EMERSON CERDAS - Unesp

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unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP EMERSON CERDAS A CIROPEDIA DE XENOFONTE: Um romance de formação na Antiguidade Araraquara 2011

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unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ldquoJUacuteLIO DE MESQUITA FILHOrdquo

Faculdade de Ciecircncias e Letras Campus de Araraquara - SP

EMERSON CERDAS

A CIROPEDIA DE XENOFONTE

Um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade

Araraquara 2011

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EMERSON CERDAS

A CIROPEDIA DE XENOFONTE

Um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade

Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras da Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo ndash UNESP Cacircmpus de Araraquara visando agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Estudos Literaacuterios

Orientadora Profa Dra Maria Celeste Consolin Dezotti Linha de Pesquisa Teoria e Criacutetica da Narrativa Bolsa FAPESP

Araraquara

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EMERSON CERDAS

A CIROPEDIA DE XENOFONTE

Um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade

Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras da Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo ndash UNESP Cacircmpus de Araraquara visando agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Estudos Literaacuterios

Teoria e Criacutetica da Narrativa

FAPESP

Data de aprovaccedilatildeo 05052011

MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA

Presidente e Orientador Profa Dra Maria Celeste Consolin Dezotti UNESPFCLAraraquara

Membro Titular Prof Dr Claacuteudio Aquati UNESPIBILCESatildeo Joseacute do Rio Preto

Membro Titular Profa Dra Maacutercia Valeacuteria Zamboni Gobbi UNESPFCLAraraquara

Local Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciecircncias e Letras UNESP ndash Campus de Araraquara

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A meus pais Claacuteudio e Filomena

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AGRADECIMENTOS Agrave Profa Dra Maria Celeste Consolin Dezotti pela formaccedilatildeo helenista e humana pela confianccedila e apoio e sobretudo pela amizade Agrave Profa Dra Maacutercia V Zamboni Gobbi agrave Profa Dra Wilma Patriacutecia M Dinardo Maas e ao Prof Dr Claacuteudio Aquati pelas valiosiacutessimas leituras que renderam valiosiacutessimas contribuiccedilotildees e pela generosidade de seus comentaacuterios Ao Prof Dr Henrique Cairus e agrave Profa Dra Maria Aparecida de Oliveira Silva pelas contribuiccedilotildees precisas Aos Professores Fernando Edvanda Anise e em especial agrave professora Claacuteudia pela formaccedilatildeo e encaminhamento nesta via sem volta que eacute a paixatildeo pela Heacutelade Agrave minha matildee Filomena pela eterna dedicaccedilatildeo agrave famiacutelia e aos cuidados prestimosos Ao meu pai Claacuteudio que primeiro me apresentou o maacutegico mundo da leitura com seu exemplo de leitor ndash saudades eternas Aos meus irmatildeos Viviane Anderson e Eliane principalmente pela compreensatildeo da ausecircncia e em especial agrave minha irmatilde Luciene e ao Brunno pela hospedagem intelectual nos meus anos de graduaccedilatildeo Agrave Patriacutecia presente e auxiliante nos momentos mais difiacuteceis e pelo incentivo seguro e sincero agredeccedilo profundamente Agrave FAPESP cujo financiamento deste trabalho possibilitou que ele se desenvolvesse tal qual o desejado Aos amigos Ceacutesar Augusto Ceacutesar Henrique Itamar Joatildeo Daniele Ceacutesar Erasmo Priscila Marco Aureacutelio sempre presentes

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O historiador e o artista ao relatarem uma eacutepoca tecircm finalidades completamente diferentes [] A diferenccedila torna-se mais sensiacutevel e essencial quando se trata de descrever acontecimentos O historiador considera os resultados de um acontecimento o artista o proacuteprio acontecimento Leoacuten Tolstoi

A uacutenica coisa que devemos agrave histoacuteria eacute a tarefa de reescrevecirc-la Oscar Wilde

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RESUMO A Ciropedia de Xenofonte escrita no seacuteculo IV aC eacute uma obra de caraacuteter hiacutebrido em que a ficccedilatildeo e a histoacuteria se mesclam com muita liberdade Em virtude disto tem-se discutido qual seria a melhor classificaccedilatildeo de gecircnero para a obra romance biograacutefico obra historiograacutefica romance histoacuterico A presente dissertaccedilatildeo investiga em que medida a Ciropedia de Xenofonte apresenta elementos narrativos que nos permitam reconhecer nela aspectos do gecircnero do romance mais especificamente do ldquoromance de formaccedilatildeordquo (Bildungsroman) gecircnero cujo paradigma se encontra na obra de Goethe Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister (1795-1796) Primeiramente procuramos definir em que medida noacutes podemos ler a Ciropedia como uma obra de ficccedilatildeo e natildeo como uma obra historiograacutefica a partir de reflexotildees a respeito das relaccedilotildees entre Literatura e Histoacuteria e principalmente por meio de uma anaacutelise comparativa entre a narrativa da Ciropedia com a narrativa das Histoacuterias de Heroacutedoto Percebe-se que Xenofonte ficcionaliza a narrativa estabelecida por Heroacutedoto seja retomando temas seja fazendo alusotildees agrave narrativa herodoteana Em seguida partindo-se da noccedilatildeo bakhtiniana de que todo gecircnero conserva em sua estrutura elementos formais da archaica que natildeo soacute caracterizam o gecircnero de forma distintiva mas tambeacutem permitem a sua renovaccedilatildeo a cada nova manifestaccedilatildeo literaacuteria procuramos definir quais elementos essenciais presentes no Romance de Formaccedilatildeo moderno encontramos na Ciropedia Analisamos cenas em que satildeo evidentes a partipaccedilatildeo de mentores a presenccedila de uma instituiccedilatildeo pedagoacutegica a visatildeo teleoloacutegica da educaccedilatildeo Aleacutem disso uma das caracteriacutesticas essenciais do ldquoRomance de Formaccedilatildeordquo eacute a presenccedila de uma personagem dinacircmica e evolutiva que se forma e educa no decorrer da narrativa Analisamos a construccedilatildeo e evoluccedilatildeo da personagem principal da narrativa Ciro por meio da anaacutelise da locuccedilatildeo de maacuteximas A dissertaccedilatildeo apresenta a traduccedilatildeo completa do Livro I da Ciropedia Palavras-chaves Romance antigo Romance de formaccedilatildeo Histoacuteria e Literatura Historiografia Xenofonte Ciropedia

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ABSTRACT

The Xenophonrsquos Cyropaedia written in the fourth century BC it is a work of hybrid character in which fiction and history mingle with a lot of freedom Because of this it has been discussed what would be the best genre classification for the work biographical novel work of historiography historical novel This dissertation investigates the extent to which Cyropaedia Xenophons narrative has elements that allow us to recognize aspects of her romance genre specifically the ldquoNovel of Educationrdquo (Bildungsroman) genre whose paradigm is in the work Goethersquos Wilhelm Meisters Apprenticeship (1795-1796) First we looked to define to what extent we can read the Cyropaedia as a work of fiction and not as a work of historiography from reflections on the relationship between Literature and History and mainly through a comparative analysis between the narrative of Cyropaedia and the narrative of Herodotusrsquo Histories We realize that Xenophon fictionalizes the narrative established by Herodotus whether taking up subjects or alluding to the Herodotus narratives Then starting from the Bakhtins notion that every genre preserves in the structure formal elements of archaica that not only characterize the genre in the form distinctive but also allows its renewal every new literary manifestation we tried to define which essential elements present in modern novel of education we can find in Cyropaedia We analyze scenes where are evident the action of mentors the presence of an educational institution the theological view of education Moreover an important characteristic essential of the ldquoNovel of Educationrdquo is the presence of a dynamic and evolutionary character that get formation in the course of the narrative We analyzed the construction and evolution of the main character of the narrative Cyrus by the analyzing of the expression of maxims The dissertation presents a full translation of Book I of Cyropaedia Keywords Ancient novel Novel of education History and Literature Historiography Xenophon Cyropaedia

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SUMAacuteRIO

INDIacuteCE DE FIGURAS E QUADROS 10

1 INTRODUCcedilAtildeO 11

2 INTRODUCcedilAtildeO Agrave CIROPEDIA 17

21 O AUTOR 17 211 Vida 17 212 Corpus Xenofontis 21

22 CIROPEDIA 24 221 O tiacutetulo 24 222 Siacutentese da narrativa 25 223 A Ciropedia e a ideologia poliacutetica do seacuteculo IV 29 224 A Ciropedia na tradiccedilatildeo da narrativa 33 2241 O conceito de romance e seu uso anacrocircnico 34 2242 A ficccedilatildeo em prosa na Greacutecia 37 2243 Modos de Imitaccedilatildeo da Ciropedia 42

3 REESCREVENDO O PASSADO FICCIONALIZANDO A HISTOacuteRIA 45

31 HISTOacuteRIA E LITERATURA 45 32 CIRO NA HISTOacuteRIA E NA FICCcedilAtildeO 55

321 O ΛόΓΟΣ DE CIRO NA HISTOacuteRIA DE HEROacuteDOTO 57 322 Origem e infacircncia de Ciro 58 323 A cena de Creso o encontro dos monarcas 64 3231 Preparativos 64 3232 Creso prisioneiro de Ciro 67 3233 A intertextualidade e a reescrita da histoacuteria 76 324 A Morte de Ciro 77

33 O CIRO EacutePICO E O CIRO TRAacuteGICO 80

4 CIROPEDIA UM ROMANCE DE FORMACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE 85

41 BILDUNGSROMAN E SUAS ORIGENS 86 42 A PAIDEacuteIA COMO TEMA DA NARRATIVA O PROEcircMIO (CIROP I11-6) 91 43 AS ARCHAICA DO ROMANCE DE FORMACcedilAtildeO 97

431 A Instituiccedilatildeo educacional a paideia persa e a consciecircncia teleoloacutegica 97 432 Enganos e desmedidas a participaccedilatildeo dos mentores 108 4321 Afastamento da casa paterna Visita agrave Meacutedia 112 4322 Cambises mentor de Ciro (Cirop 16) 116

44 O GRAU DE ASSIMILACcedilAtildeO DO TEMPO HISTOacuteRICO 125 45 XENOFONTE EDUCADOR 130

5 IMAGEM E EVOLUCcedilAtildeO DO HEROacuteI DA CIROPEDIA 133

51 A MAacuteXIMA ESTRUTURA E CONTEUacuteDO 134 52 O HEROacuteI-SAacuteBIO 139

521 Quem fala quem ouve o contexto das maacuteximas na Ciropedia 140

53 O PERCURSO DE CIRO A FORMACcedilAtildeO DO ΔΙΔάΣΚΑΛΟΣ 153

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 159

7 TRADUCcedilAtildeO 163

8 BIBLIOGRAFIA 187

81 EDICcedilOtildeES E TRADUCcedilOtildeES DE XENOFONTE 187

82 AUTORES ANTIGOS 187

83 OUTROS AUTORES 189

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IacuteNDICE DE FIGURAS E QUADROS

FIGURAS Figura 1 Ciro na corte do rei Astiacuteages 63 Figura 2 Creso a ponto de ser incendiado a mando de Ciro Acircnfora grega 75 Figura 3 Ciro comandando o exeacutercito persa 124 Figura 4 Cilindro de Ciro 158 QUADROS Quadro 1 Maacuteximas da Ciropedia 139 Quadro 2 Maacuteximas de guerra proferidas por Ciro 154 Quadro 3 Maacuteximas gerais proferidas por Ciro 154

11

1 Introduccedilatildeo

Redescobrir uma obra literaacuteria que tem sido desvalorizada pela criacutetica eacute uma

tarefa aacuterdua a que o estudioso estaacute sujeito poreacutem uma tarefa intensamente gratificante

A presente Dissertaccedilatildeo de Mestrado trata da Ciropedia de Xenofonte que se na

Antiguidade e no Renascimento foi muito apreciada nos dois uacuteltimos seacuteculos tem sido

rotulada de obra tediosa graccedilas principalmente ao seu caraacuteter idealista

O nosso interesse pela Ciropedia de Xenofonte nasceu em virtude das relaccedilotildees

da obra com a origem do gecircnero do romance Pareceu-nos que a Ciropedia apresentava

importantes inovaccedilotildees no campo da narrativa ficcional do Ocidente Aleacutem disso alguns

criacuteticos como Lesky (1986) e Bakhtin (2010) a classificam como um romance de

formaccedilatildeo um dos principais subgecircneros do romance moderno Apesar disso a obra natildeo

tem recebido atenccedilatildeo dos estudiosos do romance e mesmo no acircmbito da literatura

antiga a obra natildeo tem dispertado o interesse dos pesquisadores Observe-se que em

liacutengua portuguesa natildeo haacute estudos a respeito de Xenofonte

A criacutetica norte-americana no entanto a partir do estudo de Higgins (1977)

mostrou uma nova postura em relaccedilatildeo agraves obras de Xenofonte como um todo Sobre a

Ciropedia podemos citar os importantes trabalhos de Tatum (1989) Due (1989) e Gera

(1993) Os trabalhos destes trecircs autores satildeo relevantes pois tomam a Ciropedia como

objeto de estudo literaacuterio nem histoacuterico nem filosoacutefico Por este vieacutes os trabalhos

revelaram um escritor muito superior agravequele que a criacutetica da Histoacuteria do iniacutecio do seacuteculo

XX quis apresentar Pretendemos portanto analisar a Ciropedia como uma obra

literaacuteria mais especificamente como uma narrativa ficcional Ressaltamos que a nosso

ver um estudo aprofundado desta obra pode ajudar-nos a compreender melhor as

origens do romance moderno

Xenofonte viveu e produziu suas obras na Greacutecia do seacuteculo IV periacuteodo de

profundas mudanccedilas sociais poliacuteticas e culturais que assistiu tanto agrave decadecircncia do

Seacuteculo de Ouro de Peacutericles quanto agrave pavimentaccedilatildeo de um solo feacutertil para o surgimento

do helenismo (GLOTZ 1980 p240) No helenismo os ideais ciacutevicos e coletivos do

seacuteculo V aC foram substituiacutedos por um individualismo novo cuja preocupaccedilatildeo maior

era com a vida particular do indiviacuteduo Xenofonte foi um precursor do helenismo tanto

por suas posturas na vida puacuteblica quanto pela sua produccedilatildeo literaacuteria Podemos dizer que

foi um homem de vanguarda que se distanciou das ideias do seacuteculo anterior e pelas

12

novidades que apresentou foi muito admirado pelos escritores do helenismo No

capiacutetulo 2 Introduccedilatildeo agrave Ciropedia apresentamos algumas informaccedilotildees biograacuteficas a

respeito de Xenofonte e a respeito do contexto histoacuterico em que Xenofonte viveu e

produziu suas obras Aleacutem disso mostramos a questatildeo da prosa ficcional na Greacutecia

claacutessica e como a Ciropedia se insere nesta tradiccedilatildeo

Uma das principais dificuldades que se potildee ao estudioso da Ciropedia eacute

classificar a obra quanto ao gecircnero A intensa polecircmica sobre o enquadramento geneacuterico

da Ciropedia deve-se principalmente ao fato de a obra tratar de um tema histoacuterico (a

vida de Ciro o Velho) com liberdade manipulando ficcionalmente o material histoacuterico

conhecido A partir disso a obra tem sido designada de diversas maneiras

historiografia biografia histoacuteria romanceada biografia romanceada romance

filosoacutefico romance didaacutetico tratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Neste trabalho

efetuamos uma anaacutelise literaacuteria da Ciropedia no que tange seus aspectos romanescos

procurando argumentar que por meio de tais aspectos a obra de Xenofonte pode ser

lida como um romance ou proto-romance1

Classificar a obra por um determinado vieacutes significa necessariamente rejeitar as

outras classificaccedilotildees propostas pelos criacuteticos Poreacutem natildeo significa que na tessitura

narrativa da obra os elementos discursivos daqueles outros gecircneros natildeo estejam

presentes todavia a presenccedila por exemplo de elementos historiograacuteficos natildeo eacute o fator

determinante de caracterizaccedilatildeo da obra uma vez que eles estatildeo romancizados nela ou

seja estatildeo a serviccedilo de uma proposta ficcional que difere dos objetivos do texto

historiograacutefico Constituem portanto como traccedilos estiliacutesticos que adornam a narrativa

mas que natildeo a enformam natildeo a determinam

A argumentaccedilatildeo de que a Ciropedia pode ser lida como um romance deve

entatildeo levar em conta a anacronia do uso terminoloacutegico do romance A palavra romance

data do seacuteculo XII dC e referiu-se primeiramente agraves produccedilotildees literaacuterias em liacutenguas

romacircnicas em oposiccedilatildeo agraves obras literaacuterias produzidas em liacutenguas claacutessicas neste

contexto o termo romance designava tanto narrativas em prosa quanto narrativas em

verso Apenas no seacuteculo XV o termo passa a designar narrativas de ficccedilatildeo em prosa

Neste sentido o romance tem sido teorizado como um fenocircmeno estritamente moderno

proacuteprio das sociedades burguesas Para Lukaacutecs (1999) a forma do romance estabelece

1 A falta de uma terminologia entre os antigos para definir as obras de ficccedilatildeo em prosa torna necessaacuterio o uso anacrocircnico do termo romance Ressaltamos que tal uso deve levar em conta determinadas ressalvas para que natildeo pareccedilamos ingecircnuos ao efetuar tal classificaccedilatildeo anacrocircnica

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uma oposiccedilatildeo entre indiviacuteduo e sociedade entre os impulsos daquele frente agraves

imposiccedilotildees desta O heroacutei romanesco portanto eacute o heroacutei problemaacutetico que

contestando os valores impostos pela sociedade inicia uma querela interna ou externa

contra esta opressatildeo Estes aspectos segundo Lukaacutecs (1999) satildeo proacuteprios da sociedade

burguesa e portanto o romance eacute um fenocircmeno artiacutestico desta sociedade

A teoria do romance proposta por Bakhtin tem o meacuterito entre muitos outros de

ampliar esta visatildeo lukacseana do romance Bakhtin natildeo nega o caraacuteter moderno da

forma do romance poreacutem observa em seus trabalhos de poeacutetica histoacuterica que o discurso

romanesco eacute fruto de um desenvolvimento longo provindo mesmo da Antiguidade e

que se desenvolveu plenamente na Modernidade Isso significa que aleacutem do romance

moderno haacute outras formas romanescas antes deste romance que satildeo essenciais para a

formaccedilatildeo do gecircnero O surgimento de uma obra e a sua permanecircncia estabelecem novos

criteacuterios literaacuterios que satildeo imitados ou negados pelos novos escritores Neste sentido o

desenvolvimento discursivo do romance pode e deve ser pesquisado em outros acircmbitos

para aleacutem do romance moderno para que o compreendamos da forma mais ampla

possiacutevel Desse modo a teoria de Bakhtin cujo conceito de romance adotamos

estabelece criteacuterios de anaacutelise e conceitos fundamentais para o nosso estudo

Aleacutem disso as poeacuteticas claacutessicas natildeo se interessaram pelas narrativas de ficccedilatildeo

em prosa e o gecircnero natildeo foi reconhecido pelo cacircnone claacutessico Por causa disso natildeo haacute

na Antiguidade uma terminologia especiacutefica para as prosas ficcionais Palavras como

argumentum e πλάσμα (plaacutesma) foram usadas respectivamente por Macroacutebius e o

Imperador Juliano para se referirem ao romance idealista grego cuja produccedilatildeo data do

periacuteodo entre os seacuteculos I aC e IV dC Por isso para Whitmarsh (2008 p3) o uso

anacrocircnico do termo romance ou novel natildeo eacute soacute um roacutetulo conveniente mas tambeacutem

necessaacuterio para o trabalho do criacutetico Holzberg (2003 p11) a despeito do anacronismo

dos termos dada a semelhanccedila entre as formas antigas e modernas acredita que

devemos aceitar sem dificuldades tais anacronismos Para Holzberg (2003) o real

problema eacute discutir quais as obras da Antiguidade podem ser chamadas de romance O

conceito de gecircnero deve ser legitimado nesse contexto fixando criteacuterios precisos para a

classificaccedilatildeo dessas obras

Em geral reconhecem-se como romance na Antiguidade as narrativas idealistas

gregas Nestas narrativas o tema amoroso e o da viagem configuram-se como uma

unidade caracterizadora Um jovem casal apaixonado de compleiccedilatildeo e alma perfeitas eacute

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separado pelas vicissitudes do acaso Na separaccedilatildeo enfrentam todo tipo de obstaacuteculos

para um possiacutevel reencontro poreacutem eles se preservam fieacuteis um ao outro ateacute que no

final vencidos todos os obstaacuteculos eles podem viver juntos e felizes Basicamente esta

estrutura estaacute presente nos romances As Etioacutepicas de Heliodoro Queacutereas e Caliacuterroe de

Caacuteriton de Afrodiacutesias Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio Daacutefnis e Cloeacute de Longo e

As Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso Acrescentam-se ainda duas obras latinas que

combinam os temas de amor e de aventura com a mordaz saacutetira da sociedade Satyricon

de Petrocircnio e O Asno de ouro de Apuleio Por causa deste caraacuteter homogecircneo na

estrutura interna e pela sua finalidade luacutedica Holzberg (2003) define estas obras como

novels proper ou seja romances de fato

Para Holzberg (2003) a relaccedilatildeo da Ciropedia com os novels proper eacute legitimada

pela presenccedila de uma narrativa secundaacuteria a narrativa de Panteacuteia e Abradatas De fato

interligada agrave narrativa principal esta narrativa secundaacuteria apresenta os principais

elementos do tema amoroso do romance idealista grego o amor puro dos protagonistas

que satildeo personagens completamente ficcionais a separaccedilatildeo dos namorados a fidelidade

constantemente posta agrave prova e por fim o reencontro dos apaixonados Esta narrativa

foi muito famosa na Antiguidade e segundo alguns teorizadores do romance antigo

serviu de modelo para o romance idealista grego

No entanto uma vez que a estrutura da Ciropedia natildeo se resume agrave estrutura de

narrativas amorosas erotikoi logoi mas abrange outras haacute dificuldade por parte dos

criacuteticos (por exemplo BRANDAtildeO 2005 GUAL 1988) em aceitaacute-la como um

romance propriamente dito Devemos portanto observar para aleacutem da estrutura da

narrativa amorosa outros elementos da Ciropedia que se configuram como ficcionais e

romanescos e por meio da anaacutelise destes eacute que poderemos compreender a obra de fato

Ao lado dos novels proper Holzberg (2003) chama a atenccedilatildeo para os novels

fringe romances perifeacutericos obras de ficccedilatildeo em prosa que apresentam natildeo soacute uma

variedade temaacutetica muito mais ampla do que a dos novels proper mas tambeacutem uma

aproximaccedilatildeo com outros gecircneros discursivos (historiografia filosofia etc) Esta

aproximaccedilatildeo dificulta a demarcaccedilatildeo de limites precisos nessas obras em que a ficccedilatildeo se

relaciona com algum objetivo didaacutetico ou informativo e assim Holzberg (2003) atribui

a este grupo as mais variadas obras a-) biografia ficcional Ciropedia de Xenofonte

Vida e Andanccedilas de Alexandre da Macedocircnia de Pseudo-Caliacutestenes Vida de Esopo

(anocircnimo) Vida de Apolocircnio de Tiana de Filoacutestrato Atos dos apoacutestolos apoacutecrifos b-)

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autobiografia ficcional Pseudo-Clemente c-) Cartas ficcionais Cartas de Eacutesquines

Cartas de Quioacuten Cartas de Euriacutepides Cartas de Hipoacutecrates Cartas de Platatildeo Cartas

de Soacutecrates e dos socraacuteticos e Cartas de Temiacutestocles

Aleacutem da diferenccedila temaacutetica os novels proper narram a histoacuteria de personagens

completamente inventadas ao contraacuterio dos novels fringe que ficcionalizam um dado

material histoacuterico A mais antiga dos novels fringe eacute a Ciropedia de Xenofonte escrita

por volta de 360 aC

Portanto no capiacutetulo 3 Reescrevendo o passado ficcionalizando a histoacuteria

observaremos as relaccedilotildees entre a ficccedilatildeo e a histoacuteria uma vez que o narrador se utiliza de

dados histoacutericos na construccedilatildeo da ficccedilatildeo na Ciropedia e demonstraremos como a

histoacuteria eacute manipulada incrementada e embelezada com ficccedilatildeo Nosso objetivo neste

capiacutetulo eacute a partir da anaacutelise argumentar que a Ciropedia natildeo eacute uma narrativa

historiograacutefica nos moldes do projeto estabelecido por Heroacutedoto e desenvolvido por

Tuciacutedides mas uma narrativa ficcional de tema histoacuterico Isso significa que a ficccedilatildeo se

mescla ao texto histoacuterico e com ele se confunde por meio desta estrateacutegia narrativa o

leitor eacute persuadido da verdade dos fatos narrados pela obra ficcional natildeo da verdade

enquanto fato veriacutedico mas como construccedilatildeo verossiacutemil

O capiacutetulo 4 Ciropedia um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade e o

capiacutetulo 5 Imagem e evoluccedilatildeo do heroacutei da Ciropedia constituem um bloco temaacutetico

em nossa Dissertaccedilatildeo Ambos por meios diferentes tratam da trajetoacuteria e do caraacuteter da

personagem principal da narrativa o heroacutei da Ciropedia e em ambos demonstraremos

que Ciro natildeo eacute uma personagem estaacutetica formada desde o iniacutecio da narrativa mas uma

personagem dinacircmica que evolui no decorrer da narrativa A personagem dinacircmica eacute

segundo Bakhtin (2010) a principal caracteriacutestica do romance de formaccedilatildeo o que o

distingue dos outros tipos de romance

No capiacutetulo 4 Ciropedia um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade o nosso

foco eacute a possiacutevel classificaccedilatildeo da obra xenofonteana como romance de formaccedilatildeo

gecircnero moderno cujo paradigma eacute a obra Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister

de Goethe escrita no seacuteculo XVIII Para efetuarmos nossa anaacutelise recorreremos aos

estudos a respeito do romance de formaccedilatildeo para identificar as estruturas que ainda hoje

caracterizam o gecircnero Segundo Bakhtin (2010) todo gecircnero conserva na dinacircmica de

sua produccedilatildeo e reproduccedilatildeo determinadas estruturas que lhe satildeo caracterizadoras e satildeo

denominadas de archaica A permanecircncia destas estruturas natildeo eacute um fenocircmeno estaacutetico

poreacutem um fenocircmeno dinacircmico que se renova a cada nova manifestaccedilatildeo artiacutestica e

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renovando-se permanecem como traccedilos distintivos do gecircnero Eacute por meio deste caraacuteter

de permanecircncia das estruturas que os leitores reconhecem se determinada obra pertence

ou natildeo a um gecircnero Aleacutem disso reconhecendo estes elementos podemos identificar a

histoacuteria do gecircnero os principais movimentos estruturais que determinam o

desenvolvimento da forma artiacutestica Desse modo a anaacutelise da archaica eacute fundamental

em um trabalho de poeacutetica histoacuterica

No capiacutetulo 5 Imagem e evoluccedilatildeo do heroacutei da Ciropedia analisaremos o

caraacuteter evolutivo de Ciro por meio do estudo de maacuteximas As maacuteximas configuram-se

como um discurso didaacutetico de grande potencial retoacuterico e apresentam na tessitura

narrativa da Ciropedia a nosso ver um importante papel na construccedilatildeo da personagem

principal Seraacute feito um levantamento das maacuteximas formuladas no decorrer de toda a

obra e uma avaliaccedilatildeo da forma como essas maacuteximas aparecem atentando-se para o

enunciador o destinataacuterio e o contexto de enunciaccedilatildeo e como elas participam da

formaccedilatildeo de Ciro Por meio desta anaacutelise poderemos observar a evoluccedilatildeo da

personagem

Segundo Aristoacuteteles na Retoacuterica as maacuteximas apresentam um caraacuteter eacutetico uma

vez que emitem um preceito moral decorrente de se pretender uma ldquonorma reconhecida

do conhecimento do mundordquo (LAUSBERG 1966 p235) Aleacutem disso por emitirem um

preceito moral natildeo soacute revelam as preferecircncias do orador mas o proacuteprio caraacuteter dele

Aleacutem disso como efeito retoacuterico as maacuteximas contecircm em si um elemento discursivo

extremamente poeacutetico que se relaciona muito menos com o conteuacutedo da mensagem do

que com a forma de sua expressatildeo Neste sentido o uso de maacuteximas aliado a outros

expedientes retoacutericos revela tambeacutem um esforccedilo de embelezar o discurso prosaico

A Ciropedia de Xenofonte eacute uma narrativa ficcional de caraacuteter idealizante que

trata da vida de Ciro o Velho fundador do Impeacuterio persa O principal interesse de

Xenofonte eacute discutir sobre a arte de governar poreacutem ao inveacutes de fazer um tratado sobre

o tema ele faz suas reflexotildees em forma de uma narrativa biograacutefica O tema da vida de

Ciro uma personagem especiacutefica do passado eacute representado como paradigma da arte de

governar Para efetuar esta representaccedilatildeo Xenofonte desatrela-se da fidelidade agrave

histoacuteria que para os antigos soacute pode ser alcanccedilada por meio da verdade e ficcionaliza

esse passado Eacute nosso objetivo portanto analisar como Xenofonte constroacutei a sua ficccedilatildeo

reconhecer os elementos romanescos e observar o grau de inovaccedilatildeo literaacuteria apresentado

por esta narrativa xenofonteana

17

2 Introduccedilatildeo agrave Ciropedia

Εἰ καὶ σέ Ξενοφῶν Κραναοῦ Κέκροπός τε πολῖται

φεύγειν κατέγνων τοῦ φίλου χάριν Κύρου

ἀλλὰ Κόρινθος ἔδεκτο φιλόξενος ᾗ σὺ φιληδῶν

(οὕτως ἀρέσκῃ) κεῖθι καὶ μένειν ἔγνως2 Dioacutegenes Laeacutercio

Antologia Palatina 7981

21 O autor

211 Vida

Xenofonte3 nasceu por volta de 430 aC na Aacutetica no demo de Eacuterquia4 em

plena guerra do Peloponeso Descendente de uma famiacutelia abastada de proprietaacuterios

rurais era filho de Grilo5 e acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense na primeira

fase de sua vida Sua origem e educaccedilatildeo aristocraacutetica emergem de forma clara por toda

sua obra ao condenar muitas das accedilotildees dos poliacuteticos democratas6 Conforme

comentaacuterio drsquoAs Helecircnicas7 (1994) Xenofonte participou da cavalaria ateniense tanto

na Liacutedia em 410 aC8 quanto ao lado dos oligarcas do Governo dos Trinta na

turbulenta Atenas poacutes-Peloponeso9 Para Jaeger (1995 p1144) a imagem filoespartana

de Xenofonte decorrente deste periacuteodo natildeo permitiu durante deacutecadas que o escritor

ateniense tivesse um contato paciacutefico com a paacutetria

2 Traduccedilatildeo nossa Se tambeacutem a ti Xenofonte os cidadatildeos de Cranau e Ceacutecropes Acusavam de fugir por causa do amigo Ciro Corinto hospitaleira te recebeu onde encontrando o prazer (a ponto de ficar satisfeito) ali resolveste permanecer 3 As informaccedilotildees a respeito da vida de Xenofonte satildeo conhecidas principalmente pela biografia que Dioacutegenes Laeacutercio dedica a ele no livro II de sua obra Vidas dos Filoacutesofos Ilustres (II 48-59) 4 O demo de Eacuterquia fica localizado entre Himeto montanha da Aacutetica e Pentele demo ateniense a quinze quilocircmetros de Atenas 5 Filoacutestrato na obra Vida dos Sofistas refere-se a Xenofonte apenas como ldquoo filho de Grilordquo (I 12 96) 6 Hutchinson (2000) cita como exemplo a criacutetica que nas Helecircnicas Xenofonte faz agrave condenaccedilatildeo dos vitoriosos generais de Arginusas em 406 aC que estes sofreram por natildeo terem retirado os corpos dos soldados do mar em plena tempestade 7 Hel I2 8 Hutchinson 2000 p14 9 Para Luciano Cacircnfora (2003 p40) a viagem de Xenofonte agrave Peacutersia para integrar-se ao exeacutercito de Ciro o Jovem vincula-se a sua participaccedilatildeo no governo dos Trinta Isso explicaria para ele o verdadeiro motivo de Xenofonte ter desobedecido ao conselho de Soacutecrates natildeo perguntando ao oraacuteculo de Delfos se deveria ou natildeo partir para a Peacutersia como o mestre aconselhara mas perguntando a quais deuses deveria sacrificar para retornar a salvo agrave Greacutecia

18

Durante sua juventude manteve contato com o ciacuterculo socraacutetico Os

ensinamentos de Soacutecrates ainda que natildeo tenham feito dele um filoacutesofo de fato como

Platatildeo e Antiacutestenes tiveram uma profunda influecircncia em sua personalidade10 A

respeito do primeiro encontro de Xenofonte com Soacutecrates Dioacutegenes Laeacutercio (1977)

narra a seguinte anedota (L II48) Soacutecrates caminhando pelas ruas de Atenas ao

deparar-se com Xenofonte11 barrou-lhe a passagem com um bastatildeo e perguntou-lhe

onde se adquire todo tipo de mercadorias (ποῦ πιπράσκοιτο τῶν προσφερομένων

ἕκαστον) Xenofonte indicou-lhe o caminho e Soacutecrates entatildeo lhe perguntou em que

lugar os homens tornavam-se excelentes (ποῦ δὲ καλοὶ κἀγαθοὶ γίνονται

ἄνθρωποι) e diante da perplexidade do jovem convidou-o a segui-lo12

Na primavera de 401aC Xenofonte se juntou com mais dez mil mercenaacuterios

gregos ao exeacutercito persa13 de Ciro o Jovem que tentava destronar seu irmatildeo

Artaxerxes II do trono persa Na batalha de Cunaxa apesar da vitoacuteria sobre os

inimigos Ciro foi morto Os aliados persas de Ciro natildeo tendo mais o seu liacuteder

renderam-se ao exeacutercito do rei Artaxerxes e os gregos se viram desamparados no

territoacuterio baacuterbaro Neste contexto os gregos elegeram Xenofonte como um de seus

novos generais que os guiaria em retirada atraveacutes da Aacutesia Menor14 em ldquo[] uma das

mais surpreendentes experiecircncias militares da histoacuteria []rdquo (HUTCHINSON 2000

p14)

Com a chegada do exeacutercito na estrateacutegica regiatildeo do Helesponto Xenofonte

entregou o exeacutercito de mercenaacuterios gregos agraves matildeos do rei espartano Agesilau que

naquele momento lutava contra os mesmos persas Em 396 aC por causa da guerra

contra Corinto Agesilau retornou agrave paacutetria e em 394 aC a cidade de Atenas aliada dos

10 Lesky 1986 p651 11 Em sua narrativa Dioacutegenes Laeacutercio natildeo elucida o que exatamente teria chamado a atenccedilatildeo de Soacutecrates em Xenofonte Poreacutem no iniacutecio de sua biografia ele afirma que Xenofonte era tido como um homem ldquoextremamente modesto e de oacutetima aparecircnciardquo (αἰδήμων δὲ καὶ εὐειδέστατος εἰς ὑπερβολήν) (L II48) 12 Para Luciano Cacircnfora ldquoNessa anedota na qual talvez pela primeira vez no Ocidente filosofia e mercadoria satildeo colocadas como antiacutepodas tem desde logo um clima de proselitismo e conversaccedilatildeo O encontro com o mestre configura um corte com o passadordquo (2003 p61) 13 ldquoNatildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino de sua vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde dos Persasrdquo (JAEGER 1995 p1142) 14 Ao alcanccedilarem o mar os gregos teriam gritado θἁλαττα θἁλαττα thaacutelatta thaacutelatta oh mar oh mar James Joyce em seu monumental Ulysses faz uma referecircncia a esta passagem quando Buck Mulligam ao observar da torre em que mora com Stephen Dedalus exclama em grego o citado vocativo Esta cena tambeacutem serviu de referecircncia para o poema ldquoMeergrussrdquo do livro Buch Der Lieder (Livros das Canccedilotildees) de Henrich Heine

19

beoacutecios travou batalha contra os espartanos e Xenofonte lutou contra os seus

compatriotas na batalha de Queroneacuteia Por causa da sua participaccedilatildeo na batalha

Xenofonte foi exilado de Atenas15 Em compensaccedilatildeo pelos altos serviccedilos prestados a

Esparta Xenofonte recebeu em homenagem a proxenia16 e um terreno em Escilunte

perto de Oliacutempia

Em Escilunte Xenofonte dedicou-se agrave vida de proprietaacuterio de terra ao exerciacutecio

da caccedila e da equitaccedilatildeo e a escrever seus textos literaacuterios17 Permaneceu ali ateacute 371 aC

quando Tebas derrotou Esparta na batalha de Leuctra sendo obrigado a viver em

Corinto Nesta eacutepoca entretanto como Tebas era inimiga tambeacutem de Atenas Atenas e

Esparta aproximaram suas relaccedilotildees e o exiacutelio de Xenofonte foi revogado Em 362 aC

na batalha de Mantineia Grilo filho de Xenofonte serviu na cavalaria ateniense e

morreu em combate A atuaccedilatildeo valorosa de Grilo na batalha segundo Dioacutegenes

Laeacutercio rendeu a ele vaacuterios epigramas18 Xenofonte morreu com aproximadamente 70

anos entre os anos de 359-355 aC Natildeo se sabe se de fato ele retornou a Atenas ou se

morreu em Corinto mas eacute provaacutevel que tenha retornado agrave cidade natal

Como observa Jaeger (1995) Xenofonte jaacute natildeo podia sentir-se integrado na

ordem tradicional da polis ateniense Segundo Glotz (1980 p269) o que sucede de

mais grave no seacuteculo IV para o regime poliacutetico da polis eacute o fato de que em face agraves

crescentes dificuldades do regime democraacutetico o individualismos se aprofunda19

sobrepujando as ideias de patriotismo Xenofonte eacute neste sentido o tipo perfeito de

grego deste periacuteodo desatado de qualquer laccedilo que o vincule agrave terra natal Abandonou

Atenas quando o impeacuterio se desfalecia interior e exteriormente e ldquo[] tomou em suas

15 Cacircnfora (2003) acredita que o exiacutelio de Xenofonte se deu em 399aC por ele ser partidaacuterio dos oligarcas em Atenas A maior parte da criacutetica no entanto seguindo as informaccedilotildees de Dioacutegenes Laeacutercio e a interpretaccedilatildeo claacutessica de Delebecque (1957) aceita a data de 394aC para seu exiacutelio relacionando-o agrave sua participaccedilatildeo na batalha de Queroneacuteia 16 O tiacutetulo de proxenia era dado aos estrangeiros que recebiam inuacutemeros privileacutegios da cidade a προεδρία (proedria) direito a lugar de honra nas festas puacuteblicas προδικία (prodikia) direito de prioridade perante os tribunais ἀσυλία (asylia) garantias contra o direito de captura ἀτέλεια (ateleia) isenccedilatildeo de taxas ἐνκτεσις γῆς τῆς οἰκίας (enktesis ges tes oikias) direito de adquirir imoacuteveis Em troca o cidadatildeo tornava-se patrono e protetor da cidade (JARDEacute 1977 p202) 17 Lesky (1986 p652) a despeito das informaccedilotildees dos antigos ndash principalmente Plutarco em Sobre el Destierro (1996) ndash acredita que a fase de maior produtividade de Xenofonte se deu com seu retorno a Atenas eacutepoca de sua vida sobre a qual temos menos informaccedilotildees No entanto a maior parte da criacutetica seguindo Delebecque (1957) manteacutem que Xenofonte compocircs suas obras em Escilunte 18 O proacuteprio Dioacutegenes levanta a questatildeo de que os que compuseram epigramas desejavam mais tornarem-se agradaacuteveis a Xenofonte do que tornar o nome de Grilo imortal 19 Glotz (1980) observa que o individualismo crescente na vida social grega tambeacutem influencia a literatura do seacuteculo IV justificando por esta tendecircncia o aparecimento dos escritos encomiaacutesticos e das novas tendecircncias da historiografia grega

20

matildeos a direccedilatildeo de sua proacutepria vida []rdquo (JAEGER 1995 p1143) Esta sua postura

inovadora no campo social tambeacutem se revela no acircmbito literaacuterio

Xenofonte era homem de muacuteltiplos interesses dono de uma linguagem clara

que lhe valeu o epiacuteteto na Antiguidade de ldquoMusa Aacuteticardquo O aacutetico xenofonteano

apresenta algumas diferenccedilas do aacutetico claacutessico pois uma vez que esteve afastado de

Atenas por muito tempo entrou em contato com outras regiotildees e dialetos Segundo

Gautier em sua obra La langue de Xenophon (apud SANSALVADOR 1987 p46) a

liacutengua de Xenofonte apresenta elementos doacutericos jocircnicos e ateacute particularidades

poeacuteticas Estas particularidades estranhas ao aacutetico claacutessico propiciaram ao autor a

oportunidade de enriquecer a liacutengua materna apontando conforme Lesky (1986 p656)

a κοινή a liacutengua comum do periacuteodo heleniacutestico

A liacutengua e o estilo de Xenofonte foram muito admirados na Antiguidade O

Suda o chama de ldquoabelha aacuteticardquo pela doccedilura de sua linguagem a que Ciacutecero jaacute aludira

no Orator (IX 22) Os gramaacuteticos da Antiguidade apreciavam sua simplicidade

Demeacutetrio (Sobre o estilo 137 181) admirava sua concisatildeo e solenidade aleacutem do ritmo

quase meacutetrico de algumas passagens

Quanto ao estilo Xenofonte foi influenciado tanto pelos sofistas quanto pelos

retores ldquo[] poreacutem seu caraacuteter ateniense o preservou de todo excesso levando-o a

utilizar os recursos da prosa artiacutestica com a maacutexima moderaccedilatildeo []rdquo

(SANSALVADOR 1987 p46) Xenofonte foi disciacutepulo de Proacutedico e talvez tenha

frequentado os cursos de Goacutergias cujo estilo exerceu forte influecircncia na prosa da

eacutepoca20 (SANSALVADOR 1987 p47) O uso de figuras de linguagem revela a

preocupaccedilatildeo esteacutetica do escritor que procurava tornar o texto natildeo soacute informativo mas

tambeacutem agradaacutevel a seus leitores

Aleacutem disso Xenofonte foi um escritor poliacutegrafo ndash o primeiro na Greacutecia ndash ou

seja sua produccedilatildeo abarca vaacuterios gecircneros literaacuterios ndash diaacutelogo socraacutetico banquete

encocircmio tratados narrativas A Ciropedia que eacute uma obra de maturidade de

Xenofonte combina em sua estrutura narrativa elementos destes outros gecircneros

literaacuterios que se mesclam agrave narrativa e de certa forma datildeo vivacidade a ela Satildeo os

20 Para Momigliano (1984 p12) o estilo da historiografia era regulado pelas normas da prosa retoacuterica diferenciando-se deste gecircnero discursivo pela finalidade Esta influecircncia da retoacuteria na historiografia demonstra a preocupaccedilatildeo dos historiadores com o embelezamento dos seus discursos ainda que este embelezamento natildeo seja o principal objetivo do historiador Cf Joly F D (Org) Histoacuteria e retoacuterica Ensaios sobre historiografia antiga (2007)

21

discursos21 os diaacutelogos socraacuteticos22 e os episoacutedios romanescos23 que natildeo surgem de

forma desconexa mas satildeo entrelaccedilados perfeitamente com a accedilatildeo principal da narrativa

(GERA 1993 p187) A experiecircncia obtida durante a escrita destas outras obras eacute

fundamental para o manejo consciente destes elementos dentro da narrativa principal da

Ciropedia

212 Corpus Xenofontis

A cronologia das obras de Xenofonte eacute incerta e por isso os criacuteticos tendem a

classificaacute-las de acordo com o estilo No entanto a classificaccedilatildeo quanto ao estilo

tambeacutem natildeo eacute segura como afirma Ana Lia A de A Prado (1999) Para fins didaacuteticos

a classificaccedilatildeo apresentada a seguir das obras de Xenofonte segue a adotada por Lesky

(1986 p652)

a-) Obras histoacutericas

Anaacutebase24 (Κύρου ἀνάβασις) considerada por alguns a mais bela obra de

Xenofonte esta narrativa memorialista trata da fuga dos mercenaacuterios atraveacutes da Peacutersia

apoacutes expediccedilatildeo frustrada de Ciro o Jovem contra seu irmatildeo Artaxerxes II

Helecircnicas (Ἐλλήνικα) a mais historiograacutefica das obras de Xenofonte conta a

histoacuteria da Greacutecia de 411 aC ateacute 362 aC continuando a narrativa de Tuciacutedides

exatamente do ponto em que este a deixou com a sua morte

21 O sentido de discurso aqui empregado eacute o de mensagem oral proferida perante uma assistecircncia Tanto a obra de Heroacutedoto quanto a de Tuciacutedides apresentam diversos discursos que entremeiam a narrativa Em geral estes discursos aparecem antes das batalhas retardando-as para criar o cliacutemax na narrativa e sendo uma influecircncia da eacutepica homeacuterica eacute um topos do gecircnero historiograacutefico 22 Xenofonte escreveu os diaacutelogos socraacuteticos Econocircmico Banquete Memoraacuteveis e Hieratildeo Este gecircnero proporciona maior vivacidade dinamismo e expressividade da linguagem Aparecem em geral relacionados a banquetes e nota-se a frequente preocupaccedilatildeo didaacutetica nos diaacutelogos marcada pela presenccedila de um mestre e um disciacutepulo Eacute importante ressaltar que na Ciropedia os diaacutelogos versam sobre temas gerais poreacutem conforme a anaacutelise feita por Gera (1993) o estilo destes diaacutelogos eacute o mesmo do usado naquelas obras citadas 23 Nestes episoacutedios Xenofonte procura comover e deleitar seus leitores com narrativas repletas de πάθος

(pathos) As narrativas apresentam ainda forte impressatildeo didaacutetica sempre ligadas agrave narrativa principal de Ciro Gera (1993 p197) analisando estas narrativas afirma que nelas Xenofonte tem uma preocupaccedilatildeo maior com a linguagem criando textos de grande valor esteacutetico Uma destas narrativas a de Panteacuteia foi muito imitada pelos romancistas gregos tendo-se notiacutecia de um romance perdido provavelmente do seacuteculo II dC que tinha como tiacutetulo o nome das personagens Panteacuteia e Araspas Cf Brandatildeo J L A invenccedilatildeo do romance (2005 p61) 24 Todas as obras de Xenofonte referidas aqui satildeo datadas da primeira metade do seacuteculo IV aC Agrave medida que pudermos apresentar mais precisatildeo em alguma obra vamos oferecer a possiacutevel data de escrita da obra

22

Agesilau (Αγησιλαος) encocircmio25 ao rei Agesilau de Esparta obra em que

Xenofonte revela forte retoricismo principalmente quando comparada agrave descriccedilatildeo da

mesma personagem feita pelo mesmo Xenofonte nas Helecircnicas

Constituiccedilatildeo dos Lacedemocircnios (Λακεδαιμονίων Πολιτεία) descriccedilatildeo das

leis espartanas na qual Xenofonte fala das causas do apogeu e da decadecircncia da cidade

de Esparta

Os recursos ou sobre as rendas (Πόροι ἢ περί προσόδων) cuja autenticidade

hoje jaacute natildeo se contesta eacute um escrito a respeito das financcedilas de Atenas procurando

solucionar seus problemas

b-) Obras didaacuteticas

Hipaacuterquicos (Ἱππαρχικος) texto dirigido aos comandantes da cavalaria

ateniense

Sobre a equitaccedilatildeo (περὶ ἱππιχῆς) um manual sobre a praacutetica da equitaccedilatildeo e do

modo de se tratar o cavalo para ter do animal um completo domiacutenio

Cinegeacutetico (Κυνηγέτικος) livro a respeito da praacutetica da caccedila Sua

autenticidade eacute contestada principalmente por causa da linguagem que se afasta da

habitual clareza e simplicidade agradaacutevel de Xenofonte

c-) Obras socraacuteticas

Econocircmico (Οἰκονόμικος) que teve muitos admiradores na Antiguidade eacute um

diaacutelogo sobre a administraccedilatildeo do casa (οἴκος) e por causa de seu caraacuteter teacutecnico

alguns criacuteticos como Lesky (1986) preferem classificaacute-la nas obras didaacuteticas de

Xenofonte

Memoraacuteveis (Ἀπομνημονεύματα Σώκρατους) obra feita de reminiscecircncias

do velho mestre Soacutecrates colocando-o no centro de diversas discussotildees nas quais

muitos dos temas de interesse de Xenofonte satildeo retomados

Apologia de Soacutecrates (Ἀπολογία Σώκρατους) como a obra homocircnima de

Platatildeo trata do julgamento de Soacutecrates

25 A retoacuterica antiga distinguia trecircs gecircneros de discurso em prosa judiciaacuterio deliberativo e o encocircmio ou epidiacutetico O epidiacutetico trata do elogio ou criacutetica a determinada pessoa puacuteblica Sua origem estaacute nas oraccedilotildees fuacutenebres Cf Reboul O Introduccedilatildeo agrave Retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 1998

23

Banquete (Συμπόσιον) diaacutelogo simposiaacutestico que trafega pelos principais

temas discutidos por Xenofonte em suas outras obras

Hieratildeo (Ἱερῶν) diaacutelogo no qual o tirano Hieratildeo e o poeta Simocircnides discutem a

respeito da tirania

Atribui-se ainda a Xenofonte por paralelismo com a Constituiccedilatildeo dos

Lacedemocircnios o texto Constituiccedilatildeo Ateniense (Ἑλλήνικα πολιτεία) poreacutem se aceita

que a obra seja espuacuteria e data do uacuteltimo quarto do seacuteculo V aC quando Xenofonte

deveria ter menos de vinte anos

Das obras de Xenofonte a mais difiacutecil de se classificar eacute a Ciropedia (Κύρου

Παιδέια) Lesky (1986) a classifica como uma obra histoacuterica pois o tema da

Ciropedia eacute a vida de Ciro o Velho imperador da Peacutersia No entanto Lesky reconhece

a dificuldade desta classificaccedilatildeo Ana Lia A de A Prado (1999) classifica-a como obra

didaacutetica em virtude do caraacuteter didaacutetico que sublinha a narrativa A obra ainda tem sido

chamada de biografia histoacuteria romanceada biografia romanceada romance filosoacutefico

romance didaacutetico tratado de educaccedilatildeo instituiccedilatildeo militar obra socraacutetica26

A influecircncia da Ciropedia na literatura posterior eacute sentida em obras como A vida

de Apolocircnia de Tiana (seacutec II) de Filoacutestrato No Renascimento a obra foi muito

traduzida e imitada inserindo-se como modelo dos romances de Feneloacuten As aventuras

de Telecircmaco (1694-1695) M de Scudery Artamene ou o grande Ciro (1649-1653) e

Wieland Agathon (1766) Wieland escreveu ainda um drama chamado de Araspas und

Panthea (1759) retomando a narrativa amorosa destas personagens da Ciropedia Esta

influecircncia de Xenofonte sobre Wieland eacute de particular interesse uma vez que o Agathon

de Wieland eacute classificado como uma das primeiras manifestaccedilotildees do Bildungsroman

alematildeo e teve grande influecircncia sobre o Wilhelm Meister de Goethe Aleacutem disso

Montaigne e Maquiavel principalmente em O Priacutencipe apreciavam as ideacuteias expressas

na Ciropedia Na literatura em liacutengua portuguesa podemos encontrar referecircncias agrave

Ciropedia em autores claacutessicos como Camotildees nrsquoOs Lusiacuteadas (1962 X 48-49) e

Claacuteudio Manoel da Costa em seu poema Vila Rica (2002 IV) Machado de Assis no

seu romance Esauacute e Jacoacute (1976) no capiacutetulo LXI intitulado Lendo Xenofonte

apresenta a personagem do Conselheiro Aires manuseando o texto grego do primeiro

capiacutetulo da Ciropedia No seacuteculo XX dois apreciadores das obras de Xenofonte satildeo 26 Cf a introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo de Marcel Bizos Belles Lettres 1972

24

Iacutetalo Calvino que lhe dedica um capiacutetulo na sua obra Por que ler os claacutessicos (1993) e

o escritor portuguecircs Aquilino Ribeiro que traduziu tanto a Ciropedia com o tiacutetulo de O

Priacutencipe Perfeito (1952) quanto a Anaacutebase com o tiacutetulo de A Retirada dos dez mil

(1957) Sobre a Anaacutebase eacute interessante a retomada desta narrativa no filme de Walter

Hill (1979) Selvagens da noite (The Warriors) em que o diretor transporta a narrativa

para um tempo futuro na cidade de Nova York dominada por gangues

22 Ciropedia

221 O tiacutetulo

ΚΥΡΟΥ ΠΑΙΔΕΙΑ27 (Cyrou paideia) eacute a forma tradicional com que nossa obra

de estudo eacute referida desde Aulo Geacutelio28 A maior parte das traduccedilotildees dessa obra procura

geralmente ou manter a transliteraccedilatildeo da liacutengua grega com o termo Ciropedia ou

traduzir o sentido dos termos por A Educaccedilatildeo de Ciro29 Alguns criacuteticos

(BREITENBACH 1966 BIZOS 1972) assinalam que este tiacutetulo conveacutem apenas ao

Livro I da narrativa jaacute que os objetivos dos outros livros seriam apresentar o ideal de

soldado e soberano a partir da figura exemplar de Ciro o Velho Para Marcel Bizos

(1972) o tiacutetulo que mais se adequaria agrave obra seria simplesmente Ciro seguindo a

tradiccedilatildeo das biografias retoacutericas do seacuteculo IV como a proacutepria obra de Xenofonte

Agesilau ou o Evaacutegoras de Isoacutecrates30

Outros autores como Higgins (1977) e Due (1989) interpretam o sentido de

educaccedilatildeo na obra de forma ampla compreendendo-a como um aprendizado atraveacutes da

vida Neste sentido o tiacutetulo seria coerente com o todo da narrativa Ana Vegas

Sansalvador (1987 p7) tem a mesma opiniatildeo e procura demonstraacute-la analisando o

27 Ciacutecero (1946 p203) em carta ao seu irmatildeo Quintus refere-se agrave obra apenas como Ciro Cyrus ille a Xenophonte non ad historiae finem scriptus 28 Cf Noches Aticas XIV 3 Neste capiacutetulo o autor trata da possiacutevel inimizade entre Xenofonte e Platatildeo atestada por outros bioacutegrafos 29 Das traduccedilotildees em portuguecircs Jaime Bruna (1965) prefere o tiacutetulo A Educaccedilatildeo de Ciro enquanto Joatildeo Feacutelix Pereira (1964) prefere Ciropedia Jaacute Aquilino Ribeiro (1952) inova ao nomear a sua traduccedilatildeo de O Priacutencipe Perfeito Adotaremos neste trabalho o tiacutetulo de Ciropedia a partir de agora 30 Tal interpretaccedilatildeo de Marcel Bizos em nossa opiniatildeo condiz apenas com o conteuacutedo da Ciropedia em comparaccedilatildeo com as narrativas biograacuteficas Demonstraremos no entanto em seu devido momento que do ponto de vista da forma narrativa a Ciropedia se distancia deste tipo de biografia

25

proecircmio da obra Para a autora em Ciropedia (I 1 6) Xenofonte estabelece os trecircs

aspectos fundamentais de sua investigaccedilatildeo ndash a linhagem (genean) as qualidades

naturais (phusin) e a educaccedilatildeo (paideia) A partir disso o narrador se compromete a

apresentar o desenvolvimento de seu heroacutei (Livro I) e seu modo de atuar entendido

como consequecircncia desse desenvolvimento (Livros II-VIII) Assim a educaccedilatildeo natildeo

seria apenas a participaccedilatildeo do jovem em instituiccedilotildees de ensino mas a caminhada pela

vida na qual os ensinamentos da juventude satildeo testados reavaliados e aprimorados

Bodil Due (1989 p15) analisando a descriccedilatildeo que Xenofonte faz da paideia31 persa

nos mostra que esta eacute um assunto puacuteblico cabendo ao Estado regulamentar os deveres

programas e funcionamento da comunidade para cada classe divididas por faixa etaacuteria

e que mesmo os mais velhos estatildeo sob a vigilacircncia contiacutenua em vista do

aperfeiccediloamento a paideia persa neste sentido prolonga-se atraveacutes da vida

222 Siacutentese da narrativa

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC O enredo trata da vida de Ciro o

Velho fundador do Impeacuterio persa desde o seu nascimento ateacute sua morte

O Livro I abre com um proecircmio (Livro I 11-6) no qual o narrador reflete

sobre as dificuldades de se governar concluindo que esta eacute uma tarefa aacuterdua mas natildeo

impossiacutevel pois descobriu em sua pesquisa que existiu certo Ciro que se fez respeitar e

amar pelos suacuteditos de seu Impeacuterio No capiacutetulo 2 narra-se a genealogia e as qualidades

naturais de Ciro e o sistema educacional persa pelo qual Ciro como cidadatildeo teria

passado Nos capiacutetulos 3 e 4 narra-se de modo romanesco a visita de Ciro agrave corte de seu

avocirc materno Astiacuteages rei da Meacutedia32 Ciro decide permanecer na Meacutedia para

aperfeiccediloar-se e tornar-se o melhor quando retornasse agrave Peacutersia Eacute interessante que Ciro

revela agrave sua matildee os limites da educaccedilatildeo persa e justifica a sua estadia na Meacutedia pelo

complemento da sua educaccedilatildeo No Capiacutetulo 4 (16-24) quando estava com quinze ou

dezesseis anos Ciro participa com extraordinaacuteria bravura de sua primeira expediccedilatildeo

beacutelica Apoacutes essa experiecircncia Ciro retorna agrave Peacutersia (I 5) prosseguindo sua formaccedilatildeo 31 A παιδεία segundo Jaeger (1995) eacute um projeto de educaccedilatildeo que visava agrave formaccedilatildeo do homem em todas as suas dimensotildees A palavra aparece apenas no seacuteculo V aC poreacutem reflete preocupaccedilotildees que jaacute encontramos em Homero 32 A Meacutedia eacute a antiga regiatildeo da Aacutesia entre o mar Hircacircnion e a Peacutersia Na versatildeo de Heroacutedoto apoacutes ser dominada por Ciro passou a fazer parte do Impeacuterio persa Jaacute na versatildeo de Xenofonte ela passa a fazer parte do Impeacuterio persa por meio de uma alianccedila quando Ciro se casa com a filha de Ciaxares

26

ciacutevica e moral de acordo com o sistema educacional descrito no capiacutetulo 2

distinguindo-se dos seus compatriotas no cumprimento dos seus deveres Apoacutes dez

anos Ciro eacute escolhido pelos anciatildeos do conselho para liderar o exeacutercito persa na

alianccedila com a Meacutedia em guerra contra a Assiacuteria (I 52-5) e faz seu primeiro discurso

como liacuteder aos principais generais (I 56-14) Por fim o uacuteltimo capiacutetulo do primeiro

livro eacute um longo diaacutelogo entre Ciro e seu pai Cambises e este enquanto acompanha seu

filho ateacute a fronteira da Peacutersia com a Meacutedia expotildee as qualidades que devem adornar um

bom chefe militar e os conhecimentos para obter a obediecircncia de seus soldados

O Livro II e o Livro III (este ateacute o capiacutetulo 3 paraacutegrafo 9) formam uma unidade

temaacutetica O capiacutetulo 1 do Livro II inicia-se com o relato dos preparativos para a

campanha Haacute um cataacutelogo dos inimigos e dos aliados (II 15-6) e as primeiras atuaccedilotildees

de Ciro como chefe militar resolvendo a falta de contingente equipando os soldados

rasos com o mesmo armamento dos soldados de elite (II 19) e organizando concursos e

recompensas para fomentar a emulaccedilatildeo e treinar seus homens (II 111-18) No capiacutetulo

2 daacute-se lugar a um simpoacutesio na tenda de Ciro na qual se reuacutenem os principais generais

do exeacutercito que narram pequenas e divertidas anedotas da vida cotidiana do exeacutercito

Apoacutes Ciro acertar com os seus subordinados a forma de divisatildeo dos espoacutelios (II 3)

inicia-se a campanha da Armecircnia (II 4 ndash III 1) antiga aliada da Meacutedia que se negava a

pagar os impostos cobrados pelos aliados e sua submissatildeo a Ciro que tem seu ponto

alto no diaacutelogo entre Ciro e Tigranes filho do rei Armecircnio que tenta salvar seu pai do

julgamento em que Ciro representa o papel de juiz No Livro 3 capiacutetulo 2 relata-se a

expediccedilatildeo agrave Caldeia em que Ciro conclui a paz entre a Armecircnia e a Caldeia

Do Livro III 39 ateacute o Livro V 136 a narrativa trata da expediccedilatildeo agrave Assiacuteria

Comeccedila com os preparativos o discurso exortativo a discussatildeo entre Ciro e Ciaxares a

respeito da taacutetica que se deve seguir (III 39-55) prossegue com a marcha contra o

inimigo e a primeira batalha que garante a vitoacuteria aos persas (III 356 - IV 118) A

despeito do temor de Ciaxares Ciro junto com alguns voluntaacuterios medos persegue os

inimigos (IV 119-24) e consegue o apoio dos hircanos ex-aliados dos assiacuterios (IV 2)

Nos capiacutetulos 3 4 e 5 do Livro IV Ciro projeta e organiza uma cavalaria persa nestes

capiacutetulos se contrastam a figura de Ciaxares incapaz e ciumento do ecircxito de Ciro e

este empreendedor e triunfante No capiacutetulo 6 (Livro IV) conta-se a histoacuteria de

Goacutebrias o desertor do rei Assiacuterio O filho de Goacutebrias fora assassinado pelo rei Assiacuterio

pois ficara com ciuacutemes da beleza do jovem A uacuteltima seccedilatildeo do livro IV (611-12) narra a

27

divisatildeo de espoacutelio e fica-se sabendo que a Ciro coube a dama de Susa a mulher mais

formosa da Aacutesia Panteacuteia

O Livro V se inicia com a narrativa da bela Panteacuteia propriamente dita Ciro

convoca Araspas para guardar Panteacuteia Os dois travam um diaacutelogo a respeito do amor e

apesar das advertecircncias de Ciro sobre os perigos de Eros Araspas se apaixona pela bela

prisioneira Entrementes continua a campanha contra a Assiacuteria com Goacutebrias dando

valiosas informaccedilotildees sobre aquele paiacutes a Ciro (V 2) que resulta em enfrentamentos de

menor importacircncia (V 3) e no aliciamento do assiacuterio Gadatas que assim como Goacutebrias

tinha motivos de sobra para odiar o rei Assiacuterio (V 38 - V 4) Em V 5 Ciaxares e Ciro

restabelecem a alianccedila apoacutes Ciro convencecirc-lo de que sua inveja eacute infundada

Do Livro VI ateacute o Livro VII 1 2 a obra se refere agrave campanha a Sardes capital

da Liacutedia Apoacutes os primeiros preparativos (VI 131-55) a narrativa retorna as

personagens de Araspas e Panteacuteia Ciro aproveitando que seu soldado apaixonara-se

pela bela prisioneira envia-o como espiatildeo dos inimigos Panteacuteia grata por Ciro ter

garantido sua dignidade diante dos ataques apaixonados de Araspas envia uma carta ao

seu marido Abradatas que trai o rei Assiacuterio indo juntar-se ao exeacutercito de Ciro

Abradatas se prepara com a armadura feita do ouro das joacuteias da esposa para ser o

melhor aliado possiacutevel para Ciro Segue-se a narraccedilatildeo de corte teacutecnico-militar com Ciro

fortalecendo seu exeacutercito com os aliados da India (VI 2) o treinamento dos soldados

(VI 24-8) a organizaccedilatildeo para a batalha (VI 223-41) a ordem de marcha (VI 31-4) e

as uacuteltimas exortaccedilotildees e instruccedilotildees de Ciro (VI 412 - VII 122) Em VI 42-11 Panteacuteia

despede-se de Abradatas que parte para a batalha na posiccedilatildeo mais perigosa de luta

O primeiro capiacutetulo do Livro VII narra a batalha de Sardes com a morte de

Abradatas pelos egiacutepcios (VII 129-32) Ciro derrota o inimigo e toma a cidade (VII

136 - VII 214) ele se encontra com o rei da Liacutedia Creso (VII 215-29) e Panteacuteia

apoacutes velar seu esposo se suicida (VII 3 4-16)

A partir de VII 4 ateacute VII 536 narra-se a marcha para a Babilocircnia e a

submissatildeo dos povos das regiotildees pelas quais Ciro atravessa a Caacuteria as Friacutegias a

Capadoacutecia e a Araacutebia A partir desse ponto Ciro torna-se soberano assentando-se no

trono da Babilocircnia (VII 537-69) granjeando o favor dos suacuteditos e tomando medidas

para manter a unidade do Impeacuterio (VII 570-86) Goacutebrias e Gadatas se vingam do rei

Assiacuterio matando-o

O Livro VIII trata da organizaccedilatildeo da corte (VIII 11-8) e prossegue com a

organizaccedilatildeo do Impeacuterio (VIII 19 - VIII 228) Em VIII 31-34 narra-se o desfile

28

triunfal com toda a magnificecircncia completando a imagem de um Ciro no cume da

gloacuteria Depois de um banquete com seus amigos de sempre (VIII 4) Ciro retorna agrave

Peacutersia e agrave Meacutedia formalizando uma uniatildeo com este paiacutes ao casar-se com a filha de

Ciaxares (VIII 5) Em VIII 6 Ciro estabelece uma instituiccedilatildeo sem precedentes a

satrapia para controlar as diversas proviacutencias do Impeacuterio O capiacutetulo 7 deste Livro VIII

apresenta Ciro jaacute anciatildeo perto de uma morte natural em sua cama e rodeado por seus

filhos discursa a eles suas uacuteltimas palavras estabelecendo a sucessatildeo de seu trono

A narrativa termina com um Epiacutelogo (VIII 8) no qual o narrador descreve a

decadecircncia do Impeacuterio apoacutes a morte de Ciro atribuindo-a agrave perda dos valores morais

por parte tanto dos suacuteditos quanto dos seus governantes valores estes que fizeram

possiacutevel a gloacuteria passada

O Epiacutelogo tem sido objeto de muita discussatildeo por parte dos criacuteticos que se

dividem em aceitaacute-lo como texto autecircntico de Xenofonte (DELEBECQUE 1957

BREITENBACH 1966 SANSALVADOR 1987) ou como espuacuterio um acreacutescimo

posterior dos comentadores (HEacuteMARDINQUER 1872 BIZOS 1972) Alguns

tradutores como Jaime Bruna (1965) considerando espuacuterio o texto natildeo o apresentam

em suas traduccedilotildees terminando a obra no capiacutetulo 7 do Livro VIII Os estudiosos alegam

que o epiacutelogo apresenta traccedilos que destoam do tom idealista do resto da obra Jaeger

(1995 p1157) no entanto observa que a estrutura do epiacutelogo eacute a mesma da estrutura

do epiacutelogo da Constituiccedilatildeo dos Lacedemocircnios e que eacute improvaacutevel que ambas as obras

tenham sofrido acreacutescimos idecircnticos posteriormente

Compartilhamos a posiccedilatildeo que aceita o epiacutelogo como autecircntico pois a base das

contradiccedilotildees eacute soacute aparente (SANSALVADOR 1987 DELEBECQUE 1957) e

respondem a um interesse do autor em contrastar o passado esplendoroso com o

momento atual por meio da expressatildeo ἕτι καὶ νῦν ldquoainda hojerdquo O Epiacutelogo se

concentra no contraste do passado glorioso com a decadecircncia atual do Impeacuterio

Delebecque (1957) estabelece que o ἕτι καὶ νῦν se refere agrave Peacutersia liderada pelo

soberano Artaxerxes II que na visatildeo de Xenofonte encarnava a decadecircncia do Impeacuterio

aludindo-se ao seu despotismo e deslealdade (VIII 8 4) e agrave revolta das proviacutencias

ocidentais do Impeacuterio que teria ocorrido entre 362-361 aC

Devemos notar por outro lado que Xenofonte dirigia-se a um puacuteblico grego

principalmente ateniense que outrora tambeacutem fora um grande e glorioso impeacuterio

poreacutem assistia naquela eacutepoca agrave decadecircncia de sua poliacutetica Talvez nosso autor como

29

antes fizera Aristoacutefanes em suas comeacutedias pretendesse apresentar uma advertecircncia aos

proacuteprios atenienses mostrando-lhes que a gloacuteria do passado estava intimamente

relacionada com princiacutepios morais que a tradiccedilatildeo transmitia e que a decadecircncia decorria

do desapego destes mesmos princiacutepios

Bodil Due (1989 p16) defende a autenticidade do Epiacutelogo como produto

natural do desenvolvimento da obra reconhecendo tanto o estilo de Xenofonte por meio

de vocabulaacuterio e construccedilotildees sintaacuteticas quanto a continuaccedilatildeo do plano inicial

estabelecido por Xenofonte no proecircmio O objeto de pesquisa era o ato de governar os

homens ἄρχειν ἀνθρώπων (archeim anthropon) e os governantes fazerem-se

obedecer πείθεσθαι τοῖς ἄρχουσι (peithesthai tois archousi) Para Due a

decadecircncia moral apresentada por Xenofonte relaciona-se agrave incapacidade dos liacutederes

ldquopoacutes-Cirordquo de conseguirem a obediecircncia de seus suacuteditos pois os costumes morais e

ciacutevicos instituiacutedos por Ciro deixaram de ser respeitados

Assim compreendido o Epiacutelogo forma juntamente com o Proecircmio uma moldura

ao redor da vida de Ciro e esta passa a ser um ldquoquadrordquo que ilustra as ideias contidas

nesta moldura

223 A Ciropedia e a ideologia poliacutetica do seacuteculo IV

A biografia de um escritor estaacute sempre inserida em um contexto histoacuterico cujos

impulsos sociais determinam mais ou menos o modo do escritor ver a realidade Por

isso nesta seccedilatildeo procuraremos expor as principais correntes ideoloacutegicas do seacuteculo IV

para associarmos as preocupaccedilotildees dos homens da eacutepoca agrave experiecircncia singular da vida

de Xenofonte Eacute importante este comentaacuterio ainda que sumaacuterio pois demonstraraacute que a

arte de governar natildeo eacute um tema caro apenas a Xenofonte pois outros autores do seacuteculo

IV aC procuraram refletir sobre este tema Aleacutem disso estas referecircncias datildeo um

suporte seguro sobre o qual podemos ler a Ciropedia como uma ficccedilatildeo idealizada

De modo geral podemos dizer que a Ciropedia eacute o resultado de constantes

indagaccedilotildees de Xenofonte a respeito da arte de governar A importacircncia do elemento

pessoal para a confecccedilatildeo das obras de Xenofonte eacute notada pelo tom memorialista de

suas obras (LESKY 1986 SANSALVADOR 1987) A experiecircncia de vida eacute o motor

temaacutetico de produccedilatildeo de Xenofonte Na Ciropedia cujo tema se estende no tempo

30

histoacuterico a experiecircncia aparece tanto na ficionalizaccedilatildeo da histoacuteria quanto na

aproximaccedilatildeo que o autor faz da cultura grega com a cultura persa33

Quando participou do exeacutercito de Ciro o Jovem Xenofonte entrou

provavelmente em contato com numerosas tradiccedilotildees orais que tinham no centro a figura

de Ciro o Velho A Christensen (1936 apud SANSALVADOR 1987) ressalta a

influecircncia da eacutepica iraniana na Ciropedia em especial nas narrativas secundaacuterias Aleacutem

disso a participaccedilatildeo efetiva nesta campanha teria ensinado a Xenofonte as dificuldades

inerentes agrave arte de governar Sansalvador (1987) assinala que quando se compara a

Ciropedia com a Anaacutebase muitos dos incidentes que resultaram em malogro nesta

uacuteltima satildeo reavaliados e corrigidos naquela Para Sansalvador (1987 p38)

Natildeo eacute em vatildeo que se chegou a dizer que a Ciropedia era menos uma histoacuteria de Ciro o Velho do que o sonho do que teria feito Ciro o Jovem vencer ou que a Ciropedia eacute uma teoria das ideacuteias poliacuteticas e militares suscitada pela Anaacutebase no pensamento de Xenofonte

Natildeo podemos esquecer no entanto que Atenas vivia um periacuteodo de profundas

atribulaccedilotildees poliacuteticas e que estes contratempos marcaram decisivamente a forma de

Xenofonte compreender a poliacutetica Os uacuteltimos anos da Guerra do Peloponeso (435-404

aC) foram marcados por conflitos internos em Atenas com a constante disputa pelo

poder primeiro a subida dos Oligarcas ao poder no Governo dos Trezentos (411 aC)

em seguida o governo misto dos Cinco Mil (410 aC) ao qual Tuciacutedides se refere

como uma saacutebia mescla de oligarquia e democracia34 seguiu-se a retomada do poder

dos democratas mais radicais em 410 aC e por fim o retorno da Oligarquia com o

Governo dos Trinta (404 aC) sob o impulso do apoio espartano Apoacutes alguns meses de

terror os democratas35 retomaram o poder Poreacutem a democracia moderada que se

instaurou cometeu em seu nome tantos excessos e horrores36 que natildeo encontrou nos

principais intelectuais da eacutepoca defensor algum Neste ambiente nada mais natural que

autores como Platatildeo Isoacutecrates e Xenofonte procurassem expor suas ideias a respeito

