitas também é

feito, apresentando desafios de ordem social. O índice de internação de alcoolistas em

hospitais psiquiátricos é alarmante, tendo sido clara a portaria que rege a reforma

psiquiátrica quanto ao não incentivo desse tipo de internação. Juntamente com uma

unidade de referência localizada no bairro de Pirangi e com a Unidade de Tratamento de

Álcool e Drogas (UTAD), que funciona no Hospital Universitário Onofre Lopes, o CAPS

faz parte de uma rede pública ainda precária de assistência aos dependentes químicos.

Os dois anos subseqüentes, 1996 e 1997, irão configurar o terceiro momento

da reforma psiquiátrica, que é o período da afirmação dessa nova proposta de atenção em

saúde mental. Após a criação desses serviços, existem dados bastante positivos a respeito

da redução das internações psiquiátricas, o que vem aumentar a sua credibilidade diante da

sociedade e dos órgãos públicos. Faz-se importante ressaltar que os NAPS tornaram-se as

principais referências da proposta de reforma psiquiátrica no estado.

As Figuras 1 e 2 mostram dados obtidos no NAPS-Leste e no NAPS-Oeste,

entre os anos de 1994 a 2001, sobre o número de internações dos usuários antes e depois do

início do tratamento nos NAPS:

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Internação antes

10%

16%

50%

24%

Nenhuma

1 a 5 vezes

6 a 10 vezes

Várias

Figura1. Histórico de internação psiquiátrica dos usuários antes do tratamento nos NAPS

Internação durante

82%

9%5% 4%

Nenhuma

1 vez

2 vezes

3 vezes ou mais

Figura 2. Histórico de internação psiquiátrica dos usuários durante o tratamento nos NAPS

Observando a Figura 1, constatamos que 86% dos usuários dos novos

serviços tinham histórico de internação psiquiátrica, sendo que 50% de 1 a 5 internações,

16% várias internações, 10% de 6 a 10 internações e apenas 24% não tinham internações

em instituições psiquiátricas tradicionais. Após ingressarem nos NAPS, o número de

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internações desses mesmos usuários reduz consideravelmente, sendo que 82% dos usuários

não precisaram de internação em nenhum momento do tratamento (Figura 2). As poucas

internações dos usuários atendidos pelos NAPS são justificadas pela equipe por falta de

recursos terapêuticos, como leitos em hospitais gerais ou os Centros 24 horas, para acolher

nas horas de crise. É evidente a eficiência dos serviços alternativos na tentativa de evitar as

internações em sistemas manicomiais, como confirma o depoimento abaixo:

A eficácia do NAPS quanto a evitar a internação psiquiátrica pode ser vista a olho nu. O número dos nossos usuários que precisam de internação é super reduzido(...). Temos casos de usuários que nunca foram internados e estão sendo atendidos pelo NAPS, e usuários que vinham de sistemáticas internações e depois do tratamento dos NAPS pararam. Isso prova a não necessidade dos hospitais psiquiátricos (Roseane de Medeiros, arte-educadora).

Destarte, com o aumento da demanda e com a euforia das conquistas,

reforçam-se as discussões e as cobranças sobre a implantação de novos serviços que

viessem a complementar a rede de assistência, inclusive porque os NAPS, sem essa rede de

apoio, começavam a esbarrar nos limites da sua atuação, colocando-se num dilema diante

das emergências e urgências psiquiátricas: inevitavelmente, a família acabava levando o

usuário para o enclausuramento do hospital psiquiátrico, colocando em risco todos os

ganhos de ressocialização obtidos pelo sujeito durante a sua estada no NAPS. O

depoimento abaixo, de um usuário do NAPS-Leste, demonstra claramente a existência de

um sentimento de desamparo provocado pela falta de outros equipamentos sociais ou

comunitários:

Gostaria que no NAPS tivesse expediente de plantão, porque no final de semana nós ficamos entregues às baratas (W., usuário).42

42 O nome completo do usuário foi preservado, constando-se neste trabalho apenas as suas iniciais.

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A reforma psiquiátrica precisava avançar, precisava consolidar os seus

princípios e substituir por completo o modelo de assistência vigente. Usuários como W.

precisavam contar com uma rede de apoio que não os deixassem desprotegidos, mas que

também os fizessem sujeitos desse processo de ressocialização. Eram precisos

instrumentos que garantissem a acessibilidade de todos os portadores de doença mental a

essa conquista de cidadania. Eram necessárias oportunidades de trabalho, de moradia e de

vida digna para essas pessoas:

A nossa maior dificuldade é a falta de aparato social. Para onde vai esse usuário depois do nosso trabalho? Num primeiro momento nós damos conta dessa demanda inicial. Só que quando ela atinge um certo objetivo, um grau de socialização, a construção de um projeto pessoal, o resgate dos laços familiares, OK, damos conta. Mas, e depois, quando sai? Que recursos nós temos aí fora para dar continuidade? (Roseane de Medeiros, arte-educadora).

No entanto, não é a consolidação dos princípios da reforma psiquiátrica que

vislumbramos a partir daqui. Afinal, os hospitais psiquiátricos de todo o estado,

principalmente de Natal, estavam abarrotados de leitos, custando muito aos cofres públicos,

como mostraremos no tópico seguinte.

É claro que os novos serviços também eram procurados, cumpriam bem o

seu papel, mas estavam (e ainda estão) longe de dar conta de toda a demanda. Além disso,

serviços como os NAPS não são suficientes para desinstitucionalizar a loucura, tendo em

vista que criam-se espaços exclusivos para os seus usuários, faltando-lhes outras

oportunidades que viabilizem a inclusão social. E, como se chamou atenção no início, estes

serviços encontram-se muito pequeninos frente a uma luta de base política que tenta

construir novos paradigmas.

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A partir do final de 1997 e início de 1998 até os dias atuais, inicia-se o

quarto momento da reforma psiquiátrica no Rio Grande do Norte, o período de estagnação

das propostas reformistas. Chega-se a um momento de grande retrocesso no movimento

que se iniciou em Natal. Projetos de criação de novos NAPS, bem como demais serviços

componentes de uma rede de atenção em saúde mental, não conseguem sair do papel.

Chegou-se a comprar todo o material e equipamentos necessários para a implantação de um

NAPS na zona norte de Natal. Esse mesmo projeto passou seis meses com uma casa

alugada, para colocá-lo em funcionamento, e nunca foi implantado. Além disso, houve um

desmantelamento da rede proposta pela SMS em seu planejamento, seja porque não havia

integralidade das ações, seja pela não implantação dos serviços:

Eu acho que Natal vem acompanhando a luta antimanicomial desde o seu início. E eu acho que nesse início de noventa teve um avanço muito grande com a implantação dos serviços substitutivos. Dessa época para cá houve uma parada. Então, a rede fica descoberta. Continuam os atendimentos dos psicólogos nas UBS, e os dois NAPS implantados, só... Então, em dez anos, dois NAPS e um CAPS. Poderia ter sido muito mais (...). As pessoas estão muito desestimuladas. Está um marasmo, meio parado. A gente passou esses últimos anos muito parados (Aparecida França, ex-diretora do NAPS-Leste e Secretária de Saúde de Natal).

A precariedade de um serviço público mantido ou não segundo

conveniências políticas, não é exclusividade da Secretaria Municipal de Natal. É um

problema sério em todo o país. Infelizmente, o SUS, que poderia implantar uma verdadeira

política nacional de saúde, vem sendo desmontado pelo boicote dos governos federal,

estaduais e grande parte dos municipais. É inegável que a política nacional de saúde mental

esbarra em dificuldades que influenciam o andamento das novas propostas, entretanto,

existem especificidades na história local que merecem uma análise mais cuidadosa.

