Em Direção Ao Mundo Da Vida EA e Interdisciplinaridade Isabel Carvalho

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Educación Ambiental

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  • Cadernos de Educao Ambiental

    Em Direo ao Mundo da Vida:Interdisciplinaridade e Educao Ambiental

    1998

    Isabel Cristina de Moura Carvalho

  • 2 1998 byISBN 85-86838-01-2Todos os direitos reservados.

    Catalogao na Fonte doDepartamento Nacional do LivroC331eCarvalho, Isabel Cristina de Moura.

    Em direo ao mundo da vida : interdisciplinaridade e educao ambiental / Conceitos para se fazer educaoambiental / Isabel Cristina de Moura Carvalho. Braslia : IP - Instituto de Pesquisas Ecolgicas, 1998.

    101f. : il. ; 30 cm. - (Cadernos de educao ambiental ; 2)

    ISBN 85-86838-01-21. Educao ambiental. 2. Abordagem interdisciplinar do conhecimento na educao. Instituto de Pesquisas

    Ecolgicas. II. Ttulo. III. Srie. CDD-304.2

    Cadernos de Educao AmbientalGOVERNO DO ESTADO DE SO PAULOSecretaria do Meio Ambiente do Estado de So PauloMinistrio da Educao e do Desporto

    Paulo Renato de Souza/ MinistroEdson Machado de Sousa/ Chefe de GabineteNeli Gonalves de Melo/ Coordenadora de Educao Ambiental

    UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a CulturaJorge Werthein/ Representante no BrasilCelso Schenkel/ Coordenador de Meio Ambiente

    UNICEF Fundo das Naes Unidas para a InfnciaAgop Kayayan/ Representante no BrasilJorg Zimmermann/ Oficial de Projetos do Meio Ambiente

    IP Instituto de Pesquisas Ecolgicas

    Suzana Machado Padua - Coordenao; Ruy Alcides de C. Neto- Projeto Grfico; Diamani Regina dePaulo- Ilustraes.

  • 3Sumrio

    Apresentao.................................................................................... 04

    Introduo ......................................................................................... 05

    O Mundo da Vida no Cabe em Gavetas ...................................... 07

    O Que Interdisciplinaridade .......................................................... 09

    A Revoluo Cientfica e a Mudana deAtitude Ante a Natureza .................................................................... 12

    O Pensamento Cientfico e a Ecologia, umaCincia das Relaes ....................................................................... 15

    Mudando as Lentes: Repensando as RelaesEntre Sociedade, Natureza e Cultura ............................................... 17

    Interdisciplinaridade uma Nova Postura ........................................... 19

    Educao Ambiental: Valores Parauma Nova Cultura................................................................................ 23

    Uma Viso Interdisciplinar da Realidade: DiagnsticosScioambientais ................................................................................. 27

    Experincias Educativas no Brasil: os Caminhosda Interdisciplinaridade ....................................................................... 33

  • 4Apresentao

    A educao ambiental, pelo seu carter multi e interdisc-plinar, importante instrumento para odesenvolvimento e a implementao de polticas voltadas melhoria da qualidade de vida nosgrandes centros urbanos.

    Em So Paulo, o rodzio de veculos exemplo de uma mega operao de educao ambiental.Desde 1995, durante o inverno, mobiliza milhes de pessoas com a finalidade de impedir que apoluio do ar na Grande So Paulo atinja nveis insuportveis para a populao e leva a informaosobre o problema aos diversos setores da sociedade, procurando motivar a participao e o exerccioativo da cidadania. Esses pressupostos, bsicos para o desenvolvimento da educao ambiental,foram estabelecidos na Conferncia de Tbilisi, na Agenda 21, no Tratado de Educao Ambientalpara as Sociedades Sustentveis, no Programa Nacional de Educao Ambiental (PRONEA) e noPrograma Estadual de Educao Ambiental de So Paulo (PREAM).

    Entre as diversas atividades realizadas, principalmente as dirigidas s escolas, o aspectointerdisciplinar da educao ambiental tem sido um dos ingredientes que mais contribuem para osucesso da Operao Rodzio. Seu objetivo contemplar objetos de diferentes reas deconhecimento como sade, transportes, trnsito, energia, comunicaes, direito, educao,economia. Diferentes atores sociais so chamados para participar das discusses a partir de suasespecificidades, porm sem perder a viso conjunta do problema.

    Nas escolas, a questo foi desvelada em seminrios e em oficinas pedaggicas, a fim decapacitar educadores para a colocao prtica do tema nas salas de aula em disciplinas comogeografia, matemtica, fsica, histria, biologia e orientar a realizao de atividades extraclasse quepermitem o envolvimento do conjunto corpo docente/discente e tambm da comunidade do entornoda escola.

    Esses procedimentos, combinados com a farta distribuio de material didtico como guias,cartilhas, vdeos, CD-rom e roteiros de pesquisa, visam ajudar os professores a inclurem o tema noseu cotidiano de trabalho de forma interdisciplinar.

    A interdisciplinaridade colocada como um componente prtico da educao ambiental discutida neste livro como uma concepo de mundo que supera o processo da informaocompartimentada e dissociada da existncia social e natural do Planeta. Buscando retecer os fiossoltos do conhecimento, a autora elabora a crtica ao saber tradicional que se petrifica nas escolas,onde, por exemplo, o professor de biologia no recupera os processos histricos que interagem naformao dos ecossistemas naturais e o professor de histria no considera a influncia dos fatoresnaturais nas formaes sociais.

    A presente publicao, a segunda da srie Cadernos de Educao Ambiental, que decorre daparceria entre a Secretaria do Meio Ambiente do Estado de So Paulo, o IP - Instituto de PesquisasEcolgicas, o Ministrio da Educao e do Desporto, a UNESCO e a UNICEF, pretende contribuirpara a perspectiva de superar esse problema por intermdio da educao ambiental.

  • 5Introduo

    Este livro dirige-se a todos os educadores brasileiros que buscam renovar sua prtica seatualizando sobre as novas temticas e abordagens metodolgicas que emergem com a educaoambiental e o debate sobre a interdisciplinaridade. fruto de uma iniciativa que rene aCoordenadoria de Educao Ambiental da Secretaria de Estado do Meio Ambiente, o IP - Institutode Pesquisas Ecolgicas, a Coordenao de Educao Ambiental do MEC, a UNICEF e a UNESCO.

    importante destacar, entre os antecedentes deste trabalho, a coleo da UNESCO/UNEPsobre educao ambiental, especialmente o volume 14, produzido por uma equipe da Universidadede Paris (VII), em 1983, dedicado ao tema da interdisciplinaridade. Da primeira idia, que girava emtorno da traduo e da atualizao daquele volume, chegamos proposta deste novo texto, que,harmonizado com o eixo principal do debate sobre interdisciplinaridade, pretende ser uma introduoaos contedos, aos valores e s metodologias presentes na proposta interdisciplinar em educaoambiental, desde o contexto dos educadores no Brasil. De todo modo, o volume sobreinterdisciplinaridade da coleo UNESCO/UNEP manteve-se como importante referncia. Algumasde suas idias principais esto presentes como norteadoras das escolhas que fiz quanto formulao dos problemas e dos temas destacados.

    Este livro quer, sobretudo, contribuir para o processo de formao do educador ambiental. Umanova identidade profissional vem se delineando no bojo das transformaes socioculturais em cursona sociedade brasileira e no mbito internacional. Esse novo perfil profissional na educao estassociado aos diversos acontecimentos sociais e culturais situados na base da construo de novassensibilidades ambientais. Entre eles destacam-se os movimentos sociais e ecolgicos que tmlutado pela ampliao do campo da cidadania, incluindo o meio ambiente como um bem coletivo eparte integrante da conquista de direitos.

    Nesse contexto de importantes transformaes sociais e culturais, o debate sobre educaoambiental e interdisciplinaridade vem ganhando cada vez mais espao no universo educacionalbrasileiro. Interdisciplinaridade e educao ambiental so temticas emergentes que se tmconstitudo como possveis caminhos de abertura e renovao do ensino, tanto formal quanto no-formal, em direo a uma insero mais plena do ato educativo no que chamei de o mundo da vida.

    Isso significa um mergulho das prticas educativas na rede de novas sociabilidades e valoresque tecem os acontecimentos sociais e histricos nos quais a vida realmente acontece. a que osindivduos podem tornar-se sujeitos sociais, por meio de experincias educacionais engajadas nosprocessos de construo de uma cidadania que inclui novas sensibilidades ticas e convivenciais.Creio ser esse o sentido a ser conquistado nas muitas experincias em educao ambiental orarealizadas, seja nas escolas da rede formal de ensino pblico, da rede privada, nos rgos de gestoambiental (IBAMA, secretarias e rgos estaduais e municipais de Meio Ambiente), seja nas vriasprticas da sociedade civil encontradas nas aes educativas das organizaes no-governamentais,dos movimentos e entidades ambientalistas.

    No campo governamental, as polticas pblicas para a educao ambiental tm buscado oestabelecimento de diretrizes destinadas internalizao da preocupao ambiental nas prticaseducativas formais e no-formais. Nessa direo destacam-se: o captulo de meio ambiente daConstituio Federal de 1988; em 1994, a criao do Programa Nacional de Educao Ambiental(PRONEA); o Projeto de Lei da Poltica Nacional de Educao Ambiental e a atual definio dosParmetros Curriculares Nacionais pelo MEC, em que se institui a temtica ambiental como reatransversal na estrutura curricular da escola formal. No mbito das instituies educacionais, caberessaltar, nos ltimos anos, a expanso de linhas de pesquisa e cursos interdisciplinares em nvel deps-graduao lato e estrito senso, na rea ambiental, que tm incorporado a educao ambiental naformao dos profissionais de meio ambiente.

    No mbito dos processos sociais que esto marcando a formao do educador ambiental,encontramos uma poltica afirmativa das novas temticas culturais e novos atores sociais, a partir da

  • 6qual mais e mais educadores incorporam um iderio ecolgico em sua prtica educativa e passam ase chamar educadores ambientais.

    Desde a podemos observar a organizao, num ritmo crescente, de fruns de debates, redesde articulao, encontros estaduais e nacionais e, mais recentemente, latino-americanos, que podemser vistos como parte da construo de uma identidade social e profissional em torno das prticaseducativas ambientais.

    A dcada de 90 , nesse sentido, um marco desse clima cultural de valorizao das prticas emeducao ambiental. A realizao da Conferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente eDesenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, contribuiu muito para a expanso do debateambiental na sociedade brasileira.

    Durante o processo preparatrio para essa conferncia, que ocorreu principalmente nos doisanos que antecederam sua realizao, foi organizada a Conferncia da Sociedade Civil, tambmdenominada Frum Global, que ocorreu paralelamente conferncia oficial, uma vez que a ltimafoi reservada principalmente aos representantes dos governos participantes. Nesse evento dasociedade civil, formou-se a Rede Brasileira de Educao Ambiental, que animou a I Jornada deEducao Ambiental e a elaborao do Tratado de Educao Ambiental durante o Frum Global.