33 Cf o Capiacutetulo 431 de nossa Dissertaccedilatildeo em que fazemos uma anaacutelise mais aprofundada a respeito desta aproximaccedilatildeo feita por Xenofonte e das implicaccedilotildees desta nova concepccedilatildeo cultural na estrutura educacional persa descrita na obra 34 Cf Tuciacutedides Histoacuteria da Guerra do Peloponeso VII97-98 Trad Mario da Gama Kury Brasiacutelia Ed UNB 1986 35 A democracia restaurada aparentemente manteve-se em vigor ateacute a invasatildeo da Macedocircnia Natildeo significa isso que o periacuteodo foi de total calmaria mas sim de revoluccedilatildeo das estruturas sociais Cf G Glotz A cidade grega Satildeo PauloRio de Janeiro Difel 1980 C Mosseacute Atenas A histoacuteria de uma democracia Brasiacutelia Ed UnB 1970 36 O mais famoso destes excessos eacute a condenaccedilatildeo de Soacutecrates Cf O Julgamento de Soacutecrates de I F Stone Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2005

31

do que seria o governo ideal e o meio de se alcanccedilaacute-lo37 se posicionando contra o

regime democraacutetico

O regime poliacutetico dos persas descrito nos primeiros livros da Ciropedia tinha

pouco a ver com a realidade histoacuterica Ao contraacuterio da esperada tirania o governo persa

na Ciropedia eacute composto como uma oligarquia moderada ou seja o poder que o

monarca exerce eacute regulamentado por leis Sua atuaccedilatildeo estaacute restrita agraves leis e agrave supervisatildeo

dos anciatildeos38 A distinccedilatildeo entre a administraccedilatildeo poliacutetica da Peacutersia e da Meacutedia aparece

em Ciropedia I 3 18 quando Mandane matildee de Ciro lhe diz

[18] ldquoMas filho natildeo satildeo as mesmas coisas aqui e na Peacutersia que satildeo acordadas como justas Pois seu avocirc de um lado faz-se deacutespota de todos na Meacutedia de outro na Peacutersia considera-se justiccedila possuir a igualdade E o teu pai eacute o primeiro a fazer o que foi ordenado pela cidade e a aceitar o que foi ordenado pois a medida dele eacute a lei natildeo a paixatildeo De modo que portanto natildeo morras tu sendo chicoteado quando em casa estiveres depois de chegares tendo apreendido da parte do avocirc a tirania na qual haacute a crenccedila de que eacute necessaacuterio possuir mais do que todos e eacute por isso contraacuterio agrave realeza39

Assim na Peacutersia o rei tem os mesmos direitos dos outros cidadatildeos pois se

considera justo ldquopossuir a igualdaderdquo (ison ekhein) e os mesmos deveres pois ldquoa

medida dele eacute a lei natildeo a paixatildeordquo ou seja as accedilotildees do governante eram limitadas pelas

leis O governante regido pela ψυχή40 (psyche) eacute movido pelas suas paixotildees41

distancia-se do caminho da justiccedila pois nesta constituiccedilatildeo eacute o proacuteprio desejo do rei

que eacute a lei

37 Tambeacutem Platatildeo apresenta nrsquoA Repuacuteblica as suas reflexotildees sobre a poliacutetica ideal assim como Isoacutecrates que no Panegiacuterico versa sobre este tema 38 Nas Memoraacuteveis IV 6 12 o Soacutecrates xenofonteano descreve esta forma de governo como a ideal 39 No original [18] ἀλλ᾽ οὐ ταὐτά ἔφη ὦ παῖ παρὰ τῷ πάππῳ καὶ ἐν Πέρσαις δίκαια

ὁμολογεῖται οὗτος μὲν γὰρ τῶν ἐν Μήδοις πάντων ἑαυτὸν δεσπότην πεποίηκεν ἐν

Πέρσαις δὲ τὸ ἴσον ἔχειν δίκαιον νομίζεται καὶ ὁ σὸς πρῶτος πατὴρ τὰ τεταγμένα μὲν ποιεῖ

τῇ πόλει τὰ τεταγμένα δὲ λαμβάνει μέτρον δὲ αὐτῷ οὐχ ἡ ψυχὴ ἀλλ᾽ ὁ νόμος ἐστίν ὅπως

οὖν μὴ ἀπολῇ μαστιγούμενος ἐπειδὰν οἴκοι ᾖς ἂν παρὰ τούτου μαθὼν ἥκῃς ἀντὶ τοῦ

βασιλικοῦ τὸ τυραννικόν ἐν ᾧ ἐστι τὸ πλέον οἴεσθαι χρῆναι πάντων ἔχειν (Cirop 1318) 40 Segundo o dicionaacuterio A Bailly o termo ψυχή pode ser traduzido por ldquoalmardquo no sentido de espiacuterito que daacute vida aos seres Poreacutem uma das acepccedilotildees eacute a de ldquoalmardquo como sede dos sentimentos das paixotildees desejos 41 Aleacutem de Astiacuteages rei da Meacutedia os outros reis principalmente os inimigos de Ciro satildeo apresentados na obra como deacutespotas neste sentido de governar segundo suas paixotildees Esta eacute a caracteriacutestica dos homens desmedidos ὑβριστής e se constitui entre as principais caracteriacutesticas com que o Oriente eacute descrito pelo Ocidente (SAID 2008)

32

A figura idealizada de Ciro na Ciropedia eacute fruto da inovadora aproximaccedilatildeo feita

por Xenofonte da virtude (ἀρετή arete) persa aos elementos da mais alta virtude grega

da καλοκαγαθία (kalokagathia) eliminando os aspectos negativos da cultura persa

Como afirma Jaeger (1995 p1148)

Embora transpareccedila constantemente em Xenofonte o orgulho nacional e a feacute na superioridade da cultura e do talento gregos ele estaacute muito longe de pensar que a verdadeira areteacute seja um dom dos deuses depositado no berccedilo de qualquer burguezinho helecircnico Na sua pintura dos melhores Persas ressalta por toda a parte o que nele despertou o seu trato com os representantes mais notaacuteveis daquela naccedilatildeo a impressatildeo de que a autecircntica kalokagathiacutea constitui sempre no mundo inteiro algo de muito raro a flor suprema da forma e da cultura humanas a qual soacute floresce de modo completo nas criaturas mais nobres de uma raccedila

O conceito de homem grego no seacuteculo IV aC amplia-se para aleacutem dos muros

da Heacutelade Isoacutecrates no Panegiacuterico 50 afirma que os povos que participam da paideia

recebem o nome de gregos com maior propriedade do que os proacuteprios gregos Tambeacutem

natildeo podia passar despercebido que ldquo[] a grandeza dos Persas reside em terem sabido

criar um escol de cultura e formaccedilatildeo humana []rdquo (JAEGER 1995 p1148) Xenofonte

ensaia uma cultura globalizada na qual o melhor de cada povo acorreria para a formaccedilatildeo

do liacuteder ideal42 As qualidades do soberano ideal traccediladas por Xenofonte trafegam tanto

pela helenofilia quanto pela areteacute persa a piedade (εὐσέβεια eusebeia) a justiccedila43

(δικαιοσύνε dikaiosyne) o respeito (αἰδώς aidos) a generosidade44 (εὐεργεσία

euergesia) a gentileza (πραότης praotes) a obediecircncia (πειθώ peitho) e a

continecircncia (ενκράτεια enkrateia)

Segundo Collingwood (1981 p45) no helenismo os gregos observaratildeo os

baacuterbaros como detentores de uma cultura vaacutelida da qual os gregos tambeacutem podem

apreender valiosos ensinamentos Para os gregos do seacuteculo V aC em especial

Heroacutedoto o baacuterbaro surgia apenas como contraste como elemento valorativo da sua

42 A ideia da intercomunicaccedilatildeo de culturas perpassa de algum modo pela proacutepria obra figurativizada na experiecircncia da infacircncia de Ciro em contato com a cultura dos medos A despeito do efeito pateacutetico do luxo desmedido dos medos Ciro aprende com eles ensinamentos valiosos que o distinguiraacute dos persas que foram educados apenas na instituiccedilatildeo educacional do Estado persa Veremos mais agrave frente que a supremacia de Ciro eacute fruto da intercomunicaccedilatildeo da cultura persa e meda 43 A justiccedila eacute a principal meta da educaccedilatildeo dos persas em contraste com a educaccedilatildeo ateniense que se centrava na aprendizagem da γραμματική τέχνή 44 A generosidade eacute apresentada na Ciropedia por meio de qualidades mais concretas φιλανθροπία

φιλομαθία φιλοτίμια

33

proacutepria cultura O baacuterbaro surgia pelo exotismo natildeo pela ἀρετή Segundo Edward Said

(2008) o orientalismo eacute um discurso estruturalmente formado e reforccedilado pelo e para o

Ocidente sobre o Oriente em que se constroacuteem uma incisiva relaccedilatildeo de poder de uma

cultura sobre a outra O Oriente nesse sentido eacute uma invenccedilatildeo do Ocidente

estigmatizado pelo exotismo e pela inferioridade como lugar de episoacutedios romanescos

seres exoacuteticos lembranccedilas e paisagens encantadas e extraordinaacuterias (SAID 2008 p27)

Concluiacutemos que Xenofonte em vista de expor as suas ideias a respeito do

governo ideal procurou associar elementos gregos e persas A idelizaccedilatildeo de Ciro

portanto eacute consequumlecircncia e causa da ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria Com isso Xenofonte

negligenciou tambeacutem a principal lei da histoacuteria a fidelidade agrave verdade Como observa

Fancan um dos primeiros teoacutericos do romance europeu no seacuteculo XVIII

Concordo que louvem agrave vontade entre outros a Ciropedia de Xenofonte por causa do proveito oriundo da sua leitura contanto que confessem tambeacutem que este autor lanccedilou por escrito natildeo quem foi Ciro mas o que Ciro deveria ser (FANCAN apud CANDIDO 1989 p98)

224 A Ciropedia na tradiccedilatildeo da narrativa

Jaacute assinalamos anteriormente a dificuldade dos criacuteticos em classificar a

Ciropedia quanto ao gecircnero A dificuldade quanto ao enquadramento geneacuterico da

Ciropedia reside principalmente no fato de a obra tratar de um tema histoacuterico (a vida

de Ciro) com liberdade manipulando ficcionalmente o material histoacuterico conhecido

Nesta subseccedilatildeo apontaremos como a Ciropedia se insere na tradiccedilatildeo narrativa do

Ocidente buscando compreender as relaccedilotildees da obra com o gecircnero do romance Neste

percurso eacute inevitaacutevel e essencial refletir a respeito das questotildees entre ficccedilatildeo e histoacuteria

Nossa preocupaccedilatildeo eacute definir a Ciropedia como uma obra ficcional em conformidade

com Due (1989) Stadtler (2010) Tatum (1989) e Gera (2003)

Neste percurso de anaacutelise procuraremos conciliar com as reflexotildees sobre o

romance propriamente dito a interpretaccedilatildeo dos antigos a respeito dos seus proacuteprios

gecircneros Aleacutem disso fazem-se necessaacuterios alguns esclarecimentos a respeito da

34

terminologia para que natildeo pareccedila uma enorme anacronia ndash e ingenuidade ndash chamar uma

obra do seacuteculo IV aC de romance

2241 O conceito de romance e seu uso anacrocircnico

Na Antiguidade natildeo havia uma terminologia especiacutefica para a prosa ficcional

Para Whitmarsh (2008 p3) a ausecircncia de um termo proacuteprio para este tipo de produccedilatildeo

literaacuterio torna o uso anacrocircnico do termo romance (em inglecircs novel) necessaacuterio para o

estudioso Todavia acreditamos que mais do que rotular a obra do passado o uso

anacrocircnico de um termo nos permite observar a preacute-histoacuteria do gecircnero no caso do

gecircnero do romance As formas literaacuterias passam por um intenso processo de formaccedilatildeo

ateacute que encontram o momento histoacuterico propiacutecio para a sua formulaccedilatildeo literaacuteria e

esteacutetica caracterizadora A eacutepica homeacuterica por exemplo eacute um momento posterior de

um longo processo de tradiccedilatildeo oral que se desenvolveu ateacute encontrar em Homero a sua

mais perfeita realizaccedilatildeo Neste sentido eacute necessaacuterio termos a consciecircncia dos limites do

uso da terminologia estabelecendo as suas devidas ressalvas

O surgimento da palavra romance no seacuteculo XII estaacute ligado agraves literaturas de

liacutenguas romacircnicas em oposiccedilatildeo agrave literatura escrita em latim (romanice loqui latine

loqui) Por conseguinte o romance opotildee-se agravequeles gecircneros discursivos que foram

produzidos pela Antiguidade e que ainda eram aceitos como verdadeira literatura Aleacutem

disso o termo implicava uma ldquomodalidade de gecircnero narrativo ficcional cuja

intencionalidade baacutesica seria o divertimentordquo (BRANDAtildeO 2005 p25) Assim o

romance designa desde o comeccedilo uma forma de discurso literaacuterio nova moderna em

oposiccedilatildeo aos gecircneros da Antiguidade Natildeo havia no entanto distinccedilatildeo entre as

narrativas em verso e em prosa distinccedilatildeo esta que comeccedila a surgir no seacuteculo XV com

os romances de cavalaria em prosa tomando o sentido moderno a partir do seacuteculo XVII

com a publicaccedilatildeo do Dom Quixote de Cervantes (GOFF 1972 p164) Diante desse

fato ldquo[] alguns estudiosos consequentemente ainda hoje refutam chamar as prosas

narrativas da Antiguidade como ldquoromancesrdquo ou ldquonovelas []rdquo45 (HOLZBERG 2003

p11)

45 No original ldquoSome scholars consequently still refuse now to talk of the prose narratives of antiquity as ldquoromancesrdquo or ldquonovelsrdquordquo

35

Holzberg entretanto a despeito do anacronismo dos termos mas mediante a

semelhanccedila entre as formas antigas e modernas acredita que devemos consentir com os

anacronismos (HOLZBERG 2003 p11) Para o criacutetico o real problema eacute discutir quais

obras da Antiguidade podem ser chamadas de romance O conceito de gecircnero deve ser

legitimado nesse contexto fixando criteacuterios para a classificaccedilatildeo destas obras

O romance como gecircnero seacuterio do cacircnone literaacuterio se afirma apenas com o

desenvolvimento da sociedade burguesa nos seacuteculos XVIII e XIX Para Georg Lukaacutecs

em seu artigo O romance como epopeia burguesa (1999 p87) embora existam obras

em muitos aspectos semelhantes aos romances na Antiguidade e na Idade Meacutedia todas

as contradiccedilotildees da sociedade burguesa encontram sua expressatildeo neste gecircnero

provocando mudanccedilas tatildeo sensiacuteveis agraves formas narrativas que ldquo[] se pode aqui falar de

uma forma artiacutestica substancialmente nova []rdquo No romance o caraacuteter poeacutetico da

epopeia eacute substituiacutedo pelo caraacuteter prosaico da modernidade O caraacuteter poeacutetico da

epopeia eacute caracterizado segundo Lukaacutecs ndash que retoma as concepccedilotildees esteacuteticas de Hegel

ndash pela totalidade extensiva da vida pois nela os desejos do heroacutei e as ambiccedilotildees da

sociedade encontram-se espontaneamente ligados (LUKAacuteCS 2009 p55) Na sociedade

moderna ao contraacuterio o caraacuteter prosaico eacute fruto da desagregaccedilatildeo do indiviacuteduo com a

sociedade e o romance deve retratar a realidade prosaica e a luta do indiviacuteduo contra

esta mesma realidade (LUKAacuteCS 1999 p91) Desse modo apesar do romance ldquo[]

apresentar todos os elementos caracteriacutesticos da forma eacutepica [] [e aspirar] os mesmos

fins a que aspira a epopeia antiga []rdquo (1999 p93) o produto romanesco eacute oposto

daquele da epopeia uma vez que as contradiccedilotildees sociais jaacute referidas impedem a

totalidade extensiva da vida a conjunccedilatildeo harmocircnica entre o homem e o mundo que eacute

caracteriacutestico da epopeia O destino do homem na epopeia estaacute em conjunccedilatildeo com o

destino da sociedade os impulsos do indiviacuteduo satildeo os mesmos da sociedade

Bakhtin (1998 p425) tambeacutem considera que ldquoUm dos principais temas

interiores do romance eacute justamente o tema da inadequaccedilatildeo de um homem ao seu destino

ou sua posiccedilatildeo []rdquo poreacutem esta desagregaccedilatildeo eacute apenas um tema fundamental e

produtivo para seu desenvolvimento moderno mas que natildeo abarca todas as

possibilidades romanescas Para o teoacuterico russo ainda que o gecircnero se afirme com a

sociedade burguesa a forma romanesca surge muito antes desenvolvendo-se em

variados processos literaacuterios e culturais ateacute encontrar no romance moderno a sua forma

mais apropriada Isso significa que o romance moderno eacute uma das formas mais

produtivas da eacutepica poreacutem natildeo a uacutenica e sua formaccedilatildeo e desenvolvimento satildeo

36

devedoras de diversas formas literaacuterias Em Epos e Romance Bakhtin (1998 p427)

afirma que a principal diferenccedila entre a epopeia e o romance estaacute na distacircncia entre o

autor e o passado enquanto a epopeia constroacutei uma distacircncia eacutepica entre o presente e o

passado que eacute absoluto e fechado o romance se formou no processo de destruiccedilatildeo da

distacircncia eacutepica representando tanto o passado quanto o presente como uma realidade

inacabada A partir desta definiccedilatildeo Bakhtin natildeo receia em chamar de romance uma

variedade muito ampla tanto histoacuterica como formal de narrativas inclusive a

Ciropedia cuja ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria eacute para Bakhtin marca essencial do caraacuteter

romanesco da obra pois destroacutei a distacircncia entre o presente do autor e o passado do

narrado O passado eacute aproximado pelo presente inacabado com suas contradiccedilotildees e

interesses que deformam aquele passado Desse modo Bakhtin amplia o conceito de

romance para aleacutem daquela especificidade lukacseana

Em A Natureza da Narrativa (1977) os estudiosos Scholes e Kellogg comentam

que escrever sobre a tradiccedilatildeo da narrativa no Ocidente eacute de certa forma escrever sobre

a genealogia do romance jaacute que tem sido este o gecircnero dominante na literatura do

Ocidente nos uacuteltimos seacuteculos No entanto eles observam que o conceito de narrativa

que se centraliza no romance ldquo[] nos aparta da literatura narrativa do passado e da

cultura do passado [] [assim como] nos separa da literatura do futuro e mesmo da

vanguarda de nossos proacuteprios dias []rdquo (SCHOLES KELLOGG 1977 p5)

Procurando portanto outra abordagem Scholes e Kellogg natildeo encaram o romance

como um produto final das formas narrativas anteriores mas como uma possibilidade

narrativa que encontrou na Idade Moderna solo propiacutecio para se firmar e afirmar

Assim a definiccedilatildeo de narrativa por eles proposta permite a generalizaccedilatildeo necessaacuteria

para abarcar as mais variadas formas de narrativa ldquoEntendemos por narrativa todas as

obras literaacuterias marcadas por duas caracteriacutesticas a presenccedila de uma estoacuteria e de um

contador de estoacuterias []rdquo (SCHOLES KELLOGG 1977 p1) Brandatildeo (2005 p33)

acrescenta ainda uma terceira categoria a do destinataacuterio ou narrataacuterio

O romance eacute antes de tudo uma narrativa ficcional em prosa uma das formas

do epos que se divide (e se modifica) em uma grande quantidade de formas literaacuterias

Ao utilizarmos portanto a terminologia romance noacutes temos em vista seu caraacuteter

formal miacutenimo das narrativas e principalmente a aproximaccedilatildeo do passado histoacuterico por

meio da ficccedilatildeo

37

2242 A ficccedilatildeo em prosa na Greacutecia

Na Antiguidade segundo Holzberg a ficccedilatildeo soacute se constroacutei como gecircnero

autocircnomo ou seja desvinculado da historiografia e da filosofia a partir do seacuteculo II

dC A dataccedilatildeo destas narrativas eacute incerta variando de criacutetico para criacutetico Muito

provavelmente estas primeiras narrativas surgiram nos seacuteculos I ou II aC e essa

produccedilatildeo desenvolveu-se ateacute o seacuteculo IV dC

Como gecircnero autocircnomo sua principal finalidade mas natildeo uacutenica eacute a expressatildeo

esteacutetica o luacutedico A narrativa em prosa que antes estava vinculada agrave histoacuteria e agrave

filosofia volta-se neste momento tambeacutem ao domiacutenio da ficccedilatildeo (BRANDAtildeO 2005

p30) Desse modo o corpus do romance grego antigo eacute representado pelas obras As

Etioacutepicas de Heliodoro Queacutereas e Caliacuterroe de Caacuteriton de Afrodiacutesias Leucipe e

Clitofonte de Aquiles Taacutecio Daacutefnis e Cloeacute de Longo e As Efesiacuteacas de Xenofonte de

Eacutefeso Essas obras satildeo denominadas de romances idealistas gregos e apresentam uma

estrutura em comum a uniatildeo do tema amoroso e do tema da viagem Acrescenta-se a

este grupo os romances latinos Satyricon de Petrocircnio e O Asno de ouro de Apuleio que

aleacutem de parodiarem os temas de amor e de aventura do romance idealista apresentam

uma mordaz saacutetira da sociedade romana Por este caraacuteter homogecircneo de sua estrutura

interna Holzberg define estas obras como proper novels (romances de fato)

Ao lado dos proper novels Holzberg chama a atenccedilatildeo para os fringe novels

romances perifeacutericos obras de ficccedilatildeo em prosa que apresentam natildeo soacute uma variedade

temaacutetica muito mais ampla do que a do proper novels mas tambeacutem uma aproximaccedilatildeo

com outros gecircneros (historiografia filosofia etc) o que torna o caraacuteter fronteiriccedilo

destas obras Nestas narrativas a ficccedilatildeo se relaciona com algum objetivo didaacutetico ou

informativo Neste conjunto Holzberg arrola as mais variadas obras a-) biografia

ficcional Ciropedia de Xenofonte Vida e Andanccedilas de Alexandre da Macedocircnia de

Pseudo-Caliacutestenes Vida de Esopo (anocircnimo) Vida de Apolocircnio de Tiana de Filoacutestrato

Atos dos apoacutestolos apoacutecrifos b-) autobiografia ficcional Pseudo-Clemente c-)

Cartas ficcionais Cartas de Eacutesquines Cartas de Quioacuten Cartas de Euriacutepides Cartas

de Hipoacutecrates Cartas de Platatildeo Cartas de Soacutecrates e dos socraacuteticos e Cartas de

Temiacutestocles

Aleacutem desta diferenccedila temaacutetica os proper novels narram a histoacuteria de

personagens completamente inventadas (nem miacuteticas nem histoacutericas) com particular

ecircnfase nos aspectos eroacuteticos ndash amor ideal dos jovens sua separaccedilatildeo e os obstaacuteculos para

38

o reencontro (WHITMARSH 2008 p3) ndash ao contraacuterio dos fringe novels que

ficcionalizam um dado material histoacuterico A mais antiga manifestaccedilatildeo de um fringe

novel eacute Ciropedia de Xenofonte escrita por volta de 360 aC

A relaccedilatildeo da Ciropedia com o romance ideal grego os proper novels pode ser

demonstrada por algumas razotildees primeiramente os mais antigos romancistas gregos

estabeleceram uma conexatildeo mais ou menos expliacutecita com Xenofonte Caacuteriton conhecia

e imitou certas partes da Ciropedia enquanto que o nome Xenofonte serviu como

pseudocircnimo para alguns dos romancistas (TATUM 1994 p15) Em segundo lugar

pela presenccedila da narrativa secundaacuteria de Panteacuteia e Abradatas na tessitura narrativa da

Ciropedia Esta narrativa secundaacuteria apresenta os principais elementos do tema amoroso

do romance idealista grego o amor puro dos protagonistas que satildeo personagens

completamente ficcionais a separaccedilatildeo dos namorados a fidelidade eacute constantemente

posta agrave prova e por fim o reencontro dos apaixonados

No entanto uma vez que a estrutura da Ciropedia natildeo se resume a estrutura dos

ἐρότικοι λόγοι (erotikoi logoi) mas abrange outras estruturas narrativas haacute

dificuldade por parte dos criacuteticos (BRANDAtildeO 2005 GUAL 1988 HOLZBERG

1993) em aceitaacute-la como um romance propriamente dito Para Jacyntho Lins Brandatildeo

haacute em Heroacutedoto e Xenofonte assim como tambeacutem nos historiadores helenistas ldquo[]

trechos claramente romanceados envoltos entretanto num enquadramento histoacuterico

[]rdquo (2005 p165) O enquadramento histoacuterico a que se refere Brandatildeo (2005)

concede ao texto uma finalidade diferente da finalidade do texto romanesco pois

determina que o objetivo da narrativa natildeo seja o prazeroso e o agradaacutevel poreacutem o uacutetil46

O uacutetil se alcanccedila apenas com a verdade Nesta perspectiva os elementos romanescos em

Xenofonte seriam traccedilos estiliacutesticos aqui e ali revisitados que embelezam o discurso

mas natildeo o determinam

Poreacutem a clara idealizaccedilatildeo da personagem Ciro revela que o autor tinha outros

propoacutesitos aleacutem do da verdade histoacuterica e sua utilidade do ponto de vista histoacuterico e

que esta em verdade natildeo determina o estatuto da obra poreacutem estaacute a serviccedilo como

estrateacutegia discursiva do propoacutesito ficcional da narrativa Discutiremos no Capiacutetulo 3 de

nossa Dissertaccedilatildeo a respeito de como a idealizaccedilatildeo com que Ciro eacute apresentado estaacute

intimamente ligada a processos de ficcionalizaccedilatildeo do material histoacuterico

46 Cf Luciano de Samoacutestata Como se deve escrever a histoacuteria Belo Horizonte Tessitura 2009

39

O Ciro pintado por Xenofonte estaacute mais proacuteximo do heroacutei de uma gesta heroica

do que de uma personagem real (GERA 1993 CHRISTENSEN 1957) isto em virtude

dos elementos idealizantes da narrativa A Ciropedia portanto apresenta tanto

caracteriacutesticas romacircnticas quanto idealistas antecipando o caraacuteter essencial da temaacutetica

do romance grego Em nossa opiniatildeo a escolha de um tema histoacuterico por parte de

Xenofonte estaacute intimamente ligada ao estatuto da ficccedilatildeo no seacuteculo V e IV aC Quando

Xenofonte escreve suas obras a ficccedilatildeo natildeo eacute tema das narrativas em prosa mas da

poesia seja dramaacutetica seja liacuterica (DrsquoONOFRIO 1976 BOWERSOCK 1994)

A ficccedilatildeo estabelece o reino do ψεῦδος (pseudos) mentira que unida a

verossimilhanccedila cria o efeito de verdade ἀληθήα (alethea) Os historiadores do

seacuteculo V procuraram dissociar-se dos gecircneros poeacuteticos depurando pelo λόγος (loacutegos)

o passado histoacuterico Desse modo o discurso em prosa eacute um discurso que se pretende

verdadeiro No entanto por exemplo nas Histoacuterias de Heroacutedoto haacute prazerosas

narrativas que deveriam em seu puacuteblico de ouvintes repercutir como belas histoacuterias

inventadas iguais as aventuras que Odisseu narrava aos feaacutecios Entretanto Heroacutedoto

reserva o maravilhoso agravequilo que natildeo pode ser comprovado pela visatildeo e pela

investigaccedilatildeo (ἱστορίη historie) A etimologia da palavra ἱστορίη relaciona-se com o

vocaacutebulo ἵστωρ (histor) aquele que viu algo a testemunha Portanto a ficccedilatildeo na

historiografia de Heroacutedoto faz parte do incerto uma mentira que se assume como natildeo

comprovaacutevel por testemunhas

Para pensar no estatuto ficcional dos gecircneros literaacuterios natildeo devemos nos

esquecer de um gecircnero que se desenvolveu no seacuteculo V e que mesmo em prosa

procurava assumir as qualidades dos textos poeacuteticos o discurso epidiacutetico Segundo

Roland Barthes (1975 p149) Goacutergias ao compor seu Elogio de Helena estabelece agrave

prosa o direito de ser natildeo apenas uacutetil mas tambeacutem agradaacutevel O gecircnero epidiacutetico (para

os romanos encomiaacutestico) marca o aparecimento de uma prosa decorativa com

finalidade esteacutetica

O desenvolvimento deste gecircnero epidiacutetico estimulou a criaccedilatildeo de um tipo de

narrativa em prosa cujo tema eacute o elogio de uma personagem histoacuterica e ilustre a

biografia47 As primeiras obras que surgiram com este tema satildeo o Evaacutegoras de

47 O termo biografia aparece pela primeira vez na Vida de Alexandre de Plutarco no seacuteculo II Segundo Momigliano (1993) as formas biograacuteficas anteriores a Plutarco satildeo denominadas pelos antigos como gecircnero epidiacutetico ou encocircmio Neste trabalho trataremos todas as obras com caraacuteter biograacutefico sejam posteriores sejam anteriores a Plutarco como biografia

40

Isoacutecrates48 e o Agesilau de Xenofonte Aleacutem de narrarem a vida de uma personagem

ilustre e real as biografias apresentam tambeacutem um caraacuteter didaacutetico pois os homens

ilustres escolhidos devem servir de modelo para os leitores (CARINO 1999) O gecircnero

biograacutefico portanto une agrave utilidade didaacutetica a preocupaccedilatildeo esteacutetica pois se origina do

gecircnero epidiacutetico Precisamos agora relacionar o gecircnero biograacutefico agrave ficccedilatildeo

O tema da biografia como o da historiografia eacute um tema da histoacuteria do

passado No entanto como satildeo gecircneros diferentes a forma e o sentido destes gecircneros

satildeo construiacutedos e se dirigem para puacuteblicos diferentes Como nos lembra Linda

Hutcheon (1991 p122) ldquo[] o sentido e a forma natildeo estatildeo nos acontecimentos mas

nos sistemas que transformam esses lsquoacontecimentosrsquo passados em lsquofatosrsquo histoacutericos

presentes []rdquo Momigliano em seu livro The development of the ancient biography

(1993 p 55) afirma que a biografia adquiriu um novo significado quando no seacuteculo IV

aC os bioacutegrafos ligados a Soacutecrates trafegavam com liberdade os limites entre verdade

e ficccedilatildeo A biografia era direcionada para capturar as potencialidades tanto quanto a

realidade da vida individual A fronteira entre ficccedilatildeo e realidade foi mais diluiacuteda na

biografia do que na historiografia e a expectativa do leitor para cada um dos gecircneros

deveria ser diferente Assim o que os leitores esperavam da biografia era diferente do

que esperavam das histoacuterias poliacuteticas Enquanto a historiografia tratava de temas

poliacuteticos e militares pois estes eram os feitos grandiosos dos homens os bioacutegrafos

tratavam da vida particular dos homens ilustres O puacuteblico da biografia queria

informaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo os casos de amor e o caraacuteter de seus heroacuteis Mas essas

informaccedilotildees satildeo menos faacuteceis de se documentar do que guerras e reformas poliacuteticas e se

os bioacutegrafos quisessem manter seu puacuteblico eles deveriam se utilizar da ficccedilatildeo

(MOMIGLIANO 1993 p57)

Tomemos o testemunho de Poliacutebio Em suas Histoacuterias 1021 Poliacutebio afirma que

escreveu sobre Filopoimen49 uma obra em trecircs livros na qual revela a natureza desta

personagem de qual descendecircncia provinha e qual a natureza da sua educaccedilatildeo aleacutem de

seus feitos mais famosos Poreacutem nesta obra isto eacute nas Histoacuterias que eacute uma obra

historiograacutefica ldquo[] eacute adequado (πρέπον prepon) subtrair (ἀφελεῖν aphelein) toda

48 No Evaacutegoras Isoacutecrates afirma que o objetivo de sua obra eacute encomiar com palavras a virtude de um homem e que nenhum autor jaacute escrevera sobre este tema Aleacutem disso nos paraacutegros 8-12 Isoacutecrates procura asseguar ao orador do encocircmio os mesmos recursos estiliacutesticos dos poetas para que dessa forma o discurso seja reconhecido pelas suas qualidades esteacuteticas 49 Filopoimen (253-183) foi general e poliacutetico grego que ocupou o cargo de estratego da Liga Aqueia em oito ocasiotildees Em 183 foi aprosionado em uma expediccedilatildeo agrave Messecircnia e obrigado a beber cicuta

41

quota sobre a sua formaccedilatildeo juvenil [] para que o que eacute caracteriacutestico de cada uma das

composiccedilotildees seja respeitado []rdquo Aleacutem desta constataccedilatildeo temaacutetica Poliacutebio ainda

acrescenta que em sua obra anterior escrita em forma encomiaacutestica (ἐγκωμιαστικός

enkomiastikos) impunha (ἀπῄτει apeitei) uma narraccedilatildeo (ἀπολογισμόν

apologismon) sumaacuteria (τὸν κεφαλαιώδη kefalaiode) e exagerada (amplificaccedilatildeo) dos

fatos (μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων metrsquo aukseseos ton prakseon) enquanto que na

obra presente que eacute uma histoacuteria (ἱστορίας historias) os elogios e as censuras

(ἐπαίνου καὶ ψόγου epainou kai psogou) satildeo distribuiacutedos imparcialmente visando agrave

verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ dzetei ton alethe)

Poliacutebio distingue conscientemente o encocircmio da histoacuteria pelo criteacuterio de verdade

dos fatos enquanto a Histoacuteria deve sempre visar agrave verdade pois eacute esta que garante a

utilidade da Histoacuteria ao encocircmio eacute permitido amplificar os fatos exageraacute-los ou

inventaacute-los desde que estes revelem o caraacuteter do homem biografado O interesse do

historiador eacute a verdade dos fatos o do encomiaacutesta eacute o caraacuteter do homem Para alcanccedilar

este objetivo o bioacutegrafo se utiliza de diversos modos de ficcionalizar este passado

Desse modo compreendemos que haacute no gecircnero biograacutefico um importante

desenvolvimento ficcional da narrativa em prosa na Greacutecia que natildeo deve ser

menosprezado pelo criacutetico literaacuterio A biografia em virtude de sua origem epidiacutetica

estava mais preocupada com valores esteacuteticos e didaacuteticos do que com a utilidade da

verdade

O tema da Ciropedia natildeo eacute a histoacuteria dos povos como as obras de Heroacutedoto e de

Tuciacutedides mas a vida de um homem ilustre Ciro Afasta-se deste modo dos temas

historiograacuteficos e se aproxima dos temas da biografia No proecircmio da Ciropedia o

narrador afirma que

[6] Em vista de esse homem ser merecedor de admiraccedilatildeo noacutes examinamos de qual famiacutelia era qual natureza possuiacutea e em que tipo de educaccedilatildeo foi instruiacutedo a tal ponto que se distinguiu no governar os homens Portanto o quanto noacutes averiguamos e o quanto julgamos ter compreendido sobre ele tentaremos discorrer 50 (Cirop 11 6)

50 Nas referecircncias agrave obra Ciropedia passaremos a fazer a abreviaccedilatildeo Cirop No original ἡμεῖς μὲν δὴ

ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδρα ἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν

τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶς παιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν

ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα

πειρασόμεθα διηγήσασθαι

42

O tema da Ciropedia portanto eacute a vida (βίος bios) de Ciro o homem (ἀνδρα

andra) que foi digno da admiraccedilatildeo do narrador O narrador divide seu material em trecircs

temas principais a genealogia γένεαν (geacutenean) a natureza φύσιν (phyacutesin) e a

educaccedilatildeo παιδεία (paideia) Segundo Menandro Reacutetor (1996) em seu segundo tratado

sobre o gecircnero epidiacutetico γένεαν φύσιν e παιδέια satildeo toacutepoi do gecircnero epidiacutetico

Portanto o narrador da Ciropedia jaacute assinala aos leitores que eles devem esperar da

narrativa natildeo dados histoacutericos precisos mas a narrativa da vida particular da

personagem e que esta revelaraacute o verdadeiro caraacuteter do heroacutei

2243 Modos de Imitaccedilatildeo da Ciropedia

A combinaccedilatildeo de ficccedilatildeo e histoacuteria entretanto natildeo eacute exclusividade desta obra

mas segundo Momigliano eacute proacutepria do gecircnero da biografia antiga e portanto deve ser

entendida como um fator de novidade na literatura do seacuteculo IV aC A nosso ver a

novidade apresentada pela Ciropedia estaacute em aliar esta temaacutetica da biografia ao modo

de imitaccedilatildeo executado na narrativa51 pois o modo de imitaccedilatildeo da Ciropedia difere do

modelo apresentado pelas biografias anteriores

Para compreendermos esta afirmaccedilatildeo pensemos nas obras Agesilau de

Xenofonte e Evaacutegoras de Isoacutecrates Estas satildeo biografias cujo modo de imitaccedilatildeo eacute

executado por uma narraccedilatildeo simples (ἁπλή διήγησις aple diegesis) ou seja o

narrador (ἀπαγγέλλον52 apangellon) fala sempre por si mesmo sem mimetizar outros

locutores no discurso direto Desse modo o narrador estaacute expliacutecito por todo o discurso

mediando e distanciando o narrado do leitor Este tipo de biografia modernamente eacute

chamado de biografia analiacutetica ldquo[] do tipo ensaiacutestico interpretativo e natildeo

forccedilosamente factualista []rdquo (REIS 2000 p48)

51 A terminologia aqui adotada eacute a que Platatildeo apresenta na Repuacuteblica (III 392 d) ldquoAcaso tudo quanto dizem os prosadores e poetas natildeo eacute uma narrativa de acontecimentos passados presentes ou futuros [] Porventura eles natildeo a executam por meio de simples narrativa [ἁπλῇ διήγήσει] atraveacutes da miacutemese [διὰ

μιμήσεως] ou por meio de ambas [διrsquo ἀμφοτέρων περαίνουσιν]rdquo Essa traduccedilatildeo eacute de Maria Helena da Rocha Pereira (1980) 52 O termo ἀπαγγέλλον particiacutepio do verbo ἀπαγγέλειν eacute usado por Aristoacuteteles na Poeacutetica 1448 a Para Brandatildeo (2005 p46-48) este termo estaacute ligado agrave funccedilatildeo do mensageiro ἄγγελος das trageacutedias Os mensageiros satildeo introduzidos em cena para narrar as accedilotildees ocorridas fora de cena Assim a funccedilatildeo do narrador eacute comunicar ldquosituaccedilotildees falas objetos distanciados do recebedor no tempo e no espaccedilordquo (BRANDAtildeO p48)

43

A Ciropedia entretanto desenvolve-se como uma narrativa mista executada ora

por meio da narraccedilatildeo (διὰ διηγήσεως dia diegeseos) ora por meio da imitaccedilatildeo (διὰ

μιμήσεως dia mimeseos) Assim ao contraacuterio do que ocorre nas outras biografias o

narrador da Ciropedia aleacutem de mediar o discurso tambeacutem mimetiza outros locutores

por meio de discurso direto O resultado deste procedimento eacute uma sorte de narrativa

ldquodramatizadardquo53 no sentido de que por meio de cenas54 o narrador desaparece

parcialmente da cena do discurso Parcialmente pois o narrador controla a organizaccedilatildeo

destas locuccedilotildees desenrolando ou condensando a cena Eacute a biografia narrativa ldquo[]

centrada na dinacircmica da histoacuteria de uma vida recorrendo de forma mais ou menos

acentuada a estrateacutegias de iacutendole narrativardquo (REIS 2000 p48)

Isso significa que pelo modo de imitaccedilatildeo a Ciropedia se assemelha ao gecircnero

eacutepico pois este gecircnero tambeacutem apresenta uma narrativa mista tanto narrada quanto

mimetizada e se afasta do gecircnero biograacutefico cujo modo de imitaccedilatildeo eacute executado por

uma narraccedilatildeo simples Por isso a obra eacute singular pois dentre as obras biograacuteficas a

Ciropedia foi a primeira a trazer essa sorte de imitaccedilatildeo mista55

O gecircnero historiograacutefico tambeacutem eacute um gecircnero misto No entanto diferencia-se

do gecircnero eacutepico e do biograacutefico porque seu discurso pretende ser a narraccedilatildeo do

verdadeiro isto eacute narrar as accedilotildees que realmente aconteceram natildeo as que poderiam

acontecer O gecircnero biograacutefico no entanto como dissemos anteriormente incrementa

os dados histoacutericos com informaccedilotildees ficcionais da vida particular do homem ilustre

Assim a Ciropedia eacute uma narrativa mista de eventos que aconteceram mas

principalmente de eventos da vida particular que poderiam ter acontecido Portanto

podemos dizer que a Ciropedia eacute uma obra eacutepica de ficccedilatildeo em prosa

Desse modo acreditamos que se revela a verdadeira inovaccedilatildeo da Ciropedia em

relaccedilatildeo ao romance tanto antigo quanto moderno Nesta perspectiva a obra torna-se

profundamente importante na tradiccedilatildeo da narrativa

Aleacutem disso o modo de imitaccedilatildeo da Ciropedia ou seja com um narrador

executando uma narrativa mista propicia a absorccedilatildeo de outros gecircneros literaacuterios dentro

53 O sentido de dramatizada aqui usado eacute o mesmo da mimese em oposiccedilatildeo agrave diegeacutese ou seja o narrador reproduz por meio do discurso direto as falas das personangens e desse modo aproximando-se do tipo de representaccedilatildeo teatral Na terminologia estabelecida por Lubbock (1939) este tipo de representaccedilatildeo da narrativa eacute chamada de showing 54 Segundo Reis (2000 p53) ldquo[] a instauraccedilatildeo da cena traduz-se antes de mais na reproduccedilatildeo do discurso das personagens [] que naturalmente implica que o narrador desapareccedila total ou parcialmente da cena do discursordquo 55 As outras biografias romanceadas ou ficcionais da Antiguidade posteriores agrave Ciropedia tambeacutem apresentam este caraacuteter de imitaccedilatildeo mista

44

da estrutura diegeacutetica Isso porque a mimetizaccedilatildeo de locutores dentro da narrativa

fornece a oportunidade para que as personagens discursem dialoguem ou mesmo

narrem narrativas secundaacuterias Desse modo o narrador conduz a narrativa introduzindo

os entrechos poreacutem logo introduzindo outras personagens cuja locuccedilatildeo seraacute

mimetizada56

Retomando e concluindo o primeiro capiacutetulo a Ciropedia eacute uma narrativa

biograacutefica e desse modo procura incrementar os dados histoacutericos com a narraccedilatildeo da

vida particular do homem ilustre que eacute objeto da biografia Luciano Cacircnfora (2004)

aponta a erupccedilatildeo da vida privada dentro da narrativa histoacuterica como a principal

inovaccedilatildeo da narrativa claacutessica para o desenvolvimento do romance grego idealista

Aleacutem disso o modo de imitaccedilatildeo da Ciropedia eacute o de uma narrativa mista pois o

narrador mimetiza na diegese a locuccedilatildeo de outras personagens ou seja o narrador daacute

voz agraves personagens A mimetizaccedilatildeo de outros locutores propicia a absorccedilatildeo de outros

gecircneros literaacuterios pois fornece a oportunidade para as personagens discursarem

dialogarem e narrarem pequenas narrativas Assim a Ciropedia tanto efetua a siacutentese de

elementos ficcionais e histoacutericos quanto absorve gecircneros literaacuterios dentro da narrativa

estabelecendo-se como uma verdadeira forma romanesca inovadora na preacute-histoacuteria do

romance

56 Brandatildeo (2005) intrepreta o sentido de mimetizar como ldquoimitaccedilatildeo de diferentes locutoresrdquo A interpretaccedilatildeo baseia-se na formulaccedilatildeo de Aristoacuteteles na Poeacutetica (1460 a) quando Aristoacuteteles elogia Homero como o melhor dos mimetai pois o proacuteprio narrador interfere pouco na narraccedilatildeo preferindo mimetizar a locuccedilatildeo de outros personagens

45

3 Reescrevendo o passado ficcionalizando a histoacuteria

Como o romance a historia seleciona simplifica organiza faz com que um seacuteculo caiba numa paacutegina e essa siacutentese

da narrativa eacute tatildeo espontacircnea quanto a da nossa memoacuteria []

Paul Veyne 1982 p11-12

Por sua forma narrativa pelos conflitos personalizados de suas personagens o romance

estaacute junto natildeo soacute da prosa diaacuteria quanto da forma narrativa privilegiada desde fins do

seacuteculo XVIII a forma da Histoacuteria Luiacutez Costa Lima 1984 p111

Neste capiacutetulo analisaremos a relaccedilatildeo de intertextualidade existente entre a

narrativa de Xenofonte e a obra Histoacuterias de Heroacutedoto uma vez que o tema da

Ciropedia a vida de Ciro jaacute fora abordado antes na obra de Heroacutedoto Aleacutem de

Heroacutedoto tambeacutem Cteacutesias de Cnido e Antiacutestenes abordaram a vida de Ciro poreacutem

apenas a obra de Heroacutedoto nos chegou in extenso Eacute portanto a nossa uacutenica fonte

histoacuterica disponiacutevel para nos informar o que era considerado dado histoacuterico sobre o

tema na eacutepoca de Xenofonte Assim consideramos que a comparaccedilatildeo entre as

narrativas tanto do conteuacutedo quanto dos aspectos formais faz-se necessaacuteria para uma

melhor compreensatildeo da obra xenofonteana

Efetuaremos nossa anaacutelise retomando conceitos de intertextualidade e

imitaccedilatildeo aleacutem de pensar na relaccedilatildeo entre histoacuteria e ficccedilatildeo Nosso objetivo eacute demonstrar

como Xenofonte cria sua ficccedilatildeo idealizada a partir dos dados histoacutericos Isso significa

que a ficccedilatildeo se mescla ao texto histoacuterico e com ele se confunde Por meio desta

estrateacutegia o leitor eacute persuadido da verdade dos fatos narrados pela obra ficcional Para

isso antes da anaacutelise comparativa propriamente dita traremos alguma discussatildeo que

vise agrave aproximaccedilatildeo entre histoacuteria e literatura para que estas duas produccedilotildees do

pensamento humano natildeo sejam vistas como dissociadas

31 Histoacuteria e Literatura

46

O passado existe no tempo e antes de ser tomado pela linguagem mas o passado

soacute se torna fato histoacuterico por meio da linguagem Assim o discurso recupera e

reconstroacutei os acontecimentos passados para lhes dar um sentido e uma forma estando o

sentido e a forma conforme Linda Hutcheon (1991 p122) natildeo nos ldquoacontecimentos

em sirdquo mas na linguagem que os recuperou Entretanto cada gecircnero (histoacuteria romance

teatro etc) apresenta as suas proacuteprias caracteriacutesticas linguiacutesticas e discursivas o que

significa que o passado seraacute representado de um modo especiacutefico de acordo com o

gecircnero que o reconstrua Eacute necessaacuterio observar como cada gecircnero recupera o passado

tanto nos aspectos formais quanto nos aspectos discursivos sabendo que o mesmo

passado tende a se reconstruir diferentemente de acordo com as caracteriacutesticas de cada

gecircnero

Todos os romancistas gregos mantecircm uma importante relaccedilatildeo com a

historiografia seja construindo a narrativa em uma eacutepoca historicamente importante

seja se utilizando de recursos linguiacutesticos e estiliacutesticos dos historiadores (MORGAN

HARRISON 2008 p220)

No entanto o romance grego soacute se desenvolve plenamente entre o primeiro

seacuteculo aC e o quarto seacuteculo dC Poreacutem em suas primeiras manifestaccedilotildees a ficccedilatildeo em

prosa ainda estava intrinsecamente relacionada com a histoacuteria ou melhor com os

acontecimentos histoacutericos A histoacuteria com efeito eacute um dos elementos base na

organizaccedilatildeo da ficccedilatildeo (REacuteMY 1972 p157) Desse modo devemos para melhor

compreender as primeiras manifestaccedilotildees da ficccedilatildeo em prosa na Greacutecia Claacutessica

observar que relaccedilatildeo mantinham com o passado os gecircneros que neste tempo preacute-

romance floresciam na Antiguidade Nos seacuteculos V e IV aC a historiografia e a

biografia concorriam como gecircneros que representavam o passado

Sobre a historiografia podemos dizer que o sentido etimoloacutegico da palavra

histoacuteria ἱστορίη (historie) tal qual Heroacutedoto o emprega pela primeira vez significa

inqueacuterito ou pesquisa e a obra do historiador dessa forma eacute a ldquoexposiccedilatildeo da pesquisardquo

(ἀπόδεξις ἰστορίης apodeksis historiacutees) (Histoacuterias I1) Por conseguinte o

historiador deve por meio da pesquisa separar dos fatos passados o que eacute verdade e o

que eacute fantasia Os temas principais da historiografia grega eram os fatos poliacuteticos e

militares dos poderosos Estados (RAHN 1971 p498) para que os grandes feitos dos

homens natildeo fossem esquecidos (ἐξίτηλα γένηται eksitela genetai) Dessa forma

tanto com Heroacutedoto quanto com Tuciacutedides o historiador ldquo[] colocava-se como

47

testemunha e como registrador de mudanccedilas [] que em sua opiniatildeo eram importantes

o bastante para serem transmitidas agrave posteridaderdquo (MOMIGLIANO 1998 p187)

Quanto agrave biografia este gecircnero surgiu como forma de elogio de um indiviacuteduo

em conexatildeo com o gecircnero retoacuterico epidiacutetico ou encocircmio O epidiacutetico (ἐπιδεικτικόν

epideiktikon) ao lado do deliberativo (συμβουλευτικόν sumbouleutikon) e do

judiciaacuterio (δικανικόν dikanikon) formava os gecircneros da retoacuterica antiga57

(ARISTOacuteTELES Retoacuterica III 13) e estes gecircneros se distinguiam entre si pela

finalidade O fim do gecircnero epidiacutetico eacute o belo e o feio (τὸ καλὸν καὶ τὸ αἰσχρόν to

kalon kai to aischron) porque nele se censura e louva (ἐπαινοῦσιν καὶ ψέγουσιν

epainousin kai psegousin)

Segundo Momigliano (1998 p188) os relatos biograacuteficos natildeo eram

reconhecidos pelos antigos como histoacuteria mas como um gecircnero retoacuterico pois a

essecircncia da biografia era o elogio ou censura de uma personalidade enquanto que a

historiografia visando agrave verdade deveria abster-se de excessos de elogios e censuras

Assim a histoacuteria visava agrave objetividade para alcanccedilar a verdade enquanto no texto

biograacutefico deixava transparecer no relato a visatildeo subjetiva do bioacutegrafo

A palavra biografia eacute composta pelos termos βίος (vida) e γράφειν (escrever) e

foi usada pela primeira vez por Plutarco (seacutec II dC) na Vida de Alexandre (12-3) As

formas biograacuteficas anteriores a Plutarco satildeo denominadas pelos antigos de encocircmio

revelando com isso a origem epidiacutetica do gecircnero biograacutefico58 (MOMIGLIANO 1993

p10)

Como afirmamos anteriormente59 a fronteira entre ficccedilatildeo e realidade (histoacuteria)

foi mais diluiacuteda na biografia do que na historiografia60 O gecircnero biograacutefico segundo

Plutarco (Alexandre 12-3) revela uma verdade diferente da verdade historiograacutefica

pois natildeo aborda a narraccedilatildeo dos grandes feitos ndash tema da historiografia ndash mas dos

pequenos e cotidianos que revelam o verdadeiro caraacuteter dos homens ilustres

57 A triparticcedilatildeo dos gecircneros retoacutericos em deliberativo judiciaacuterio ou epidiacutetico (demonstrativo) manteve-se nos tratados retoacutericos dos romanos Cf Pseudo-Ciacutecero Retoacuterica a Herecircnio 2005 p55 58 Como afirmamos no capiacutetulo 1 no decorrer deste trabalho utilizaremos a designaccedilatildeo biografia de forma ampla seguindo desse modo Momigliano (1993) abrangendo por isso as obras encomiaacutesticas do seacuteculo IV aC 59 Cf a subseccedilatildeo 2242 60 Para Francis a riacutegida distinccedilatildeo entre literatura e histoacuteria deveria ser muito estranha para os leitores antigos pois a historiografia antiga foi a primeira a empregar estrateacutegias discursivas para criar ldquoficccedilotildees verdadeirasrdquo (FRANCIS 1988 p421) Para Morgan (1993 p186-187) a condiccedilatildeo essencial para que uma obra seja reconhecida como ficcional eacute que exista um contrato ficcional estabelecido que seja aceito pelos leitores

48

Momigliano (1993 p55) afirma que eacute justamente por meio da narraccedilatildeo dos fatos

pequenos cotidianos e particulares que a ficccedilatildeo se infiltra no material histoacuterico na

biografia A biografia se utiliza de um material histoacuterico (dados comprovaacuteveis pelas

fontes) a fim de que a narrativa ficcional tenha a aparecircncia de verdade e se confunda

com a proacutepria histoacuteria Assim a narrativa ficcional da biografia deveria ser coerente

com os dados para que o caraacuteter ndash revelado por meio dos feitos pequenos e cotidianos ndash

fosse coerente com as accedilotildees do biografado ndash revelado por meio dos feitos grandiosos

comprovados pelos dados histoacutericos61 Os leitores das biografias portanto natildeo soacute

mantinham como tambeacutem esperavam esse contrato de cumplicidade ficcional com as

biografias

Seria portanto a historiografia um gecircnero que se opusesse completamente agrave

ficccedilatildeo Segundo Momigliano (1998 p188) natildeo se pode compreender o trabalho dos

historiadores do seacuteculo V aC sem se levar em conta a formalizaccedilatildeo da retoacuterica puacuteblica

pois ldquo[o] relato dos historiadores devia proporcionar algum tipo de satisfaccedilatildeo a seus

leitoresrdquo (MOMIGLIANO 1998 p190) Tuciacutedides acusava Heroacutedoto de colocar o

deleite antes da instruccedilatildeo poreacutem uma das invenccedilotildees mais caracteriacutesticas de Tuciacutedides

ldquo[] o uso de falas fictiacutecias para relatar correntes da opiniatildeo puacuteblica e restabelecer as

motivaccedilotildees dos liacutederes poliacuteticos []rdquo (MOMIGLIANO 1998 p188) seria impensaacutevel

sem a formalizaccedilatildeo da retoacuterica O influxo da retoacuterica na historiografia fecirc-la

desenvolver-se para aleacutem da ambiccedilatildeo de verdade dos proacuteprios historiadores

Por meio destas primeiras reflexotildees parece-nos que a distinccedilatildeo para os antigos

entre a histoacuteria e a literatura eacute muito tecircnue Tanto a biografia quanto a historiografia

claacutessicas mostravam aptidatildeo para estetizar o material histoacuterico seja por meio de

recursos retoacutericos e estiliacutesticos seja por meio da ficccedilatildeo O romance grego acreditamos

surge dos desenvolvimentos narrativos efetuados por estes gecircneros Assim literatura e

histoacuteria natildeo devem ser vistas como poacutelos opostos e incomunicaacuteveis Para Bowersock

(1994 p14-15) o principal erro da teoria dos gecircneros eacute acreditar que os gecircneros satildeo

formas estanques e isoladas culturalmente poreacutem noacutes devemos lembrar que o contato

entre os gecircneros eacute mais constante do que se costuma afirmar

61 Na Poeacutetica 1454 Aristoacuteteles afirma que ldquo[t]anto na representaccedilatildeo dos caracteres como no entrecho das accedilotildees importa procurar sempre a verossimilhanccedila e a necessidade por isso as palavras e os atos de uma personagem de certo caraacuteter devem justificar-se por sua verossimilhanccedila e necessidade tal como nos mitos os sucessos de accedilatildeo para accedilatildeordquo (ARISTOacuteTELES 1966 p20)

49

Passemos agora a retomar algumas importantes reflexotildees feitas por Aristoacuteteles

Ciacutecero Hegel Barthes Veyne e Lukaacutecs a respeito das relaccedilotildees entre Literatura e

Histoacuteria procurando nelas observar limites mais frouxos entre os dois modos de

representaccedilatildeo

Aristoacuteteles na Poeacutetica 1451a-b estabelece que a distinccedilatildeo entre histoacuteria e poesia

se manifesta natildeo tanto pelo seu caraacuteter formal (o meio de imitaccedilatildeo) mas pelo conteuacutedo

(objeto de imitaccedilatildeo) Desse modo natildeo eacute o uso da prosa ou do verso que torna um texto

respectivamente histoacuterico ou poeacutetico A distinccedilatildeo para Aristoacuteteles estaacute no fato de que a

histoacuteria narra acontecimentos que realmente sucederam enquanto a poesia narra

acontecimentos que poderiam acontecer O discurso literaacuterio eacute a representaccedilatildeo ldquodo

possiacutevel segundo a verossimilhanccedila e a necessidaderdquo (ARISTOacuteTELES 1996 p79) Jaacute

o discurso histoacuterico se apropria dos fatos reais passados e particulares por isso ldquo[] a

poesia eacute algo de mais filosoacutefico e mais seacuterio do que a histoacuteria pois refere aquela

principalmente o universal e esta o particularrdquo (ARISTOacuteTELES 1996 p78)

Ao historiador cabe separar dos fatos passados a verdade excluir deles a

fantasia e ordenaacute-los O poeta na concepccedilatildeo aristoteacutelica de arte como imitaccedilatildeo do real

eacute criador de uma imagem-representaccedilatildeo da realidade e de um ldquomitordquo (enredo)

verossiacutemil posto que organizado pela necessidade e verossimilhanccedila A construccedilatildeo

verossiacutemil amplia-se como relaccedilatildeo causal implicando a sucessatildeo de cenas de modo

homogecircneo criando desta forma certo efeito do real Como criador de representaccedilatildeo

ldquosua atuaccedilatildeo natildeo tem limites fixosrdquo (GOBBI 2004 p40) abrangendo todo campo do

possiacutevel Isso significa que eacute parte do material poeacutetico todo conteuacutedo discursivo

inclusive o material histoacuterico Na Poeacutetica 1451b Aristoacuteteles acrescenta

[] ainda que lhe aconteccedila fazer uso de sucessos reais nem por isso deixa de ser poeta pois nada impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam por natureza verossiacutemeis e possiacuteveis e por isso mesmo venha o poeta a ser o autor delas (ARISTOacuteTELES 1966 p79)

A ficccedilatildeo portanto ainda que tome por representaccedilatildeo a temaacutetica histoacuterica logo

o verdadeiro natildeo perde por isso o estatuto ficcional e natildeo se confunde com o discurso

historiograacutefico O criteacuterio de verdade natildeo eacute ao que parece para Aristoacuteteles um conceito

absoluto para a distinccedilatildeo entre os gecircneros mas confunde-se tambeacutem com outros

conceitos da poeacutetica principalmente o da verossimilhanccedila

50

Como jaacute assinalamos os tratados retoacutericos estabeleciam que a diferenccedila

essencial entre os gecircneros histoacutericos e poeacuteticos foca-se na sua finalidade pois enquanto

o fim da historiografia eacute o uacutetil que soacute se pode alcanccedilar por meio do verdadeiro o fim

do discurso poeacutetico eacute o prazeroso o luacutedico62 No entanto o discurso historiograacutefico se

regulava desde o seacuteculo V aC pelas orientaccedilotildees retoacutericas e segundo Momigliano

(1984) a partir do seacuteculo IV aC os historiadores aproximaram ainda mais do

agradaacutevel a utilidade ao utilizarem para o enriquecimento de suas narrativas de teacutecnica

de ldquosuperdramatizaccedilotildees pateacuteticasrdquo (MOMIGLIANO 1998 p191)

Ciacutecero compreende a histoacuteria como um gecircnero retoacuterico (opus oratorium) e que

portanto estaacute regulado pelas leis da retoacuterica (BOWERSOCK 1993 p13) Em Ad

Familiares (apud HARTOG 2001) Ciacutecero afirma que para tornar a histoacuteria mais

prazerosa eacute necessaacuterio que o escritor a enriqueccedila com a linguagem e o discurso mesmo

que com isso negligencie as leis da histoacuteria Diz ele

Nada com efeito eacute mais conveniente ao deleite do leitor que a variedade das circunstacircncias e as vicissitudes da Fortuna [] De fato a organizaccedilatildeo dos anais prende-nos mediocremente da mesma forma que a enumeraccedilatildeo dos fatos enquanto frequentemente as desventuras perigosas e variadas de um homem eminente geram admiraccedilatildeo atenccedilatildeo alegria pena esperanccedila medo e se terminam com uma morte insigne o espiacuterito entatildeo se eleva pelo agradabiliacutessimo prazer da leitura (CIacuteCERO 5 12 apud HARTOG 2001 p157)

A partir destas reflexotildees levanta-se a questatildeo ateacute que ponto na Antiguidade eacute

possiacutevel separar da literatura o discurso da histoacuteria Pois se para Aristoacuteteles o uso de

um tema histoacuterico por parte do poeta natildeo o confunde com o historiador para Ciacutecero e

outros retores o discurso historiograacutefico deve se orientar pelas leis retoacutericas nem que

com isso o historiador viole a principal lei da histoacuteria fidelidade agrave verdade Os limites

entre os gecircneros natildeo satildeo portanto estanques e facilmente delimitados poreacutem

claramente interrelacionaacuteveis e este cruzamento de formas constitui a essecircncia da

proacutepria poeacutetica

A historiografia e a oratoacuteria estatildeo no limite do que Hegel considera arte pois

estes gecircneros visam a objetos extra-literaacuterios e essa ausecircncia de gratuidade eacute o que as

distingue da poesia No entanto Hegel aproxima a historiografia da poesia ao admitir a

62 Sobre a distinccedilatildeo cf Como se deve escrever a Histoacuteria (2009) de Luciano

51

subjetividade da escrita da histoacuteria a histoacuteria natildeo eacute soacute a exatidatildeo dos fatos mas

necessita de um sujeito que introduza uma determinada ordem nos eventos que os

agrupe e os interprete construindo assim a imagem do objeto (GOBBI 2004 p42)

No entanto Hegel as distingue em termos de criaccedilatildeo uma vez que o historiador

soacute pode ser o organizador natildeo o inventor dos fatos enquanto ao poeta tudo eacute permitido

inclusive reconstruir a histoacuteria A arte ndash que eacute para Hegel substancialidade pura ndash pode

corrigir a histoacuteria ndash que eacute substancialidade e acidentalidade ndash transformando a verdade

externa conforme a verdade interna (GOBBI 2004 p43) Desse modo Hegel abre a

perspectiva de que o poeta retomando o fio dos fatos histoacutericos os modifique e os

corrija desde que sua finalidade natildeo seja a verdade do histoacuterico mas uma verdade de

representaccedilatildeo verossiacutemil tal qual afirmava Aristoacuteteles

Quando no seacuteculo XIX a ciecircncia da Histoacuteria foi fundada procurou-se sob o

influxo do positivismo estabelecer um maior rigor na investigaccedilatildeo das fontes e dos

documentos e desse modo opor-se ldquoagrave livre invenccedilatildeo romanescardquo (FREITAS 1986

p2) Assim os historiadores modernos sob o impulso da obra historiograacutefica de Ranke

(1795-1886) considerado o pai da historiografia cientiacutefica elegeram dos antigos aquele

historiador que melhor representasse esta praacutexis do historiador Tuciacutedides63 No entanto

alguns estudiosos modernos procuraram revisitar estas ideias positivistas para tornar a

ciecircncia da histoacuteria mais proacutexima da arte uma vez que ldquo[] o historiador tendo que

formar concepccedilotildees a partir de indiacutecios potildee muito de si mesmo em seu discursordquo

(FREITAS 1986 p2)

O huacutengaro Geog Lukaacutecs um dos mais importantes teorizadores do romance no

seacuteculo XX foi pioneiro na teorizaccedilatildeo do ldquoromance histoacutericordquo Em sua obra Le roman

historique (2000) afirma que o romance histoacuterico nasce no iniacutecio do seacuteculo XIX com a

obra de Walter Scott Antes jaacute encontraacutevamos romances com temas histoacutericos (seacutec

XVII e XVIII) que podem ser considerados como antecedentes do romance histoacuterico

Contudo estas obras satildeo histoacutericas apenas pela escolha de temas e costumes pois neste

passado representado natildeo somente a psicologia das personagens mas tambeacutem os meios

sociais pintados satildeo inteiramente aqueles do tempo do proacuteprio escritor Nestas obras

importa apenas o caraacuteter curioso e exoacutetico do ambiente pintado e natildeo a reproduccedilatildeo

histoacuterica fiel de uma era historicamente concreta Conforme Lukaacutecs

63 ldquo[Tuciacutedides] introduziu poreacutem uma nota de austeridade que se tornou parte do caraacuteter (senatildeo da praacutexis) dos historiadores []rdquo (MOMIGLIANO 1998 p187)

52

O que falta ao pretendido romance histoacuterico anterior a Walter Scott eacute justamente aquilo que eacute especificamente histoacuterico o fato de que a particularidade das personagens deriva da especificidade histoacuterica do tempo deles [] A questatildeo da verdade histoacuterica na representaccedilatildeo artiacutestica da realidade se situa muito aleacutem do horizonte destes escritores64 (LUKAacuteCS 2000 p17)

Para Lukaacutecs o romance de Walter Scott estabelece pela primeira vez uma

relaccedilatildeo entre passado e presente em uma perspectiva em que o presente eacute fruto do

passado Nos romances anteriores a Walter Scott esta perspectiva estaacute ausente A partir

disso Lukaacutecs estabelece algumas caracteriacutesticas ndash como por exemplo a presenccedila do

heroacutei mediano ou a representaccedilatildeo de um microcosmo que reflete a totalidade histoacuterica ndash

que formaria a estrutura do romance histoacuterico nascido a partir de Walter Scott

Entretanto Jacques Le Goff (1972) com uma percepccedilatildeo mais ampla avalia que estatildeo

presentes em muitas narrativas da Idade Meacutedia as caracteriacutesticas que Lukaacutecs (2000)

classifica como proacuteprias do romance moderno de Scott Novamente entramos no

problema terminoloacutegico do romance uma vez que Lukaacutecs (2000) natildeo vecirc essas

narrativas anteriores como romance por faltarem a elas o conflito interno entre o homem

e a sociedade Poreacutem a anaacutelise de Le Goff (1972) demonstra que do ponto de vista da

forma os elementos essenciais do gecircnero natildeo surgem ex nihilo com o gecircnero pronto

mais se desenvolvem por um longo periacuteodo ateacute que finalmente encontrem o solo

propiacutecio para se afirmar

Entretanto os romances contemporacircneos de temaacutetica histoacuterica que Linda

Hutcheon (1991) denomina de meta-ficccedilatildeo historiograacutefica apresentam novas

caracteriacutesticas inclusive substituindo os heroacuteis medianos por heroacuteis histoacutericos ldquo[] que

instalam e depois indefinem a linha de separaccedilatildeo entre a ficccedilatildeo e a histoacuteria []rdquo (1991

p150) Desse modo as caracteriacutesticas que Lukaacutecs classifica como determinantes para o

romance histoacuterico satildeo na verdade determinantes para um tipo de ficccedilatildeo histoacuterica o

romance histoacuterico do seacuteculo XIX mas natildeo resolvem toda a problemaacutetica do romance

histoacuterico ou da ficccedilatildeo histoacuterica

Outro ponto essencial da teoria lukaacutecseana sobre a relaccedilatildeo do romance moderno

com a Histoacuteria eacute o fato de o romance moderno desenvolver sua forma realista a partir

64 Na traduccedilatildeo francesa Ce qui manque au preacutetendu roman historique avant Walter Scott crsquoest justement ce qui est speacutecifiquement historique le fait que la particulariteacute des personnages derive de la speacutecificiteacute historique de leur temps [] La question de la veriteacute historique dans la reproduction artistique de la reacutealite se situe encore au-delaacute de son horizon (LUKAacuteCS 2000 p17)

53

da representaccedilatildeo da histoacuteria contemporacircnea como mateacuteria narrativa A interpretaccedilatildeo que

Lukaacutecs faz da obra de Balzac justamente revela a busca incessante do romancista

francecircs em fazer de sua obra uma ldquohistoacuteriardquo da Franccedila poacutes-revolucionaacuteria O romance

moderno ao se formalizar realista infiltra em sua mateacuteria ficcional a representaccedilatildeo de

aspectos histoacutericos ideoloacutegicos e sociais

No final do seacuteculo XX Paul Veyne65 (1982) aproxima o discurso histoacuterico do

discurso ficcional ao se opor agrave ideia de que a histoacuteria seja uma ciecircncia objetiva Para

Veyne retomando a problemaacutetica lanccedilada por Hegel a histoacuteria eacute uma narrativa de

eventos selecionados e organizados em vista de um determinado fim de acordo com a

subjetividade e idelogia de um sujeito histoacuterico Assim a objetividade do texto histoacuterico

deve-se a procedimentos de escritura a toacutepos e iacutendices do gecircnero tanto quanto a

estilizaccedilatildeo realista do texto literaacuterio O autor do discurso historiograacutefico eacute portanto um

criador de simulacros como o poeta manejando seu material a fim de que a sua verdade

seja comunicada A imagem de verdade que eacute lanccedilada pela representaccedilatildeo histoacuterica eacute

apenas uma ilusatildeo linguiacutestica e literaacuteria criada por procedimentos estiliacutesticos Agrave medida

que se fortalecia enquanto gecircnero discursivo a tradiccedilatildeo historiograacutegfica desenvolveu

determinadas regras de escritura que natildeo soacute criam a ilusatildeo de verdade mas tambeacutem

tornam o texto reconheciacutevel como historiograacutefico para o puacuteblico

Roland Barthes66 (1988) se questiona se eacute legiacutetimo opor do ponto de vista

estrutural da linguagem a narrativa ficcional agrave narrativa histoacuterica discutindo

justamenteo os iacutendices linguiacutesticos Para Barthes a anaacutelise do discurso e de suas

unidades constitutivas poderaacute ldquo[] problematizar a claacutessica oposiccedilatildeo natildeo soacute dos gecircneros

literaacuterios como tambeacutem aquela que se faz entre o texto literaacuterio e o texto histoacuterico []rdquo

(GOBBI 2004 p54) O fato histoacuterico eacute um produto de significaccedilatildeo do discurso desse

modo assemelhando-se com o fato literaacuterio A questatildeo central eacute que Barthes nega a

referencialidade ao mundo como toacutepico de anaacutelise e estabelece que por meio da anaacutelise

linguiacutestica os gecircneros histoacuteriograacutefico e romanesco aproximam-se como construccedilatildeo da

linguagem Conforme Josipovic (1971 p148 apud HUTCHEON 1991 p143) a

anaacutelise dos iacutendices linguiacutesticos utilizados pelos historiadores e pelos primeiros

romancistas modernos demonstra que ambos pareciam fingir que a sua obra natildeo era

65 A primeira publicaccedilatildeo do livro Comment on eacutecrit lhistoire essai deacutepisteacutemologie de Paul Veyne eacute de 1970 Utilizamos a traduccedilatildeo de Alda Baltar e Maria A Kneipp de 1982 66 A primeira ediccedilatildeo da obra Le bruissement de la langue de Barthes (1984) Utilizamos a traduccedilatildeo de Mario Laranjeira de 1988

54

criada mas que existia no tempo e se apresentava agrave narraccedilatildeo Esta praacutetica foi

fundamental para a afirmaccedilatildeo da mimese realista do romance moderno

Neste breve percurso em que historiamos as discussotildees sobre a relaccedilatildeo entre

literatura e histoacuteria podemos observar que as distinccedilotildees entre estes gecircneros discursivos

nunca foram claramente definidas Mesmo Aristoacuteteles e Hegel que se esforccedilaram para

separaacute-los apresentam em seus discursos elementos que os aproximam ndash Aristoacuteteles ao

tomar a temaacutetica histoacuterica como poeacutetica Hegel ao compreender que a Histoacuteria eacute criada

por um sujeito que organiza as informaccedilotildees Jaacute Ciacutecero na Antiguidade e Barthes e

Veyne na Modernidade preocupados mais com questotildees de escrita dos gecircneros do que

com o referente entendem histoacuteria e literatura como fenocircmenos do discurso literaacuterio

Por fim para Lukaacutecs (2000) o romancista moderno trabalha como um historiador

observando as tendecircncias sociais e ideoloacutegicas seja do seu tempo seja do tempo

passado e desse modo a representaccedilatildeo histoacuterica no romance eacute essencial para o

desenvolvimento e afirmaccedilatildeo da forma realista do romance moderno

Levantamos estas questotildees inicialmente porque a dificuldade em se estabelecer

os limites entre estes dois gecircneros talvez tambeacutem explique a contiacutenua eterna e muacutetua

atraccedilatildeo que eles sempre demonstraram incluindo a relaccedilatildeo de imitaccedilatildeo que os

romancistas gregos estabeleceram com os historiadores claacutessicos

Para Brandatildeo (2005) o narrador do romance grego se apresenta em conexatildeo

com algumas estrateacutegias discursivas estabelecidas pelos historiadores gregos tais como

a presenccedila de um narrador em terceira pessoa que objetiva a narraccedilatildeo e de algum modo

se oculta no narrado Aleacutem disso as foacutermulas de enquadramento presentes nos

proecircmios e eventualmente tambeacutem nos epiacutelogos criam a impressatildeo de que os romances

teriam derivados da historiografia (BRANDAtildeO 2005 p110)