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A Coordenação de Saúde Mental atribui o fato às dificuldades de um

período administrativo que ficou marcado por muitas greves e atrasos de salários. Do

mesmo modo, as mudanças constantes de secretários municipais de saúde impediram uma

continuidade no trabalho e uma renovação de compromissos, como explicita o depoimento

a seguir:

O que nos preocupa hoje é que a Secretaria, a nível de planejamento, ela está a desejar devido aos problemas políticos, administrativos. Então, no que nos distanciamos das redes básicas, dos distritos, nós tentávamos várias vezes e não conseguíamos, porque eram greves sucessivas, atrasos salariais, por volta de um ano, seis secretários, e isso implica em várias mudanças (...) implica em definição político-administrativa, implica em alugar uma casa para usuários, manter e renovar contratos, manter e renovar, de uma forma simbólica, a política de saúde mental para cada administrador que chegava lá(...) e isso significa uma renovação de compromissos para poder ter continuidade com as equipes, com os profissionais... (Elisabete Freitas, ex-Coordenadora de Saúde Mental).

A Coordenação de Saúde Mental entendia, então, que era hora de retroceder,

pois não era um momento político favorável a novos investimentos nessa área, e que era

preciso “cuidar” das conquistas que estavam consolidadas:

Nós avaliamos que precisávamos de mais pulso para poder caminhar, e é sábio às vezes desacelerar, e nós desaceleramos também (Elisabete Freitas, ex-Coordenadora de Saúde Mental).

(...) Cada conjuntura é uma conjuntura, tem momentos que a gente avança, tem momentos que a gente se sustenta (...). Você não desmanchar o que existe é uma grande luta. Parece que não, ah, já foi feito, já fiz, vou embora. Não. Já fez, agora cuide. E é no cuide que muitas vezes as coisas deixam de acontecer, é que você inaugura e vai embora. O cuidar dá mais trabalho do que inaugurar (...) Você tem que fazer aquilo com a responsabilidade de dar uma resposta à sociedade, que você está oferecendo um serviço de qualidade, para que ele continue com qualidade você tem que acompanhar, entendeu? Então, se você tem conjunturas que você cuida, não pode avançar muito,

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num processo maior histórico você está fazendo uma coisa importante. A gente não tem que ter pressa, a gente tem que ter a leitura do que é possível” (Maristela Pinheiro, Coordenadora de Saúde Mental) (grifos nossos).

De fato, estamos falando, numa esfera política mais ampla, de um período

muito conturbado, que extrapola o campo da reforma psiquiátrica, mas o influencia

diretamente, configurando inúmeros problemas administrativos. No final da gestão do

prefeito Aldo Tinoco (que ocorreu no período de 01 de janeiro de 1993 a 31 de dezembro

de 1996), o posicionamento político das pessoas que estavam à frente da administração

municipal e a forma como a conduziam, trouxeram sérias conseqüências na área da saúde

pública, não podendo deixar de afetar os serviços de saúde mental. A diretora do NAPS-

Oeste, em exercício naquele ano, comenta as dificuldades enfrentadas nesse período:

Pelo menos até hoje, do tempo que eu estou na Secretaria, foi um dos períodos mais difíceis. E aí a casa entrou num momento difícil no finalzinho da gestão de Aldo. Então, faltava comida, porque como eles não estavam pagando os fornecedores, começaram a suspender o fornecimento, tanto de medicamentos, como de alimentação, como de material de trabalho. E faltava comida na casa, faltava sabão para lavar louça, faltava remédio... (Verônica de Souza Pinheiro, ex-diretora do NAPS-Oeste).

Há de se entender que, superados os momentos críticos, certamente ligados a

questões macropolíticas do município, existiam outras questões subjacentes ao momento de

estagnação no qual mergulhou a reforma psiquiátrica posteriormente. Os dados desta

pesquisa apontam também para dois campos distintos, que se influenciam mutuamente, mas

que merecem atenção e análise diferenciada:

1) Crises internas, inerentes aos próprios serviços, à sua equipe de

profissionais, a problemas institucionais e divergências teóricas;

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2) Influências externas, advindas dos interesses políticos e financeiros, da

cultura manicomial instalada nas mentes dos profissionais e leigos que

estavam fora das discussões da reforma.

Sobre o primeiro campo de dificuldades, alguns depoimentos deixam claro

que os serviços viviam crises internas muito fortes, que acabavam por abalar o seu

funcionamento. Uma das principais causas desses conflitos eram as relações de poder que

se instauraram dentro dos NAPS, causando dificuldades, principalmente para os

profissionais de Psicologia, que se colocavam contrários a algumas posturas da sua equipe:

E aí havia um conflito de poder dentro da equipe. E a nossa categoria esteve no centro desse conflito. Primeiro por questionar a postura médica, dos psiquiatras que passaram pela casa. Segundo, por questionar conduções do restante da equipe. E isso gerou um incômodo muito grande, gerava uma série de discussões... (Verônica de Souza Pinheiro, ex-diretora do NAPS-Oeste).

A leitura que eu faço é que os profissionais não sabiam qual o papel de cada um. E isso levou a entrar em choque (Eline Montenegro, ex-psicóloga do NAPS-Oeste).

As equipes encontravam grandes dificuldades em funcionar de forma

multidisciplinar. As grandes divergências apareciam nos momentos de estudos de casos, e

nos estudos de condutas de determinados usuários, quando havia uma expectativa da equipe

de que os encaminhamentos fossem decisões médicas. Os psicólogos, bastante numerosos

dentro dessa equipe (de cinco a seis psicólogos em cada serviço), discordavam de vários

encaminhamentos dados pelos psiquiatras e respaldados pelo restante da equipe.

E aí havia um desconforto muito grande por parte de algumas pessoas, e isso era evidente, quando se questionava o posicionamento médico. Algumas pessoas se mostravam visivelmente desconfortáveis quando a gente confrontava determinada conduta em relação ao usuário. E isso

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acabava gerando uma série de desdobramentos no dia-a-dia da casa (Verônica de Souza Pinheiro, ex-diretora do NAPS-Oeste).

Parece que o monopólio da Psiquiatria sobre o campo da doença mental não

havia sido perdido, mesmo dentro dessa nova concepção de atenção à saúde mental. Que

novo olhar sobre a loucura esses novos serviços estariam construindo? Ou, dito de outra

maneira, que velhos preceitos e preconceitos estariam reproduzindo esses novos serviços?

Outros depoimentos mostram que havia um certo receio da equipe em deixar

os usuários andarem com as próprias pernas, o que nos leva a crer que o problema não está

apenas na falta de espaços de ressocialização, mas na crença construída sobre o potencial e

autonomia dos portadores de doença mental. Então, o trabalho em equipe ficava difícil, já

que uma parte dela ainda estava bastante impregnada dos velhos significados sobre a

loucura:

Algumas pessoas tinham uma postura de querer fazer as coisas pelos usuários. Era uma coisa assistencialista, ou que eles não eram capazes de fazer, de se desenvolver (Eline Montenegro, ex-psicóloga do NAPS-Oeste).

Essa mesma representação da loucura traz dificuldades institucionais para o

funcionamento dos serviços, que vão além dos seus muros, encontrando-se dentro da

Secretaria de Saúde, como afirma o depoimento abaixo:

A gente vive dificuldades dentro da instituição, que a própria instituição também é institucionalizada, inclusive no pensar acerca da loucura. Então, como é que eu vou fazer com que a Secretaria Municipal de Saúde, uma pessoa do setor financeiro, entenda que eu preciso comprar argila, eu preciso comprar tinta(...). É que a filosofia de você implantar um serviço, quebrando os paradigmas da sociedade, ele passa também pela instituição da Secretaria. Porque quem faz a Secretaria são pessoas formadas nessa sociedade. Então, nós não lutamos apenas para implantar serviços, nós lutamos para discutir uma nova concepção. Você está trabalhando com a representação social da loucura, você está

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trabalhando com o processo de refazer uma cultura. Então você conseguir ter uma prioridade, você conseguir que a instituição tenha uma leitura de que quando entra o pessoal da saúde mental, falando da argila, ou seja lá do que for, ou do teatro, é tão importante quanto o medicamento, ou o instrumento cirúrgico, é um processo histórico... (Maristela Pinheiro, Coordenadora de Saúde Mental).