    Depois de 1992, realizaram-se quatro Fruns de Educao Ambiental, tendo o ltimo reunido1.200 educadores em Guarapari (ES), em agosto de 1997. Ainda em 1997, destaca-se a realizao,em Braslia, da I Conferncia Nacional de Educao Ambiental 20 Anos de Tbilisi, promovida peloGoverno Federal. Este evento tambm teve carter preparatrio para a participao brasileira naConferncia de Educao Ambiental da UNESCO, em Thessalonique, Grcia, em dezembro de 1997,fechando o ciclo de vinte anos aps a Conferncia de Educao Ambiental da ONU em Tbilisi (1977).

    Esperamos que este livro possa contribuir neste caminho de mltiplos e variados processospelos quais vem se dando a formao de um novo educador, o educador ambiental. Esseseducadores, em sua maioria, tm demonstrado grande empenho na construo de uma prticaeducativa enraizada na vida e na histria. A superao do distanciamento entre a construo dosaber e os acontecimentos do mundo da vida est na base dos novos valores e sensibilidadesconstitutivos de um ethos socioambiental.

    A autora

  • 7O Mundo da Vida no Cabe em Gavetas

    Sobre harns e tanacod

    Certa vez, numa tarde de vero no Marrocos, tia Habiba foi inquirida pelos sobrinhos sobreafinal o que era um harm. O problema era que eles se confundiam mais cada vez quetentavam compreender esse assunto. Aps escut-los, tia Habiba disse que eles estavamentalados numa tanacod (contradio). O resultado de estar preso a uma tanacod era que,quando a pessoa fazia uma pergunta, obtinha respostas demais. O que s servia para criarconfuso ainda maior. Mas o que h de mau com a confuso, disse tia Habiba, que apessoa no se sente inteligente. Entretanto, prosseguiu ela, para tornar-se um adulto erapreciso aprender a lidar com a tanacod. O primeiro passo a ser dado pelos iniciantes era terpacincia. O principiante deveria aprender a aceitar que, temporariamente, cada vez quefizesse uma pergunta sua confuso s faria piorar. Isso no era motivo, contudo, para queum ser humano parasse de usar o mais precioso dom que Al conferiu a todos ns: a razo.E lembrem-se, acrescentou tia Habiba, ningum at hoje descobriu uma maneira deentender as coisas sem fazer perguntas.

    Depois disso, tia Habiba faz uma longa descrio de como os harns se modificam de umaparte do mundo para outra e, tambm, como se vm modificando de um sculo para oseguinte, mostrando os muitos entendimentos possveis para o que possa ser um harm.1

    Essa curta histria, narrada a partir de uma tradio milenar que no percorreu as mesmastrilhas da nossa racionalidade ocidental, d-nos uma boa pista acerca de como podemos iniciar aconversa sobre perguntas sem respostas e perplexidades. Afinal, disso que se trata quandofalamos na crise do conhecimento e nas tentativas de superao dessa crise, entre as quais seinscreve a sada via a interdisciplinaridade.

    Usando as palavras da tia Habiba, poderamos dizer que ns, ocidentais modernos, estamosentalados numa boa tanacod. Principalmente porque no fomos educados para aprender com ascontradies, mas ao contrrio, para suprimi-las, resolvendo-as. Aprendemos com o conhecimentocientfico que para tudo h uma resposta. E, se houver mais de uma, essas respostas no devem sercontraditrias, pois nesse caso poderiam indicar um erro. isto ou aquilo. Se alguma coisa isto,aquilo, e tambm aquilo outro, j no sabemos bem o que fazer. Ao invs de entendermos quetemos muitas respostas, a tendncia pensar que no sabemos nada a respeito, que no temosresposta nenhuma, que nossa investigao no alcanou bons resultados.

    Quem sabe no seja em boa parte esta postura de caadores de respostas eexterminadores de perplexidades que deixa a sociedade ocidental moderna to desamparada,mesmo tendo acumulado tanto conhecimento ao longo dos ltimos sculos. Talvez por isso, no finaldeste milnio, com todos os avanos cientficos, ainda permanea a incmoda constatao de quetodo esse saber disponvel que no pouco est longe de solucionar muitos dos gravesproblemas de nosso tempo.

    1 Extrado do livro de Ftima Mernissi, Sonhos de transgresso; minha vida de menina num harm , So Paulo, Companhiadas Letras, 1996, p. 178.

  • 8Um novo vrus afeta justamente o sistema de defesa humano, como o caso da Aids. Umorganismo decide multiplicar desordenadamente suas clulas, desencadeando um processo de altorisco para si mesmo. A temperatura da Terra aumenta continuamente em ndices alarmantes.Poderamos seguir enumerando tantos outros fenmenos de graves conseqncias cujas causasainda so incompreensveis na sua totalidade e para os quais s vislumbramos respostas parciais emuitas vezes contraditrias.

    Dito de outro modo, o mundo da vida, com sua complexidade, continuamente ultrapassa etransborda os limites das gavetas onde o pensamento especializado e disciplinar o quer encerrar.Essa tentativa de simplificar e de fragmentar uma teia de relaes complexas e contraditrias quetece o Universo tem sido o principal intento da cincia moderna. E bom lembrar que esse modo deapreender a realidade se generalizou mesmo para as pessoas comuns, no-cientistas, definindo umanica maneira como a maneira correta de pensar. Muitos outros modos de conhecer a realidadeficaram de fora desse modelo e, hoje, com a crise do conhecimento moderno, comeam a serresgatados sendo valorizados como formas alternativas de construo de conhecimento.

    A preocupao em encontrar a resposta certa, a maneira correta de aprender, o melhor mtodode ensinar reflete muito da ansiedade moderna, fruto de um pensamento extremamente dualista eexcludente. Isso, muitas vezes, tem impedido a busca criativa de respostas plurais. Sobre esse ponto,vale a pena ouvir a resposta da av Yasmina, quando indagada, como tia Habiba, sobre o que sejaum harm, pelos netos pequenos.

    Yasmina responde que os netos deveriam empregar um tempo de suas preocupaes com ocerto e com o errado. Disse que, de determinados fatos, se podia afirmar que fossem as duas coisas,ao passo que havia fatos para os quais no se podia afirmar nem uma coisa nem outra. As palavrasso como cebolas, disse. Quanto mais camadas voc retira, mais significados aparecem. E quandovoc comea a descobrir a multiplicidade dos significados, o certo e o errado tornam-se semimportncia. Todas essas perguntas que vocs andaram fazendo sobre os harns so boas einteressantes, mas sempre haver mais o que descobrir. Dito isso, acrescentou: Vou retirar maisuma camada para vocs agora. Lembrem-se, porm, que apenas uma entre outras 2.

    A trama da vida e os fios soltos do conhecimento

    No mundo vivido, os aspectos tomados isoladamente pelas disciplinas esto permanentementerelacionados, como fios de um s tecido. Ao puxar apenas um fio, tratando-o como fato nico eisolado, cada rea especializada do conhecimento no apenas perde a viso do conjunto, como podeesgarar irremediavelmente essa trama onde tudo est entrelaado. Com isso, a multiplicidade dascamadas de significados que constituem a realidade traduzida em fatos chapados, vistos de umanica perspectiva.

    Na escola, organizada sobre a lgica dos saberes disciplinares, o resultado d-se dessa forma:o professor de geografia no toca nos aspectos biolgicos da formao de um relevo em estudo; ohistoriador no considera a influncia dos fatores geogrficos na compreenso do declnio de umacivilizao histrica; o professor de biologia no recupera os processos histricos e sociais queinteragem na formao de um ecossistema natural e assim por diante.

    Os educadores so profissionais mergulhados nas questes prticas do mundo da vida epodem facilmente identificar, em sua prtica, as lacunas deixadas pelo saber disciplinar. Queprofessor j no constatou a precariedade dos programas de aula, dos contedos curricularespreestabelecidos diante dos problemas que enfrentamos na vida cotidiana?

    2 Idem, p. 27.

  • 9Esse desafio, contudo, pode ser ignorado. Pode-se reafirmar os esquemas prontos e fingir quenada est acontecendo. Mas da que nasce todo o desencanto de uma educao que se protegeem respostas feitas para calar as perguntas e no para se aventurar diante do que inquieta. A outrasada no recuar ante intrincada trama de relaes que tece a realidade, ouvindo a permanentepulsao do mundo da vida, ainda que ela soe incompreensvel.

    O que Interdisciplinaridade

    Interdisciplinaridade um conceito que, primeira vista, pode parecer algo muito sofisticado edistante da prtica diria do educador. No entanto, cada dia mais os educadores principalmente oseducadores ambientais tm sido confrontados com a necessidade de incorporar a dimensointerdisciplinar em suas atividades. Assim, melhor parar a fim de refletir um pouco sobre o que issosignifica. Afinal, de onde vem essa proposta? mais uma metodologia? um princpio educativo? uma outra lgica de organizao curricular dos contedos? So os contedos comuns a duas oumais disciplinas ou campos do conhecimento? Tem que ver com a formao de equipes a partir devrias contribuies profissionais?

    A interdisciplinaridade um pouco disso tudo e muito mais. Para sintetizar, poderamos definira interdisciplinaridade como uma maneira de organizar e produzir conhecimento, buscando integraras diferentes dimenses dos fenmenos estudados. Com isso, pretende superar uma visoespecializada e fragmentada do conhecimento em direo compreenso da complexidade e dainterdependncia dos fenmenos da natureza e da vida. Por isso que podemos tambm nos referir interdisciplinaridade como postura, como nova atitude diante do ato de conhecer.

    Na prtica educativa, a adoo de uma proposta interdisciplinar implica uma profunda mudananos modos de ensinar e aprender, bem como na organizao formal das instituies de ensino. Porisso, uma postura interdisciplinar em educao vai exigir muita abertura para mudanas que podempassar, por exemplo, pela construo de novas metodologias, pela reestruturao dos temas e doscontedos curriculares, pela organizao de equipes de professores que integrem diferentes reas dosaber e pelas instituies de ensino que tenham abertura para experimentar novas formas deorganizar os profissionais, os currculos e os contedos, a estrutura formal das sries, etc.

    Justamente por se opor compreenso mais comum acerca da natureza do conhecimento, aproposta interdisciplinar no de fcil assimilao. O que freqentemente ocorre umacompreenso ainda muito parcial do conceito de interdisciplinaridade, de sua origem e das suasconseqncias para a prtica educativa. Para desatar os fios dessa meada, vamos puxar alguns fiosde sentido ou algumas camadas de significados como diria Yasmina da noo deinterdisciplinaridade.

    O primeiro fio de sentido diz respeito origem da noo de interdisciplinaridade que s podeser compreendida dentro da crtica racionalidade moderna. O segundo refere-se s conseqnciasprticas dessa crtica que, ao buscar superar uma forma de conhecer e se relacionar com o mundo,marcada pelo conhecimento disciplinar, convida construo de uma outra postura diante doconhecimento e da vida.