Em nossa opiniatildeo os romancistas encontraram na historiografia um espelho

onde poderiam experimentar novas formulaccedilotildees narrativas e ainda assim aparentarem

por meio de estrateacutegias da historiografia verossimilhanccedila Para Salvatore DrsquoOnofrio

toda a narrativa ficcional procura ser criacutevel verossiacutemil e ldquo[] mesmo quando [a prosa]

adentrou o territoacuterio da poesia [a ficccedilatildeo] procurou salvaguardar este seu estigma inicial

ter uma aparecircncia de veracidaderdquo (DrsquoONOFRIO 1976 p12) O estudo portanto de

como a ficccedilatildeo se infiltra no discurso historiograacutefico (em sentido lato) eacute a nosso ver

fundamental para a compreensatildeo da histoacuteria do discurso ficcional em prosa O romance

histoacuterico como o entende Lukaacutecs (2000) eacute uma das formas da complexa relaccedilatildeo entre

55

ficccedilatildeo e histoacuteria mas esta estaacute na base do proacuteprio desenvolvimento ficcional E mais na

Antiguidade a infiltraccedilatildeo da ficccedilatildeo se daacute em maior medida no gecircnero biograacutefico que

aborda um tema que tambeacutem eacute um tema historiograacutefico do passado Portanto na

anaacutelise das obras biograacuteficas principalmente do romance biograacutefico poderemos

compreender importantes aspectos da evoluccedilatildeo da prosa ficcional no Ocidente

Quando os textos ficcionais se apropriam da temaacutetica histoacuterica a relaccedilatildeo da

literatura com a historiografia pode ser vista de trecircs modos (1) haacute ficccedilotildees literaacuterias que

aludem a situaccedilotildees histoacutericas geralmente com o fito de criar certo efeito do real (2) haacute

obras que apenas situam sua intriga em um determinado contexto soacutecio-histoacuterico e (3)

haacute romances que transformam em sua mateacuteria o universo histoacuterico como parte

integrante de sua estrutura fazendo da realidade histoacuterica uma realidade esteacutetica

(GOBBI 2004 p38) Procuraremos a partir desta classificaccedilatildeo determinar que tipo de

relaccedilatildeo com a histoacuteria a Ciropedia cria por meio da ficccedilatildeo

32 Ciro na histoacuteria e na ficccedilatildeo

O tema da Ciropedia eacute a vida de uma personagem histoacuterica Ciro fundador do

impeacuterio persa A vida puacuteblica da personagem seus feitos poliacuteticos e militares eacute

combinada com cenas da vida particular em especial a sua infacircncia Por exemplo

participaccedilatildeo em banquetes experiecircncias de caccedila relacionamento com outras crianccedilas

Desse modo podemos afirmar que o tema da Ciropedia enquadra na definiccedilatildeo de

gecircnero biograacutefico e portanto as relaccedilotildees entre os dados histoacutericos e a ficccedilatildeo satildeo muito

fluidas e de difiacutecil determinaccedilatildeo No entanto uma vez que Xenofonte combina

narrativas ficcionais com narrativa histoacuterica necessitamos responder as questotildees a-)

por que Xenofonte se utiliza desse material histoacuterico ao inveacutes de construir uma obra

totalmente ficcional uma vez que eacute evidente o caraacuteter ficcional e idealista da obra b-)

como ele utiliza esse material conhecido de seus leitores

Sabemos que na eacutepoca em que Xenofonte escreveu sua obra a vida de Ciro jaacute

havia sido tema de vaacuterias obras de outros escritores e que estas provavelmente lhe

serviram de fonte para a obra Segundo Sansalvador (1987 p22) eacute seguro que a figura

de Ciro tenha sido tratada nos Peacutersica dos logoacutegrafos antigos como Caratildeo de

56

Laacutempsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico ndash todas perdidas Uma obra perdida da qual

conhecemos apenas o tiacutetulo e que parece ter tido grande influecircncia na Ciropedia foi a

obra Ciro do filoacutesofo ciacutenico Antiacutestenes Nesta obra em forma de diaacutelogo socraacutetico o

filoacutesofo Antiacutestenes apresentava Ciro como modelo da exaltaccedilatildeo do esforccedilo (πόνος

ponos)

Cteacutesias de Cnido foi meacutedico do rei persa Artarxerxes II67 (404-3987 aC) e

autor de uma histoacuteria da Peacutersia Peacutersica em vinte e trecircs livros dos quais nos restaram

apenas escassos fragmentos Holzberg (2003 p629) observa que Diodoro de Siculo nos

daacute um sumaacuterio dos livros 1-6 que trata da histoacuteria do Impeacuterio Assiacuterio e Medo desde

Nino ateacute Astiacuteages enquanto Foacutecio resume os livros de 7-23 no qual Cteacutesias narra a

histoacuteria da Peacutersia de Ciro ateacute Artarxerxes II Segundo Holzberg (2003 p629) um

fragmento da obra (POxy2330) conteacutem um relato amoroso que tanto pelo estilo

quanto pelo motivo se assemelha agrave estrutura dos romances gregos Gera (1993 p201)

observa semelhanccedilas neste relato amoroso com a narrativa de Panteacuteia escrita por

Xenofonte Por fim o livro primeiro das Histoacuterias de Heroacutedoto tambeacutem traz a narrativa

a respeito da vida de Ciro Segundo Heroacutedoto a narrativa que ele nos apresenta era uma

das trecircs versotildees sobre a vida de Ciro que ele tinha conhecimento

Aleacutem disso ao ter viajado agrave Peacutersia Xenofonte deve ter entrado em contato com

inuacutemeras tradiccedilotildees orais seja diretamente referindo-se a Ciro seja referindo-se a

tradiccedilatildeo persa Em todo caso estamos limitados neste campo pois seria difiacutecil

reconhecer quais elementos da tradiccedilatildeo oral persa foi aproveitado por Xenofonte

Destas obras a uacutenica que nos chegou in extenso eacute a de Heroacutedoto o que natildeo soacute

delimita a nossa anaacutelise do uso do material histoacuterico por Xenofonte como tambeacutem

torna necessaacuteria a anaacutelise comparativa das duas obras Para nossa anaacutelise seguiremos o

modelo proposto por Maria Teresa de Freitas (1986) em Literatura e Histoacuteria em que a

autora propotildee a confrontaccedilatildeo do texto literaacuterio com documentos histoacutericos que

permitam verificar a fidelidade ou manipulaccedilatildeo destes dados pelo escritor A partir

desta anaacutelise identificaremos que tipo de manipulaccedilatildeo o texto ficcional efetuou no texto

de autoridade do discurso histoacuterico Justificamos ainda nossa anaacutelise pelo conceito de

intertextualidade pois uma vez que natildeo podemos nos certificar do material das outras

fontes sobre a vida de Ciro que Xenofonte poderia ter usado as alusotildees ao texto de

67 Esta informaccedilatildeo nos eacute dada pelo proacuteprio Xenofonte na Anaacutebase I

57

Heroacutedoto sugerem que Xenofonte nas passagens indicadas natildeo usou outra fonte mas

ficcionalizou conscientemente o material narrado por Heroacutedoto

321 O λόγος de Ciro na Histoacuteria de Heroacutedoto

Nesta seccedilatildeo apresentaremos brevemente de que forma a narrativa sobre Ciro

estaacute inserida na obra de Heroacutedoto para delimitarmos os momentos da narrativa que

faratildeo parte de nossa anaacutelise

Na obra de Heroacutedoto a narrativa de Ciro estaacute inserida na segunda parte do livro

I (1 95-216) motivada pela participaccedilatildeo da personagem Ciro no episoacutedio de Creso rei

liacutedio Segundo os professores Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria de Faacutetima Silva (2002

p22) a histoacuteria dos monarcas em Heroacutedoto apoacuteia-se no ldquo[] princiacutepio da ascensatildeo e

queda do chefe de um povo que tem por traacutes a ideia da instabilidade da fortuna e da

fragilidade da natureza humanardquo A focalizaccedilatildeo de Heroacutedoto nesta narrativa natildeo visa agrave

anaacutelise da personalidade de Ciro mas prioritariamente a tomaacute-la ldquo[] como paradigma

com funccedilotildees determinadas no conjunto da narrativardquo (FERREIRA SILVA 2002

p38) Assim compreendida pelo seu caraacuteter paradigmaacutetico esta narrativa se estrutura

pelos temas da ascensatildeo e queda do monarca fruto da sua ὕβρις (hybris) a sua

desmedia

A comparaccedilatildeo entre as narrativas de Xenofonte e de Heroacutedoto natildeo eacute uma ideia

nova jaacute tendo sido realizada por vaacuterios estudiosos (DUE 1989 p117) No entanto

nossa comparaccedilatildeo procuraraacute responder novas questotildees a respeito da ficcionalizaccedilatildeo da

histoacuteria na Ciropedia justificando por isso nosso empreendimento Outras anaacutelises

comparativas tendem a estabelecer as diferenccedilas entre as narrativas e o resultado

alcanccedilado na narrativa xenofonteana mediante estas diferenccedilas poreacutem em geral natildeo

elucidam a praacutetica intertextual de Xenofonte Aleacutem disso demonstraremos que a

ficcionalizaccedilatildeo na Ciropedia eacute construiacuteda a partir do texto de autoridade de Heroacutedoto

confundindo histoacuteria e ficccedilatildeo

A leitura das obras nos mostra que satildeo vaacuterios os momentos do ponto de vista

histoacuterico em que elas se diferenciam e que poderiam fazer parte desta anaacutelise Poreacutem

nos centraremos nas cenas em que a narrativa de Heroacutedoto ecoe na narrativa de

Xenofonte porque nestas cenas nos parece que Xenofonte natildeo se utilizou de outra

fonte na construccedilatildeo da Ciropedia mas ficcionalizou a narrativa de Heroacutedoto

58

Como observa Dioniacutesio de Halicarnaso em seu tratado Sobre a Imitaccedilatildeo (2005)

de que hoje conhecemos apenas alguns fragmentos a imitaccedilatildeo de um autor por outro

deve possuir elementos que resultem claros e perceptiacuteveis ao seu puacuteblico Genette

(1982) estabelece que a intertextualidade eacute uma relaccedilatildeo de copresenccedila entre dois ou

mais textos e das formas de intertextualidade estabelecidas pelo criacutetico francecircs a que

melhor se enquadra para nosso estudo eacute a alusatildeo ou seja ldquo[] um enunciado cuja

plena inteligecircncia supotildee a percepccedilatildeo de uma relaccedilatildeo entre ele e um outro []rdquo68

(GENETTE 1982 p8) Desse modo focalizaremos nossa anaacutelise nas seguintes

passagens por que nelas sentimos a presenccedila de Heroacutedoto a-) a origem e infacircncia de

Ciro b-) a tomada de Sardes (a cena de Creso) e c-) a morte de Ciro

322 Origem e infacircncia de Ciro

Analisaremos primeiramente as diferenccedilas com que Heroacutedoto e Xenofonte

trabalham o tema da origem e da infacircncia de Ciro Segundo Due (1989 p118) a

narrativa de Heroacutedoto apresenta vaacuterios elementos provenientes das lendas populares

Desse modo a biografia do fundador do Impeacuterio da Peacutersia estaacute repleta de pressaacutegios

sobrenaturais sonhos oacutedio e horror A descriccedilatildeo da origem e da infacircncia de Ciro69

(Histoacuterias 1107 1) se inicia a partir de um sonho de Astiacuteages rei da Meacutedia Heroacutedoto

natildeo nos descreve o conteuacutedo deste sonho poreacutem avisa que os inteacuterpretes deixaram o rei

atormentado com o seu significado Para que a previsatildeo natildeo se realizasse Astiacuteages casa

sua filha Mandane com Cambises um persa socialmente inferior No entanto apoacutes o

casamento um novo sonho atormenta o rei meda revelando que seu neto o destronaria

Quando a crianccedila nasce Astiacuteages para se precaver ordena a Haacuterpago

(Histoacuterias 1108 4) ndash um parente em quem depositava a maior confianccedila ndash que matasse

a crianccedila Haacuterpago aparentemente aceita poreacutem na realidade ele refuta a ordem do rei

ldquo[] em parte por sentimentos familiares em parte por caacutelculo poliacutetico []rdquo (DUE

1989 p119) Haacuterpago reflete dessa maneira

68 No original [] crsquoeacutest-agrave-dire drsquoun eacutenonceacute dont la pleine intelligence suppose la perception drsquoun rapport entre lui et un autre (GENETTE 1982 p8) 69 Como jaacute nos referimos a narrativa de Ciro estaacute subordinada agrave narrativa de Creso Assim a sucessatildeo de eventos natildeo eacute descrito por ordem cronoloacutegica A infacircncia e carreira militar de Ciro (Histoacuterias 1 96-297) satildeo narradas apoacutes a conquista de Sardes e sua vitoacuteria sobre Creso (Histoacuterias 1 46-91)

59

Natildeo vou cumprir as ordens de Astiacuteages respondeu Mesmo que ele estivesse transtornado e delirasse mais do que agora delira natildeo era eu que ia apoiar as suas decisotildees nem colaborar com semelhante crime Sobram-me razotildees para natildeo matar a crianccedila primeiro porque eacute do meu sangue depois porque Astiacuteages estaacute velho e natildeo tem descendente varatildeo (Histoacuterias 1109 2)70

Decide entatildeo levar a crianccedila a um pastor para que ele a expusesse em uma

montanha selvagem onde as feras a matariam No entanto ldquopor divina vontaderdquo

(Histoacuterias 1111 1) a mulher deste pastor chamada Cino acabara de dar a luz a uma

crianccedila morta Os pastores trocaram as crianccedilas e criaram Ciro como se fosse filho

deles O nascimento de Ciro tal qual nos narra Heroacutedoto eacute composto de significativos

elementos dos mitos heroicos Assim como Eacutedipo e Paacuteris por exemplo por causa de

um oraacuteculo devastador Ciro eacute extirpado do seio familiar Astiacuteages como Laio e

Priacuteamo crentes de que com sua accedilatildeo estariam fugindo da realizaccedilatildeo do oraacuteculo estatildeo

na verdade construindo a teia necessaacuteria para que a prediccedilatildeo seja realizada

Ao completar dez anos Ciro em uma brincadeira com outras crianccedilas revelou a

sua verdadeira identidade Na brincadeira o menino Ciro ldquoa quem chamavam filho do

boieiro foi escolhido reirdquo (Histoacuterias 11092) por isso ele distribuiu aos outros meninos

diversas tarefas e funccedilotildees Como uma das crianccedilas lhe desobedecera Ciro o prendeu e o

chicoteou Por causa disso foi levado ao rei A simples presenccedila dele fez com que

Astiacuteages comeccedilasse a desconfiar da verdadeira identidade do ldquofilho do boieirordquo

(Histoacuterias 11141)

Agrave medida que o rapaz falava apoderava-se de Astiacuteages a suspeita de quem ele era Os traccedilos fisionocircmicos de Ciro faziam-lhe lembrar os seus A sua resposta parecia-lhe mais proacutepria de um homem livre e a idade compatiacutevel com a data da exposiccedilatildeo (Histoacuterias 11161-2)

A suspeita de Astiacuteages leva-o a interrogar primeiramente o pastor em seguida

Haacuterpago e estes dois lhe confirmam que aquele menino eacute seu neto A desobediecircncia de

Haacuterpago enfurece o rei Astiacuteages que para castigaacute-lo serve-lhe de jantar o seu proacuteprio

filho que Haacuterpago come satisfeito O castigo tambeacutem eacute inspirado nos mitos por

exemplo de Atreu e Tiestes em que ao pai satildeo servidas as carnes do filho71 Quanto a

70 A traduccedilatildeo das Histoacuterias de Heroacutedoto utilizada neste trabalho eacute a de Joseacute Ribeira Ferreira e de Maria de Faacutetima Souza e Silva (1994) 71 Este castigo haveria de prover a consumaccedilatildeo do oraacuteculo pois Haacuterpago desejando vinganccedila instiga Ciro a rebelar-se contra o avocirc

60

Astiacuteages apoacutes nova consulta aos Magos decide entregar Ciro ao seu verdadeiro lar na

Peacutersia A partir desse momento haacute um salto temporal da narrativa e em sua proacutexima

participaccedilatildeo Ciro jaacute eacute adulto (11231-1303) Ciro eacute instigado por Haacuterpago que

desejava vingar-se de Astiacuteages a destituir este do trono e a dominar a Meacutedia Com seu

exeacutercito persa apesar da sua juventude Ciro derrota Astiacuteages e toma-o como

prisioneiro Poreacutem Ciro natildeo castiga o avocirc com crueldade mas apenas o manteacutem ao seu

lado ldquo[] ateacute a morte sem lhe fazer nenhum mal Esta eacute a histoacuteria do nascimento e

criaccedilatildeo de Ciro e da sua ascensatildeo ao poderrdquo (Histoacuterias 1130 3) Assim termina em

Heroacutedoto a primeira fase da vida de Ciro

A narrativa apresentada por Heroacutedoto conteacutem alguns elementos importantes na

comparaccedilatildeo com a Ciropedia o retrato de Astiacuteages eacute pintado como o de um deacutespota

um tirano destemperado que pela ambiccedilatildeo do poder eacute cruel com todos aqueles que estatildeo

subordinados ao seu poder poliacutetico independente de laccedilos de parentescos Esse retrato eacute

bem diferente do Astiacuteages apresentado por Xenofonte na Ciropedia cuja conduta

harmoniosa com seus parentes eacute revelada em todas as suas apariccedilotildees na narrativa Em

verdade noacutes encontramos em Xenofonte a construccedilatildeo de uma famiacutelia harmoniosa e

paciacutefica com quase nenhum traccedilo de conflito72 (DUE 1989 p120) Aleacutem disso natildeo haacute

na Ciropedia referecircncia a sonhos ou pressaacuterios que desencadeassem algum conflito

familiar Neste sentido podemos concluir que o autor da Ciropedia tomou o cuidado de

ao compor a sua obra eliminar de sua narrativa todos os vestiacutegios da narrativa de

Heroacutedoto que contrastariam com a imagem harmoniosa da famiacutelia real meda Deste

modo tanto a inferioridade social do pai de Ciro quanto seu afastamento da casa

paterna por ordem de Astiacuteages e ateacute a rebeliatildeo de Ciro contra seu avocirc satildeo manipulados

na narrativa de Xenofonte Ele tambeacutem omite todas as caracteriacutesticas da lenda e do mito

heroico ldquo[] porque seu objetivo eacute antes poliacutetico do que histoacuterico ou traacutegicordquo73

(TATUM 1989 p101)

O Ciro da Ciropedia eacute filho de Mandane com Cambises mas este natildeo eacute qualquer

persa eacute o rei da Peacutersia E a famiacutelia real descende da figura mitoloacutegica Perseu (Cirop

I21) Segundo Momigliano (1993) a preocupaccedilatildeo com a linhagem eacute uma caracteriacutestica

da aristocracia grega e estaacute presente nas narrativas gregas desde Homero Desse modo

Ciro eacute produto das aristocracias da Meacutedia e da Peacutersia A partir destas informaccedilotildees o

72 O uacutenico conflito familiar presente na Ciropedia se daacute pela participaccedilatildeo de Ciaxares tio de Ciro que invejava as capacidades intelectuais e militares do sobrinho 73 No original [] because his aim is political rather than historical or tragic (TATUM 1989 p101)

61

narrador natildeo nos informa nada a respeito de Ciro ateacute ele completar doze anos quando

sua matildee resolve fazer uma viagem agrave Meacutedia para visitar seu pai Astiacuteages o avocirc de Ciro

Eacute interessante que o narrador comeccedila a apresentaccedilatildeo de sua narrativa justamente

no momento em que Heroacutedoto faz um salto temporal em sua histoacuteria Heroacutedoto nos fala

do nascimento de Ciro e o encontramos novamente quando ele completa dez anos apoacutes

isso haacute um lapso temporal e o encontramos pela terceira vez jaacute um homem adulto e se

rebelando contra o avocirc A narrativa de Xenofonte entretanto comeccedila quando Ciro tem

doze anos ou seja Xenofonte se aproveita das arestas temporais deixadas pela narrativa

de Heroacutedoto para construir a sua proacutepria histoacuteria Podemos desse modo assumir que a

ficccedilatildeo se apodera do vaacutecuo deixado pelos dados histoacutericos Como afirma Freitas

[] a ficccedilatildeo se apodera agraves vezes da Histoacuteria com fins especificamente literaacuterios elementos romanescos se interpotildeem aos elementos histoacutericos a histoacuteria se confunde com a Histoacuteria eacute o que chamaremos aqui de invasatildeo da Histoacuteria pela ficccedilatildeo (FREITAS 1986 p43)

Todo o primeiro livro da Ciropedia eacute composto de cenas que se aproveitam

deste lapso temporal deixado por Heroacutedoto Nestas cenas da Ciropedia Ciro permanece

na Meacutedia ateacute a idade de dezesseis anos quando seu pai ordena que ele retorne agrave Peacutersia

para concluir sua educaccedilatildeo Durante este periacuteodo satildeo descritos banquetes diaacutelogos com

seu avocirc diaacutelogos com seus amigos experiecircncias de caccedila de Ciro sua primeira

participaccedilatildeo em uma campanha militar e ateacute a narrativa amorosa de um persa

apaixonado por Ciro O que percebemos eacute que satildeo narrativas da vida particular do heroacutei

da Ciropedia Desse modo como jaacute ressaltamos em conformidade com Momigliano

(1993) satildeo temas cujo acesso a dados satildeo mais complicados e portanto mais propiacutecios

a serem imaginados

Vamos analisar mais de perto a narrativa da experiecircncia de caccedila de Ciro na

Ciropedia O importante desta narrativa para nosso estudo comparativo eacute que nela haacute o

tema do reconhecimento das qualidades inatas da natureza φύσις (physis) de Ciro O

tema do reconhecimento tambeacutem aparece em Heroacutedoto e surge nas Histoacuterias por meio

de uma brincadeira Sobre o reconhecimento de Ciro em Heroacutedoto afirmam Ferreira e

Silva (2002 p40)

Se eacute romanesca dentro de uma velha tradiccedilatildeo a origem do futuro monarca persa abandonado e miraculosamente salvo o reconhecimento de Ciro dez anos depois daacute-se por um processo que se deseja racional Natildeo eacute de qualquer sinal ou objeto conservado dos primeiros anos de vida que depende mas inteiramente da aparecircncia

62

fiacutesica e das primeiras manifestaccedilotildees de determinaccedilatildeo e autoridade que eacute dotada esta jovem natureza real

Na Ciropedia (I 47-15) Ciro ao conseguir permissatildeo do avocirc para caccedilar fora

dos muros do jardim do palaacutecio parte com uma comitiva em sua primeira experiecircncia

de caccedila Os mais velhos que o acompanhavam iam lhe dando valiosos ensinamentos

mas bastava Ciro ver um cervo ldquo[] esquecendo-se de todas as coisas que ouvira

perseguia-o e nenhuma outra coisa via aleacutem do para onde o cervo fugia []rdquo74 Os

acompanhantes ralhavam pelo seu ousado e perigoso comportamento poreacutem Ciro ao

ouvir um grito ldquo[] salta sobre o cavalo como possuiacutedo pelo ecircxtase e quando viu agrave sua

frente um javali vindo ao encontro lanccedila-se diretamente e entesando a lanccedila

diretamente agrave testa e domina o javali75rdquo Ciro portanto mostra-se corajoso e habilidoso

na arte da caccedila ainda que imprudente76 sendo dominado pela sua paixatildeo desmedida

em seguida em Cirop I416-24 Ciro participa de sua primeira batalha Nela seu

comportamento na caccedila se repete confirmando o que o narrador jaacute dissera antes ldquoDe

modo que natildeo eacute faacutecil encontrar algo que acontecendo na guerra falte agrave caccedilardquo77 (Cirop

I210) Assim como desobedecera aos guardas na caccedila extasiado pela coragem

tambeacutem desobedece ao avocirc Astiacuteages primeiro indo ao campo de batalha em seguida

tomando a dianteira dos cavaleiros

Como um catildeo de boa raccedila mas inexperiente imprudentemente vai de encontro ao javali assim tambeacutem Ciro arremetia apenas tentando golpear quem ele alcanccedilasse natildeo se precavendo de nenhuma outra coisa78 (I 421)

Portanto Ciro em suas primeiras experiecircncias puacuteblicas de guerreiro ndash a de caccedila e

a de batalha ndash demonstra suas qualidades inatas para a guerra No entanto pela

juventude e inexperiecircncia lhe faltam ainda determinados ensinamentos principalmente

74 No Original πάντων ἐπιλαθόμενος ὧν ἤκουσεν ἐδίωκεν οὐδὲν ἄλλο ὁρῶν ἢ ὅπῃ ἔφευγε

(CiropI48) 75 No original [hellip] ἀνεπήδησεν ἐπὶ τὸν ἵππον ὥσπερ ἐνθουσιῶν καὶ ὡς εἶδεν ἐκ τοῦ ἀντίου

κάπρον προσφερόμενον ἀντίος ἐλαύνει καὶ διατεινάμενος εὐστόχως βάλλει εἰς τὸ

μέτωπον καὶ κατέσχε τὸν κάπρον (Cirop 148) 76 Sobre o valor educacional desta cena falaremos no capiacutetulo 4 deste trabalho 77 No original ὥστε οὐ ῥᾴδιον εὑρεῖν τί ἐν τῇ θήρᾳ ἄπεστι τῶν ἐν πολέμῳ παρόντων

(Cirop1210) 78 No original ὥσπερ δὲ κύων γενναῖος ἄπειρος ἀπρονοήτως φέρεται πρὸς κάπρον οὕτω καὶ

ὁ Κῦρος ἐφέρετο μόνον ὁρῶν τὸ παίειν τὸν ἁλισκόμενον ἄλλο δ᾽ οὐδὲν προνοῶν

(Cirop1421)

63

de autocontrole diante de suas paixotildees O Ciro de Xenofonte natildeo eacute um homem formado

em corpo de uma crianccedila o Ciro de Heroacutedoto por sua vez jaacute eacute na infacircncia o rei capaz

de tomar as mesmas medidas que no futuro de fato tomaraacute O castigo que quando

crianccedila impotildee ao colega revela o mesmo temperamento despoacutetico do avocirc o mesmo

despotismo que ele revelaraacute quando adulto79 A personagem de Xenofonte neste

sentido eacute mais complexa pois vai moldando seu modo de agir no mundo aprendendo

com as experiecircncias por que passa A infacircncia de Ciro em Xenofonte eacute uma narrativa

com traccedilos romanescos e didaacuteticos mas em nada ingecircnua que propiciaraacute a formaccedilatildeo do

Ciro adulto Quanto ao tema do reconhecimento da mesma forma que em Heroacutedoto

durante uma brincadeira Ciro eacute reconhecido como rei em Xenofonte durante uma caccedila

Ciro eacute reconhecido como heroacutei

Concluiacutemos reafirmando que Xenofonte molda a narrativa da infacircncia de Ciro a

partir das brechas deixadas pela narrativa de Heroacutedoto Segundo Freitas (1989 p43)

este tipo de procedimento dos narradores de ficccedilatildeo eacute chamado de ldquoinfraccedilatildeo do material

histoacutericordquo Aleacutem de moldar sua narrativa nas brechas da narrativa de Heroacutedoto

Xenofonte tambeacutem apaga dela o que seria incoerente com o tom idealizante de sua

narrativa Desse modo a manipulaccedilatildeo do material histoacuterico eacute organizada em virtude da

lei da necessidade e da verossimilhanccedila na representaccedilatildeo da evoluccedilatildeo do caraacuteter para

tornaacute-lo coerente com a idealizaccedilatildeo proposta por Xenofonte

Figura 1 Ciro na corte do rei Astiacuteages Nesta cena Ciro estaacute servindo vinho ao rei conforme a Ciropedia I3

Fonte Baldwin J Fifty famous stories retold by James Baldwin (2008)

79 A atitude que melhor exemplifica o despotismo de Ciro na narrativa de Heroacutedoto eacute o castigo que ele impotildee ao seu inimigo Creso a quem Ciro queria queimar vivo

64

323 A cena de Creso o encontro dos monarcas

Analisaremos nesta seccedilatildeo a Cena de Creso que corresponde ao primeiro

encontro entre os monarcas Ciro e Creso rei da Liacutedia Tanto na narrativa de Heroacutedoto

quanto na de Xenofonte o encontro acontece apoacutes a tomada da cidade de Sardes a

capital da Liacutedia descrita ldquo[] como a cidade mais opulenta da Aacutesia apoacutes a Babilocircniardquo

(Cirop 1965 p209) Deter-nos-emos nesta narrativa porque nela as noccedilotildees de Genette

(1982 p8) de intertextualidade e alusatildeo satildeo aplicadas com mais clareza

Primeiramente devemos lembrar que enquanto em Heroacutedoto eacute Ciro quem

aparece na narrativa dedicada a Creso (Histoacuterias 1731) em Xenofonte eacute Creso quem

aparece na narrativa de Ciro (Cirop VII29-14) Esta observaccedilatildeo ainda que agrave primeira

vista pareccedila demasiadamente simples ressalta o que chamamos de inversatildeo do ἔθος

(ethos) Isso significa que a mudanccedila de focalizaccedilatildeo80 de uma obra para a outra

influenciaraacute na caracterizaccedilatildeo eacutetica e psicoloacutegica das personagens e o tema da sabedoria

das personagens seraacute o eixo central dessa inversatildeo da focalizaccedilatildeo e estaraacute implicado em

toda Cena de Creso

3231 Preparativos

Antes no entanto de analisarmos o encontro dos monarcas eacute preciso recapitular

em que circunstacircncias o encontro ocorre Creso na Ciropedia eacute o maior aliado do rei

Assiacuterio em sua campanha contra a coalizatildeo medo-persa De fato Creso preenche a

funccedilatildeo de verdadeiro inimigo de Ciro na obra jaacute que nenhum outro dos seus inimigos

(nem o rei Assiacuterio nem seu filho nem o rei Armecircnio) concretiza pela figurativizaccedilatildeo81

accedilotildees no enredo que preencham a funccedilatildeo de oponente real de Ciro

Nas Histoacuterias ao contraacuterio a luta entre liacutedios e persas decorre da ambiccedilatildeo de

Creso Segundo Heroacutedoto dois anos apoacutes a morte de seu filho Aacutetis (Histoacuterias1351-

453) Creso fica alarmado ao ouvir falar da derrota de Astiacuteages por seu neto Ciro e

80 Cf Reis (2000 p159) ldquoA focalizaccedilatildeo pode ser definida como a representaccedilatildeo da informaccedilatildeo diegeacutetica que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciecircncia quer seja o de uma personagem da histoacuteria quer o do narrador heterodiegeacuteticordquo 81 Entendemos a figurativizaccedilatildeo como um componente semacircntico que por meio da ilusatildeo referencial evoca o mundo real Por meio dela as funccedilotildees da narrativa satildeo preenchidas ou concretizadas com accedilotildees que se encadeiam na constituiccedilatildeo da histoacuteria Cf Reis (2000 p158)

65

comeccedila a pensar em diminuir o poder dos persas antes que este aumente em demasia

Aleacutem disso Creso deseja vingar-se de Ciro porque Astiacuteages era seu cunhado casado

com sua irmatilde Tomado por este desejo Creso pergunta ao oraacuteculo de Delfos se deveria

ou natildeo atacar os persas O oraacuteculo responde-lhe que se Creso atacasse os persas um

grande impeacuterio seria destruiacutedo Isso motiva Creso a iniciar a batalha que culmina com a

invasatildeo pelos persas da capital da Liacutedia (Histoacuterias153) As diferenccedilas entre as duas

narrativas ateacute aqui satildeo de ordem da infraccedilatildeo dos dados histoacutericos A infraccedilatildeo segundo

Freitas (1986 p48) desloca deforma ou simplesmente negligencia os dados histoacutericos

na ficccedilatildeo Pode-se questionar se as oposiccedilotildees deste entrecho da narrativa natildeo poderiam

provir de outras fontes a que Xenofonte teria acesso como a Peacutersica de Cteacutesias ou

mesmo de alguma gesta persa No entanto a escassez de dados a respeito destas outras

fontes natildeo nos permite responder a esta questatildeo com absoluta seguranccedila

Podemos entatildeo conjeturar a hipoacutetese de que estas informaccedilotildees foram

manipuladas em funccedilatildeo tanto da coerecircncia da sequecircncia das accedilotildees da narrativa quanto

da manutenccedilatildeo da verossimilhanccedila entre as accedilotildees e o caraacuteter da personagem pois a

noccedilatildeo de justiccedila na Ciropedia eacute expressa de acordo com a foacutermula de que devemos

fazer bem aos amigos e mal aos inimigos Neste sentido o heroacutei da narrativa nunca

inicia uma guerra mas apenas se defende daqueles que o atacam Acima referimos que

nas Histoacuterias Creso inicia a guerra contra Ciro para se vingar deste porque Astiacuteages era

seu cunhado Neste caso Ciro havia cometido um ato injusto ao rebelar-se contra

Astiacuteages uma vez que este era seu avocirc Jaacute na Ciropedia se natildeo houvesse a agressatildeo de

Creso (membro da coalisatildeo Assiacuteria) a Ciro natildeo haveria a guerra contra a Liacutedia

Portanto a manipulaccedilatildeo de um dado histoacuterico por Xenofonte impeliu-o a manipular

toda uma sequecircncia da narrativa Todavia estas manipulaccedilotildees foram todas feitas com o

intuito de caracterizar a personagem com verossimilhanccedila em vista de idealizar o heroacutei

da narrativa e expressar o referido ideal de justiccedila Se Ciro iniciasse uma guerra contra

Creso a coerecircncia entre caraacuteter e accedilotildees natildeo seria obtida uma vez que romperia com a

ideia de justiccedila expressa na obra e a obra fracassaria como literatura pedagoacutegica O

caraacuteter da personagem condiz com suas accedilotildees e o veriacutedico ndash os dados histoacutericos ndash eacute

substituiacutedo pelo verossiacutemil (FREITAS 1986 p49)

Quanto agrave narrativa da tomada da cidade de Sardes Xenofonte apresenta uma

revisatildeo do texto de Heroacutedoto captando da narrativa de Heroacutedoto os elementos gerais e

suprimindo dela alguns detalhes Nos dois autores a tomada se daacute apoacutes uma primeira

66

vitoacuteria do exeacutercito persa na batalha de Pteacuteria82 que forccedila a fuga dos liacutedios agrave cidade de

Sardes Agrave testa da fuga estaacute Creso que se refugia em seu palaacutecio83

Due (1989 p123) mostra que em ambas as narrativas a tomada da cidade se daacute

escalando as muralhas da cidadela no entanto em Histoacuterias a invasatildeo ocorre por um

erro de Creso que natildeo fortificara uma parte da cidadela ldquo[] jaacute que natildeo era de temer que

alguma vez pudesse ser tomada por aquele lado []rdquo (Histoacuterias 184)84 na narrativa

xenofonteana a escalada eacute fruto de um estratagema de Ciro demonstrando com isso a

superioridade militar do liacuteder persa sobre seu inimigo Creso Pela primeira vez o eixo

da inversatildeo do ἔθος eacute revelado a sabedoria

Em seguida agrave invasatildeo Heroacutedoto conta que enquanto os persas saqueavam a rica

cidade um persa acerca-se de Creso no palaacutecio e natildeo o reconhecendo estava pronto

para mataacute-lo quando o filho de Creso que era mudo assustado deu um miraculoso

grito ldquoNatildeo mates Cresordquo (Histoacuterias 1854) O persa entatildeo aprisionou Creso Heroacutedoto

afirma ainda que Creso governou a Liacutedia por catorze anos e que suportou o saque da

cidade por catorze dias e com a sua queda pocircs-se fim a um grande Impeacuterio ndash o seu ndash

(Histoacuterias1861-2) cumprindo desse modo o vaticiacutenio do oraacuteculo de Delfos

Jaacute na Ciropedia apoacutes a tomada da cidade Creso trancado no palaacutecio convoca

Ciro para para primeira vez se encontrarem face a face No entanto Ciro envia um

grupo de guardas para vigiaacute-lo enquanto manteacutem a ordem na cidade impedindo que

seus soldados saqueiem Sardes Apoacutes controlar seus soldados85 Ciro parte ao encontro

de Creso

Concordamos com Tatum (1989 p152-153) de que haacute no gesto de Creso em

convocar Ciro um empreendimento calculado e ardiloso Mesmo derrotado Creso toma

uma atitude imperiosa convocando seu inimigo para ir ao seu encontro Poreacutem na

situaccedilatildeo de vencedor em que se encontra seria inverossiacutemil se Ciro obedecesse

prontamente ao seu inimigo derrotado por isso Ciro responde a Creso enviando

82 Histoacuterias 176 Cirop 71 83 Essa fuga de Creso para Heroacutedoto ocorre por um erro de julgamento do rei que pensou que jamais seria atacado em sua capital por Ciro jaacute Xenofonte mostra que na fuga de Creso estaacute representada a rendiccedilatildeo do monarca da Liacutedia rendiccedilatildeo que proporcionaraacute o encontro entre os dois 84 O feito em verdade eacute de Meles um mardo pois eacute ele que descobre este furo na proteccedilatildeo da cidadela Segundo Maria de Faacutetima (1994 nota 138 p114) a inexpugnabilidade da cidade de Sardes eacute lugar comum nas fontes 85 O tema do saque da cidade da Liacutedia estaacute presente em ambas as narrativas No entanto parece-nos que o saque em Heroacutedoto eacute um problema econocircmico Creso aconselha a Ciro de que a cidade agora eacute de Ciro e os soldados estatildeo saqueando as riquezas de Ciro Na Ciropedia o saque eacute um problema moral pois com esta conduta os piores soldados teratildeo iguais ou mais recompensas do que os melhores soldados contrariando a noccedilatildeo de justiccedila expressa na obra

67

soldados para vigiaacute-lo Aleacutem disso Ciro demora-se em assuntos aparentemente

menores como o saque agrave cidade Ciro coloca Creso em segundo plano abaixo de

qualquer outro assunto

Se Ciro tivesse ido ao comando de Creso ele o teria encontrado em um terreno familiar provavelmente em um cenaacuterio magniacutefico que deveria enfatizar de modo nada sutil a riqueza e a nobreza de seu anfitriatildeo Ciro deveria ser o convocador natildeo o convocado De fato ele demonstra seu controle sobre Creso colocando-o sob a guarda de soldados ordinaacuterios e deixa claro que haacute assuntos mais importantes para cuidar do que Creso da Liacutedia O primeiro round foi dado em favor de Ciro86 (TATUM 1989 p153 traduccedilatildeo nossa)

A anaacutelise de Tatum revela a sutileza com que Xenofonte constroacutei este embate de

egos entre os dois monarcas demonstrando a qualidade esteacutetica da cena Aleacutem disso

em nossa opiniatildeo mais uma vez Ciro mostra-se mesmo nos menores detalhes superior

moral e intelectualmente a Creso

3232 Creso prisioneiro de Ciro

O primeiro encontro de Creso e Ciro se daacute portanto nestas circunstacircncias A

interpretaccedilatildeo de Lefegravevre (2010 p403) nos parece acertada quando este afirma que o

diaacutelogo travado entre Ciro e Creso na Ciropedia condensa temas importantes de dois

diaacutelogos essenciais da narrativa de Heroacutedoto sobre Creso o diaacutelogo de Ciro e Creso e o

diaacutelogo de Creso e Soacutelon87 (Histoacuterias129-33) Eacute pela anaacutelise dos temas destes

diaacutelogos que podemos sentir a copresenccedila do texto de Heroacutedoto na narrativa de

Xenofonte Procuraremos demonstrar nesta seccedilatildeo de que forma isso ocorre

Em Histoacuterias apoacutes capturar Creso Ciro ergue uma pira sobre a qual coloca seu

inimigo com mais sete jovens liacutedios ldquo[] ou por ter em mente sacrificaacute-los como

primiacutecias a algum deus ou por desejar cumprir um voto ou ainda por ter ouvido dizer

86 No original If Cyrus had come at Croesus bidding he would have encountered him on home ground presumably in a magnificent setting which would have emphasized in none too subtle ways the wealth and nobility of his host Cyrus would have been the one summoned rather than the summoner Instead he demonstrates his control over Croesus by putting him under guard with ordinary soldiers and he makes it clear that there are more important matters to attend to than Croesus of Lydia The first round has gone in Cyrusrsquos favor (TATUM 1989 p153) 87 Lefegravevre (2010) comenta que a improbabilidade de que o encontro entre Creso e Soacutelon tenha ocorrido realmente natildeo impediu seu impacto na literatura posterior sendo recontado por diversos autores Diodoro Plutarco Dioacutegenes Laeacutercio e Luciano por exemplo Ferreira e Silva (2002 p6) confirmam o anacronismo deste encontro pois na altura em que Heroacutedoto diz que o encontro ocorreu Soacutelon jaacute devia ter morrido

68

que Creso era piedoso []rdquo (Histoacuterias1862) Creso diante da morte iminente lembra-

se das palavras que Soacutelon lhe dissera a respeito da felicidade εὐδαιμονία

(eudaimonia) ldquoningueacutem eacute feliz enquanto viverrdquo (Histoacuterias 1863) Com tais palavras

em mente Creso pronuncia o nome de Soacutelon por trecircs vezes Ciro curioso com aquela

lamentaccedilatildeo por meio de inteacuterpretes perguntou a Creso a quem ele invocava A partir

deste mote Creso narra a Ciro o encontro que tivera com o filoacutesofo ateniense

Segundo Heroacutedoto Sardes estava no auge da riqueza e por isso afluiacuteam para a

cidade muitos saacutebios (Histoacuterias 1291) Soacutelon que desejava conhecer as terras dos

povos baacuterbaros foi hospedado por Creso que apoacutes demonstrar-lhe as suas riquezas lhe

indagou ldquo[] se jaacute viste algueacutem que fosse mais feliz88 dos homensrdquo Creso esperava

que Soacutelon respondesse que o proacuteprio Creso era o mais feliz dos homens mas Soacutelon

respondeu que dos homens o mais feliz era Telo de Atenas cuja vida fora proacutespera e

tivera dois filhos belos e bons καλοκαγάθοι (kalokagathoi) Contrastam os filhos de

Telo belos e bons com os dois filhos do proacuteprio Creso jaacute que um Aacutetis estava

destinado a morrer ferido por uma ponta de ferro enquanto o outro nascera surdo e

mudo Aleacutem disso Telo morrera de forma gloriosa auxiliando os atenienses em guerra

contra os eleusinos provocando a fuga destes Por causa da sua bela morte os

atenienses sepultaram-no com ldquoexeacutequias e tributaram-lhe grandes honrasrdquo (Histoacuterias

1305) Creso incitado pela fala de Soacutelon perguntou-lhe entatildeo quem seria o segundo

homem mais feliz e Soacutelon desta vez respondeu que eram Cleacuteobis e Biacuteton dois jovens da

raccedila argiva dotados de grande forccedila fiacutesica Quando os argivos celebravam uma festa em

honra a Hera a matildee dos jovens que era esperada no templo natildeo podia dirigir-se ateacute laacute

por falta de bois que puxassem o carro Eles entatildeo atrelaram o carro agraves costas e

carregaram a matildee por ldquoquarenta e cinco estaacutediosrdquo e ldquo[] sob os olhares de toda a

assembleia sobreveio-lhes o melhor termo de vida e neles mostrou a divindade ser

melhor para o homem morrer do que viver []rdquo (Histoacuterias1313) A matildee jubilosa pelo

feito dos filhos pediu a Hera que lhes desse o que de melhor um homem pudesse obter

A deusa entatildeo lhes deu o sono eterno e ldquo[] eles foram consagrados em Delfos como

homens excelentes que eram []rdquo (Histoacuterias 1315)

Creso por fim perguntou a Soacutelon se ele achava que a sua felicidade nada valia

e Soacutelon em um longo discurso responde-lhe que o homem antes da morte natildeo pode ser

considerado feliz ὄλβος (olbos) mas deve-se dizer afortunado εὐτυχής (eutuches)

88 O termo usado nesta passagem eacute ὀλβιώτατος (olbioacutetatos)

69

pois a vida eacute repleta de vicissitudes sob o impeacuterio da inveja dos deuses Soacutelon diferencia

do bem-estar passageiro o bem-estar definitivo que eacute eternizado por meio da memoacuteria

dos homens (FERREIRA SILVA 2002 p8) Eacute necessaacuterio que a vida termine para que

se possa julgar se algueacutem eacute feliz ou natildeo e tornar-se digno de memoacuteria

As advertecircncias de Soacutelon natildeo satildeo suficientes para que Creso se afaste do

caminho da desmedida ὕβρις (hybris) Creso ainda acreditando que era o homem mais

feliz de todos eacute atingido por um terriacutevel castigo enviado pela divindade Primeiramente

morre seu filho Aacutetis cumprindo-se dessa forma o oraacuteculo em seguida apoacutes dois anos

de luto Creso entra em guerra contra os Persas sendo derrotado Jaacute nos referimos

anteriormente sobre o oraacuteculo de Delfos que Creso interpreta de forma errocircnea

Acreditamos que a maacute interpretaccedilatildeo que Creso faz do oraacuteculo resulte da auto-avaliaccedilatildeo

que ele faz da sua proacutepria vida Em verdade Creso acreditava-se o homem mais feliz

portanto para ele soacute poderia ser o impeacuterio persa que deveria ruir jamais o seu

Apoacutes Creso narrar a Ciro o encontro que tivera com o filoacutesofo Ciro arrepende-

se pois ldquo[] pensou que ele tambeacutem um homem estava a entregar vivo agraves chamas

outro homem cuja prosperidade natildeo fora inferior agrave sua []rdquo (Histoacuterias 1866) Ciro

conteacutem sua ὕβρις temendo uma futura vinganccedila divina

Contudo embora os soldados tentassem apagar o fogo da pira natildeo conseguiam

Creso suplica a Apolo e recebe do deus a ajuda em forma de chuva que apaga todo o

fogo Ciro reconhece deste modo que Creso era querido pelos deuses e lhe pergunta

por que ele decidira combater contra os persas Creso culpa o deus dos helenos ldquo[]

que me induziu a entrar em guerra []rdquo (Histoacuterias1874) Vendo em Creso um homem

saacutebio Ciro faz dele seu conselheiro a quem pede ajuda em importantes decisotildees como

por exemplo a respeito do saque da cidade de Sardes Creso no final da narrativa envia

alguns liacutedios ao oraacuteculo de Delfos para questionar por que os deuses o enganaram

quanto a entrar em guerra contra os persas A resposta da piacutetia lembrava a Creso

primeiro que ele estava marcado pelos crimes de seus antepassados e que os deuses

resguardaram-no por anos do castigo que as Moiras89 preparavam a ele segundo

lembrava-lhe que o culpado de seu infortuacutenio era ele mesmo uma vez que natildeo

compreendera o que lhe fora dito pelo oraacuteculo (Histoacuterias 1911-6) Esta eacute

89 Na mitologia grega as Moiras (Μοῖραι) eram as trecircs irmatildes que determinavam o destino tanto dos homens quanto dos deuses Pertenciam agrave primeira geraccedilatildeo divina Cf Grimal (1993)

70

resumidamente a narrativa de Creso nos detalhes que mais interessam para a nossa

anaacutelise

A questatildeo do oraacuteculo de Delfos e suas ambiguidades permeiam toda a obra de

Heroacutedoto Na narrativa de Xenofonte no entanto como bem observa Due (1989

p125) o papel consagrado aos oraacuteculos eacute diminuiacutedo Deste modo o destino dos

homens eacute fruto mais de suas escolhas e accedilotildees do que do pesado jugo das Moiras dando

assim mais relevo ao papel do Homem na formaccedilatildeo da sua proacutepria histoacuteria

Na Ciropedia toda a cena da pira eacute omitida Natildeo haacute nenhuma referecircncia a ela e

pelo contraacuterio Ciro natildeo precisa das palavras de Creso para ser clemente pois aprendera

de seu pai que a obediecircncia conquistada era muito melhor do que a imposta (Cirop

16) Tatum (1989 p146) observa com felicidade que todas as relaccedilotildees humanas na

Ciropedia de uma forma ou de outra constituem um complemento da educaccedilatildeo de

Ciro apresentada no Livro I Assim a vida de Creso em nenhum momento corre perigo

nas matildeos de Ciro A confrontaccedilatildeo desta cena com a experiecircncia de Ciro com outro

inimigo na Ciropedia o rei Armecircnio parece-nos elucidar o procedimento do heroacutei da

narrativa Com este rei (Cf Livro III) Ciro natildeo se mostrara tatildeo benevolente e julgando-o

culpado de traiccedilatildeo estaacute pronto para condenaacute-lo agrave morte Entretanto o filho do rei um

antigo amigo de Ciro chamado Tigranes discursa em defesa do pai discurso este que

Ciro resume nestes termos

Entatildeo parece a ti disse Ciro que eacute suficiente tal derrota para corrigir os homens tendo reconhecido que os outros satildeo melhores do que eles mesmos 90 (Cirop III120 traduccedilatildeo nossa)

A partir disso Tigranes convence Ciro de que transformar os inimigos em

aliados eacute muito melhor do que mantecirc-los escravizados pois os derrotados sempre

esperaratildeo uma oportunidade para se vingar Ao contraacuterio os que forem perdoados teratildeo

uma vida completamente dedicada agravequele que os salvou Em nossa opiniatildeo haacute na

postura benevolente de Ciro para com seus inimigos um claro contraste com o Ciro em

Heroacutedoto mas principalmente com o Astiacuteages das Histoacuterias Retomemos por um

momento a narrativa da infacircncia de Ciro Astiacuteages castiga Haacuterpago pela desobediecircncia

e este desejando vingar-se instiga Ciro a destronar o avocirc O castigo do inimigo

portanto eacute um tema importante nas duas narrativas A narrativa apresentada em

Heroacutedoto de certo modo figurativiza a reflexatildeo de Tigranes Acreditamos portanto que 90 No original ἔπειτα δοκεῖ σοι ἔφη ὁ Κῦρος καί ἡ τοιαύτη ἧττα σωφρονίζειν ἱκανὴ εἷναι

ἀνθρώπους τὸ γνῶναι ἑαυτῶν αλλους βελτίονας ὄντας

71

a alusatildeo agrave narrativa de Heroacutedoto se estabeleccedila nesta passagem pois eacute significativo como

o tema do castigo complementa-se da forma como eacute discutido e figurativizado em

ambas as obras

Quando Ciro na Ciropedia encontra-se com Creso ele jaacute assimilara esses

ensinamentos e natildeo necessitava do tema da pira para lembraacute-lo de que ele eacute soacute um ser

humano Ao contraacuterio quando eles se encontram pela primeira vez Creso ο sauacuteda desta

forma ldquoSauacutedo-te senhor [δεσπότης] pois a Fortuna [τυχή] a partir de hoje concede

a ti estar nesta posiccedilatildeo e a mim de saudar-te por elardquo91 (Cirop 72 9 traduccedilatildeo nossa)

O uso da palavra δεσπότης (despoteacutes) por Creso natildeo eacute meramente casual pois

como observa Lefegravevre (2010 p404) eacute com esta mesma palavra que Creso se dirige a

Ciro nas Histoacuterias (190 2) Aleacutem disso eacute tambeacutem o modo como os suacuteditos se dirigem

ao rei Assiacuterio na Ciropedia Doravante acreditamos que Creso novamente tenta tomar o

controle da situaccedilatildeo como tentara quando convocara Ciro a ir ao seu encontro Creso

quando sauacuteda Ciro como senhor estaacute implicitamente apelando para a vaidade de Ciro

convidando-o a assumir o papel de soberano enquanto ele Creso estaria

implicitamente no papel de seu escravo (δοῦλος doulos) (TATUM 1989 p153)

A artimanha de Creso ganha maior relevo quando refletimos tambeacutem sobre o

termo τύχη (tyche) (Cirop 72 10) A τύχη eacute destino no sentido de acaso fortuna

Desse modo Creso estaacute afirmando que foi a fortuna quem o colocou na situaccedilatildeo de

submissatildeo a Ciro A frase retoma a ideia proposta na narrativa herodoteana jaacute que a

τύχη para Heroacutedoto ldquo[] tem um papel decisivo no agir de cada pessoa []rdquo

(FERREIRA SILVA 2008 p8) No entanto se eacute ao acaso que se deve a derrota de

Creso a vitoacuteria de Ciro torna-se assunto de mera sorte resultado dos desejos divinos e

natildeo da capacidade de Ciro A resposta de Ciro entretanto neutraliza tanto o apelo agrave sua

vaidade quanto a implicaccedilatildeo de que foi o acaso a causadora de sua vitoacuteria ldquoEu tambeacutem

te sauacutedo Creso visto que ambos somos seres humanos []rdquo92 (Cirop 72 10 traduccedilatildeo

nossa)

Esta fala de Ciro tambeacutem eacute uma alusatildeo agrave narrativa de Heroacutedoto Ciro apoacutes a

cena da Pira em Heroacutedoto chega a esta conclusatildeo e eacute por esta conclusatildeo que decide

perdoar Creso Ambos satildeo seres humanos passiacuteveis portanto da infelicidade se natildeo

91 No original Χαῖρε ὦ δέςποτα ἔφη τοῦτο γὰρ ἡ τύχη καὶ ἔχειν τὸ ἀπὸ τοῦδε δίδωσι σοὶ καὶ

ἐμοὶ προσαγορεύειν 92 No original Καὶ σύ γε ἔφη ὦ Κροῖσε ἐπείπερ ἄνθρωποί γε ἔσμεν ἀμφότεροι

72

respeitarem os homens e os deuses Na Ciropedia natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Soacutelon

entatildeo eacute Ciro quem executa o papel de Soacutelon como detentor da sabedoria Ciro

astutamente responde neutralizando tanto o apelo para a sua vaidade quanto a ideia de

que a sorte foi responsaacutevel pela sua vitoacuteria ao mesmo tempo que se estabelece em niacutevel

de superioridade intelectual a Creso Demonstraremos no proacuteximo capiacutetulo deste

trabalho o importante papel da educaccedilatildeo na tessitura da Ciropedia Poreacutem podemos

por ora dizer que se houvesse a aceitaccedilatildeo de que foi a τύχη quem decidiu a vitoacuteria no

embate o papel da educaccedilatildeo e da formaccedilatildeo se tornaria irrelevante no conteuacutedo da obra

A diferenccedila entre Ciro e Creso natildeo seria mais a especiacutefica paideia de Ciro poreacutem um

capricho dos deuses e da fortuna Por esta razatildeo acreditamos que interpretar a fala de

Ciro como a neutralizaccedilatildeo da τύχη eacute fundamental pois o discurso de Ciro restitui o

valor do homem e de sua paideia na construccedilatildeo do seu futuro

Na sequecircncia da cena apoacutes esta ardilosa saudaccedilatildeo Creso narra sua vida a Ciro

Nesta narrativa de Creso a Ciro haacute vaacuterias alusotildees agrave narrativa construiacuteda por Heroacutedoto

Podemos dizer que de certa forma a narraccedilatildeo de Creso sumariza com breves

referecircncias toda a narrativa de Heroacutedoto retomando por exemplo os temas dos dois

filhos de Creso ou dos vaacuterios questionamentos feitos ao oraacuteculo de Delfos (Cirop 72

19) Lefegravevre (2010 p406) argumenta que as alusotildees contidas neste trecho soacute podem ser

compreendias se o leitor tiver o conhecimento da obra de Heroacutedoto Desse modo

quando Creso narra que um de seus filhos eacute mudo e o outro morreu na flor da vida eacute

evidente que ele se refere a Aacutetis assassinado por Adrasto e ao filho mudo que em

Heroacutedoto recupera a voz para salvar o pai Em Xenofonte no entanto o filho mudo

permanece neste estado

O uacuteltimo tema encontrado nesta cena da Ciropedia tambeacutem encontrado em

Heroacutedoto diz respeito agrave discussatildeo sobre a felicidade Quando resumimos a narrativa de

Heroacutedoto procuramos sublinhar a importacircncia deste tema para a construccedilatildeo da narrativa

sobre Creso Natildeo nos parece portanto de modo algum casual a presenccedila deste tema na

Cena de Creso da Ciropedia onde jaacute encontramos vaacuterias alusotildees agrave narrativa

herodoteana

O tema da felicidade surge na Ciropedia quando Creso assume a culpa por se

encontrar submisso a Ciro Para Creso seu erro comeccedilou ao procurar testar os oraacuteculos

questionando a veracidade de suas profecias Aleacutem disso tambeacutem assume que natildeo

73

soube seguir o preceito do oraacuteculo de Delfos93 que lhe indicava que o melhor caminho

para se desfrutar da felicidade eacute conhecer-se a si mesmo Para Creso conhecer-se a si

mesmo era uma tarefa faacutecil pois ele se presumia ldquotalhado para a grandezardquo (Cirop 72

24) Por causa dessa avaliaccedilatildeo diz Creso

Quando todos os reis em assembleacuteia me elegeram para ser o chefe na guerra eu aceitei o comando pois me achava capaz de ser grande enganando a mim mesmo com efeito porque me julgava capaz de fazer guerra contra ti que primeiramente eacute descendente dos deuses em seguida nascido atraveacutes de reis e por fim exercitado na virtude desde a infacircncia94 (Cirop 72 24 traduccedilatildeo nossa)

Nesta fala de Creso eacute retomado o proacuteprio discurso do narrador no proecircmio da

obra onde ele estabelece que sua pesquisa sobre Ciro tematizaraacute a γένεαν

descendecircncia a φύσιν a natureza e a παιδεία a educaccedilatildeo Isso significa que o

projeto a que o narrador se dedica atinge seu apogeu com o reconhecimento de Creso

Creso reconhece as qualidades de Ciro e que seu erro foi julgar-se no mesmo niacutevel do

rei persa No entanto tendo passado da felicidade agrave infelicidade no periacuteodo de um dia

como uma personagem traacutegica Creso pode afirmar que hoje ele reconhece a si mesmo

ou seja reconhece sua inferioridade em relaccedilatildeo a Ciro O tema da felicidade portanto

estaacute intimamente ligado ao tema da sabedoria eacute feliz aquele que conhece a si mesmo

poreacutem conhecer a si mesmo eacute a mais difiacutecil das tarefas

Por fim analisaremos o uacuteltimo segmento da narrativa concernente a Creso

Nesta passagem ainda seraacute desenvolvido o tema da felicidade Apoacutes decidir tornar

Creso seu conselheiro Ciro devolve a Creso toda a sua famiacutelia e lhe restitui a vida

luxuosa de antes No entanto retira-lhe os direitos poliacutetico e militares Creso agradece a

Ciro o tipo de vida que este estaacute lhe proporcionando pois passaraacute a viver do modo que

julga ser o mais feliz A explicaccedilatildeo de Creso eacute que a vida que a partir de agora ele

passaraacute a ter seraacute equivalente ao tipo de vida que sua esposa vivia ldquo[] pois ela de um

lado partilhava igualmente comigo de todos os bens luxos prazeres e de outro lado

natildeo dizia respeito a ela as preocupaccedilotildees de como ter estas coisas nem de guerra e de 93 Segundo Creso o ensinamento do oraacuteculo foi ldquoconheccedilendo-te a ti mesmo Creso e atravesseraacutes feliz a vidardquo (Cirop VII220 traduccedilatildeo nossa) No original Σαυτόν γιγνώσκων εὐδαίμων Κροίσε

περάσεις (Cirop VII220) 94 No original ὡς εἵλοντό με πάντες οἱ κύκλῳ βασιλεῖς προστάτην τοῦ πολέμου ὑπεδεξάμην

τὴν στρατηγίαν ὡς ἱκανὸς ὢν μέγιστος γενέσθαι ἀγνοῶν ἄρα ἐμαυτόν ὅτι σοὶ ἀντιπολε

μεῖν ἱκανὸς ᾤμην εἶναι πρῶτον μὲν ἐκ θεῶν γεγονότι ἔπειτα δὲ διὰ βασιλέων πεφυκότι

ἔπειτα δ ἐκ παιδὸς ἀρετὴν ἀςκοῦντι (Cirop 72 24)

74

batalhardquo 95 (Cirop VII228 traduccedilatildeo nossa) Estaacute impliacutecita nesta cena mais uma alusatildeo

agrave narrativa de Heroacutedoto Nas Histoacuterias Creso aconselha a Ciro que perdoe aos liacutedios

revoltosos

Mas perdoa aos liacutedios e para eles natildeo se sublevarem nem te darem cuidado impotildee-lhes restriccedilotildees proiacutebe-os de usarem armas de guerra obriga-os a vestir tuacutenicas por baixo dos mantos e a calccedilar coturnos e ordena-lhes que ensinem os filhos a tocar ciacutetara a dedilharem instrumentos de cordas e a fazerem negoacutecios E natildeo tarda meu senhor que vejas passar de homens a mulheres e assim desaparece o risco de se revoltarem [] (Histoacuterias 1155 4)

Ou seja Creso em Heroacutedoto define uma vida de oacutecio luxo e sem preocupaccedilotildees

como uma vida efeminada ndash ldquopassar de homens a mulheresrdquo (Histoacuterias 1155 4)

Entretanto a vida que Ciro permitiraacute que Creso tenha seraacute tambeacutem uma vida de oacutecio e

luxo mas sem preocupaccedilotildees militares e poliacuteticas Assim a vida que Creso nas

Histoacuterias julga efeminada e refuta na Ciropedia ele a julga como a mais feliz Aleacutem

disso mais uma vez observamos a inversatildeo do ethos em Heroacutedoto eacute Creso quem

aconselha a Ciro tomar tal decisatildeo em Xenofonte Ciro toma esta decisatildeo sem ajuda de

seu inimigo

A referecircncia agraves Memoraacuteveis (2121-34) nos ajudaraacute a compreender um pouco

mais estas implicaccedilotildees e por meio desta referecircncia percebemos que a afirmaccedilatildeo de

Creso eacute absurda para Xenofonte

Neste trecho referido das Memoraacuteveis a personagem Soacutecrates narra uma

narrativa que ouviu de Proacutedico em uma de suas leituras puacuteblicas Segundo a narrativa

Heacuteracles estava na idade em que os jovens devem escolher entre a virtude e o viacutecio

Apareceram-lhe entatildeo duas mulheres de extraordinaacuteria estatura uma agindo como

pessoa de condiccedilatildeo livre (ἐλευθέριον eleutherion) e de ar nobre (εὐπρεπῆ euprepe)

a outra corpulenta (πολυσαρκίαν polusarkian) e mole (ἁπαλότητα hapaloteta) A

segunda aproximou-se de Heacuteracles e lhe disse que se a seguisse ela o conduziria a um

caminho prazeroso e faacutecil livre de penas sem ocupar-se de guerras e de negoacutecios

aproveitando-se do trabalho alheio Chamava-se Felicidade poreacutem seus inimigos a

chamavam de Perversidade96 (Memoraacuteveis 1987 p65) A outra mulher aproximou-se

95 No original ἐκείνη γὰρ τῶν μὲν ἀγαθῶν καὶ τῶν μαλακῶν καὶ εὐφροσυνῶν πασῶν ἐμοὶ τὸ

ἴσον μετεῖχε φροντίδων δὲ ὅπως ταῦτα ἔσται καὶ πολέμου καὶ μάχης οὐ μετῆν αὐτῇ (Cirop VII228) 96 Κακία (Kakiacutea)

75

em seguida e tambeacutem lhe fez um discurso natildeo procurando enganaacute-lo com promessas de

prazeres mas prometendo um futuro glorioso e belo desde que agrave base de sacrifiacutecios e

diligecircncias Esta se chamava Virtude (Αρετή Arete) A Perversidade disse-lhe em

resposta

Compreendes Heracles que esta mulher descreve a ti um aacuterduo e longo caminho para a felicidade Eu de outro lado te conduzirei por um caminho curto e cocircmodo em direccedilatildeo a felicidade97 (Memoraacuteveis LII129 traduccedilatildeo nossa)

A resposta proferida pela Virtude mostra a Heacuteracles o quanto as conquistas (do

corpo e da alma) provindas do trabalho e da virtude satildeo melhores do que as provindas

pelo caminho faacutecil do oacutecio A verdadeira felicidade portanto eacute fruto da Virtude ainda

que a felicidade provinda da Virtude esteja acompanhada de trabalhos e penas A

felicidade provinda pela vida faacutecil eacute apenas aparente Creso portanto escolhe o

caminho da Perversidade no sentido de que ele estaacute preferindo uma vida de oacutecio A

afirmaccedilatildeo de Tatum (1989 p151) nos parece acertada ldquoHaacute uma bizarra implicaccedilatildeo

sobre o presente status de Creso Comparando sua antiga relaccedilatildeo com sua mulher com a

sua nova relaccedilatildeo com Ciro Creso inconscientemente compara-se a uma mulher []98rdquo

Figura 2 Creso a ponto de ser incendiado a mando de Ciro Acircnfora grega

Fonte httpeswikipediaorgwikiArchivoKroisos_stake_Louvre_G197jpg

97 No original Ἐννοεῖς ὦ Ἡράκλεις ὡς χαλεπὴν καὶ μακρὰν ὁδὸν ἐπὶ τὰς εὐφροσύνας ἡ

γυνή σοι αὕτη διηγεῖται ἐγὼ δὲ ῥᾳδίαν καὶ βραχεῖαν ὁδὸν ἐπὶ τὴν εὐδαιμονίαν ἄξω σε

(Memoraacuteveis LII129 traduccedilatildeo nossa) 98 No original There is a bizarre implication here about Croesusrsquo present status By comparing his former relationship whit his wife to Cyrusrsquos relationship with him now Croesus unknowingly likes himself to a woman (TATUM 1989 p151)

76

3233 A intertextualidade e a reescrita da histoacuteria

A partir desta nossa anaacutelise da Cena de Creso podemos concluir que a narrativa

da Ciropedia alude em muitos momentos agrave narrativa de Heroacutedoto A alusatildeo eacute uma

forma impliacutecita de intertextualidade mas que se revela por exemplo na repeticcedilatildeo de

temas jaacute antes abordados pelo texto modelo Uma vez que a alusatildeo eacute uma forma

impliacutecita de intertextualidade podemos presumir que Xenofonte esperava o preacutevio

conhecimento da narrativa de Heroacutedoto Aleacutem disso uma vez que natildeo estamos em

condiccedilotildees de confrontar a narrativa de Xenofonte com todas as obras que poderiam ter

sido suas fontes podemos afirmar que nas passagens em que identificamos a

intertextualidade o material histoacuterico autorizado por Heroacutedoto foi manipulado natildeo por

conhecimento de outra fonte mas por um processo de ficcionalizaccedilatildeo Nestas

condiccedilotildees a ficccedilatildeo infringe a histoacuteria Segundo Freitas (1986 p50)

[] ao constatar que as informaccedilotildees histoacutericas oscilam sem cessar entre o real e o fictiacutecio por razotildees esteacuteticas ideoloacutegicas ou pragmaacuteticas percebe-se que na verdade a Histoacuteria eacute adaptada agraves intenccedilotildees especificamente literaacuterias do escritor ela perde seu estatuto de referencial autocircnomo e se torna elemento constitutivo do universo interno do romance de ficccedilatildeo

Quais seriam entatildeo as intenccedilotildees de Xenofonte ao efetuar a adaptaccedilatildeo do

material histoacuterico Procuramos demonstrar em nossa anaacutelise que as adaptaccedilotildees do texto

de Heroacutedoto procuravam sempre sublinhar a sabedoria de Ciro em contraste com seu

oponente Creso Desse modo denominamos a inversatildeo do ἔθος o caraacuteter de Ciro

como eixo principal das modificaccedilotildees da Ciropedia A anaacutelise do texto de Heroacutedoto

revela que Creso apoacutes sua derrota para Ciro compreende os ensinamentos de Soacutelon e

torna-se de algum modo um homem saacutebio Ciro contudo mostra-se detentor deste

mesmo conhecimento porque em nossa opiniatildeo na Ciropedia a sabedoria estaacute

intimamente ligada agrave formaccedilatildeo da personagem Ciro assume o papel de Soacutelon de saacutebio

capaz de aplicar algum ensinamento a Creso

Desse modo Xenofonte procura a partir de estrateacutegias de ficcionalizaccedilatildeo

idealizar Ciro e com isso estruturar verossimilmente a representaccedilatildeo das accedilotildees e do

caraacuteter da personagem de Ciro

77

324 A Morte de Ciro

Trataremos da cena a respeito da morte de Ciro Segundo Sancisi-Weerdenburg

(2010 p441) Heroacutedoto natildeo eacute a autoridade mais confiaacutevel sobre este assunto e a

estudiosa acredita que Xenofonte estruturou sua narrativa a partir da tradiccedilatildeo oral

iraniana Acreditamos que uma vez que temos escassas informaccedilotildees a respeito das

fontes sobre a vida de Ciro eacute muito complicado afirmar qual fonte eacute mais ou menos

confiaacutevel Mais complicado ainda eacute afirmar qual das fontes Xenofonte julgou ser a

correta Infelizmente a uacutenica destas fontes que nos chegou foi a obra de Heroacutedoto e eacute

apenas por meio da comparaccedilatildeo com ela que podemos verificar se Xenofonte manteacutem-

se fiel ou manipula o material histoacuterico Aleacutem disso haacute ainda nesta cena algumas

alusotildees a narrativa de Heroacutedoto

Em Heroacutedoto Ciro morre no campo de batalha durante a tentativa de subjugar

os massaacutegetas (Histoacuterias 1201-214) A tentativa de Ciro eacute por Heroacutedoto descrita

como negativa motivada ldquo[] em primeiro lugar [pelas] circunstacircncias do seu

nascimento que o levavam a considerar-se mais do que um simples mortal depois o

sucesso que sempre obtinha em campanha []rdquo (Histoacuterias12042) Aleacutem disso os

massaacutegetas jamais cometeram agressatildeo contra os persas (Histoacuterias1206) Portanto

Heroacutedoto descreve a atitude de Ciro como desmedida ὑβριστής (hybristes) e prepara

a atenccedilatildeo do leitor para a queda do monarca persa

A primeira aproximaccedilatildeo de Ciro em busca de seu objetivo foi uma proposta de

casamento com a rainha Toacutemiris mas esta percebendo o real desejo de Ciro o proibiu

de se aproximar de seu paiacutes Ciro entatildeo inicia a expediccedilatildeo e atravessa o rio Araxes

lanccedilando uma ponte sobre o rio Para Sancisi-Weerdenburg (2010 p445) o tema do

atravessamento do rio eacute um leitmotiv das Histoacuterias para o desencadeamento da queda

do monarca99

Due (1989 p131) observa que a descriccedilatildeo da batalha entre os persas e os

massaacutegetas eacute repleta de elementos sobrenaturais oraacuteculos e avisos Ciro como Creso o

fizera anteriormente interpreta de forma equivocada um oraacuteculo acreditando que Dario

estava tramando contra ele A maacute interpretaccedilatildeo eacute fruto de sua ὕβρις (hybris) a

99 Cf a travessia de Dario no Istros de Xerxes no Helesponto e de Cambises em sua invasatildeo da Etioacutepia Aleacutem disso estes povos invadidos satildeo tambeacutem descritos por Heroacutedoto como inocentes de qualquer ofensa ao povo persa Desse modo Heroacutedoto estabelece como injusta a guerra iniciada por estes persas assim como julgava injusta a guerra promovida por Creso contra Ciro

78

arrogacircncia de se crer invenciacutevel O sonho na verdade predizia a sua morte e que ldquo[]

seu poder passaria para as matildeos de Dario []rdquo (Histoacuterias 12101)

A batalha em que Ciro morre eacute descrita por Heroacutedoto como a mais violenta entre

dois povos baacuterbaros na qual mais pessoas pereceram O reinado de Ciro durou vinte e

nove anos e apoacutes descrever o ultraje que o corpo morto de Ciro sofreu nas matildeos da

rainha Toacutemiris (Histoacuterias1214) Heroacutedoto termina sua narrativa estabelecendo que

dentre as muitas versotildees a respeito da morte de Ciro ldquo[] esta eacute a mais criacutevel []rdquo

(Histoacuterias 1214 5) Heroacutedoto deve ter rejeitado as outras versotildees porque elas

deveriam conter elementos de glorificaccedilatildeo a Ciro e o encocircmio destoaria da estrutura

traacutegica criada pelo autor para os monarcas baacuterbaros

Jaacute afirmamos anteriormente que a narrativa de Ciro em Heroacutedoto visava a ser

paradigmaacutetica ldquocom funccedilotildees determinadas no conjunto da narrativardquo (FERREIRA

SILVA 2002 p38) Deste modo a narrativa da vida de Ciro preenche o padratildeo

estrutural definido por Immerwahr (1981 apud FERREIRA SILVA 2002) Segundo

Immerwahr o padratildeo das narrativas de Heroacutedoto assume a seguinte estrutura a-) as

origens do monarca (como nasceu e como chegou ao poder) b-) primoacuterdios do reinado

ateacute atingir o apogeu c-) curva descendente que culmina com a queda do monarca

Pudemos observar em nossa anaacutelise como este modelo se aplica facilmente a narrativa

sobre a vida de Ciro Primeiramente sua origem eacute marcada pelos signos da lenda o

afastamento da casa materna por causa de um oraacuteculo e o subsequente reconhecimento

de sua verdadeira identidade Em seguida a carreira militar vitoriosa primeiro

destronando seu avocirc Astiacuteages depois derrotando Creso e dominando a Liacutedia e a

Babilocircnia Por fim sua queda porque acreditou ser mais do que um simples mortal Eacute

interessante como Heroacutedoto ata esta estrutura com perfeiccedilatildeo pois remonta a arrogacircncia

de Ciro que eacute a causa da sua queda agrave sua origem e agrave sua carreira militar de sucesso

(Histoacuterias12042)