O planejamento de assistência em saúde mental de Natal visava a

“desinstitucionalização da doença mental” (SMS, 1992), proposta que vai além do processo

de desospitalização. Não basta conceber novas formas de atenção em saúde mental, se a

cultura manicomial ainda está presente dentro da própria SMS.

Após a euforia da implantação dos serviços, definitivamente, a questão da

saúde mental, e da reforma psiquiátrica como um todo, não era prioridade na agenda de

saúde pública do município. Mesmo após a crise do final da gestão Aldo Tinoco, relatórios

anuais dos NAPS mostram as dificuldades internas em manter o serviço funcionando com

qualidade. No final do ano de 1997, primeiro ano da segunda gestão da prefeita Wilma de

Faria, o relatório do NAPS- Leste mostra que as oficinas eram prejudicadas por falta de

espaço apropriado e do material necessário. A estrutura física da casa tinha problemas que

nunca foram solucionados, como banheiros quebrados e problemas de esgoto, gerando

reclamações constantes dos usuários e técnicos. O relatório ainda acrescenta:

Gostaríamos de ressaltar também, que não foram raras as ocasiões em que a equipe teve que se cotizar para resolver problemas tão simples, como por exemplo, compra de lápis para o serviço (Secretaria Municipal de saúde, 1997).

Relatório da mesma instituição, do ano de 1998, aponta para as seguintes

dificuldades:

- A falta de um psiquiatra em tempo integral dentro da instituição

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- A necessidade de um psicólogo no quadro, visando um melhor atendimento da

demanda da casa

- Problemas de falta de medicamentos

- Redução da equipe de funcionários sem a devida reposição

- Falta de estrutura que possibilite as visitas domiciliares

- Carência de recursos sociais para a reinserção dos usuários, como convênios,

clubes, oportunidades no mercado de trabalho

- Impossibilidade de chamar novos usuários em decorrência de determinadas

dificuldades citadas acima.

Realmente, entre 1997 e 1998, os serviços sofreram mudanças muito bruscas

que abalaram profundamente a sua dinâmica interna. Uma parte da equipe dos serviços não

estava satisfeita com os posicionamentos políticos que a Coordenação de Saúde Mental

vinha apresentando, e exigiam mais firmeza nas cobranças e decisões:

Era muito complicado para mim estar alardeando o apoio da gestão municipal, porque a reforma psiquiátrica não é uma coisa descontextualizada do restante da administração, pelo menos do restante da administração de saúde(...) Eu nunca concordei com essa política (Verônica de Souza Pinheiro, ex-diretora do NAPS-Oeste).

A Coordenação, no entanto, tinha em mente uma estratégia política muito

clara, que visava a consolidação do seu espaço dentro da Secretaria e a manutenção das

conquistas obtidas. Talvez um embate político, que incluiria denúncias sobre os descasos e

falta de apoio real, seria desgastante e prejudicaria os ganhos para a área de saúde mental,

obtidos a despeito das inúmeras dificuldades. Essa preocupação da Coordenação fica clara

nos depoimentos citados anteriormente, quando se fala da sabedoria em retroceder. Pelo

menos parte da equipe não concordava com essa postura, considerava um equívoco

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político, o que deflagrava mais crises internas, dessa vez entre as equipes dos serviços e a

Coordenação de Saúde Mental. A crise culminou com a saída de diversos profissionais dos

serviços, muitos deles dizendo-se “desiludidos” com os rumos que a reforma psiquiátrica

vinha tomando, nos dois serviços, como explica o depoimento da ex-diretora do NAPS-

Leste:

Outra coisa que enfraqueceu um pouco o movimento foi uma dificuldade que aconteceu no NAPS-Leste. O NAPS-Leste vinha, desde que tinha sido implantado, em pleno vapor, excelente. Era exemplo, elogiado pela comunidade, pelos próprios usuários e pelos familiares. E aí foram acontecendo dificuldades, questões de poder, brilhos, porque se sobressaía uma parte da equipe e não saía outra que estava num outro nível de atenção. Isso dificultou o trabalho, culminando com a saída de quatro profissionais que tinham iniciado o serviço, de forma muito complicada (...) A saída, eu acho que foi uma ingerência política que dificultou até mesmo a implantação, a expansão da rede (Aparecida França, ex-diretora do NAPS-Leste e Secretária de Saúde de Natal).

Ocorria um sério problema no NAPS-Leste, que ainda não havia sido

abordado até aqui, que era a divergência teórica dentro dos serviços, criando politicamente

dois blocos distintos. Enquanto, no NAPS-Oeste, brigava-se para derrubar a hegemonia do

saber psiquiátrico em torno da loucura, no Leste havia uma divisão clara entre linhas

psicológicas diferentes. Os profissionais que foram convidados a sair dos serviços

acreditam que não foi coincidência serem psicanalistas:

A Coordenação de Saúde Mental não era de acordo com a posição de determinados profissionais. E numa reforma administrativa, a Coordenadora Geral tirou os quatro (...). Politicamente eram dois blocos, e os que foram para fora eram psicanalistas. E por que não foi o outro? (Aparecida França, ex-diretora do NAPS-Leste e Secretária de Saúde de Natal).

Aqui em Natal esse trabalho foi interrompido, inviabilizado da forma mais brusca, mais autoritária, reacionária, mais violenta possível, principalmente com relação aos usuários, que ficaram sem

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acompanhamento (...) A gente teve que interromper um trabalho de três anos. Eu tive que comunicar aos meus pacientes que aquela era a última sessão...” (Wagner Lima, ex-psicólogo do NAPS)

Mais detalhes do depoimento do psicólogo Wagner demonstrou a clara

divergência teórica que havia se instalado dentro do NAPS-Leste. Um grupo defendia uma

prática psicológica baseada nos princípios da Psicanálise, numa abordagem clínica43, e

outro grupo pretendia seguir à risca os ideais de ressocialização preconizados pela reforma

psiquiátrica, numa abordagem que priorizava trabalhos em grupos, como as mais diversas

oficinas oferecidas nos NAPS:

As discussões giravam, principalmente, em torno dos trabalhos em grupo e dos atendimentos individuais. Por que priorizar grupos? A gente não tem que priorizar nada, nem atendimento individual, nem grupos. A gente tem que oferecer essas atividades e o paciente escolhe. Mas havia por parte da equipe e da Coordenação de Saúde Mental uma total resistência ao atendimento individual. Na minha interpretação uma resistência, um equívoco mesmo. O argumento era que o paciente só se ressocializava se ele participasse de atividades em grupo. Se de dez atividades, nove eram trabalhos em grupo, entre oficinas e grupos terapêuticos, e apenas uma era atendimento individual, ainda não era suficiente (Wagner Lima, ex-psicólogo do NAPS).

O que está em jogo nesta discussão é o conceito de ressocialização para

ambos os grupos. Para a Psicanálise, o paciente psicótico, pela sua estrutura, tem grandes

dificuldades em manter seus laços sociais, tornando um impedimento a volta ao trabalho,

por exemplo. O grupo autodenominado de psicanalistas entendia que o trabalho do NAPS

traria melhoras significativas, que o fato dos pacientes não retornarem às internações já

seria um grande avanço:

43 Entendemos clínica nesse contexto como uma prática de atendimento individual, focalizada numa relação diádica.

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Essa preocupação com a questão da cidadania, da ressocialização, eu acho fundamental. Só acho que a gente não deve ter muito a ilusão de que esses pacientes vão voltar a trabalhar. Não é por incompetência dos profissionais, é pela estrutura do paciente psicótico. A Psicanálise adverte melhor do que qualquer outra ciência dessas poucas possibilidades (Wagner Lima, ex-psicólogo do NAPS).