    Mas antes de nos aprofundarmos nos sentidos da interdisci-plinaridade, algumas definiesdevem ser feitas. Como veremos ao longo deste livro, a interdisciplinaridade tem suas razes nacrtica sociedade ocidental moderna, especialmente a um de seus legados que a especializaodo conhecimento. Por isso, citaremos vrias vezes o conceito de sociedade moderna oumodernidade. Aqui preciso esclarecer que no estaremos usando a palavra moderna no seusentido comum de acontecimento recente, atual, mas no de conceito histrico. Estamos entendendopor sociedade moderna ou modernidade um amplo perodo da histria do Ocidente que comea no

  • 10

    sculo XV, com o final da Idade Mdia e o incio do Renascimento, se estendendo at o nossosculo.

    O sculo XV pode ser tomado como o marco do incio da modernidade, porque foi a partir daque se operaram as grandes mudanas nas formas de conceber o mundo. Essas formas de concebere de pensar o mundo tambm so chamadas de racionalidade. Assim, as novas maneiras deconhecer e de intervir na natureza so parte de uma nova racionalidade, surgida com a sociedademoderna e situada na base do desenvolvimento de grande parte do conhecimento cientfico e dastecnologias que conhecemos no sculo XX.

    A modernidade, portanto, refere-se a um perodo longo, que compreende importantestransformaes destacadas como diferentes perodos histricos da sociedade moderna. o caso donosso tempo presente que, nesta acepo, dentro deste grande marco da modernidade, tambm chamado de perodo contemporneo, contemporaneidade, ou, ainda, alta modernidade, comopreferem alguns historiadores.

    A interdisciplinaridade nasce com a crise de um modo de conhecer

    Um primeiro sentido, que est na gnese da idia de interdisciplinaridade, a crtica ao modode organizar e de produzir conhecimento na sociedade ocidental moderna. A interdisciplinaridadetraduz o desejo de superar as formas de apreender e de transformar o mundo, marcadas pelafragmentao do conhecimento organizado nas chamadas disciplinas. Essa crtica dirige-se a todauma maneira de conhecer marcada por uma racionalidade muito particular, tambm chamada deinstrumental, que instituiu um lugar de poder de onde os seres humanos passaram a olhar para omundo e a natureza.

    O que caracterizou, desde seu incio, a perspectiva moderna foi a transformao do mundo emobjeto externo de conhecimento. Isso deu lugar a uma operao progressiva de diviso eclassificao que se tornou a base do conhecimento cientfico.

    Essa racionalidade ordenou o mundo na base de uma srie de dualismos, os quaisinauguraram as conhecidas polaridades que ainda hoje orientam todo o nosso pensamento: humanox natureza; cultura x biologia; sujeito que conhece x objeto conhecihumano x natureza; cultura xbiologia; sujeito que conhece x objeto conhecido, apenas para citar algumas das mais conhecidas.Com o mundo transformado em objeto, a complexidade do Universo foi traduzida em inmerospedaos, partes, especialidades, disciplinas. Sabemos que a cincia moderna se funda nesse pensarclassificatrio, descrevendo e estudando aspectos cada vez mais parciais e especializados dos seusobjetos de conhecimento.

    O telogo Leonardo Boff, que se dedica a pensar como estas questes acerca do conhecimentoafetam a condio humana, fala sobre a reduo do complexo ao simples e ajuda-nos a compreendero reducionismo que est na base do pensamento disciplinar:

    Complexidade uma das caractersticas mais visveis da realidade que nos cerca. Por elaqueremos designar os mltiplos fatores, energias, relaes que caracterizam cada ser e o conjuntodos seres do universo. A cincia moderna, nascida com Newton, Coprnico e Galileu Galilei, nosoube o que fazer da complexidade. A estratgia foi reduzir o complexo ao simples. Por exemplo, aocontemplar a natureza, ao invs de analisar a teia de relaes complexas existentes, os cientistastudo compartimentaram e isolaram. (...)Assim, comearam a estudar s as rochas, ou s as florestas,ou s os animais, ou s os seres humanos. E, nos seres humanos, s as clulas, s os tecidos, s osrgos, s os organismos, s os olhos, s o corao, s os ossos, etc. Desse estudo, nasceram osvrios saberes particulares e as vrias especialidades. Ganhou-se em detalhe, mas perdeu-se atotalidade.3

    3 Leonardo Boff, A guia e a galinha; uma metfora da condio humana, Petrpolis, Vozes, 1997, p. 72.

  • 11

    Mas isso nem sempre foi assim

    Essa viso, que hoje nos parece to natural, foi construda no bojo das transformaes sociaise culturais que para alguns autores datam do incio do cristianismo, e para outros s se configuraramcomo um novo paradigma de conhecimento a partir do sculo XV. O fato que essa viso moderna,que fragmenta o mundo para compreend-lo, no faz nenhum sentido, por exemplo, para muitos dospovos indgenas que pensam o Universo de forma mtica. Como tambm no faria nenhum sentidona Grcia antiga, que no concebia a natureza em oposio aos humanos. Os gregos desse perodotinham um nome muito especial para denominar a natureza e todo o Universo que no era pensadocomo objeto, mas como uma totalidade: Physis.

    Physis: a natureza de todas as coisas

    Essa palavra representa uma experincia da natureza bem diferente do que podemos perceberpor intermdio de suas tradues pelas lnguas latinas. Isso porque no temos, em nossa culturalatina, uma viso de natureza que se aproxime daquela dos gregos. Certas palavras, s vezes, notm traduo porque simplesmente no existe uma experincia cultural que permita encontrar a idiaequivalente na outra lngua. Este precisamente o caso de Physis.

    Physis designava a natureza de todas as coisas que nascem e se desenvolvem sem aassistncia dos humanos, isto , que se desenvolvem por si mesmas, independentemente da vontadehumana. Os gregos acreditavam que no Universo havia uma ordem anterior s decises humanasque a tudo regia. Era uma ordem natural a que tudo, incluindo as pessoas, estava submetido. Essaordem natural era a morada da imortalidade, daquilo que dura no tempo, que nunca iria perecer, seresquecido ou destrudo. Physis era o mundo imortal, onde se dava a existncia mortal dos humanos.

    A modernidade e a natureza: a physis silenciada

    Imensa mudana de mentalidade marca a passagem da antiguidade greco-romana para aIdade Moderna. Uma noo como a de Physis no encontra lugar dentro da viso de mundopredominante na modernidade. Pode-se dizer que, na modernidade, a Physis grega se silenciousimplesmente porque no se consegue mais pensar nos termos daquela viso grega de mundo.

    Mas como foi que isso se deu? Afinal, o que a natureza para a maioria dos que vivem namodernidade? Em primeiro lugar, aconteceu na modernidade o que alguns autores chamam de odesencantamento do mundo, isto , no h mais espao para uma idia como a de Physis. A crenade que o mundo estava animado por uma ordem ou verdade que transcendia a existncia humanaperdeu fora. A Physis foi silenciada, as foras csmicas e os deuses j no habitam mais anatureza. O domnio da imortalidade e da transcendncia, representado na cultura grega pela noode Physis, comeou a abandonar o mundo.

    Na modernidade, a percepo predominante de que tudo tende a se tornar perecvel.Parodiando o poema de Vincius de Moraes, poderamos dizer que o esprito moderno aquele queconsidera que tudo infinito enquanto dure, ou seja, nada mais promete ser eterno ou permanecerpara sempre. A sensao de tudo transitrio e perecvel. A maioria dos humanos, na modernidade,no se sente mais inserida num cosmos, numa ordem que a ultrapassa. Os humanos modernostendem a se pensar como fontes de suas prprias leis e, muitas vezes, como autores da ordem domundo.

    Por isso, no h mais uma ordem transcendente a ser contemplada no mago da natureza. Oscientistas modernos no esto em busca da revelao do esprito das coisas. Eles procuram porpropostas provisrias, posteriormente refutadas ou conservadas. Ao invs da contemplao filosfica,o cientista moderno busca respostas prticas nos experimentos com a natureza. O que a cinciamoderna com sua lgica disciplinar, silenciou foi a dimenso do mistrio.

  • 12

    A Revoluo Cientfica e a Mudana deAtitude Ante a Natureza

    A cincia e a vontade de conhecer para dominar a natureza

    Uma das grandes transformaes que marcam a passagem para a Idade Moderna aemergncia do pensamento cientfico. Essa nova maneira de compreender o mundo tornou-sedominante em nossa sociedade e est na base das relaes com a natureza.

    Como vimos, na Antigidade o conhecimento buscava a sabedoria por meio da compreensoda ordem da natureza para viver de acordo com ela. A cincia moderna busca conhecer paracontrolar e intervir nos processos naturais.

    Francis Bacon, filsofo que viveu no sculo XVI, foi o pai do mtodo emprico da cincia,tambm conhecido como mtodo experimental. Ele acreditava que o saber cientfico deveria sermedido em termos da capacidade de dominao da natureza. Capacidade de domar as foras danatureza como as guas, os rios e as tempestades. Ficaram na histria impressionantes afirmaesde Bacon como: Devemos dominar a natureza e atrel-la a nossos desejos. A natureza obrigadaa servir, deve ser escravizada, reduzida obedincia. Para ele, o cientista deveria extrair danatureza, sob tortura, todos os seus segredos.

    Essas imagens violentas de Bacon so muito representativas do novo esprito e atitude darevoluo cientfica ante a natureza. Essa linguagem tambm remete ao sculo em que Baconviveu, e nesse sentido lembra as palavras e os procedimentos usados na Inquisio contra osacusados de bruxaria, em grande parte mulheres. A natureza estava, assim, colocada no banco dosrus diante dos cientistas.

    Descartes, filsofo francs do sculo XVII, foi outro importante fundador do mtodo cientfico.Talvez tenha sido ele quem mais contribuiu para a consolidao da idia de natureza como mquina.Descartes enunciava claramente que o Universo no passava de uma mquina. No havia umsentido, vida ou espiritualidade animando a matria. A natureza funcionava de acordo com as leismecnicas. Para apreender o modo de funcionamento da natureza, era necessrio conhecer comocada parte funcionava. E, assim, Descartes oferecia os fundamentos para o mtodo cientfico,modelo de pensamento que serviu de orientao para as prticas cientficas at o sculo XIX.

    Como destaca o autor contemporneo Fritjof Capra4 , essa drstica mudana na imagem danatureza teve poderoso efeito sobre a atitude das pessoas em relao ao ambiente natural. A visode mundo, segundo um modelo mais orgnico ou holstico de natureza, conduziria a uma atitudemais ecolgica.

    Imagens de natureza enquanto Physis, da Terra como me provedora, ou da natureza comocriao de Deus serviam como uma espcie de freio cultural. Estavam na base de uma atitude demaior reverncia diante da natureza. Essa atitude respeitosa limitava as intervenes mais drsticasdos grupos humanos sobre seu entorno natural.

    4 Para conhecer o pensamento de Fritjof Capra leia o livro O ponto de mutao, Cultrix, 1989. Existe em videolocadoras umfilme com o mesmo ttulo, cujo roteiro foi escrito pelo prprio Capra.

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    Da a viso moderna da natureza corresponder ao chamado desencantamento do mundo. Anatureza sem alma transformou-se em objeto da cincia. Essa foi uma das chaves mais importantesque abriram os caminhos para a explorao e a manipulao, sem precedentes, do mundo naturalpelas sociedades ocidentais.