Em Xenofonte (CiropVIII7) encontramos uma narrativa completamente

diferente Ciro morre idoso contente e de um modo paciacutefico em casa rodeado pelos

seus amigos e parentes No final de sua vida Ciro retorna agrave Peacutersia ldquo[] pela seacutetima vez

em seu reinado []rdquo100 (Cirop VIII71) onde tem um sonho no qual uma pessoa de

estatura extraordinaacuteria lhe revelou que iria morrer Assim que ele acorda faz rituais aos

100 No original [] τὸ ἕβδομον ἑπί τῆς αὐτοῦ ἀρχῆς []

79

deuses e orando agradece-os por terem revelado por meio de sinais ldquo[] as coisas que

eu deveria e as coisas que natildeo deveria fazer []rdquo101 (Cirop VIII73) Em seguida diz

Muito agradeccedilo a voacutes pois reconhecia a vossa atenccedilatildeo e jamais na prosperidade me considerei acima dos homens Peccedilo que voacutes deis agora a felicidade a meus filhos minha esposa meus amigos e minha paacutetria e a mim decirc uma morte tatildeo digna quanto a vida que me destes102

O discurso de Ciro retoma o tema da felicidade eudaimonia discutido no

encontro com Creso Ademais Ciro agradece aos deuses por nunca terem deixado que

ele se tornasse na prosperidade hubristes e se julgasse mais do que qualquer homem

De sorte que Ciro em Xenofonte agradece por natildeo ter tido o mesmo fim que a

personagem Ciro teve em Heroacutedoto

Acreditamos que esta alusatildeo natildeo eacute meramente casual nem mesmo ingecircnua Pelo

contraacuterio em nossa opiniatildeo as alusotildees revelam que Xenofonte estava dialogando

diretamente com a obra de Heroacutedoto aleacutem de servirem de pequenas pistas para que o

leitor possa observar a manipulaccedilatildeo do material de Heroacutedoto Como notamos a partir

da anaacutelise da Cena de Creso as alusotildees em geral referem-se a temas importantes na

obra de Heroacutedoto e que satildeo retrabalhados na Ciropedia Assim natildeo eacute soacute o tema da

felicidade e ο da arrogacircncia que aparecem na narrativa da morte de Ciro mas tambeacutem o

tema do sonho

O tema do sonho frequente em Heroacutedoto tem pouca participaccedilatildeo na estrutura

narrativa da Ciropedia poreacutem assim como em Histoacuterias (1210) os deuses enviam um

sonho a Ciro em que revelam a sua morte A mensagem dos sonhos no entanto diverge

completamente pois o sonho narrado em Heroacutedoto eacute ambiacuteguo e enigmaacutetico Ou seja a

divindade alerta Ciro mas o Ciro de Heroacutedoto eacute incapaz de interpretar corretamente a

mensagem dos deuses Jaacute o sonho enviado a Ciro na Ciropedia eacute claro e direto O sonho

em Heroacutedoto revela o destino traacutegico dos homens que natildeo conseguem compreender os

deuses O sonho em Xenofonte revela que Ciro eacute agraciado pelos deuses pela sua

conduta correta durante a vida

101 No original [] ἅ τrsquo ἐχρῆν ποιεῖν καὶ ἃ οὐκ ἐχρῆν [] 102 No original πολλὴ δ ὑμῖν χάρις ὅτι κἀγὼ ἐγίγνωσκον τὴν ὑμετέραν ἐπιμέλειαν καὶ

οὐδεπώποτε ἐπὶ ταῖς εὐτυχίαις ὑπὲρ ἄνθρωπον ἐφρόνησα αἰτοῦμαι δ ὑμᾶς δοῦναι καὶ νῦν

παισὶ μὲν καὶ γυναικὶ καὶ φίλοις καὶ πατρίδι εὐδαιμονίαν ἐμοὶ δὲ οἷόνπερ αἰῶνα δεδώκατε

τοιαύτην καὶ τελευτὴν δοῦναι

80

Por fim apoacutes dois dias Ciro convocou103 seus dois filhos alguns amigos e

convidados e lhes fez um discurso vindo a falecer em seguida O discurso de Ciro eacute

bem elaborado e retoma os principais temas discutidos na obra Ciro retoma seu passado

e seus feitos observando que a felicidade eudaimonia sempre o acompanhou Ele foi

haacutebil para ajudar os amigos e para prejudicar os inimigos tornou seu paiacutes conhecido e

admirado mas ateacute o momento da sua morte tivera medo de que algo terriacutevel lhe

acontecesse buscando escapar do perigo da hubris Em seguida Ciro estabelece a

divisatildeo de sua heranccedila entre seus dois filhos Cambises e Tanaoxares Apoacutes isso faz

uma reflexatildeo a respeito da imortalidade da alma que deve viver apoacutes a destruiccedilatildeo do

corpo104 Antes de morrer ele ainda daacute algumas instruccedilotildees a respeito do seu funeral

Nossa anaacutelise sobre a narrativa da morte de Ciro demonstrou que a versatildeo de

Xenofonte eacute bem diferente da versatildeo de Heroacutedoto Pode-se justificar tal diferenccedila pelo

conhecimento que Xenofonte tinha das tradiccedilotildees persas conforme Sancisi-

Weerdenburg (2010) Mesmo assim observamos que alguns dos temas caros a

Heroacutedoto satildeo retomados e retrabalhados na cena da Ciropedia O Ciro de Xenofonte

encontrou o caminho da felicidade e ldquo[] foi bem sucedido onde Creso Ciro e todos os

reis persas falharam em Heroacutedoto []rdquo (DUE 1989 p135) isto eacute ele natildeo se deixou

dominar pela arrogacircncia compreendendo que era apenas um ser humano A nosso ver

seja manipulando elementos da tradiccedilatildeo oral seja por pura imaginaccedilatildeo Xenofonte

compocircs um final que pudesse condizer de forma verossiacutemil com o todo de sua obra

para que seu leitor admirasse e imitasse seu heroacutei

33 O Ciro eacutepico e o Ciro traacutegico

Procuraremos a partir de nossas reflexotildees responder as questotildees formuladas no

iniacutecio deste capiacutetulo a-) por que Xenofonte se utiliza de um material histoacuterico ao inveacutes

de construir uma obra totalmente ficcional uma vez que eacute evidente o caraacuteter ficcional e

idealista da obra b-) como ele utiliza esse material conhecido de seus leitores 103 Sancisi-Weerdenburg (2010 p447-448) observa que segundo o resumo de Foacutecio na narrativa de Cteacutesias Ciro tambeacutem termina a vida discursando para os filhos No entanto ele tambeacutem morre por causa de uma batalha estando por isso em meio termo em relaccedilatildeo agraves narrativas de Heroacutedoto e de Xenofonte 104 Segundo Sansalvador (1987 p32) a teoria da imortalidade da alma eacute uma influecircncia das ideias socraacuteticas O tema foi abordado e desenvolvido por Platatildeo no diaacutelogo Feacutedon ou Da Alma (1999)

81

Comeccedilaremos pela segunda questatildeo que de certa forma acreditamos jaacute ter respondido

no decorrer da anaacutelise das narrativas Retomaremos portanto as principais conclusotildees

obtidas em nossa anaacutelise

A partir de nossa anaacutelise pudemos comprovar que Xenofonte construiu sua

narrativa contrastando-a e dialogando diretamente com a narrativa de Heroacutedoto As

Histoacuterias funcionavam como um discurso de autoridade para Xenofonte e na sua versatildeo

da narrativa era necessaacuterio suprimir tudo que contrastasse com essa visatildeo Desse modo

Xenofonte manipula o material estabelecido pela narrativa de Heroacutedoto e essa

manipulaccedilatildeo do discurso estabelecido pela histoacuteria se daacute tanto pela invasatildeo da ficccedilatildeo na

Histoacuteria quanto pela infraccedilatildeo

Como exemplo de invasatildeo temos a cena da narrativa da infacircncia de Ciro pois

Xenofonte cria toda uma seacuterie de episoacutedios e personagens aproveitando o lapso

temporal da narrativa de Heroacutedoto Ou seja Xenofonte se aproveita das arestas

temporais que natildeo foram preenchidas pelo discurso de autoridade do historiador A

ficccedilatildeo portanto se integra agrave Histoacuteria e com ela se confunde dando-lhe uma nova forma

e um novo sentido Os episoacutedios fictiacutecios se constroem a partir de referecircncias histoacutericas

ligando-se a elas que datildeo agrave ficccedilatildeo um efeito de verdade Desse modo comportamentos

culturais (accedilotildees das personagens no banquete) e personagens histoacutericos (Astiacuteages e

Mandane) caracterizam os episoacutedios como verossiacutemeis O discurso narrativo ficcional

neste caso cria situaccedilotildees ldquo[] que funcionam como instrumentos de representaccedilatildeo

soacutecio-cultural atendendo ao objetivo de retratar um povo e uma sociedade numa

determinada eacutepocardquo (FREITAS 1986 p39)

Satildeo exemplos de infraccedilatildeo tanto a narrativa concernente a Creso quanto a

narrativa da morte de Ciro Os elementos dados como histoacutericos nestas cenas ldquo[] satildeo

deformados deslocados ou simplesmente negligenciados pela ficccedilatildeordquo (FREITAS

1986 p48) Na Cena de Creso Xenofonte trabalhou o material dado por Heroacutedoto

condensando em um uacutenico diaacutelogo os principais temas abordados por Heroacutedoto em sua

narraccedilatildeo sobre a vida de Creso Neste caso podemos dizer que houve deformaccedilatildeo do

material histoacuterico Quanto agrave narrativa da morte de Ciro Xenofonte simplesmente

negligencia a narrativa de Heroacutedoto construindo uma narrativa completamente oposta

agravequela de Heroacutedoto Para Due (1989 p22) a liberdade com que Xenofonte trabalha os

dados histoacutericos se deve agrave distacircncia do tempo e do espaccedilo que o tema da narrativa de

Ciro representava ao puacuteblico grego

82

O resultado da manipulaccedilatildeo eacute uma sorte de narrativa idealista O Ciro de

Heroacutedoto eacute uma personagem traacutegica que conforme Northop Frye (1973) estaacute ldquo[]

situada no topo da roda da fortuna a meio caminho entre a sociedade humana no solo

e algo maior no ceacuteurdquo (FRYE 1973 p204) A epifania da lei que conduz o mundo

herodoteano arremessa Ciro para a queda traacutegica em coerecircncia com seu nascimento

traacutegico e esta lei do mundo eacute governada pelo destino (Μοῖρα Moira)

O Ciro da Ciropedia eacute em essecircncia eacutepico o heroacutei cuja experiecircncia interior

produz accedilotildees no acircmbito puacuteblico Conforme Hegel (apud LUKAacuteCS 1999 p98) aquilo

que o homem eacute no mais profundo de sua interioridade soacute se revela pela accedilatildeo e eacute

portanto a accedilatildeo que caracteriza a essecircncia do eacutepico Diferentemente das personanges da

epopeia contudo a personagem de Xenofonte natildeo surge acabada na narraccedilatildeo em um

passado remoto e absolutamente fechado mas evolui e se constroacutei no decorrer da

narrativa Aleacutem disso eacute um heroacutei ideal que representa os valores eacuteticos e morais da

aristocracia Xenofonte portanto manipulou o material histoacuterico para criar o efeito de

verossimilhanccedila entre as accedilotildees ideais e o caraacuteter ideal de sua personagem

Resta-nos por fim responder a primeira questatildeo formulada no iniacutecio do

capiacutetulo se Xenofonte desejava criar uma personagem idealizada e ficcionalizou a vida

de uma personagem histoacuterica por que ele natildeo escreveu uma obra completamente

ficcional No iniacutecio deste capiacutetulo referimos que segundo a Retoacuterica Antiga a

finalidade do discurso histoacuterico eacute o uacutetil enquanto que a finalidade do discurso ficcional

eacute o prazeroso o agradaacutevel Desse modo a ficccedilatildeo eacute o reino do ψεῦδός (pseudos) da

mentira e do divertimento natildeo da utilidade

Xenofonte queria compor uma obra idealizada e buscava que seus leitores natildeo soacute

se deleitassem com sua narrativa mas tambeacutem tirassem dela alguma liccedilatildeo aprendessem

com ela Jaacute referimos que a Ciropedia efetua a siacutentese de elementos ficcionais e

histoacutericos e que o gecircnero biograacutefico no seacuteculo IV aC dilui as fronteiras entre Histoacuteria e

Ficccedilatildeo O gecircnero biograacutefico eacute em essecircncia pedagoacutegico (CARINO 1999) por isso o

tema da biografia natildeo pode ser qualquer indiviacuteduo mas um indiviacuteduo que mereccedila ser

imitado um indiviacuteduo ilustre A ficccedilatildeo neste sentido idealiza a personagem

reescrevendo os dados histoacutericos Ao mesmo tempo os dados histoacutericos e as estrateacutegias

discursivas da histoacuteria garantem ao texto biograacutefico como ao romanesco o efeito de

real A utilizaccedilatildeo de um tema histoacuterico bem como de estruturas linguiacutesticas e formais

83

da historiografia atribuem ao texto literaacuterio natildeo soacute um cunho realista (FREITAS 1986

p14) como tambeacutem verdadeiro

Os gecircneros natildeo podem ser apenas analisados por questotildees de estrutura mas

tambeacutem devem discutir questotildees como audiecircncia performance circulaccedilatildeo de textos e a

autoconsciecircncia criacutetica do papel que o gecircnero estabelece (GOLDHILL 2008 p186-

187) Neste sentido natildeo devemos esquecer a preocupaccedilatildeo didaacutetica da Ciropedia e se

Xenofonte construiacutesse uma personagem completamente ficcional a sua audiecircncia

experimentaria outra experiecircncia esteacutetica da qual se desvincularia a utilidade e a obra

falharia como literatura pedagoacutegica

Poderemos traccedilar um quadro paralelo com o desenvolvimento do romance

burguecircs nos seacuteculos XVII e XVIII Segundo Ian Watt (1997) as primeiras narrativas

ficcionais ressentiam-se de natildeo serem enquadradas no cacircnone seacuterio A ficccedilatildeo neste

contexto ficava relegada a um puacuteblico inculto Desse modo os primeiros romancistas

como Defoe em Robson Crusoe105(2004) se utilizavam do recurso dos proacutelogos com

os quais procuravam estabelecer para o leitor que suas narrativas eram diaacuterios

biografias manuscritos perdidos encontrados por um determinado editor que agora as

tornavam puacuteblicas Esse processo segundo Watt (1990) estaacute ligado agrave busca em conferir

ao romance um realismo formal106 A narrativa de ficccedilatildeo portanto adquiria um estatuto

de verdade pois se estabelecia como produto da confissatildeo de um indiviacuteduo real

Provavelmente os primeiros ficcionistas da Antiguidade ressentiram-se da

mesma necessidade dos primeiros romancistas modernos que sua obra de ficccedilatildeo fosse

aceita como literatura seacuteria Desse modo procuraram suprir essa necessidade visando

estrateacutegias discursivas que criassem no texto de ficccedilatildeo efeitos de real e entre estas

estrateacutegias estava a ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria

Para concluir gostariacuteamos por fim de refletir a respeito dos resultados dessa

manipulaccedilatildeo dos dados histoacutericos por Xenofonte O objetivo de Xenofonte ao

reescrever a histoacuteria estaacute ligado ao caraacuteter didaacutetico de sua narrativa O caraacuteter didaacutetico

dessa ficcionalizaccedilatildeo prevecirc no entanto menos recontar o passado tal qual ele ldquode fato

aconteceurdquo do que se dirigir como exemplum para seus leitores presentes e futuros

Desse modo Xenofonte aproxima-se do passado rompendo a distacircncia eacutepica com o

105 Defoe (apud WATT 1997 p155) em defesa do Robinson Crusoeacute daqueles que consideravam essa obra mera ficccedilatildeo disse ldquo[] afirmo que a histoacuteria embora alegoacuterica eacute tambeacutem histoacutericardquo 106 Cf Linda Hutcheon (1991 p143) ldquoAs obras de Defoe diziam ser veriacutedicas e chegaram a convencer alguns leitores de que eram mesmo factuais poreacutem a maioria dos leitores atuais (e muitos dos leitores da eacutepoca) tiveram o prazer da dupla conscientizaccedilatildeo da natureza fictiacutecia e de uma base no ldquorealrdquo ndash assim como ocorre com os leitores da metaficccedilatildeo historiograacutefica contemporacircneardquo

84

caraacuteter inacabado do presente Os exemplos que analisamos neste capiacutetulo demonstram

a tentativa de Xenofonte de recriar esse passado para construir um todo concreto e ideal

Natildeo eacute o passado o ponto de partida de Xenofonte mas a contemporaneidade que ldquo[]

dita os pontos de vista e as orientaccedilotildees para certos valores []rdquo (BAKHTIN 1998

p418) e neste sentido o passado eacute modernizado Desse modo podemos falar da

Ciropedia como um romance a partir da definiccedilatildeo de Bakhtin107 pois em sua mateacuteria

narrativa o passado fechado eacute destruiacutedo reconduzindo-o a uma nova interpretaccedilatildeo sob

o olhar ideoloacutegico do presente

107 Cf o capiacutetulo 2 seccedilatildeo 241

85

4 Ciropedia um Romance de Formaccedilatildeo na Antiguidade

O mestre [] eacute o prolongamento do amor paterno eacute o complemento da ternura das matildees o guia zeloso dos primeiros passos na senda escabrosa que vai agraves conquistas do saber e da moralidade [] Devemos ao pai a existecircncia do corpo o mestre cria-nos o espiacuterito (sorites de sensaccedilatildeo) e o espiacuterito eacute a forccedila que impele o impulso que triunfa o triunfo que nobilita o enobrecimento que glorifica e a gloacuteria eacute o ideal da vida o louro do guerreiro o carvalho do artista a palma do crente

Raul Pompeacuteia 1976 p26

Procuramos no capiacutetulo anterior estabelecer o estatuto ficcional108 da Ciropedia

pela ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria Demonstramos em nossa anaacutelise que Xenofonte cria sua

obra manipulando os dados presentes no discurso de autoridade de Heroacutedoto pela

invasatildeo e pela infraccedilatildeo do material histoacuterico Aleacutem disso tambeacutem procuramos

demonstrar que a Ciropedia se afasta do projeto historiograacutefico estabelecido por

Heroacutedoto e desenvolvido por Tuciacutedides e se aproxima do gecircnero biograacutefico109 ao

combinar os feitos poliacuteticos e militares com a narrativa ficcional da vida particular do

heroacutei da Ciropedia Todavia ao observarmos o modo de imitaccedilatildeo executado na

Ciropedia demonstramos que ela se afasta do modelo das biografias de narraccedilatildeo

simples e se aproxima do gecircnero de imitaccedilatildeo mista da eacutepica Desse modo podemos

afirmar que a Ciropedia eacute uma narrativa eacutepica (mista) de ficccedilatildeo em prosa ou seja seu

estatuto eacute tal qual o do romance

Estabelecido tal estatuto analisaremos as estruturas da Ciropedia que a tornam a

mais antiga ancestral do Romance de Formaccedilatildeo (Bildungsroman)

Criacuteticos como Lesky (1986) Bakhtin (2010) e Tatum (1989) afirmam que a

Ciropedia eacute uma das obras ancestrais do Romance de Formaccedilatildeo poreacutem em seus estudos

108 Assinalar o caraacuteter ficcional de uma obra natildeo eacute necessariamente diminuir o valor esteacutetico de uma obra historiograacutefica nem enfatizar o valor esteacutetico de uma obra ficcional Eacute antes estabelecer o caraacuteter ontoloacutegico do proacuteprio escrito ficcional qualquer que seja ele no qual as oraccedilotildees projetam ldquo[] contextos objectuais e atraveacutes destes seres e mundos puramente intencionais que natildeo se referem a natildeo ser de modo indireto a seres tambeacutem intencionaisrdquo (CAcircNDIDO 2002 p17) 109 A palavra biografia eacute composta pelos termos βίος (vida) γράφειν (escrever) e foi usado pela primeira vez por Plutarco na Vida de Alexandre (1992) Segundo Momigliano (1993 p10) as formas biograacuteficas do seacuteculo IV aC satildeo denominadas pelos antigos de encocircmio revelando por isso a origem epidiacutetica do gecircnero biograacutefico Como afirmamos no capiacutetulo 1 no decorrer deste trabalho utilizaremos a designaccedilatildeo biografia de forma ampla seguindo desse modo Momigliano (1993) abrangendo por isso as obras encomiaacutesticas do seacuteculo IV aC

86

natildeo haacute uma anaacutelise que de fato justifique tal afirmaccedilatildeo Procuraremos neste capiacutetulo

portanto efetivar esta anaacutelise de forma a justificar tal classificaccedilatildeo com a qual tambeacutem

concordamos

41 Bildungsroman e suas origens

Se o romance de formaccedilatildeo por um lado eacute um gecircnero cujo paradigma se

inscreve na obra de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796)

de outro eacute fruto de um intenso e longo jogo de influecircncias e transformaccedilotildees Como

observa Todorov (1988 p34) a origem de um gecircnero repousa sempre em outros

gecircneros discursivos Tais processos dialoacutegicos nem sempre satildeo claros e evidentes ao

pesquisador da poeacutetica histoacuterica devido ao fato de que muitas obras que tiveram um

papel importante na histoacuteria da literatura natildeo sobreviveram ao tempo No entanto ldquo[]

o gecircnero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica []rdquo (BAKHTIN

2010 p121) que satildeo aqueles elementos estruturais primitivos do gecircnero que se

renovam em cada nova obra literaacuteria e que renovando-se permanecem

A anaacutelise destes elementos pode nos oferecer valiosas informaccedilotildees a respeito da

histoacuteria do gecircnero Tal anaacutelise no entanto necessita do conhecimento preacutevio de quais

elementos constituem determinantes para a caracterizaccedilatildeo de gecircnero e que formam

portanto a archaica do Bildungsroman Segundo Maas (1999 p64)

[] a abordagem genealoacutegica permite que se investigue ao lado das semelhanccedilas formais a proacutepria histoacuteria do gecircnero [] Historiar a obra significa captaacute-la na dinacircmica dos processos de sintetizaccedilatildeo empreacutestimo transformaccedilatildeo e exclusatildeo que ocorrem entre as vaacuterias obras singulares que constituem um determinado universo literaacuterio

Ou seja a partir da repeticcedilatildeo em obras singulares de elementos estruturais eacute

possiacutevel estabelecer um diaacutelogo entre as formas estruturais do gecircnero Tal abordagem

deve levar em conta a existecircncia de determinadas obras que se configuram como

paradigmaacuteticas (MAAS 2000 p65) isto eacute caracterizam os elementos miacutenimos de

comparaccedilatildeo A obra paradigmaacutetica do romance de formaccedilatildeo eacute Os anos de

87

aprendizagem de Wilhelm Meister de Goethe e por meio da comparaccedilatildeo com as

estruturas do Meister poderemos determinar se esta ou aquela obra se insere no gecircnero

O conceito de Bildungsroman aparece pela primeira vez em 1810 quando o

professor Karl Morgenstern o emprega durante uma conferecircncia na Universidade de

Dorpat Segundo Maas

A definiccedilatildeo inaugural do Bildungsroman por Morgenstern entende sob o termo aquela forma de romance que ldquorepresenta a formaccedilatildeo do protagonista em seu iniacutecio e trajetoacuteria ateacute alcanccedilar um determinado grau de perfectibilidaderdquo Uma tal representaccedilatildeo deveraacute promover tambeacutem ldquoa formaccedilatildeo do leitor de uma maneira mais ampla do que qualquer outro tipo de romancerdquo (MAAS 2000 p19)

O romance de Goethe Os Anos de aprendizado de Wilhelm Meister publicado

nos anos de 1795-1796 jaacute era por Morgenstern considerado o paradigma modelo dessa

subespeacutecie do gecircnero do romance condiccedilatildeo esta ainda mantida e por isso ldquo[] a

classificaccedilatildeo de obras uacutenicas sob o gecircnero do Bildungsroman deve ainda considerar o

cacircnone miacutenimo constituiacutedo por Os Anos de aprendizado de Wilhem Meisterrdquo (MAAS

2000 p24)

As condiccedilotildees para o surgimento do conceito e por que natildeo do proacuteprio romance

de Goethe ligam-se agrave Revoluccedilatildeo Francesa e ao novo ideal de homem por ela

propagada o burguecircs agrave nova concepccedilatildeo da infacircncia e da crianccedila e agrave crenccedila de que uma

sociedade educadora pode moldar o caraacuteter do individuo A educaccedilatildeo do indiviacuteduo

preconizada no Meister estaacute ligada agrave formaccedilatildeo por um estado regulador sendo a escola

para todos fruto de um dos siacutembolos da Revoluccedilatildeo Francesa a igualdade Goethe ilustra

dessa forma a tensatildeo existente entre o burguecircs cuja aspiraccedilatildeo por uma formaccedilatildeo

universal ultrapassa os limites impostos pela sociedade burguesa e o nobre cuja

formaccedilatildeo universal ultrapassa os ldquo[] limites estreitos da educaccedilatildeo para o trabalho e

para a perpetuaccedilatildeo do capital herdado []rdquo (MAAS 2000 p20) a que estava destinado

o burguecircs

No gecircnero romance Goethe encontrou o solo propiacutecio para tornar feacutertil sua obra

uma vez que o advento do romance moderno coincide com a erupccedilatildeo da vida privada

portanto apta a tratar das ambiccedilotildees natildeo do heroacutei eacutepico mas do heroacutei comum da

oposiccedilatildeo do subjetivismo do indiviacuteduo com o mundo exterior

Para Maas (2000) as questotildees histoacutericas e discursivas que cercam tanto a

criaccedilatildeo do Meister de Goethe quanto da cunhagem do termo Bildungsroman tornam-na

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uacutenica e nesse sentido natildeo lhe parece possiacutevel reconhecer um gecircnero chamado

ldquoRomance de Formaccedilatildeordquo para aleacutem daquelas condiccedilotildees histoacutericas de sua origem Ou

em outras palavras o Romance de Formaccedilatildeo seria um gecircnero de uma obra soacute Aleacutem

disso segundo Lukaacutecs (2000) a divisatildeo do romance em gecircneros eacute implicada muito mais

por questotildees ideoloacutegicas do que por problemas de estrutura ou caracterizaccedilatildeo

As tentativas portanto segundo Maas de transportar para aleacutem deste contexto o

termo Bildungsroman satildeo insiacutepidas pois a grande quantidade de obras que criacuteticos

arrolam sob este roacutetulo sugere a hipoacutetese de um Bildungsromam ldquo[] antes discursivo

do que propriamente literaacuterio []rdquo (p24) ou seja tendo como elemento unificador mais

um ideal de formaccedilatildeo do que elementos estruturais e literaacuterios do romance

O Bildungsromam mostra-se entatildeo como uma forma literaacuteria definiacutevel apenas a partir da grande Bildungs-Frage da grande questatildeo da formaccedilatildeo considerada natildeo apenas em relaccedilatildeo ao momento especiacutefico de sua gecircnese mas por meio das diferentes eacutepocas histoacutericas [] a formaccedilatildeo no sentido amplo como a considera Jacobs ultrapassa os limites histoacutericos da gecircnese do conceito Bildungsroman (MAAS 2000 p63)

No entanto Bakhtin (2010 p223) demonstra que a histoacuteria do romance e de

suas formas variantes pode ser baseada em princiacutepios estruturais como a imagem do

heroacutei da narrativa e o grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico O que distingue no seu

entender o romance de formaccedilatildeo dos outros tipos de romance ndash romance de provas

romance de viagem romance biograacutefico ndash eacute justamente a construccedilatildeo do heroacutei Isso natildeo

significa que negamos a historicidade do termo Bildungsroman e sua problemaacutetica

discursiva mas que este subgecircnero romanesco enquanto forma desenvolve-se

reformulando-se ateacute finalmente desenvolver suas amplas capacidades na obra de

Goethe

Segundo Bakhtin (2010 p235) nos outros tipos de romance o heroacutei eacute imutaacutevel

e nem mesmo todas as aventuras pelas quais ele passa satildeo capazes de fazecirc-lo evoluir O

homem eacute estaacutetico mesmo se movimentando em espaccedilo amplo Assim o romance de

formaccedilatildeo uma variante especiacutefica do romance difere-se das outras formas pela imagem

dinacircmica do heroacutei Conforme Bakhtin (2010 p237)

As mudanccedilas por que passa o heroacutei adquirem importacircncia para o enredo romanesco que seraacute por conseguinte repensado e reestruturado O tempo se introduz no interior do homem impregna-lhe toda a imagem modificando a importacircncia substancial do seu

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destino e da sua vida Pode-se chamar este tipo de romance numa acepccedilatildeo muito ampla de romance de formaccedilatildeo do homem

A partir desta distinccedilatildeo Bakhtin (2010 p235-236) aceita com tranquilidade a

grande variedade que se costuma relacionar a esta variante do gecircnero

Ciropedia de Xenofonte (Antiguidade) Parzival de Wolfram com Eschenbach (Idade Meacutedia) Gargantua e Pantragruel de Rabelais Simplicissimus de Grimmelshausen (Renascimento) Telecircmaco de Fenecirclon (Neoclassicismo) Emiacutelio de Rousseau (na medida em que este tratado pedagoacutegico comporta muitos elementos romanescos) Agathon de Wieland Tobias Knaut de Wetzel Correntes de vida por linhas ascendentes de Hippel Wilhelm Meister de Goethe (os dois romances) Titatilde de Jean Paul (e alguns outros romances seus) David Copperfield de Dickens O pastor da fome de Raabe Henrique o Verde de Gottfried Keller Pedro o afortunado de Pontoppidan Infacircncia adolescecircncia e juventude de Tolstoi Uma Histoacuteria comum de Gontcharov Jean-Christophe de Romam Rolland Os Budenbrook e A Montanha Magica de Tomas Mann etc

Tanto obras anteriores agrave de Goethe quanto posteriores formam a histoacuteria dessa

nova acepccedilatildeo do homem na literatura um homem que se forma enquanto lemos a sua

narrativa Natildeo escapa a Bakhtin contudo a homogeneidade destas obras e esta

homogeneidade eacute fruto dos diferentes modos de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico no

interior do enredo e principalmente no interior do homem Segundo o teoacuterico russo

ldquo[] a formaccedilatildeo (transformaccedilatildeo) do homem varia poreacutem muito conforme o grau de

assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico realrdquo (BAKHTIN 2010 p238) A partir disso ele

dividiraacute o romance de formaccedilatildeo em cinco distintos grupos de acordo com o grau de

assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico Retomaremos esta divisatildeo feita por Bakhtin na seccedilatildeo

44 deste capiacutetulo Podemos por ora concluir que para Bakhtin se de um lado o que

une tatildeo diversas obras sob o roacutetulo de Romance de Formaccedilatildeo eacute a transformaccedilatildeo da

personagem principal de outro lado o que as separa eacute o grau de transformaccedilatildeo dessa

personagem variando de acordo com o grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico

Juumlrgen Jacobs (1989) estabelece uma definiccedilatildeo para Bildungsroman que

segundo Maas (1999) flexibiliza o conceito de modo que ele possa abranger uma

grande diversidade de obras

Fica clara portanto a opccedilatildeo pelas caracteriacutesticas predominantemente conteuacutedisticas em detrimento das formais Estas em vez de traccedilos diferenciadores satildeo apenas suporte decorrente do elenco temaacuteticoconteudiacutestico natildeo produzindo portanto um corpus definidor (MAAS 2000 p63)

90

Concordamos com a pesquisadora quanto agrave grande abrangecircncia que o conceito

de Jakobs adquire principalmente quando pensadas para o romance moderno

Entretanto os eixos temaacuteticos revelam-se intimamente interessantes para o estudo das

obras anteriores ao Wilhelm Meister porque por meio da anaacutelise deles podemos

reconhecer os elementos da archaica do gecircnero e que por seu caraacuteter temaacutetico

promovem a evoluccedilatildeo da personagem na narrativa Parece-nos muito relevante

encontrar em uma obra tatildeo distante temporalmente como a Ciropedia a presenccedila de

certos elementos que ainda hoje surgem como determinantes na composiccedilatildeo de certo

tipo variante do gecircnero do romance seja na sua manutenccedilatildeo seja na sua paroacutedia como

eacute o caso de O Tambor (1959) de Guumlnter Grass As caracteriacutesticas segundo Jacobs (apud

MAAS 2000 p62) satildeo

bull a consciecircncia do protagonista de que ele percorre um processo de aprendizado

(concepccedilatildeo teleoloacutegica da educaccedilatildeo)

bull o percurso do protagonista estaacute determinado por enganos e avaliaccedilotildees

equivocadas que devem ser corrigidas no transcorrer do romance

bull o protagonista tem como experiecircncias tiacutepicas a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave casa

paterna a atuaccedilatildeo de mentores e de instituiccedilotildees educacionais o encontro com a

esfera da arte experiecircncias intelectuais eroacuteticas [sic] aprendizado de uma

profissatildeo e o contato com a vida puacuteblica

Observamos que estes eixos temaacuteticos propostos por Jacobs referem-se todos ao

percurso do heroacutei em formaccedilatildeo da narrativa Isso significa que a partir da anaacutelise destes

eixos reconheceremos justamente a evoluccedilatildeo da personagem que segundo Bakhtin

(2010) eacute determinante na configuraccedilatildeo do gecircnero Os eixos temaacuteticos configuram-se

como figurativizaccedilotildees da estrutura interna da narrativa A personagem no Romance de

Formaccedilatildeo natildeo pode ser estaacutetica mas evolutiva Desse modo a anaacutelise dos temas revela

uma estrutura formal natildeo apenas conteudiacutestica

Portanto na sequecircncia desse capiacutetulo procuraremos demonstrar de que modo

essas caracteriacutesticas satildeo construiacutedas na tessitura narrativa da Ciropedia de Xenofonte

Nem todas as experiecircncias tiacutepicas a que se refere Jacobs todavia surgem no romance110

110 Lembramos que o uso do termo romance quando nos referimos agrave Ciropedia deve-se levar em conta as ressalvas as ressalvas feitas sobre o uso anacrocircnico do gecircnero no capiacutetulo 2241

91

de Xenofonte jaacute que o modelo de formaccedilatildeo por que Ciro passa difere ideologicamente

por questotildees histoacutericas e culturais daquelas encontradas no romance moderno burguecircs

de forma geral Restringiremos entatildeo nossa exposiccedilatildeo agraves experiecircncias tiacutepicas da

separaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave casa paterna a atuaccedilatildeo de mentores e de instituiccedilotildees

educacionais aleacutem da consciecircncia teleoloacutegica da educaccedilatildeo por parte da proacutepria

personagem E mostraremos como elas satildeo representadas na Ciropedia de Xenofonte e

como elas atuam de forma significativa no processo final de formaccedilatildeo de Ciro Por fim

analisaremos o grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico na Ciropedia de Xenofonte

42 A paideacuteia como tema da narrativa o proecircmio (Cirop I11-6)

Antes de entrar na anaacutelise propriamente dita dos elementos que constituem a

archaica do Bildungsroman na tessitura da Ciropedia gostariacuteamos de analisar o

proecircmio da Ciropedia porque os proecircmios se configuram como um discurso

autoexplicativo metaliteraacuterio e acreditamos que a sua anaacutelise nos proveraacute de

informaccedilotildees interessantes tanto a respeito da estrutura quanto a respeito do tema da

narrativa

Os proecircmios nas obras dos historiadores trazem elementos de autoridade e

autoria para a sua narraccedilatildeo (BRANDAtildeO 2005 p164) Nestes entrechos pode-se

apreender ldquo[] um projeto historiograacutefico singular configuraccedilotildees do saber conjecturas

intelectuais e poliacuteticas []rdquo (HARTOG 2001 p10) O leitor pode entrever nos

proacutelogos as intenccedilotildees objetivos e meacutetodo do historiador que ao contraacuterio do orador

natildeo tem necessidade de agradar a um puacuteblico poreacutem precisa demonstrar a utilidade de

sua obra Eacute importante ressaltar que esses procedimentos assim como os tiacutetulos das

obras dos historiadores foram imitados pelos romancistas gregos provavelmente

devido ao seu caraacuteter de autoridade (BRANDAtildeO 2005 p110 HAumlGG 1991 p111)

Xenofonte a rigor natildeo apresenta proacutelogos em suas obras historiograacuteficas e isso

jaacute eacute uma inovaccedilatildeo da sua escrita Nas Helecircnicas o comeccedilo eacute abrupto com a frase

ldquoDepois dissordquo111 indicando que Xenofonte se propotildee continuar a obra de Tuciacutedides

exatamente do ponto onde esta se interrompe e na conclusatildeo de sua proacutepria obra

111 Helecircnicas 1 11 Μετὰ δὲ ταῦτα

92

convida a quem assim desejar que continue a sua histoacuteria112 Para Hartog essa ausecircncia

aproximada de outros traccedilos da peculiar escrita da histoacuteria de Xenofonte revela a

mudanccedila de postura tiacutepica de um momento de perturbaccedilatildeo (HARTOG 2001 p11)

Na Ciropedia ao contraacuterio do que ocorre nas Helecircnicas Xenofonte inicia sua

obra com um proecircmio natildeo tatildeo denso e vasto quanto o proecircmio de Tuciacutedides mas no

qual estabelece as causas e motivos de sua obra Por que tal mudanccedila de atitude Nas

Helecircnicas o objeto de exposiccedilatildeo do ateniense eacute a proacutepria histoacuteria contemporacircnea de

Atenas e na esteira de Tuciacutedides para quem a uacutenica histoacuteria possiacutevel eacute a histoacuteria do seu

proacuteprio tempo Xenofonte estabelece-se como seu continuador No entanto que modelo

Xenofonte poderia tomar para imitar na Ciropedia uma vez que o tema de sua

narrativa natildeo eacute a histoacuteria dos povos mas eacute a biografia de Ciro

O modelo historiograacutefico anterior a Xenofonte eacute o modelo das histoacuterias dos

povos e a histoacuteria do indiviacuteduo surge agrave medida que ele interfere participando

ativamente do mundo poliacutetico A vida de Ciro narrada por Heroacutedoto interessa ao

historiador natildeo tanto pela vida do monarca em si mas porque ela representa tanto as

ideias de Heroacutedoto sobre o divino quanto as causas que deram iniacutecio ao verdadeiro

tema da sua obra as Guerras Meacutedicas Eacute neste sentido que Momigilano (1993) fala de

traccedilos biograacuteficos na historiografia as narrativas da vida de Ciro de Creso e de outros

encontrados nas Histoacuterias de Heroacutedoto soacute tecircm sentido dentro da percepccedilatildeo da histoacuteria

de seus povos Assim tambeacutem a vida de Alcibiacuteades narrada por Tuciacutedides soacute se

motiva em conjunccedilatildeo com a proacutepria Guerra do Peloponeso O tema dessas narrativas

histoacutericas natildeo satildeo os homens que a vivenciaram mas no caso de Heroacutedoto as Guerras

Meacutedicas e no caso de Tuciacutedides a Guerra do Peloponeso

Jaacute afirmamos anteriormente que do ponto de vista temaacutetico a Ciropedia se

enquadra no gecircnero biograacutefico pois apresenta a anaacutelise do caraacuteter de uma personagem

por meio da narraccedilatildeo de eventos particulares e puacuteblicos (MOMIGLIANO 1993 p16) e

que do ponto de vista do modo de imitaccedilatildeo a obra eacute diversa das outras biografias de

seu tempo Isso significa que a obra desenvolve um modo de imitaccedilatildeo proacuteprio ndash

comparado agraves biografias encomiaacutesticas ndash e natildeo encontra na tradiccedilatildeo dos bioacutegrafos

paralelo a ser imitado Aleacutem disso ao enquadrar sua narrativa a um proacutelogo

historiograacutefico Xenofonte almeja o efeito de verdade para a sua narrativa ficcional

Poreacutem esse proacutelogo apresenta sensiacuteveis diferenccedilas comparadas aos proacutelogos dos

112 Helecircnicas 7 527 Tὰ δὲ μετὰ ταῦτα ἴσως ἄλλῳ μελήσει Que igualmente outro se ocupe do que aconteceu a partir disso (Traduccedilatildeo nossa)

93

historiadores Primeiramente como jaacute afirmamos113 o narrador divide seu material em

trecircs temas principais a genealogia γένεαν a natureza φύσιν e a educaccedilatildeo παιδέια

Conforme Menandro Reacutetor (1996) em seu segundo tratado sobre o gecircnero epidiacutetico

γένεαν φύσιν e παιδέια satildeo toacutepoi do gecircnero epidiacutetico Ao trazer para o discurso

narrativo da historiografia um tema do encocircmio Xenofonte deixava de visar em sua

narrativa agrave rigorosa verdade pois do epidiacutetico a verdade factual natildeo fazia parte do

conjunto de procedimentos de escritura O proacutelogo portanto eacute um artifiacutecio literaacuterio a

fim de dar veracidade agrave narrativa

Outra diferenccedila entre o proacutelogo de Xenofonte e dos historiadores claacutessicos eacute a

forma de apresentaccedilatildeo do narrador O proecircmio da Ciropedia inicia-se na primeira

pessoa do plural114 e no decorrer de toda narrativa o narrador jamais se nomeia Cria-se

assim uma estrateacutegia de distanciamento entre narrador e autor e de certo modo entre o

narrador e o narrado O narrador natildeo se identifica com o proacuteprio autor de forma clara

como o fazem Tuciacutedides e Heroacutedoto que se nomeiam jaacute nas primeiras linhas de suas

respectivas obras O anonimato do narrador cria o efeito de factualidade da narrativa

como se os fatos surgissem por si mesmos sem o intermeacutedio de uma investigaccedilatildeo

subjetiva Jacyntho Lins Brandatildeo (2005) argumenta que a voz de Xenofonte natildeo seria

anocircnima em virtude da identificaccedilatildeo que o leitor faria entre esses pronomes com a

informaccedilatildeo paratextual que deveria encabeccedilar os textos divulgados (o tiacutetulo da obra e o

nome do autor) Acreditamos em sintonia com Dellebecque (1957) que eacute difiacutecil

determinar quando estas informaccedilotildees paratextuais foram acrescidas ao texto conhecido

por noacutes e se isso era uma teacutecnica estabelecida por Xenofonte ou foi acrescentada por

comentadores posteriores Aleacutem disso vale lembrar que a Anaacutebase foi primeiramente

publicada com o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa e nas Helecircnicas Xenofonte

refere-se agrave obra de Temistoacutegenes como se de fato a obra natildeo fosse sua Percebemos

desse modo que o jogo entre autor narrador e narrado desdobra-se em problemaacutetica nas

narrativas de Xenofonte e esta confusatildeo entre escritor e narrador na Ciropedia parece

determinante como processo de imitaccedilatildeo do futuro romance

113 Cf a subseccedilatildeo 2242 114 Por exemplo ἡmicroῖν (heacutemin a noacutes) ἐδοκοῦmicroεν (edokouacutemen julgaacutevamos) ἐνενοοῦmicroεν (enenoouacutemen pensamos) ᾐσθήmicroεθα (eistheacutemetha percebemos) ἐνεθυmicroούmicroεθα (enethumouacutemetha refletimos) ἐνενοήσαmicroεν (enenoeacutesamen pensaacutevamos) ἴσmicroεν (iacutesmen vimos) θαυmicroάζεσθαι (thaumaacutedzesthai ficamos admirados) ἐσκεψάmicroεθα (eskepsaacutemetha observamos) ἐπυθόmicroεθα (eputhoacutemeta) δοκοῦmicroεν (dokouacutemen julgamos)

94

Esta ilusatildeo de objetividade e realismo caracteriacutestica do discurso historiograacutefico

estilizou-se no discurso dos romancistas sejam eles modernos ou claacutessicos Xenofonte

ao que nos parece foi o primeiro escritor da Greacutecia a recuperar a objetividade do

discurso histoacuterico a fim de narrar uma narrativa ficcional

Do ponto de vista da estrutura o proecircmio de uma obra histoacuterica segundo

Luciano de Samoacutestata115 deve esclarecer o leitor e facilitar-lhe a compreensatildeo do relato

que se seguiraacute As formas de inauguraccedilatildeo do discurso histoacuterico segundo Barthes

(1988) satildeo duas

a-) abertura performativa igual ao canto dos poetas invocativo

b-) prefaacutecio ato que caracteriza a enunciaccedilatildeo ao confrontar os dois tempos

marcando com signos expliacutecitos de enunciaccedilatildeo o discurso histoacuterico

No primeiro caso temos as obras de Heroacutedoto e de Tuciacutedides enquanto que no

segundo caso temos a narrativa de Xenofonte O narrador no proecircmio da Ciropedia

nos chama a atenccedilatildeo para o resultado de suas reflexotildees a respeito da arte de governar os

homens eram incapazes de serem governados pois tanto nos regimes democraacuteticos

quanto nos monaacuterquicos e oligaacuterquicos eles sempre estavam a reclamar outro regime

Entretanto

Contudo desde que observamos que existiu Ciro o persa aquele que conservou numerosos homens obedientes a ele numerosas cidades numerosos povos a partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de que o governar os homens natildeo eacute das tarefas nem impossiacuteveis nem aacuterduas se algueacutem agir com habilidade Ao menos sabemos que a Ciro eram obedientes de bom grado uns estando distantes uma marcha de numerosos dias enquanto que outros de meses e outros ainda que jamais o viram e mesmo os outros que bem sabiam que natildeo o veriam e todavia desejavam lhe obedecer116 (Cirop 11 3 grifo nosso)

Mas no que consiste este ldquoagir habilmente para issordquo A traduccedilatildeo para liacutengua

portuguesa do Brasil de Jaime Bruna parafraseia esta expressatildeo pela forma ldquoteacutecnicardquo

115 Em Como se deve escrever a Histoacuteria (LUCIANO 2009) traduccedilatildeo de Jacyntho Lins Brandatildeo 116 No original ἐπειδὴ δὲ ἐνενοήσαμεν ὅτι Κῦρος ἐγένετο Πέρσης ὃς παμπόλλους μὲν

ἀνθρώπους ἐκτήσατο πειθομένους αὑτῷ παμπόλλας δὲ πόλεις πάμπολλα δὲ ἔθνη ἐκ

τούτου δὴ ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν μὴ οὔτε τῶν ἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ

ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τις ἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ Κύρῳ γοῦν ἴσμεν ἐθελήσαντας

πείθεσθαι τοὺς μὲν ἀπέχοντας παμπόλλων ἡμερῶν ὁδόν τοὺς δὲ καὶ μηνῶν τοὺς δὲ οὐδ᾽

ἑωρακότας πώποτ᾽ αὐτόν τοὺς δὲ καὶ εὖ εἰδότας ὅτι οὐδ᾽ ἂν ἴδοιεν καὶ ὅμως ἤθελον αὐτῷ

ὑπακούειν (Cirop 113)

95

(XENOFONTE 1965 p14) e tal opccedilatildeo reflete certa interpretaccedilatildeo que repousa na

histoacuteria de leituras da obra segundo a qual este texto eacute um manual de teacutecnicas sobre a

arte de governar Decorre desta interpretaccedilatildeo muito da criacutetica que sofreu a Ciropedia

nos uacuteltimos tempos de uma obra tediosa Parece-nos que ao compreender o texto desta

maneira os criacuteticos simplificam todo o conteuacutedo da obra pois ela na verdade mais do

que um manual eacute antes de tudo e acima de tudo uma narrativa As reflexotildees sobre as

qualidades humanas e o discurso didaacutetico em geral estatildeo figurativizadas e inseridas na

narrativa de um uacutenico homem Ciro A narrativa portanto nos conduz e nos

conduzindo por meio dos atos das personagens nos ensina

Haacute neste proecircmio o que Barthes chama de descronologizaccedilatildeo do fio histoacuterico

pois o narrador mostra-se sabedor daquilo que ainda natildeo foi contado Os signos do

enunciador tornam-se evidentes construindo sua proacutepria imagem como um detentor de

um saber que se transmite como uma verdade que natildeo pode ser desmentida Como sabe

alguma coisa o narrador estaacute apto e autorizado a instruir por meio de uma narrativa dos

feitos ldquomemoraacuteveisrdquo substituindo desse modo a Musa homeacuterica pela pesquisa e pelo

conhecimento Contudo quais seriam esses feitos memoraacuteveis Hartog (2001 p101)

nos diz que

Xenofonte natildeo cessou de refletir sobre a questatildeo do comando buscar compreender diz ele por que o espartano Telecircucias era a tal ponto admirado pelos seus soldados eacute ldquoa tarefa mais digna de um homemrdquo (Hel 51 4) Satildeo essas qualidades que fazem do espartano Agesilau um modelo a ser imitado Enfim a ficccedilatildeo poliacutetica da Ciropedia responde agrave seguinte questatildeo que espeacutecie de homem era Ciro para fazer-se obedecer por um tatildeo grande nuacutemero de pessoas

Portanto as causas do ldquoagir com habilidaderdquo constituem o tema de narraccedilatildeo de

Xenofonte neste sentido o agir natildeo eacute um dado meramente inato do liacuteder poreacutem fruto

de um processo no qual estatildeo relacionados trecircs fenocircmenos que seratildeo segundo ele

objetos de sua narrativa

Em vista desse homem que foi merecedor de nossa admiraccedilatildeo noacutes examinamos de qual famiacutelia era qual natureza possuiacutea e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo a tal ponto que o conduziram a governar os homens Portanto o quanto noacutes averiguamos e o quanto julgamos ter compreendido sobre ele tentaremos expor117 (Cirop 11 6)

117 No original [6] ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδρα ἐσκεψάμεθα τίς ποτ᾽ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶς παιδείᾳ τοσοῦτον

96

A partir dessa triparticcedilatildeo118 o narrador iniciaraacute a diegese propriamente dita Eacute

interessante notar a distinccedilatildeo ldquoentre qualidades herdadas ou inatas e qualidades

adquiridas atraveacutes da educaccedilatildeo e do ambienterdquo119 (DUE 1989 p148 traduccedilatildeo nossa)

que Xenofonte postula Quanto aos ascendentes ou genealogia (γενεάν) o narrador

nos diz que Ciro eacute pelo lado paterno filho de Cambises rei persa descendente de

Perseu heroacutei mitoloacutegico e pelo lado materno neto do rei dos Medos Quanto aos seus

dotes naturais (φύσιν) ele era ldquo[] de aparecircncia muito bela com alma muitiacutessima

bondosa amantiacutessimo dos estudos e das honras de tal modo que suportava todas as

fadigas resistia a todos os perigos pelo amor aos elogios 120rdquo (Cirop 12 1)

Vemos que o espaccedilo dedicado agrave descriccedilatildeo dos ascendentes e dos dotes naturais eacute

pequeno e breve natildeo passando de um raacutepido paraacutegrafo Natildeo devemos contudo

subestimar o importante papel desses dados biograacuteficos tanto para o desenvolvimento

da narrativa quanto para o proacuteprio pensar grego Observa-se por exemplo em Homero

que as personagens ao se apresentarem sempre se distinguem pela sua genealogia e a

descendecircncia divina garante a elas o respeito dos homens comuns (VERNANT 1992)

aleacutem de um destino heroico e glorioso

Quanto agrave descriccedilatildeo da natureza das personagens Heroacutedoto por exemplo na

narrativa que dedica a Ciro mostra que jaacute na infacircncia o futuro imperador Persa

demonstrava as qualidades de governante sendo elas portanto da sua proacutepria natureza

natildeo ensinadas ou adquiridas pela educaccedilatildeo jaacute que Ciro foi educado entre os pastores

Aleacutem disso Xenofonte no decorrer da narrativa iraacute contrapor justamente

personagens cuja ascendecircncia e dotes naturais satildeo os mesmos dos de Ciro mas que ao

contraacuterio deste fracassaram de algum modo na sua carreira Ciaxares121 por exemplo

eacute tio de Ciro ou seja sua ascendecircncia tambeacutem real contudo quando Ciaxares e seu

διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι (Cirop116) 118 Essa a triparticcedilatildeo que propotildee Xenofonte ndash genealogia natureza e educaccedilatildeo ndash encontra-se ainda na obra biograacutefica de Plutarco do seacuteculo I dC Momigliano em The Development of greek biography (1993) acrescenta que aliado a estas trecircs caracteriacutesticas o fato de Xenofonte tratar da vida de Ciro em ordem cronoloacutegica do nascimento ateacute sua morte torna-a a mais inovadora obra para a biografia grega 119 No original between inherited or innate qualities and quailities acquired through education and environment 120 No original [hellip] εἶδος μὲν κάλλιστος ψυχὴν δὲ φιλανθρωπότατος καὶ φιλομαθέστατος

καὶ φιλοτιμότατος ὥστε πάντα μὲν πόνον ἀνατλῆναι πάντα δὲ κίνδυνον ὑπομεῖναι τοῦ

ἐπαινεῖσθαι ἕνεκα (Cirop121) 121 Parece haver unanimidade entre criacuteticos de que Ciaxares eacute uma personagem inventada por Xenofonte Cf James Tatum The Envy of Uncle Ciaxaes In Xenophonrsquos Imperial Fiction 1989 p115-133

97

sobrinho vatildeo agrave guerra liderando o exeacutercito persa e medo Ciro mostra-se muito mais

preparado em tomar as decisotildees corretas e por isso eacute honrado e seguido pelos soldados

de bom grado (ἐθελήσαντας ethelesantas) inclusive pelos proacuteprios soldados de

Ciaxares Isso provoca fortes ciuacutemes em seu tio e a resoluccedilatildeo desse impasse se daraacute

apenas quando Ciaxares reconhecer a superioridade de Ciro e aceitar de bom grado uma

alianccedila entre eles122

Do mesmo modo a figura de Creso rei da Liacutedia eacute sintomaacutetica tal qual Ciro ele

representa a ambiccedilatildeo por honras e elogios e se destaca como um bom liacuteder para os seus

suacuteditos liacutedios Poreacutem na guerra empreendida contra Ciro Creso sai derrotado pois ao

contraacuterio de Ciro eacute atingido pelo excesso de suas paixotildees Enquanto Ciro compreende

que o autocontrole eacute essencial para evitar uma maacute interpretaccedilatildeo da realidade e promover

um bom julgamento de suas proacuteprias accedilotildees Creso dominado pelo desejo fracassa

Em ambos os casos o que diferencia Ciro das personages de Ciaxares e Creso eacute

a sua paideia a formaccedilatildeo e o exerciacutecio contiacutenuo dos ensinamentos obtidos quando

crianccedila Desse modo a educaccedilatildeo torna-se o elemento determinante desta triparticcedilatildeo

para que o heroacutei avance e venccedila em sua trajetoacuteria

Passaremos a analisar os elementos da archaica do romance de formaccedilatildeo na

tessitura narrativa da Ciropedia A nossa tese eacute a de que estes elementos da archaica

satildeo figurativizados de modo a proporcionar uma educaccedilatildeo exemplar a Ciro Assim

analisaremos os seguintes elementos estruturais a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave casa paterna

a atuaccedilatildeo de mentores e de instituiccedilotildees educacionais aleacutem da consciecircncia teleoloacutegica da

educaccedilatildeo por parte da proacutepria personagem Procuraremos averiguar como estes

elementos satildeo representados na Ciropedia e como atuam de forma significativa no

processo final de formaccedilatildeo de Ciro

43 As archaica do Romance de Formaccedilatildeo

431 A Instituiccedilatildeo educacional a paideia persa e a consciecircncia

teleoloacutegica

122 A alianccedila entre tio e sobrinho seraacute concretizada por meio de um casamento Ciro casa-se com sua prima filha de Ciaxares e com isso fortalece a alianccedila O casamento se daacute no final da narrativa e natildeo eacute objeto de muita atenccedilatildeo por parte do narrador

98

Muito se pode dizer como de fato muito jaacute foi dito a respeito da educaccedilatildeo persa

relatada no Livro I 2 da Ciropedia poreacutem o que mais realccedila aos olhos eacute sua

semelhanccedila com o modelo de educaccedilatildeo espartana O filoespartanismo natildeo eacute uma

peculiaridade inerente apenas a Xenofonte jaacute que ele natildeo foi o uacutenico ateniense a exaltar

Esparta O espiacuterito filoespartano estaacute presente tambeacutem nas obras de Isoacutecrates de Platatildeo

e de Aristoacuteteles atenienses ilustres que criticaram a experiecircncia democraacutetica de Atenas

(MOURA 2000 p15) O que mais nos surpreende nesta atitude dos pensadores

atenienses eacute que mesmo a Guerra do Peloponeso fruto da rivalidade histoacuterica entre

Atenas e Esparta natildeo impediu que estes pensadores admirassem o grande rival do povo

ateniense

Segundo Moura (2000 p37) essa situaccedilatildeo ideoloacutegica do seacuteculo IV aC tatildeo

diacutespare do comportamento dos aristocratas do seacuteculo VI aC liga-se ao fato de que

ldquo[] a questatildeo do nascimento primordial para a argumentaccedilatildeo dos primeiros [os

aristocratas do seacuteculo VI aC] era para os uacuteltimos [os intelectuais do seacuteculo IV aC]

em termos de regime poliacutetico ideal apenas um entre outros muitos fatoresrdquo

Aleacutem disso os valores que estes intelectuais pregavam como virtude sabedoria

justiccedila disciplina temperanccedila satildeo valores que se orientam natildeo para uma ideologia

aristocraacutetica mas para uma ideologia oligaacuterquica123 Para Aristoacuteteles a diferenccedila

primordial entre democracia e oligarquia finca-se na questatildeo da pobreza e da riqueza

pois ldquo[] onde quer que os homens governem segundo a sua riqueza sejam eles poucos

ou muitos haacute oligarquia e onde os pobres governam haacute uma democracia []rdquo

(ARISTOacuteTELES 1999 1279 b14-15) Isso significa que onde quer que os governos

oligarcas se estabeleccedilam as suas instituiccedilotildees pouco difeririam das democraacuteticas

(Assembleias Conselhos Magistraturas) ldquo[] diferenciando-se apenas em relaccedilatildeo agrave

maior ou menor participaccedilatildeo dos cidadatildeos nas instituiccedilotildees puacuteblicasrdquo (MOURA 2000

p43)

Os oligarcas de modo geral tinham como ideal o oacutecio conceito este vinculado agrave

ideia de tempo livre poreacutem produtivo na qual os homens deveriam exercer praacuteticas

para seu engrandecimento moral e fiacutesico como a filosofia dedicaccedilatildeo aos negoacutecios

puacuteblicos agrave retoacuterica agrave caccedila agrave cavalaria participaccedilatildeo em banquetes etc Atraveacutes destas

praacuteticas ldquo[] alcanccedilar-se-ia a distinccedilatildeo sobre os demais membros da sociedade jaacute que

123 No Agesilau 14 Xenofonte define democracia oligarquia monarquia e tirania como os governos existentes na Greacutecia de seu tempo

99

cada uma delas continha regras esteacuteticas e comportamentais especiacuteficasrdquo (MOURA

2000 p40)

Em vista disso faacutecil eacute compreender o papel de Esparta no pensamento grego do

seacuteculo IV aC O modelo espartano de governo apresentava vaacuterias caracteriacutesticas que o

aproximavam dos ideais das elites oligaacuterquicas gregas como a organizaccedilatildeo do governo

as suas leis e o seu modo de vida Assim como afirma Johnstone (apud MOURA 2000

p53)

[] muito da argumentaccedilatildeo das elites do seacuteculo quarto vai se afastar um pouco da retoacuterica do nascimento e passar a ter como base a necessidade de se afirmarem enquanto atores sociais possuidores de uma forma de vida estilizada cujas praacuteticas e comportamentos sociais deviam ser capazes de manifestar sua superioridade sobre o resto da populaccedilatildeo

Xenofonte portanto encontra nesse modelo de organizaccedilatildeo espartana subsiacutedios

para a afirmaccedilatildeo de seus ideais oligaacuterquicos Neste sentido a aproximaccedilatildeo efetuada

entre a instituiccedilatildeo persa e a instituiccedilatildeo espartana na Ciropedia cuja fidelidade agrave histoacuteria

eacute secundada pela fidelidade ao didatismo parece natural ldquoOs espartanos tinham na

visatildeo de Xenofonte todo o desprendimento das coisas materiais que os ricos deveriam

terrdquo (MOURA 2000 p65) Na visatildeo de Xenofonte os espartanos ao menos os ricos

aproveitavam seu tempo engrandecendo-se a partir de praacuteticas estilizadoras A

separaccedilatildeo entre ricos e pobres fica evidente na Ciropedia quando o narrador diz

Mas certamente os que podem sustentar os filhos sem que eles trabalhem enviam os que natildeo podem natildeo enviam Aos que foram educados junto aos mestres puacuteblicos eacute permitido por lei passar a juventude na classe dos efebos mas aos que natildeo foram educados dessa maneira natildeo eacute permitido124 (Cirop 12 15)

Portanto Xenofonte aproveitou-se dos elementos estilizadores da educaccedilatildeo

espartana para criar a imagem da formaccedilatildeo ideal representada na narrativa como persa

Desse modo justifica-se o que parecia agrave primeira vista injustificaacutevel a filiaccedilatildeo de um

ateniense ao partidarismo espartano

124 No original ἀλλ᾽ οἱ μὲν δυνάμενοι τρέφειν τοὺς παῖδας ἀργοῦντας πέμπουσιν οἱ δὲ μὴ

δυνάμενοι οὐ πέμπουσιν οἳ δ᾽ ἂν παιδευθῶσι παρὰ τοῖς δημοσίοις διδασκάλοις ἔξεστιν

αὐτοῖς ἐν τοῖς ἐφήβοις νεανισκεύεσθαι τοῖς δὲ μὴ διαπαιδευθεῖσιν οὕτως οὐκ ἔξεστιν

100

Como entatildeo funcionam as engrenagens da educaccedilatildeo espartana e como

Xenofonte fundiu na tessitura de sua narrativa a educaccedilatildeo espartana com a educaccedilatildeo

persa

NrsquoA Repuacuteblica dos Lacedemocircnios obra na qual Xenofonte demonstra o

funcionamento da constituiccedilatildeo espartana ele nos diz

Faz tempo que eu observo que Esparta foi muito poderosa e ceacutelebre na Heacutelade [] No entanto depois que me fixei nas ocupaccedilotildees dos espartiatas125 jaacute natildeo fico surpreso A Licurgo que deu a eles as leis com as quais por meio da observacircncia conseguiram sua prosperidade a ele admiro e considero saacutebio no mais alto grau126 (Const LacLI1-2 traduccedilatildeo nossa)

A partir da constataccedilatildeo de que foi Licurgo o responsaacutevel pela grandeza de

Esparta Xenofonte passa a expor as leis instituiacutedas por ele e a explicar o funcionamento

da educaccedilatildeo na cidade de Esparta

Outra obra que nos traz informaccedilotildees valiosas a respeito da constituiccedilatildeo espartana

eacute a vida de Licurgo narrada por Plutarco Segundo Xenofonte e Plutarco Licurgo deu

aos παιδόνομοι (paidonomoi) a autoridade de reunir os meninos e corrigi-los

energicamente Os παιδόνομοι satildeo magistrados importantes e a escolha de homens

importantes agrave cabeccedila da instituiccedilatildeo educacional revela uma verdadeira preocupaccedilatildeo com

a educaccedilatildeo pois esta natildeo poderia ficar a cargo de qualquer cidadatildeo

Entretanto eacute preciso ressaltar que esta educaccedilatildeo era estritamente formadora de

cidadatildeos-soldados ou seja a educaccedilatildeo proposta eacute um caminho que culminaraacute na

retribuiccedilatildeo dos homens agrave cidade que lhes deu a formaccedilatildeo devida Desse modo diz

Xenofonte Licurgo pensava que a procriaccedilatildeo era a primeira funccedilatildeo das mulheres e por

isso elas tinham que exercitar o corpo pois estava convencido ldquo[] de que dos casais

125 Os ldquoespartiatasrdquo satildeo os espartanos com plenos direitos civis e poliacuteticos em oposiccedilatildeo aos ldquoperiecosrdquo que tinham apenas direitos civis e natildeo poliacuteticos e os ldquohilotasrdquo os escravos que careciam de ambos Assim a educaccedilatildeo ndash essa educaccedilatildeo estatal ndash eacute um privileacutegio de poucos 126 No original ἀλλ᾽ ἐγὼ ἐννοήσας ποτὲ ὡς ἡ Σπάρτη τῶν ὀλιγανθρωποτάτων πόλεων οὖσα

δυνατωτάτη τε καὶ ὀνομαστοτάτη ἐν τῇ Ἑλλάδι ἐφάνη ἐθαύμασα ὅτῳ ποτὲ τρόπῳ τοῦτ᾽

ἐγένετο ἐπεὶ μέντοι κατενόησα τὰ ἐπιτηδεύματα τῶν Σπαρτιατῶν οὐκέτι ἐθαύμαζον

Λυκοῦργον μέντοι τὸν θέντα αὐτοῖς τοὺς νόμους οἷς πειθόμενοι ηὐδαιμόνησαν τοῦτον καὶ

θαυμάζω καὶ εἰς τὰ ἔσχατα [μάλα] σοφὸν ἡγοῦμαι (Const LacLI1-2)

101

vigorosos tambeacutem nascem os filhos mais robustosrdquo127 (Const Lac LI4 traduccedilatildeo

nossa)128

A educaccedilatildeo espartana portanto eacute um assunto de Estado129 e a participaccedilatildeo de

todos os seus membros civis eacute vital O Estado eacute seu iniacutecio e seu fim ao contrario do que

ocorria em Atenas onde cada chefe de famiacutelia poderia educar seus filhos agrave maneira que

bem desejasse em Esparta os meninos eram supervisionados e impelidos agrave obediecircncia

Segundo o grande estudioso da cultura claacutessica o alematildeo Werner Jaeger (1995 p1162)

tornar a educaccedilatildeo assunto do Estado eacute a principal contribuiccedilatildeo de Esparta para a

Histoacuteria da Humanidade

O mesmo tipo de educaccedilatildeo ao menos na narraccedilatildeo de Xenofonte ocorre na

Peacutersia130 desde a infacircncia as crianccedilas satildeo entregues agrave tutela do Estado e devem ali

permanecer cumprindo tarefas sob o jugo do aprendizado da justiccedila (δικαιοσύνην

dikaosynen) e da moderaccedilatildeo (σωφροσύνην sophrosynen) em cada uma das classes

As classes satildeo dividas em quatro a das crianccedilas (παῖδες paides) a dos moccedilos

(ἐφήβος ephebos) a dos adultos (τελεῖοι ἄνδρες teleioi andres) e a dos anciatildeos

(γεραίτεροι geraiteroi) Eacute obrigatoacuteria a participaccedilatildeo de todas as crianccedilas e moccedilos e

eles se reuacutenem em uma praccedila chamada Liberdade (ἐλευθέρα ἀγορὰ eleuthera agora)

onde praticam exerciacutecios fiacutesicos e recebem ensinamentos a respeito de noccedilotildees de justiccedila

e moral Quanto aos adultos e anciatildeos apenas aqueles em condiccedilotildees de se apresentar eacute

que participam natildeo sendo a apresentaccedilatildeo obrigatoacuteria salvo em dias determinados Cada

classe tem como tutores os melhores da classe subsequente dessa forma o meacuterito de

cada um eacute retribuiacutedo pela participaccedilatildeo como tutor da classe inferior Assim eacute

127 No original νομίζων ἐξ ἀμφοτέρων ἰσχυρῶν καὶ τὰ ἔκγονα ἐρρωμενέστερα γίγνεσθαι (Const Lac LI4) 128 Rousseau criticaraacute no seu Emiacutelio a educaccedilatildeo espartana justamente nesse ponto formava apenas cidadatildeos natildeo homens ldquoO homem civil eacute apenas uma unidade fracionaacuteria que se liga ao denominador e cujo valor estaacute em relaccedilatildeo com o todo que eacute o corpo social As boas instituiccedilotildees sociais satildeo as que melhor sabem desnaturar o homem retirar-lhes sua existecircncia absoluta para dar-lhes uma relativa e transferir o eu para a unidade comum de sorte que cada particular natildeo se julgue mais como tal e sim como parte da unidade e soacute seja perceptiacutevel no todo [] Uma mulher Espartana tinha cinco filhos no exeacutercito e esperava notiacutecias da batalha Chega um hilota ela lhe pede notiacutecias tremendo ldquoVossos cinco filhos foram mortos ndash Vil escravo terei perguntado isso ndash Noacutes ganhamos a batalhardquo A matildee corre ateacute o templo e daacute graccedilas aos deuses Eis a cidadatilde (ROUSSEAU 1992 p11-12) 129 A Educaccedilatildeo Espartana como a Educaccedilatildeo na Antiguidade em geral muito difere da nossa concepccedilatildeo moderna de Educaccedilatildeo esta se baseia nas conquistas da Revoluccedilatildeo Francesa como demonstra Carlota Boto em A Escola do Homem Novo (1996) 130 Eacute importante salientar que Xenofonte lutou como mercenaacuterio na guerra civil persa ao lado de Ciro o jovem contra seu irmatildeo Artaxerxes Nesta viagem tomou contato com a cultura persa poreacutem as informaccedilotildees sobre a educaccedilatildeo persa satildeo muito escassas para podermos avaliar o quanto haacute de verdadeiro na elaboraccedilatildeo dessa educaccedilatildeo persa

102

estabelecida uma visatildeo teleoloacutegica da educaccedilatildeo de um processo meritoacuterio cujo fim

enquanto aponta para o desenvolvimento das capacidades dos educandos consagra o

melhor para a retribuiccedilatildeo dessas qualidades ao Estado A noccedilatildeo de processo segundo

Maas (1999 p27) eacute evocado pelo termo Bildung raiz formadora do conceito de

Bildungsroman essa noccedilatildeo

[] eacute essencial para a compreensatildeo do romance de formaccedilatildeo a noccedilatildeo de processo Processo neste contexto eacute a sucessatildeo de etapas teleologicamente encadeadas que compotildeem o aperfeiccediloamento do indiviacuteduo em direccedilatildeo agrave harmonia e ao conhecimento de si e do mundo Formaccedilatildeo (Bildung) passa entatildeo a dialogar com educaccedilatildeo (Erziehung) (MAAS 2000 p27)

A compreensatildeo teleoloacutegica angaria ao educando a percepccedilatildeo de que as etapas

pelas quais ele passa natildeo satildeo meramente casuais mas determinadas pela virtude de seu

aperfeiccediloamento seja em alguma habilidade especiacutefica seja na sua formaccedilatildeo espiritual

Aleacutem disso no romance de formaccedilatildeo esta compreensatildeo teleoloacutegica natildeo deve apenas ser

do Estado que regula e exige do indiviacuteduo o cumprimento de uma conduta determinada

desde a infacircncia poreacutem uma concepccedilatildeo do proacuteprio indiviacuteduo que compreende esse

processo natildeo apenas na instituiccedilatildeo oficial mas na proacutepria vida Ciro por exemplo na

sua infacircncia em uma cena que seraacute analisada a seguir com mais atenccedilatildeo revela seu

projeto iacutentimo de auto-aperfeiccediloamento ao escolher permanecer por um tempo na

Meacutedia junto ao avocirc Ele se justifica deste modo agrave matildee

Porque em casa entre os da minha idade sou e tenho a reputaccedilatildeo de ser o melhor em lanccedilar dardos e flechas e aqui eu sei que no cavalgar sou inferior aos da minha idade E veja bem matildee que isto muito me aborrece Se me deixares aqui e eu aprender a cavalgar quando de um lado eu estiver na Peacutersia penso que para ti vencerei nos exerciacutecios de infantaria aqueles que satildeo os melhores de outro quando vier agrave Meacutedia aqui me esforccedilarei sendo o melhor do que os bons cavaleiros do avocirc para ser aliado dele na cavalaria131 (Cirop 13 15)

131 No original ὅτι οἴκοι μὲν τῶν ἡλίκων καὶ εἰμὶ καὶ δοκῶ κράτιστος εἶναι ὦ μῆτερ καὶ

ἀκοντίζων καὶ τοξεύων ἐνταῦθα δὲ οἶδ᾽ ὅτι ἱππεύων ἥττων εἰμὶ τῶν ἡλίκων καὶ τοῦτο εὖ

ἴσθι ὦ μῆτερ ἔφη ὅτι ἐμὲ πάνυ ἀνιᾷ ἢν δέ με καταλίπῃς ἐνθάδε καὶ μάθω ἱππεύειν ὅταν

μὲν ἐν Πέρσαις ὦ οἶμαί σοι ἐκείνους τοὺς ἀγαθοὺς τὰ πεζικὰ ῥᾳδίως νικήσειν ὅταν δ᾽ εἰς

Μήδους ἔλθω ἐνθάδε πειράσομαι τῷ πάππῳ ἀγαθῶν ἱππέων κράτιστος ὢν ἱππεὺς

συμμαχεῖν αὐτῷ (Cirop 1315)

103

Ou seja o breve intercacircmbio cultural de Ciro lhe ilumina os limites da sua

proacutepria cultura e lhe instiga a aprender o que o outro tem de melhor para ele mesmo

ser em seu paiacutes o melhor βέλτιστος (beltistos) A cultura helecircnica desde Homero

revelou-se sempre como uma cultura que premia o melhor e o peso dessa tradiccedilatildeo ecoa

por toda a literatura grega A epopeia em essecircncia toma como material de seu canto