Fogem aos objetivos deste trabalho as discussões teóricas a respeito da

psicose e da Psicanálise. No entanto, se voltarmos um pouco nessa história, perceberemos

que um dos objetivos da reforma psiquiátrica é justamente colocar a doença entre parêntese

para olhar o ser humano que sofre. Dessa forma, concorda-se com Castel (1978) quando

ele diz que: “Não sabemos muito para onde vamos, mas não é certamente subindo no carro

da Psicanálise que saberemos tampouco” (p. 242). Acredita-se que há muito mais a ouvir

na reforma psiquiátrica do que propõe a Psicanálise. Por outro lado, a falta de uma teoria

que fundamente as ações dentro dos serviços substitutivos acaba gerando confusões, por

parte dos técnicos, que acreditam numa prática social que pode vir a se tornar cega, ou

melhor, não conseguir enxergar o subjetivo, o individual, as histórias de vida pessoais de

cada usuário. Consolidar a prática da reforma psiquiátrica através de uma teoria que a

sustente é mais um desafio para os atores sociais da reforma psiquiátrica. Retomaremos

mais adiante algumas reflexões sobre o que se acredita importante na prática profissional

dos psicólogos em serviços vinculados à reforma psiquiátrica.

Outro ponto importante a destacar é a substituição dos profissionais, que

tornou complicado o processo de reforma em Natal. No NAPS-Oeste também ocorreu um

corte na equipe de psicólogos da casa, causando grandes transtornos. A Coordenação se

explica, dizendo que havia um número excedente de profissionais nos serviços, que era

preciso remanejá-los, mas que nunca apontou nomes para deixar o serviço. No entanto,

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isso gerou um conflito interno, levando outros profissionais a se solidarizarem e pedirem

para sair também:

Quando se tornou claro realmente a saída de uma parte da equipe, eu saí da coordenação da casa e optei por sair da equipe também (...). Não acho que tenha sido uma coisa suficientemente discutida. Foi uma decisão tomada de fora da casa (Verônica de Souza Pinheiro, ex-diretora do NAPS-Oeste).

Saíram dez profissionais que tinham iniciado o serviço! Então, eu acho que isso é um desmantelo (Aparecida França, ex-diretora do NAPS-Leste e Secretária de Saúde de Natal).

A evidência de que não se conseguira dialogar nessa fase da reforma

desgastou e desacreditou muitos profissionais que estavam lutando para a efetivação dos

seus princípios e que eram importantes atores no cenário local da reforma psiquiátrica.

Muito do vigor do movimento foi perdido com a saída de técnicos que eram engajados no

trabalho.

Neste ponto do trabalho, podemos perceber claramente que a discussão da

reforma psiquiátrica em Natal, e em todo o estado, passa longe da participação efetiva dos

usuários e familiares. Mudanças estruturais nos serviços foram efetuadas, decisões

importantes foram tomadas, sem que houvesse ao menos uma comunicação aos usuários

por parte da Coordenação de Saúde Mental. Mais importante do que definir se o

atendimento individual tem lugar ou não no NAPS, seria, acredita-se, respeitar o processo

de atendimento de vários usuários que já tinha se iniciado de qualquer forma. Os

profissionais tiveram de sair imediatamente dos serviços, gerando problemas para muitos

usuários e para a própria dinâmica dos NAPS, de acordo com os depoimentos.

A pálida participação dos usuários e familiares no processo de reforma

psiquiátrica, a quase imperceptível atuação do movimento de luta antimanicomial nesse

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processo, pode explicar em grande parte a estagnação da reforma psiquiátrica no Rio

Grande do Norte. Os movimentos sociais só se consolidam e têm importância política se

eles são movimentos de base, se conseguem construir sua sustentação nas bases. Não foi o

que ocorreu no processo de reforma psiquiátrica no Rio Grande do Norte. O Movimento de

Luta Antimanicomial (MLAM) foi um movimento que congregou apenas técnicos. Com o

desligamento dos técnicos dos serviços, há um desligamento também da causa da luta

antimanicomial. O papel dos usuários e familiares no movimento da reforma psiquiátrica é

historicamente um papel importante, por isso, em momento nenhum o MLAM poderia ser

um movimento de técnicos. O interesse central do movimento precisa partir também dos

usuários e familiares. Afinal, que conquista de cidadania se espera se não os colocamos

como verdadeiros protagonistas na história da revolução da assistência em saúde mental?

Além disso, mesmo agregando essencialmente técnicos, o movimento de

luta antimanicomial mostrou-se, durante todo esse processo histórico, um movimento

desarticulado, frágil e sem expressão política. Como chamamos atenção no capítulo

anterior, somente a organização política dos setores da sociedade poderá modificar

substancialmente as políticas de interesse da população. Não será diferente para a reforma

psiquiátrica, que necessita de condições reais para a articulação de uma rede de serviços

que vise a superação do modelo manicomial.

Neste período difícil em que se encontra a reforma psiquiátrica no Rio

Grande do Norte, iniciativas importantes esbarram na falta de apoio político-administrativo

para se consolidarem. Por exemplo, em março de 2000, iniciaram-se as atividades dos

chamados Núcleos de Produção, que se caracterizam como um trabalho em conjunto com

os dois NAPS e o CAPS. Vários produtos feitos pelos usuários, como camisetas, quadros,

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panos de prato, são comercializados, sendo parte da renda revertida para o Núcleo e outra

parte para os próprios usuários. Esse projeto foi denominado “Lokomotiva”, funciona no

NAPS-Leste e tem por finalidade uma troca subjetiva entre o usuário e a sociedade,

trazendo para ele um reconhecimento de valor. Vale a pena ressaltar que o projeto, apesar

de bons resultados, encontra inúmeras dificuldades, em virtude da falta de técnicos

especializados, que possam conduzir as atividades, e material necessário.

No intuito de fortalecer a construção desta rede de cuidados em saúde

mental e reforçar as orientações recomendadas pelas portarias ministeriais, o vereador

Hermano Moraes (ex-Secretário de Saúde de Natal) preocupou-se em propor um

instrumento legislativo que assegure à população de Natal a obrigatoriedade do gestor

municipal da saúde implantar a reforma psiquiátrica.44 O depoimento abaixo nos leva a

discutir o segundo ponto de dificuldades enfrentadas pela reforma psiquiátrica, que são os

interesses externos:

É um projeto muito polêmico porque envolve vários aspectos. Sugere muita discussão e muita divergência também de opinião, até porque há divergência de ordem científica, há linhas e linhas que preferem uma ou outra forma de tratamento. Desde aqueles mais conservadores que acham que o que se fazia antes é o correto e outros que querem mudança, outros que defendem a reforma psiquiátrica mas têm um entendimento diferente da forma de tratamento a ser utilizada. Então, não é uma questão que é de fácil discussão, nem de fácil compreensão. Mas o que nós percebemos é que, além da questão científica, uma coisa que tem travado muito essa discussão são os interesses econômicos e financeiros. Existe uma estrutura montada, que garantia atendimentos longos, com as pessoas passando temporadas internadas em ambientes fechados (Hermano Moraes, vereador) (grifos nossos).

44 Vale salientar que o estado do Rio Grande do Norte já possuía, a Lei nº 6.758, de 4 de janeiro de 1995, que dispõe sobre a adequação dos hospitais psiquiátricos, leitos psiquiátricos em hospitais gerais e construção de unidades psiquiátricas. No entanto, a criação de leitos e unidades psiquiátricas em hospitais gerais nunca foram efetivamente implantadas. Ver na íntegra no anexo B.