    No cenrio moderno, a natureza no tem mais o papel principal de guardi das leis do cosmos. natureza cabe, por assim dizer, um papel coadjuvante como objeto do conhecimento cientfico,mais precisamente das cincias naturais. Como um fator do experimento cientfico, a natureza , paraa modernidade, fonte de conhecimento prtico que deve ser exposto ao mtodo cientfico. Torna-se,assim, fonte de hipteses e suposies que devem ser testadas, confirmadas ou refutadas,transformando-se em um campo de interveno, um grande laboratrio para as descobertascientficas e as inovaes tecnolgicas.

    Essa situao est na origem de graves dilemas ticos que enfrenta nossa civilizao. O fato que vivemos numa sociedade de alto risco. Nunca, em pocas passadas, uma sociedade generalizouto amplamente sua rea de impacto na biosfera. Ao mesmo tempo, acumulamos uma grandecapacidade de transformao do meio natural, cujos resultados so, muitas vezes, tanto irreversveisquanto imprevisveis. Tudo isso nos deixa vulnerveis a muitos riscos ecolgicos.

    Muitas civilizaes tiveram seu ciclo de vida com altos e baixos, tendo, algumas delas, atmesmo desaparecido da face da Terra. Contudo, a nossa sociedade a nica que pode pr em riscoo conjunto do planeta e no apenas seu habitat na biosfera.

    A mquina no o espelho da vida

    A revoluo cientfica significou uma guinada de 180 graus em relao antiga concepogrega de natureza. Isso pode ser resumido no contraste entre a viso da natureza como umorganismo e a noo moderna que a v como mquina, o que representou uma profunda mudanade mentalidade.

    Os gregos antigos tinham uma viso da natureza que podemos tambm chamar de holstica,isto , eles a viam como uma totalidade, um grande organismo vivo marcado pelas relaes deinterdependncia dos fenmenos espirituais e materiais. As sociedades modernas, por sua vez,operaram uma grande ruptura com essa viso de mundo, cujo resultado foi a separao daquilo queera visto antes como uma totalidade. Foi assim com as noes de corpo e esprito, natureza e cultura,humano e natural.

    Nesse mundo desencantado o pensamento moderno toma a natureza mais como umaengrenagem, um grande relgio. Uma mquina, cujas leis de funcionamento podem ser conhecidaspelos mtodos da cincia. A mquina da natureza passou a ser uma das mais recorrentes metforasde nosso tempo. E o domnio dessa mquina foi estabelecido como o grande ideal do conhecimentoque se especializou em cada pea da engrenagem.

    Todos sabemos das conseqncias desastrosas dessa atitude que v a natureza como umamquina, um relgio. Quem ainda no sentiu os efeitos da fragmentao do conhecimento? Bastapensar na experincia de algum obrigado a passar um longo tempo de especialista em especialista,sem conseguir descobrir que mal consome sua sade, e muito menos o que fazer para curar-se.Enquanto isso, cada mdico faz um diagnstico de acordo com sua especialidade, e o pacientetermina com muitas receitas e tratamentos desencontrados, que no conseguem atacar o conjuntodos sintomas que continuam a manifestar-se.

    A precariedade do conhecimento especializado diante da complexidade da doena um bomexemplo dos limites postos pelo conhecimento disciplinar. Esse exemplo vale tambm para os gravesproblemas sociais e ambientais que enfrentamos. Como doenas graves da Terra, eles estodebilitando fortemente a sade da sociedade e do planeta. E cada vez mais evidente que soluessetoriais pensadas isoladamente, sejam elas medidas econmicas ou tecnologias industriais, sorespostas muito tmidas diante dos riscos globais desses problemas.

    A iluso de alcanar o domnio completo da mquina da natureza tem levado ao que NancyMangabeira, filsofa que pensa a ecologia, chamou de euforia antropocntrica e tecnocrtica. Nancy

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    nos traz, como exemplo desse horizonte que se projeta como futuro tecnolgico, a declarao de umeminente bilogo em seu discurso para a Associao Americana para o Desenvolvimento da Cincia.Na oportunidade, o cientista exemplificou o que seria para ele a grande oportunidade de o serhumano hoje assumir o controle de sua prpria evoluo e se refazer na imagem que quiser:

    O crebro hoje to grande quanto podemos carregar com praticidade. Se fosse duas vezesto grande seria realmente um peso. Mesmo assim, pessoas do futuro, que dependem at maisdo que ns da plena explorao de sua fora cerebral, iro querer, sem dvida, possuircrebros maiores...e isto ser possvel porque poderemos deix-los em casa. Com odesenvolvimento dos rgos sensitivos para comunicao em microondas no haver razopara que os rgos sensoriais individuais no possam ser tornados independentes, de maneiratal que possam viajar autonomamente, por microondas. O crebro permanecer em casa, emum quarto aconchegante e confortvel, concentrando esforos em pensar, enquanto os rgossensoriais individuais passeiam pelo mundo, vendo, falando, ouvindo, brincando econtinuamente em comunicao com o escritrio central. Fruiremos de uma nova liberdade livres da necessidade de ficar carregando a cabea por todos os lugares 5 .

    A idia que sustenta certas inovaes tecnolgicas que buscam alterar ou mesmo recriarprocessos naturais pe em funcionamento um tipo de relao com a vida parecida com a propostado corpo-escritrio que vimos acima. O que est em jogo nessa viso cientfica a noo de que anatureza pode ser sempre reordenada, recriada, como resultado da interveno humana.

    Uma luz no fim do tnel

    Contudo, essa maneira instrumental e objetificadora de encarar a natureza e o humanocomea a ser questionada pela prpria cincia, ou, pelo menos, por alguns setores da cincia como anova fsica, a biologia molecular e a prpria ecologia. A nova fsica, por exemplo, , hoje em dia, umadas cincias de ponta que mais se tem deixado penetrar pela complexidade do mundo da vida,aceitando trocar certezas por perplexidades. talvez o campo que mais tem avanado na construode uma nova viso do Universo, superando o modelo mecnico que a prpria fsica newtonianaconstruiu no passado. O resultado que, quanto mais a nova fsica sabe sobre o tomo, quanto maisela conhece sobre os microprocessos dessa menor partcula da matria, mais se surpreende aoconstatar como essa matria se transforma.

    Tudo isso aponta para a necessidade de uma profunda mudana na forma como nosacostumamos a pensar o conhecimento e o ato de conhecer. Trocar certezas por perplexidadestalvez seja o primeiro passo, admitindo a precariedade do olhar especializado sobre uma realidadeque s existe de forma dinmica, inter-relacionada e complexa. preciso ter olhos para ver que omundo da vida transborda as gavetas conceituais, onde organizamos nosso conhecimento na formade saber disciplinar.

    5 N. Mangabeira, O encantamento do humano, Loyola, 1991, p. 54.

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    O Pensamento Cientfico e a Ecologia,uma Cincia das Relaes

    Ecologia, uma cincia diferente

    Mas, afinal, no cenrio da revoluo cientfica que vimos discutindo, onde se situa a ecologia?Por que esta cincia, que emergiu tmida como mera especializao da biologia, terminou alcanandotanta visibilidade e foi at mesmo associada a uma proposta de mudana social? Como foi que aecologia cincia se prestou a nomear todo um movimento social de contestao do modo de vidamoderno e de busca de uma nova aliana com a natureza?

    Essas perguntas tm muitas respostas. Certamente no vamos esgot-las. Contudo, paracomearmos a enfrent-las, fundamental conhecer um pouco mais acerca da ecologia comocincia: em que condies nasceu, quais as suas peculiaridades, o que tem em comum e onde sediferencia do pensamento cientfico dominante. Sem esta compreenso, no poderemos entendercomo e por que a ecologia se tornou esse conhecimento-ponte, ligando um saber cientfico sobre omundo natural ao universo social.

    Entre a mquina e a mstica da natureza

    A ecologia tem seu nascimento oficial em 1866, quando, pela primeira vez, o bilogo alemoErnest Haeckel, importante difusor das idias de Charles Darwin, usa o conceito ecologia naliteratura cientfica ao afirmar: Por ecologia, entendemos a cincia das relaes dos organismos como mundo exterior. Este conceito foi se tornando complexo, ao longo do tempo, sem perder o seusentido original.

    Hoje, de modo geral, entende-se por ecologia o estudo das relaes que os seres vivosmantm entre si e o meio ambiente. Formada pela reunio das palavras gregas logos (que significaestudo) e oikos (que significa morada, casa), a ecologia nomeia o estudo do lugar que os sereshabitam, tambm chamado pela cincia de ecossistema. Essa casa comum dos seres vivoscompreende tanto as relaes que compem um ecossistema especfico como tambm podeabranger muitas outras inter-relaes entre os ecossistemas que constituem o planeta Terra. Porisso, encontraremos tantos estudos ecolgicos voltados para ecossistemas especficos (como osecossistemas marinhos, por exemplo) quanto outros que discutem as inter-relaes abrangentesentre vrios ecossistemas e o conjunto do planeta. Mais recentemente, o conceito de ecologia vem seampliando e j h autores que consideram vrios nveis de relaes ecolgicas, incluindo, alm deuma ecologia estritamente ambiental, uma ecologia social e at mesmo uma ecologia mental.

    Mas, voltando s origens da ecologia, uma coisa curiosa a respeito de Haeckel que, alm decientista, ele tambm era membro influente da Liga Monista. O monismo era a corrente filosfica quepostulava uma viso unificada e equilibrada de todo o Universo. Para os monistas, tudo o que existiano mundo era feito da mesma matria. Portanto, todos os seres vivos tinham o mesmo valor naordem natural. Alm disso, tomavam a natureza como fonte de verdade e modelo para a vidahumana.

    A ecologia teve, assim, desde seu nascimento, uma marca muito significativa. fruto de umaviso cientfica, mas sua orientao sistmica tambm no deixa de estar permeada por uma filosofiaholstica. Esse diferencial talvez seja, em parte, responsvel por uma certa permeabilidade daecologia, que vem sendo associada a outros valores extracientficos, animados pela idia de umabusca da Physis.

    O ano do seu surgimento, 1866, coloca a ecologia como jovem cincia. Isso se torna evidentese considerarmos que ela s se elevou ao patamar de cincia autnoma, independente da biologia,

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    nos ltimos anos do sculo XIX. importante lembrar tambm que uma cincia com pretenses toabrangentes como a ecologia s poderia ter surgido a partir do conhecimento acumulado por vriasdisciplinas cientficas. No apenas o trabalho sobre a evoluo das espcies, de Darwin, mas todo oavano nas cincias fsico-qumicas forneceram os novos meios de observao e compreenso dosfenmenos naturais e suas correlaes, fundamentais para a constituio da cincia ecolgica.

    O corpo terico da ecologia, portanto, tem uma histria muito recente. Conceito hoje de usocorrente, como, por exemplo, o de ecossistema, cunhado pelo eclogo ingls Arthur Tansley, data de1935.