(ἔπος epos) o feito glorioso (κλέος kleos) que deve manter-se na memoacuteria coletiva O

heroacutei deve ser o melhor de todos na batalha e sua honra (τιμή time) deve ser invejada e

respeitada por todos e qualquer sinal do menor desrespeito a sua reputaccedilatildeo eacute motivo

para uma contenda Nesse sentido a ira de Aquiles eacute o melhor exemplo de honra ferida

do guerreiro e nesse jogo em que soacute existem o tudo e o nada o heroacutei teme natildeo ser

lembrado em cantos apoacutes a sua morte132

Ser o melhor eacute uma busca que acaba apenas com a morte pois como ressalta

Soacutefocles no final do Eacutedipo Rei ldquo[] devemos considerar o dia derradeiro do mortal e

natildeo o julgar feliz antes que transponha o termo da existecircncia sem ter sofrido dor

algumardquo 133 ([1964] p89) daiacute a ontoloacutegica melancolia do heroacutei morrer jovem e belo

no campo de batalha com coragem e virtude para ser lembrado pela eternidade Os

atenienses do seacuteculo V aC davam tanto valor agrave competiccedilatildeo agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica aos

olhos de todos e agraves obrigaccedilotildees reciacuteprocas quanto qualquer heroacutei homeacuterico como denota

Peter Jones (1997 p139) Ciro de certo modo ainda que os meios para se tornar tema

do eacutepos sejam diferentes dos da eacutepica arcaica segue essa tradiccedilatildeo de heroacuteis na pena de

Xenofonte jaacute que natildeo eacute outro o objetivo dele senatildeo ser o melhor de todos e conseguir

por isso uma fama imorredoura

Retomemos o tema da educaccedilatildeo persa cada classe tem obrigaccedilotildees e funccedilotildees

proacuteprias Observando estas obrigaccedilotildees dos meninos apreendemos uma forma peculiar

de se encarar a infacircncia

[6] Os meninos frequentando a escola passam o tempo aprendendo a justiccedila e dizem que vatildeo agrave busca de aprender isso do mesmo modo que entre noacutes os meninos dizem que vatildeo agrave busca de aprender as letras Os chefes deles passam a maior parte do dia julgando-os pois ocorrem entre os meninos como entre os adultos acusaccedilotildees muacutetuas de furto roubo violecircncia traiccedilotildees e injuacuterias e outras coisas parecidas [7] Se reconhecem neles que satildeo injustos punem Castigam tambeacutem se acaso descobrirem que eles estatildeo acusando injustamente Julgam

132 Cf o artigo de Jean Pierre Vernant (1979) A bela morte e o cadaacutever ultrajado 133 Traduccedilatildeo de Jaime Bruna In Teatro Grego Eacutesquilo Soacutefocles Euriacutepedes e Aristoacutefanes Satildeo Paulo Cultrix sd

104

ainda a falta que por causa dela os homens se odeiam bem mais mas processam menos a ingratidatildeo Pois se observam que algueacutem podendo expressar gratidatildeo natildeo expressa punem-no com severidade Crecircem pois que os ingratos satildeo mais negligentes com os deuses com os familiares com a paacutetria e com os amigos Entretanto nada parece estar mais junto da ingratidatildeo do que a impudecircncia pois esta parece ser de todas as vergonhas a guia134 (Cirop 12 6-7)

Por essa descriccedilatildeo do narrador determinados viacutecios podem ser encarados como

tambeacutem inatos ao ser humano jaacute que nas proacuteprias crianccedilas accedilotildees deste tipo satildeo

percebidas e por essa razatildeo eacute que elas devem aprender desde cedo o significado da

justiccedila As crianccedilas aprendem tambeacutem a moderaccedilatildeo (σοφροσύνη sophrosyne) e a

respeitar as autoridades Ο exemplo dos mais velhos eacute fundamental no aprendizado

desses ensinamentos pois eacute ldquo[] para aprender a ser moderado que observem os mais

velhos ao longo de todo o dia vivendo com moderaccedilatildeordquo135 (Cirop 128)

A partir da classe dos moccedilos a educaccedilatildeo se torna cada vez mais voltada para a

praacutetica dos soldados aleacutem de frequentes exerciacutecios fiacutesicos tambeacutem a participaccedilatildeo

efetiva na guarda da cidade Ademais sempre que possiacutevel o rei quando vai agrave caccedila

leva junto consigo os melhores efebos pois ldquo[] esse exerciacutecio parece ser a eles o mais

justo para guerra []rdquo136 pois acostuma o homem agraves diversas dificuldades e ldquo[] natildeo eacute

faacutecil encontrar algo que acontecendo na guerra falte agrave caccedilardquo137 (Cirop 12 10)

A caccedila era uma das praacuteticas sociais mais caracteriacutesticas das elites gregas e por

meio dela os aristocratas treinavam e mediam a coragem a astuacutecia e a virilidade Em

Sobre a caccedila manual teacutecnico escrito por Xenofonte nota-se claramente que esta praacutetica

134 No original [6] οἱ μὲν δὴ παῖδες εἰς τὰ διδασκαλεῖα φοιτῶντες διάγουσι μανθάνοντες

δικαιοσύνην καὶ λέγουσιν ὅτι ἐπὶ τοῦτο ἔρχονται ὥσπερ παρ᾽ ἡμῖν ὅτι γράμματα

μαθησόμενοι οἱ δ᾽ ἄρχοντες αὐτῶν διατελοῦσι τὸ πλεῖστον τῆς ἡμέρας δικάζοντες αὐτοῖς

γίγνεται γὰρ δὴ καὶ παισὶ πρὸς ἀλλήλους ὥσπερ ἀνδράσιν ἐγκλήματα καὶ κλοπῆς καὶ

ἁρπαγῆς καὶ βίας καὶ ἀπάτης καὶ κακολογίας καὶ ἄλλων οἵων δὴ εἰκός [7] οὓς δ᾽ ἂν γνῶσι

τούτων τι ἀδικοῦντας τιμωροῦνται κολάζουσι δὲ καὶ ὃν ἂν ἀδίκως ἐγκαλοῦντα εὑρίσκωσι

δικάζουσι δὲ καὶ ἐγκλήματος οὗ ἕνεκα ἄνθρωποι μισοῦσι μὲν ἀλλήλους μάλιστα

δικάζονται δὲ ἥκιστα ἀχαριστίας καὶ ὃν ἂν γνῶσι δυνάμενον μὲν χάριν ἀποδιδόναι μὴ

ἀποδιδόντα δέ κολάζουσι καὶ τοῦτον ἰσχυρῶς οἴονται γὰρ τοὺς ἀχαρίστους καὶ περὶ θεοὺς

ἂν μάλιστα ἀμελῶς ἔχειν καὶ περὶ γονέας καὶ πατρίδα καὶ φίλους ἕπεσθαι δὲ δοκεῖ

μάλιστα τῇ ἀχαριστίᾳ ἡ ἀναισχυντία καὶ γὰρ αὕτη μεγίστη δοκεῖ εἶναι ἐπὶ πάντα τὰ

αἰσχρὰ ἡγεμών (Cirop 126-7) 135 No original μέγα δὲ συμβάλλεται εἰς τὸ μανθάνειν σωφρονεῖν αὐτοὺς ὅτι καὶ τοὺς

πρεσβυτέρους ὁρῶσιν ἀνὰ πᾶσαν ἡμέραν σωφρόνως διάγοντας (Cirop 128) 136 No original ὅτι ἀληθεστάτη αὐτοῖς δοκεῖ εἶναι αὕτη ἡ μελέτη τῶν πρὸς τὸν πόλεμον

(Cirop 1210) 137 No original ὥστε οὐ ῥᾴδιον εὑρεῖν τί ἐν τῇ θήρᾳ ἄπεστι τῶν ἐν πολέμῳ παρόντων

(Cirop1210)

105

era uma atividade apenas dos homens ricos pois para ser um bom caccedilador eram

necessaacuterios determinados gastos financeiros ter bons catildees de caccedila escravos que

ajudassem na captura dos animais ser portador de material necessaacuterio para empreender

a captura e conhecer o comportamento dos animais a serem caccedilados (MOURA 2000

p68) A praacutetica da caccedila na Ciropedia ganha um relevo especial na formaccedilatildeo do

soldado pois ela ensina ao jovem caccedilando os animais como ele deve agir contra os

inimigos quando houver guerra Assim Cambises pai de Ciro o estimula para a

batalha

Por que razatildeo entatildeo filho tu aprendestes a atirar com o arco Por que razatildeo a lanccedilar dardos Por que razatildeo a enganar javalis selvagens com redes e fossos E por que razatildeo aos cervos com armadilhas e cordas E por que razatildeo aos leotildees ursos e leopardos voacutes natildeo combatiacuteeis colocando-se em igualdade mas sempre procuraacuteveis lutar contra eles provido de alguma vantagem Ou natildeo reconheces que todas essas coisas satildeo maldades ardis enganos e subterfuacutegios138 (Cirop 16 28) [39] Mas se tu filho transferires aos inimigos nenhuma outra coisa aleacutem dos truques que muito planejaste contra os animais pequenos natildeo achas que avanccedilas sobre os inimigos muito adiantado em vantagens Pois tu contra as aves te levantavas no inverno rigoroso e marchavas de noite e antes que os paacutessaros se movessem as cordas para eles eram preparadas por ti e tornavas o chatildeo movido semelhante ao natildeo tocado os paacutessaros eram ensinados por ti para te servirem com utilidade e para enganar os paacutessaros da mesma espeacutecie Tu armavas emboscada para vecirc-las sem ser visto por elas e estavas preparado para puxar antes que os paacutessaros fugissem [40] Por outro lado contra a lebre que vive na escuridatildeo e evita o dia criava catildees que a descobriam pelo faro Assim quando era encontrada fugia rapidamente mas tinhas catildees preparados para capturaacute-las correndo Se entatildeo fugia tambeacutem destes procurando saber quais lugares as lebres fugindo alcanccedilaram nesses estendia redes de caccedila difiacuteceis de ver e na fuga veemente ela mesma caindo sobre a rede ficava amarrada E para natildeo fugirem daiacute tu colocavas guardas para o que estava ocorrendo os que de perto estavam tinham condiccedilotildees de sobrevir rapidamente e tu mesmo atraacutes com clamor natildeo ficavas atraacutes da lebre e bradando aterrorizava-a de tal modo que era capturada enlouquecida e para os que estavam defronte explicava

138 No original τίνος μὴν ἕνεκα ἔφη ἐμανθάνετε τοξεύειν τίνος δ᾽ ἕνεκα ἀκοντίζειν τίνος δ᾽

ἕνεκα δολοῦν ὗς ἀγρίους καὶ πλέγμασι καὶ ὀρύγμασι τί δ᾽ ἐλάφους ποδάγραις καὶ

ἁρπεδόναις τί δὲ λέουσι καὶ ἄρκτοις καὶ παρδάλεσιν οὐκ εἰς τὸ ἴσον καθιστάμενοι

ἐμάχεσθε ἀλλὰ μετὰ πλεονεξίας τινὸς αἰεὶ ἐπειρᾶσθε ἀγωνίζεσθαι πρὸς αὐτά ἢ οὐ πάντα

γιγνώσκεις ταῦτα ὅτι κακουργίαι τέ εἰσι καὶ ἀπάται καὶ δολώσεις καὶ πλεονεξίαι (Cirop 16 28)

106

para fazer silecircncio e permanecerem ocultos na emboscada (Cirop 16 39-40)139

Na Lacedemocircnia segundo Xenofonte em A Repuacuteblica dos lacedemocircnios o

jovem era obrigado a participar dessa praacutetica tendo como objetivo maior o preparo do

bom cidadatildeo (Cirop 64)

Por fim ficam os efebos nessa classe por dez anos e passam entatildeo para a classe

dos adultos na qual permanecem por vinte e cinco anos Os cargos oficiais satildeo

preenchidos por essa classe que cuida das exigecircncias do bem comum aleacutem eacute claro de

formar o exeacutercito do paiacutes Depois de permanecerem vinte e cinco anos na classe dos

adultos eles vatildeo para a classe dos anciatildeos Estes permanecem no paiacutes julgando os

casos de direito puacuteblico e privado aleacutem das faltas denunciadas contra os cidadatildeos

Ressoa ainda as palavras de Plutarco a respeito da educaccedilatildeo espartana instituiacuteda por

Licurgo ldquo[] a educaccedilatildeo era um aprendizado da obediecircnciardquo (PLUTARCO 1991

p113)

Ciro portanto passa por todo esse processo enquanto cidadatildeo persa ldquo[] e

mostrava-se superando a todos os da sua idade tanto no aprender com rapidez as coisas

que fossem necessaacuterias quanto no cumprir cada tarefa com nobreza e virilidaderdquo

(Cirop 13 1)140 A elite persa tem como praacuteticas portanto as mesmas da elite

espartana surgindo ldquo[] como sendo compostas de homens de costumes moderados

exiacutemios praticantes da arte da cavalaria oacutetimos combatentes de infantaria instruiacutedos e

139 No original [39] εἰ δὲ σύ γε ἔφη ὦ παῖ μηδὲν ἄλλο ἢ μετενέγκοις ἐπ᾽ ἀνθρώπους τὰς μηχανὰς ἃς καὶ πάνυ ἐπὶ τοῖς μικροῖς θηρίοις ἐμηχανῶ οὐκ οἴει ἄν ἔφη πρόσω πάνυ ἐλάσαι τῆς πρὸς τοὺς πολεμίους πλεονεξίας σὺ γὰρ ἐπὶ μὲν τὰς ὄρνιθας ἐν τῷ ἰσχυροτάτῳ χειμῶνι ἀνιστάμενος ἐπορεύου νυκτός καὶ πρὶν κινεῖσθαι τὰς ὄρνιθας ἐπεποίηντό σοι αἱ πάγαι αὐταῖς καὶ τὸ κεκινημένον χωρίον ἐξείκαστο τῷ ἀκινήτῳ ὄρνιθες δ᾽ ἐπεπαίδευντό σοι ὥστε σοὶ μὲν τὰ συμφέροντα ὑπηρετεῖν τὰς δὲ ὁμοφύλους ὄρνιθας ἐξαπατᾶν αὐτὸς δὲ ἐνήδρευες ὥστε ὁρᾶν μὲν αὐτάς μὴ ὁρᾶσθαι δὲ ὑπ᾽ αὐτῶν ἠσκήκεις δὲ φθάνων ἕλκειν ἢ τὰ πτηνὰ φεύγειν [40] πρὸς δ᾽ αὖ τὸν λαγῶ ὅτι μὲν ἐν σκότει νέμεται τὴν δ᾽ ἡμέραν ἀποδιδράσκει κύνας ἔτρεφες αἳ τῇ ὀσμῇ αὐτὸν ἀνηύρισκον ὅτι δὲ ταχὺ ἔφευγεν ἐπεὶ εὑρεθείη ἄλλας κύνας εἶχες ἐπιτετηδευμένας πρὸς τὸ κατὰ πόδας αἱρεῖν εἰ δὲ καὶ ταύτας ἀποφύγοι τοὺς πόρους αὐτῶν ἐκμανθάνων καὶ πρὸς οἷα χωρία φεύγοντες ἀφικνοῦνται οἱ λαγῷ ἐν τούτοις δίκτυα δυσόρατα ἐνεπετάννυες ἄν καὶ τῷ σφόδρα φεύγειν αὐτὸς ἑαυτὸν ἐμπεσὼν συνέδει τοῦ δὲ μηδ᾽ ἐντεῦθεν διαφεύγειν σκοποὺς τοῦ γιγνομένου καθίστης οἳ ἐγγύθεν ταχὺ ἔμελλον ἐπιγενήσεσθαι καὶ αὐτὸς μὲν σὺ ὄπισθεν κραυγῇ οὐδὲν ὑστεριζούσῃ τοῦ λαγῶ βοῶν ἐξέπληττες αὐτὸν ὥστε ἄφρονα ἁλίσκεσθαι τοὺς δ᾽ ἔμπροσθεν σιγᾶν διδάξας ἐνεδρεύοντας λανθάνειν ἐποίεις 140 No original [] καὶ πάντων τῶν ἡλίκων διαφέρων ἐφαίνετο καὶ εἰς τὸ ταχὺ μανθάνειν ἃ δέοι καὶ εἰς τὸ καλῶς καὶ ἀνδρείως ἕκαστα ποιεῖν (Cirop 131)

107

letrados obedientes e disciplinados e exiacutemios praticantes da caccedila de animais ferozesrdquo

(MOURA 2000 p100)

Para Jaeger (1995 p1148) nessa forma de Xenofonte ver os povos baacuterbaros

repousa a influecircncia das palavras de Soacutecrates pois do mesmo modo que entre os gregos

havia muitos corruptos entre os estrangeiros havia verdadeiros ἄνδρες καλoὶ

κἀγαθoὶ (andres kaloi kagathoi) homens excelentes Como nos lembra Collingwood

em A Ideia da Histoacuteria (1981 p45) uma das caracteriacutesticas essenciais do Helenismo eacute

compreender os ldquobaacuterbarosrdquo como detentores de uma cultura vaacutelida Se para os gregos do

periacuteodo claacutessico os estrangeiros interessavam como paralelo ao que era grego natildeo

interessando por si mesmos mas enquanto participantes dos feitos dos proacuteprios gregos

para os gregos do periacuteodo Heleniacutestico os estrangeiros baacuterbaros ganham autonomia e

passam a interessar naquilo que possuiacuteam de melhor Xenofonte desse modo prenuncia

uma visatildeo cultural mais ampla tiacutepica dos seacuteculos seguintes

Ciro portanto percorre etapas educativas na instituiccedilatildeo de ensino persa

formando-se de acordo com as leis do paiacutes O narrador expressa a admiraccedilatildeo de todos

pela excelente conduta de Ciro nas praacuteticas formadoras A noccedilatildeo de formaccedilatildeo expressa

na Ciropedia eacute uma noccedilatildeo teleoloacutegica que pressupotildee um percurso diretivo que seraacute

cumprido em sua totalidade apenas pelos melhores cidadatildeos jaacute na vida adulta As

praacuteticas educacionais natildeo se resumem no entanto apenas agraves crianccedilas mas a todos os

homens-cidadatildeos que devem permanecer em constante aprendizado visando a sua

perfectibilidade

A educaccedilatildeo em uma instituiccedilatildeo educacional todavia natildeo eacute de fato um tema

essencial ao Romance de Formaccedilatildeo pois em algumas narrativas o percurso do heroacutei

estaacute completamente dissociado desta instituiccedilatildeo Entretanto na Ciropedia em virtude

do seu caraacuteter idealizante a educaccedilatildeo formal apresenta-se como um momento decisivo

e positivo na formaccedilatildeo do caraacuteter positivo do indiviacuteduo No Romance de Formaccedilatildeo

moderno a educaccedilatildeo formal eacute contestada como uma etapa da vida em que o indiviacuteduo e

suas potencialidades satildeo oprimidos pelos valores morais e eacuteticos das classes

dominantes Neste sentido a educaccedilatildeo formal eacute um aspecto negativo da vida do

indiviacuteduo e em alguns romances ndash O Tambor de Guumlnter Grass (1956) por exemplo ndash o

heroacutei se afasta totalmente de qualquer instituiccedilatildeo educacional enquanto que em outros

romances ndash Retrato do artista quanto jovem de James Joyce (1916) por exemplo ndash os

108

aspectos negativos da educaccedilatildeo riacutegida permitem ao heroacutei descobrir as potencialidades

interiores negando os proacuteprios valores que a educaccedilatildeo formal transmite

432 Enganos e desmedidas a participaccedilatildeo dos mentores

Um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do romance de formaccedilatildeo eacute a presenccedila de

mentores ou seja de homens responsaacuteveis pela educaccedilatildeo de um jovem Segundo Maas

(2000 p29) a presenccedila da figura masculina do mentor constitui-se desde o Emilio de

Rousseau uma tradiccedilatildeo nas obras pedagoacutegicas No entanto podemos observar que a

narrativa de Xenofonte jaacute apresenta personagens cujo saber e autoridade permitem

representar a funccedilatildeo de preceptores Na Literatura Grega entretanto a presenccedila de

mentores natildeo eacute uma novidade da Ciropedia pois este tipo de personagem remonta aos

poemas homeacutericos

Na Iliacuteada narra-se que Aquiles foi primeiramente educado por Quiratildeo o

Centauro mais justo141 depois por Fecircnix um nobre da corte de seu pai Quiratildeo infundiu

em Aquiles os preceitos de honra para se tornar um heroacutei enquanto Fecircnix lhe ensinou

ldquocomo dizer bons discursos e grandes accedilotildees pocircr em praacuteticardquo142

Outro exemplo se encontra na Odisseia Logo no canto I apoacutes o conciacutelio dos

deuses no qual se decide que Zeus iraacute ajudar Odisseu em seu retorno a Iacutetaca Atena

metamorfoseada no estrangeiro Mentor descendente de Anquiacutealo surge diante de

Telecircmaco que

Pesaroso se achava no meio dos moccedilos soberbos Vendo no espiacuterito a imagem do pai valoroso se acaso Logo viesse a expulsar de seu proacuteprio palaacutecio os intrusos E conquistar nome excelso qual dono dos proacuteprios haveres (Odisseia 1 v114-117)

Telecircmaco recebe o estrangeiro com todas as honras agasalhando-o e servindo-

lhe um banquete farto Depois de saciaacute-lo a imagem nefanda dos pretendentes se

banqueteando estimula Telecircmaco a declarar sua anguacutestia pela ausecircncia paterna e pelo

desrespeito demonstrado pelos pretendentes que enquanto esperavam uma decisatildeo de

141 IlXI830-32 142 IlIX444 A Traduccedilatildeo eacute de Carlos Alberto Nunes (1962)

109

Peneacutelope ndash se ela aceitaraacute ou natildeo novas nuacutepcias ndash se fartavam com os rebanhos da casa

de Odisseu A deusa Atena aconselha-o a convocar uma assembleia com os

pretendentes e lhes expor o projeto de sair agrave procura de notiacutecias do pai primeiro ateacute

Pilo interrogar Nestor e em seguida ateacute Esparta para falar com Menelau (v 284-285)

Nesta cena o importante para a formaccedilatildeo de Telecircmaco eacute que apoacutes o conselho dado por

Atena ela lhe instiga a coragem de Telecircmaco citando o exemplo de Orestes que

retornara agrave terra para matar o tio Egisto e a proacutepria matildee Clitemnestra vingando assim a

morte de Agamecircmnon Suas palavras satildeo

Logo que tudo hajas feito e a bom termo de acocircrdo levado no iacutentimo da alma reflete e no peito tambeacutem valoroso como consigas matar claramente ou por modo encoberto os pretendentes no proacuteprio palaacutecio que bem natildeo te fica como crianccedila brincar para tal jaacute passaste da idade Ou natildeo soubeste da fama que Orestes divino entre os homens veio a alcanccedilar por haver dado a morte ao Tiestiacuteada Egisto que com traiccediloeira artimanha matara seu pai muito ilustre Tu tambeacutem caro Crescido te vejo e com bela aparecircncia Secirc corajoso porque tambeacutem possam vindoiros louvar-te (Odisseia 1 v293-302)

Sob o espectro exemplar de Orestes as accedilotildees de Telecircmaco seratildeo consideradas e

avaliadas Atena instiga a Telecircmaco agrave emulaccedilatildeo com Orestes e eacute por meio da orientaccedilatildeo

de Atena que ele pode agir e seguir o caminho do seu amadurecimento

No final do seacuteculo XVII Feacutenelon escreve As Aventuras de Telecircmaco (1699)

onde realccedila a relaccedilatildeo de Mentor e Telecircmaco sendo a proacutepria relaccedilatildeo o centro da

narrativa Graccedilas a Feacutenelon e sua influecircncia no ideal Iluminista a palavra ldquomentorrdquo

passou a designar a relaccedilatildeo entre um adulto mais experiente e um jovem cuja

orientaccedilatildeo o mentor provecirc

Eacute importante ter em mente que sem o auxiacutelio de Atena o caminho de Telecircmaco

seria outro Segundo Peter Jones

Telecircmaco precisa tambeacutem de encorajamento para assumir esse papel (ἐποτρύνω portanto) e explica o porquecirc o dever de Telecircmaco eacute a vinganccedila mas ele se distanciou em demasiado desse sentido de dever agrave medida que tem apenas uma imagem obscura e indistinta de seu pai Atena precisa implantar na mente de Telecircmaco uma imagem clara e

110

inambiacutegua da ἀρετή (ldquoexcelecircnciardquo) de seu pai se quiser criar nele o desejo de agir143 (JONES 1988)

Eacute com essa percepccedilatildeo que o papel dos mentores tem importacircncia definitiva no

Romance de Formaccedilatildeo o destino do heroacutei sem a participaccedilatildeo dos mentores seria

outro bem afastado da perfectibilidade A funccedilatildeo de mentor natildeo eacute necessariamente

representada por preceptores professores ou algum tipo de profissional da educaccedilatildeo

mas pode ser preenchida por qualquer personagem da narrativa desde que o contato do

heroacutei com esta personagem torne-se um elemento importante da mudanccedila teoacuterica e

praacutetica na trajetoacuteria do heroacutei constituindo-se assim um elemento importante da proacutepria

mateacuteria narrativa

NrsquoOs anos de aprendizado de Wilhem Meister de Goethe por exemplo no

capiacutetulo 17 do Livro II Meister encontra-se com um desconhecido que reconheceu

Meister como ldquo[] o neto do velho Meister aquele que possuiacutea uma valiosa coleccedilatildeo

artiacutesticardquo (GOETHE 1994 p80) Esse desconhecido revela-se o apreciador de arte que

ajudou a um velho rico a comprar a coleccedilatildeo do avocirc de Wilhelm A partir do tema dos

quadros do velho Meister os dois conversam sobre questotildees de arte nas quais Meister

revela um comportamento extremamente subjetivista reconhecendo nas obras os

valores artiacutesticos natildeo por questotildees esteacuteticas ou pela teacutecnica apenas agrave medida que a obra

revela seus proacuteprios anseios interiores O desconhecido-mentor entatildeo lhe diz

Estes sentimentos estatildeo certamente muito distantes das consideraccedilotildees que costuma levar em conta um amante das artes ao apreciar a obra dos grandes mestres mas eacute bem provaacutevel que se o gabinete ainda estivesse em poder de sua famiacutelia aos poucos se revelaria os sentidos daquelas obras e o senhor acabaria por ver nelas algo mais do que a si mesmo e sua inclinaccedilatildeo (GOETHE 1994 p82)

Meister entatildeo concorda que muita falta faz aquela coleccedilatildeo poreacutem se ldquo[] teve

de acontecer para despertar em mim uma paixatildeo um talento que exerceriam em minha

vida uma influecircncia muito maior que o teriam feito aquelas imagens inanimadas

resigno-me de bom grato e acato o destinordquo (GOETHE 1994 p82-83) O

desconhecido lhe reprova o uso da palavra destino com tanta veemecircncia e indagado

por Meister se ele natildeo acredita em destino responde-lhe

143 A traduccedilatildeo do artigo The Kleos of Telemachus Odyssey 195 de Peter Von Jones eacute de Leonardo Teixeira de Oliveira 2007 Encontra-se disponiacutevel no site da internet httpwwwclassicasufprbrprojetosbolsapermanencia2006artigosPeter_Jones-KleosDeTelemacopdf O texto original de Jones data de 1988 e foi publicado na revista American Journal of Philology vol 109 p496-506

111

Natildeo se trata aqui do que creio nem eacute este o lugar para lhe explicar como procuro tornar de certo modo concebiacuteveis coisas que fogem agrave compreensatildeo de todos noacutes a questatildeo aqui eacute saber como o melhor modo de representaccedilatildeo para noacutes A trama desse mundo eacute tecida pela necessidade e pelo acaso a razatildeo do homem se situa entre os dois e sabe dominaacute-los ela trata o necessaacuterio como a base de sua existecircncia sabe desviar conduzir e aproveitar o acaso e soacute enquanto se manteacutem firme e inquebrantaacutevel eacute que o homem merece ser chamado de um deus na Terra Infeliz aquele que desde a sua juventude habitua-se a querer encontrar no necessaacuterio alguma coisa de arbitraacuterio a querer atribuir ao acaso uma espeacutecie de razatildeo tornando-se mesmo uma legiatildeo segui-lo Que seria isso senatildeo renunciar agrave proacutepria razatildeo e dar ampla margem a suas inclinaccedilotildees [] Soacute me anima o homem que sabe o que eacute uacutetil a ele e aos outros e trabalha para limitar o arbitraacuterio Cada um tem a felicidade em suas matildeos assim como o artista tem a mateacuteria bruta com a qual ele haacute de modelar uma figura Mas ocorre com essa arte como com todas soacute a capacidade nos eacute inata faz-se necessaacuterio pois aprendecirc-la e exercitaacute-la cuidadosamente (GOETHE 1994 p83)

O desconhecido natildeo convencera Meister de todo no entanto quando suas

frustraccedilotildees surgirem no decorrer da narrativa as palavras daquele desconhecido-mentor

tornar-se-atildeo claras e evidentes Meister estava crente de que seu destino era o mundo

das artes em especial o teatro poreacutem frustra-se convivendo com uma trupe e com o

fracaso da sua representaccedilatildeo do Hamlet de Shakespeare No desfecho de sua trajetoacuteria

que permanece neste livro em aberto e soacute seraacute resolvido no terceiro livro da seacuterie Os

anos de peregrinaccedilatildeo de Wilhelm Meister de 1829 Meister caminha da dedicaccedilatildeo ao

teatro para a Medicina e termina seus anos de aprendizado integrado ao avanccedilo

econocircmico e social da burguesia o projeto idealista da formaccedilatildeo universal se perde

portanto em funccedilatildeo de uma formaccedilatildeo praacutetica especializada

O tal desconhecido se revelaraacute como participante de uma sociedade humanista

chamada Sociedade da Torre ldquo[] que preconiza o desenvolvimento das qualidades e

talentos inatos no indiviacuteduo orientado para a vida em sociedaderdquo (MAAS 2000 p30)

e que acompanhava agrave distacircncia o desenvolvimento de Meister O diaacutelogo entre os dois

faz parte do projeto de educaccedilatildeo da Sociedade que enquanto conceitua o mundo pela

sua verdade natildeo impede que o educando sofra com o seu proacuteprio erro de avaliaccedilatildeo

para que ele tambeacutem se converta por fim agrave verdade professada pela Sociedade da

Torre No final drsquoOs anos de aprendizagem Meister descobre que muitas personagens

que no decorrer da narrativa surgiram e tiveram alguma influecircncia sobre ele eram na

verdade membros desta sociedade e estavam cuidando de sua formaccedilatildeo

112

O papel do mentor caracteriacutestica essencial ao romance de formaccedilatildeo eacute portanto

fundamental na formaccedilatildeo do indiviacuteduo no que tange a sua caminhada agrave

perfectibilidade jaacute que eles direcionam a personagem Na Ciropedia a experiecircncia de

Ciro com mentores segue esse mesmo caminho rumo agrave perfectibilidade e se daraacute em

dois estaacutegios no primeiro estaacutegio quando crianccedila em sua visita agrave Meacutedia e no segundo

estaacutegio antes de partir para a guerra contra os Assiacuterios agrave frente do exeacutercito persa

Vamos entatildeo discutir a participaccedilatildeo dos mentores na Ciropedia

4321 Afastamento da casa paterna Visita agrave Meacutedia

A primeira cena que analisaremos a respeito da participaccedilatildeo de mentores na

Ciropedia estaacute ligada a outra experiecircncia tiacutepica dos romances de formaccedilatildeo segundo

Jacobs (1989) o afastamento da casa paterna Quando Ciro tinha doze anos foi com a

sua matildee visitar o avocirc Astiacuteages o rei da Meacutedia a pedido deste Nesta viagem na qual

haveraacute o primeiro contato de Ciro com uma cultura diferente todas as qualidades que o

narrador descreveu em Ciro seratildeo exemplificadas (Cirop 131-1427)144 A narrativa eacute

composta de diferentes cenas principalmente banquetes com diaacutelogos raacutepidos nos

quais Ciro interage com diversas personagens e ldquo[] dessa forma temos por assim

dizer uma visatildeo completa do ambiente social de Cirordquo145 (DUE 1989 p151 traduccedilatildeo

nossa)

Quando sua matildee resolve retornar Ciro decide permanecer na casa do avocirc pois

ali poderia se instruir em conhecimentos diferentes dos de seus pares persas A

separaccedilatildeo da casa paterna aqui revela-se mais como a separaccedilatildeo da cultura paterna do

que propriamente um afastamento da custoacutedia do pai uma vez que o avocirc substitui social

e psicologicamente a figura paterna

Ciro na Meacutedia desenvolveraacute habilidades tanto teacutecnicas principalmente na arte

da equitaccedilatildeo e da caccedila quanto sociais e apreenderaacute a conviver com as pessoas de modo

mais harmocircnico controlando suas paixotildees Eacute instrutivo que no primeiro jantar com o

144 Na primeira descriccedilatildeo que Xenofonte faz de Ciro ele enfatiza suas qualidades inatas Segundo o narrador Ciro era por natureza φιλανθρωπότατος (amante da bondade) φιλομαθέστατος (amante do aprender) e φιλοτιμότατος (amante das honras) Em seguida estabelece que as qualidades que o sistema educacional persa enfatiza satildeo a διχαιοσύνε (justiccedila) χάρις (gratidatildeo) σωφροσύνε (temperanccedila) πείθεσται (obediecircncia) 145 No Original in this way we get so to speak a full picture of Cyrusrsquo social environment (DUE 1989 p151)

113

seu avocirc quando ainda estava a matildee presente Ciro uma crianccedila presunccedilosa faz um

sem-fim de comentaacuterios a respeito da cultura meda principalmente a respeito do luxo

das roupas e da alimentaccedilatildeo meda os quais muito divertem mas tambeacutem constrangem

os participantes do banquete

Nesses comentaacuterios ele se distingue como persa dos medos pela sophrosyne

moderaccedilatildeo que segundo Due (1989 p170) natildeo eacute um termo particularmente

caracteriacutestico do seacuteculo IV aC mas uma das mais tiacutepicas virtudes gregas No diaacutelogo

em questatildeo Ciro relaciona a temperanccedila com os atos de beber e comer poreacutem a palavra

carrega semanticamente o sentido de abstinecircncia de prazeres ἡδονῶν (edonon) de

modo geral Os medos na visatildeo de Ciro corrompem-se com a mesa farta de comidas e

bebidas e a principal consequecircncia disso eacute no seu entender uma espeacutecie de

carnavalizaccedilatildeo das posiccedilotildees sociais

Por Zeus pois via vos cambaleando o corpo e o juiacutezo Primeiramente o que natildeo permites a noacutes as crianccedilas fazer voacutes mesmos o faziam Todos gritavam ao mesmo tempo e nada entendiacuteeis uns dos outros cantaacuteveis de modo muito risiacutevel e natildeo ouvindo com atenccedilatildeo o que cantaacuteveis julgaacuteveis cantar nobremente cada um deles falava de sua proacutepria forccedila em seguida se levantassem para danccedilar natildeo soacute natildeo danccedilavam no ritmo mas nem conseguiam endireitar-se Tu esqueceste-te totalmente de que tu eras o rei e os outros de que tu eras o governante pois nesse momento eu ao menos pela primeira vez entendi que isso com efeito era a igualdade de expressatildeo o que voacutes praticaacuteveis entatildeo Ao menos jamais voacutes vos calaacuteveis146 (Cirop 13 10)

A loquacidade de Ciro que por causa desses comentaacuterios ldquonatildeo revelava

temeridade mas inocecircncia e ternura de sorte que se desejava ainda mais ouvi-lo do que

estar presente em silecircnciordquo (Cirop 14 3) aos poucos agrave medida que ele crescia apaga-

se de seu comportamento puacuteblico Assim

[4] Conforme o tempo fazia-o progredir no tamanho para a hora de tornar-se adolescente com isso servia-se das palavras mais raramente e da voz mais suavemente pois ficava cheio de vergonha a ponto de

146 No original ὅτι νὴ Δί᾽ ὑμᾶς ἑώρων καὶ ταῖς γνώμαις καὶ τοῖς σώμασι σφαλλομένους

πρῶτον μὲν γὰρ ἃ οὐκ ἐᾶτε ἡμᾶς τοὺς παῖδας ποιεῖν ταῦτα αὐτοὶ ἐποιεῖτε πάντες μὲν γὰρ

ἅμα ἐκεκράγειτε ἐμανθάνετε δὲ οὐδὲν ἀλλήλων ᾔδετε δὲ καὶ μάλα γελοίως οὐκ

ἀκροώμενοι δὲ τοῦ ᾁδοντος ὠμνύετε ἄριστα ᾁδειν λέγων δὲ ἕκαστος ὑμῶν τὴν ἑαυτοῦ

ῥώμην ἔπειτ᾽ εἰ ἀνασταίητε ὀρχησόμενοι μὴ ὅπως ὀρχεῖσθαι ἐν ῥυθμῷ ἀλλ᾽ οὐδ᾽

ὀρθοῦσθαι ἐδύνασθε ἐπελέλησθε δὲ παντάπασι σύ τε ὅτι βασιλεὺς ἦσθα οἵ τε ἄλλοι ὅτι σὺ

ἄρχων τότε γὰρ δὴ ἔγωγε καὶ πρῶτον κατέμαθον ὅτι τοῦτ᾽ ἄρ᾽ ἦν ἡ ἰσηγορία ὃ ὑμεῖς τότ᾽

ἐποιεῖτε οὐδέποτε γοῦν ἐσιωπᾶτε (Cirop 1310)

114

corar quando se encontrava com os mais velhos e natildeo mais como um cachorrinho jogava-se sobre todos conduzindo-se com semelhante fogosidade Assim de um lado era mais circunspecto de outro nas reuniotildees era inteiramente gracioso147 (Cirop 144)

Esse comportamento estouvado vai dando lugar a um comportamento mais

circunspeto que chega mesmo a preocupar o proacuteprio Ciro

Mas natildeo por Zeus eu natildeo sei que homem eu me tornei pois natildeo sou capaz de falar e olhar o meu avocirc como podia antes Se progredir desse modo temo tornar-me completamente indeciso e insensato e quando era crianccedila eu parecia ser extraordinariamente haacutebil no falar148 (Cirop 1412)

Ciro revela a autoconsciecircncia de seu comportamento quando eacute instigado pelos

colegas a pedir em favor deles que Astiacuteages permita que eles saiam para caccedilar Uma

vez que Ciro jaacute mais maduro percebe os limites que se impotildeem entre os homens nas

relaccedilotildees sociais e natildeo mais pode ser o ldquofalastratildeordquo da infacircncia sente a necessidade de

maquinar um meio de convencer o avocirc149

O nosso interesse por ora eacute verificar a evoluccedilatildeo do comportamento de Ciro se

em um primeiro momento ele eacute loquaz falando abertamente o que pensa e sente a

partir da evoluccedilatildeo de seu caraacuteter ele passa a buscar estrateacutegias discursivas mais

complexas para conseguir a persuasatildeo de seu interlocutor O resultado desta

transformaccedilatildeo eacute um orador eficiente e capaz de conduzir as massas como nenhum outro

liacuteder

Haacute aleacutem disso outras experiecircncias fundamentais que vatildeo caracterizando Ciro

na juventude como imaturo e demedido e que serviratildeo justamente de exemplo para o

proacuteprio Ciro aprender a controlar-se

147 No original ὡς δὲ προῆγεν αὐτὸν ὁ χρόνος σὺν τῷ μεγέθει εἰς ὥραν τοῦ πρόσηβον

γενέσθαι ἐν τούτῳ δὴ τοῖς μὲν λόγοις μανοτέροις ἐχρῆτο καὶ τῇ φωνῇ ἡσυχαιτέρᾳ αἰδοῦς

δ᾽ ἐνεπίμπλατο ὥστε καὶ ἐρυθραίνεσθαι ὁπότε συντυγχάνοι τοῖς πρεσβυτέροις καὶ τὸ

σκυλακῶδες τὸ πᾶσιν ὁμοίως προσπίπτειν οὐκέθ᾽ ὁμοίως προπετὲς εἶχεν οὕτω δὴ

ἡσυχαίτερος μὲν ἦν ἐν δὲ ταῖς συνουσίαις πάμπαν ἐπίχαρις (Cirop 144) 148 No original ἀλλὰ μὰ τὸν Δία ἔφη ἐγὼ μὲν οὐκ οἶδ᾽ ὅστις ἄνθρωπος γεγένημαι οὐδὲ γὰρ

οἷός τ᾽ εἰμὶ λέγειν ἔγωγε οὐδ᾽ ἀναβλέπειν πρὸς τὸν πάππον ἐκ τοῦ ἴσου ἔτι δύναμαι ἢν δὲ

τοσοῦτον ἐπιδιδῶ δέδοικα ἔφη μὴ παντάπασι βλάξ τις καὶ ἠλίθιος γένωμαι παιδάριον δ᾽

ὢν δεινότατος λαλεῖν ἐδόκουν εἶναι (Cirop 1412) 149 Gera (1993 p32-33) ao analisar essa passagem Cirop 14 13-14 diz que o recurso estiliacutestico oratoacuterio usado por Ciro assemelha-se ao recurso utilizado por Soacutecrates tanto nas Memoraacuteveis quanto no Econocircmico iniciar com frases hipoteacuteticas para depois a partir da analogia falar diretamente

115

A primeira destas experiecircncias acontece na primeira caccedila fora dos limites do

palaacutecio do avocirc em campo aberto Acompanhado de seu tio Ciaxares Ciro eacute levado pela

excitaccedilatildeo da caccedila e desrespeitando as ordens do tio se arrisca demasiadamente para

caccedilar um javali Ainda que tenha matado o javali seu tio jaacute naquele momento ldquo[]

certamente o repreendia vendo a grande imprudecircncia Ciro apesar de ser repreendido

pedia tudo quanto ele obtivera e a permissatildeo de levar essas coisas para dar ao avocircrdquo150

(Cirop 14 9) Obtendo a permissatildeo do tio leva o javali ao avocirc crente de que isso o

faraacute feliz poreacutem o velho responde

Filho eu recebo com prazer tudo quanto tu me daacutes mas de fato natildeo preciso de nada destas coisas para tu te arriscares151 (Cirop 14 10)

Esta admoestaccedilatildeo ressoa em outro comentaacuterio

Que coisa agradaacutevel seria se por causa de um pedaccedilo de carne eu viesse a perder o filho da minha filha152 (Cirop 14 13)

A segunda experiecircncia (Cirop 14 16-28) se daacute quando Ciro ainda entre os

medos toma parte em sua primeira batalha O priacutencipe Assiacuterio desejou para comemorar

suas bodas caccedilar na fronteira entre a Assiacuteria e a Meacutedia Levando numerosa infantaria e

cavalaria ambicionou saquear a terra dos medos causando com isso uma batalha entre

as naccedilotildees Quando Astiacuteages e Ciaxares partiram para a batalha Ciro escondido partiu

junto A participaccedilatildeo de Ciro nessa batalha seraacute fundamental pois ele planejaraacute o modo

de agir dos soldados medos revelando portanto sua natureza belicosa Poreacutem

Como um catildeo de boa raccedila mas inexperiente imprudentemente vai de encontro ao javali assim tambeacutem Ciro arremetia apenas tentando golpear quem ele alcanccedilasse natildeo se precavendo de nenhuma outra coisa Os inimigos quando viram os seus sofrendo avanccedilaram as tropas a fim de que interrompessem a perseguiccedilatildeo ao verem que eles estavam se lanccedilando adiante153 (Cirop 14 21)

150 No original [9] ἐνταῦθα μέντοι ἤδη καὶ ὁ θεῖος αὐτῷ ἐλοιδορεῖτο τὴν θρασύτητα ὁρῶν ὁ

δ᾽ αὐτοῦ λοιδορουμένου ὅμως ἐδεῖτο ὅσα αὐτὸς ἔλαβε ταῦτα ἐᾶσαι εἰσκομίσαντα δοῦναι

τῷ πάππῳ (Cirop 149) 151 No original ἀλλ᾽ ὦ παῖ δέχομαι μὲν ἔγωγε ἡδέως ὅσα σὺ δίδως οὐ μέντοι δέομαί γε

τούτων οὐδενός ὥστε σε κινδυνεύειν (Cirop 1410) 152 No original χαρίεν γάρ ἔφη εἰ ἕνεκα κρεαδίων τῇ θυγατρὶ τὸν παῖδα

ἀποβουκολήσαιμι(Cirop 1413) 153 No original ὥσπερ δὲ κύων γενναῖος ἄπειρος ἀπρονοήτως φέρεται πρὸς κάπρον οὕτω

καὶ ὁ Κῦρος ἐφέρετο μόνον ὁρῶν τὸ παίειν τὸν ἁλισκόμενον ἄλλο δ᾽ οὐδὲν προνοῶν οἱ δὲ

πολέμιοι ὡς ἑώρων πονοῦντας τοὺς σφετέρους προυκίνησαν τὸ στῖφος ὡς παυσομένους

τοῦ διωγμοῦ ἐπεὶ σφᾶς ἴδοιεν προορμήσαντας (Cirop 1421)

116

Em vista disso Astiacuteages apoacutes o fim da batalha natildeo sabia o que dizer a Ciro

ldquo[] pois de um lado reconhecia que ele era o responsaacutevel pelo feito mas de outro

percebia que ele fora arrebatado pela coragem154rdquo (Cirop 14 24) Aleacutem disso Ciro eacute

visto rodeando com seu cavalo os mortos da batalha contemplando-os Com muito

custo arrancaram-no de laacute e ao ver o semblante do avocirc Ciro escondeu-se atraacutes dos que

o conduziam (Cirop 14 24)

O silecircncio de Astiacuteages e a sua admoestaccedilatildeo apoacutes a caccedila satildeo instrutivos para Ciro

que revendo suas accedilotildees pode refletir o quanto desagradou ao avocirc pelas accedilotildees

intempestivas que colocaram sua proacutepria vida em risco Desse modo como mentor de

Ciro nestas passagens Astiacuteages provoca uma mudanccedila vital em sua personalidade sem

a qual talvez Ciro teria um fim diverso provavelmente o mesmo fim de Creso e dos

reis baacuterbaros representados por Heroacutedoto

Essas passagens portanto mostram que haacute uma evoluccedilatildeo na construccedilatildeo da

personagem e que Ciro natildeo nasce pronto como modelo de liacuteder que viraacute a ser no final da

obra A importacircncia dessa passagem na tessitura narrativa eacute que Ciro a partir disso natildeo

mais se arriscaraacute nem arriscaraacute os seus aliados gratuitamente no campo de batalha

Conter a impetuosidade do menino eacute fundamental para sua trajetoacuteria posterior e este

abrandamento de sua paixatildeo soacute eacute conseguido por meio das admoestaccedilotildees do seu avocirc-

mentor Astiacuteages

4322 Cambises mentor de Ciro (Cirop 16)

O segundo mentor de Ciro na Ciropedia eacute seu pai Cambises O diaacutelogo entre

Ciro e Cambises se daacute no fim do primeiro livro quando o pai escolta o filho ateacute a

Media para este comandar o exeacutercito persa Antes o narrador nos informa que de

volta agrave Peacutersia Ciro continuou sua educaccedilatildeo na instituiccedilatildeo estatal frequentando as

classes determinadas e cumprindo as tarefas estabelecidas

[1] Ciro entatildeo tendo voltado a Peacutersia dizem um ano ainda permaneceu na classe dos meninos A princiacutepio os meninos zombavam dele pois voltara habituado agrave vida de prazeres na Meacutedia Quando entatildeo o viram comendo e bebendo agradavelmente como eles e se alguma vez na festa havia banquete perceberam que ele

154 No original [] αἴτιον μὲν ὄντα εἰδὼς τοῦ ἔργου μαινόμενον δὲ γιγνώσκων τῇ τόλμῃ (Cirop 1424)

117

oferecia mais da sua proacutepria porccedilatildeo do que pedia mais e aleacutem dessas coisas viram que ele era superior a eles mesmos a partir de entatildeo os da sua idade voltaram a respeitaacute-lo Depois que concluiu essa educaccedilatildeo imediatamente foi para a classe dos efebos e tambeacutem nessa parecia ser superior ocupando-se das coisas que eram necessaacuterias suportar e reverenciando os mais velhos e obedecendo aos chefes155 (Cirop 15 1)

Haacute um salto temporal na narrativa O rei dos Assiacuterios tomado de ambiccedilatildeo

forma uma alianccedila com os povos vizinhos contra os medos e persas acusados de se

fortalecerem para dominar a regiatildeo Astiacuteages jaacute era falecido e Ciaxares que se tornara

rei dos medos pediu auxiacutelio a Ciro

Antes de iniciar a guerra o narrador nos apresenta duas cenas cuja leitura mostra

a amplitude do papel de seu pai como mentor Na primeira cena Ciro reuacutene seu exeacutercito

e discursa aos seus soldados discurso no qual busca criar a confianccedila de seus

subordinados pelo seguinte argumento

[] jaacute que na verdade temos consciecircncia de que noacutes desde a infacircncia tendo comeccedilado sendo atletas das obras boas e belas nos lanccedilaremos contra os inimigos os quais eu sei com clareza satildeo amadores para combater contra noacutes Pois esses ainda natildeo satildeo combatentes muito fortes se de um lado lanccedilam flechas e dardos e cavalgam com conhecimento de outro quando for necessaacuterio sofrer fadigas nisso eles seratildeo inferiores pois satildeo pessoas sem praacutetica em relaccedilatildeo aos trabalhos fatigantes Quando for necessaacuterio natildeo dormir seratildeo vencidos pelo sono pois eles satildeo inexperientes com relaccedilatildeo a isso nem os que acaso satildeo haacutebeis nisso pois esses satildeo ignorantes no como eacute necessaacuterio agir com os aliados e com os inimigos e eacute evidente que esses tiveram seus principais conhecimentos inabilmente (Cirop 15 11)

A confianccedila que Ciro projeta em seu exeacutercito adveacutem justamente da consciecircncia

de que sua educaccedilatildeo cuja finalidade era a formaccedilatildeo de soldados seria determinante

para distinguir os vencedores dos perdedores E podemos dizer o fato de os inimigos

natildeo serem educados na moderaccedilatildeo os tornaria fracos diante das fadigas da guerra agraves

quais os persas jaacute estavam acostumados educados nela a vida toda 155 No original ἀλλ᾽ ἐπείπερ σύνισμεν ἡμῖν αὐτοῖς ἀπὸ παίδων ἀρξάμενοι ἀσκηταὶ ὄντες τῶν

καλῶν κἀγαθῶν ἔργων ἴωμεν ἐπὶ τοὺς πολεμίους οὓς ἐγὼ σαφῶς ἐπίσταμαι ἰδιώτας

ὄντας ὡς πρὸς ἡμᾶς ἀγωνίζεσθαι οὐ γάρ πω οὗτοι ἱκανοί εἰσιν ἀγωνισταί οἳ ἂν τοξεύωσι

καὶ ἀκοντίζωσι καὶ ἱππεύωσιν ἐπιστημόνως ἢν δέ που πονῆσαι δέῃ τούτῳ λείπωνται ἀλλ᾽

οὗτοι ἰδιῶταί εἰσι κατὰ τοὺς πόνους οὐδέ γε οἵτινες ἀγρυπνῆσαι δέον ἡττῶνται τούτου

ἀλλὰ καὶ οὗτοι ἰδιῶται κατὰ τὸν ὕπνον οὐδέ γε οἱ ταῦτα μὲν ἱκανοί ἀπαίδευτοι δὲ ὡς χρὴ

καὶ συμμάχοις καὶ πολεμίοις χρῆσθαι ἀλλὰ καὶ οὗτοι δῆλον ὡς τῶν μεγίστων

παιδευμάτων ἀπείρως ἔχουσιν (Cirop 1511)

118

Em seguida Ciro parte para junto do pai momento em que se daacute o referido

diaacutelogo entre filho e pai no qual Cambises instrui corrige e guia Ciro Segundo Gera

(1993 p50) os meacutetodos utilizados por Cambises satildeo similares aos de Soacutecrates nas

Memoraacuteveis poreacutem a autora filia essa longa conversa com o gecircnero de instruccedilatildeo moral

dos ὐποθέκαι (ypothekai) escritos que inicialmente em verso apresentam um locutor

que exorta e aconselha Segundo a autora haacute nesse gecircnero a tradiccedilatildeo de que um homem

mais velho dirija-se a um mais novo como por exemplo Hesiacuteodo dirigindo-se ao seu

irmatildeo Perses nrsquoOs Trabalhos e os Dias Inicialmente apenas com um locutor o gecircnero

foi inovado ao que parece por Hiacutepias que adaptando-o agrave prosa deu voz agrave segunda

figura desse impliacutecito diaacutelogo o jovem As informaccedilotildees a respeito desse gecircnero satildeo

escassas o certo eacute que nesta cena da Ciropedia o narrador se apaga quase totalmente

mimetizando os locutores do diaacutelogo Ciro e Cambises Em sua participaccedilatildeo o narrador

enquadra o diaacutelogo que seguiraacute e ordena as falas com construccedilotildees do tipo ldquoCiro disserdquo

ldquoCambises disserdquo organizando as locuccedilotildees da personagem e dramatizando a cena

Os temas do diaacutelogo giram em torno das qualidades referidas anteriormente a

temperanccedila a obediecircncia a piedade entre outras uma vez que Cambises retoma

avaliando por meio de perguntas todos os ensinamentos do filho Seria dispendioso

analisar todo o diaacutelogo entre pai e filho porque Ciro se mostra conhecedor de muitos

dos conceitos discutidos O importante na participaccedilatildeo dos mentores natildeo eacute averiguar

aquilo que a personagem sabe mas justamente demonstrar que suas avaliaccedilotildees satildeo

equivocadas Portanto analisaremos apenas as passagens em que Cambises corrige

Ciro

Em Cirop 168 a primeira correccedilatildeo de Cambises justamente retoma o

discurso que Ciro proferira em Cirop 157-14 Quando Ciro reafirma a superioridade

dos persas sobre os inimigos seu discurso se fixa novamente sobre o tema da

moderaccedilatildeo na visatildeo do priacutencipe persa enquanto os inimigos acreditavam que o

governante deve se distinguir dos governados na indolecircncia e no oacutecio os persas

acreditavam que a distinccedilatildeo devia surgir pela providecircncia e amor ao trabalho Sua

comparaccedilatildeo natildeo poupa os proacuteprios medos cuja cultura considerada luxuosa fora

criticada por Ciro no primeiro banquete diante do avocirc Cambises lembra a Ciro poreacutem

que nem sempre a luta dos homens eacute contra outros homens mas sim ldquo[] contra coisas

em si mesmas [πρὸς αὐτὰ τὰ πράγματα] das quais natildeo eacute faacutecil ser superior com

119

desembaraccedilo156rdquo (Cirop 16 9) e que o bom general deve prover todas as coisas

necessaacuterias aos seus soldados Ciro afirma que Ciaxares traraacute provisotildees necessaacuterias para

o exeacutercito poreacutem quando seu pai lhe pergunta se ele sabe o real tamanho das riquezas

de Ciaxares e Ciro nega seu pai lhe pergunta ldquoApesar de tudo confias em coisas

desconhecidasrdquo157 (Cirop 16 9)

Com esse mote Cambises estabeleceraacute que para um bom general eacute necessaacuterio

prever tambeacutem as necessidades futuras e que confiando no incerto o homem pego

desprevenido pelo acaso natildeo teraacute como agir Seguir-se-aacute entatildeo o diaacutelogo com Cambises

e Ciro retomando os pontos essenciais que um general natildeo deve negligenciar as

provisotildees a sauacutede e o fiacutesico dos soldados as estrateacutegias militares a preparaccedilatildeo dos

soldados como incutir ardor na tropa e como conquistar a obediecircncia dos soldados

Para cada um destes pontos as estrateacutegias discursivas satildeo quase sempre as

mesmas Pode-se descrever uma determinada estrutura de argumentaccedilatildeo primeiro

Cambises pergunta a respeito de um desses pontos entatildeo Ciro daacute uma resposta que

Cambises imediatamente revisa marcando os limites do ponto de vista de Ciro Ciro

entatildeo se convence pede ajuda e Cambises daacute conselhos praacuteticos para conseguir realizar

o objetivo Ou seja Cambises como pai mas tambeacutem como mentor evita que Ciro vaacute agrave

batalha com conceitos preestabelecidos e errocircneos O diaacutelogo faz Ciro evoluir passo a

passo agrave medida que aprende a tornar-se um bom general Para exemplificar essa postura

tomaremos o tema da obediecircncia

Apoacutes Cambises admoestaacute-lo a nunca confiar no incerto pois o verdadeiro

comandante planeja tudo antes de seus soldados Ciro revela que o melhor meio de

conseguir a obediecircncia dos homens ldquo[] eacute louvar e honrar o obediente e ao

desobediente desprezar e punir158rdquo (Cirop 16 20) Cambises entatildeo lhe responde

Esse filho eacute o caminho para a obediecircncia forccedilada para uma muito melhor do que essa a obediecircncia voluntaacuteria haacute um caminho muito mais curto Pois os homens obedecem com grande prazer aqueles que consideram mais sensatos nos seus interesses do que eles mesmos159 (Cirop 16 21)

156 No original [hellip] ἀλλὰ πρὸς αὐτὰ τὰ πράγματα ὧν οὐ ῥᾴδιον εὐπόρως περιγενέσθαι (Cirop 169) 157 No original ὅμως δὲ τούτοις πιστεύεις τοῖς ἀδήλοις (Cirop 169) 158 No original [hellip] τὸ τὸν πειθόμενον ἐπαινεῖν τε καὶ τιμᾶν τὸν δὲ ἀπειθοῦντα ἀτιμάζειν τε

καὶ κολάζειν (Cirop 1620) 159 No original [21] καὶ ἐπὶ μέν γε τὸ ἀνάγκῃ ἕπεσθαι αὕτη ὦ παῖ ἡ ὁδός ἐστιν ἐπὶ δὲ τὸ

κρεῖττον τούτου πολύ τὸ ἑκόντας πείθεσθαι ἄλλη ἐστὶ συντομωτέρα ὃν γὰρ ἂν

120

Esse ensinamento marcaraacute toda a conduta militar de Ciro na narrativa e a

clemecircncia dele para com os inimigos se basearaacute neste toacutepico busca de aliados

obedientes pois a puniccedilatildeo garante uma obediecircncia aparente poreacutem no punido sempre

irrompem iacutempetos de vinganccedila Em Heroacutedoto no livro 1 Haacuterpago que natildeo cumpriu a

ordem de Astiacuteages de matar Ciro eacute punido pelo rei medo banqueteando-se com as

carnes do proacuteprio filho Haacuterpago que continuou a viver na corte submisso ao rei quando

observou que Ciro crescera aliou-se a ele para depor Astiacuteages do trono Ciro na

Ciropedia entretanto perdoaraacute seus inimigos e com isso conquistaraacute valiosos aliados

como Tigranes Araspas Goacutebrias Gaacutedatas e Abradatas

Apoacutes estabelecer qual o melhor meio de conseguir obediecircncia Cambises passa a

expressar a verdade de seu ensinamento por meio de siacutemiles o doente obedece com

ardor ao meacutedico o navegante ao piloto aquele que natildeo sabe o caminho confia em quem

sabe Ciro entatildeo pede que o pai lhe ensine a ter a reputaccedilatildeo de saacutebio nas coisas

necessaacuterias para que os homens obedeccedilam a ele jaacute que os homens obedecem melhor

agravequele em quem confiam Cambises lhe responde

Natildeo haacute filho caminho mais curto a respeito das coisas em que desejas parecer ser sensato do que tornar-se de fato sensato a respeito desses assuntos Observando a fundo cada uma das coisas reconheceraacutes que eu digo a verdade Se quiseres natildeo sendo bom agricultor parecer ser bom ou cavaleiro ou meacutedico ou flautista ou qualquer outra coisa imagine quatildeo numerosas coisas a ti seria necessaacuterio maquinar por causa da aparecircncia E se tu persuadires a muitos a te louvares para que obtenhas fama e adquiras bons equipamentos de cada um destes ofiacutecios em um instante seria o embusteiro mas pouco depois quando precisasse oferecer uma prova tu te verias desmascarado e ainda um charlatatildeo160 (Cirop 1622)

Desse modo o que seria de Ciro nas campanhas que se seguiratildeo na narrativa

sem esses conselhos paternos Natildeo seria por certo modelo de virtude de lideranccedila tanto

aos leitores quanto aos proacuteprios personagens que se submetem agraves suas ordens de boa

ἡγήσωνται περὶ τοῦ συμφέροντος ἑαυτοῖς φρονιμώτερον ἑαυτῶν εἶναι τούτῳ οἱ ἄνθρωποι

ὑπερηδέως πείθονται (Cirop 1621) 160 No original Οὐκ ἔστιν ἔφη ὦ παῖ συντομωτέρα ὁδὸς ltἐπὶ τόgt περὶ ὧν βούλει δοκεῖν

φρόνιμος εἶναι ἢ τὸ γενέσθαι περὶ τούτων φρόνιμον καθ ἓν δ ἕκαστον σκοπῶν γνώσῃ ὅτι

ἐγὼ ἀληθῆ λέγω ἢν γὰρ βούλῃ μὴ ὢν ἀγαθὸς γεωργὸς δοκεῖν εἶναι ἀγαθός ἢ ἱππεὺς ἢ

ἰατρὸς ἢ αὐλητὴς ἢ ἄλλ ὁτιοῦν ἐννόει πόσα σε δέοι ἂν μηχανᾶσθαι τοῦ δοκεῖν ἕνεκα καὶ

εἰ δὴ πείσαις ἐπαινεῖν τέ σε πολλούς ὅπως δόξαν λάβοις καὶ κατασκευὰς καλὰς ἐφ

ἑκάστῳ αὐτῶν κτήσαιο ἄρτι τε ἐξηπατηκὼς εἴης ἂν καὶ ὀλίγῳ ὕστερον ὅπου πεῖραν δοίης

ἐξεληλεγμένος ἂν προσέτι καὶ ἀλαζὼν φαίνοιο

121

vontade Sem Cambises como bem observou Tatum (1989 p78) Ciro cometeria os

mesmos erros dos outros deacutespotas Assim o papel de Cambises como mentor eacute

essencial na formaccedilatildeo de Ciro e no seu sucesso como governante Para Tatum (1989)

esta cena ainda fala de como

Harmonia entre pai e filho eacute fundamental para o projeto de um padratildeo eacutetico que participa de toda accedilatildeo de Ciro na Ciropedia O encontro amplamente demonstra porque Cambises merece tal obediecircncia161 (1989 p87 traduccedilatildeo nossa)

Cambises para tornar seu discurso criacutevel utiliza-se de recursos oratoacuterios

precisos O mais significativo eacute a utilizaccedilatildeo de siacutemiles nos quais compara a arte de

governar a alguma outra profissatildeo em especial agrave de agricultor agrave de meacutedico agrave de piloto

agrave do atleta etc Poreacutem uma interessante analogia de Cambises refere-se agrave muacutesica Em

Cirop 1638 ele diz

[38] Eacute necessaacuterio por isso que tu sejas um amante do aprender todas as coisas natildeo para te servires soacute das coisas que aprendestes mas tambeacutem para seres tu um inventor de artifiacutecios contra os inimigos Como os muacutesicos que natildeo se servem apenas das coisas que aprenderam mas tambeacutem procuram criar outras novas E de um lado nas artes musicais as peccedilas novas e exuberantes satildeo muito honradas de outro as novas maquinaccedilotildees satildeo muito mais honradas na guerra pois com essas pode-se melhor enganar os inimigos162 (Cirop 1638)

Ampliando o sentido de muacutesica agrave poeacutetica de um modo geral ao artista eacute

necessaacuterio tanto o conhecimento das obras que lhe precederam quanto agrave inovaccedilatildeo de

sua proacutepria escrita Interpretando esse comentaacuterio como uma passagem metaliteraacuteria

parece-nos que Xenofonte conscientemente imagina sua obra como nova nova no

sentido de conhecer o que foi produzido anteriormente e inovadora a partir do jogo de

influecircncias Como viemos tentando demonstrar nesse estudo acreditamos na novidade

estrutural instituiacuteda pela obra de Xenofonte e este comentaacuterio de Cambises parece

confirmar a consciecircncia de Xenofonte sobre o papel do artista

161 No Original Harmony between father and son is basic to the design of the ethical pattern that informs every action of Cyrus in the Cyropaedia The encounter amply demonstrates why Cambyses merits such obedience (TATUM 1989 p87) 162 No original [38] δεῖ δή ἔφη φιλομαθῆ σε τούτων ἁπάντων ὄντα οὐχ οἷς ἂν μάθῃς τούτοις

μόνοις χρῆσθαι ἀλλὰ καὶ αὐτὸν ποιητὴν εἶναι τῶν πρὸς τοὺς πολεμίους μηχανημάτων

ὥσπερ καὶ οἱ μουσικοὶ οὐχ οἷς ἂν μάθωσι τούτοις μόνον χρῶνται ἀλλὰ καὶ ἄλλα νέα

πειρῶνται ποιεῖν καὶ σφόδρα μὲν καὶ ἐν τοῖς μουσικοῖς τὰ νέα καὶ ἀνθηρὰ εὐδοκιμεῖ πολὺ

δὲ καὶ ἐν τοῖς πολεμικοῖς μᾶλλον τὰ καινὰ μηχανήματα εὐδοκιμεῖ ταῦτα γὰρ μᾶλλον καὶ

ἐξαπατᾶν δύναται τοὺς ὑπεναντίους (Cirop 1638)

122

Cambises eacute o que Detienne ([sd]) chama de ldquomestre da verdaderdquo Natildeo eacute o

adivinho o poeta e o rei da justiccedila do mundo arcaico que possuiacuteam o dom de espalhar a

verdade pois eram agraciados pelas Musas Eacute o ldquomestre da verdaderdquo de conhecimentos

praacuteticos que promove a educaccedilatildeo ao transportar o educando para o caminho da

perfeiccedilatildeo Ciro no final da narrativa torna-se tambeacutem um mestre da verdade pois

podendo olhar seu passado de sucessos torna-se possuidor de um conhecimento que

deve passar aos seus filhos no leito de morte (Cirop VIII7) justamente como seu pai

fizera na sua juventude (Cirop I6)

Cambises apareceraacute novamente no final da obra (Cirop VIII5) quando Ciro

apoacutes a captura da Babilocircnia e do fim da guerra com os Assiacuterios retorna agrave Peacutersia levando

presentes para seu pai e sua matildee Cambises preparando a Ciro uma festa de boas vindas

estritamente formal convoca uma assembleia para qual discursa o quanto essa

assembleia deve a Ciro de quantas riquezas graccedilas a ele agora podem desfrutar e

quanto ele ldquotornou-vos oacute Persas gloriosos a todos os homens e honrados em toda a

Aacutesiardquo163 (Cirop LVIII523 traduccedilatildeo nossa) No entanto mesmo apoacutes grandes

demonstraccedilotildees de admiraccedilatildeo Cambises natildeo deixa de aconselhar tanto a assembleia

quanto o proacuteprio filho

Se tu Ciro excitado pelas daacutedivas presentes por cobiccedila tentares governar os persas do mesmo modo que os outros povos ou voacutes cidadatildeos invejando seu poder tentares derrubaacute-lo do poder sabei bem que sereis obstaacuteculos uns aos outros a muitos bens [25] Portanto para que isso natildeo aconteccedila e sim boas coisas eu julgo bom que voacutes sacrifiqueis em comum e com os deuses tomados como testemunhas faccedilam um trato de que tu Ciro se algueacutem fazer expediccedilatildeo contra o territoacuterio persa ou tentar destruir as leis dos persas viraacutes em socorro com toda a forccedila e voacutes oacute Persas se algueacutem ou empreender derrubar Ciro do poder ou se algum dos que estatildeo em seu poder se rebelar vireis em socorro de voacutes mesmos e de Ciro conforme aquilo que ele solicitar [26] Enquanto eu viver a soberania na Peacutersia seraacute minha quando eu morrer eacute evidente que seraacute de Ciro enquanto ele viver (CiropVIII524-26)164

163 No original εὐκλεεῖς μὲν ὑμᾶς ὧ Πέρσαι ἐν πᾶσιν ἀνθρώποις ἐποίησεν ἐντίμους δrsquo ἐν τῇ

Ἀσίᾳ πάσῃ (Cirop LVIII523) 164 Traduccedilatildeo nossa No original εἰ δὲ ἢ σύ ὦ Κῦρε ἐπαρθεὶς ταῖς παρούσαις τύχαις

ἐπιχειρήσεις καὶ Περσῶν ἄρχειν ἐπὶ πλεονεξίᾳ ὥσπερ τῶν ἄλλων ἢ ὑμεῖς ὦ πολῖται

φθονήσαντες τούτῳ τῆς δυνάμεως καταλύειν πειράσεσθε τοῦτον τῆς ἀρχῆς εὖ ἴστε ὅτι

ἐμποδὼν ἀλλήλοις πολλῶν καὶ ἀγαθῶν ἔσεσθε [25] ὡς οὖν μὴ ταῦτα γίγνηται ἀλλὰ

τἀγαθά ἐμοὶ δοκεῖ ἔφη θύσαντας ὑμᾶς κοινῇ καὶ θεοὺς πιμαρτυραμένους συνθέσθαι σὲ

μέν ὦ Κῦρε ἤν τις ἐπιστρατεύηται χώρᾳ Περσίδι ἢ Περσῶν νόμους διασπᾶν πειρᾶται

βοηθήσειν παντὶ σθένει ὑμᾶς δέ ὦ Πέρσαι ἤν τις ἢ ἀρχῆς Κῦρον ἐπιχειρῇ καταπαύειν ἢ

ἀφίστασθαί τις τῶν ὑποχειρίων βοηθήσειν καὶ ὑμῖν αὐτοῖς καὶ Κύρῳ καθ ὅ τι ἂν οὗτος

123

A questatildeo que se oferece nessa passagem eacute complexa e exige algum comentaacuterio

Primeiramente fica evidenciado que haacute dois poderes estabelecidos o de Cambises na

Peacutersia e o de Ciro no resto do Impeacuterio Contudo o poder de Ciro estaacute submetido ao de

Cambises ao qual Ciro como filho deve ainda obedecer Para Tatum (1989 p77-78)

Cambises em seu discurso estaacute determinado a estabelecer que ele natildeo Ciro eacute o rei dos

persas e Ciro por maior que seja o seu nome eacute ainda seu filho Aleacutem disso ldquoCiro eacute

ainda o filho de seu pai ainda capaz de ser ensinado por elerdquo165 (TATUM 1989 p80

traduccedilatildeo nossa) A educaccedilatildeo de Ciro e sua identidade como pessoa dependem desse

laccedilo cuja cena mostra que eacute extremamente forte (TATUM 1989 p80) Ademais esse

retorno de Cambises revela a eacutetica paternalista que sublinha a obra e o proacuteprio conceito

de educaccedilatildeo por ela expressa Dessa forma Cambises que aparecera antes da guerra

contra os assiacuterios ao retornar apoacutes essa guerra enquadra a narrativa militar de Ciro que

compreende os livros II a VIII Essa estrutura eacute chamada por Tatum (1989) de ring

composition a narrativa termina onde ela comeccedila

Evidencia-se portanto o papel do pai Cambises como mentor de Ciro Ele

com seus ensinamentos impede que Ciro seja acometido pela hybris e torne-se

desmedido e desvairado com seu poder Due (1989) diz que os ensinamentos paternos

no livro I seratildeo retomados durante todo o resto da obra sendo figurativizados e que

esse diaacutelogo eacute uma espeacutecie de siacutentese de todo o romance os problemas ali colocados

seratildeo os problemas resolvidos por Ciro Tatum (1989 p68) acrescenta que natildeo soacute Ciro

eacute o monarca ideal como tambeacutem as personagens que o rodeiam satildeo suacuteditos ideais

porque colocam problemas a ele que soacute um monarca ideal poderia resolver

A questatildeo da plena educaccedilatildeo que a relaccedilatildeo de Ciro com outros personagens

garante tanto a Ciro quanto ao leitor eacute interessante poreacutem afasta-se do objetivo desse

capiacutetulo No entanto como Tatum (1989 p68) observa eacute necessaacuterio lembrar que o

estatuto das personagens secundaacuterias na Ciropedia eacute duplo de um lado satildeo

personagens proacuteprias bem caracterizadas produtos da imaginaccedilatildeo de Xenofonte e de

outro estruturas que formam a educaccedilatildeo ideal de Ciro

ἐπαγγέλλῃ καὶ ἕως μὲν ἂν ἐγὼ ζῶ ἐμὴ γίγνεται ἡ ἐν Πέρσαις βασιλεία ὅταν δ ἐγὼ

τελευτήσω δῆλον ὅτι Κύρου ἐὰν ζῇ 165 No original Cyrus is still his fatherrsquos child still capable of being taught by him (TATUM 1989 p80)

124

Analisamos os elementos estruturais que compotildeem a archaica do romance de

formaccedilatildeo ou seja aqueles elementos constitutivos e determinantes na caracterizaccedilatildeo do

gecircnero Percebemos a partir da anaacutelise que a combinaccedilatildeo destes elementos efetua a

evoluccedilatildeo da personagem principal da narrativa O Ciro do iniacutecio da narrativa eacute diverso

do Ciro do fim da narrativa e essa diferenccedila se deve agrave formaccedilatildeo de Ciro que por meio

da instituiccedilatildeo e da participaccedilatildeo de mentores torna-se no fim da obra aleacutem do liacuteder

ideal um mestre da verdade capaz de ensinar pela autoridade da sua vida Portanto a

personagem natildeo eacute estaacutetica mas evolutiva

Segundo Due (1989 p162) descriccedilotildees de crianccedilas na Literatura Grega natildeo satildeo

muito frequentes e isso justifica os esforccedilos de Xenofonte em descrever o

desenvolvimento de Ciro de forma realista Assim observa-se que a personalidade de