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Mesmo com toda a resistência, a lei nº 30/01 apresentada pelo vereador

Hermano Moraes foi aprovada no ano de 2001, dando o aparato legal necessário para a

efetivação das mudanças preconizadas pela reforma psiquiátrica. A lei reorienta a

assistência no sentido de “promover uma redução progressiva da utilização de leitos

psiquiátricos em clínicas e hospitais especializados, mediante o redirecionamento de

recursos para o desenvolvimento de outras modalidades médico-assistenciais, garantindo os

princípios de integralidade, descentralização e participação comunitária”45:

Há esse movimento contra a reforma psiquiátrica também. E nós temos que entender, como cidadãos e como parlamentares, da importância dessa proposta. Então, procuramos ler sobre o assunto e defendemos a reforma psiquiátrica, a desospitalização e o redirecionamento dos recursos de forma que atenda à reforma psiquiátrica, de forma que ela possa sair do papel. E não basta um belo projeto, uma bela concepção, se não forem criadas as condições pelo poder público para atender esses segmentos (Hermano Moraes, vereador).

No entanto, no ano de 2002, o médico e vereador Aluisio Machado

apresentou à Câmara Municipal de Natal o projeto de lei nº 100/0246, ainda em fase de

tramitação na Câmara de Vereadores, que altera esse artigo essencial na lei Hermano

Moraes, da seguinte forma:

Art 1º - Fica alterado o Artigo 4º da Lei Nº 30/01, que passará a ter a

seguinte redação: “a assistência ao usuário dos serviços de saúde mental será utilizada no

sentido da utilização de centros psiquiátricos ou clínicas e hospitais especializados, e os

incisos I e II da referida Lei assim descritos:

I – emergência psiquiátrica em pronto-socorro especializado

45 Art 4º da lei Hermano Moraes, que dispõe sobre a assistência psiquiátrica e a regulamentação dos serviços de saúde mental em Natal. Ver na íntegra no anexo C.46 Ver anexo D.

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II – leitos psiquiátricos em hospitais especializados47

O pleito do vereador Aluisio Machado em substituir o texto da lei Hermano

Moraes descaracteriza essencialmente os objetivos de ampliar uma rede de cuidados extra-

hospitalares, além de ser um enorme retrocesso diante de todos os avanços obtidos nesse

processo histórico.

Como já foi exaustivamente discutido neste trabalho, essa rede precisa

avançar para assistirmos à efetivação de uma reforma psiquiátrica plena. Por outro lado, o

movimento de luta antimanicomial precisa se articular para evitar que esse processo de

mudança se torne lento e sem expressão, e o que é pior, comece a andar para trás.

47 Os incisos do art. 4º da lei Hermano Moraes prevêem: I – emergência psiquiátrica em hospital geral e II – leitos psiquiátricos em hospital geral.

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Capítulo III: Diagnóstico da situação atual: o papel da Psicologia e do NAPS

em concretizar os ideais de ressocialização

1. Dez anos depois: Avanços e desafios a superar

Natal, de acordo com dados do último censo, tem uma população de 770.847

mil habitantes. Estima-se que cerca de 20% da população geral dos países de Terceiro

Mundo, nos dias atuais, necessitam de alguma forma de atendimento em saúde mental. Se

considerarmos apenas os transtornos severos e persistentes, chega-se a uma estimativa de

3% da população necessitando de cuidados permanentes e contínuos como os que são

oferecidos nos serviços diários (ambulatórios, NAPS e CAPS), de acordo com dados da

SMS.

A política de saúde mental subjacente ao projeto do NAPS foi definida pela

II Conferência Nacional de Saúde Mental, citada neste trabalho, sofrendo influências,

principalmente, da experiência de Trieste, na Itália, e da Psiquiatria Comunitária, nos

Estados Unidos. Para que esse tipo de experiência possa ter êxito, é preciso extenso apoio

social, aconselhamento vocacional e recreacional, tratamento psiquiátrico abrangente,

trabalhos que ofereçam aos pacientes rendimentos e moradias acessíveis. Infelizmente, o

projeto do NAPS não conseguiu articular essa rede de serviços.

As mudanças que viabilizaram o Projeto de Reestruturação da Atenção à

Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Natal não foram implementadas. A

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criação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais, por exemplo, não ocorreu por pressões

políticas. As internações em instituições psiquiátricas em Natal, financiadas pelo SUS,

equivalem a 26,42% de todos os leitos contratados (534, de um total de 2021), no ano de

2002.48 Da proposta inicial de uma rede substitutiva aos hospitais psiquiátricos, Natal

encontra-se hoje com a seguinte estrutura de serviços: os dois NAPS (Leste e Oeste), o

CAPS, o Centro de Saúde de Pirangi (referência para tratamento de dependência química),

o Centro Clínico das Rocas (ambulatório) e a policlínica da zona norte (que está se

transformando num CAPS, referência de tratamento em dependência química).

No estado do Rio Grande do Norte como um todo, pouquíssimos são os

avanços. Podemos citar como experiências importantes, apesar de ainda muito recentes, a

implantação de um NAPS na cidade de Caicó e de um CAPS, na cidade de Parnamirim,

sendo este último de caráter privado.

A articulação dos serviços em saúde mental engloba ainda um elemento

estranho: o hospital psiquiátrico. Sem os leitos em hospitais gerais, ainda continuam

ocorrendo internações em hospitais psiquiátricos, fazendo com que seus proprietários

continuem ganhando muito dinheiro.

Um fator agravante é a falta de moradias assistidas, ou lares abrigados,

deixando desamparados os pacientes crônicos. Outros dados da Secretaria Municipal de

Saúde mostram que 11,04% de todos os pacientes internos nos hospitais psiquiátricos de

Natal são residentes no hospital, com mais de um ano de internação.49

48 Dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde de Natal, no ano de 2002. 49 Faz-se importante citar a Portaria nº 106 do Ministério da Saúde, de 11 de fevereiro de 2000 que cria e regulamenta os Serviços Residênciais Terapêuticos em Saúde Mental, garantindo assistência aos portadoresde transtornos mentais com grave dependência institucional; inclusive realocando recursos das AIHs dos leitos dos hospitais especializados para a rede substitutiva.

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Não restam dúvidas que as dificuldades teóricas e políticas dos novos

serviços construíram uma reforma psiquiátrica frágil frente às forças conservadoras e

oposicionistas. No entanto, pouco se poderia avançar diante dos índices de financiamento

para os serviços extra-hospitalares, como mostram as Tabelas 1 e 2:

Tabela 1:Financiamento para saúde mental no Rio Grande do Norte50

Gastos com internações hospitalares 8.478.894

Gastos com recursos extra-hospitalares 770.791 8,3%

Tabela 2:Média de custo mensal e diário dos pacientes internos em hospitais psiquiátricos e nos NAPS/CAPS no período de janeiro/março de 200251

Custo mês Custo dia

Hospital psiquiátrico 657,83 21,92

NAPS/CAPS 262,24 11,92

Constatamos os baixos índices de financiamento para os novos serviços de

atenção à saúde mental, colocando o Rio Grande do Norte em 16º lugar de investimentos

neste setor, no país. Apesar de apresentar uma maior resolutividade, eficiência em

ressocializar os portadores de doenças mentais, serviços como NAPS e CAPS passam a ser

sucateados pela falta de recursos, enquanto os hospitais psiquiátricos investem em

melhorias, maquiagens da sua estrutura arcaica, para continuar fabricando um modelo de

assistência que se esperava ultrapassado. Os dados do Ministério da Saúde mostram, ainda,

que os avanços da reforma psiquiátrica, no que diz respeito à implantação de serviços

50 Fonte: Ministério da Saúde, 2001. 51 Dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde de Natal, no ano de 2002

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substitutivos, ocorreram em todo o território nacional. No entanto, ainda há um enorme

descompasso entre os serviços disponíveis e a demanda inferida dos dados epidemiológicos

nacionais (Ministério da Saúde, 2001).

Que tipo de reforma psiquiátrica espera-se que aconteça? É possível a

convivência pacífica com dois modelos opostos de atenção? Tal contradição leva-nos a uma

série de questionamentos a respeito da consolidação da reforma psiquiátrica no Brasil.