    O conceito de biosfera, que se refere ao lugar do planeta onde habitam os seres vivos, surgiuem 1875. Mas apenas nos anos 20 do sculo atual esse conceito foi desenvolvido pelo geoqumicorusso Wladimir Vernadsky. Embora estivesse mergulhado num contexto cientfico materialista, assimcomo Haeckel, Vernadsky tambm se sentiu atrado por uma viso holstica da natureza. Quandoesteve em Paris, conheceu o telogo catlico e bilogo, Teilhard de Chardim, cuja filosofia csmicada natureza o impressionou profundamente. O encontro teve repercusses importantes na sua obra,levando-o a ampliar suas concepes geoqumicas na direo de uma compreenso maisabrangente da vida na Terra. Na sua famosa obra A Biosfera, publicada em 1926, essa influncia faz-se notar.

    Outro momento interessante da cincia ecolgica em direo a uma compreenso holstica danatureza, a Hiptese Gaia. Essa teoria contempornea data dos anos 70 e foi proposta por JamesLovelock em colaborao com a pesquisadora Lynn Margulis.

    Lovelock trabalhou na NASA e definia-se a si mesmo como planetlogo. Sua proposta erachegar a um conceito ainda mais amplo que o de biosfera. Ainda hoje recebida com muitas reservasdentro do meio cientfico, a idia central da Hiptese Gaia de que a Terra um ser vivo. No poracaso esses cientistas escolheram Gaia, a deusa da Terra na mitologia grega, para nomear esseente vivo. Para essa teoria, tudo na Terra Gaia. No organismo de Gaia os humanos so comoclulas de um de seus tecidos.

    A Hiptese Gaia alvo de muitas controvrsias, pois rompe com o modelo cientfico maistradicional. considerada, desse ponto de vista, uma espcie de teoria marginal. Contudo, parece,sem dvida, a teoria ecolgica que mais explicitamente busca superar o modelo mecanicista e seaproximar de uma viso orgnica ou holstica da natureza6.

    Um conhecimento interdisciplinar

    O desenvolvimento da ecologia passa por muitos outros nomes importantes das cinciasnaturais. Do mesmo modo, as discusses, que se constituem no cerne da construo do saberecolgicos, so bastante complexas. Mas, de modo geral, poderamos dizer que a trajetria destanova cincia se caracteriza por tentativas de alcanar nveis cada vez maiores de complexidade nacompreenso da vida e de sua organizao no planeta. Assim, do estudo de ecossistemas singulares(unidades botnicas simples, por exemplo), a ecologia caminhou para o estudo de totalidades maiscomplexas e inclusivas, como o caso das noes de biosfera, ecossistemas e da Hiptese Gaia.

    A ecologia, dessa forma, prepara o terreno para o nascimento de uma cincia multidisciplinar,isto , constitui um campo do saber para o qual convergem outros saberes cientficos como a fsica, aqumica, a botnica, a geologia, a economia. Afinal, um estudo da vida diz respeito a numerososdomnios do saber cientfico.

    6 Para conhecer mais sobre o desenvolvimento da cincia ecolgica, ver o excelente livro de Jean Paul Deleage, Histria daEcologia; uma cincia do homem e da natureza, Lisboa, Publicaes Dom Quixote, 1993. E tambm o clssico de PascalAcot, Histria da Ecologia, Rio de Janeiro, Campus, 1990.

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    Na procura de compreender cada vez mais as dimenses que constituem as cadeias de relaes nabiosfera, a ecologia inclui a presena humana entre seus estudos. As comunidades humanas estoinseridas nos diversos ecossistemas, fazem parte dos ciclos naturais e interagem ativamente com omeio ambiente. A capacidade humana de transformar e de ser transformada pelas condies naturaisno pode ser ignorada por essa cincia da vida.

    Dessa forma, no apenas a natureza, mas os seres humanos e, por conseguinte, as culturas eas sociedades dizem respeito cincia ecolgica. Como afirma um gegrafo contemporneo, PierreGouru: No h crise no uso da natureza que no seja uma crise no modo de vida do homem.

    Aqui comeamos a perceber como o olhar sistmico que nasce com a ecologia como estudodas relaes ultrapassou os experimentos e os modelos cientficos e acabou sendo tomado deemprstimo pelo debate sobre os rumos da sociedade. No toa que a palavra ecologia acaboumigrando do vocabulrio cientfico para designar, tambm, projetos polticos e valores sociais comoutopia da boa sociedade, convivncia harmnica com a natureza, crtica aos valores da sociedade deconsumo e ao industrialismo.

    Mudando as Lentes: Repensando as Relaes Entre Sociedade, Natureza e Cultura

    Nasce uma questo: a abordagem socioambiental

    Uma das coisas que o olhar ecolgico ajudou a evidenciar foi a estreita conexo entre osprocessos naturais de degradao ambiental e os modos sociais de uso dos recursos naturais. O quepassou a constituir-se como problemtica socioambiental decorre de uma noo de meio ambienteque colocou a ao humana e a histria no centro do processo de conhecimento. Desse ponto devista, os problemas ambientais so o testemunho vivo de uma racionalidade, cuja expressoeconmica encontra seu modelo mais acabado no capitalismo industrial.

    Tem crescido a conscincia de que, mais que efeitos colaterais do desenvolvimento, osenormes riscos ambientais que afetam a vida de inmeras populaes so a essncia do modelo dedesenvolvimento social e econmico que conhecemos. Assim, os problemas ambientais ameaamno apenas o futuro fsico do planeta, mas, em igual intensidade, questionam o futuro dos valores denossa sociedade e apontam para a necessidade de uma profunda reorientao nos modossocialmente construdos de conhecer e de se relacionar com a natureza. Nesse sentido, a criseambiental vem se impondo como um problema que comea a ser levado a srio pelos governos epelas populaes porque est pondo concretamente em risco a vida de muita gente.

    Muitas vezes a crise ambiental tambm a crise de um conjunto de relaes sociais. Osproblemas ambientais denunciam desigualdades profundas no acesso das populaes aos recursosda natureza e s boas condies ambientais. As lutas de comunidades em torno de saneamentobsico, remoo de depsitos de lixo de reas densamente povoadas, despoluio de mananciaisso alguns exemplos disso.

    Embora o direito a um meio ambiente saudvel esteja garantido na Constituio brasileira, navida das populaes menos favorecidas esta uma condio a ser duramente conquistada. istoo que mostram as experincias populares de luta pelo meio ambiente. Lutas como a dos ribeirinhosamaznicos de Tef, que classificaram e definiram diferentes graus de utilizao dos lagos ereivindicam a democratizao do acesso s guas. Usando a expresso reforma aqutica, essesribeirinhos tentam impedir prticas de pesca predatria com o empate aqutico. Esto levando aexperincia de luta dos seringueiros na defesa da floresta para a sua luta na defesa dos rios. Foramos seringueiros liderados por Chico Mendes que criaram o empate para resistir derrubada dafloresta amaznica pelas grandes madeireiras. O empate surgiu como uma resistncia pacfica, naqual os seringueiros e suas famlias cercam a rea a ser desmatada e, com sua presena fsica,

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    impedem a derrubada de rvores que destruiria o seringal. Chamou-se essa ao de empateporque uma forma de criar um obstculo ou, em linguagem popular, empatar o desmatamento.

    Entre outras lutas ambientais populares esto a das quebradeiras de coco babau, a dasreservas extrativistas ou, ainda, as formas peculiares de uso da terra como um bem ambientalcoletivo, que so os fundos de pasto no Nordeste ou os faxinais no Sul. Estas e outras tantasprticas populares deveriam ser levadas em conta, quando pensamos em modelos alternativos esustentveis de gesto ambiental.

    Em termos globais, tambm possvel traar um mapa dos benefcios e dos prejuzosambientais verificando como essa distribuio afeta desigualmente as sociedades. bem verdadeque h vrios processos em curso, como o aquecimento global, a progressiva escassez de gualimpa ou o esgotamento dos solos frteis, que no limite, podem pr em risco a sobrevivncia detodos.

    Contudo, mesmo diante da gravidade dessas situaes de risco globais, assistimos a uma duranegociao internacional na qual os pases mais poluidores so, tambm, os mais ricos e com maiorfora poltica. Disto decorre que nos fruns de deciso internacional, esses pases tm buscadoganhar tempo, adiando medidas drsticas que implicariam uma real converso de seu modeloeconmico e tecnolgico.

    Para enfrentar essa problemtica sem ficar andando em crculos, preciso mudar as lentes,sair da lgica que as produziu e construir um novo conhecimento e um novo consenso social que, defato, reconhea a vida e o meio ambiente como um direito de todos, sem restries.

    Para isso preciso comear superando as vises parciais e especializadas, compreendendo ascomplexas interaes entre os processos econmicos, polticos, histricos, biolgicos e geogrficosque esto gerando esses problemas. Por essa razo, as equipes que estudam os problemasambientais so, em sua maioria, compostas de profissionais de vrias reas atuando em conjunto.

    Entretanto, mudar de lentes no coisa simples. Em termos sociais e histricos, exige umagrande humildade para abandonar a lgica da acumulao econmica, que tem definido as formas deapropriao dos recursos naturais nos ltimos sculos. Do mesmo modo, uma mudana conseqenteneste momento no se dar sem a adoo de valores ticos e solidrios na base das relaes sociaise das relaes das sociedades com a natureza.

    Para aprendermos a lio que os problemas ambientais nos ensinam e avanarmos emdireo a uma relao mais autntica com o mundo da vida em sua complexidade, temos de treinar oolhar para ver o mundo de um novo lugar. A interdisciplinaridade um desses novos lugares, que seesto construindo como uma maneira diferente de compreender as relaes entre os seres humanose a natureza.

    Natureza e cultura: uma lacuna na teia conceitual

    Muito se tem falado em educao ambiental sobre as relaes entre a natureza e a cultura.Tematizar a questo, numa abordagem interdisciplinar, requer um esforo de sintonia com o mundoda vida, isto , buscar compreender essas relaes a partir da tica da complexidade e dadiversidade. Ao fazer isso, estaremos desconstruindo um certo senso comum, que reduz aproblemtica ambiental a uma oposio absoluta e irreconcilivel entre os processos naturais e aordem humana.

    Essa perspectiva tende a neutralizar os conflitos sociais e histricos que constituem a questoambiental, deslocando-os para fora das relaes sociais e histricas, numa grande oposionaturezacultura.

    Comeando pelo fim do mundo

    comum encontrarmos no debate ambiental uma viso apocalptica de meio ambiente na quala nica alternativa o domnio de um dos plos da relao natureza e cultura sobre o outro. J

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    ouvimos afirmaes como: o homem o cncer do planeta, a civilizao humana vai esgotar osrecursos naturais at que no haja mais possibilidade de vida sobre a Terra, estamos muito perto deuma vingana da Terra; um cataclismo ecolgico o fim da espcie humana sobre o planeta, etc.

    Com certeza tambm ouvimos outras idias acerca dos desencontros e at mesmo sobre aimpossibilidade da convivncia entre os humanos e a natureza. Mas j pensamos seriamente sobreisso? Ser que a relao dos humanos com a natureza assim mesmo, como um casamento queno deu certo, cuja nica sada o divrcio? E, para ns humanos, o que significaria divorciar-nos daTerra? Mudar para outro planeta? Ou ser que o planeta vai nos varrer da biosfera, seu grandecorpo vivo?