Ciro sofre uma determinada evoluccedilatildeo que sinalizaraacute o aperfeiccediloamento de suas

qualidades tanto as inatas quanto as desenvolvidas nas instituiccedilotildees educacionais Sem

este aperfeiccediloamento o destino do heroacutei correria por cursos outros que satildeo

exemplificados pelo destino traacutegico de outras personagens Concluiacutemos portanto que

do ponto de vista da construccedilatildeo da personagem ela natildeo eacute estaacutetica como as personagens

dos outros tipos de romance inclusive o biograacutefico poreacutem se enquadra na definiccedilatildeo de

Bakhtin (2010 p235) para o romance de formaccedilatildeo

Figura 3 Ciro comandando o exeacutercito persa Fonte httposaquemenidasblogspotcom200912ciro-ii-o-grande-559-530-ac-parte-iiihtml

125

44 O grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico

Outra caracteriacutestica segundo Bakhtin (2010 p223) que diferencia o romance

de formaccedilatildeo dos outros tipos de romance eacute o tipo de relaccedilatildeo da ficccedilatildeo com o tempo

histoacuterico real pois eacute esta caracteriacutestica que garante a modificaccedilatildeo da imagem do homem

nos diversos tipos de romances Segundo o teoacuterico russo na maior parte dos romances a

imagem do heroacutei eacute preestabelecida e imutaacutevel

Na maioria das variantes do gecircnero romanesco o enredo a composiccedilatildeo e toda a estrutura do romance postulam a imutabilidade a firmeza da imagem do heroacutei a unidade estaacutetica que ele representa (BAKHTIN2010 p236)

No entanto na modalidade romance de formaccedilatildeo o heroacutei eacute dinacircmico e variaacutevel

e as mudanccedilas pelas quais ele passa adquirem um novo estatuto na estrutura do enredo

do romance ldquo[] que seraacute por conseguinte repensado e reestruturado O tempo se

introduz no interior do homem impregna-lhe toda a imagem modificando a

importacircncia substancial de seu destino e de sua vidardquo (BAKHTIN 2010 p237)

O grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico entretanto varia e esta variaccedilatildeo

delimita o enfoque de formaccedilatildeo do homem com isso Bakhtin organiza o romance de

formaccedilatildeo em cinco tipos

a-) no primeiro tipo o romance ciacuteclico de tipo puro ldquo[] o tempo se presta a

uma representaccedilatildeo do desenrolar da vida humana []rdquo (BAKHTIN 2010 p238) e as

modificaccedilotildees internas do homem correspondem ao proacuteprio envelhecimento natural

b-) o segundo tipo de temporalidade ciacuteclica consiste na representaccedilatildeo de um

desenvolvimento tiacutepico no qual o mundo e a vida satildeo assimilados a uma experiecircncia

pela qual ldquo[] todo os homens devem passar para retirar delas o mesmo resultado[]rdquo

(BAKHTIN 2010 p238)

c-) o terceiro tipo eacute representado pelo tempo biograacutefico no qual estaacute ausente o

elemento ciacuteclico Desse modo o heroacutei atravessa fases individuais e sua transformaccedilatildeo

ldquo[] eacute o resultado de um conjunto de circunstacircncias de acontecimentos de atividades

de empreendimentos que modificam a vida []rdquo (BAKHTIN 2010 p239)

d-) a Ciropedia de Xenofonte corresponde ao quarto tipo de romance de

formaccedilatildeo ldquo[] o romance didaacutetico-pedagoacutegico que se fundamenta numa ideia

126

pedagoacutegica determinada concebida com maior ou menor amplitude []rdquo (BAKHTIN

2010 p239)

e-) no quinto tipo ldquo[] a evoluccedilatildeo do homem eacute indissoluacutevel da evoluccedilatildeo

histoacuterica []rdquo (BAKHTIN 2010 p239) por isso evolui ao mesmo tempo que o mundo

Note-se que ao tratar do quarto tipo de romance de formaccedilatildeo Bakhtin natildeo

analisa o tempo em si e sua assimilaccedilatildeo por esses romances-pedagoacutegicos Poreacutem na

sequecircncia do seu artigo Bakhtin enquadra estes quatro primeiros tipos como romances

cujo tempo histoacuterico eacute fechado Segundo Bakhtin (2010 p239)

O que este mundo concreto e estaacutevel [dos romances dos quatro primeiros tipos] esperava do homem em sua atualidade era que este se adaptasse conhecesse as leis da vida e se submetesse a elas Era o homem que se formava e natildeo o mundo o mundo pelo contraacuterio servia de ponto de referecircncia para o homem em desenvolvimento [] A proacutepria noccedilatildeo de mundo servindo de experiecircncia de escola era muito produtiva no romance de educaccedilatildeo

Jaacute o romance de formaccedilatildeo do quinto tipo o tipo realista o heroacutei se situa entre

duas eacutepocas e com o tempo histoacuterico em evoluccedilatildeo as leis da vida natildeo satildeo determinadas

e estaacuteticas mas vatildeo se formando paralelamente agrave formaccedilatildeo do indiviacuteduo Poreacutem ldquoEacute

evidente que o romance de formaccedilatildeo de quinto tipo natildeo pode ser compreendido

independentemente dos quatro outros tipos de romance de formaccedilatildeo []rdquo (BAKHTIN

2010 p241)

O tempo narrativo do romance de formaccedilatildeo realista portanto eacute um momento de

transiccedilatildeo do tempo histoacuterico situado entre duas eacutepocas a que passou e a que vai

nascendo com seus valores e ideais Para Koselleck (2006 p14) o conceito de tempo

histoacuterico nasce com a modernidade principalmente apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa jaacute que

as diversas revoluccedilotildees que a Revoluccedilatildeo Francesa desencadeou irromperam uma nova

percepccedilatildeo temporal Neste novo tempo raacutepido e incerto o tempo histoacuterico seria uma

dimensatildeo dinacircmica em que passado presente e futuro natildeo se separariam mas se

fundiriam ou nas palavras de Koselleck (2006 p15) ldquoA maneira pela qual em um

determinado tempo presente a dimensatildeo temporal do passado entra em relaccedilatildeo de

reciprocidade com a dimensatildeo temporal do futurordquo

Esta visatildeo de Koselleck natildeo estaacute dissociada da visatildeo de Bakhtin Ao analisar o

romance de Goethe Bakhtin chama a atenccedilatildeo para o fato de que para Goethe o

contemporacircneo ldquo[] tanto na natureza como na vida humana se manifesta como uma

diacronia essencial ou como remanescentes ou reliacutequias de diversos graus de evoluccedilatildeo

127

e das formaccedilotildees do passado ou entatildeo como germes de um futuro []rdquo (BAKHTIN

2010 p247) O tempo histoacuterico aberto portanto soacute eacute possiacutevel na Era Moderna em

virtude da capacidade de ver o tempo no espaccedilo pois eacute no espaccedilo que o homem deixa as

marcas de sua atividade criadora (BAKHTIN 2010 p243) Por isso para Bakhtin essa

relaccedilatildeo de cronotopo eacute uma das caracteriacutesticas fundamentais do romance moderno dito

realista pois justamente por este caraacuteter aberto do tempo histoacuterico eacute que o indiviacuteduo se

opotildee contra a ordem estabelecida pela sociedade ndash o heroacutei do romance duvida do mundo

(PAZ 1972 p226)

Devemos pois ao analisar o tempo histoacuterico na Ciropedia lembrar que natildeo

estamos nos referindo a este tempo histoacuterico moderno mas a um tempo histoacuterico mais

amplo e social em que qualquer indiviacuteduo sempre se situa caracteriacutestico dos outros

quatro tipos de romance de formaccedilatildeo

A respeito da Ciropedia de Xenofonte tomando os comentaacuterios de Bakhtin

como guia podemos constatar que primeiramente as outras modalidades de tempo se

entrecruzam na Ciropedia em segundo lugar a representaccedilatildeo do passado ndash como

mateacuteria da narraccedilatildeo ndash em discurso propicia a perfeita harmonizaccedilatildeo entre o homem e o

mundo pois este eacute um mundo jaacute fechado e estaacutetico e natildeo em formaccedilatildeo

Parece-nos ao menos que duas modalidades de tempo descritas por Bakhtin satildeo

possiacuteveis de serem encontradas na Ciropedia A obra eacute a narraccedilatildeo da biografia de Ciro

que se tornaraacute o fundador desse grande impeacuterio desde o seu nascimento ateacute a sua morte

Momigliano (1993 p54-55 traduccedilatildeo nossa) afirma que

A maior contribuiccedilatildeo de Xenofonte para a biografia [eacute] a Ciropedia A Ciropedia eacute de fato a mais acabada biografia que noacutes temos na literatura grega claacutessica Eacute a apresentaccedilatildeo da vida de um homem do comeccedilo ao fim e elogia o lugar da sua educaccedilatildeo e do caraacuteter moral166

Ora narrando uma determinada vida uma vida especiacutefica desde seu nascimento

ateacute a sua morte Xenofonte faz com que sua personagem atravesse fases individuais e

especiacuteficas e sua transformaccedilatildeo ldquo[] eacute o resultado de um conjunto de circunstacircncias de

acontecimentos de atividades de empreendimentos que modificam a vida []rdquo

(BAKHTIN 2010 p239) Vemos os acontecimentos de Ciro como acontecimentos

uacutenicos que por serem uacutenicos faratildeo a diferenccedila na formaccedilatildeo final da personagem Como

166 No original Xenophonrsquos greatest contribuition to biography the Cyropaedia The Cyropaedia is indeed the most accomplished biography we have in classical Greek literature It is a presentation of the life of a man from beginning to end and gives pride of place to his education and moral character (MOMIGLIANO 1993 p54-55)

128

ressaltamos no iniacutecio a participaccedilatildeo de mentores ndash o avocirc e o pai ndash completaratildeo a

educaccedilatildeo inicial de Ciro no entanto essa participaccedilatildeo de mentores natildeo eacute um

acontecimento comum a todos mas uacutenico dependente de seu estatuto real filho e neto

de reis

Portanto podemos dizer que a obra Ciropedia ao unir um determinado conceito

pedagoacutegico agrave forma biograacutefica compotildee-se de um tempo biograacutefico no qual as fases

individuais satildeo essenciais na formaccedilatildeo

No entanto natildeo podemos deixar de notar que a formaccedilatildeo a que Ciro eacute submetido

ndash as transformaccedilotildees pelas quais ele passa ndash segue um modelo ciacuteclico de tempo

caracteriacutestico do segundo grupo apresentado por Bakhtin pois compreende as fases

naturais do homem representando um desenvolvimento tiacutepico e idiacutelico A passagem do

menino desobediente e imprudente que confia demais em si a adulto comedido e

responsaacutevel para no fim tornar-se um velho saacutebio um ldquomestre da verdaderdquo parece-nos

condizer com um tipo de temporalidade ciacuteclica cuja natureza ideal da passagem do

tempo no interior do homem forma tambeacutem um homem ideal

As experiecircncias individuais ndash ao menos as bem sucedidas ndash devem conduzir

necessariamente a um tipo de formaccedilatildeo universal posto que natural ao homem em si

mesmo cujo significado expressivo encontra-se em uma visatildeo de mundo moralista e

paternalista na qual a obediecircncia e a auto-censura das paixotildees sophrosyne ton pathon

adquirem importacircncia na realizaccedilatildeo ldquotriunfalistardquo e harmocircnica do homem com o mundo

Unindo agrave modalidade biograacutefica a modalidade ciacuteclica Xenofonte a partir de uma

experiecircncia de vida particular espera conseguir a educaccedilatildeo de seus leitores convicto do

modelo ideal de educaccedilatildeo que ele cria pois este se conduz na trilha da evoluccedilatildeo natural

do homem ao menos na hipoacutetese de uma evoluccedilatildeo ideal A experiecircncia individual

torna-se entatildeo experiecircncia universal possiacutevel

Ao mesmo tempo a harmonia entre homem e sociedade e a visatildeo triunfalista de

um modelo determinado soacute satildeo possiacuteveis em um mundo fechado jaacute formulado Ainda

que por se tratar de uma narrativa de temaacutetica histoacuterica o mundo ali retratado esteja em

um ponto determinado de tensatildeo ao qual sucederaacute a formaccedilatildeo do impeacuterio persa

portanto politicamente em formaccedilatildeo os ideais desse mundo se mantecircm ainda os

mesmos A educaccedilatildeo de Ciro eacute o aprendizado de leis especiacuteficas que aqueles homens jaacute

vividos formularam e seu sucesso na carreira tanto militar quanto governamental se

deve agrave maacutexima compreensatildeo dessas leis e natildeo agrave formulaccedilatildeo de novas leis ou agrave criaccedilatildeo

129

de um homem novo se assim podemos dizer O Ciro adulto estaacute adaptado em um

mundo que lhe serviu de referecircncia em sua formaccedilatildeo

Pode-se objetar que alguns dos ensinamentos satildeo peculiares ao Xenofonte-autor

e que eles satildeo dirigidos a um puacuteblico-leitor grego o que portanto lhes daria um

estatuto de novas formulaccedilotildees sobre o mundo No entanto ainda que essas verdades

sejam apreendidas e formuladas por Xenofonte e de algum modo inovadoras dentro

das ideias gregas e respondendo a questotildees do seu proacuteprio tempo dirigidas a um

puacuteblico contemporacircneo esta relaccedilatildeo estaacute em um niacutevel extradiegeacutetico e natildeo afeta a

questatildeo do tempo histoacuterico na mateacuteria narrativa O importante eacute que dentro da narrativa

em niacutevel intradiegeacutetico satildeo os mentores ou a instituiccedilatildeo educacional que passam a Ciro

os conhecimentos sobre o mundo em que Ciro se ampara adaptando-se a um

conhecimento jaacute formulado Eacute neste sentido que falamos de mundo fechado pois natildeo

podemos esquecer que Xenofonte ao criar a Ciropedia tinha em vista mais a sua

proacutepria eacutepoca do que a necessidade de contar ou recontar uma histoacuteria fiel aos fatos

Inclusive para Bakhtin (2002 p418) a essecircncia romanesca da Ciropedia manifesta-se

nessa modificaccedilatildeo do passado motivada por um interesse presente

A reflexatildeo a partir do grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico real parece nos

levar a uma profunda concepccedilatildeo da realidade enfocada no material narrativo e talvez

seja a base ideal para o estudo da mimese do gecircnero romanesco em suas formas

primevas A maneira peculiar de Xenofonte conduzir a narrativa biograacutefica deve-se em

muitos pontos ao manejo dessa categoria narrativa com andamentos pausas e elipses

que retardam ou avanccedilam a narrativa de um modo realista no sentido de uma mimese

verossiacutemil e criacutevel do tempo Com isso diferencia-se sua narrativa sensivelmente da

narrativa historiograacutefica cujo enfoque natildeo era a vida de um homem mas a vida de um

povo determinado e que enformava em especial Heroacutedoto uma espeacutecie de tempo

ciacuteclico

O romancista Tolstoi retomando a distinccedilatildeo aristoteacutelica entre poesia e histoacuteria

diz no prefaacutecio de Guerra e Paz

O historiador e o artista ao relatarem uma eacutepoca tecircm finalidades completamente diferentes [] A diferenccedila torna-se mais sensiacutevel e essencial quando se trata de descrever acontecimentos O historiador considera os resultados de um acontecimento o artista o proacuteprio acontecimento (1960 vol I pXI)

130

Na Ciropedia a ficccedilatildeo adentra o mundo histoacuterico enfocando acontecimentos da

vida privada em meio ao tumulto da guerra puacuteblica Aleacutem disso as batalhas em si

mesmas se satildeo importantes no todo da narrativa natildeo apresentam um enfoque especial

na narraccedilatildeo ao contraacuterio eacute justamente a preparaccedilatildeo para as batalhas os sentimentos

dos homens e os discursos antes das batalhas que marcam a obra de uma maneira

singular ldquoA Ciropedia natildeo eacute uma histoacuteria sobre coisas que aconteceram mas uma

narrativa sobre coisas que poderiam ter acontecido167rdquo (TATUM 1989 p69) O foco

natildeo estaacute no que aconteceu mas no modo como aconteceu A prova disso eacute que jaacute no

proacutelogo Xenofonte resume todas as conquistas de Ciro ou seja ao adentrarmos a

narrativa propriamente dita jaacute sabemos qual seraacute o fim dela Assim os banquetes e as

festas entre os soldados a camaradagem os casos particulares de inveja amor etc

entremeiam a obra e a enriquecem criando o efeito de pausa e retardamento da accedilatildeo

Aleacutem disso haacute pequenas narrativas secundaacuterias que se conectam com a narrativa

principal de Ciro nas quais se expressa o poder dos viacutecios desmedidos nos homens

uma vez que essas personagens satildeo os contrapontos exatos da figura de Ciro

desprovidos de uma educaccedilatildeo ideal satildeo dadas ao erro e revelam a sorte daqueles que

natildeo dominam suas paixotildees

Todos estes elementos ficcionais modernizam no sentido expresso por Bakhtin

a narrativa pois mais do que a fidelidade agrave histoacuteria Xenofonte estaacute preocupado com a

fidelidade ao ficcional didaacutetico e romanesco respondendo com isso a questotildees do seu

proacuteprio tempo Estes elementos dilatam a narrativa e enriquecem os fatos histoacutericos

dando a eles uma dimensatildeo mais humana que se presentifica para o leitor

45 Xenofonte educador

A moralidade expressa na Ciropedia de Xenofonte repercute a voz de Hesiacuteodo

em Os Trabalhos e Os Dias168 (1991 v295-297)

167 No Original The Cyropaedia is not a story about things that happened but an account of things that could happen 168 Traduccedilatildeo de Mary Lafer (1991)

131

e eacute bom tambeacutem quem ao bom conselheiro obedece mas quem natildeo pensa por si nem ouve o outro eacute atingido no acircnimo este pois eacute homem inuacutetil

A partir da figurativizaccedilatildeo de uma determinada vida a de Ciro o Velho

Xenofonte quer instruir seus leitores Natildeo podemos pois menosprezar o fato de que a

poesia na Greacutecia claacutessica tinha como funccedilatildeo a formaccedilatildeo de seus leitores O papel do

poeta-educador da Greacutecia nos revela uma percepccedilatildeo miacutestica da atividade literaacuteria que

ao lado dos sacerdotes era inspirado pelas musas para cantar a verdade e mesmo com a

secularizaccedilatildeo da linguagem no seacuteculo da filosofia a visatildeo do prosador como educador

parece ter se mantido Horaacutecio na sua Arte Poeacutetica nos fala que uma das funccedilotildees da

literatura eacute ensinar e se hoje perdemos essa percepccedilatildeo chegando mesmo a dizer que o

ato de leitura pode ser alienatoacuterio natildeo devemos esquecer-nos disso quando tratamos de

um texto da Antiguidade

Xenofonte afastado dos tempos das musas e dos cantos heroicos tem ainda em

seu acircmago o projeto de educador Se de um lado a Ciropedia ficccedilatildeo em prosa revela

como o homem ideal deve agir e liderar seu povo de outro a narrativa da vida de Ciro

garante ao autor o estatuto de saacutebio pois ela eacute a figurativizaccedilatildeo de suas proacuteprias ideias

As maacuteximas proferidas admoestam natildeo soacute as personagens mas tambeacutem os

interlocutores a respeitarem o homem e os deuses e a nunca extrapolar os limites da sua

liberdade A hyacutebris a desmedida que embeleza os palcos traacutegicos deve ser suprimida

para a felicidade da vida humana real A educaccedilatildeo proposta eacute uma educaccedilatildeo moralista

uma educaccedilatildeo da justiccedila e da obediecircncia Uma educaccedilatildeo que leva o homem agrave boa

compreensatildeo dos limites do humano

Procuramos demonstrar neste capiacutetulo que a preocupaccedilatildeo didaacutetica com que

Xenofonte reveste a narrativa ficcional cria estruturas narrativas que ainda hoje satildeo

determinantes para a acepccedilatildeo do romance de formaccedilatildeo ao menos em um sentido ldquoda

formardquo do Romance de Formaccedilatildeo Assim analisamos o que Jacobs (1989 apud MAAS

2000) denomina de experiecircncias tiacutepicas do heroacutei nos romances de formaccedilatildeo como o

afastamento da casa paterna a presenccedila de mentores a passagem por instituiccedilotildees

educacionais os erros de avaliaccedilatildeo da personagem principal e a visatildeo teleoloacutegica de

educaccedilatildeo Estes elementos estruturais natildeo aparecem de forma estaacutetica mas se

combinam em cenas bem organizadas e conduzem a evoluccedilatildeo da personagem principal

no decorrer da narrativa O heroacutei da Ciropedia portanto eacute uma ldquounidade dinacircmicardquo

132

(BAKHTIN 2010 p237) e se enquadra no tipo de personagem do romance de

formaccedilatildeo

Aleacutem disso buscamos refletir a respeito do grau de assimilaccedilatildeo do tempo

histoacuterico e demonstramos que a modalidade temporal da Ciropedia combina o tempo

biograacutefico com o tempo ciacuteclico idiacutelico Desse modo as aventuras pelas quais o heroacutei

passa satildeo uacutenicas e singulares poreacutem o tipo de desenvolvimento que a personagem

efetua na narrativa eacute um desenvolvimento tiacutepico do homem concebido como a

passagem natural do tempo na formaccedilatildeo do homem Tambeacutem averiguamos que as

informaccedilotildees culturais natildeo visam agrave fidelidade agrave histoacuteria mas a um projeto didaacutetico e que

por isso elas satildeo fictiacutecias Desse modo a Ciropedia moderniza o passado em virtude da

preocupaccedilatildeo com o presente O processo de modernizaccedilatildeo do passado se efetua pela

ficcionalizaccedilatildeo do material histoacuterico que eacute problematizado a partir da atualidade natildeo

da fidelidade agrave histoacuteria Por estas caracteriacutesticas nos parece acertada a classificaccedilatildeo da

Ciropedia como uma das formas embrionaacuterias do ldquoRomance de Formaccedilatildeordquo

133

5 Imagem e evoluccedilatildeo do heroacutei da Ciropedia

Neste capiacutetulo discutiremos sobre a evoluccedilatildeo da personagem Ciro na Ciropedia

e sua imagem dinacircmica conforme expressatildeo bakhtiniana (BAKHTIN 2010)

Compreendemos que por meio da anaacutelise das maacuteximas encontradas na tessitura

narrativa da obra de Xenofonte poderemos abalizar a tese jaacute defendida nos capiacutetulos

anteriores de que Ciro natildeo eacute uma personagem estaacutetica mas dinacircmica e evolutiva

Avaliaremos a forma como essas maacuteximas aparecem atentando-nos para o enunciador

o destinataacuterio e o contexto de enunciaccedilatildeo e como elas propiciam a formaccedilatildeo

propriamente dita dessa personagem O heroacutei evolutivo eacute uma das principais

caracteriacutesticas do romance de formaccedilatildeo ldquo[pois as] mudanccedilas por que passa o heroacutei

adquirem importacircncia para o enredo romanesco que seraacute por conseguinte repensado e

reestruturado []rdquo (BAKHTIN 2010 p237)

Segundo Bakhtin (2010) na configuraccedilatildeo da personagem a construccedilatildeo do

caraacuteter pode obedecer a duas tendecircncias a claacutessica e a romacircntica Fundamental para a

tendecircncia claacutessica eacute o valor artiacutestico do destino e neste caso a vida eacute somente a

realizaccedilatildeo daquilo que desde o iniacutecio jaacute fora determinado o curso de sua vida os

acontecimentos e a sua morte e mesmo a sua vida interior satildeo percebidos como

necessaacuterios e predeterminados pelo destino Em face da visatildeo de mundo da personagem

claacutessica o autor eacute dogmaacutetico e sua posiccedilatildeo eacutetica natildeo eacute contestada Na caracterizaccedilatildeo da

personagem romacircntica o caraacuteter da personagem eacute dotado de arbiacutetrio e inicitativa

axioloacutegica Os valores do destino natildeo podem servir para a caracterizaccedilatildeo da personagem

de modo definitivo e fundamental eacute a ideia pois ela determina a individualidade da

personagem ndash a personagem age segundo sua ideia Por isso a distacircncia entre autor e

personagem na caracterizaccedilatildeo da personagem romacircntica eacute menos estaacutevel do que a

distacircncia na personagem claacutessica O enfraquecimento desta posiccedilatildeo promove a

desintegraccedilatildeo da personagem Haacute portanto maior identificaccedilatildeo entre heroacutei e autor nas

personagens claacutessicas e o heroacutei torna-se um veiacuteculo de expressatildeo das proacuteprias ideias do

autor (BAKHTIN 2010 p158-167)

Na biografia e na variante romanesca da biografia a personagem eacute importante

como portadora de uma vida historicamente significativa ndash a biografia responde o que a

personagem fez ou o que ela viveu Poreacutem eacute na anaacutelise do caraacuteter que compreendemos

134

a personagem como um todo significantemente enformada pelos desiacutegnios do seu

criador a ponto de respondermos a pergunta ldquoquem erardquo a personagem (BAKHTIN

2010 p159)

Nas maacuteximas que povoam a narrativa da Ciropedia Xenofonte manifesta o

caraacuteter da personagem as suas preferecircncias de comportamento social seus anseios e

objetivos eacutetico-morais Neste sentido a maacutexima torna-se um objeto de caracterizaccedilatildeo

importante na construccedilatildeo da personagem No entanto por se tratar de uma personagem

claacutessica na acepccedilatildeo do termo de Bakhtin as maacuteximas manifestam tambeacutem o caraacuteter do

proacuteprio Xenofonte Natildeo eacute no entanto nosso anseio neste capiacutetulo analisar as maacuteximas

como uma possiacutevel descriccedilatildeo do pensamento de Xenofonte mas analisar as maacuteximas

como elas representam de fato a evoluccedilatildeo da personagem Ciro na narrativa

Analisaremos portanto as maacuteximas quanto ao seu contexto de enunciaccedilatildeo e

quanto ao enunciador e destinaacuterio procurando observar de que modo elas propiciam a

formaccedilatildeo da personagem uma vez que elas transmitem o caraacuteter da personagem

Faremos inicialmente alguma discussatildeo a respeito da estrutura formal da maacutexima a

fim de que nossa anaacutelise seja abalizada por observaccedilotildees linguiacutesticas

51 A maacutexima estrutura e conteuacutedo

O levantamento das maacuteximas formuladas na Ciropedia regulou-se observando

alguns pontos essenciais Em primeiro lugar vale ressaltar que por toda a obra impera

um tipo de discurso pedagoacutegico no qual satildeo articulados ensinamentos principalmente

de caraacuteter praacutetico tanto a respeito da arte militar e das coisas puacuteblicas quanto a respeito

da vida particular do homem Entretanto este tipo de discurso pedagoacutegico natildeo eacute em

essecircncia representado por maacuteximas e se utiliza de outros expedientes retoacutericos A

seleccedilatildeo portanto considerou o ponto de vista formal e soacute foram selecionados aqueles

discursos que estavam estruturados como verdadeiras maacuteximas Devemos primeiro

portanto estabelecer a maacutexima do ponto de vista formal (a relaccedilatildeo de sua estrutura e de

seu conteuacutedo) para podermos justificar a nossa anaacutelise

Os mais antigos poetas gregos incluiacuteam uma grande quantidade de expressotildees

que emitiam instruccedilotildees gerais em sua poesia estas expressotildees a partir do seacuteculo V aC

135

foram coletadas e chamadas de γνωμολογίαι (gnomologiai) coletacircneas de maacuteximas

que eram lidas nas escolas e usadas pelos retores Segundo Lardinois (1997 p214) na

poesia arcaica os poetas referiam-se a estes ldquoproveacuterbiosrdquo por meio de expressotildees como

ἔπος (epos) λόγος (logos) ou αἶνος (ainos) No curso do quinto e quarto seacuteculos

alguns novos termos para expressotildees proverbiais foram introduzidos na linguagem

grega παροίμια (paroimia) ὑποθήκη (hupotheke) ἀπόφθεγμα (apophthegma)

γνώμη (gnome)

A maacutexima (γνώμη em grego sententia em latim) segundo a Arte Retoacuterica (L

II XXI) de Aristoacuteteles (2005) eacute um meio pelo qual se expressa uma determinada

maneira de ver o mundo mas que natildeo se refere ao particular (τῶν καθrsquo ἕκαστων ton

kathrsquo ekaston) mas ao universal (ἀλλά καθόλου alla katholou) Este universal natildeo eacute

o universal em toda a sua extensatildeo mas o universal que tem por objeto as accedilotildees com os

quais ela se relaciona

Do ponto de vista de sua estrutura frasal a maacutexima eacute um entimema169

(ἐνθύμημα enthymema) abreviado Haacute na estrutura do entimema trecircs partes a

premissa (πρότασις protasis) a deduccedilatildeo (συλλογισμός syllogismos) e a conclusatildeo

(συμπέρασμα sumperasma) A maacutexima em geral corresponde apenas agrave conclusatildeo

do entimema estando ausente da sua forma tanto a premissa quanto a deduccedilatildeo poreacutem

a maacutexima soacute se viabiliza se a deduccedilatildeo for intuiacuteda na recepccedilatildeo da maacutexima (DUFEUR

1967 p37) Desse modo a maacutexima deve ser um discurso conciso no qual devem estar

ausentes as causas e os porquecircs do seu caraacuteter universal pois a explicaccedilatildeo tornaria a

maacutexima em entimema

Ainda segundo Aristoacuteteles as maacuteximas garantem tanto o prazer (χαρίς kharis)

aos ouvintes do discurso quanto o caraacuteter moral (ἠθικός ethikos) do orador O prazer

da maacutexima decorre do fato de que ldquo[] as pessoas ficam satisfeitas quando elas ouvem

coisas em termos gerais os quais elas compreenderam antes em um caso particularrdquo170

(ARISTOacuteTELES 2005 p210) Jaacute a eacutetica do orador relaciona-se ao fato de a emissatildeo

de maacuteximas conforme Aristoacuteteles ser adequada agraves pessoas mais velhas

169 O entimema eacute uma forma de silogismo ou argumentaccedilatildeo em que uma das premissas ou um dos argumentos fica subentendido Devido agrave sua concisatildeo o entimema facilita a expressatildeo do pensamento e pode incluir uma demonstraccedilatildeo ou uma refutaccedilatildeo 170 No original [] χαίρουσι δὲ καθόλου λεγομένων ἃ κατά μέρος προυπολαμβάνοντες

τυγχάνουσιν

136

(πρεσβυτέροις presbyterois) e experimentes (ἔμπειροῖς empeirois) ldquoDe maneira

que fazer uso de maacuteximas quando natildeo se atingiu tal idade eacute tatildeo pouco oportuno como

andar a contar histoacuterias Do mesmo modo fazecirc-lo sobre temas de que natildeo se tem

experiecircncia eacute uma parvoiacutece e uma falta de educaccedilatildeo171rdquo (ARISTOacuteTELES 2005

p211)

Roland Barthes (1974) em seu ensaio ldquoLa Rochefoucauld Reflexotildees ou

Sentenccedilas e Maacuteximasrdquo reflete a respeito da produccedilatildeo das maacuteximas que para ele

devem ser analisadas segundo o conteuacutedo semacircntico e os padrotildees estruturais A maacutexima

eacute um discurso moralizante condensado resumido a respeito da natureza humana Para

Barthes (1994) a maacutexima se estabelece dentro de uma estruturaccedilatildeo bastante controlada

que nada tem a ver com um discurso libertaacuterio uma vez que pressupotildee um conteuacutedo

padronizado e moral do comportamento humano No entanto haacute na maacutexima em virtude

de sua estrutura concisa um caraacuteter de espetaacuteculo que a aproxima da poesia172 e este

promove o prazer no espectador um prazer muito proacuteximo da contemplaccedilatildeo Para

Barthes a estrutura da maacutexima eacute visiacutevel pois a essecircncia da maacutexima eacute seu caraacuteter de

espetaacuteculo Desse modo haacute na maacutexima uma estrutura que sendo visiacutevel torna a

maacutexima facilmente reconheciacutevel Barthes posteriormente em seu ensaio analisa como

as maacuteximas produzidas por La Rochefoucauld satildeo construiacutedas por meio de uma

linguagem esteacutetica se utilizando de recursos tiacutepicos do discurso poeacutetico Portanto a

maacutexima eacute um estilo de discurso ligado agrave percepccedilatildeo do mundo que ajuiacuteza sobre o

comportamento humano e sob o qual transparece os valores eacuteticos e morais de uma

sociedade Seu caraacuteter conciso contribui para a expressividade da mensagem e a sua

expressividade garante seu caraacuteter mnemocircnico

Tanto Aristoacuteteles quanto Barthes apontam para o caraacuteter esteacutetico da maacutexima ou

seja as emoccedilotildees desenvolvidas e impulsionadas por meio da maacutexima no auditoacuterio-

leitor que recebe este tipo de discurso Aristoacuteteles no entanto retoma ainda o caraacuteter

didaacutetico do discurso proferido pela maacutexima e como seu efeito persuasivo depende do

caraacuteter tambeacutem do orador ndash o ensinamento seraacute recebido como verdade se o orador for

aceito como experiente em tal assunto As maacuteximas portanto natildeo soacute emitem um

preceito moral decorrente de se pretender ldquonorma reconhecida do conhecimento do

171 No original ὥστε τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ τὸ

μυθολογεῖν περὶ δὲ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτον σημεῖον δὲ ἱκανόν (ARISTOTE 1967 1395a5)1395a5 172 ldquo[] como se sabe existe uma afinidade especial entre o verso e a maacutexima a comunicaccedilatildeo aforiacutestica e a comunicaccedilatildeo divinatoacuteriardquo (Barthes 1974 p12)

137

mundordquo (LAUSBERG 1966 p235) mas por emitir um preceito moral em uma forma

geral e declarar as preferecircncias do orador revelam o proacuteprio caraacuteter do orador Desse

modo ldquotodas as maacuteximas satildeo honestasrdquo (DUFEUR 1967 p38)

Linguisticamente as maacuteximas satildeo formadas em portuguecircs de tempos verbais

mais ou menos precisos o presente do indicativo ou tempos do subjuntivo Jaacute na

liacutengua grega estas maacuteximas vecircm expressas no chamado ldquoaoristo gnocircmicordquo que

traduzimos em geral pelo presente Agraves vezes tambeacutem encontramos frases que se

iniciam com expressotildees como por exemplo ἀναγκαῖον ἐστιν (ananksion estin) ldquoeacute

necessaacuteriordquo ou δίχαίον ἐστιν (dikhaion estin) ldquoeacute justordquo ou de χρή (khre) ldquoeacute

necessaacuteriordquo seguido de infinitivos e que tambeacutem se constituem como maacuteximas no

texto grego O importante eacute que tanto em grego quanto em portuguecircs os tempos

verbais nas maacuteximas apresentam um caraacuteter temporal que natildeo se mede em uma linha

cronoloacutegica mas que se estende no tempo como uma verdade eterna e atemporal

Conforme Aristoacuteteles as maacuteximas referem-se sempre a atos ndash que satildeo expressos

em discurso ndash e dessa relaccedilatildeo iacutentima manteacutem seu caraacuteter universal Eacute portanto um

discurso que se refere a outro discurso e que por resumiacute-lo manteacutem um caraacuteter

metadiscursivo A estrutura da maacutexima por exemplo estaacute presente no gecircnero da faacutebula

No livro A tradiccedilatildeo da Faacutebula ndash de Esopo a La Fontaine de Maria Celeste C Dezotti

(2003) a autora discute os elementos estruturais da faacutebula a faacutebula eacute um ato de fala

que concretizado numa narrativa apresenta uma atitude de ensinamento (recomendar

mostrar censurar aconselhar etc) de um enunciador para um leitor Analisando as

faacutebulas de Esopo observa-se que estruturalmente ela eacute formada por duas instacircncias

textuais a instacircncia narrativa e a instacircncia epimiacutetica a primeira eacute o discurso narrativo

propriamente dito ou seja personagens ndash em geral animais antropomorfizados ndash

concretizam accedilotildees enquanto que a segunda constitui na interaccedilatildeo de dois outros

discursos um interpretativo ou moral que vai mostrar ao leitor uma maacutexima que

interpreta a narrativa e um metalinguiacutestico que vai informar a accedilatildeo que o enunciador da

faacutebula estaacute realizando (por exemplo os discursos ldquoA faacutebula dizrdquo ou ldquoA faacutebula mostrardquo)

Este uacuteltimo nem sempre estaacute presente tambeacutem o discurso interpretativo agraves vezes estaacute

ausente na estrutura da faacutebula ficando portanto ao cargo do leitor a interpretaccedilatildeo da

narrativa da faacutebula Outra instacircncia da faacutebula encontrada sobretudo nas faacutebulas de

Fedro eacute o promiacutetio este se difere do epimiacutetio pela posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave narrativa pois

138

enquanto o epimiacutetio vem expresso apoacutes a narrativa o promiacutetio vem expresso antes da

narrativa

A faacutebula ldquoO Cavalo e o Asnordquo de Esopo (2003) nos serviraacute de exemplo Na

primeira parte da faacutebula narra-se a histoacuteria de um asno que pede ao cavalo que o ajude

a carregar o pesado fardo que lhe competia O cavalo nega a ajuda e o asno

extremamente cansado acaba morrendo Por fim o dono dos animais pega toda a carga

que o asno carregava e daacute para o cavalo carregar ldquoA faacutebula mostra que se os grandes

forem companheiros dos pequenos ambos viveratildeo satildeos e salvosrdquo (DEZOTTI 2003)

Observemos que a maacutexima apresenta-se intimamente vinculada agrave narrativa e que esta

figurativiza em um acontecimento particular a verdade expressa na maacutexima geral vaacutelida

para outras circunstacircncias A narraccedilatildeo na faacutebula funciona como a deduccedilatildeo do

entimema pois ela prepara o espiacuterito do leitor para a verdade da maacutexima A maacutexima

portanto sendo uma reflexatildeo sobre o comportamento geral dos homens sempre se

refere a accedilotildees particulares

Haacute portanto um viacutenculo inerente entre o conteuacutedo da maacutexima e o conteuacutedo da

narrativa As maacuteximas de La Rochefoucauld por exemplo analisadas por Barthes

(1994) natildeo estatildeo vinculadas a esta estrutura fabular pois natildeo apresentam uma narrativa

que figurativize a maacutexima geral No entanto mesmo dissociada de qualquer contexto

textual a maacutexima sempre se refere a outro discurso que eacute presumido pelo ouvinte da

maacutexima Este outro discurso que recupera pela linguagem os atos valida a maacutexima daacute

agrave maacutexima o exemplo singular da verdade geral que ela expressa

As maacuteximas portanto apresentam-se como estruturas metalinguiacutesticas que

desenvolvem seu sentido a partir de uma referecircncia seja narrativa seja argumentativa

Natildeo podemos portanto ao tratar das maacuteximas da Ciropedia deixar de pensar nessa

relaccedilatildeo das maacuteximas com os atos ndash expressos pela linguagem ndash praticados pelas

personagens Assim acreditamos que dentro da narrativa constroacutei-se uma espeacutecie de

estrutura fabular na qual tais maacuteximas repercutem ou ecoam outras passagens da

narrativa pois com elas as maacuteximas estatildeo necessariamente e intimamente ligadas

Isso nos leva a um segundo ponto de nossa anaacutelise que diz respeito ao conteuacutedo

das maacuteximas levantadas na Ciropedia Por se tratar de um enredo que podemos chamar

de beacutelico cujo tema principal eacute a arte do liacuteder ideal podemos distinguir dois tipos de

maacuteximas de acordo com o conteuacutedo proferido por elas as maacuteximas de guerra e as

maacuteximas gerais As maacuteximas gerais dizem respeito ao comportamento humano em

qualquer circunstacircncia natildeo se limitando ao contexto da guerra ainda que natildeo o exclua

139

de sua anaacutelise por isso muitas vezes nas maacuteximas de guerra temos sintagmas como

ldquoestando em guerrardquo ldquona guerrardquo que delimitam o terreno em que a maacutexima eacute vaacutelida

Aleacutem disso devemos averiguar se as maacuteximas proferidas correspondem a accedilotildees

expressas na narrativa a fim de que as maacuteximas sejam recebidas como um

conhecimento verdadeiro Portanto deve-se ter em mente que as maacuteximas na Ciropedia

correspondem a accedilotildees representadas por toda a narrativa mas nem sempre ela estaacute

relacionada de modo claro Neste sentido devemos averiguar o contexto da locuccedilatildeo da

maacutexima interpretando o discurso da maacutexima como uma espeacutecie de epimiacutetio do discurso

da faacutebula cujo sentido soacute se pode abranger tendo em mente o contexto referencial

O terceiro ponto de nossa anaacutelise eacute contemplar o locutor e o destinataacuterio das

maacuteximas proferidas Como nosso intuito eacute a anaacutelise da personagem Ciro e demonstrar

como ela mostra-se evolutiva eacute importante observar quando Ciro passa a se utilizar de

maacuteximas quais maacuteximas ele profere e quais satildeo os seus destinataacuterios Desse modo

reagrupamos as maacuteximas de guerra e as maacuteximas gerais em outros trecircs grupos maacuteximas

proferidas por Ciro maacuteximas proferidas pelo narrador e maacuteximas proferidas por

outra personagem

52 O heroacutei-saacutebio

Observemos a seguir o quadro de ocorrecircncias das maacuteximas encontradas na

Ciropedia de Xenofonte neste quadro procuramos dividir as maacuteximas tanto pelo seu

conteuacutedo (maacuteximas de guerra e maacuteximas gerais) quanto pelos locutores que

proferem as maacuteximas (o narrador Ciro ou alguma personagem secundaacuteria)

Maacuteximas de guerra Maacuteximas gerais

Narrador 7 11

Ciro 22 22

Personagem secundaacuteria 7 25

Quadro 1 Maacuteximas da Ciropedia

140

Ciro ao todo formula 44 maacuteximas enquanto o narrador formula 18 e todas as

outras personagens em conjunto formulam 32 maacuteximas Entretanto as personagens

secundaacuterias satildeo as que mais formulam maacuteximas gerais totalizando 25 Os nuacutemeros

apresentados no quadro demonstram natildeo soacute a sapiecircncia com que Ciro eacute representado na

Ciropedia mas tambeacutem demonstra o importante papel que as personagens secundaacuterias

tecircm na narrativa de Xenofonte Conforme James Tatum (1989 p68) todas as

personagens tecircm alguma funccedilatildeo pedagoacutegica na obra pois elas apresentam situaccedilotildees-

modelos para que ele liacuteder-modelo as resolva Xenofonte segundo Tatum (1989)

inventa e adapta personagens que satildeo invocadas para servir como suacuteditos ideais de um

priacutencipe que ele mesmo inventou para exemplificar um liacuteder ideal Os encontros com

esses personagens ficcionais satildeo a educaccedilatildeo de Ciro

No entanto nem sempre as maacuteximas proferidas configuram-se como elemento

de saber verdadeiro (ao menos para o enredo da Ciropedia) Algumas vezes as maacuteximas

formuladas satildeo contestadas e negadas pela proacutepria narrativa que apresenta um desfecho

que contradiz a maacutexima formulada em geral essas maacuteximas contestadas satildeo proferidas

pelas personagens secundaacuterias Nesse contexto haacute uma reformulaccedilatildeo de uma verdade

que Ciro e principalmente a narrativa demonstram ser falsa ndash uma das funccedilotildees das

maacuteximas segundo Aristoacuteteles (2005) eacute contestar o senso comum apresentar uma nova

forma de ver aquilo que a tradiccedilatildeo popular consagrara Como nosso interesse de anaacutelise

eacute a personagem de Ciro comentaremos das personagens secundaacuterias apenas aquelas

maacuteximas que de algum modo ou revelam a sapiecircncia de Ciro ou proferidas por outras

personagens satildeo importantes na formaccedilatildeo e evoluccedilatildeo da personagem Ciro Antes

analisaremos o contexto em que Ciro profere as maacuteximas tanto as maacuteximas de guerra

quanto as maacuteximas gerais

521 Quem fala quem ouve o contexto das maacuteximas na Ciropedia

O contexto em que as maacuteximas estatildeo inseridas na narrativa eacute principalmente o

contexto dos preparativos das batalhas Analisando as ocorrecircncias percebemos que a

maior parte das maacuteximas de guerra proferidas por Ciro se localiza imediatamente antes

da narraccedilatildeo das principais campanhas seja em discurso para seus soldados seja em

debates com seus principais aliados Tambeacutem as maacuteximas gerais se entremeiam nestes

141

contextos Vamos analisar algumas destas ocorrecircncias para observar os efeitos que as

maacuteximas resultam no discurso de Ciro interpretando uma ocorrecircncia assumimos que

ela apresenta o caraacuteter geral das ocorrecircncias Seria muito fastidioso a anaacutelise total das

maacuteximas proferidas Procuraremos no entanto efetuar a anaacutelise mais completa

possiacutevel refletindo sobre o contexto os aspectos formais e conteudistas das maacuteximas

Selecionamos dois contextos de enunciaccedilatildeo das maacuteximas o diaacutelogo com outras

personagens e o discurso para os soldados

a-) diaacutelogo com as outras personagens

No Livro 52 haacute um jantar em que Ciro se reuacutene com Goacutebrias um varatildeo assiacuterio

que de boa vontade se rendera a ele Goacutebrias (Cirop 46 1-11) era um dos nobres da

Assiacuteria e era muito amigo do antigo rei um homem bom e justo No entanto apoacutes a

morte do rei o poder passou para as matildeos de seu filho um homem vaidoso e injusto

que matara o filho de Goacutebrias durante um exerciacutecio de caccedila segundo Goacutebrias o atual

rei natildeo suportou ver-se ultrapassado nas habilidades de caccedila pelo filho de Goacutebrias que

abatera duas feras enquanto ele natildeo conseguira matar nenhuma e natildeo contendo sua

raiva e inveja cravou uma lanccedila no peito do jovem que iria se casar com a filha do rei

O assassino jamais mostrou arrependimento pelo que fizera enquanto que ldquoO pai dele

em verdade teve compaixatildeo por mim e era visiacutevel que se atormentava por meu

infortuacuteniordquo173 (Cirop 465) Eacute interessante o fato de ele acrescentar ldquoEu de fato se

ele estivesse vivo jamais viria para junto de ti para causar mal a ele pois recebi dele

muitas demonstraccedilotildees de amizaderdquo174 (Cirop 466) Mas agora com o poder nas matildeos

do filho ele nunca poderia ser amigo e aliado dele entatildeo lhe vinha como suplicante

pedir-lhe para ser seu vingador e tambeacutem adotar Ciro como filho Goacutebrias se mostra

extremamente uacutetil a Ciro principalmente na campanha contra a Assiacuteria e na tomada da

Babilocircnia onde Goacutebrias vinga seu filho matando o rei Assiacuterio (Livro VII)

No referido jantar do Livro 52 apoacutes apreciar a simplicidade dos costumes dos

persas Goacutebrias narra a Ciro a histoacuteria de Gadatas outro assiacuterio que fora castigado pela

inveja do Rei Assiacuterio Entretanto quando Ciro pergunta a Goacutebrias se era possiacutevel que

Gadatas se aliasse a eles Goacutebrias apesar de afirmar diz a Ciro que eacute muito difiacutecil

173 No original Ὅ γε μὴν πατήρ αὐτοῦ καὶ συνῴκρισέ με καὶ δῆλος ἦν συναχθόμενός μοι τῇ

συμφορᾷ (Cirop 465) 174 No original Ἐγώ οὖν εἰ μὲν ἔζη ἐκεῖνος οὐκ ἄν ποτε ἦλθον πρός σὲ ἐπὶ τῷ ἐκείνου κακῷ˙

πολλὰ γὰρ φίλια καὶ ἔπαθον δὴ ὑπrsquo ἐκείνου καὶ ὑπηρέτησα ἐκείνῳ (Cirop 466)

142

encontrar Gadatas pois para se chegar a ele ldquoera necessaacuterio passar ao lado da

Babilocircniardquo175 (Cirop 5229) e haveria o risco de enfrentar um exeacutercito muito maior do

que o de Ciro (Cirop 5229) Por isso Goacutebrias aconselha a Ciro que seja cauteloso na

marcha Ciro no entanto afirma que ao contraacuterio do que pensa Goacutebrias o melhor eacute ir

rumo agrave Babilocircnia pois ldquoali estaacute o melhor dos inimigosrdquo176 (Cirop 5231) A partir

disso Ciro procura convencer Goacutebrias da verdade de suas palavras para ele se as

numerosas tropas inimigas natildeo virem os soldados de Ciro crendo que natildeo aparecem por

terem medo deles tornar-se-atildeo extremamente corajosos e temiacuteveis no entanto se os

persas avanccedilarem ainda encontrariam os inimigos sofrendo dos males da uacuteltima

batalha Ciro resume a sua reflexatildeo com uma maacutexima177

Εὖ δrsquo ἴσθι ἔφη ὧ Γωβύα ἵνα καὶ τοῦτrsquo εἰδῇς οἱ πολλοὶ

ἄνθρωποι ὅταν μὲν θαρρῶσιν ἀνυπόστατον τὸ φρόνημα

παρέχονται˙ ὅταν δὲ δείσωσιν ὅσῳ ἄν πλείους ὦσι τοσούτῳ

μείζω καί ἐκπεπληγμένον μᾶλλον τὸν φόβον κέκτηνται

Sabes bem Goacutebrias jaacute que deveis saber disso que os homens numerosos quando satildeo tomados de coragem mostram uma arrogacircncia irresistiacutevel poreacutem quando satildeo tomados de pavor quatildeo numerosos sejam tanto maior e mais perturbado o medo que sentem (Cirop 5233)

Apoacutes proferir esta maacutexima Ciro desenvolve uma argumentaccedilatildeo em que procura

explicar a verdade desta maacutexima primeiro argumenta que em uma multidatildeo eacute difiacutecil

dissuadir o medo por meio de palavras em seguida demonstra a Goacutebrias que em todas

as batalhas decorridas natildeo foi o nuacutemero de soldados que decidiu as batalhas mas a

competecircncia dos exeacutercitos e desse modo natildeo haveria razatildeo a temer

Inicialmente analisemos a maacutexima com relaccedilatildeo ao seu contexto de locuccedilatildeo ou

seja o discurso de Ciro a Goacutebrias Goacutebrias havia levantado um problema a Ciro (como

atravessar a Babilocircnia e chegar a Gadatas) e o aconselhara a ser cauteloso na marcha

em virtude do tamanho do exeacutercito inimigo Ciro no entanto argumenta o contraacuterio e

procura convencer seu ouvinte ele inicia seu discurso a partir de uma reflexatildeo de um

discurso argumentativo em que revela sua concepccedilatildeo estrateacutegica na qual o poder estaacute

175 No original παρrsquo αὐτήν τὴν Βαβυλῶνα δεῖ παριέναι (Cirop 5229) 176 No original ἐκεῖ τῶν πολεμίων ἐστὶ τό κράτιστον (Cirop 5231) 177 Na transcriccedilatildeo que efetuaremos das maacuteximas colocaremos em itaacutelico o bloco discursivo que representa o conceito da maacutexima segundo a terminologia de Barthes (1994)

143

intimamente relacionado ao ato de ver (εἰδεῖν eidein)178 Conforme Harman (2008

p81 traduccedilatildeo nossa) na visatildeo de Ciro

Poder natildeo eacute soacute baseado no real (o exeacutercito eacute grande ou pequeno) mas no como ele eacute realmente visto precedentemente um pequeno exeacutercito foi visto de um modo que lhe deu poder enquanto que agora um grande exeacutercito se ele for visto pareceraacute (e tambeacutem seraacute) fraco Na correccedilatildeo e reformulaccedilatildeo do problema da disponibilidade visual do exeacutercito parece que a abertura para a observaccedilatildeo deve ser rigorosamente policiada a resposta do contemplador natildeo eacute estaacutetica mas assunto para uma contiacutenua reinterpretaccedilatildeo179

Na anaacutelise de Harman observamos que a imagem de poder natildeo estaacute conforme a

Ciropedia nos eventos em si mas eacute construiacuteda e representada de acordo com a intenccedilatildeo

de Ciro As relaccedilotildees de poder satildeo produzidas em um complexo e nuanccedilado encontro

entre espectador e espetaacuteculo (HARMAN 2008 p91) A interpretaccedilatildeo de Harman nos

parece acertada e a maacutexima proferida por Ciro parece nos indicar justamente a

consciecircncia da expectativa que Ciro tem da reaccedilatildeo do inimigo diante do seu exeacutercito e

como Ciro procura controlar a reaccedilatildeo do inimigo A maacutexima portanto natildeo estaacute isolada

no discurso mas estaacute intimamente relacionada com a reflexatildeo inicial ela a resume e a

torna manifesta de um comportamento geral Aleacutem disso pelo seu caraacuteter geral e

atemporal o uso desta estrateacutegia discursiva por Ciro eacute fundamental para o

convencimento de Goacutebrias Na sequecircncia do discurso Ciro procura justificar a maacutexima

natildeo por meio de uma narrativa hipoteacutetica poreacutem mediante o passado imediato

relembrando os sucessos de sua armada Os atos ndash as vitoacuterias nas batalhas ndash tornam

manifesta a verdade da maacutexima porque a experiecircncia torna-se um elemento de

validaccedilatildeo da maacutexima O problema levantado por Goacutebrias eacute portanto resolvido e eles

partem em marcha de acordo com os desiacutegnios de Ciro A narrativa demonstraraacute que

Ciro tinha razatildeo em seu discurso Estamos portanto diante de uma maacutexima que

aprendida pelo passado revela os acontecimentos futuros

Analisemos agora a maacutexima xenofonteana anteriormente citada do ponto de

vista estrutural e semacircntico O primeiro bloco semacircntico (Sabes bem Goacutebrias jaacute que

deveis saber disso) constitui o que Lardinois chama de tying phrase um discurso 178 Para uma anaacutelise das relaccedilotildees de visatildeo e poder na Ciropedia cf Harman R Viewing Power and interpretation in Xenophonrsquos Cyropaedia 2008 p69-91 179 No original Power is not only based in the actual (is the army large or small) but on how actual is seen previously a small army was seen in a way which gave it Power whereas now a big army If it is seen will seem (and therefore also be) weak In the restatement and reformulation of the problem of the armyrsquos visual availability it appears that openness to observation must be rigorously policed the response of the viewer is not static but subject to continual reinterpretation (HARMAN 2008 p81)

144

introdutoacuterio da maacutexima que ldquosinaliza o status do discurso seguinte como uma

explicaccedilatildeo para aquilo que o precederdquo180 (LARDINOIS 1997 p219 traduccedilatildeo nossa)

Em geral na liacutengua grega nos tying phrase haacute a recorrecircncia dos verbos φημί (phemi

dizer) ou οἴδα (oida saber) que datildeo ao orador muita responsabilidade para o que ele

diz Estes verbos satildeo tipicamente usados por um falante superior a um inferior ou por

aquele que quer clamar tal superioridade (LARDINOIS 1997 p220) Na maacutexima

proferida por Ciro o uso do verbo οἴδα reclama a seu locutor que ele jaacute compartilhe do

saber expresso na maacutexima A frase ἵνα καὶ τοῦτrsquo εἰδῇς (jaacute que deveis saber disso) que

muitos tradutores preferem excluir sob a justificativa de que se trata de uma

redundacircncia181 eacute na verdade uma peccedila importante no jogo discursivo incitado por

Ciro uma vez que conduz Goacutebrias a aceitar passivamente a verdade que seraacute expressa

na maacutexima O uso do verbo oida no subjuntivo passado na forma de eideis implica que

Goacutebrias deveria ser conhecedor desta verdade e neste momento da conversaccedilatildeo

reconhececirc-la negar seu conhecimento de algum modo eacute se colocar abaixo de Ciro

Ademais esse acordo taacutecito entre Ciro e Goacutebrias estabelecido pelo jogo

semacircntico do uso do verbo oida nos parece indicar que esta maacutexima eacute assumida como

um conhecimento que faz parte de uma tradiccedilatildeo popular formulada para aleacutem deste

contexto em que ela eacute proferida

O segundo bloco semacircntico (os homens numerosos quando satildeo tomados de

coragem mostram uma arrogacircncia irresistiacutevel poreacutem quando satildeo tomados de pavor quatildeo

numerosos sejam tanto maior e mais perturbado o medo que sentem) eacute a maacutexima

propriamente dita ou o conceito que transforma a maacutexima em espetaacuteculo (BARTHES

1974 p16) O conceito eacute sempre submetido a uma relaccedilatildeo pelos termos principais nele

expressos o estado mais elementar desta relaccedilatildeo eacute a comparaccedilatildeo (a maacutexima confronta

dois objetos propondo uma relaccedilatildeo quantitativa entre ambos) aleacutem da comparaccedilatildeo haacute

o estado de equivalecircncia (esta conexatildeo natildeo eacute definida em termos de quantidade mas de

essecircncia procura-se compreender qual a verdadeira identidade do termo analisado) o

terceiro tipo de estado de relaccedilatildeo do conceito eacute a relaccedilatildeo de identidade deceptiva

(neste caso haacute um projeto de dessacralizar o conceito procurando estabelecer que o

conceito natildeo passa de)

180 No original signal the status of the succeeding discourse as an explanation of what preceded it (LARDINOIS 1997 p219) 181 Cf nota 1 da paacutegina 97 da traduccedilatildeo de Marcel Bizos (1967)

145

Segundo o meacutetodo de anaacutelise de Barthes (1974) podemos compreender melhor

estas relaccedilotildees analisando os tempos fortes e tempos fracos que constituem a sintaxe

da maacutexima Os tempos fortes satildeo as substacircncias ou essecircncias das maacuteximas em geral

substantivo Seu caraacuteter indica o conceito que a maacutexima procura definir e os termos

com os quais a maacutexima define o conceito Jaacute os tempos fracos satildeo os termos

instrumentais ou relacionais que estabelecem as relaccedilotildees sintaacuteticas da maacutexima

A maacutexima que estamos analisando apresenta cinco tempos fortes muitos

homens (πολλοὶ ἄνθρωποι polloi anthropoi) tomados de coragem (θαρρῶσιν

tharrosin) arrogacircncia (φρόνημα fronema) tomados de pavor (δείσωσιν deisosin)

medo (φόβον fobon) e dois tempos fracos quando poreacutem quando (ὅταν μὲν

ὅταν δὲ) Os tempos fracos conduzem nosso modo de ler o texto estabelecendo a

sintaxe do conceito no caso formulando uma antiacutetese (quando poreacutem quando) jaacute

os tempos fortes satildeo os termos que determinam a substacircncia da maacutexima no caso e

revelam que tipo de relaccedilatildeo semacircntica se estabelece no conceito Temos nesta maacutexima a

relaccedilatildeo de comparaccedilatildeo o primeiro termo polloi anthropoi eacute o sujeito da maacutexima o

termo que a maacutexima procura definir Eacute este termo que serve de referecircncia para os outros

termos fortes tharrosin fronema deisosin fobon (ser tomado de coragem e arrogacircncia

ser tomado de pavor e medo) Estes quatro termos satildeo confrontados e o resultado de tal

confronto expressa a definiccedilatildeo do primeiro termo Assim estes termos constituem os

verdadeiros esteios da relaccedilatildeo de antiacutetese desse modo o primeiro termo eacute o sujeito da

maacutexima enquanto que os outros termos do tempo forte satildeo seus predicados que o

qualificam

Aleacutem disso a maacutexima eacute construiacuteda de modo preciso com a ideia de oposiccedilatildeo

sendo repetida pelas estruturas linguiacutesticas marcando a antiacutetese formulada pela

maacutexima Aleacutem da oposiccedilatildeo dos tempos fracos haacute a oposiccedilatildeo morfossintaacutetica

representada a-) pelos verbos na terceira pessoal do plural do subjuntivo (tharrosin

deisosin) b-) pelos verbos na terceira pessoa do plural do indicativo (parekhontai

kektentai) c-) os complementos verbais e seus adjuntos no acusativo estas repeticcedilotildees

reforccedilam a antiacutetese e criam o efeito de espetaacuteculo da maacutexima Construiacuteda desse modo

a maacutexima estetiza o discurso do orador e torna-o mais convincente

Ao observarmos as outras ocorrecircncias na Ciropedia em que Ciro profere

maacuteximas em diaacutelogos com outras personagens percebemos que elas satildeo formuladas

com o objetivo de Ciro convencer seus aliados sobre determinado ponto Eis alguns

146

exemplos no Livro 3319 Ciro dialoga com Ciaxares a respeito da necessidade de

iniciar o combate contra os Assiacuterios imediatamente e entatildeo formula a maacutexima

Conforme meu pai sempre dizia tu dizes e os outros todos estatildeo de acordo que as

batalhas satildeo decididas mais pelos espiacuteritos do que pela forccedila dos corpos 182ldquo no Livro

3350 apoacutes o persa Crisantas afirmar a necessidade de Ciro exortar seus soldados Ciro

o rebate afirmando que ldquoNenhuma exortaccedilatildeo por mais bela que seja produziraacute em um

dia ouvintes corajosos que jaacute natildeo sejam corajososrdquo 183 O interessante desta maacutexima eacute

que ela eacute proferida logo apoacutes o narrador nos apresentar pela primeira e uacutenica vez um

discurso do rei Assiacuterio com o qual ele tenta incutir coragem em seus soldados Os

rumores dos discursos do rei chegaram aos soldados persas e o pedido de Crisantas

demonstra o temor que os rumores causavam nas tropas Ciro que ao longo de toda

obra discursa aos seus soldados buscando incentivaacute-los e exortaacute-los neste momento

relembra a Crisantas que os belos discursos natildeo decidiratildeo a batalha mas o fato de os

persas estarem preparados para a batalha pois foram educados em um sistema que

previa a formaccedilatildeo de soldados exemplares no Livro 539 Ciro dialoga com Goacutebrias a

respeito de Gadatas e da necessidade de tornar este assiacuterio seu aliado pois ldquoNa guerra

nenhuma coisa melhor se pode fazer aos amigos do que fingir ser seu inimigo nem

mais mal aos seus inimigos do que fingir ser seu amigordquo184 no Livro 5511 Ciro se

utiliza de uma maacutexima procurando dissuadir as criacuteticas de seu tio Ciaxares que

enciumado das conquistas de Ciro acreditava que este desejava usurpar-lhe a soberania

da Meacutedia Ciro contesta os temores de Ciaxares e critica o modo com que ele estava

tratando seus subalternos medos e lhe lembra que ldquoFatalmente quem aterroriza a

muitos muitos inimigos produz quem a todos se mostrar violento ao mesmo tempo

todos se lanccedilam em concoacuterdia contra elerdquo185 na sequecircncia no Livro 5541 jaacute desfeita a

sua animosidade Ciaxares convoca Ciro para jantar poreacutem este o admoesta a convocar

tambeacutem os principais aliados pois ldquoQuando imaginam que satildeo negligenciados

enquanto os bons soldados tornam-se muito mais covardes os maus soldados tornam-

182 No original ltὡςgt καί ὁ πατὴρ αἰεὶ λέγει καὶ σύ φῄς καί οἱ ἄλλοι δὲ πάντες μολογοῦσιν ὡς

αἱ μάχαι κρίνονται μᾶλλον ταῖς ψυχαῖς ἤ ταῖς τῶν σωμάτων ῥώμαις (Cirop 3319) 183 No original οὐδεμία γάρ οὕτως ἐστί καλή παραίνεσις ἤτις τοὺς μὴ ὄντας ἀγαθοὺς

αὐθημερὸν ἀκούσαντας ἀγαθοὺς ποιήσει(Cirop 3350) 184 No original οὔτε γὰρ ἃν φίλους τις ποιήσειεν ἅλλως πως πλείω ἀγαθά ἐν πολέμῳ ἤ

ηολέμιος δοκῶν εἶναι οὕτrsquo ἄν ἐχθρούς πλείω τις βλάψειεν ἄλλως πως ἢ φίλος δοκῶν εἶναι (Cirop 539) 185 No original Ἀνάγκη γάρ διὰ τό πολλούς μέν φοβεῖν πολλοὺς ἐχθροὺς ποιεῖσθαι διὰ δὲ

τό πᾶσιν ἄμα χαλεπαίνειν πᾶσιν αὐτοῖς ὁμόνοιαν ἐμβάλλειν (Cirop 5511)

147

se muito mais insolentesrdquo186 no Livro 7118 Ciro em diaacutelogo com Abradatas procura

incentivaacute-lo agrave batalha afirmando que se vencerem a batalha todos diratildeo doravante que

ldquoNada eacute mais proveitoso do que a coragemrdquo187 no Livro 7211 na cena em que Ciro se

encontra com Creso que analisamos no Capiacutetulo 3 de nossa Dissertaccedilatildeo Ciro discute

com Creso os aspectos negativos da praacutetica do saque pois no saque ldquoEu sei bem que os

mais covardes levariam vantagemrdquo 188 Esta eacute a uacutenica passagem da Ciropedia em que

Ciro dialoga com algum inimigo

Essas satildeo algumas maacuteximas que Ciro formula em diaacutelogo com outras

personagens da trama Em todas essas ocorrecircncias Ciro se utiliza das maacuteximas para

convencer seus interlocutores da verdade de suas palavras estabelecendo desse modo

um niacutetido contraste entre a sua sabedoria e a de seus interlocutores O uso da maacutexima

reflete a posiccedilatildeo de superioridade de Ciro com relaccedilatildeo aos seus interlocutores uma vez

que a sequecircncia da narrativa demonstra que Ciro estava com a razatildeo Como afirma Ciro

a Ciaxares ldquoQuando eacute preciso persuadir aquele que consegue o maior nuacutemero de

concordantes para noacutes justamente deve ser distinguido como o melhor orador e o mais

eficazrdquo189 (Cirop 5546) e Ciro para ser o melhor na arte de persuadir se utiliza das

maacuteximas com recorrecircncia

b-) discurso para os soldados

Passemos agora a analisar um segundo caso quando Ciro dirige-se a seus

soldados em longos discursos A primeira diferenccedila entre estas ocorrecircncias e as

anteriores e que legitima a separaccedilatildeo que fizemos em nossa anaacutelise eacute a posiccedilatildeo do

interlocutor no discurso No caso do diaacutelogo com outras personagens noacutes temos um

diaacutelogo em que as duas instacircncias (locutorinterlocutor) estatildeo claramente definidas e

posicionadas participantes ativos do diaacutelogo Aleacutem disso e por isso abre-se a

perspectiva de um contato dialoacutegico real no qual as outras personagens podem

discordar das formulaccedilotildees de Ciro A proacutepria aceitaccedilatildeo por parte das personagens

secundaacuterias das formulaccedilotildees de Ciro o que em geral ocorre eacute em si tambeacutem um

186 No original ἀμελεῖσθαι δὲ δοκοῦντες στρατιῶται οἱ μὲν ἀγαθοὶ πολὺ ἀθυμότεροι

γίγνονται οἱ δὲ πονηροὶ πολὺ ὑβριστότεροι (Cirop 5541) 187 No original μηδὲν εἶναι κερδαλεώτερον ἀρετῆς (Cirop 7118) 188 No original εὖ οἶδ ὅτι οἱ πονηρότατοι πλεονεκτήσειαν ἄν (Cirop 7211) 189 No original ὅταν πεῖσαι δέῃ ὁ πλείστους ὁμογνώμονας ἡμῖν ποιήσας οὗτος δικαίως ἂν

λεκτικώτατός τε καὶ πρακτικώτατος κρίνοιτο ἂν εἶναι (Cirop 5546)

148

aspecto dialoacutegico da essecircncia do diaacutelogo jaacute que a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo satildeo as

respostas miacutenimas a um discurso

Nos discursos proferidos por Ciro aos seus soldados em nossa opiniatildeo o caraacuteter

dialoacutegico desaparece Os soldados natildeo emitem opiniatildeo a respeito das determinaccedilotildees de

seu liacuteder e as suas ideias natildeo entram em um real campo de contato dialoacutegico com o

discurso de Ciro Ciro como liacuteder estaacute em um pavimento superior ao de seus soldados

pavimento que lhe permite que o discurso seja contemplado e seguido e natildeo

desautorizado ou contestado A maacutexima portanto deve ter outra funccedilatildeo que a funccedilatildeo

persuasiva que encontramos nas ocorrecircncias anteriores

Analisemos o discurso proferido por Ciro no Livro 7572-86 Haacute neste

discurso a maior concentraccedilatildeo de maacuteximas na Ciropedia que se configuram tanto

como maacuteximas de guerra como maacuteximas gerais Esse discurso eacute proferido apoacutes a

tomada da Babilocircnia ou seja eacute o fim da carreira militar de Ciro descrita na Ciropedia

O Livro 8 eacute inteiramente dedicado agrave construccedilatildeo do Impeacuterio Persa e a narrativa portanto

comeccedila a tratar de uma nova temaacutetica Isso justifica o fato de este discurso ser a uacuteltima

vez em que Ciro profere maacuteximas de guerra Suas preocupaccedilotildees a partir deste

momento passaratildeo a ser o modo como conduzir o seu governo e natildeo mais como

conduzir soldados No entanto jaacute neste discurso algumas das preocupaccedilotildees futuras satildeo

realccediladas

Ciro inicia o discurso agradecendo aos deuses pelas daacutedivas conseguidas pelo

exeacutercito persa ndash terras extensas e feacuterteis (γῆν πολλὴν καὶ ἀγαθήν gen pollen kai

agathen) casas (οἰκίας oikias) etc Em seguida profere a primeira maacutexima que se

refere ao γέρας (geras) as recompensas ou espoacutelios de guerra Ciro diz a seus soldados

que

[] νόμος γὰρ ἐν πᾶσιν ἀνθρώποις ἀίδίος ἐστιν ὅταν

πολεμούντων πόλις ἁλῳ τῶν ἑλόντων εἷναι καὶ τά σώματα

τῶν ἐν τῇ πόλει καὶ τὰ χρήματα [] (Cirop 7572)

[] pois eacute lei eterna para todos os homens quando uma cidade eacute tomada estando em guerra dos conquistadores satildeo tanto o corpo como os bens dos cidadatildeos []

A maacutexima vincula-se ao comentaacuterio anterior de Ciro no iniacutecio do discurso mas

e mais importante eacute de algum modo um convite para que os persas participem do novo

projeto de Ciro a construccedilatildeo de seu Impeacuterio Os conquistadores tecircm agora a

149

responsabilidade de ajudar Ciro na construccedilatildeo de seu Impeacuterio uma vez que os corpos e

os bens dos cidadatildeos submetidos pela guerra satildeo seus espoacutelios ou seja suas riquezas

A maacutexima eacute construiacuteda por dois blocos semacircnticos o primeiro (νόμος γὰρ ἐν πᾶσιν

ἀνθρώποις ἀίδίος ἐστιν) se configura segundo a terminologia de Lardinois (1997)

como identity of the owner que deve ser entendida como a identidade do criador da

maacutexima Esse tipo de discurso fornece agrave maacutexima a sua legitimidade pois a partir dele

natildeo se compreenderaacute a maacutexima como produto de seu locutor imediato fruto de um

conhecimento particular e subjetivo do mundo mas como um conhecimento tradicional

e eterno cuja formulaccedilatildeo eacute muito anterior ao momento de sua enunciaccedilatildeo no discurso

O locutor seraacute apenas um veiacuteculo para expressar a maacutexima jaacute antes formulada e

possivelmente conhecida

O segundo bloco semacircntico (ὅταν πολεμούντων πόλις ἁλῳ τῶν ἐλόντων

εἷναι καὶ τά σώματα τῶν ἐν τῇ πόλει καὶ τὰ χρήματα) eacute o conceito da maacutexima

formado por cinco tempos fortes πόλις-πολεμούντων (polis-polemounton) ἐλόντων

(elonton) πόλει (polei) σώματα (somata) χρήματα (khremata) no qual os quatro

uacuteltimos termos estabelecem uma relaccedilatildeo de equivalecircncia formando o predicado do

primeiro termo sujeito da maacutexima A polis (cidade) sujeito da maacutexima torna-se no

contexto da guerra um objeto que passa das matildeos dos vencidos para as dos

conquistadores Neste caso kremata (bens) e somata (corpos) que constituem as

propriedades do cidadatildeo-livre tornam-se tambeacutem objetos dos conquistadores

destituindo assim o cidadatildeo da sua condiccedilatildeo de homem livre Jaacute o termo polemounton

estando em guerra estabelece o contexto em que a maacutexima eacute vaacutelida limitando-a

portanto ao contexto da guerra

Na sequecircncia de seu discurso Ciro reflete o quanto eacute mais faacutecil conquistar do

que manter as coisas conquistadas Nesta reflexatildeo Ciro retoma o valor do trabalho

(ponos) da moderaccedilatildeo (sophrosune) da temperanccedila (enkhrateia) valores que desde a

infacircncia a educaccedilatildeo persa incutira nele e por toda a narrativa demonstraram ser vitais

na vitoacuteria persa sobre os inimigos Ciro entatildeo formula a segunda maacutexima do discurso

(Livro 7575) ldquoPois natildeo basta que os homens sejam bons no iniacutecio para permanecer

bons se natildeo se ocupar com isso ateacute o fimrdquo190 Esta maacutexima apresenta apenas o conceito

sem discursos introdutoacuterios ou de validaccedilatildeo da maacutexima isso porque a maacutexima estaacute 190 No original Οὐ γὰρ τοι τὸ ἀγαθοὺς ἄνδρας γενέσθαι τοῦτο ἀρκεῖ ὥστε καὶ διατελεῖν ἤν μή

τις ἀυτοῦ τέλους ἐπιμελῆται (Cirop 7575)

150

relacionada com todo o conjunto de reflexatildeo anterior e posterior agrave formulaccedilatildeo da

maacutexima a reflexatildeo valida a maacutexima e tambeacutem a explica Esta eacute uma maacutexima

deceptiva na qual os predicados dessacralizam a imagem do sujeito da maacutexima

(ἀγαθοὺς ἄνδρας agathous andras) Nesta maacutexima mais do que os tempos fortes ndash