Como construir uma cultura inclusiva do portador de doença mental sem desconstruir a

cultura manicomial? O quanto de fato avançamos, ou o quanto estamos apenas criando

serviços mais humanos? Estamos “lutando” o suficiente para derrubar os muros do

manicômio? Quantos dos nossos objetivos iniciais estão sendo atingidos com a

implantação desses novos serviços? A permanência de uma proporção de gastos

absurdamente desproporcional, em saúde mental, é um dos grandes desafios para a

consolidação da reforma psiquiátrica. Essa fragilidade econômica se apresenta como uma

contradição frente aos avanços em relação à saúde pública preconizada pelo SUS. As

equipes e os usuários não podem estar à mercê dos humores dos secretários de saúde, nem

dos gestores municipais. A reforma psiquiátrica é antes de tudo um direito conquistado e

legitimado pela sociedade.

Constatamos que os NAPS cumprem bem a sua proposta de uma atenção

diferenciada, representando um serviço alternativo ao manicomial. Mas, destacamos a

possibilidade destes novos serviços estarem criando um novo tipo de cronificação, por

representarem uma atenção exclusiva para seus usuários, frente à ausência de recursos de

base comunitária. A Figura 3 mostra a dificuldade do NAPS ser a única alternativa de

atenção extra-hospitalar:

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Admissão anual

5056

52

45

31

1520

15

0

10

20

30

40

50

60

Em1994

Em1995

Em1996

Em1997

Em1998

Em1999

Em2000

Em2001

Figura 3. Admissão anual de usuários nos NAPS

Percebe-se uma progressiva diminuição na capacidade de admissão,

dificultando a acessibilidade ao serviço. Esta realidade é reforçada pela existência de uma

lista de espera com 48 usuários, representando 44% do total de usuários atendidos pelo

serviço no ano de 2001. No tocante à territorialização das práticas, percebemos a

dificuldade enfrentada pelos NAPS, uma vez que situam-se nos Distritos Sanitários Leste e

Oeste, mas necessitam atender demandas advindas dos distritos Norte e Sul, além de

usuários do interior. A ausência de estudos epidemiológicos em saúde mental dificulta a

visualização das necessidades da população, fazendo com que a demanda oriente as ações,

e não as crenças, a disponibilidade econômica ou a estereotipia dos modelos teóricos

profissionais (Desviat, 1999).

A procura pelo serviço também vem caindo. Se no ano de implantação 141

(cento e quarenta e uma) pessoas procuraram o serviço, no ano de 2002, esse número é de

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30 (trinta) pessoas. A dificuldade em encontrar vagas é a grande responsável por essa

mudança, o que torna o hospital psiquiátrico ainda a principal referência em saúde mental

no município.

Faz-se urgente a ampliação da rede de serviços substitutivos, tendo em vista

que os NAPS apresentam-se sobrecarregados. Essa ampliação foi possibilitada pela

efetivação da Lei 10.216/01, que prevê a reversão do financiamento dos hospitais

psiquiátricos para os serviços substitutivos, estagnada desde 1999.

Além de todos os problemas avaliados por este trabalho, o grande vilão da

reforma psiquiátrica continuará sendo a ditadura dos manicômios. A reportagem do Diário

de Natal, de 18 de janeiro de 2003, dá a exata noção da urgência de uma solução para o

problema. A matéria “Atendimento psiquiátrico em crise” (2003) mostra que, em recente

avaliação dos manicômios brasileiros, pedida pelo Ministério da Saúde, dos cinco hospitais

psiquiátricos do Rio Grande do Norte, três não obtiveram pontuação mínima exigida e não

receberam classificação do Ministério da Saúde:o Hospital Milton Marinho, de Caicó,

Hospital Colônia João Machado e a Casa de Saúde de Natal. Segundo o jornal, foram

avaliados 23 itens, dentre os quais recursos humanos, prontuários, alimentação, espaço

físico, tempo de internação e a opinião dos pacientes e familiares sobre o tratamento.

Tal avaliação causou indignação nos diretores dos respectivos hospitais,

como o depoimento da diretora do Hospital Colônia João Machado, Mirna Chaves, que a

considerou injusta e tendenciosa: “Os critérios são injustos, tendenciosos e visam denegrir

a imagem dos hospitais psiquiátricos. Não acredito que tenha sido uma avaliação

imparcial, porque a comissão que avaliou os hospitais, está na luta contra os manicômios”

(p. 5).

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O mais preocupante é que a doutora Mirna Chaves considera que faltam

apenas alguns ajustes no hospital para que entre na zona de classificação do Ministério da

Saúde, estando já aprovado na Secretaria Estadual de Saúde um projeto de reforma do

hospital: “Pelo que eu sei, está previsto no orçamento de 2003 uma verba de R$ 800 mil

para a reforma ser feita” (p. 5). A diretora considera ainda “um crime social” a

possibilidade de fechamento dos hospitais psiquiátricos.

Até quando iremos ter que conviver com essas instituições datadas da Idade

Média, que não apresentam resolutividade satisfatória, e ainda excluem, ultrajam e

massacram os portadores de transtornos mentais?

A questão das reformas nos hospitais psiquiátricos transforma-se num

capítulo à parte da história da reforma psiquiátrica, sobre as quais não poderíamos deixar de

fazer referência. Tomemos, como exemplo, a cidade de Mossoró, segunda maior do estado

do Rio Grande do Norte, que não apresenta nenhum dispositivo extra-hospitalar, tornando o

Hospital Psiquiátrico São Camilo de Lélis a principal e única referência na área de saúde

mental. Em visita feita à instituição, e já referida neste trabalho, percebeu-se claramente a

tentativa de tornar o hospital psiquiátrico um novo lugar para o tratamento da loucura. Ao

entrar pelos seus portões, deparamos-nos com belos jardins, músicas, pacientes alegres a

participar de oficinas terapêuticas. O hospital inspira organização, limpeza e tratamento

digno para seus pacientes. No entanto, se andarmos um pouco mais... chegaremos a uma

ala mais distante, nos recônditos do hospital. Essa parte do hospital é apresentada pelo

psicólogo da instituição como a ala dos crônicos, dos pacientes mais graves, que não

conseguem manter a higiene e aparência necessárias para a imagem do hospital. Em

tempos modernos, mundos civilizados, direitos humanos como prioridade nas agendas

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políticas, encontramos um lugar degradante, com pacientes amarrados, sujos, presos como

feras furiosas. É uma cena assustadora, que nos faz perguntar imediatamente ao psicólogo:

- E a reforma psiquiátrica? Como vocês vêem essa discussão que está presente em

todo o país?

O psicólogo apressa-se em responder:

- Não, não nos atrapalha em nada. O hospital já fez várias reformas, e o trabalho

aqui melhorou muito. Alguns pacientes gostam tanto daqui que não querem mais

voltar para casa. Aqui eles constroem um mundo para eles, que os aceita e os trata

bem...

Essa passagem traz à lembrança o filme “Um sonho de liberdade”, de Frank

Darabont, quando um detento que passa a vida inteira enclausurado no presídio, vê-se,

depois de anos, com a difícil tarefa de reintegrar-se à sociedade. O seu desespero diante

daquele mundo que não era mais conhecido para ele, ao qual ele não mais pertencia, leva-o

a uma trágica decisão: o suicídio. A explicação de um dos companheiros de cela resume o

que pretendemos com essa ilustração:

- Ele estava institucionalizado.

A experiência de reforma psiquiátrica em Natal e no Rio Grande do Norte

mostra-nos que é preciso uma ruptura fundamental com as estruturas manicomiais de

assistência ao portador de doença mental. Não é possível construir um novo paradigma em

relação à loucura paralelamente a um modelo que é o seu oposto. É um pressuposto básico,

para um processo verdadeiro de reforma psiquiátrica, que se rompa com os hospitais

psiquiátricos.

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Enquanto o movimento de reforma psiquiátrica estiver preso a negociações

de medidas alternativas, mas não houver uma ruptura das estruturas fundamentais que

mantêm a estrutura de poder dos manicômios, não haverá mudanças significativas.