    As graves condies ambientais que enfrentamos deixam-nos realmente diante de difceisdilemas. Por isso, no devemos apressar-nos e tentar resolv-los com frmulas e idias simples.Assim, como bons detetives, devemos comear desconfiando da primeira verso dos fatos que seapresenta como a verdade das coisas, principalmente porque sabemos que a complexidade domundo da vida no facilmente apreendida pelo conhecimento disciplinar que est a nossadisposio.

    Assim, se queremos realmente trocar as lentes, devemos buscar pistas e informaes que nosajudem a construir novas hipteses. Quem sabe terminamos descobrindo sadas que no teramosnem imaginado, se nos contentssemos com a primeira verso do problema, ou pelo menos a maisdivulgada. s vezes, indo mais fundo, vamos descobrir que os problemas ambientais nos contammuito mais do que apenas uma briga irreconcilivel ou ela (a Terra) ou ns (os humanos). Talvez ofinal dessa histria no precise ser necessariamente algo prximo de uma cena catastrfica de ficocientfica.

    Natureza e cultura, uma relao de mo dupla

    Existe uma maneira alternativa de responder pergunta sobre quem predomina, a naturezaou a cultura. Basta observar a relao de estreita comunicao entre uma e outra. E, assim, encararos dois termos dessa equao natureza e cultura como se afetando reciprocamente. A melhorimagem para caracterizar a relao naturezacultura, nesta perspectiva, seria a de um dilogopermanente, uma relao de mo dupla em que um lado interage com o outro e vice-versa.

    Por isso, se as culturas se desenvolvem dentro dos limites e possibilidades da natureza que ascircunda, este entorno natural tambm est sendo modificado pela ao da cultura que ali seestabelece. Assim, as paisagens naturais condicionam hbitos e inspiram o imaginrio dos povos. Aomesmo tempo, a ao destes povos sobre a face da Terra tem criado novas paisagens no mundonatural. Neste processo, uma relao de mo dupla tem cultura e natureza em permanentecomunicao.

    Interdisciplinaridade uma Nova PosturaElaborar novas hipteses, trocar as lentes do conhecimento frio por outras mais vivas, suspeitar

    do que se apresenta como bvio, tudo isso faz parte de uma sensibilidade que a base do quepoderamos chamar de uma postura interdisciplinar. Essa nova postura depende de uma vivncia queo conhecimento escolar muitas vezes congela: a experincia do deslocamento, da viagem, no sentidometafrico, isto , do trnsito entre as formas de conhecer. Isso significa sair dos lugares habituais,que se pretendem universais, de onde aprendemos a olhar as coisas e identific-las de um nicoponto de vista. Pode parecer simples, mas na verdade isso exige uma imensa coragem edisponibilidade para deixar o porto seguro de nossas certezas e conviver com as diferenas e apluralidade de pontos de vista.

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    O problema que freqentemente nos habituamos a pensar nossa realidade imediata, nossosvalores, como sendo o retrato acabado do mundo. Mas uma primeira lio que a ecologia nos ensina que somos apenas parte de uma grande teia, feita do entrelaamento de paisagens e vidashumanas, relevos e emoes, geografias e histrias, biologias e arquiteturas, natureza e artifcio.

    Exercitando a Sensibilidade Interdisciplinar

    Passamos agora a nos referir a viagens pelo tempo e pelo espao, dessas que se pode fazerlendo um livro ou vendo um filme. Para compreendermos, de um outro lugar, as relaes ecolgicasque nos unem Terra, preciso sacudir a poeira das idias e preparar as malas para partir rumo aventura. Em primeiro lugar, bom deixar em casa todas as certezas e idias preconcebidas. Levarbons culos que nos permitam ver tudo, usar de muita ateno e perspiccia e, principalmente,estar munidos de boa dose de tolerncia e capacidade de encarar uma enorme diversidade desituaes.

    Prontos para embarcar, faremos agora um exerccio, que tambm pode ser realizado comoutros grupos na prtica dos educadores. Alguns textos podem ser lidos como roteiros de viagempelos caminhos da diversidade cultural e histrica. Estes roteiros tm certo encadeamento, podendoser usados em seu conjunto ou destacados, conforme o objetivo do trabalho. A idia de que sirvamcomo estmulo inicial discusso em grupo ou reflexo individual. Sugerem um deslocamento doolhar cotidiano, que sempre auto-referido, sensibilizado para um novo olhar sobre a problemticaambiental. sempre bom lembrar que outros textos como estes ou adequados realidade docontexto educativo no qual sero utilizados podero ser elaborados pelos educadores.

    Roteiro I

    H muito mais entre a natureza e a cultura doque sonha nossa v filosofia

    As relaes humano-naturais no so iguais em todo lugar, isto , no so universais. Tanto oshumanos quanto a natureza variam nas diferentes regies do planeta. fcil constatar isso. E aquicomea a primeira parte dessa viagem.

    Tomaremos como referncia um mesmo momento no tempo, por exemplo, uma manh.Imaginemos agora o tipo de experincia da natureza que est tendo um cidado mdio urbano, indopara o trabalho de carro ou de metr, numa cidade grande como So Paulo, s 7 horas da manh.Deixemos a metrpole e voemos at bem longe, at as montanhas do Himalaia, entre a China e andia. Num pequeno pas chamado Buto, numa regio de vales entre as montanhas que formam oHimalaia, nessa mesma manh, um campons ara a terra, sob um cu muito claro, clima frio e arrarefeito pela altitude, cercado pela paisagem montanhosa. Percebemos como podem ser diferentesas experincias e o relacionamento com a natureza que tem o cidado urbano de So Paulo e ocampons do Buto.

    Podemos continuar circulando pelo globo, observando os esquims, na gelada Groenlndia, noplo Norte, os ndios do Xingu, na quente e mida floresta amaznica brasileira, os povos aimarsque desde muito antes da descoberta da Amrica habitam as terras altas dos Andes bolivianos eperuanos, praticando agricultura e criando animais como a cabra e a lhama, ou os povos nmades daSomlia, que acompanham seus rebanhos de camelos e caprinos pelos desertos e savanas quentesno nordeste da frica. Essa viagem quase infinita e pode mostrar que existe uma enorme variaonas formas de sermos humanos, num mesmo tempo e em diferentes lugares do planeta.

    A essas diferentes formas de viver, de pensar a vida, de relacionar-se com os outros humanose com a natureza vamos chamar de cultura. Como vimos, no existe uma nica cultura humana, masmuitas. Cada cultura est relacionada com a particularidade dos diferentes grupos humanos. E, ao

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    mesmo tempo, a cultura tem a ver com a singularidade do encontro entre esses grupos e o ambientenatural especfico onde habitam, isto , o lugar do planeta onde vivem. Assim, nessa viagempanormica pelo globo terrestre pode-se notar uma imensa variao de paisagens e de grupos. Essecasamento entre um ambiente natural com sua paisagem, geografia, clima, fauna e flora e umacomunidade humana que o habita com seus costumes e hbitos d origem s diferentes culturas.

    Roteiro II

    No tnel do tempo: as culturas e anatureza so histricas

    Indo um pouco mais longe, desta vez viajando tambm no tempo, podemos entrar numa outradimenso da diversidade das relaes entre cultura e natureza. Sim, porque tanto os humanosquanto a natureza tambm se transformam de acordo com o tempo histrico.

    Voltando, por exemplo, ao sculo XVIII, no incio da Revoluo Industrial na Inglaterra,podemos observar as ruas de Londres cheias de fuligem da queima do carvo mineral usado parafins industriais e domsticos. A grande quantidade consumida gera uma fumaa txica que escureceo ar, suja as roupas, mata as flores e as rvores e corri as estruturas das construes. famosa avista de Londres coberta pelo smog, (em ingls quer dizer uma fumaa formada por um misto denevoeiro e poluio). Muitas pessoas da aristocracia abandonam suas residncias na cidade, fogemdos terrveis odores e dos ensurdecedores rudos da Londres industrial. O mesmo no acontece comos trabalhadores que so obrigados a respirar o ar poludo e dormir com os rudos fabris. Amontoam-se, em desconfortveis e insalubres cortios, homens, mulheres e crianas, vindos do campo embusca de trabalho.

    Mudando de cenrio e de poca vamos a uma regio camponesa, no sculo XVI, na Frana?Certamente nos surpreenderemos com a existncia de curiosos processos jurdicos contra osanimais, em muitos casos, movidos por camponeses contra insetos e pragas que atacam as suasplantaes. Em 1587, na aldeia francesa de Saint Julian, poderamos testemunhar um dessescuriosos processos: uma colnia de carunchos estava causando srios danos a uma plantao deuvas. O juiz, o bispo local, absolveu os carunchos, que ganharam o direito a um pedao de terra quelhes deveria ser destinado. Afinal, concluiu o bispo, eles so animais criados por Deus e tm omesmo direito que os humanos de se alimentar de vegetais.

    J no sculo XV, em caso semelhante, as sanguessugas do lago de Berna, na Sua, notiveram a mesma sorte dos carunchos de Saint Julian. Num processo jurdico, em 1451, elas foramexcomungadas e amaldioadas pelo bispo da regio. Isto aconteceu depois que no obedeceram auma ordem do bispo de abandonar em trs dias as guas que infestavam.

    Assim, poderamos dizer que nos sculos XV e XVI, em alguns pases da Europa no caso,Frana e Sua existia uma cultura que tinha um modo muito particular de se relacionar com o meioambiente e, em especial, com os animais. Nessa forma de ver as coisas, os animais poderiam serjulgados como criaturas de Deus, em igualdade de condies com os humanos. Mas, tambm,poderiam ser considerados criaturas do demnio e excomungados. Em ambos os casos, essasociedade relacionava-se com os animais a partir de uma viso religiosa do mundo, segundo a qualos seres da natureza respondiam a desgnios divinos ou demonacos.

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    Roteiro III

    A longa durao do planeta e os humanos,esses recm-chegados

    Agora, vamos dar uma guinada radical nessa viagem. Escolhendo uma rota mais distante eacelerando muito a velocidade de deslocamento, podemos ultrapassar a barreira do tempo histrico,indo a uma poca em que os humanos ainda no existiam. Comearemos ento a adentrar asespessas camadas dos tempos geolgicos, alcanando as diferentes idades da Terra.

    O planeta Terra formou-se h cinco bilhes de anos. As primeiras formas de vida datam de trsbilhes de anos, e os primeiros organismos vegetais, que j realizavam fotossntese, datam de doisbilhes de anos. Os primeiros animais mamferos aparecem muito mais tarde na histria da Terra: h200 milhes de anos. Os ancestrais da espcie humana, muito mais recentes, datam apenas dedois milhes de anos. E os vestgios da existncia do ser humano mais prximo da forma atual, ochamado Homo sapiens, datam de 30 mil anos atrs.