διατελεῖν (diatelein) ἐπιμελῆται (epimeletai) ndash satildeo os tempos fracos (Οὐhellip ἀρκεῖ

ἤν μή τέλους) que determinam a sua dessacralizaccedilatildeo pois estes termos impotildeem

concessotildees agrave realizaccedilatildeo do sujeito da maacutexima que eacute ser homens corajosos Ser corajoso

natildeo eacute uma essecircncia inata e imoacutevel no homem poreacutem o resultado de um exerciacutecio que

deve ser continuamente aplicado

Como acima afirmamos a maacutexima relaciona-se com alguma reflexatildeo tanto

anterior a sua formulaccedilatildeo quanto posterior Desse modo na sequecircncia do discurso Ciro

utiliza-se de comparaccedilotildees para justificar a maacutexima acima assim como as artes (τέχναι

tekhnai) quando negligenciadas tornam-se sem valor (μείονος ἄξιαι γίγνονται

meionos aksiai gignontai) e os corpos em boa forma (τὰ σώματά γε τὰ εὖ ἔχοντα

ta somata ge ta eu ekhonta) quando se entregam agrave preguiccedila (ῥᾳδιουργίαν

raidiourgian) tornam-se novamente em mau estado (πονήρως πάλιν poneros palin)

as virtudes tambeacutem se convertem em viacutecios (πονηρίαν ponerian) quando se abandona

a sua praacutetica (ἀνῇ τὴν ἄσκησιν anei tem askesin) A partir destas comparaccedilotildees Ciro

revela qual o seu verdadeiro temor expresso em duas maacuteximas uma subsequente a

outra primeiramente Ciro formula que ldquoPois considero de um lado um grande

trabalho conquistar o poder mas de outro lado ainda maior conservaacute-lo depois de

conquistadordquo191 (Livro 7576) Nesta maacutexima comparativa o conceito eacute introduzido

pelo bloco semacircntico γὰρ οἶμαι (gar oimai) que estabelece Ciro natildeo soacute como o

locutor da maacutexima como tambeacutem seu formulador Deste modo este bloco semacircntico se

configura tanto como um tying phrase quanto um identity of the owner

Jaacute a segunda maacutexima natildeo apresenta nenhum tipo de discurso introdutoacuterio

iniciando-se diretamente no conceito da maacutexima ldquoPois frequentemente de um lado a

conquista ocorreu provocada soacute pela coragem mas de outro preservar as conquistas

191 No original μέγα μὲν γὰρ οἶμαι ἔργον καὶ τὸ ἀρχὴν καταπρᾶξαι πολὺ δ ἔτι μεῖζον τὸ

λαβόντα διασώσασθαι (Cirop 7576)

151

natildeo se alcanccedila sem moderaccedilatildeo nem sem temperanccedila nem sem grande diligecircncia192rdquo

(Livro 7576) Desse modo esta maacutexima ao contraacuterio da anterior se estabelece como

um conhecimento para aleacutem da narrativa legitimando natildeo soacute toda a reflexatildeo mas

tambeacutem a maacutexima anterior O conceito desta maacutexima comparativa eacute expresso pela

oposiccedilatildeo entre as virtudes de um lado a coragem (tolma) e de outro a moderaccedilatildeo

(sophrosune) temperanccedila (enkrateia) e diligecircncia (epimeleia) retomando a oposiccedilatildeo jaacute

expressa na reflexatildeo anterior A reflexatildeo portanto se fecha na maacutexima o conceito

condensa o todo e se torna um espetaacuteculo expressivo

Estas trecircs virtudes aliadas a outras que desde o iniacutecio da Ciropedia satildeo

constantemente afirmadas como essenciais seratildeo retomadas a partir deste passo no

discurso de Ciro A preocupaccedilatildeo de Ciro ao incutir em seus soldados a ambiccedilatildeo de bem

governar seus suacuteditos eacute a de que seus soldados natildeo desprezem a praacutetica destas virtudes

pois foi esta praacutetica que garantiu a eles a supremacia frente aos inimigos

No Livro 81 que narra os primeiros afazeres de Ciro como liacuteder de seu Impeacuterio

o narrador nos conta como Ciro procurava persuadir seus suacuteditos a seguirem a praacutetica da

piedade da justiccedila da obediecircncia da moderaccedilatildeo e da temperanccedila as principais virtudes

da educaccedilatildeo persa Enquanto no Livro 88 o narrador no epiacutelogo da obra afirma que a

decadecircncia do Impeacuterio Persa se deve ao abandono da praacutetica destas virtudes O discurso

de Ciro portanto indica alguns movimentos subsequentes da narrativa e esta eacute uma

particularidade interessante das maacuteximas analisadas da Ciropedia elas ao mesmo

tempo em que se relacionam com a narrativa anterior agrave sua locuccedilatildeo ndash pois satildeo os atos e

as experiecircncias que datildeo ensinamentos para que Ciro expresse e formule suas maacuteximas ndash

revelam os projetos futuros de Ciro e a sequecircncia da narrativa

Retornemos agrave anaacutelise do discurso de Ciro Preocupado portanto em garantir

que os soldados natildeo desprezem a praacutetica das virtudes Ciro os lembra de que agora que

satildeo conquistadores devem exercitar-se em dobro pois ldquoSabendo bem que quando

algueacutem tem numerosas coisas entatildeo haveraacute maior nuacutemero de invejosos de

conspiradores e de inimigosrdquo193 (Livro 7577) Para Ciro necessariamente todos os

homens sofrem pelos mesmos motivos (frio fome cansaccedilo etc) igualando os suacuteditos

192 No original τὸ μὲν γὰρ λαβεῖν πολλάκις τῷ τόλμαν μόνον παρασχομένῳ ἐγένετο τὸ δὲ

λαβόντα κατέχειν οὐκέτι τοῦτο ἄνευ σωφροσύνης οὐδ ἄνευ ἐγκρατείας οὐδ ἄνευ πολλῆς

ἐπιμελείας γίγνεται (Cirop 7576) 193 No original εὖ εἰδότας ὅτι ὅταν πλεῖστά τις ἔχῃ τότε πλεῖστοι καὶ φθονοῦσι καὶ

ἐπιβουλεύουσι καὶ πολέμιοι γίγνονται (Cirop 7577)

152

com os comandantes por isso eacute necessaacuterio que os comandantes se mostrem sempre

melhores (βελτίονας) que os seus suacuteditos e isto soacute ocorreraacute pela praacutetica das virtudes

Esse pensamento vem expresso na maacutexima ldquoMas sem duacutevida natildeo eacute conveniente ao

governante ser inferior aos governados194rdquo (Livro VII583) Aleacutem disso todo o

cuidado para natildeo se deixar dominar pelos suacuteditos vem expresso na maacutexima geral

Conquistar belas coisas natildeo eacute tatildeo difiacutecil como a dor de ser privado das coisas

conquistadas195 (Livro 7582)

Ciro reconhece todavia o quatildeo custoso eacute para seus homens depois de terem

suportado tantas fadigas durante a guerra continuar suportando-as depois de

vencedores da guerra por isso ele afirma que ldquo[] as boas coisas encantam tanto mais

quanto mais labores tiver sofrido para chegar a elas As fadigas satildeo os temperos das

boas coisasrdquo196 (Livro 7580) Esta maacutexima geral eacute interessante pois apresenta duas

maacuteximas interligadas formada por dois blocos poreacutem o segundo bloco ndash As fadigas satildeo

os temperos das boas coisas ndash tem maior alcance retoacuterico do ponto de vista da

expressividade pois ela condensa em sua forma a proacutepria maacutexima anterior Aleacutem disso

eacute uma maacutexima que funciona como validaccedilatildeo da outra maacutexima

No final do discurso de Ciro ele ainda profere mais duas maacuteximas gerais ambas

relacionadas agrave praacutetica da virtude principal tema de seu discurso a primeira maacutexima

determina que ldquo[] natildeo haacute outra proteccedilatildeo melhor do que ser belo e nobrerdquo197 (Livro

7584) enquanto a segunda maacutexima ldquoAo que estaacute separado da virtude nada conveacutem a

natildeo ser comportar-se bemrdquo 198 (Livro 7584)

Analisando este discurso procuramos compreender o uso das maacuteximas no

discurso proferido para os soldados Anteriormente referimos que no discurso ao

contraacuterio do que ocorre no diaacutelogo os interlocutores estatildeo em um niacutevel abaixo do

orador no caso Ciro e este portanto natildeo necessita de maacutexima para convencecirc-los a

fazer as suas vontades jaacute que sua posiccedilatildeo social imporia a obediecircncia Natildeo haacute a

necessidade de convencimento de persuasatildeo Aleacutem disso naturalmente seriacuteamos

194 No original Ἀλλrsquo οὐ δήπου τὸν ἄρχοντα τῶν ἀρχομένων πονηρότερον προσήκει εἴναι (Cirop 7583) 195 No original οὐ γὰρ τὸ μὴ λαβεῖν τἀγαθὰ οὔτω χαλεπόν ὥσπερ τό λαβόντα στερηθῆναι

λυπηρόν (Cirop 7582) 196 No original ὅτι τοσούτῳ τἀγαθὰ μᾶλλον εὐφραίνει ὅσῳ ἂν μᾶλλον προπονήσας τις ἐπ

αὐτὰ ἴῃ οἱ γὰρ πόνοι ὄψον τοῖς ἀγαθοῖς (Cirop 7580) 197 No original ὅτι οὐκ ἔστιν ἄλλη φυλακὴ τοιαύτη οἴα αὐτόν τινα καλὸν κάγαθὸν ὑπάρχειν (Cirop 7584) 198 No original τῷ δ ἀρετῆς ἐρήμῳ οὐδὲ ἄλλο καλῶς ἔχειν οὐδὲν προσήκει (Cirop 7584)

153

levados a interpretar estas maacuteximas como discurso exortativo a fim de que os soldados

se encorajem Entretanto o discurso exortativo aparece sob outras formas de locuccedilatildeo

que natildeo necessariamente a maacutexima Por isso natildeo podemos pensar apenas no caraacuteter

exortativo das maacuteximas como uma funccedilatildeo predominante das maacuteximas no discurso de

Ciro

Podemos entatildeo interpretar estas maacuteximas de dois modos primeiramente nelas

Ciro revela tanto suas intenccedilotildees e objetivos quanto principalmente suas preferecircncias

de comportamento O caraacuteter eacutetico da maacutexima estabelece portanto um modelo de

comportamento para os soldados comportamento este que os soldados devem seguir

caso queiram ser agradaacuteveis ao proacuteprio Ciro Desse modo os discursos de Ciro para

seus soldados tambeacutem satildeo uma oacutetima oportunidade para que o narrador possa

caracterizar Ciro uma vez que as maacuteximas revelam as preferecircncias de comportamento

Por outro lado devemos lembrar que segundo Aristoacuteteles as maacuteximas

produzem prazer aos ouvintes A relaccedilatildeo que Ciro estabelece com seus ouvintes eacute uma

relaccedilatildeo de cumplicidade como se estes estivessem em um mesmo niacutevel discursivo O

prazer do ouvinte surge agrave medida que ele se sente feliz em reconhecer na maacutexima um

conhecimento que ele mesmo jaacute intuiacutera estabelecendo portanto um forte traccedilo de

cumplicidade entre comandante e suacuteditos Cumplicidade entre o comandante e seus

suacuteditos eacute uma das mais caracteriacutesticas peculiaridades do governo ideal de Ciro e que

mais o diferencia dos tiranos orientais da tradiccedilatildeo da literatura grega

53 O percurso de Ciro a formaccedilatildeo do διδάσκαλος199

A personagem no romance de formaccedilatildeo eacute uma grandeza moacutevel evolutiva A

formaccedilatildeo deve neste sentido revelar uma determinada mudanccedila na postura da

personagem e esta mudanccedila torna-se o ponto principal do conteuacutedo do romance o

proacuteprio material do romancista No capiacutetulo anterior demonstramos alguns aspectos

desta mudanccedila ou evoluccedilatildeo da personagem Ciro poreacutem nossa anaacutelise se limitou a

observar as estruturas que constituiacuteam a archaica do romance de formaccedilatildeo Nesta

199 διδάσκαλος (didaskalos) eacute aquele que ensina o mestre

154

subseccedilatildeo demonstraremos por fim que a locuccedilatildeo de maacuteximas eacute uma caracteriacutestica

importante no processo de formaccedilatildeo da personagem na Ciropedia As maacuteximas satildeo

recursos descritivos com os quais Xenofonte apresenta a profundidade da sua

personagem Haacute de fato o uso do discurso indireto em algumas passagens poreacutem eacute

quase sempre por meio do discurso direto que conhecemos Ciro e que Ciro se deixa

conhecer

Observemos a seguir os quadros

Maacuteximas de guerras proferidas por Ciro LIVRO I - LIVRO II - LIVRO III 1 LIVRO IV - LIVRO V 9 LIVRO VI 4 LIVRO VII 8 LIVRO VII -

Quadro 2 Relaccedilatildeo por maacuteximas de guerra

Maacuteximas gerais proferidas por Ciro LIVRO I 3 LIVRO II 2 LIVRO III 1 LIVRO IV 1 LIVRO V 4 LIVRO VI 1 LIVRO VII 7 LIVRO VII 3

Quadro 3 Relaccedilatildeo por livro de maacuteximas gerais

A respeito do contexto das locuccedilotildees das maacuteximas podemos acrescentar que Ciro

natildeo formula nenhuma maacutexima de guerra nos dois primeiros livros da Ciropedia Suas

primeiras locuccedilotildees estatildeo expressas no Livro 33 em um diaacutelogo com Ciaxares poreacutem eacute

a partir dos Livros 55 que Ciro passa a se utilizar de maacuteximas com mais frequecircncia

Antes disso Ciro participara da expediccedilatildeo agrave Armecircnia e agrave Caldeacuteia (Livro 3) da

expediccedilatildeo da Assiacuteria (Livro 4) aleacutem de batalhas esparsas na Meacutedia (Livro 1) e na

Babilocircnia (Livro 5) Isso significa que a experiecircncia da guerra eacute fundamental para que

Ciro formule e se expresse por meio de maacuteximas O maior efeito retoacuterico do discurso

gnocircmico estaacute na relaccedilatildeo deste discurso com os atos e como afirma Aristoacuteteles soacute fica

155

bem ao homem experiente se expressar com maacuteximas Deste modo a personagem sofre

uma evoluccedilatildeo na qual a elocuccedilatildeo das maacuteximas eacute uma caracteriacutestica determinante na

figurativizaccedilatildeo desta evoluccedilatildeo

Com relaccedilatildeo agraves maacuteximas gerais Ciro as formula de forma esporaacutedica desde o

primeiro livro (Livro 16) todavia uma das maacuteximas proferidas por Ciro neste livro eacute

reformulada pelo seu pai Cambises200 Como afirmamos no capiacutetulo anterior ao longo

do Livro 1 Ciro passa por experiecircncias (tanto no acircmbito da guerra quanto no acircmbito

particular) em que demonstra erros de avaliaccedilatildeo e de conduta Estes erros seratildeo

corrigidos por seus mentores o avocirc Astiacuteages e o pai Cambises Do mesmo modo

quando Ciro afirma a seu pai ldquoE com efeito refletindo sobre essas coisas parece-me

observar que o que mais incita a obediecircncia eacute louvar e honrar o obediente e ao

desobediente desprezar e punir []rdquo201 (Cirop 1620) Essa maacutexima natildeo se concretiza

como uma verdade jaacute que seu pai iraacute em seguida refutaacute-la Esta maacutexima apresenta

valores de um verdadeiro tirano um deacutespota exatamente o contraacuterio do que Ciro se

revelaraacute no restante da narrativa mostrando assim novamente que os ensinamentos do

pai surtiram efeito Ciro portanto natildeo permanece inalterado com as circunstacircncias seu

espiacuterito se modifica e se aperfeiccediloa Ciro eacute representado como μαθητής (mathetes)

um disciacutepulo sempre pronto a aprender para melhor agir no futuro Haacute portanto

equiacutevocos de avaliaccedilatildeo por parte de Ciro poreacutem a sua reeducaccedilatildeo eacute fundamental na

continuidade da narrativa Assim como as maacuteximas de guerra as maacuteximas gerais

tornam-se mais comuns a partir do Livro V Observamos portanto que haacute na

Ciropedia a relaccedilatildeo entre experiecircncias e elocuccedilatildeo das maacuteximas e que elas constituem

desse modo uma importante faceta na construccedilatildeo da personagem Ciro

Agrave medida que a narrativa avanccedila e Ciro mostra-se um liacuteder natildeo soacute competente

e vencedor mas caracterizado como ideal a personagem passa a se expressar por

maacuteximas com mais regularidade Ciro entatildeo torna-se um διδάσκαλος o mestre que

passa a ensinar seus conhecimentos

200 No Capiacutetulo 4322 de nossa Dissertaccedilatildeo analisamos o papel de Cambises como mentor de Ciro e de como ele reavalia as afirmaccedilotildees de Ciro 201 No original οι δοκῶ τὸ προτρέπον πείθεσθαι μάλιστα ὂν τὸ τὸν πειθόμενον ἐπαινεῖν τε

καὶ τιμᾶν τὸν δὲ ἀπειθοῦντα ἀτιμάζειν τε καὶ κολάζειν (Cirop 1620)

156

Um exemplo desta passagem do aluno para o mestre ocorre na narrativa de

Panteacuteia e Abradatas202 Ciro ordena que Araspas seja o guarda de Panteacuteia No Livro

512-18 quando Araspas encontra-se com Ciro e lhe conta sobre a beleza de Panteacuteia

inicia-se a discussatildeo entre os dois a respeito do amor Ciro afirma que teme se apaixonar

pela bela dama de Susa pois a paixatildeo lhe impediria de cumprir as suas obrigaccedilotildees

Araspas retruca a Ciro e inicia a reflexatildeo na qual ele afirma que ldquoO amor de outro

lado estaacute subordinado agrave vontaderdquo203 (Cirop 5117) e para comprovar a verdade de

suas palavras ele a exemplifica dizendo que se o amor natildeo dependesse da vontade o

pai desejaria a filha o irmatildeo desejaria a irmatilde poreacutem o amor eacute um sentimento diferente

da fome da sede do sentir frio no inverno ou sentir calor no veratildeo pois nenhuma lei eacute

capaz de evitar que o homem tenha estes sentimentos enquanto a lei impede o incesto

Ciro para dissuadir seu soldado lhe diz ldquo[] pois enquanto que o fogo queima quem

estaacute proacuteximo os belos excitam tambeacutem quem os contempla de longe a ponto de arder

de paixatildeordquo204 (Cirop 5116)

A maacutexima eacute formada pela comparaccedilatildeo entre fogo (πῦρ pur) e belos (καλοὶ

kaloi) e pela semacircntica dos verbos queimar (ἁπτω hapto) e excitar (ὑφάπτω

huphapto) formados pelo mesmo radical ἅπτ-205 pois o verbo uphaptousin eacute composto

pela preposiccedilatildeo ὑπό + ἀπτω (hupo + apto) Na primeira frase (ὡς τό μὲν πῦρ τοὺς

ἁπτομένους καίει) o sentido do verbo hapto que estaacute no particiacutepio meacutedio acusativo

plural eacute ldquoascenderrdquo ou seja uma accedilatildeo concreta na segunda frase (οἱ δὲ καλοὶ καὶ

τούς ἄπωθεν θεωμένους ὑφάπτουσιν) o sentido do verbo huphapto que estaacute na

terceira pessoa do plural eacute ldquoexcitarrdquo ou seja accedilatildeo abstrata que reafirma o alcance do

amor que queima mesmo os que estatildeo longe Araspas no entanto despreza o conselho

de Ciro e afirma que mesmo que nunca parasse de contemplaacute-la natildeo haveria perigo de

ser subjugado pelo amor a tal ponto que faltasse com seus deveres Todavia o narrador

nos conta que agrave medida que Araspas contemplava Panteacuteia ele se apaixonava cada vez

202 A narrativa de Panteacuteia e Abradatas eacute uma narrativa secundaacuteria cujo tema principal eacute o amor do casal que luta contra alguns obstaacuteculos para se manter fieacutel Esta narrativa serviu de referecircncia para os romancistas gregos 203 No original Τὸ δrsquo ἐρᾶν ἐθελούσιόν ἐστιν (Cirop 5117) 204 No original ὡς τό μὲν πῦρ τοὺς ἁπτομένους καίει οἱ δὲ καλοὶ καὶ τούς ἄπωθεν θεωμένους

ὑφάπτουσιν ὥστε αἴθεσται τῷ ἔρωτι (Cirop 5116) 205 O verbo ὑφάπτουσιν eacute composto pela preposiccedilatildeo ὑπό + ἀπτω

157

mais por ela O narrador e a narrativa portanto confirmam que a avaliaccedilatildeo correta

sobre o amor era a de Ciro e natildeo a de Araspas

Portanto do mesmo modo que no iniacutecio da narrativa da Ciropedia a maacutexima de

Ciro eacute reformulada pelos ensinamentos de seu pai na cena entre Ciro e Araspas eacute Ciro

quem reformula a maacutexima proferida por Araspas Ciro portanto assume o papel que

antes era o do seu pai tornando-se tambeacutem uma espeacutecie de mentor Este aspecto

caracteriacutestico de Ciro fica ainda mais evidente durante a uacuteltima cena da narrativa (Livro

87) quando diante de seus familiares Ciro pronuncia um longo discurso dirigindo-se a

seus dois filhos no qual revisita todos os principais ensinamentos discorridos pela obra

Ciro ao estabelecer Cambises o primogecircnito como herdeiro do Impeacuterio Persa

daacute a Tanaoxares as satrapias da Meacutedia da Armecircnia e da Caldeacuteia regiotildees que antes da

construccedilatildeo do impeacuterio jaacute eram ou aliadas dos persas ou submetidas a eles Apoacutes

determinar sua sucessatildeo Ciro procura acalmar a vaidade de Tanaoxares demonstrando

que de um lado se ele eacute apenas um saacutetrapa de outro os trabalhos e os infortuacutenios do

seu irmatildeo imperador seratildeo muito maiores Depois afirma a Cambises que ldquoOs amigos

fieacuteis satildeo para os reis os cetros mais verdadeiros e mais confiaacuteveisrdquo206 (Livro 8713)

Poreacutem afirma que os homens natildeo satildeo leais por natureza mas que cada um deve criar as

suas lealdades Eacute interessante este comentaacuterio por demostrar demonstrar que todos

aqueles que na narrativa foram servos fieacuteis e leais a Ciro tiveram suas lealdades

conquistadas por ele A partir destes comentaacuterios Ciro ainda faz mais algumas reflexotildees

a respeito da lealdade dos homens afirmando que nenhum homem eacute mais leal a outro

homem do que o irmatildeo e termina esse tema de seu discurso com outra maacutexima Quem

zela pelo irmatildeo de si mesmo cuida207 (Livro 8715) Ciro continua seu discurso

versando sobre outros temas ndash sobre a imortalidade da alma sobre o devido respeito aos

deuses e sobre o desejo de ser cremado apoacutes a morte no final Ciro profere sua uacuteltima

maacutexima pouco antes de se despedir dos filhos Beneficiando aos amigos sereis capazes

de castigar os inimigos208 (L 8728)

Ciro termina a narrativa como um saacutebio mestre da verdade que depois de

experienciar uma vida repleta de sucessos pode ldquoespalhar a verdaderdquo conforme a

expressatildeo de Detienne ([sd])

206 No original οἱ πιστοὶ φίλοι σκῆπτρον βασιλεῦσιν ἀληθέστατον καiacute ἀσφαλέστατον (Livro VIII713) 207 No original Ἑαυτοῦ τοι κήδεται ὁ προνοῶν ἀδελφῳ (Livro VIII715) 208 No original τοὺς φίλους εὐεργετοῦντες καὶ τοὺς ἐχθροὺς δυνήσεσθε κολάζειν (L VIII828)

158

Concluiacutemos este capiacutetulo reafirmando que as maacuteximas na tessitura narrativa da

Ciropedia apresentam-se como uma instacircncia discursiva importante na caracterizaccedilatildeo

da personagem Ciro Ciro evolui de aprendiz para mestre e esta transformaccedilatildeo eacute

figurativizada na narrativa por meio da locuccedilatildeo de maacuteximas A anaacutelise do contexto de

locuccedilatildeo das maacuteximas demonstrou que os conhecimentos apreendidos pelas diversas

experiecircncias por que Ciro passa lhe permitem natildeo soacute reproduzir maacuteximas mas tambeacutem

as produzir As experiecircncias tanto na guerra quanto nas relaccedilotildees com as outras

personagens desenvolvem o comportamento do heroacutei da Ciropedia e este experiente

passa a ensinar os que o rodeiam por meio de maacuteximas As maacuteximas de Ciro que no

iniacutecio eram reformuladas pelos seus mentores no final da Ciropedia passam a ser

palavras de guia para seus filhos instituindo Ciro como um saacutebio mentor

Figura 4 Cilindro de Ciro cilindro de argila descoberto em 1879 e considerado a primeira declaraccedilatildeo dos direitos humanos da humanidade Fonte Foto de Marco Prins e J Lendering visualisada em httpwwwliviusorgct-czcyrus_Icyrus_cylinderhtml

159

6 Consideraccedilotildees finais

O final de um percurso revela em geral mais do que se esperava em seu iniacutecio

Apesar disso eacute inevitaacutevel a satisfaccedilatildeo de descobrir que algumas de nossas intuiccedilotildees

primevas revelaram-se verdadeiras e coerentes Este trabalho de anaacutelise da Ciropedia se

deve muito agraves intuiccedilotildees iniciais que no longo trajeto de formaccedilatildeo da Dissertaccedilatildeo

sempre clarearam a nossa visatildeo mesmo nos momentos de maiores dificuldades e

incertezas

Iniciamos nosso trabalho repletos de duacutevidas a respeito de como enfrentar os

problemas terminoloacutegicos a respeito do gecircnero do romance De que modo poderiacuteamos

usar uma terminologia moderna para tratar de uma obra literaacuteria produzida na

Antiguidade Quais as inevitaacuteveis consequecircncias de tal uso E principalmente o que

significa no acircmbito da literatura grega claacutessica uma obra ficcional em prosa Nossa

preocupaccedilatildeo era tornar plausiacutevel a argumentaccedilatildeo de que a Ciropedia efetua importantes

inovaccedilotildees na prosa ficcional da Antiguidade e por conseguinte na prosa ficcional

moderna podendo ser considerada uma das primeiras manifestaccedilotildees romanescas da

literatura Ocidental

A questatildeo eacute problemaacutetica uma vez que o romance (prosa ficcional) comeccedilou a

fazer parte do cacircnone literaacuterio apenas a partir dos seacuteculos XVIII e XIX e o termo

romance surgiu apenas no seacuteculo XII Assim os teoacutericos identificaram o romance como

uma manifestaccedilatildeo literaacuteria proacutepria dos tempos modernos sem precedentes na

Antiguidade O romance portanto eacute uma forma que natildeo se estrutura a partir do cacircnone

claacutessico e que por isso apresenta uma forma aberta sempre renovadora Aleacutem desse

caraacuteter sempre inovador tambeacutem identificava um tipo de mateacuteria em que a personagem

problemaacutetica se opunha agrave sociedade opressora proacutepria da sociedade burguesa

revolucionaacuteria Nestas circunstacircncias uma obra como a Ciropedia que apresenta em

sua forma o caraacuteter idealizado do heroacutei e a sua trajetoacuteria harmocircnica com a sociedade

dificilmente poderia ser classificada como um romance antes do romance A ausecircncia

do caraacuteter problemaacutetico entretanto da mateacuteria narrativa natildeo significa que do ponto de

vista da forma as correspondecircncias natildeo se acentuam com mais clareza

A teoria do romance de Bakhtin nos ajudou a identificar um ponto preciso nesta

discussatildeo Para o teoacuterico russo a problemaacutetica do indiviacuteduo com a sociedade eacute um tema

160

de grande produtividade no romance poreacutem natildeo eacute o uacutenico Assim o romance deve ser

compreendido principalmente a partir de questotildees estruturais como por exemplo a

representaccedilatildeo da personagem ou do cronotopo etc No entanto sem negar a

potencialidade do romance moderno Bakhtin natildeo nega tambeacutem que a base do

desenvolvimento da forma romanesca estaacute presente em algumas formas discursivas da

Antiguidade e da Idade Meacutedia Seria inoportuno neste momento retomar todas as

valiosas contribuiccedilotildees de Bakhtin para a teoria do romance Para nosso trabalho as duas

principais contribuiccedilotildees foram os conceitos de moderniazaccedilatildeo da histoacuteria e de

archaica

Quanto agrave modernizaccedilatildeo da histoacuteria em seu estudo Epos e Romance Bakhtin

(2002) afirma que a forma romanesca surge da desintegraccedilatildeo da distacircncia eacutepica entre

presente e passado Enquanto na epopeia o passado miacutetico surge como um fenocircmeno

fechado e destituiacutedo de autoria o passado no romance surge a partir de questotildees

colocadas pelo presente do autor Neste sentido um tema da histoacuteria natildeo eacute representado

pela fidelidade agrave histoacuteria em ordenar e descrever o passado tal qual ele aconteceu mas

eacute representado em vista de responder a questotildees do presente Desse modo o passado eacute

ficcionalizado e o factual e o veriacutedico abrem espaccedilo para a infiltraccedilatildeo do verossimil

Demonstramos no terceiro capiacutetulo de nossa Dissertaccedilatildeo que Xenofonte

ficcionaliza os dados histoacutericos a respeito da vida de Ciro Nossa anaacutelise privilegiou a

comparaccedilatildeo da narrativa apresentada por Xenofonte com a narrativa que Heroacutedoto faz a

respeito de Ciro em seu livro Histoacuterias Uma vez que natildeo podemos nos certificar de

outras possiacuteveis fontes com que Xenofonte pudesse ter trabalhado pudemos comprovar

a partir do conceito de intertextualidade que Xenofonte construiu sua narrativa

contrastando-a e dialogando diretamente com a narrativa de Heroacutedoto As Histoacuterias

funcionavam como um discurso de autoridade para Xenofonte e nesta nova versatildeo da

narrativa sobre Ciro era necessaacuterio suprimir o que contrastasse com a visatildeo idealizada e

encomiaacutestica narrada por Xenofonte que manipula portanto o material estabelecido

pela narrativa de Heroacutedoto

O resultado de tal manipulaccedilatildeo eacute uma narrativa idealizada em que o tema do

governo ideal caro agrave sua eacutepoca histoacuterica eacute constantemente levantado e respondido O

caraacuteter didaacutetico dessa ficcionalizaccedilatildeo visa menos recontar o passado a partir de

estrateacutegicas de validaccedilatildeo da narrativa ldquocomo de fato aconteceurdquo do que se dirigir como

exemplum para os leitores gregos do presente Desse modo em sua narrativa

Xenofonte-autor aproxima-se do passado inacabado rompendo a distacircncia eacutepica com

161

caraacuteter inacabado do presente Os exemplos que analisamos neste capiacutetulo demonstram

a tentativa de Xenofonte de recriar esse passado para construir um todo concreto e ideal

Natildeo eacute o passado o ponto de partida de Xenofonte mas a contemporaneidade que ldquodita

os pontos de vista e as orientaccedilotildees para certos valoresrdquo (BAKHTIN 1998 p418) e

neste sentido o passado eacute modernizado A Ciropedia portanto pode ser lida como um

romance

A partir disso entramos em uma segunda fase da nossa Dissertaccedilatildeo em que

procuramos demonstrar a relaccedilatildeo da Ciropedia com o romance de formaccedilatildeo moderno

uma vez que muitos criacuteticos classificavam-na como uma das primeiras manifestaccedilotildees

deste subgecircnero literaacuterio Contudo em nossa opiniatildeo natildeo havia uma anaacutelise eficaz que

justificasse tal classificaccedilatildeo Procuramos portanto em nossa anaacutelise privilegiar os

aspectos estruturais do gecircnero e neste sentido o conceito de archaica empregado por

Bakhtin (2010) foi fundamental A archaica eacute a estrutura de um gecircnero que estaacute sempre

presente e ainda que constantemente renovando-se permanece como caracteriacutestico da

forma

Procuramos identificar quais as estruturas miacutenimas que caracterizam o gecircnero do

Romance de formaccedilatildeo moderno e em seguida verificar se estas estruturas estavam

tambeacutem presentes na Ciropedia Analisamos cenas da narrativa como o afastamento da

casa materna a presenccedila de mentores a passagem por instituiccedilotildees educacionais os

erros de avaliaccedilatildeo da personagem principal e a visatildeo teleoloacutegica de educaccedilatildeo que

constituem experiecircncias tiacutepicas pelas quais o heroacutei passa no romance de formaccedilatildeo

(JACOBS 1989 apud MAAS 2000) Estes elementos estruturais natildeo aparecem de

forma estaacutetica mas se combinam em cenas bem organizadas e conduzem a evoluccedilatildeo da

personagem principal no decorrer da narrativa

Aleacutem disso verificamos que o heroacutei da Ciropedia como uma personagem tiacutepica

do romance de formaccedilatildeo natildeo eacute uma personagem estaacutetica mas eacute de algum modo

dinacircmica ou seja evoluiacute no decorrer da narrativa Esta evoluccedilatildeo fica patente quando

observamos a locuccedilatildeo das maacuteximas na obra uma vez que Ciro que no iniacutecio natildeo

formula maacuteximas passa a formular e a instruir os que o rodeiam tornando-se desse

modo um mestre da verdade passando de um inexperiente mathetes para um saacutebio

didaskalos Assim o heroacutei da Ciropedia portanto eacute uma ldquounidade dinacircmicardquo

(BAKHTIN 2010 p237) e se enquadra no tipo de personagem do romance de

formaccedilatildeo

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Concluiacutemos nossa Dissertaccedilatildeo afirmando que a Ciropedia natildeo deve ser lida

como uma obra historiograacutefica e sim como uma obra de ficccedilatildeo em prosa Xenofonte

assim inovou na Literatura Grega rompendo com a tradiccedilatildeo da prosa claacutessica e

iniciando um novo caminho um caminho em que a prosa se assume ficcional

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7 Traduccedilatildeo

A traduccedilatildeo aqui apresentada eacute uma traduccedilatildeo de serviccedilo ou escolar Isso significa

que nossa intenccedilatildeo ao propor tal empreitada natildeo eacute recriar em liacutengua vernaacutecula por

criteacuterios estiliacutesticos o texto grego mas sim apenas nos aproximar do texto original de

Xenofonte Julgamos necessaacuterio tal aproximaccedilatildeo uma vez que as traduccedilotildees para nossa

liacutengua ainda que competentes natildeo nos satisfaziam completamente quando comparadas

ao texto original Neste sentido procuramos manter sempre que possiacutevel os

componentes sintaacuteticos e semacircnticos ainda que tornassem o texto mais ldquotruncadordquo

Talvez um projeto de traduccedilatildeo integral da Ciropedia repensando o texto grego pelos

equivalentes vernaculares seja desenvolvido por noacutes uma vez que a empreitada eacute muito

atrativa Poreacutem isto satildeo cousas futuras

Como se trata de um trabalho de Mestrado natildeo houve tempo para que fosse feita

uma traduccedilatildeo integral dos oito livros da Ciropedia Por esse motivo pudemos traduzir

apenas o seu Livro I Entretanto neste livro se encontram todos os elementos discutidos

nesta Dissertaccedilatildeo ndash tanto a ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria quanto as estruturas da archaica

e por isso a sua traduccedilatildeo adequou-se aos objetivos desta Dissertaccedilatildeo

Utilizamos o texto grego estabelecido por E C Marchant editado pela

Clarendon (1910) comparando com o texto extabelecido por Marcel Bizos editado pela

Belles Lettres (1972)

CIROPEDIA LIVRO I

I [1] Ocorreu a noacutes certa vez o pensamento de quantas democracias foram dissolvidas

por aqueles que desejavam mais viver como cidadatildeos de algum outro regime do que na democracia e por sua vez de quantas monarquias quantas oligarquias foram aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam a tirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido e totalmente outros tanto quanto fosse o tempo que governaram satildeo admirados por terem se tornando homens saacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem disso que muitos em suas proacuteprias casas tanto quem tem numerosos servos como quem tem muito poucos nem mesmo os senhores de pouquiacutessimos servos conseguiam que a obediecircncia fosse observada

[2] Ainda sobre essas coisas pensaacutevamos que governantes eram tambeacutem os boieiros e os eguariccedilos e todos os que satildeo chamados pastores os quais podem com razatildeo ser considerados governantes dos animais que comandam Com efeito pareciacuteamos testemunhar todos esses rebanhos obedecendo aos pastores com mais boa vontade do que os homens aos governantes Pois os rebanhos marcham por onde quer que os pastores os conduzam pastam nas terras para

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onde eles os levam e mantecircm-se afastados dos lugares que eles lhes vedam E quanto aos lucros produzidos por eles permitem que os pastores deles se utilizem da forma que desejarem Aleacutem disso jamais ouvimos que algum rebanho tenha conspirado contra os pastores nem por natildeo obedecer nem por natildeo lhes confiar o uso dos lucros mas os rebanhos satildeo mais bravios com os estranhos do que com quem os governa e tira proveito deles Os homens ao contraacuterio contra ningueacutem satildeo mais rebeldes do que contra aqueles em que percebem o desejo de governaacute-los

[3] Desde que entatildeo refletiacuteamos a respeito dessas coisas concluiacutemos que eacute da natureza humana que seja mais faacutecil governar todos os outros animais do que os homens Contudo quando observamos que existiu Ciro o persa que conservou numerosos homens obedientes a ele numerosas cidades numerosos povos a partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de que o governar os homens natildeo eacute das tarefas nem impossiacuteveis nem aacuterduas se algueacutem agir com habilidade Ao menos sabemos que a Ciro eram obedientes de bom grado uns estando distantes uma marcha de numerosos dias outros de meses e outros ainda que jamais o viram e mesmo aqueles que bem sabiam que natildeo o veriam todavia desejavam lhe obedecer

[4] Por isso distinguiu-se tanto dos outros reis seja dos que receberam os governos dos pais seja dos que o conquistaram por si mesmos tanto que o rei Cita embora numerosos fossem os citas natildeo conseguiria governar nenhum outro povo e se consideraria satisfeito se continuasse governante dos proacuteprios citas tambeacutem o rei Traacutecio em relaccedilatildeo aos traacutecios o rei Iliacuterio em relaccedilatildeo aos iliacuterios e ouvimos o mesmo dos outros povos Os da Europa aleacutem disso ainda hoje se dizem autocircnomos e independentes uns dos outros

Ciro encontrando os povos da Aacutesia do mesmo modo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito de persas e governou os medos com o bom grado destes e os hircanos tambeacutem com o bom grado destes mas subjugou os siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutedios os caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendia e a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e os magaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeo se saberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendo por mar os cipriotas e os egiacutepcios

[5] E de fato governou esses povos sem que falassem a mesma liacutengua que ele e nem uns com os outros e apesar de tudo pocircde estender-se sobre tatildeo vasta regiatildeo pelo temor que inspirava a ponto de causar medo em todos e ningueacutem se rebelar contra ele Pocircde tambeacutem incutir tal desejo de que todos fossem agradaacuteveis a ele que sempre consideravam justo ser guiados pelo seu juiacutezo Submeteu ainda povos tatildeo numerosos que percorrecirc-los eacute trabalhoso por onde quer que se comece a marchar a partir do palaacutecio real seja em direccedilatildeo da aurora seja em direccedilatildeo do poente seja em direccedilatildeo do norte ou do sul [6] Em vista deste homem ser digno de nossa admiraccedilatildeo refletimos qual era a sua origem qual natureza possuiacutea e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo que a tal ponto o conduziram a governar os homens Portanto quanto averiguamos e quanto julgamos ter compreendido sobre Ciro tentaremos narrar detalhadamente

II [1] Ciro dizem era filho de Cambises rei dos persas esse Cambises dos Persidas

descendia e os Persidas receberam esse nome graccedilas a Perseu Eacute consenso que a matildee foi Mandane e esta Mandane era filha de Astiacuteages rei dos Medos Ainda hoje louva-se e canta-se pelos baacuterbaros que Ciro era por natureza de aparecircncia beliacutessima com alma boniacutessima amantiacutessimo dos estudos e das honras de tal modo que suportava todas as fadigas e resistia a todos os perigos pelo amor agraves honras [2] Guarda-se a recordaccedilatildeo de que tinha essa natureza de corpo e de alma

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Certamente foi educado nas leis dos persas Estas leis parecem comeccedilar dando a atenccedilatildeo ao bem puacuteblico natildeo onde comeccedilam a maioria dos estados Pois a maioria das cidades permite educar os filhos tal como se deseje e aos proacuteprios adultos levar a vida conforme desejem Em seguida ordenam a eles natildeo roubar nem furtar nem invadir os domiciacutelios nem bater em quem natildeo merece nem cometer adulteacuterio nem desobedecer a um magistrado e outras coisas desse tipo se algueacutem transgride alguma dessas leis impotildeem puniccedilatildeo a eles

[3] As leis persas entretanto agindo preventivamene cuidam para que desde o iniacutecio os cidadatildeos natildeo sejam capazes de desejar alguma maldade ou accedilatildeo vergonhosa E cuidam dessa maneira haacute para eles uma praccedila chamada Liberdade onde foram construiacutedos o palaacutecio real e as outras magistraturas Desse lugar os mercadores com seus produtos gritarias e vulgaridades foram expulsos a fim de que a desordem natildeo se misture com a dececircncia daqueles que se educando [4] A proacutepria praccedila que estaacute ao redor das magistraturas divide-se em quatro partes Uma delas eacute para os meninos uma para os efebos uma para os adultos e uma para os que jaacute passaram da idade do serviccedilo militar

Segundo a lei cada um se apresenta agrave sua seccedilatildeo os meninos e os adultos ao nascer do dia os de idade avanccedilada quando convier a cada um exceto em determinados dias quando eacute preciso que estejam presentes com os outros Os efebos tambeacutem dormem ao redor das magistraturas com os armamentos de infantaria exceto os casados Estes por um lado natildeo satildeo requesitados caso natildeo seja ordenado com antecedecircncia que estejam presentes mas natildeo eacute bom que estejam ausentes com frequecircncia

[5] Satildeo doze os chefes agrave frente de cada uma dessas seccedilotildees pois em doze satildeo divididas as tribos da Peacutersia Para o comando dos meninos satildeo escolhidos dentre os mais velhos aqueles que parecem capazes de tornar os meninos melhores Agrave frente dos efebos por outro lado aqueles entre os adultos que por sua vez pareccedilam capazes de tornar os efebos melhores No comando dos adultos aqueles que forem considerados capazes de proporcionar a eles o melhor cumprindo as ordens e as determinaccedilotildees do poder supremo Satildeo tambeacutem escolhidos os chefes para os mais velhos que tomam medidas necessaacuterias para que esses cumpram as coisas estabelecidas O que a cada idade eacute ordenado fazer contaremos detalhadamente a fim de que se torne mais evidente como eles cuidam para que os cidadatildeos sejam melhores

[6] Os meninos frequentando a escola passam o tempo aprendendo a justiccedila e dizem que vatildeo agrave busca de aprender isso do mesmo modo que entre noacutes dizem que vatildeo agrave busca de aprender as letras Os chefes deles passam a maior parte do dia julgando-os pois ocorrem entre os meninos como entre os adultos acusaccedilotildees muacutetuas de furto roubo violecircncia traiccedilotildees e injuacuterias e outras coisas parecidas [7] Se reconhecem neles que satildeo injustos punem Castigam tambeacutem se acaso descobrirem que eles estatildeo acusando injustamente Julgam ainda a falta que por causa dela os homens se odeiam bem mais mas processam menos a ingratidatildeo Pois se observam que algueacutem podendo expressar gratidatildeo natildeo expressa punem-no com severidade Crecircem pois que os ingratos satildeo mais negligentes com os deuses com os familiares com a paacutetria e com os amigos Entretanto nada parece estar mais junto da ingratidatildeo do que a impudecircncia pois esta parece ser de todas as vergonhas a guia [8] Ensinam ainda aos meninos a temperanccedila e contribui muito para aprender a ser moderado que observem os mais velhos ao longo de todo o dia vivendo com moderaccedilatildeo Ensinam tambeacutem a eles a obedecer aos chefes e muito contribui para isso que eles observem os mais velhos obedecendo aos chefes com rigor Ensinam aleacutem disso a moderaccedilatildeo no beber e no comer e muito contribui para isso que eles observem os mais velhos natildeo saindo para comer antes que os chefes os liberem e tambeacutem que os meninos natildeo se alimentem junto das matildees mas dos mestres quando as autoridades

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determinem Trazem de casa patildeo de trigo tempero e agriatildeo e para beber se algueacutem tem sede uma grande taccedila para tirar aacutegua do rio Ademais aprendem a atirar com arco e flecha e a lanccedilar dardos Os meninos fazem isso ateacute os dezessete anos de idade apoacutes isso eles passam para a classe dos efebos

[9] Os efebos por sua vez passam o tempo dessa maneira ao saiacuterem da classe dos meninos por dez anos dormem em torno das magistraturas como predissemos para proteger tanto a cidade quanto a prudecircncia pois essa idade parece ter necessidade de mais diligecircncia Durante o dia se colocam a disposiccedilatildeo das autoridades no caso de alguma necessidade em favor da comunidade E quando eacute preciso todos permanecem ao redor das magistraturas Quando o rei sai agrave caccedila leva metade dos guardas e faz isso muitas vezes no mecircs Os que vatildeo necessitam de arcos e flechas e junto com a aljava na bainha a espada ou um machado aleacutem de um escudo e duas lanccedilas uma para arremessar e a outra caso seja necessaacuterio para atacar com as matildeos [10] Em vista disso organizam em nome do Estado a caccedila e o rei como eacute chefe deles na guerra tambeacutem o eacute na caccedila e cuida para que os outros cacem porque esse exerciacutecio parece ser o mais propiacutecio para guerra pois habitua a levantar cedo e a suportar o frio e o calor exercita nas caminhadas e nas corridas e eacute necessaacuterio lanccedilar flechas e dardos numa fera quando ela surge de imprevisto E frequentemente eacute preciso excitar a alma quando algueacutem se coloca diante de uma fera robusta pois sem duacutevida alguma eacute preciso atacar quando ela se aproxima e se proteger quando ela ataca De modo que natildeo eacute faacutecil encontrar algo que acontecendo na guerra falte agrave caccedila

[11] Saem agrave caccedila levando uma refeiccedilatildeo que de um lado como eacute natural eacute mais abundante do que a dos meninos mas de outro eacute semelhante agrave deles Quando estatildeo caccedilando natildeo almoccedilam se tem alguma necessidade de permanecer mais tempo por causa de uma fera ou por qualquer outro motivo desejam demorar-se na caccedila entatildeo eles jantam a comida do almoccedilo e no dia seguinte caccedilam ateacute a ceia e calculam esses dois dias como um porque consomem o alimento de um uacutenico dia Fazem isso em razatildeo do habituar-se para que se tiver alguma necessidade na guerra poderatildeo fazecirc-lo E os dessa idade tecircm como alimento aquilo que caccedilarem se natildeo mastruccedilo Se algueacutem pensa que eles comem sem prazer quando tecircm com o patildeo apenas o mastruccedilo ou bebem sem prazer quando bebem aacutegua deve se lembrar como eacute prazeroso comer patildeo de cevada e patildeo de trigo quando se tem fome e como eacute prazeroso beber aacutegua quando se tem sede

[12] Por sua vez as seccedilotildees que permanecem passam o tempo exercitando-se nas outras coisas que aprenderam quando eram crianccedilas sobretudo no lanccedilar flechas e dardos e mantecircm-se em disputa uns com os outros Haacute tambeacutem competiccedilotildees puacuteblicas entre eles e se oferecem precircmios Se existir em algum dos grupos numerosos homens haacutebeis corajosos e obedientes os cidadatildeos louvam e honram natildeo soacute o arconte atual mas tambeacutem aquele que os ensinou quando eram crianccedilas As autoridades se servem daqueles efebos que permanecem e se houver alguma necessidade ou de montar-guarda ou de procurar criminosos ou correr atraacutes de ladrotildees entre outras coisas tanto quanto for trabalho de forccedila e agilidade Os efebos portanto se ocupam com essas coisas Depois que completam dez anos chegam agrave classe dos adultos

[13] A partir do momento que chegam nesta classe passam vinte e cinco anos dessa maneira primeiramente como os efebos se colocam agrave disposiccedilatildeo das autoridades se houver necessidade em prol da comunidade tanto quanto for trabalho de reflexatildeo e vigor Se haacute necessidade de servir como soldado em algum lugar os que foram educados dessa maneira fazem expediccedilotildees natildeo mais levando arco e flecha nem lanccedilas mas armas ditas de combate corpo-a-corpo couraccedila ao redor do peito e escudo na matildeo esquerda tal como os persas satildeo

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representados e na destra uma adaga ou espada curta E todos os magistrados satildeo escolhidos dentre eles exceto os professores das crianccedilas Depois de completarem vinte e cinco anos eles poderatildeo vir a ter algo mais que cinquenta anos de idade partem nesse momento para a classe dos que sendo mais velhos satildeo assim chamados

[14] Esses mais velhos por sua vez natildeo mais fazem expediccedilotildees no exterior e permanecendo na paacutetria julgam todas as coisas da comunidade e dos particulares E eles tambeacutem julgam as sentenccedilas de morte e elegem todos os magistrados E se algueacutem dos efebos ou dos homens adultos negligencia alguma das leis e cada um dos chefes ou qualquer outro que quiser denuncia-o os mais velhos tendo escutado a acusaccedilatildeo condenam e o julgado passa o resto da vida separado

[15] A fim de que toda a constituiccedilatildeo dos persas seja mostrada com mais evidecircncia recapitulo um pouco pois agora graccedilas ao que foi dito anteriormente poderaacute ser mostrado rapidamente Os persas dizem satildeo em torno de cento e vinte mil e nenhum deles estaacute excluiacutedo por lei das honras e dos cargos mas eacute permitido a todos os persas enviar seus filhos para as escolas puacuteblicas de justiccedila Mas certamente os que podem sustentar os filhos sem que eles trabalhem enviam os que natildeo podem natildeo enviam Aos que foram educados junto aos mestres puacuteblicos eacute permitido por lei passar a juventude na classe dos efebos mas aos que natildeo foram educados dessa maneira natildeo eacute permitido Aos que por sua vez permanecem na classe dos efebos cumprindo as leis a eles eacute permitido entrar na classe dos adultos e participar dos cargos e das honras e os que natildeo passam na classe dos efebos natildeo entram na classe dos adultos Os que resistem irrepreensiacuteveis na classe dos adultos esses chegam agrave classe dos mais velhos Desse modo entatildeo a classe dos mais velhos constitui-se por aqueles que atingiram todas as classes com honra essa eacute a constituiccedilatildeo que consideram que obedecendo se tornaratildeo os melhores

[16] Ainda hoje persistem testemunhos do modo de vida moderado dos persas e do exercitar-se habitualmente pois ainda hoje eacute vergonhoso para os persas escarrar e assuar o nariz e mostrar-se repleto de flatos e tambeacutem eacute vergonhoso aparecer em puacuteblico indo a algum lugar urinar ou para alguma outra coisa Natildeo poderiam fazer isso se natildeo dispusessem de um regime moderado e natildeo digerissem os liacutequidos exercitando-se de tal modo que sejam expelidos por qualquer outro lugar

Isso eacute o que podemos dizer a respeito dos persas em geral Narraremos agora as accedilotildees de Ciro que a narrativa comeccedilou por causa disso iniciando a partir da infacircncia

III [1] Ciro com efeito ateacute os doze anos ou pouco mais foi educado nessa paideia e

mostrava-se superando a todos os da sua idade tanto no aprender com rapidez as coisas que fossem necessaacuterias quanto no cumprir cada tarefa com nobreza e virilidade

Nesse tempo Astiacuteages mandou chamar sua filha e o filho dela pois desejava vecirc-lo jaacute que ouvira que ele era excelente A proacutepria Mandane parte ateacute o pai levando o filho Ciro [2] Logo que chegou Ciro reconheceu Astiacuteages como sendo seu avocirc e de imediato como era uma crianccedila amorosa por natureza beijava-o como algueacutem beijaria a antigos convivas e a antigos amigos E notou que ele estava enfeitado de acordo com o costume medo com contornos nos olhos pintado com arrebiques e de cabeleiras posticcedilas Todas essas coisas satildeo medas as tuacutenicas puacuterpuras os casacos os colares ao redor do pescoccedilo braceletes em torno dos punhos Aleacutem disso ainda hoje os persas em suas casas usam roupas muitas mais simples e tecircm um regime mais frugal

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Notando entatildeo a maquiagem do avocirc fixou os olhos nele e disse ldquoMatildee como eacute belo o meu avocircrdquo Tendo a matildee perguntado a ele qual dos dois o pai ou o avocirc parecia ser a ele o mais

belo Ciro respondeu ldquoMatildee entre os persas meu pai eacute muito mais belo seguramente dos quantos medos que

eu vi tanto nas estradas quanto na corte meu avocirc eacute o mais belordquo [3] O avocirc retribuindo-o vestiu-o com uma bela estola e honrou-o e enfeitou-o com

braceletes e colares e se ia sair agrave cavalo levava-o consigo sobre um cavalo de freios dourados como ele proacuteprio costumava ir Ciro como era uma crianccedila que amava as belezas e as honrarias se alegrou com a estola e se regozijou extremamente aprendendo a cavalgar pois na Peacutersia por ser difiacutecil criar cavalos e cavalgar no paiacutes que eacute montanhoso era muito raro ver um cavalo

[4] Astiacuteages jantando com a filha e Ciro querendo que a crianccedila comesse com o maacuteximo de prazer para que sentisse menos saudades de casa conduziu em torno dele guloseimas toda a sorte de molhos e alimentos Dizem que entatildeo Ciro disse

ldquoAvocirc quantas inquietaccedilotildees tecircm na ceia se eacute necessaacuterio a ti estender as matildeos sobre todas essas travessas e degustar do tipo de alimentosrdquo

ldquoMas quecirc ndash disse Astiacuteages ndash pois natildeo parece a ti ser muito mais gostosa esta ceia do que a que tem na Peacutersiardquo E Ciro visando responder a isso disse

ldquoNatildeo avocirc pois o caminho para saciar-se eacute para noacutes muito mais simples e muito mais direto do que para voacutes pois enquanto o patildeo e a carne nos conduzem a isso voacutes indo na mesma direccedilatildeo vos lanccedilais e perdendo-se em muitos giros para cima e para baixo chegais arduamente aonde noacutes desde haacute muito chegamosrdquo

[5] ldquoMas crianccedila erramos em torno disso e natildeo ficamos aflitos Tu contudo provando reconheceraacutes que eacute prazerosordquo

ldquoMas vejo-te oacute avocirc experimentando horror por estas comidasrdquo ldquoFilho por qual sinal tu dizes issordquo ldquoPorque vejo quando tocas no patildeo que tu natildeo limpas a matildeo em nada mas quando ao

contraacuterio toca em algum desses alimentos imediatamente limpa a matildeo nos guardanapos de modo que estava muito aborrecido por ter as matildeos cheias delesrdquo

[6] Depois disso Astiacuteages disse ldquoSe entatildeo pensas assim filho regala-te com a carne para que voltes robusto para casardquo Ao mesmo tempo em que dizia isso serviu a ele inuacutemeras carnes de animais selvagens e domeacutesticos Ciro assim que viu a numerosa carne disse ldquoDe fato avocirc tu me daacutes toda essa carne para que eu faccedila com elas o que eu quiserrdquo

[7] ldquoSim filho por Zeusrdquo Ciro pegando a carne distribuiu aos serviccedilais ao redor do avocirc dizendo a cada um ldquoIsso eacute para ti pois me ensinas de boa vontade a cavalgar para ti pois me daacutes a lanccedila e agora eu a tenho para ti pois serves meu avocirc nobremente e a ti pois honras minha matildeerdquo Dizia assim enquanto distribuiacutea as carnes que pegava

[8] ldquoA Sacas disse Astiacuteages o escanccedilatildeo a quem eu tenho muitiacutessima estima nada daacutesrdquo Sacas com efeito calhava de ser belo e de ter a funccedilatildeo de conduzir a Astiacuteages os que tivessem necessidade e de impedir quem ele julgasse que natildeo fosse oportuno ser conduzido E Ciro perguntou com petulacircncia como uma crianccedila que natildeo eacute tiacutemida ldquoPor que avocirc honra-o desse modordquo

Astiacuteages divertindo-se disse ldquoNatildeo vecircs quatildeo belo e honradamente ele verte o vinhordquo Os escanccedilotildees desses reis vertem o vinho com graccedila e servem com limpeza servem segurando a taccedila com trecircs dedos e entregam assim para que quem receber possa melhor apanhar a taccedila para beber

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[9] ldquoAvocirc ordena entatildeo a Sacas que me decircs a taccedila para que eu tambeacutem te servindo belamente o que beber conquiste-te se eu puderrdquo Ele ordenou-o a dar Ciro tomando a taccedila de tal modo enxaguou-a bem como vira Sacas fazer e de tal modo fixando o rosto com gravidade apresentou-se nobremente e deu a taccedila ao avocirc provocando na matildee e no avocirc muitas risadas E o proacuteprio Ciro pondo-se a rir atirou-se sobre o avocirc e enquanto o beijava disse

ldquoOacute Sacas estaacutes perdido Demitir-te-ei do cargo pois verterei o vinho melhor do que vocecirc e natildeo beberei o vinho delerdquo Com efeito os escanccedilotildees dos reis cada vez que lhes entregam a taccedila tiram um pouco dela para si com uma concha e vertendo o vinho na matildeo esquerda experimentam-no para que se algueacutem verteu veneno natildeo obtenha sucesso

[10] Depois disso Astiacuteages gracejando disse ldquoPorque Ciro imitando Sacas nas outras coisas natildeo sorveu o vinhordquo

ldquoPorque por Zeus temia que tivessem misturado veneno na cratera Pois quando tu recebeste os amigos nas festas de aniversaacuterio claramente observei que ele vos servia venenordquo

ldquoE de que maneira tu notavas issordquo ldquoPor Zeus pois via vos cambaleando o corpo e o juiacutezo Primeiramente o que natildeo

permites a noacutes as crianccedilas fazer voacutes mesmos o faziam Todos gritavam ao mesmo tempo e nada entendiacuteeis uns dos outros cantaacuteveis de modo muito risiacutevel e natildeo ouvindo com atenccedilatildeo o que cantaacuteveis julgaacuteveis cantar nobremente cada um deles falava de sua proacutepria forccedila em seguida se levantassem para danccedilar natildeo soacute natildeo danccedilavam no ritmo mas nem conseguiam endireitar-se Tu esqueceste-te totalmente de que tu eras o rei e os outros de que tu eras o governante pois nesse momento eu ao menos pela primeira vez entendi que isso com efeito era a igualdade de expressatildeo o que voacutes praticaacuteveis entatildeo Ao menos jamais voacutes vos calaacuteveisrdquo

[11] E Astiacuteages disse ldquoE o seu pai menino quando bebe natildeo se embriagardquo ldquoNatildeo por Zeusrdquo ldquoMas como ele fazrdquo ldquoEle sacia a sua sede e nenhum outro mal sofre pois penso avocirc natildeo eacute Sacas quem lhe

serve o vinhordquo A matildee entatildeo disse ldquoMas por que tu filho fazes guerra a Sacas desse modordquo ldquoPorque por Zeus disse Ciro odeio-o pois muitas vezes quando eu desejava correr

para junto do meu avocirc esse miseraacutevel me impedia Mas imploro avocirc daacute-me trecircs dias para chefiaacute-lordquo

ldquoE de que modo o comandariardquo disse Astiacuteages ldquoEstender-me-ia de peacute como ele na porta da entrada e cada vez que ele quisesse entrar

para o almoccedilo diria que ainda natildeo era possiacutevel encontrar-se com o almoccedilo pois ele estaria ocupado com algumas pessoas Em seguida quando ele chegasse para o jantar diria que o jantar estava a banhar-se e se estivesse com pressa para comer diria que a fome estava junto com as mulheres a fim de fazecirc-lo esperar como ele me faz esperar impedindo-me de estar junto a tirdquo

[12] Com tal alegria mostrava-se entre eles no jantar Durante o dia se percebesse que o avocirc ou o irmatildeo da sua matildee tivessem necessidade de algo era difiacutecil que outro fosse o primeiro a fazecirc-lo pois Ciro se alegrava extremamente agradando-os naquilo que pudesse

[13] Assim que Mandane se preparava para voltar para junto do marido Astiacuteages pedia a ela que deixasse Ciro Ela respondeu que sem duacutevida queria agradar em tudo ao pai em todo caso era difiacutecil pensar em deixar o menino contra a sua vontade Astiacuteages entatildeo disse a Ciro [14] ldquoMenino se permaneceres comigo primeiramente Sacas natildeo se colocaraacute agrave tua frente na porta de entrada para junto de mim mas cada vez que quiseres entrar estaraacutes comigo E serei grato a ti quanto mais frequente entrares para estares comigo Depois tu te serviraacutes dos meus

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cavalos e de todos os outros que quiseres e quando partires tu partiraacutes levando aqueles que tu quiseres Em seguida no jantar conforme tu desejes seguiraacutes o caminho que pareccedila a ti conduzir a moderaccedilatildeo Depois dou a ti as feras que agora estatildeo no parque e reunirei outras de todas as espeacutecies as quais assim que aprenderes a cavalgar perseguiraacutes e abateraacutes dardejando e flechando como homens grandes e fornecerei a ti crianccedilas como companheiros de jogos e qualquer outra coisa que desejares dizendo a mim natildeo seraacutes privadordquo

[15] Depois que Astiacuteages disse essas coisas a matildee perguntou a Ciro qual dos dois ele queria ficar ou ir embora Ele natildeo hesitou mas respondeu prontamente que queria ficar Tendo sido perguntado novamente pela matildee o porquecirc dizem que ele respondeu ldquoPorque em casa entre os da minha idade sou e tenho a reputaccedilatildeo de ser o melhor em lanccedilar dardos e flechas e aqui eu sei que no cavalgar sou inferior aos da minha idade E veja bem matildee que isto muito me aborrece Se me deixares aqui e eu aprender a cavalgar quando de um lado eu estiver na Peacutersia penso que para ti vencerei nos exerciacutecios de infantaria aqueles que satildeo os melhores de outro quando vier agrave Meacutedia aqui me esforccedilarei sendo o melhor do que os bons cavaleiros do avocirc para ser aliado dele na cavalariardquo

A matildee disse entatildeo [16] ldquoMas filho como aprenderaacutes a justiccedila aqui estando teus preceptores laacuterdquo

ldquoMas matildee eu certamente sei isso com precisatildeordquo ldquoComo tu sabesrdquo disse Mandane ldquoPor que o mestre jaacute me colocou para julgar os outros jaacute me tendo como preciso na

justiccedila E com efeito apenas uma vez tendo eu julgado de modo incorreto recebi golpes como castigo [17] O processo foi esse um menino grande possuindo uma tuacutenica pequena despojou um menino pequeno que possuiacutea uma tuacutenica grande e de um lado vestiu aquele com a sua e de outro vestiu a si mesmo com a daquele Eu portanto julgando-os entendi ser melhor para ambos que cada um ficasse com a tuacutenica que lhe melhor ajustava Acerca disso o mestre me bateu tendo dito que quando eu for ser o juiz do que se ajusta melhor entatildeo eacute conveniente agir de tal modo todavia quando for necessaacuterio julgar de qual dos dois eacute a tuacutenica disse que eacute preciso refletir de quem eacute a posse de acordo com as leis daquele que tomou agrave forccedila ou daquele que tem a posse por ter comprado ou fabricado para si Pois o que eacute conforme a lei eacute justo e o que age com violecircncia natildeo estaacute conforme agraves leis Ele sempre exortava ao juiz determinar o voto conforme agrave lei Eu assim mostro a ti matildee que sobre a justiccedila jaacute estudei com muito rigor Se com efeito eu tiver a necessidade de algo o avocirc me ensinaraacute isso em acreacutescimordquo

[18] ldquoMas filho natildeo satildeo as mesmas coisas aqui e na Peacutersia que satildeo acordadas como justas Pois seu avocirc de um lado faz-se deacutespota de todos na Meacutedia de outro na Peacutersia considera-se justiccedila possuir a igualdade E o teu pai eacute o primeiro a fazer o que foi ordenado pela cidade e a aceitar o que foi ordenado pois a medida dele eacute a lei natildeo a paixatildeo De modo que portanto natildeo morras tu sendo chicoteado quando em casa estiveres depois de chegares tendo apreendido da parte do avocirc a tirania na qual haacute a crenccedila de que eacute necessaacuterio possuir mais do que todos e eacute por isso contraacuterio a realezardquo

ldquoMas disse Ciro teu pai eacute o mais haacutebil em ensinar a possuir menos do que mais ou natildeo vecircs que ele ensinou a todos os medos a ter menos do que ele Assim fiques tranquila matildee pois nem teu pai nem nenhum outro me enviaraacute de volta me ensinando a ter mais do que os outrosrdquo

IV [1] De um lado Ciro tagarelava muitas coisas desse tipo de outro por fim partiu a

matildee Ciro entatildeo permaneceu e foi educado por ele E rapidamente misturou-se com os da sua

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idade de modo que se sentia em casa e rapidamente conquistou os pais deles agradando-os e dando mostras que se alegrava com os filhos deles assim se tivessem alguma necessidade do rei eles ordenavam aos filhos que procurassem Ciro para negociar com ele e Ciro naquilo que as crianccedilas precisassem dele por amor agrave bondade e agraves honras fazia de tudo para obter

[2] Astiacuteages para aquilo que Ciro pedisse a ele em nada podia resistir para lhe ser agradaacutevel Pois tendo ele adoecido jamais Ciro afastava-se do avocirc nem cessava de chorar mas era evidente a todos que temia muito que o avocirc morresse E durante a noite se Astiacuteages precisasse de alguma coisa Ciro era o primeiro a perceber e o mais diligente de todos para servir naquilo que imaginava lhe ser agradaacutevel desse modo conquistou completamente Astiacuteages [3] Era igualmente falastratildeo tanto graccedilas agrave educaccedilatildeo jaacute que era obrigado pelo mestre a narrar o que fazia e a receber da parte dos outros quando julgava quanto graccedilas a ser um amante do aprender e sempre perguntava aos presentes como calhavam das coisas se conduzirem e tanto quanto era indagado pelos outros por ser perspicaz respondia rapidamente De modo que nele todas estas coisas resultaram o haacutebito de falar muito Mas do mesmo modo que no corpo quantos sendo jovens ganham altura e todavia neles o manifesto frescor da juventude denuncia-lhes a pouca idade assim tambeacutem por causa da loquacidade de Ciro ele natildeo revelava imprudecircncia mas inocecircncia e ternura de sorte que se desejava ainda mais ouvi-lo do que se estivesse presente em silecircncio

[4] Conforme o tempo fazia-o progredir no tamanho para a hora de tornar-se adolescente com isso servia-se das palavras mais raramente e da voz mais suavemente pois ficava cheio de vergonha a ponto de corar quando se encontrava com os mais velhos e natildeo mais como um cachorrinho jogava-se sobre todos conduzindo-se com semelhante fogosidade Assim de um lado era mais circunspecto de outro nas reuniotildees era inteiramente gracioso

E pois agrave medida que os da sua idade rivalizavam frequentemente uns com os outros Ciro se sabia que era mais forte do que eles natildeo provocava os companheiros nisso do mesmo modo que se bem sabia-se inferior tomava a iniciativa dizendo fazer melhor do que eles e imediatamente dava o exemplo atirando-se sobre os cavalos e do alto lutava com o arco ou com a lanccedila e natildeo sendo ainda muito haacutebil no cavalgar ele quando vencido era o que mais ria de si mesmo [5] Como natildeo fugia de ser vencido e natildeo fazer aquilo em que era inferior poreacutem passava o tempo praticando para no futuro fazer melhor rapidamente natildeo soacute conseguiu a igualdade na equitaccedilatildeo entre os da sua idade como tambeacutem rapidamente os sobrepujou graccedilas ao amor ao trabalho bem raacutepido tambeacutem fez perecer os animais que estavam no parque perseguindo-os atirando e matando e em consequecircncia disso Astiacuteages natildeo mais tinha como reunir animais no para ele E Ciro tendo percebido que o avocirc querendo natildeo podia fornecer animais vivos disse a ele ldquoAvocirc porque eacute necessaacuterio a ti ter o estorvo de procurar animais Mas se me enviares agrave caccedila com o tio tudo quanto animal que eu ver consideraacute-los-ei criados para mimrdquo [6] Ainda que desejasse com veemecircncia ir agrave caccedila natildeo podia insistir como quando crianccedila mas aproximava-se com a maior timidez possiacutevel E quando antes censurava a Sacas por que natildeo o deixava ir para junto do avocirc ele agora era o seu proacuteprio Sacas pois natildeo se aproximava se visse que natildeo era oportuno e pedia a Sacas que quando fosse oportuno lhe fizesse um sinal Assim Sacas jaacute o amava excessivamente e os outros todos tambeacutem

[7] Quando entatildeo Astiacuteages percebeu que ele desejava com veemecircncia caccedilar fora enviou-o com o tio e como guardas enviou junto os mais velhos sobre cavalos a fim de que o protegessem de terrenos difiacuteceis e se algum animal selvagem aparecesse Ciro indagava com ardor para os que estavam lhe seguindo de quais os animais que era necessaacuterio natildeo se aproximar e de quais era necessaacuterio perseguir com coragem Eles diziam que ursos javalis

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leotildees e leopardos jaacute mataram a muitos que se aproximaram mas os cervos as gazelas os carneiros selvagens e os asnos selvagens eram inofensivos Diziam ainda que era necessaacuterio se proteger natildeo menos do que das feras dos terrenos difiacuteceis pois muitos jaacute se precipitaram do alto a baixo com os proacuteprios cavalos [8] E Ciro aprendia tudo isso com ardor

Poreacutem assim que viu que um cervo saltara esquecendo-se de todas as coisas que acabara de ouvir perseguia-o sem nada ver aleacutem do lugar para onde o cervo fugia E de alguma maneira o cavalo saltando com ele cai de joelhos e por pouco natildeo o lanccedilou por cima do pescoccedilo Entretanto Ciro resistiu com alguma dificuldade e o cavalo levantou-se de sorte que chegou na planiacutecie e tendo desferido o dardo abateu o cervo uma peccedila bela e grande Ciro regozijou-se excessivamente os guardas no entanto tendo avanccedilado a cavalo repreenderam-no dizendo quanto perigo passara e falaram que denunciar-no-iam Ciro entatildeo ficou em peacute tendo descido e ouvido essas coisas afligiu-se Mas quando percebeu um grito salta sobre o cavalo como possuiacutedo pelo ecircxtase e quando o viu agrave sua frente um javali vindo ao encontro lanccedila-se diretamente e entesando a lanccedila diretamente agrave testa e domina o javali

[9] Jaacute naquele momento o tio certamente repreendia-o vendo a grande imprudecircncia Ciro apesar de ser repreendido pedia tudo quanto ele obtivera e a permissatildeo de levar essas coisas para dar ao avocirc O tio entatildeo dizem disse

ldquoMas se ele vir o que tu perseguiste natildeo soacute a ti censuraraacutes como tambeacutem a mim por ter te permitidordquo

ldquoSe ele quiser respondeu Ciro que ele accediloite-me depois que eu decirc a ele E tu mesmo tio no que quiser castigue-me por causa disso no entanto faccedila-me esse favorrdquo

E Ciaxares concluindo disse ldquoFaccedila como quiseres pois agora tu pareces ser mesmo o nosso reirdquo

[10] Desse modo Ciro tendo levado as presas deu-as ao avocirc dizendo que as tinha caccedilado para ele Natildeo exibiu os dardos mas colocou os que estavam ensanguentados onde pensava que o avocirc veria Astiacuteages em seguida disse

ldquoFilho eu recebo com prazer tudo quanto tu me daacutes mas de fato natildeo preciso de nada destas coisas para tu te arriscaresrdquo

ldquoSe entatildeo tu natildeo precisas disse Ciro avocirc decirc-as para mim para que eu entregue aos da minha idaderdquo

ldquoBem Filho tomando estas coisas entregues para quem tu quiseres e tanto quanto das outras coisas tu desejesrdquo

[11] Ciro tendo pegado e levado as carnes as destribuiu enquanto dizia ldquoRapazes como com efeito falaacutevamos com frivolidade quando caccedilaacutevamos animais no parque Para mim ao menos parece ser igual como se algueacutem caccedilasse um animal acorrentado Primeiramente pois estavam em um lugar pequeno depois eram fracos e sarnentos e alguns deles eram coxos e outros mutilados Os animais selvagens nas montanhas e prados por sua vez quatildeo belos quatildeo grandes quatildeo esplecircndidos se mostravam E de um lado os cervos como os paacutessaros saltam para o ceacuteu e de outro os javalis como dizem dos homens corajosos atacam indo ao encontro e por causa da largura natildeo era possiacutevel erraacute-los Ao menos para mim parece que esses mortos satildeo mais belos do que aqueles animais vivos e encerrados Mas seraacute que os vossos pais permitiriam que voacutes saiacutessem agrave caccedilardquo

ldquoFacilmente disseram se Astiacuteages ordenasserdquo [12] E Ciro disse ldquoQuem intercederia a Astiacuteages por voacutesrdquo ldquoQuem disseram eacute mais capaz de convencecirc-lo do que turdquo