A efetivação da ressocialização passa pelo compromisso político por parte

dos profissionais, usuários e gestores, uma vez que a reforma psiquiátrica necessita de um

novo lugar social para a loucura.

2. Metas de atuação do psicólogo à luz da luta pela cidadania: algumas reflexões

“Se me olhar e suave, se me olhar e sorrir, seme ouvir antes de falar, vou crescer, realmente vou crescer”. (Bradley)

A consolidação da Psicologia como profissão de saúde, e mais precisamente

de saúde pública, é algo que está engatinhando, ainda a ser realizada no Rio Grande do

Norte. O psicólogo, ao adentrar em instituições públicas de atenção psicossocial (NAPS,

CAPS, Cooperativas, abrigos, etc.), esbarra em inúmeras dificuldades para conseguir

desenvolver um trabalho efetivo. Estrutura falha, falta de comunicação entre os

profissionais e uma formação que não contribui muito com sua prática.

Esse profissional muitas vezes entra nessa nova área pelo viés clínico,

fazendo uma simples transposição da prática clínica a esse tipo de serviço. A maioria dos

psicólogos que atua na saúde pública têm como atividade principal, ou até mesmo

exclusiva, o atendimento individual nos moldes do consultório. A dificuldade de uma

abordagem clínica num modelo psicossocial de atendimento pode gerar dificuldades na

reinserção social dos usuários, pois outros fatores são esquecidos.

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Dittrich (1998) nos dá importantes sugestões para um trabalho de cunho

preventivo em saúde mental. Segundo ele, as psicoterapias reforçam a imagem

de doente:

O sofrimento mental tem fundamentos sociais, o psicólogo tem o dever de sair a campo para localizar-lhe as causas. Despojando-se da passividade excessiva, comum à profissão, o psicólogo deve, de todas as formas possíveis, mostrar que possui capacidade de intervenção comunitária, legitimandosua importância para a sociedade (p. 54).

A graduação é avaliada muitas vezes como insuficiente para o trabalho no

serviço de saúde pública. A Psicologia constitui-se historicamente como uma atividade a

serviço da classe dominante, e a entrada na rede de saúde pública força-lhe a reaprender a

fazer e pensar Psicologia. O que não deve ocorrer, no entanto, é a criação de “mundos

paralelos” (Vasconcelos, 1999), ou seja, a dissociação completa entre a formação em

Psicologia e a nossa atuação, que somos obrigados a reinventar quando nos deparamos com

outra realidade, diferente da que aprendemos nas salas de aula. As questões da saúde

mental não adentram a formação básica da graduação do psicólogo.

O modelo de atenção psicossocial envolve diversos fatores, sendo o

atendimento individual apenas um deles, como explicita Pitta (1994) a respeito dos NAPS:

“Embora a ênfase do Núcleo seja o atendimento grupal, por vezes o atendimento individual

é o instrumento terapêutico mais indicado quando, por exemplo, a dinâmica do caso exige

uma internação mais intensiva e individualizada” (p. 651).

Não se trata, então, de criticar o atendimento individual, mas sim a pura e

simples transposição de um modelo clínico para um trabalho que requer dimensões sociais

e políticas muito mais abrangentes. Segundo Dittrich (1998), falar de saúde mental de um

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conjunto social é referir-se ao grau de vigência de seus direitos humanos. A nova

abordagem insere a saúde no campo da conquista e reinvenção da cidadania, passando

pelos direitos civis, políticos e sociais, mas implica uma luta mais específica pelo

reconhecimento de direitos particulares dos usuários dos serviços e seus familiares.

Castel (1978b) já alertava que a definição de uma política de saúde mental

não pode ser desvinculada de uma relação com uma política social da saúde, e que “a

transformação da estrutura institucional exigia coisa muito diversa da substituição de uma

teoria médica por outra teoria médica, ainda que de inspiração psicanalítica” (p. 159). De

fato, a crítica que se faz aos hospitais psiquiátricos não se restringe a eles, apenas enquanto

instituição de tratamento, mas ao modelo que representa. Chama-se de modelo manicomial

todo tipo de abordagem em saúde mental que siga um modelo excludente.

Figueiredo (1997) descreve o modelo psicossocial de atenção:

A doença como acometimento biológico, e o conflito, comofruto de uma interioridade conturbada devem dar lugar a mudanças mais amplas nos dispositivos de assistência, visando à reconstrução das relações sociais, de trabalho e convívio. A ênfase é dada nas práticas grupais e coletivas como meios para essa reconstrução (p. 65).

A autora faz ainda uma ressalva sobre a ética da ação social dizendo que ela

pode ser surda: “seu limite crucial está em se entregar ao afã de recuperar a cidadania

perdida, mas pode não ser incompatível com a escuta (...) é uma escolha a ser feita” (p. 72).

Parece que a disputa pelo que é biológico, social ou psicológico, continua

compartimentalizando o homem, fato que só vem a dificultar o entendimento de um

trabalho multidisciplinar.

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Um outro aspecto importante é perceber que todo esse esforço de mudança

no trabalho da saúde mental, como também as novas formas de conduta dos profissionais

inseridos neste contexto, não atingiu como deveria os cursos de Psicologia. Dessa forma,

ficará difícil praticar um trabalho público de qualidade sem ter por parte do agente

formador dos profissionais uma ação a qual incentive ou simplesmente mostre a dinâmica

de trabalho no âmbito público.

Para citarmos um exemplo, na Universidade Federal do Rio Grande do

Norte - UFRN, as dificuldades do curso de Psicologia e a inexistência de um estágio,

durante muito tempo, em saúde pública, contribui para configurar o quadro atual. Botomé

(1979) questionava os currículos de Psicologia, já que os mesmos não preparavam os

alunos para atuar no complexo cenário das dificuldades da nossa população. Para o autor,

os psicólogos se preparavam basicamente para situações de testes, salas de clínica ou

laboratórios e ambientes de treinamento. O quadro atual não parece diferir de forma

significativa daquele apontado pelo autor, duas décadas atrás.

Para se atuar no campo da Psicologia da Saúde, é necessário ter uma melhor

compreensão do processo saúde-doença. Estamos acostumados a lidar com conceitos que

levam a um sistema assistencialista, puramente remediativo e que não se preocupa com a

promoção da saúde. Tais conceitos devem ser ampliados e o processo entendido através de

diversas esferas, como a social e econômica, que têm um papel fundamental na

determinação da saúde ou doença de uma comunidade. Canguilhem (2002), em seu

clássico “O normal e o patológico”, apontou a representação social da doença: “Estar

doente significa ser nocivo, ou indesejável, ou socialmente desvalorizado, etc.

Inversamente, o que é desejado na saúde é evidente do ponto de vista fisiológico, e isso dá

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ao conceito de doença física um sentido relativamente estável” (p. 93). Este conceito faz

com que a Medicina não se interesse pelo paciente em seu todo, transformando-o em um

mero aparato biológico. Desse modo, a nova concepção de saúde-doença demandou uma

nova postura dos profissionais de saúde, que Canguilhem retrata como preocupados

exclusivamente em diagnosticar e curar.

Segundo Spink (1992), a Psicologia da Saúde encontra-se ainda

embrionária, tentando descobrir-se, apontando novos caminhos de atuação, novos

horizontes. E aponta a necessidade de uma “reflexão mais aprofundada sobre as seguintes

questões: as representações do processo saúde-doença, a configuração dos serviços de

saúde e das profissões que aí atuam, as políticas setoriais e suas implicações para o usuário”

(p. 18).