    O ecologista americano David Brower prope uma comparao entre a histria da Terra e otempo de uma semana. Diz ele:

    Tomemos os seis dias da semana para representar o que de fato se passou em cinco bilhesde anos. O nosso planeta nasceu numa segunda-feira, a zero hora. A Terra formou-se nasegunda, tera e quarta-feira at o meio-dia. A vida comea quarta-feira ao meio-dia edesenvolve-se em toda sua beleza orgnica durante os quatro dias seguintes.

    Somente s quatro da tarde de domingo que os grandes rpteis aparecem. Cinco horas maistarde, s nove da noite, quando as sequias brotam da terra, os grandes rpteis desaparecem.

    O homem surge s trs minutos antes da meia-noite de domingo. A um quarto de segundoantes da meia-noite, Cristo nasce. A um quadragsimo de segundo antes da meia-noite inicia-se a Revoluo Industrial. Agora meia-noite de domingo e estamos rodeados por pessoas queacreditam que aquilo que fazem h um quadragsimo de segundo pode durar indefinidamente.

    Essa comparao de David Brower ajuda-nos a imaginar o tempo de longa durao da Terra,dentro de uma medida que nos familiar. Para ns, que vivemos um tempo de curta durao, torna-se mais fcil entender o que se passou se transportamos, ainda que metaforicamente, toda essahistria de bilhes de anos para a escala de uma semana. Nisso tudo importante perceber que aTerra tem uma histria muito mais longa que a nossa, como espcie humana. Por isso no podemosmedir tudo apenas pelo tempo de nossa espcie no planeta, ou de nossa civilizao, e muito menosda nossa vida individual presente.

    H um tempo da Terra que poderamos chamar de tempo ecolgico, pulsandopermanentemente. como se fosse um relgio da natureza que marca as horas de um tempo que mais lento porm constante, que passa ao lado dos outros tempos por ns habitualmente contados,os quais so medidos pelas culturas. Assim o tempo histrico, que marca o incio e o declnio dasgrandes civilizaes. O tempo cristo, por exemplo, um tempo de uma civilizao que conta suahistria a partir do nascimento de Cristo. S por isso podemos dizer que hoje nos situamos no ano1998 depois de Cristo.

    Sabemos que antes de Cristo existe cerca de 28.000 anos de presena do Homo sapiens naTerra. E, como vimos, esse tempo no quase nada se comparado ao tempo de existncia doplaneta: cinco bilhes de anos. De tudo isso podemos concluir que, no tempo ecolgico, a espciehumana uma forma de vida recm- chegada. E a histria das culturas, das diferentes sociedadese civilizaes ocupa um curtssimo espao de tempo na histria ecolgica da Terra.

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    De volta estao cultura

    Uma vez colocados no nosso devido tamanho e lugar, vamos acelerar a volta para o presente.Afinal, dentro da longa histria ecolgica continuamos a ser apenas e simplesmente humanos. Seresde curta durao, habitantes do corpo vivo do planeta, a biosfera, e, nela, de pontos mais especficosainda, o nosso continente e o nosso pas. Quanto ao tempo, estamos situados no calendrio que acultura ocidental estabelece. No caso do calendrio cristo, mais usado entre ns, o ano 1998. Masos judeus ou os rabes, para citar apenas dois exemplos, contam o tempo de outro modo e, nesteexato momento, esto em anos diferentes do nosso. Tudo depende da cultura da qual fazemosparte. E isso faz toda a diferena.

    A est a principal caracterstica da espcie humana: sua capacidade de produzir cultura.Diferentes culturas, nos diferentes lugares que habita. bem verdade que tendemos a ver o mundoapenas pela lente da prpria cultura, por isso somos levados a considerar o modo de vida queadotamos como o mais correto e natural. Contudo, como vimos, basta nos distanciarmos um poucodo cotidiano cultural e olharmos atentamente nossa volta, no tempo e no espao, para logoconstatarmos quo numerosas e diversificadas so as formas culturais, por meio das quais ahumanidade se organiza pelo planeta afora.

    Assim, poderamos dizer que, apesar de muito enraizados em nossa prpria cultura, tambmtemos a capacidade de voar. Afinal, faz parte da experincia humana confrontar-se com outroslugares, outros tempos, e com isso ser surpreendidos constantemente pela diferena cultural. Istosignifica que nossos pontos de vista, nosso modo de viver e at mesmo nosso tempo no so osnicos que existem. Estamos, de certa forma, fadados a viver como viajantes nesse planeta to ricoem culturas e natureza, sem parar de descobrir diferenas e mais diferenas, outras paisagens,outras pessoas, outros costumes, outros ambientes, outras, outros, outras...

    Educao Ambiental: Valores Para uma Nova Cultura

    Quem apreciou viajar pelas rotas da diversidade est pronto para ser um educador ambiental.Isso porque a educao ambiental est intimamente associada formao de valores e atitudessensveis diversidade, complexidade do mundo da vida e, sobretudo, a um sentimento desolidariedade diante dos outros e da natureza. Por esta breve descrio percebemos que a educaoambiental e a interdisciplinaridade so prticas que se complementam, porque nascem da mesmaperplexidade e receptividade diante do mundo da vida. Tambm compartilham a experincia dedesconforto diante das posturas fechadas que esto na base de muitas atitudes humanas dedominao, intolerncia e preconceito.

    As prticas dessa educao ambiental surgem no mago do debate cultural e poltico sobre omeio ambiente, que vem ganhando espao na sociedade brasileira nas duas ltimas dcadas. Nessesentido, pode-se dizer que essa educao ambiental herdeira dos dilemas polticoscontemporneos e filha direta do debate ecolgico.

    Como sabemos, os ltimos anos ampliaram a percepo da insustentabilidade social eambiental das promessas de progresso e desenvolvimento. Esta denncia, trazida inicialmente pelomovimento ecolgico, comeou a fazer sentido tambm para outros setores da sociedade,constituindo as bases do que poderamos chamar de uma opinio pblica ambientalizada.

    Um marco recente nessa difuso da conscincia ambiental foi o processo preparatrio para aConferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que teve lugar no Rio deJaneiro em 1992 tambm conhecida como a Rio-92 ou, ainda, a ECO-92. O que aconteceu nessa

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    oportunidade foi um bom exemplo de como uma temtica especfica dos movimentos ecolgicospode ser compreendida de diferentes maneiras por outros atores da sociedade civil, como foi o casode vrios movimentos populares, de organizaes sindicais e tambm das Organizaes No-Governamentais (ONGs).

    Junto com os vrios setores da sociedade civil, os educadores tambm ampliaram suacompreenso da problemtica ambiental e vm se engajando na construo de uma nova culturaecologizada, por meio da educao ambiental. Desde o incio, a educao ambiental posicionou-sena contramo da educao chamada tradicional, disciplinar, cujos contedos fragmentados nofazem conexo com a vida das pessoas. Paulo Freire denominava de educao bancria estatradio que instituiu um professor que sabe e deposita contedos na cabea de um aluno que nosabe, o qual acumula informaes sem relacion-las umas com as outras e, muito menos, com suaprpria experincia e a vida de sua comunidade.

    A educao ambiental pode ser vista como um novo momento de um projeto pedaggico quequer construir uma grande mudana de valores e de posturas educativas. Um projeto que, naeducao, j comeou com os educadores populares desde os anos 60 e 70. Mas principalmente nosanos 80, com a consolidao das lutas ecolgicas e a emergncia da problemtica ambiental comouma questo visvel para toda a sociedade, a educao ambiental tomou impulso, no Brasil.Fortalece-se a um casamento muito interessante entre o desejo de mergulhar a educao na vida,na Histria, nas questes urgentes de nosso tempo, com a vontade de compreender e intervir nosproblemas ambientais e participar do debate poltico aberto pelos movimentos ecolgicos.

    E nada h de mais atual do que compreender o que se passa nossa volta. O que h de maisdesejvel, do ponto de vista da educao, do que preparar as pessoas para avaliar e decidir sobre oque as afeta? Assim, o surgimento da questo ambiental abriu um excelente campo para a aoeducativa questionando, inclusive, as prticas pedaggicas tradicionais. Da vem uma educaoambiental profundamente comprometida com os dilemas contemporneos.

    A formao de uma atitude tica e poltica a grande contribuio que a educao ambientalpode dar num mundo em crise como o que vivemos. No se restringindo apenas transmisso deinformaes ou inculcao de regras de comportamento, a educao ambiental est engajada naconstruo de uma nova cultura.

    Uma nova cultura gera novos comportamentos, claro, mas isso s quando os valores estoamadurecidos e criaram razes profundas em cada pessoa e na sociedade.

    Por isso, no adianta centrar todos os esforos numa educao ambiental que aposta tudo napedagogia comportamental, confundindo mudana pontual de comportamentos com formao desujeitos ticos e polticos. No jogar papel no cho sem saber o sentido mais profundo dessa atitudepode at gerar comportamentos ordeiros, preocupados com a limpeza, sem que isso representenecessariamente sensibilidade para uma tica ecolgica, solidria.

    Sociedade e natureza: tecendo relaes

    Um dos maiores desafios da educao ambiental aliar a educao dos afetos, que formapessoas amorosas e sensveis natureza, a uma educao para a cidadania, que forma sujeitosatentos aos problemas socioambientais e capazes de interferir nas decises da sociedade. O idealda educao ambiental seria formar cidados amorosamente engajados na transformao dasrelaes da sociedade com a natureza.

    A percepo de que tudo se correlaciona em relao no Universo leva a pensar o meioambiente como o lugar do encontro entre a natureza e as relaes sociais e histricas. Dessamaneira, no h como construir um ideal de convvio solidrio com a natureza sem pressupor atransformao das relaes sociais e culturais que constroem os modos individuais e coletivos deestar no mundo.

    Do ponto de vista de uma tica ecolgica que reconhece as relaes e a complexidade de tudoo que existe, muito importante compreender as diferentes vises e usos do meio ambiente que hem nossa sociedade. Perceber os problemas ambientais tendo como ponto de partida os processos

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    sociais e naturais a partir de onde eles so produzidos um dos principais objetivos de umaeducao ambiental interdisciplinar. Isso quer dizer que, partindo dos problemas cotidianos econcretos, como o que fazer com o lixo da escola, uma visita pelo bairro, um levantamento deproblemas de sade na vizinhana, uma leitura atenta do jornal dirio, possvel fazer um excelentetrabalho de educao ambiental.

    Mesmo morando num bairro afastado ou numa pequena cidade do Brasil, pode-se compreenderos problemas ambientais que afetam a populao, a partir de sua articulao com os acontecimentosnacionais e muitas vezes mundiais. Relacionar os problemas percebidos na vida diria das pessoascom o que se passa na cidade, no pas e no mundo a traduo educativa de um dos lemas maisconhecidos dos movimentos ecolgicos: Agir localmente e pensar globalmente. O mbito da aodo educador pode ser local, mas o importante ter uma viso global dos problemas. Sem isto,muitas aes educativas, mesmo bem-intencionadas, correro o grande risco de no produzirmudanas significativas na percepo e na deciso sobre os problemas ambientais.

    Aprendendo a ler o meio ambiente

    Para que a compreenso do meio ambiente leve a aes transformadoras muito importanteuma certa capacidade de ler, isto , de compreender o que se passa nele. E no basta observarpassivamente em volta. preciso participar de forma ativa perguntando, buscando os diferentespontos de vista, formulando respostas, hipteses, ou seja, significa agir como um observador quesabe ler as relaes naturais e sociais que constituem os fatos ambientais.

    A dificuldade em ler a complexidade do meio ambiente foi um dos fatos que despertaramateno na pesquisa realizada pelo Instituto Ecoar, em 1996, em So Paulo, sobre o material deeducao ambiental publicado no Brasil. Na anlise de uma infinidade de folhetos, cartilhas, livros ejogos, os temas ambientais apareceram muitas vezes tratados de forma abstrata e normativa, comose existissem fora do tempo e do espao, sem histria. A reproduo de certas afirmaes geraissobre o meio ambiente, sem um trabalho educativo de problematiz-las, pode no contribuir parauma nova compreenso das coisas, se no vier acompanhada de uma compreenso mais ampla.

    Assim, alm de afirmar que no correto jogar papel no cho, preciso procurar compreender,junto com os alunos ou grupo com o qual se trabalha, o porqu dessa atitude. No jogar papel nocho uma afirmao que pode ser entendida apenas como uma ordem, se dita isoladamente,como se bastasse por si mesma. Mas tambm pode ser entendida como um ato responsvel decidadania, de solidariedade, de compromisso com valores ecolgicos. Neste segundo caso, no setrata apenas de obedecer professora, mas, sobretudo, comprometer-se com valores de cidadania.

    Histria: uma das fontes vitais da educao ambiental

    Uma das melhores maneiras de evitar que a educao ambiental fique pairando nas idiasgerais nunca deixar de ver a que tempo histrico e espao social ela pertence. Recuperar a histrianatural e social do lugar onde atua o educador e onde vivem os educandos, escutar histrias dosenvolvidos pelos problemas ambientais do local, pesquisar os modos de vida que convivem (em pazou em conflito) na regio, observar as alteraes ambientais, econmicas, sociais e culturais queafetaram a vida naquele lugar, tudo isso praticar uma educao ambiental atenta complexidadedas relaes entre a sociedade e o meio ambiente.

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    A memria do meio ambiente

    Narramos a seguir a experincia vivida por um professor alemo, que ilustra bem a relaoentre educao ambiental e Histria. Ele deparou com um estranho problema ambiental numapesquisa que realizava em sua universidade, em uma pequena cidade: de repente a gua potvelmudou de cor e de odor, e as crianas na escola queixavam-se de problemas respiratrios. Istocausou uma srie de transtornos para a regio, que tinha no turismo uma fonte importante de renda.Uma fbrica de alimentos teve de fechar devido contaminao das guas, os imveis perderam ovalor e muitos habitantes comearam a deixar a cidade. Apesar de todas essas conseqncias,ningum sabia a origem da contaminao da gua que afetava a cidade. Todos os exames einvestigaes constatavam a contaminao por metais pesados, mas a presena de resduos txicosno podia ser atribuda a nenhuma atividade existente ali.

    Assim, para compreender esse fato ambiental, os pesquisadores da universidade comearam afreqentar as atividades sociais do lugar, ouvir as histrias do local, o que as pessoas contavam,seus temores e expectativas em relao ao que estava acontecendo. Os pesquisadores juntaram ashistrias que ouviam sobre a cidade e a regio e, aos poucos, descobriram algo que estava namemria coletiva, mas era evitado pela populao, ou seja, um fato que se tinha transformado numalembrana proibida.

    A cidade abrigara, durante a Segunda Guerra Mundial, uma grande fbrica de armamentos.Essa fbrica funcionava como campo de trabalhos forados, operando em condies subumanas,com uma mo-de-obra recrutada em reas de ocupao nazista, formada sobretudo pela populaojudaica e por opositores do regime.

    Este acontecimento, to logo passado o pesadelo da guerra, as pessoas do local trataram deesquecer. Contudo, a conscincia da populao, construda sobre esse esquecimento, conseguiumanter-se bem at que o prprio ambiente fsico denunciasse a histria que a memria se esforavaem apagar. Os resduos de uma indstria blica so altamente txicos e de difcil degradao. Osefeitos da contaminao surgem, s vezes, s depois de muito tempo, devido s lentas reaesqumicas e geolgicas que afetam os lenis de gua subterrnea. E isso era precisamente o queestava acontecendo naquela cidade7.

    Este um exemplo de como o solo, o ar e a gua fizeram reaparecer uma histria que aquelapopulao teria preferido esquecer. A memria do meio ambiente guardava as marcas da guerra nasociedade alem, e seus efeitos nefastos ainda afetavam a regio pela contaminao tardia da gua.

    O que aconteceu na Alemanha revela como tambm aqui e em outro lugar qualquer a Histria ea natureza esto intimamente entrelaadas. A natureza histrica porque guarda as marcas do queacontece, s vezes com mais exatido do que a memria humana. O meio ambiente um retrato,para aqueles que sabem ver, das interaes, das aes, dos estilos de vida e dos valoresempreendidos historicamente pelas sociedades humanas.

    7 Esta experincia relatada pelo Prof. Hans-Georg Flickinger em seu artigo O ambiente epistemolgico da educaoambiental In: Revista Educao e Realidade , v.19, n.12, jul./dez., Porto Alegre, UFRGS, Faculdade de Educao, 1994.

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    Uma Viso Interdisciplinar da Realidade:Diagnsticos Socioambientais.

    Como vimos no captulo anterior, ler o meio ambiente apreender um conjunto de relaessociais e de processos naturais, captando as dinmicas de interao entre as dimenses culturais,sociais e naturais, na configurao de uma dada realidade socioambiental. Uma atividade muitoutilizada para evidenciar essa complexa trama de relaes e tornar oportuna uma ao educativa arealizao de diagnsticos socioambientais

    Apresentamos a seguir trs modalidades de diagnsticos que podem auxiliar a estruturaratividades voltadas para um conhecimento da realidade socioambiental. Na rea educacional essaatividade pode lembrar o que tambm j se chamou de estudos do meio. Contudo, quando essaprtica retorna, agora no contexto da educao ambiental, est renovada, incorporando novastemticas e preocupaes, como o caso da interdisciplinaridade.

    Os diagnsticos ambientais que passamos a apresentar foram construdos como frutos deexperincias de trabalho de diferentes educadores e instituies, inseridos em contextossocioambientais determinados, e no devem ser encarados como modelos que se aplicam a qualquersituao ou a grupos de todas as idades. Longe de padronizar procedimentos, estes diagnsticosdevem ser vistos como pontos de partida para a elaborao de atividades que podem estimular osgrupos a perceberem as relaes socioambientais que constituem uma certa realidade.

    As formas de fazer diagnsticos so variadas e devem ser enriquecidas e adaptadas snecessidades de cada grupo: faixa etria, caractersticas socioambientais da escola ou da situaoeducativa em questo. A idia que sirvam como um guia til para que cada educador possa gerarseu prprio diagnstico, combinando e recriando as propostas luz de sua prpria experincia eintuies.

    Diagnstico socioambiental de uma regio

    Este um diagnstico bsico que cobre uma ampla variedade de caractersticas fsicas esociais de uma regio em estudo. Foi elaborado no contexto de um curso promovido peloMovimento de Atingidos por Barragens, junto com o Centro Ecumnico de Documentao eInformao CEDI.8

    Primeiro passo: delimitar, junto com os alunos, o espao que ser diagnosticado. Pode-se fazer odiagnstico de uma propriedade rural, de uma localidade, de um municpio ou de uma regio,dependendo do nvel da turma.

    Segundo passo: levantar os conhecimentos que os alunos j tm sobre a regio. Essesconhecimentos podem ser obtidos por meio de conversas sobre h quanto tempo estes alunosmoram no lugar, o que sabem da histria da regio, o que seus pais podem contar dastransformaes que esse lugar sofreu desde que se mudaram para l, etc. A partir desse

    8 Este diagnstico est publicado no livro Educao Ambiental; uma abordagem pedaggica dos temas da atualidade, Riode Janeiro, CEDI/CRAB, 1992, pp. 70-74.

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    levantamento, preciso organizar os aspectos da realidade que sero estudados e as formas delevantamento dos dados. Sugerimos como mtodos de coleta de dados e informaes:

    < Pesquisa em livros ou jornais.< Visitas a propriedades rurais, matas, rios, represas, indstrias, usinas, estaes de

    tratamento, etc. importante que o professor prepare essas visitas, destacando osprincipais aspectos que os alunos devem observar. (Os alunos tambm devem serorientados a anotar e ilustrar suas observaes).

    < Entrevistas com moradores da regio.

    importante que o educador ajude os alunos a elaborarem roteiros de entrevistas simples,enfocando os aspectos mais importantes, de modo a capacit-los a registrar e absorver asinformaes obtidas.

    Como um dos objetivos do diagnstico perceber a transformao da regio estudada e avaliaros efeitos das atividades humanas no meio ambiente, importante que a situao atual seja semprecomparada de pocas anteriores. As informaes sobre o passado da regio podem ser obtidas emlivros ou em outros documentos histricos e, principalmente, mediante depoimento dos moradoresmais antigos que testemunharam possveis alteraes no meio ambiente local.

    A seguir esto relacionados os tpicos que podem compor o diagnstico socioambiental de umaregio. O tipo, a quantidade e a complexidade das informaes levantadas devem ser selecionadospelos educadores, considerando as caractersticas da regio e o nvel das turmas de alunos. Oeducador pode privilegiar a observao de determinados aspectos relacionados a contedoscurriculares que desejam desenvolver.

    Atividades Agropecurias

    < Plantaes, as tradicionais e quais foram introduzidas recentemente.< Como esto distribudas no espao.< Plantaes perenes ou temporrias.< Como so obtidas as sementes.< Que tipo de mo-de-obra utilizada.< Mquinas agrcolas.< Adubos e formas de correo do solo.< Utilizao de agrotxicos.< Problemas de sade devido ao uso de agrotxicos.< Formas de estocagem e escoamento dos produtos.< Tcnicas de criao de animais, tradicionais e recentes.< Localizao de pastos e abrigos.< Utilizao de remdios veterinrios.< Tratamento dos dejetos animais.< Consumo e escoamento dos produtos animais.

    Habitao

    < Identificao dos locais de moradia da populao.< Caracterizao das habitaes.< Sistemas de gua e esgoto.< Destinao do lixo domstico.

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    Relevo e solos

    < Localizao e identificao de serras, planaltos, plancies, encostas, vales, vrzeas, etc.< Vegetao caracterstica das unidades de relevo.< Diferentes tipos de solos.< Identificao dos problemas de eroso e desertificao.< Tcnicas utilizadas para evitar eroso.< Mudanas no relevo ou na qualidade dos solos (observadas por moradores mais antigos).

    Recursos hdricos

    < Identificao e localizao de rios, crregos, nascentes, lagos, barragens, poos.< Utilizao dos recursos hdricos para irrigao, abastecimento de gua, produo de

    energia.< Proximidade de fossas e abrigos de animais, de nascentes, poos e rios.< Qualidade da gua, aspecto, odor e movimentao, diferenas entre a situao atual e a

    anterior.< Existncia