É importante ressaltar que as dificuldades de trabalho em setores públicos

são inúmeras e conhecidas de todos. Trabalhar em equipes multiprofissionais, percebendo

o indivíduo a partir de aspectos multideterminantes, não é uma realidade encontrada na rede

de saúde pública. Cada profissional faz a sua parte, mantendo uma visão

compartimentalizada do processo saúde-doença. O psicólogo que se aventurar a mudar

essa estrutura tem uma missão difícil e delicada a enfrentar. No entanto, é importante

superar as dificuldades, e apontar alternativas para a Psicologia da Saúde. Como observou

Dimenstein (1998), tais alternativas “implicam na substituição do paradigma da clínica pelo

da saúde pública, requer um novo modelo de atenção à saúde e de relação com o usuário,

bem como um modo sempre atuante de fazer saúde, com base nas prioridades de saúde da

população” (p. 78).

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No campo de trabalho da saúde mental, o psicólogo tem duas perspectivas

de atuação. Poderá manter-se omisso, limitando-se a atendimentos clínicos que estão

atentos apenas às queixas e sintomas de seus pacientes, ou, por outro lado, promover ações,

individuais ou grupais, de participação crítica e política do conjunto da realidade, com

conseqüências para todos os envolvidos nessa proposta (Silva, 2000).

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Considerações Finais - Por uma sociedade tolerante às diferenças

Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. (...)

(Carlos Drummond de Andrade)

As questões introdutórias deste trabalho, no que diz respeito à realidade

social brasileira e ao modelo econômico vigente, que acentua as desigualdades sociais e

aumenta a exclusão, não podem ser desvinculadas das dificuldades que enfrenta atualmente

a reforma psiquiátrica. Nas palavras de Matos (1999), “um mundo no qual só conta a lei do

valor, não é o mundo humano mas do capital” (p. 38). Logo, as características de cidadania

plena são ainda sonhos distantes, não só para os portadores de doença mental, mas para

inúmeros brasileiros.

O quadro mundial na última década, com o avanço do neoliberalismo e da

globalização, também não tem sido favorável a mudanças, o que trouxe de volta políticas

sociais austeras, conservadoras e limitadas. Não ficam de fora dessa configuração, a área

de saúde, nem a saúde mental. Os anos 90 não foram favoráveis, por exemplo, para a

participação política, para a implantação de sistemas democráticos, universalistas e para

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financiamentos direcionados ao setor público. Pelo contrário, as reformas que estão

ocorrendo no Brasil vão em direção das privatizações e da redução com os gastos públicos.

A experiência de reforma psiquiátrica em Natal, bem como em todo o estado

do Rio Grande do Norte, faz parte deste contexto macro-político, estando presa à vontade

política dos gestores de saúde e aos rumos da economia brasileira.

No entanto, é preciso olhar essa experiência de reforma também nas suas

especificidades. Este olhar micro demonstrou claramente que o movimento de reforma

psiquiátrica no estado do Rio Grande do Norte esqueceu-se de fazer novas construções

teóricas e operativas do plano de assistência em saúde mental. A promoção à saúde, a

integração de práticas, a participação social, devem estar presentes na nova agenda de

saúde mental. É preciso, também, construir novos conhecimentos, novos saberes e novas

práticas, para superar a crise em que se encontra o movimento de reforma psiquiátrica.

Neste ponto, faz-se mister dizer que momentos de estagnação e de crise

também poderão ser momentos de criação, momentos em que podemos encontrar soluções

mais elaboradas para o problema que se coloca diante de nós.

Acreditamos estar diante de um momento desses, no qual paramos, olhamos

para trás, revemos algumas falhas e vislumbramos saídas criativas para a superação dessa

realidade.

Anos de culturas manicomiais enraizadas em mentes e instituições não são

solúveis facilmente. No entanto, é preciso não se deixar vencer pelo comodismo, apatia e

ceticismo. Afinal, a reforma psiquiátrica é um processo de constante reflexão e construção

de saberes sobre a loucura e seu lugar social.

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Lembremo-nos de que vivemos um novo século em que a democracia e os

direitos humanos devem regular as relações sociais. Não é mais preciso pagar com vidas o

preço de um ideal, da sociedade que almejamos. A “luta” antimanicomial, é uma luta

consciente e esclarecedora de direitos. Deixemos os finais trágicos para os filmes, para a

literatura ou marcados nas páginas de livros de História. As armas desta “luta” serão as

leis, a sua munição os argumentos, e a sua bandeira, a dignidade humana.

Guirado (1999) perguntava-se se para falar sobre luta manicomial deveria

ser alguém que tivesse militância, e perguntava-se em que a universidade poderia contribuir

com essa luta: “A Universidade deveria engrossar coro de vozes” (p. 124), responde ela.

De fato, a universidade não pode eximir-se dessa discussão, tendo em vista que é a agente

formadora dos profissionais que fazem (fizeram e farão) a reforma psiquiátrica. É a

universidade quem precisa promover uma ruptura radical com alguns saberes consolidados

da Psiquiatria e da Psicologia: “Neste contexto, mais do que nunca é preciso preservar a

universidade como lugar de resistência, de necessária contestação. Resistência que assuma,

sobretudo, a forma de insistência em pensar, de reflexão teimosa (...)” (Patto, 1999, p. 118).

Não há dúvidas que a Psicologia em muito pode contribuir com esse

processo. No entanto, é preciso repensar práticas. A profissão se caracterizou durante anos

por uma passividade excessiva, uma espera incômoda de que o adoecer viesse bater à sua

porta. Moura (1999) explicita essa questão:

A Psicologia somente deixará de ser criticada e questionada quando as suas formas de intervenção forem, efetivamenteprodutivas, no sentido de fornecer recursos para que os sujeitos, ao se submeterem a um processo de revisão e transformação, incluam-se no contexto e assumam-se não apenas como “sujeitos de desejo”, mas, principalmente,enquanto “conquista e reinvenção de cidadania” (p. 14).

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Assim, o afastamento dos portadores de doença mental e dos considerados

“normais” deverá ser evitado, que não se distanciem tanto, que caminhem de “mãos dadas”,

em busca da concretização do princípio da dignidade humana, direito de todos, como nas

sábias palavras de Carlos Drummond de Andrade.

Talvez esses princípios constituam utopias. Mas, há que se fazer a seguinte

consideração: existem utopias possíveis e impossíveis. Acreditamos que a utopia de uma

sociedade melhor, tolerante às diferenças, está dentro das utopias possíveis, uma utopia

construtiva que representa a consistência do que eu espero, mas que estou trabalhando para

concretizá-la.

Um exemplo de que a história política e social do país pode mudar é a

vitória, em outubro de 2002, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa vitória vai

muito além da conquista individual de um homem, que mudou radicalmente o seu próprio

destino: um excluído social, vindo do Nordeste pauperizado para o Sudeste rico, que se

transformou no maior líder político do país. É justamente da contraditória realidade

brasileira que surge o impensável. Contudo, a possibilidade do país ser governado pelas

suas bases, pela primeira vez na história, é o fato que queremos destacar.

O governo Lula traz esperança de mudanças significativas na filosofia da

política brasileira, estando na agenda questões sociais emergentes, além de possibilidades

de maior diálogo e de maior abertura à participação da sociedade civil e dos trabalhadores.

Assim, espera-se que a reforma psiquiátrica encontre inspiração e apoio nas

transformações estruturais que ocorrem no Brasil, após as eleições presidenciais de 2002, e

possa superar definitivamente o modelo de opressão, exclusão e miséria defendido pelos

hospitais psiquiátricos.

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ENTREVISTAS

Aparecida França, ex-diretora do NAPS-Leste, Secretária Municipal de Saúde de Natal.

Eline Montenegro, ex-psicóloga do NAPS-Oeste.

Elisabete C. Freitas Barbosa, ex-Coordenadora de Saúde Mental de Natal.

Hermano Moraes, vereador, ex-Secretário Municipal de Saúde.

Maristela Pinheiro, Coordenadora de Saúde Mental de Natal.

Paulo Rocha, ex-Secretário de Saúde de Natal.

Roseane de Medeiros, arte-educadora do NAPS-Leste.

Verônica de Souza Pinheiro, ex-diretora do NAPS-Oeste.

Wagner Lima, ex-psicólogo do NAPS-Leste.

W., usuário.

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ANEXOS

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