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ldquoMas natildeo por Zeus eu natildeo sei que homem eu me tornei pois natildeo sou capaz de falar e olhar o meu avocirc como podia antes Se progredir desse modo temo tornar-me completamente indeciso e insensato e quando era crianccedila eu parecia ser extraordinariamente haacutebil no falarrdquo

Os meninos disseram ldquoTu dizes uma coisa penosa se em nosso favor natildeo podes fazer nada seraacute necessaacuterio a noacutes que peccedilamos para algum outro aquilo que respeita a tirdquo

[13] Ouvido essas coisas Ciro ficou mordido e em silecircncio partiu e tendo encorajado a si mesmo a ousar apresentou-se Tramara uma maneira mais inofensiva de falar com o avocirc e obter dele o que ele e os outros todos desejavam Comeccedilou portanto dessa maneira

ldquoDiga-me avocirc se algum dos servos fugisse e tu o apanhasses o que farias com elerdquo ldquoQue outra coisa do que tendo aprisionado obrigaacute-lo a trabalharrdquo ldquoSe ele viesse ao contraacuterio espontaneamente como agiriasrdquo ldquoComo senatildeo depois de accediloitaacute-lo para que natildeo faccedila isso no futuro servir-me-ia dele

como desde o iniacuteciordquo ldquoTalvez entatildeo seja hora de ti te preparares para accediloitar-me pois estou planejando fugir

em segredo de ti levando meus colegas para a caccedilardquo ldquoFez bem em declarar pois te proiacutebo de te moveres daqui de dentro Que coisa

agradaacutevel seria se por causa de um pedaccedilo de carne eu viesse a perder o filho da minha filhardquo [14] Apoacutes ouvir isso Ciro obedeceu enquanto esperava aflito e chateado e permanecia

em silecircncio Astiacuteages em todo caso visto que reconhecia que ele estava aborrecido querendo agradaacute-lo levou-o para caccedila e reunindo muitos soldados da infantaria cavaleiros e crianccedilas saiacuteram juntos para um terreno bom de cavalgar e fizeram uma grande caccedila E regiamente estando presente ele mesmo proibiu que ningueacutem lanccedilasse antes que Ciro estivesse saciado das caccedilas Mas Ciro natildeo consentia com a proibiccedilatildeo e disse

ldquoMas avocirc se queres que eu cace com prazer permitas a todos os que estatildeo comigo que persigam e lutem com o melhor que cada um puderrdquo [15] Entatildeo Astiacuteages permitiu e pondo-se em peacute observava os competidores cheios de emulaccedilatildeo perseguindo e golpeando os animais E alegrava-se com Ciro que natildeo podia ficar em silecircncio por causa da felicidade mas como um jovem catildeo de boa raccedila bradava cada vez que se aproximava de um animal e exortava cada um chamando pelo nome Encantou-se tambeacutem vendo que ele tanto ria dos outros como tambeacutem os louvava sem notar nele o menor sinal de inveja Por fim levando muitos animais Astiacuteages foi embora E doravante de tal modo alegrou-se nessa caccedila que sempre que fosse possiacutevel saiacutea com Ciro e levava consigo muitos outros tambeacutem meninos por causa de Ciro Assim Ciro passava a maior parte do tempo sendo a causa de coisas boas e felizes para todos mas nunca de coisas ruins

[16] Quando Ciro tinha por volta dos quinze ou dezesseis anos de idade o filho do rei dos Assiacuterios estando para casar por esta eacutepoca desejou caccedilar Ouvindo que nas fronteiras da Assiacuteria com a da Meacutedia havia muitos animais natildeo caccedilados por causa da guerra para ali mesmo desejava ir A fim de caccedilar com seguranccedila tomou consigo muitos cavaleiros e peltastas prontos para expulsar para ele os animais da densa vegetaccedilatildeo para os campos cultivaacuteveis e adequados para cavalgar Chegado onde estavam as suas guarniccedilotildees e o forte ali fez a ceia desejando caccedilar na manhatilde seguinte [17] Assim que o entardecer chegou a tropa de revezamento cavaleiros e infantaria vieram da cidade para a proacutexima guarda Parecia-lhe portanto que numerosa armada estava agrave disposiccedilatildeo pois eram duas guarniccedilotildees juntas e tinha agrave sua disposiccedilatildeo numerosos cavaleiros e infantes Decidiu por isso que seria melhor saquear a terra dos medos e pensava que esse trabalho se mostraria mais ilustre do que a caccedila pois haveria grande abundacircncia de viacutetimas Desse modo tendo levantando cedo conduziu as tropas deixou

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atraacutes na fronteira os infantes em bloco e entatildeo avanccedilou com a cavalaria contra as guarniccedilotildees dos medos e mantendo junto consigo numerosos nobres ali permaneceu para que as guarniccedilotildees medas natildeo viessem em socorro contra os que atacaram Enviou as tropas apropriadas para atacar de um lado a outro e exortava que eles cercassem quem encontrassem e o conduzissem consigo Eles entatildeo faziam isso

[18] Astiacuteages ao ser informado que os inimigos estavam no paiacutes saiu em socorro para a fronteira com soldados ao seu redor e o proacuteprio filho como ele com os cavaleiros que ao seu redor e a todos os outros ordenou que fossem em socorro Quando viu os muitos homens dos assiacuterios em formaccedilatildeo de combate e os cavaleiros em repouso tambeacutem os medos ficaram em formaccedilatildeo Ciro vendo os outros saindo em socorro com todas as forccedilas reunidas saiu ele tambeacutem e pela primeira vez entatildeo veste as armas temendo que isso jamais ocorresse tanto desejava se armar dos peacutes agrave cabeccedila Era muito bonita e ajustava-se convenientemente nele pois o avocirc mandara fazer agrave medida do corpo Desse modo armado conduziu-se com o cavalo Astiacuteages espantado perguntou-lhe quem tinha ordenado que ele viesse no entanto disse a ele que permanecesse junto de si [19] Ciro ao ver muitos cavaleiros do lado oposto perguntou

ldquoSeraacute que avocirc esses satildeo os inimigos os que estatildeo assentados imoacuteveis sobre os cavalosrdquo

ldquoInimigos certamenterdquo ldquoSeraacute que tambeacutem aqueles os que estatildeo avanccedilandordquo ldquoAqueles tambeacutem certamenterdquo ldquoAvocirc por Zeus Mas mostrando-se penosos e sobre reles cavalinhos saqueiam nossa

riqueza Sendo assim eacute necessaacuterio que alguns dos nossos avancem sobre elesrdquo ldquoMas natildeo vecircs filho quatildeo grande eacute a massa compacta dos cavaleiros postados em ordem

de batalha Se os nossos os atacarem aqueles interceptaratildeo os nossos por traacutes e o grosso das nossas forccedilas natildeo estaacute presente aindardquo

ldquoPoreacutem se tu resistires e te recuperares os que vecircm em socorro eles teratildeo medo e natildeo se mexeratildeo enquanto que os saqueadores imediatamente largaratildeo o butim quando virem alguns sendo perseguidos por noacutesrdquo

[20] Dito essas coisas pareceu a Astiacuteages que Ciro falara sensatamente E enquanto estava maravilhado com a sua sabedoria e vigilacircncia ordenou ao filho que tomasse um esquadratildeo de cavaleiros e atacasse sobre os que levavam o saque

ldquoEu ao contraacuterio disse Astiacuteages sobre estes se se moverem sobre ti avanccedilarei de modo que seratildeo obrigados a se preocuparem conoscordquo

Desse modo Ciaxares tomando cavalos e homens vigorosos avanccedilou Ciro quando os viu partirem lanccedila-se e ele rapidamente conduziu-se agrave frente e Ciaxares certamente seguia de perto e os outros natildeo se deixaram ficar para traacutes Quando viram eles se aproximando os saqueadores imediatamente tendo largado as coisas fugiram [21] Os que estavam ao redor de Ciro interceptavam e sendo Ciro o primeiro imediatamente golpeavam aqueles que surpreendiam e quantos passavam adiante deles fugindo eles corriam atraacutes e natildeo afrouxavam mas capturavam alguns deles Como um catildeo de boa raccedila mas inexperiente imprudentemente vai de encontro ao javali assim tambeacutem Ciro arremetia apenas tentando golpear quem ele alcanccedilasse natildeo se precavendo de nenhuma outra coisa Os inimigos quando viram os seus sofrendo avanccedilaram as tropas a fim de que interrompessem a perseguiccedilatildeo ao verem que eles estavam se lanccedilando adiante [22] Ciro por nada cedia mas sob o efeito do prazer invocou o tio e continuava a persegui-los e com forccedila impocircs a fuga aos inimigos Ciaxares de fato seguia de perto talvez com vergonha do pai e os outros tambeacutem estando eles ardorosos em tal

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circunstacircncia seguiam na perseguiccedilatildeo mesmo os que natildeo eram muito corajosos em face dos inimigos Astiacuteages quando viu de um lado os que estavam perseguindo imprudentemente e de outro os inimigos em bloco marchando ao encontro e em posiccedilatildeo apropriada temeu pelo filho e por Ciro que eles sofressem algo ao se precipitarem em desordem aos que estavam bem dispostos e conduziu-se de imediato contra os inimigos [23] Os inimigos por sua vez ao verem os medos avanccedilando uns entesaram as lanccedilas e enquanto outros ergueram os arcos de modo que quando chegassem ao alcance de tiro eles parassem como a maioria tem o haacutebito de fazer Pois ateacute agora quando chegam o mais proacuteximo possiacutevel avanccedilando uns contra os outros frequentemente atiram de longe ateacute o anoitecer

Quando poreacutem viram os seus em fuga correndo em sua proacutepria direccedilatildeo e os que estavam com Ciro conduzindo-se muito proacuteximos contra eles e Astiacuteages com os cavalos chegando ao limite dos tiros de arco os inimigos recuaram e fugiram com eles perseguindo de perto com todo vigor Capturam muitos e os que eram alcanccedilados os medos golpeavam cavalos e homens e os caiacutedos eles matavam E natildeo se detiveram antes que tivessem chegado agrave face da infantaria dos Assiacuterios Ali certamente temendo que uma emboscada maior estivesse escondida se detiveram

[24] Depois disso Astiacuteages retirou-se bastante feliz com a vitoacuteria em combate da cavalaria mas natildeo sabendo o que dizer a Ciro pois de um lado reconhecia que ele era o responsaacutevel pelo feito mas de outro percebia que ele fora arrebatado pela coragem E no momento em que partiam para casa Ciro isolado de todos nenhuma outra coisa fazia do que cavalgando ao redor dos mortos os contemplava Os designados para isso com muito custo arrancaram-no e o conduziram a Astiacuteages Ciro deixou seus condutores bem agrave frente pois via o semblante irado do avocirc por causa da contemplaccedilatildeo dele

[25] Essas coisas na Meacutedia ocorreram e todos tinham Ciro na boca seja nas narrativas seja nas canccedilotildees e Astiacuteages que jaacute antes o estimava nesse momento passara a ficar estupefato por causa dele Cambises o pai de Ciro alegrava-se ao ser informado dessas coisas poreacutem quando ouviu que Ciro punha as matildeos sobre os trabalhos de homens chamou-o de volta para que se formasse nos costumes persas Ciro entatildeo disse que queria partir para que o pai natildeo se afligisse com alguma coisa e a cidade o censurasse A Astiacuteages parecia que era imperioso enviaacute-lo de volta

Nesse momento entatildeo enviou-o tendo dado a ele os cavalos que ele desejava levar e equipado com muitas outras coisas porque o amava mas tambeacutem por ter grandes esperanccedilas de que nele houvesse um homem capaz de ajudar os amigos e de afligir aos inimigos E estando Ciro partindo todos meninos jovens adultos e os mais velhos escoltavam-no a cavalo e o proacuteprio Astiacuteages tambeacutem e dizem que nenhum daqueles voltou sem estar chorando

[26] E dizem ainda que o proacuteprio Ciro afastava-se com muitas laacutegrimas E dizem ainda que ele distribuiu muitos presentes aos da sua idade daqueles que Astiacuteages lhe havia dado Por fim levava uma tuacutenica meda da qual despojando-se deu a algueacutem dando mostras de que o prezava muitiacutessimo Os que pegavam e aceitavam os presentes dizem devolveram a Astiacuteages e Astiacuteages aceitando enviou-os de volta a Ciro que enviou novamente aos medos e disse ldquoSe tu queres avocirc que eu retorne a ti sem ficar constrangido se eu entregar algo a algueacutem permite que ele a mantenhardquo Astiacuteages apoacutes ouvir isso fez como Ciro mandara

[27] Por ventura eacute necessaacuterio recordar a histoacuteria de um jovenzinho dizem que Ciro partia se afastando dos outros Os parentes despediam-se o beijando na boca segundo o costume persa Ainda hoje os persas fazem isso um homem dos medos sendo muito belo e

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nobre e que ficara pasmado por muito tempo graccedilas a beleza de Ciro quando viu os parentes beijando-o ficou para traacutes quando os outros se foram foi-se para junto de Ciro e disse

ldquoDos parentes Ciro soacute a mim natildeo reconhecesrdquo ldquoPor quecirc Acaso tu eacutes meu parenterdquo ldquoCertamente disserdquo ldquoEntatildeo eacute por isso que me olhavas fixamente Pois parece que muitas vezes te reconheci

fazendo issordquo ldquoPois de ti sempre querendo aproximar-me pelos deuses ficava envergonhadordquo ldquoMas natildeo era preciso disse Ciro sendo parenterdquo Em seguida aproximando-se beijou-

o [28] E o Medo tendo recebido o beijo perguntou ldquoDe fato na Peacutersia eacute lei beijar os parentesrdquo ldquoCertamente disse quando se vecircem depois de certo tempo ou se afastam para um lugar

longe uns dos outrosrdquo ldquoTalvez seja a hora disse o medo de me beijares novamente pois como vecircs jaacute estou

partindordquo Assim Ciro beijando-o novamente afastou-se e partiu Ainda natildeo completava um

grande caminho entre eles o Medo chega novamente com o cavalo suando E Ciro tendo o visto disse

ldquoMas acaso esquecestes alguma coisa que querias dizerrdquo ldquoNatildeo por Zeus Mas venho depois de certo tempordquo ldquoPor Zeus parente por pouco tempo certamenterdquo ldquoComo pouco Natildeo sabes Ciro que justamente o tempo em que pisco os olhos parece-

me ser muito maior pois durante esse tempo natildeo te vejordquo Naquele momento riu Ciro depois de ter chorado antes e disse a ele que partisse com

confianccedila pois estaria presente entre eles em pouco tempo de modo que seria permitido olhaacute-lo e se quisesse sem piscar

V [1] Ciro entatildeo tendo voltado a Peacutersia dizem um ano ainda permaneceu na classe dos

meninos A princiacutepio os meninos zombavam dele pois voltara habituado agrave vida de prazeres na Meacutedia Quando entatildeo o viram comendo e bebendo agradavelmente como eles e se alguma vez na festa havia banquete perceberam que ele oferecia mais da sua proacutepria porccedilatildeo do que pedia mais e aleacutem dessas coisas viram que ele era superior a eles mesmos a partir de entatildeo os da sua idade voltaram a respeitaacute-lo Depois que concluiu essa educaccedilatildeo imediatamente foi para a classe dos efebos e tambeacutem nessa parecia ser superior ocupando-se das coisas que eram necessaacuterias suportar e reverenciando os mais velhos e obedecendo aos chefes

[2] Com o tempo avanccedilando Astiacuteages morreu na Meacutedia e Ciaxares filho de Astiacuteages e irmatildeo da matildee de Ciro recebeu o reinado dos medos O rei dos Assiacuterios apoacutes conquistar toda a Siacuteria naccedilatildeo numerosa conseguiu a submissatildeo do rei das Araacutebias e jaacute tendo como suacuteditos os Ircanos e cercando os Bactriatildeos considerou que se tornasse os medos mais fracos faacutecil seria comandar todas as naccedilotildees ao redor Pois a Meacutedia parecia ser das naccedilotildees proacuteximas a mais forte [3] Desse modo enviou embaixadores a todos os povos submetidos a ele a Creso rei da Liacutedia ao da Capadoacutecia a ambas as Frigias a Paflagocircnia e a Iacutendia a Caacuteria e a Ciliacutecia acusando medos e persas dizendo que essas eram naccedilotildees grandes e fortes e que por isso associaram-se e permitiam fazer casamentos entre si e se ningueacutem se prevenindo contra eles os tornasse mais fracos estariam em perigo pois se lanccedilariam sobre cada uma das naccedilotildees para conquistaacute-las

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Fizeram entatildeo alianccedila com ele uns por essas palavras convencidos outros persuadidos por presentes e coisas preciosas pois muitas coisas desse tipo pertenciam a ele

[4] Ciaxares o filho de Astiacuteages quando percebeu a conspiraccedilatildeo e a preparaccedilatildeo dos que se associaram contra ele ele imediatamente preparou-se tanto quanto podia e aos persas enviou embaixadores visando o conselho e visando Cambises esposo de sua irmatilde e rei dos Persas Enviou tambeacutem a Ciro pedindo a ele que procurasse vir comandando os homens se o conselho persa enviasse alguns soldados Pois Ciro completado dez anos na classe dos efebos jaacute estava na classe dos adultos [5] Ciro assim aceitara e os anciotildees deliberando elegem-no comandante para a expediccedilatildeo dos medos Permitiram a ele escolher duzentos dos homoacutetimos e por sua vez a cada um dos homoacutetimos permitiram escolher quatro tambeacutem esses dentre os homoacutetimos esses entatildeo chegam a mil Ordenaram a cada um desses mil por sua vez a escolher dentro dos demos da Peacutersia dez peltastas dez fundibulaacuterios e dez arqueiros e desse modo chegaram a dez mil arqueiros dez mil peltastas e dez mil fundibulaacuterios aleacutem daqueles mil que estavam agrave disposiccedilatildeo anteriormente Esse era o exeacutercito que foi dado a Ciro

[6] Assim que ele foi eleito primeiramente sacrificou aos deuses tendo obtido bons auspiacutecios em seguida escolheu os duzentos e quando cada um deles escolheu os quatro os reuniu e entatildeo pela primeira vez discursou nestes termos a eles [7] ldquoHomens amigos eu os escolhi natildeo por vos ter julgado bons agora pela primeira vez mas por que desde a infacircncia observo que voacutes executaacuteveis com ardor aquilo que a cidade considerava bom e aquilo que a cidade considerava vil afastaacuteveis disso inteiramente Em razatildeo de quais motivos eu de bom grado apresentei-me a esse posto e invoquei-vos desejo revelar a voacutes [8] Pois eu refleti que os nossos ancestrais em nada eram inferiores a noacutes sem duacutevida exercitando-se aqueles cumpriam as obras que justamente consideravam virtuosas O quecirc em todo caso adquiriram sendo assim tanto para a comunidade dos persas quanto para eles mesmos eu natildeo posso mais ver [9] Entretanto eu imagino que nenhuma virtude eacute praticada pelos homens para que os que satildeo bons natildeo tenham nenhuma vantagem sobre os maus Mas os que se absteacutem dos prazeres imediatos agem assim natildeo para nunca mais se alegrarem mas por meio dessa temperanccedila preparam-se assim para se alegrarem no futuro muitas vezes mais Aqueles que desejam com ardor tornar-se haacutebil no falar praticam a declamaccedilatildeo natildeo para ficarem falando bem sem jamais parar mas confiando que com o bem falar persuadindo os homens obteratildeo muitos e grandes bens os que por sua vez se esforccedilam nas artes da guerra natildeo se exercitam nisso para ficar combatendo sem parar mas esses julgando que ao se tornarem bons nas artes beacutelicas atribuiratildeo muita riqueza muita felicidade e grandes honras a eles mesmos e tambeacutem a cidade [10] Se algueacutem tendo se exercitado em algo e antes de saborear algum fruto dessa praacutetica observa que se tornou incapaz na velhice ao menos parece-me sofrer igual a algueacutem que tendo desejado tornar-se um bom agricultor bem semeando e bem plantando quando era necessaacuterio colher os frutos permite que o fruto caia de novo sobre a terra e natildeo o recolhe E se algum atleta suportado muitas fadigas e tendo se tornado digno de vencer permanecesse sem disputar o precircmio esse me parece merecer com justiccedila a acusaccedilatildeo de insensato [11] Mas noacutes homens natildeo sofreremos isso jaacute que na verdade temos consciecircncia de que noacutes desde a infacircncia tendo comeccedilado sendo atletas das obras boas e belas nos lanccedilaremos contra os inimigos os quais eu sei com clareza satildeo amadores para combater contra noacutes Pois esses ainda natildeo satildeo combatentes muito fortes se de um lado lanccedilam flechas e dardos e cavalgam com conhecimento de outro quando for necessaacuterio sofrer fadigas nisso seratildeo inferiores pois esses satildeo pessoas sem praacutetica em relaccedilatildeo aos trabalhos fatigantes Quando for necessaacuterio natildeo dormir seratildeo vencidos pelo sono pois eles satildeo inexperientes com relaccedilatildeo a isso nem os que acaso satildeo haacutebeis nisso pois esses satildeo

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ignorantes no como eacute necessaacuterio agir com os aliados e com os inimigos e eacute evidente que esses tiveram seus principais conhecimentos inabilmente [12] Voacutes sem duacutevida podereis vos servir da noite tanto quanto os outros do dia e julgais que as fadigas conduzem a uma vida com prazeres e assim podereis vos servir da fome tanto quanto do manjar fino e suportais mais facilmente que os leotildees soacute beberem aacutegua e voacutes adquiris na sua alma o bem mais valioso e belicoso de todos voacutes vos alegrais em ser louvado mais do que a todos os outros juntos Aos amantes do louvor eacute imperioso enfrentar todo tipo de pena todo tipo de perigo com prazer [13] Se eu digo essas coisas a respeito de voacutes pensando outras a mim mesmo enganaria pois se alguma dessas virtudes de vossa parte falhar sobre mim recairaacute essa negligecircncia Poreacutem creio na vossa experiecircncia na afeiccedilatildeo que voacutes tendes por mim e tambeacutem na ignoracircncia dos inimigos e que essas boas esperanccedilas natildeo me enganaratildeo Mas marchemos confiantes visto que estaacute longe de noacutes a reputaccedilatildeo de cobiccedilarmos injustamente as coisas alheias Pois agora os inimigos avanccedilam tendo comeccedilado a guerra enquanto que os nossos amigos nos chamam em socorro E o que na verdade eacute mais justo que defender-se ou mais belo do que socorrer aos amigos [14] Poreacutem creio ainda em outra coisa para voacutes vos encorajardes pois natildeo farei a partida negligenciando os deuses pois estando a muito comigo prestais a atenccedilatildeo que nas grandes como tambeacutem nas pequenas empresas sempre comeccedilo pelos deusesrdquo Finalmente Ciro disse ldquoO que ainda eacute necessaacuterio dizer Voacutes tendo escolhido os homens e os tomado para dirigir e se encarregado das outras coisas dirijais-vos agrave Meacutedia Eu irei depois de estar primeiramente junto a meu pai a fim de que as coisas dos inimigos eu aprenda o mais raacutepido possiacutevel e tanto quanto for possiacutevel nos preparemos naquilo que for necessaacuterio para que combatamos o mais nobremente possiacutevel com a ajuda dos deusesrdquo

Eles entatildeo agiram dessa forma

VI [1] Ciro tendo ido para casa e feito as oraccedilotildees agrave Estia ancestral e a Zeus ancestral e

tambeacutem aos outros deuses partiu para a expediccedilatildeo com o proacuteprio pai escoltando-o Quando estavam fora de casa dizem que raios e trovotildees ocorreram favoraacuteveis a ele Depois desses fenocircmenos marcharam natildeo fazendo nenhuma outra consulta porque nenhum sinal do deus grandiacutessimo passaria oculto [2] Durante o caminho o pai comeccedilou essa conversa com Ciro

ldquoFilho que os deuses enviam a ti favores e benefiacutecios eacute evidente nos pressaacutegios e sinais celestes tu mesmo o reconheces Pois eu de propoacutesito te instruiacute nessas coisas para que por causa de outros inteacuterpretes natildeo possas reconhecer os desiacutegnios dos deuses mas tu mesmo vendo as coisas visiacuteveis e ouvindo as audiacuteveis reconheccedilas sem estar agrave custa dos adivinhos nem se quiserem te enganar dizendo coisas diversas das que foram reveladas pelos deuses nem por sua vez se alguma vez estiveres com efeito sem adivinho ficaraacutes sem saber o que fazer para se servir dos sinais divinos mas reconhecendo por meio da arte da adivinhaccedilatildeo os conselhos dos deuses poderaacutes obedecer-lhesrdquo

[3] ldquoDe fato pai e para que os deuses se mostrem favoraacuteveis e desejem aconselhar-nos na medida em que possa cumpro diligentemente conforme seu conselho Pois me lembro de ter ouvido uma vez de ti que seria com razatildeo o meio mais eficiente para obter dos deuses como tambeacutem dos homens natildeo soacute chamaacute-los quando estivesse em dificuldade mas quando adquirisse as melhores coisas aiacute entatildeo eacute muito melhor lembrar-se dos deuses E disse tambeacutem que eacute necessaacuterio do mesmo modo ocupar-se dos amigosrdquo

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[4] ldquoNatildeo eacute verdade filho que graccedilas agravequelas diligecircncias vais agora rogar aos deuses com mais prazer e esperas muito mais obter as coisas que precisa pois te pareces ter consciecircncia de que jamais os negligenciourdquo

ldquoCom certeza pai muito mais pois me encontro com tal disposiccedilatildeo para com os deuses como se fossem amigos meusrdquo

[5] ldquoPois lembra-te daquilo que uma vez foi considerado por noacutes Que do mesmo modo que os homens agem melhor sabendo o que os deuses lhe deram do que ignorando os trabalhadores realizam mais obras do que os ociosos e os diligentes vivem mais seguros do que os descuidados assim tambeacutem eacute mostrando-se tal qual eacute preciso parecia a noacutes ser necessaacuterio pedir graccedilas dos deusesrdquo

[6] ldquoSim por Zeus certamente lembro-me de ter ouvido essas coisas de ti pois foi-me forccediloso ser convencido pelo argumento Eu sei tambeacutem que tu dizias sempre que natildeo era permitido solicitar aos deuses vencer nos combates a cavalo natildeo sabendo montar nem aos que natildeo satildeo haacutebeis no arco pedir para superar no arco os que satildeo haacutebeis nem a quem natildeo sabe pilotar pedir para preservar-se satildeo e salvo pilotando o navio nem a quem natildeo semeia o trigo pedir que lhes nasccedila uma boa safra nem a quem natildeo se protege na guerra pedir salvaccedilatildeo pois todas essas coisas satildeo contraacuterias agraves leis dos deuses E aos que rogam coisas iliacutecitas eacute natural tu dizias natildeo ter ecircxito junto aos deuses do mesmo modo que natildeo obteacutem nada dos homens quem faz pedidos contraacuterios agraves leisrdquo

[7] ldquoPoreacutem filho tu te esquecestes daquelas coisas que uma vez eu e tu meditamos que seria obra nobre e suficiente para um homem se pudesse trabalhar para que ele mesmo se tornasse honestamente bom e belo e ele e a famiacutelia tivessem provisotildees suficientes Mas sendo isso uma grande obra do mesmo modo ser capaz de governar os outros homens para que tivessem abundacircncia de todas as provisotildees e para que todos fossem como eacute necessaacuterio isso revelou ser naquela vez para noacutes sem duacutevida alguma algo admiraacutevelrdquo

[8] ldquoSim por Zeus pai recordo-me que tu dizias isso sem duacutevida me parecia igualmente ser uma enorme obra o governar belamente e tambeacutem agora parece-me isso mesmo quando medito observando o governar em si mesmo Quando em todo caso observando os outros homens compreendi de que natureza satildeo aqueles que passam a vida governando e qual a natureza dos que seratildeo nossos adversaacuterios parece-me ser muito vergonhoso ter medo deles e natildeo desejar nos lanccedilar contra os inimigos Aqueles eu noto comeccedilando por esses nossos amigos acreditam que eacute necessaacuterio que os governantes se distingam dos governados no comer copiosamente no ter mais ouro em casa no dormir por mais tempo e no viver em tudo com mais oacutecio do que os governados Eu por outro lado penso que o governante deve se distinguir dos governados natildeo no ser indolente com as necessidades mas na providecircncia e no amor ao trabalhordquo

[9] ldquoMas filho haacute em alguns casos que natildeo lutamos contra homens mas contra coisas em si mesmas das quais natildeo eacute faacutecil ser superior com desembaraccedilo Assim por exemplo tu sabes sem duacutevida que se o exeacutercito natildeo tiver as provisotildees o teu comando seraacute anuladordquo

ldquoNa verdade pai isso Ciaxares disse que forneceraacute a todos os que se lanccedilam daqui tatildeo numerosos quantos foremrdquo

ldquoE tu filho partiraacutes crendo nessas riquezas de Ciaxaresrdquo ldquoSimrdquo ldquoTu sabes entatildeo de qual tamanho eacute a riqueza delerdquo ldquoNatildeo por Zeus natildeo seirdquo

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ldquoApesar de tudo confias em coisas desconhecidas Natildeo reconheces que teraacutes necessidade de muitas coisas e agora mesmo a Ciaxares eacute necessaacuterio gastar em muitas outras coisasrdquo

ldquoReconheccedilordquo ldquoSe entatildeo o recurso dele for insuficiente ou voluntariamente ele te enganar como se

manteraacute o teu exeacutercitordquo ldquoEacute evidente que natildeo muito bem Entretanto pai se tu reconheces algum recurso que

possa ser produzido por mim enquanto ainda estamos entre amigos digardquo [10] ldquoPerguntais filho qual recurso poderia ser produzido por ti De quem eacute mais

provaacutevel receber os recursos do que de quem tem poder Tu partes daqui levando tanto uma poderosa infantaria e eu bem sei que em troca dela natildeo aceitarias outra muito mais numerosa aleacutem disso seraacute teu aliado a cavalaria dos medos justamente aquela que eacute a melhor Qual povo portanto dos vizinhos natildeo julgaraacute bom ser agradaacutevel a ti ou desejando servir-vos ou temendo algum sofrimento Isso eacute necessaacuterio a ti em comum com Ciaxares observar para que jamais estejas em falta das coisas que eacute preciso estar a disposiccedilatildeo e por causa do costume maquinar fontes de renda Lembra-te disso mais do que tudo jamais esperes para procurar os recursos ateacute que a necessidade te obrigue mas quanto maior abundacircncia tiveres entatildeo maquines antes da carecircncia pois obteraacutes mais da parte de quem pedires natildeo parecendo estar sem recursos E aleacutem disso obteraacutes mais respeito dos outros e se quiser fazer bem ou mal a algueacutem com a tropa os soldados serviratildeo a ti melhor enquanto mantiver as coisas necessaacuterias e sabes bem os discursos mais persuasivos diraacutes nesse momento quando melhor puderes demonstrar que eacutes capaz de fazer o bem e o malrdquo

[11] ldquoMas pai ainda por cima me parece que tu dizes tudo isso com nobreza pois das coisas que agora os soldados dizem que iratildeo receber nenhum deles seraacute agradecido a mim por elas Pois sabem sob quais condiccedilotildees Ciaxares os leva consigo como aliados o que algueacutem receber aleacutem do combinado consideraratildeo isso um precircmio e naturalmente seratildeo agradecidos a quem as deu Tendo um exeacutercito com o qual eacute possiacutevel de um lado retribuir favores fazendo bem aos amigos e de outro tendo inimigos tentar puni-los e em seguida negligencias o fornecimento pensas que isso eacute menos vergonhoso do que se algueacutem tendo um campo e tendo trabalhadores com os quais cultivasse o campo e em seguida permitisse que o campo esteja ocioso e improdutivo Quanto a mim jamais negligenciarei de procurar meios de subsistecircncia aos soldados nem nas terras amigas nem nas inimigas e nessas condiccedilotildees fiques tranquilordquo

[12] ldquoPois filho das outras coisas que um dia parecia nos forccediloso natildeo negligenciar lembra-te delasrdquo

ldquoCom efeito pai lembro-me bem de quando fui para junto de ti em busca de dinheiro para pagar aquele que declarava me instruir em ser general Tu enquanto me davas o dinheiro perguntavas coisas como estas lsquoDigas filho seraacute que entre as funccedilotildees de general algo de economia domeacutestica mencionou a ti o homem a quem levas o soldo Certamente os soldados precisam natildeo menos das provisotildees do que os servos em casarsquo Depois que eu dizendo a ti a verdade que nem a menor coisa a respeito disso ele mencionou perguntastes novamente se algo sobre a sauacutede e a forccedila fiacutesica tinha dito para mim para que o general se ocupe dessas necessidades tanto quanto da estrateacutegia [13] Como tambeacutem a isso disse que natildeo perguntaste-me ainda se alguns artifiacutecios tinha me ensinado que seriam os melhores aliados dos trabalhos beacutelicos Eu neguei tambeacutem a isso e tu me interrogaste novamente se ele me ensinara algo que pudesse incutir ardor na tropa dizendo que em todo o trabalho o ardor faz toda a diferenccedila sobre a ausecircncia de acircnimo Quando a isso neguei meneando a cabeccedila para traacutes tu perguntaste-me se

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tinha feito alguma discussatildeo instruindo-me sobre o fazer-se obedecer pelo exeacutercito como algueacutem poderia tramar isso perfeitamente [14] Quando tambeacutem a isso mostrava-me absolutamente ignoto finalmente indagaste-me o que entatildeo me ensinara dizendo ensinar estrateacutegia Eu entatildeo respondi que ldquoa taacuteticardquo e tu pondo-se a rir retomando cada um dos pontos expocircs qual seria a utilidade da taacutetica para o exeacutercito sem as provisotildees sem a sauacutede sem ocupar-se em obter para si as teacutecnicas beacutelicas e sem a obediecircncia Agrave medida que tu tornastes evidente a mim que a taacutetica era uma pequena parte da estrateacutegia eu perguntei se alguma dessas coisas tu serias capaz de me ensinar Partindo me exortastes a conversar com os homens ditos estrategistas e a inquiri-los em como alcanccedilar a cada um desses pontos [15] Depois disso eu me encontrava com aqueles que ouvia serem os mais inteligentes sobre esses assuntos E quanto agraves provisotildees estou convencido que satildeo suficientes as disposiccedilotildees de que Ciaxares estaacute em condiccedilotildees de fornecer para noacutes quanto agrave sauacutede ouvindo e vendo que as cidades desejando ter boa sauacutede escolhem os meacutedicos e os generais por causa dos soldados tambeacutem levam meacutedicos assim eu tambeacutem quando este posto alcancei imediatamente apoacutes ocupei-me disso e penso pai que tenho comigo os homens mais competentes na arte meacutedicardquo

Em funccedilatildeo disso o pai falou [16] ldquoMas filho esses a quem tu te referes satildeo como quem repara mantos rasgados de fato os meacutedicos tratam das pessoas quando elas adoecem A ti a atenccedilatildeo com a sauacutede deve ser mais altiva do que isso pois que as tropas de modo algum devem ficar doentes e esse haacute de ser o teu deverrdquo

ldquoPai seguindo qual caminho serei capaz de fazer issordquo ldquoSem duacutevida se tiveres a intenccedilatildeo de permanecer em um mesmo local durante um

tempo primeiramente eacute necessaacuterio natildeo negligenciar a higiene do acampamento se te preocupares com isso natildeo falharaacutes aleacutem disso os homens natildeo param de falar sobre regiotildees insalubres e sobre regiotildees salubres Testemunhas evidentes de cada um deles se oferecem nos corpos e tambeacutem na cor da pele Depois natildeo seraacute proteccedilatildeo suficiente examinar soacute a regiatildeo mas lembra-te de como se esforccedilar para cuidar de ti mesmo para que estejas satildeordquo

[17] E Ciro disse ldquoPrimeiramente por Zeus me esforccedilo para jamais me empanturrar pois eacute desagradaacutevel em seguida faccedilo a digestatildeo dos alimentos pois desse modo parece-me que mantenho melhor a sauacutede e adquiro forccedilardquo

ldquoDesse modo com efeito filho eacute necessaacuterio cuidar dos outrosrdquo ldquoMas de fato haveraacute tempo livre para os soldados se exercitaremrdquo ldquoPor Zeus disse o pai natildeo apenas eacute certo mas tambeacutem eacute necessaacuterio pois ao exeacutercito eacute

preciso se tiveres a intenccedilatildeo de que eles cumpram os deveres que jamais cessem ou de praticar o mal aos inimigos ou o bem aos seus e agrave medida que eacute difiacutecil alimentar um homem ocioso muito mais difiacutecil ainda filho uma casa toda mas mais difiacutecil de tudo eacute alimentar um exeacutercito inativo Pois as bocas no exeacutercito satildeo numerosas e partindo com o miacutenimo as coisas que recebem se se servem prodigamente seraacute necessaacuterio que jamais o exeacutercito fique ociosordquo

[18] ldquoParece-me que tu dizes pai que como em nada eacute uacutetil um agricultor ocioso assim tambeacutem em nada eacute uacutetil um general ociosordquo

ldquoMas o general trabalhador eu assumo que se nenhum deus lhe prejudicar ao mesmo tempo em que determina aos soldados como manter o maacuteximo das provisotildees tambeacutem determina a manter melhor o preparo fiacutesicordquo

ldquoPor certo quanto agrave praacutetica de cada uma das atividades guerreiras parece-me que pai prescrevendo disputas a cada uma delas e oferecendo precircmios faraacutes que cada um esteja exercitado nelas muitiacutessimo bem para que quando tiver necessidade se servir de homens preparadosrdquo

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ldquoDizes muito bem filho pois tendo feito isso saibas bem que sempre tu os veraacutes exercitados de modo conveniente como coros ordenadosrdquo

[19] ldquoMas com efeito para incutir o entusiasmo nos soldados nada me parece ser mais eficaz do que poder produzir esperanccedilas nos homensrdquo

ldquoPoreacutem filho isso eacute tal como se algueacutem chamasse os catildees na caccedila sempre com o mesmo chamado de quando vecircs a caccedila pois num primeiro momento eu sei bem que obteacutem respostas ardorosas ao chamado mas se muitas vezes os engana acabam natildeo obedecendo ao chamado nem quando realmente vecirc Assim tambeacutem ocorre com relaccedilatildeo agraves esperanccedilas se algueacutem mente frequentemente incutindo esperanccedilas em muitos bens nem quando declarar sinceras esperanccedilas o tal poderaacute persuadir Mas eacute necessaacuterio de um lado afastar-se de dizer aquilo que tu mesmo natildeo sabes seguramente filho de outro lado outros incitados dizendo essas coisas podem conseguir Eacute necessaacuterio que tu preserves o maacuteximo da confianccedila em tuas exortaccedilotildees para os grandes perigosrdquo

ldquoMas sim por Zeus a mim pareces dizer belamente pai e a mim tambeacutem desse modo eacute o mais agradaacutevel [20] Quanto ao produzir a obediecircncia dos soldados natildeo me pareccedilo ser inexperiente pai pois tu me ensinaste isso desde a infacircncia obrigando-me a obedececirc-lo Em seguida confiou-me aos professores e eles por sua vez agiram do mesmo modo quando estaacutevamos entre os efebos o comandante ocupava-se muito destas mesmas coisas E parece-me que a maioria das leis ensina principalmente essas duas coisas a governar e a ser governado E com efeito refletindo sobre essas coisas parece-me observar em tudo que o que mais incita a obediecircncia eacute louvar e honrar o obediente e ao desobediente desprezar e punirrdquo

[21] ldquoEsse filho eacute o caminho para a obediecircncia forccedilada para uma muito melhor do que essa a obediecircncia voluntaacuteria haacute um caminho muito mais curto Pois os homens obedecem com grande prazer aqueles que consideram mais sensatos nos seus interesses do que eles mesmos Poderaacutes reconhecer que isso eacute assim em muitas outras coisas inclusive os doentes que com ardor chamam aqueles que prescrevem o que lhes eacute necessaacuterio fazer e no mar com ardor os que estatildeo navegando obedecem aos pilotos e aqueles que julgam que outros sabem o caminho melhor do que eles com muita forccedila natildeo desejam abandonaacute-los Quando poreacutem crecircem que a obediecircncia resultaraacute em algum mal natildeo consentem absolutamente em ceder nem por causa de castigos nem induzidos por presentes Pois ningueacutem a troco da proacutepria desgraccedila aceita espontaneamente presentesrdquo

[22] ldquoDizes tu pai que nada eacute mais eficaz para manter a obediecircncia do que parecer ser mais inteligente do que os governadosrdquo

ldquoCom efeito digo issordquo ldquoE qual a maneira pai que algueacutem poderia produzir rapidamente sobre si mesmo tal

reputaccedilatildeordquo ldquoNatildeo haacute filho caminho mais curto a respeito das coisas em que desejas parecer ser

sensato do que tornar-se de fato sensato a respeito desses assuntos Observando a fundo cada uma das coisas reconheceraacutes que eu digo a verdade Se quiseres natildeo sendo bom agricultor parecer ser bom ou cavaleiro ou meacutedico ou flautista ou qualquer outra coisa imagine quatildeo numerosas coisas a ti seria necessaacuterio maquinar por causa da aparecircncia E se tu persuadires a muitos a te louvares para que obtenhas fama e adquiras bons equipamentos de cada um destes ofiacutecios em um instante seria o embusteiro mas pouco depois quando precisasse oferecer uma prova tu te verias desmascarado e ainda um charlatatildeordquo

[23] ldquoComo algueacutem pai poderia tornar-se sensato sobre algo que no futuro lhe seraacute uacutetilrdquo

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ldquoEacute evidente filho que tudo quanto eacute possiacutevel saber aprendendo aprender como aprendeste sobre taacutetica E tudo quanto os homens natildeo podem aprender e natildeo se pode prever pela previdecircncia humana serias mais sensato do que os outros interrogando aos deuses por meio da arte da adivinhaccedilatildeo Tambeacutem aquilo que reconheces ser o melhor a fazer ocupa-te para a realizaccedilatildeo disso pois natildeo o negligencia mas cuidar do que for necessaacuterio eacute proacuteprio do homem sensatordquo

[24] ldquoMas certamente quanto a ser estimado pelos governados que me parece ser das coisas mais importantes eacute evidente que eacute o mesmo caminho para quem deseja ser querido pelos amigos jaacute que penso que eacute necessaacuterio ser distinguido fazendo o bemrdquo

ldquoMas isso filho de fato eacute difiacutecil o sempre poder fazer o bem para aqueles que se deseja mostrar-se feliz se algo bom acontece com eles estar junto se algo de mal socorrer de boa vontade nas suas dificuldades temendo que caiacuteam em erros e velar se esforccedilando para que natildeo os cometam essas satildeo as melhores maneiras de estar junto dos amigos [25] E durante as obras da guerra se estiverem no veratildeo eacute necessaacuterio que seja manifesto que o general eacute superior com relaccedilatildeo ao sol e se estiverem no inverno ao frio se durante os trabalhos agraves penas pois tudo isso ajuda a ser estimado pelo subordinadosrdquo

ldquoDizes tu pai que eacute necessaacuterio que o governante seja mais vigoroso do que os governados em todas as coisasrdquo

ldquoPois sem duacutevida digo Em todo caso fique tranquilo quanto a isso filho Eu bem sei que embora os corpos sejam iguais as penas natildeo atingem de modo igual o general e o homem simples mas a honra suaviza algo das penas no comandante como proacuteprio saber de que aquilo que fizer natildeo passaraacute despercebidordquo

[26] ldquoPai poreacutem quando os soldados estiverem tanto com os recursos necessaacuterios quanto gozando de sauacutede e tambeacutem puderem suportar as fadigas e estejam treinados nas artes beacutelicas e aleacutem disso ambiciosos de se mostrarem nobres e estejam mais contentes em obedecer do que desobedecer natildeo te pareceria ser prudente entatildeo quem desejasse lutar contra os inimigos o mais raacutepido possiacutevelrdquo

ldquoSim por Zeus se estiveres em condiccedilotildees de obter a superioridade se natildeo eu ao menos quanto melhor acreditasse ser e melhores seguidores tivesse tanto mais seria prudente Como os bens que julgamos serem para noacutes os mais preciosos essas procurarmos nos servir com o maacuteximo de seguranccedilardquo

[27] ldquoPai qual a melhor maneira de algueacutem de poder obter a superioridade sobre os inimigosrdquo

ldquoPor Zeus isso que perguntas filho natildeo eacute assunto faacutecil nem simples Mas eu bem sei que eacute necessaacuterio a quem tiver intenccedilatildeo de fazer isso ser ardiloso e dissimulado mentiroso e embusteiro ladratildeo e tirar vantagem em tudo sobre os inimigosrdquo

E Ciro rindo disse ldquoHeracles que tipo de homem tu dizes que eacute necessaacuterio que eu me torne pairdquo

ldquoTal como serias filho o homem mais justo e mais conforme agraves leisrdquo [28] ldquoComo entatildeo voacutes nos ensinastes quando crianccedilas e jovens o contraacuterio destas

coisasrdquo ldquoSim por Zeus e agora mesmo para os amigos e os concidadatildeos Natildeo sabes que voacutes

aprendestes muitas praacuteticas fraudulentas a fim de que pudeacutesseis fazer mal aos inimigosrdquo ldquoEacute claro que natildeo pairdquo ldquoPor que razatildeo entatildeo filho tu aprendestes a atirar com o arco Por que razatildeo a lanccedilar

dardos Por que razatildeo a enganar javalis selvagens com redes e fossos E por que razatildeo aos

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cervos com armadilhas e cordas E por que razatildeo aos leotildees ursos e leopardos voacutes natildeo combatiacuteeis colocando-se em igualdade mas sempre procuraacuteveis lutar contra eles provido de alguma vantagem Ou natildeo reconheces que todas essas coisas satildeo maldades ardis enganos e subterfuacutegiosrdquo

[29] ldquoSim mas contra animais por Zeus contra os homens se eu tivesse em mente o desejo de enganar algueacutem sei que receberia muitas pancadasrdquo

ldquoDe fato creio que nem lanccedilar flechas nem dardos sobre os homens noacutes permitiriacuteamos a voacutes mas ensinaacutevamos a visar o alvo para que entatildeo natildeo machucaacutesseis aos amigos e se algum dia houvesse guerra pudesse mirar homens tambeacutem E natildeo ensinaacutevamos a enganar e a ter vantagem sobre os homens mas aos animais a fim de que com isso natildeo causaacutesseis danos aos amigos e se um dia houvesse guerra natildeo focircsseis inexperientes nestes assuntosrdquo

[30] ldquoSem duacutevida pai se eacute verdade que eacute uacutetil saber ambas as coisas fazer o bem e o mal aos homens era necessaacuterio que aprendecircssemos as duas coisas com homensrdquo

[31] ldquoMas dizem filho que outrora no tempo dos nossos ancestrais havia um homem professor de meninos que ensinava com efeito a justiccedila aos meninos assim como tu desejas a natildeo enganar e enganar a natildeo mentir e a mentir a natildeo iludir e a iludir a natildeo ter vantagens e a ter vantagens Distinguia dessas coisas o que fazer aos amigos e o que aos inimigos E aleacutem dessas coisas ensinava que era justo enganar aos amigos em vista de um bem e roubar algo dos amigos em vista de um bem [32] Ensinando essas coisas era forccediloso fazer aos meninos praticar isso uns contra os outros como dizem que os gregos ensinam a enganar no combate e exercitavam aos meninos para que pudessem fazer isso uns contra os outros Alguns de fato tornaram-se assim haacutebeis no roubar com justeza e levar vantagem poreacutem natildeo sendo igualmente haacutebeis na cupidez natildeo abstinham-se de tentar levar vantagem sobre os outros nem mesmo sobre os amigos [33] Criou-se portanto em consequecircncia dessas coisas uma lei que ainda hoje usamos de ensinar as crianccedilas de modo simples como ensinamos os proacuteprios escravos a dizer a verdade a natildeo enganar e a natildeo tirar vantagem em relaccedilatildeo a noacutes Se entatildeo fizerem contrariamente a isso castigamos para que tendo se habituado com tais costumes tornam-se os cidadatildeos mais moderados [34] Quando entatildeo tiverem a idade que tu tens hoje entatildeo pareceraacute seguro ensinar as leis para agir contra os inimigos pois natildeo mais parecia que se deixariam levar a tornarem-se cidadatildeos selvagens criados no muacutetuo respeito Como tambeacutem natildeo discorriacuteamos sobre os prazeres do amor para os muito jovens para que juntando a falta de escruacutepulos agrave forccedila de seu desejo os jovens natildeo se servissem do amor imoderadamenterdquo

[35] ldquoSim por Zeus como entatildeo comeccedilou tarde a me instruir nessas vantagens pai natildeo te abstenhas se algo tu tens a ensinar para que eu leve vantagem sobre os inimigosrdquo

ldquoMaquine com efeito para que tu surpreendas aos inimigos desordenados com a tua proacutepria tropa estando com homens bem ordenados os teus estando armados e os deles desarmados os teus despertos e os deles dormindo eles visiacuteveis a ti e tu invisiacutevel para eles e eles estando em terreno desfavoraacutevel e tu estando protegido em terreno fortificado

[36] ldquoE como algueacutem poderia pai surpreender os inimigos cometendo tais errosrdquo ldquoEacute forccediloso filho que tanto voacutes quanto os inimigos proporcionem muitos destes pois a

ambos eacute forccediloso tomar as refeiccedilotildees a ambos eacute forccediloso repousar e desde a aurora todos vatildeo fazer as necessidades quase ao mesmo tempo e eacute forccediloso servir dos caminhos tais quais sejam Todas essas coisas a ti eacute necessaacuterio perceber e o que reconheceis em voacutes sendo as mais fracas nisso sobretudo deves proteger e o que notares nos inimigos sendo as mais faacuteceis de submeter nisso deves dedicar-se sobretudordquo

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[37] ldquoEacute soacute disse Ciro nessas circunstacircncias que se obteacutem vantagem ou em alguma outra tambeacutemrdquo

ldquoCertamente em muitas outras filho Pois nessas em geral todos montam guardas sabendo que elas existem forccedilosamente Mas os que querem enganar os inimigos podem fazendo-os agir com confianccedila surpreendecirc-los desprotegidos e permitindo-se ser perseguido por eles deixaacute-los desordenados e atirando-os em fuga para um terreno difiacutecil ali mesmo atacar [38] Eacute necessaacuterio por isso que tu sejas um amante do aprender todas as coisas natildeo para te servires soacute das coisas que aprendestes mas tambeacutem para seres tu um inventor de artifiacutecios contra os inimigos Como os muacutesicos que natildeo se servem apenas das coisas que aprenderam mas tambeacutem procuram criar outras novas E de um lado nas artes musicais as peccedilas novas e exuberantes satildeo muito honradas de outro as novas maquinaccedilotildees satildeo muito mais honradas na guerra pois com essas pode-se melhor enganar os inimigos [39] Mas se tu filho transferires aos inimigos nenhuma outra coisa aleacutem dos truques que muito planejaste contra os animais pequenos natildeo achas que avanccedilas sobre os inimigos muito adiantado em vantagens Pois tu contra as aves te levantavas no inverno rigoroso e marchavas de noite e antes que os paacutessaros se movessem as cordas para eles eram preparadas por ti e tornavas o chatildeo movido semelhante ao natildeo tocado os paacutessaros eram ensinados por ti para te servirem com utilidade e para enganar os paacutessaros da mesma espeacutecie Tu armavas emboscadas para vecirc-las sem ser visto por elas e estavas preparado para puxar antes que os paacutessaros fugissem [40] Por outro lado contra a lebre que vive na escuridatildeo e evita o dia criava catildees que a descobriam pelo faro Assim quando era encontrada fugia rapidamente mas tinhas catildees preparados para capturaacute-las correndo Se entatildeo fugia tambeacutem destes procurando saber quais lugares as lebres fugindo alcanccedilaram nesses estendia redes de caccedila difiacuteceis de ver e na fuga veemente ela mesma caindo sobre a rede ficava amarrada E para natildeo fugirem daiacute tu colocavas guardas para o que estava ocorrendo os que de perto estavam tinham condiccedilotildees de sobrevir rapidamente e tu mesmo atraacutes com clamor natildeo ficavas atraacutes da lebre e bradando aterrorizava-a de tal modo que era capturada enlouquecida e aos que estavam defronte explicava para fazer silecircncio e permanecerem ocultos na emboscada [41] Como jaacute disse se puderes maquinar tais coisas contra os homens eu natildeo sei se seraacutes vencido por algum dos inimigos Se com efeito alguma vez houver necessidade de empreender um combate com ambos preparados e visiacuteveis no mesmo plano em tal circunstacircncia filho as vantagens preparadas de haacute muito tempo valem muito Eu digo que essas coisas existem a quem tem os corpos dos soldados bem exercitados as almas bem ordenadas e as taacuteticas beacutelicas bem estudadas [42] Eacute necessaacuterio saber bem tambeacutem que a tantos quantos tu exiges obediecircncia tambeacutem todos aqueles exigiratildeo de ti que decidas a respeito das coisas deles Jamais portanto fiques despreocupado mas durante a noite reflita sobre o que teus subordinados faratildeo quando chegar o dia e de dia para que a melhor noite esteja agrave disposiccedilatildeo deles [43] Como eacute necessaacuterio ordenar o exeacutercito na batalha ou como conduzir-te durante o dia ou a noite ou por estradas estreitas ou largas ou ainda nas montanhas ou nas planiacutecies ou como acampar ou como dispor guardas noturnos e diurnos ou como avanccedilar contra os inimigos ou afastar-se dos inimigos ou como conduzir para junto das cidades inimigas ou como dirigir-se ou recuar diante das muralhas ou como atravessar o vale ou os rios ou como proteger-se da cavalaria ou dos lanccediladores de dardos ou dos flecheiros ou se entatildeo a ti conduzindo o exeacutercito em coluna aparecem de suacutebito os inimigos como deves colocar-se diante deles ou se a ti agrave frente da falange conduzindo os inimigos se mostrarem de qualquer outro lado do que face a face como deves marchar contra ou como pode perceber melhor as coisas do inimigo ou como fazer os inimigos saberem o miacutenimo das tuas proacuteprias o que eu devo dizer a respeito dessas

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coisas para ti Pois tanto quanto eu sei muitas vezes ouvistes e aqueles outros que pareciam saber algo desses assuntos nenhum deles tu negligenciastes nem te tornastes ignorante Portanto diante dos acontecimentos eacute necessaacuterio se utilizar das coisas do modo que lhe pareccedila ser uacutetil [44] Aprenda de mim filho isto o mais importante eacute que contra pressaacutegios e auguacuterios jamais coloque em perigo nem a ti nem ao exeacutercito compreendendo que os homens escolhem as accedilotildees por conjecturas natildeo sabendo quais delas seratildeo para eles as melhores [45] Tu podes reconhecer isso da proacutepria histoacuteria pois de um lado outrora muitos que pareciam os mais saacutebios persuadiram estados a empreender guerra contra outras naccedilotildees pelas quais os que foram persuadidos a atacar foram derrotados e de outro lado muitos engrandeceram a muitos homens e estados e sofreram enormes males daqueles que progrediram Muitos tambeacutem que eram tratados como amigos e fazendo e recebendo apenas coisas boas preferindo trataacute-los mais como escravos do que como amigos receberam castigos desses mesmos Muitos outros que natildeo se contentavam em viver agradavelmente com o proacuteprio quinhatildeo que possuiacuteam tendo desejado ser dono de tudo por causa disso perderam tambeacutem o que tinham Muitos tendo conquistado a riqueza haacute muito desejada graccedilas a isso foram destruiacutedos [46] Assim a sabedoria humana natildeo sabe escolher o melhor mais do que algueacutem tirando a sorte agisse conforme obtivesse pela sorte Os deuses filho sendo eternos tudo sabem do que ocorreu do que estaacute ocorrendo e do que ocorreraacute a cada um E dos homens que os consultam anunciam o que eacute necessaacuterio fazer e aquilo que natildeo eacute para quem satildeo propiacutecios Se nem a todos desejam aconselhar natildeo haacute nada de maravilhoso nisso pois natildeo eacute necessaacuterio que eles se ocupem de quem natildeo queremrdquo

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8 Bibliografia

81 Ediccedilotildees e Traduccedilotildees de Xenofonte

XENOPHON Opera omnia Editado por E C Marchant 1910 Oxford University Press Clarendon Press Volume 4 Xenophon The education of Cyrus In Xenophon in seven volumes Walter Miller Harvard University Press Cambridge MA William Heinemann Ltd London 1914 Volume 5 e 6 XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Traduccedilatildeo de Marcel Bizos Paris Les Belles Lettres 1972 Tome I JENOFONTE Anaacutebasis Traduccedilatildeo de Ramoacuten Bach Pellicer Introduccedilatildeo Carlos Garciacutea Gual Madrid Gredos 1982 JENOFONTE Ciropedia Traduccedilatildeo de Ana Vegas Sansalvador Madrid Gredos 1987 JENOFONTE Helecircnicas Traduccedilatildeo de Orlando Guntintildeas Irintildeon Madrid Gredos 1994 JENOFONTE Obras Menores Traduccedilatildeo de Orlando Guntintildeas Irintildeon Madrid Gredos 1984 XENOFONTE A educaccedilatildeo de Ciro Traduccedilatildeo de Jaime Bruna Satildeo Paulo Cultrix 1985 XENOFONTE Ciropedia Traduccedilatildeo de Joatildeo Felix Pereira Rio de Janeiro Editora W M Jackson 1964 vol 1 (Coleccedilatildeo Claacutessicos Jackson) XENOFONTE O priacutencipe perfeito Prefaacutecio e Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Lisboa Bertrand 1952 XENOFONTE A retirada dos dez mil Prefaacutecio e Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Lisboa Bertrand 1957 XENOFONTE Econocircmico Traduccedilatildeo de Anna Lia A de A Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 XENOFONTE Ditos e feitos memoraacuteveis de Soacutecrates In Soacutecrates Trad de Liacutebero Rangel de Andrade 4ordm Ed Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p30-158

82 Autores Antigos

ARISTOTE Rheacutetorique (Livre II) Texte eacutetabili et traduit par Meacutedeacuteric Dufeur Paris Les Belles Lettres 1967

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ARISTOacuteTELES Retoacuterica Prefaacutecio e introduccedilatildeo de Manuel Alexandre Juacutenior Traduccedilatildeo e notas de Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda Volume VIII Tomo I 2005 ARISTOacuteTELES Poliacutetica In Os pensadores Satildeo Paulo Nova Cultura 1999 ______ Poeacutetica Prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de Souza Porto Alegre Globo 1966 ______ Arte retoacuterica e arte poeacutetica Introduccedilatildeo e notas de Jean Voilquin e Jean Capelle Traduccedilatildeo de Antocircnio Pinto de Carvalho Satildeo Paulo Difel 1964 CAacuteRITON Queacutereas e Calliacuteroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Souza e Silva Lisboa Cosmos 1996 CIacuteCERO M T Cartas a Quinto Ciceroacuten In Obras completas Vidas y discursos Traduccedilatildeo de Francisco Navarro y Calvo Buenos Aires Anaconda 1946 Tomo IV pp 195-270 ______ Do orador e textos vaacuterios Traduccedilatildeo de Fernando Couto Porto Resjuriacutedica sd DEMEacuteTRIO LONGINO Sobre o estilo Sobre o sublime Trad de Joseacute Garcia Loacutepez Madrid Gredos 1996 DIONIacuteSIO DE HALICARNASO Sobre la imitacioacuten In Tratados de criacutetica literaacuteria Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e notas de Juan Pedro Oliver Segura Madrid Gredos 2005 v 334 pp 475-500 HELIODORO Las Etioacutepicas o Teaacutegenes y Cariclea Traduccedilatildeo de Emiacutelio Crespo Guumliemes Madrid Gredos 1979 HEROacuteDOTO Histoacuterias Livro 1ordm Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha Pereira Introduccedilatildeo ao Livro I notas e traduccedilatildeo de Maria de Faacutetima Silva e Joseacute Ribeiro Ferreira Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 HESIacuteODO Os trabalhos e os dias Traduccedilatildeo e notas de M Lafer Satildeo Paulo Iluminuras 1996 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Carlos A Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2001 ______ Odisseacuteia Traduccedilatildeo de Carlos A Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2001 ISOCRATE Discours Traduccedilatildeo de Geroges Matheus Paris Belles-Lettres 1956 Tomo II LAEacuteRCIO DIOacuteGENES Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres Trad Mario da Gama Kury Brasiacutelia Ed UNB 1977

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LONGUS Pastorales (Daphnis et Chloeacute) Traduccedilatildeo de Georges Dalmeyda Paris Belles-Lettres 1971 LUCIANO Como se deve escrever a histoacuteria Traduccedilatildeo e Ensaio de Jacyntho Lins Brandatildeo Belo Horizonte Tessitura 2009 MENANDRO EL REacuteTOR Dos tratados de retoacuterica epidiacutectica Introducioacuten de Fernando Gascoacute Traducioacuten y notas de Manuel Garciacutea Garciacutea y Joaquiacuteon Gutieacuterrez Calderoacuten Madrid Gredos 1996 PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Calouste Gulbenkian 1980 ______ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Seleccedilatildeo de J A M Pessanha e Traduccedilatildeo e notas de J C de Souza J Paleikat e J C Costa Satildeo Paulo Abril 1979 PLUTARCO Teseu Rocircmulo In______ Vidas paralelas Introduccedilatildeo de Paulo Matos Peixoto e Traduccedilatildeo de Gilson Ceacutesar Cardoso Satildeo Paulo Paumape 1991 v I p17-87 ______ Alexandre In______ Vidas paralelas Introduccedilatildeo de Paulo Matos Peixoto e Traduccedilatildeo de Gilson Ceacutesar Cardoso Satildeo Paulo Paumape 1992 v IV p133-208 ______ Sobre el destierro In______ Obras Morales y de Costumbres vol viii Madrid Gredos 1996 POLIacuteBIO Histoacuteria Traduccedilatildeo de Mario da Gama Kury Brasiacutelia Ed UNB 1985 TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Livro I Traduccedilatildeo de Anna Lia de Almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Cosmos 2000

83 Outros Autores

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DETIENNE M Os mestres da verdade na Greacutecia Arcaica Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor [198-] DEZOTTI M C C A tradiccedilatildeo da faacutebula ndash de Esopo a La Fontaine BrasiacuteliaSatildeo Paulo EDUNBImprensa oficial do Estado de Satildeo Paulo 2003 DIDIER B (Org) Dictionaire Universal des Litteacuteratures Paris Presses Universitaires de France 1994 Vol II G-O DrsquoONOFRIO S Narrativas ideoloacutegicas e narrativas carnavalizadas Estudo sobre estruturas temas e gecircnese do romance claacutessico) Livre ndashDocecircncia Satildeo Joseacute do Rio Preto UNESP 1976 DUE B The Cyropaedia Xenophonrsquos aims and methods Aarhus Aarhus University Press 1989 DUFEUR M Analyse du Livre II In ARISTOTE Rheacutetorique (Livre II) Texte eacutetabili et traduit par Meacutedeacuteric Dufeur Paris Les Belles Lettres 1967 p15-58 FEacuteNELON F de Aventures de Teacuteleacutemaque Paris Garnier 1987 FERREIRA J R SILVA M F S Introduccedilatildeo ao Livro I notas e traduccedilatildeo In HEROacuteDOTO Histoacuterias Livro 1ordm Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha Pereira Introduccedilatildeo ao Livro I notas e traduccedilatildeo de Maria de Faacutetima Silva e Joseacute Ribeiro Ferreira Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 p3-49 FRANCIS J A Truthful fiction new questions to old answers on Philostratusrsquo Life of Apollonius American Journal of Philology Vol 119 nordm 3 1998 pp419-411 FREITAS M T de Literatura e Histoacuteria O Romance Revolucionaacuterio de Andreacute Malraux Satildeo Paulo Atual 1986 ______ Romance e Histoacuteria Uniletras Ponta Grossa nordm 11 pp109-118 dez 89 FRYE N Anatomia da criacutetica Traduccedilatildeo de Peacutericles E da Silva Ramos Satildeo Paulo Cultrix 1973 GENETTE G Palimpsestes La Litteacuterature au second degreacute Eacuteditions du Seuil 1982 GERA D L Xenophonrsquos Cyropaedia Style Genre and Literary Technique New York Oxford University Press 1993 GLOTZ G A Cidade Grega Traduccedilatildeo de Henrique Arauacutejo Mesquita e Roberto Cortes de Lacerda Satildeo PauloRio de Janeiro Difel 1980 GOBBI M V Z Relaccedilotildees entre ficccedilatildeo e histoacuteria uma breve revisatildeo teoacuterica Itineraacuterios Revista de Literatura Araraquara Ed UNESP 2004 pp37-58 GOETHE J W von Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister Traduccedilatildeo de Nicolino Simone Neto Satildeo Paulo Ensaio 1994

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Page 2: EMERSON CERDAS - Unesp

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EMERSON CERDAS

A CIROPEDIA DE XENOFONTE

Um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade

Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras da Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo ndash UNESP Cacircmpus de Araraquara visando agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Estudos Literaacuterios

Orientadora Profa Dra Maria Celeste Consolin Dezotti Linha de Pesquisa Teoria e Criacutetica da Narrativa Bolsa FAPESP

Araraquara

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EMERSON CERDAS

A CIROPEDIA DE XENOFONTE

Um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade

Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras da Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo ndash UNESP Cacircmpus de Araraquara visando agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Estudos Literaacuterios

Teoria e Criacutetica da Narrativa

FAPESP

Data de aprovaccedilatildeo 05052011

MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA

Presidente e Orientador Profa Dra Maria Celeste Consolin Dezotti UNESPFCLAraraquara

Membro Titular Prof Dr Claacuteudio Aquati UNESPIBILCESatildeo Joseacute do Rio Preto

Membro Titular Profa Dra Maacutercia Valeacuteria Zamboni Gobbi UNESPFCLAraraquara

Local Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciecircncias e Letras UNESP ndash Campus de Araraquara

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A meus pais Claacuteudio e Filomena

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AGRADECIMENTOS Agrave Profa Dra Maria Celeste Consolin Dezotti pela formaccedilatildeo helenista e humana pela confianccedila e apoio e sobretudo pela amizade Agrave Profa Dra Maacutercia V Zamboni Gobbi agrave Profa Dra Wilma Patriacutecia M Dinardo Maas e ao Prof Dr Claacuteudio Aquati pelas valiosiacutessimas leituras que renderam valiosiacutessimas contribuiccedilotildees e pela generosidade de seus comentaacuterios Ao Prof Dr Henrique Cairus e agrave Profa Dra Maria Aparecida de Oliveira Silva pelas contribuiccedilotildees precisas Aos Professores Fernando Edvanda Anise e em especial agrave professora Claacuteudia pela formaccedilatildeo e encaminhamento nesta via sem volta que eacute a paixatildeo pela Heacutelade Agrave minha matildee Filomena pela eterna dedicaccedilatildeo agrave famiacutelia e aos cuidados prestimosos Ao meu pai Claacuteudio que primeiro me apresentou o maacutegico mundo da leitura com seu exemplo de leitor ndash saudades eternas Aos meus irmatildeos Viviane Anderson e Eliane principalmente pela compreensatildeo da ausecircncia e em especial agrave minha irmatilde Luciene e ao Brunno pela hospedagem intelectual nos meus anos de graduaccedilatildeo Agrave Patriacutecia presente e auxiliante nos momentos mais difiacuteceis e pelo incentivo seguro e sincero agredeccedilo profundamente Agrave FAPESP cujo financiamento deste trabalho possibilitou que ele se desenvolvesse tal qual o desejado Aos amigos Ceacutesar Augusto Ceacutesar Henrique Itamar Joatildeo Daniele Ceacutesar Erasmo Priscila Marco Aureacutelio sempre presentes

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O historiador e o artista ao relatarem uma eacutepoca tecircm finalidades completamente diferentes [] A diferenccedila torna-se mais sensiacutevel e essencial quando se trata de descrever acontecimentos O historiador considera os resultados de um acontecimento o artista o proacuteprio acontecimento Leoacuten Tolstoi

A uacutenica coisa que devemos agrave histoacuteria eacute a tarefa de reescrevecirc-la Oscar Wilde

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RESUMO A Ciropedia de Xenofonte escrita no seacuteculo IV aC eacute uma obra de caraacuteter hiacutebrido em que a ficccedilatildeo e a histoacuteria se mesclam com muita liberdade Em virtude disto tem-se discutido qual seria a melhor classificaccedilatildeo de gecircnero para a obra romance biograacutefico obra historiograacutefica romance histoacuterico A presente dissertaccedilatildeo investiga em que medida a Ciropedia de Xenofonte apresenta elementos narrativos que nos permitam reconhecer nela aspectos do gecircnero do romance mais especificamente do ldquoromance de formaccedilatildeordquo (Bildungsroman) gecircnero cujo paradigma se encontra na obra de Goethe Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister (1795-1796) Primeiramente procuramos definir em que medida noacutes podemos ler a Ciropedia como uma obra de ficccedilatildeo e natildeo como uma obra historiograacutefica a partir de reflexotildees a respeito das relaccedilotildees entre Literatura e Histoacuteria e principalmente por meio de uma anaacutelise comparativa entre a narrativa da Ciropedia com a narrativa das Histoacuterias de Heroacutedoto Percebe-se que Xenofonte ficcionaliza a narrativa estabelecida por Heroacutedoto seja retomando temas seja fazendo alusotildees agrave narrativa herodoteana Em seguida partindo-se da noccedilatildeo bakhtiniana de que todo gecircnero conserva em sua estrutura elementos formais da archaica que natildeo soacute caracterizam o gecircnero de forma distintiva mas tambeacutem permitem a sua renovaccedilatildeo a cada nova manifestaccedilatildeo literaacuteria procuramos definir quais elementos essenciais presentes no Romance de Formaccedilatildeo moderno encontramos na Ciropedia Analisamos cenas em que satildeo evidentes a partipaccedilatildeo de mentores a presenccedila de uma instituiccedilatildeo pedagoacutegica a visatildeo teleoloacutegica da educaccedilatildeo Aleacutem disso uma das caracteriacutesticas essenciais do ldquoRomance de Formaccedilatildeordquo eacute a presenccedila de uma personagem dinacircmica e evolutiva que se forma e educa no decorrer da narrativa Analisamos a construccedilatildeo e evoluccedilatildeo da personagem principal da narrativa Ciro por meio da anaacutelise da locuccedilatildeo de maacuteximas A dissertaccedilatildeo apresenta a traduccedilatildeo completa do Livro I da Ciropedia Palavras-chaves Romance antigo Romance de formaccedilatildeo Histoacuteria e Literatura Historiografia Xenofonte Ciropedia

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ABSTRACT

The Xenophonrsquos Cyropaedia written in the fourth century BC it is a work of hybrid character in which fiction and history mingle with a lot of freedom Because of this it has been discussed what would be the best genre classification for the work biographical novel work of historiography historical novel This dissertation investigates the extent to which Cyropaedia Xenophons narrative has elements that allow us to recognize aspects of her romance genre specifically the ldquoNovel of Educationrdquo (Bildungsroman) genre whose paradigm is in the work Goethersquos Wilhelm Meisters Apprenticeship (1795-1796) First we looked to define to what extent we can read the Cyropaedia as a work of fiction and not as a work of historiography from reflections on the relationship between Literature and History and mainly through a comparative analysis between the narrative of Cyropaedia and the narrative of Herodotusrsquo Histories We realize that Xenophon fictionalizes the narrative established by Herodotus whether taking up subjects or alluding to the Herodotus narratives Then starting from the Bakhtins notion that every genre preserves in the structure formal elements of archaica that not only characterize the genre in the form distinctive but also allows its renewal every new literary manifestation we tried to define which essential elements present in modern novel of education we can find in Cyropaedia We analyze scenes where are evident the action of mentors the presence of an educational institution the theological view of education Moreover an important characteristic essential of the ldquoNovel of Educationrdquo is the presence of a dynamic and evolutionary character that get formation in the course of the narrative We analyzed the construction and evolution of the main character of the narrative Cyrus by the analyzing of the expression of maxims The dissertation presents a full translation of Book I of Cyropaedia Keywords Ancient novel Novel of education History and Literature Historiography Xenophon Cyropaedia

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SUMAacuteRIO

INDIacuteCE DE FIGURAS E QUADROS 10

1 INTRODUCcedilAtildeO 11

2 INTRODUCcedilAtildeO Agrave CIROPEDIA 17

21 O AUTOR 17 211 Vida 17 212 Corpus Xenofontis 21

22 CIROPEDIA 24 221 O tiacutetulo 24 222 Siacutentese da narrativa 25 223 A Ciropedia e a ideologia poliacutetica do seacuteculo IV 29 224 A Ciropedia na tradiccedilatildeo da narrativa 33 2241 O conceito de romance e seu uso anacrocircnico 34 2242 A ficccedilatildeo em prosa na Greacutecia 37 2243 Modos de Imitaccedilatildeo da Ciropedia 42

3 REESCREVENDO O PASSADO FICCIONALIZANDO A HISTOacuteRIA 45

31 HISTOacuteRIA E LITERATURA 45 32 CIRO NA HISTOacuteRIA E NA FICCcedilAtildeO 55

321 O ΛόΓΟΣ DE CIRO NA HISTOacuteRIA DE HEROacuteDOTO 57 322 Origem e infacircncia de Ciro 58 323 A cena de Creso o encontro dos monarcas 64 3231 Preparativos 64 3232 Creso prisioneiro de Ciro 67 3233 A intertextualidade e a reescrita da histoacuteria 76 324 A Morte de Ciro 77

33 O CIRO EacutePICO E O CIRO TRAacuteGICO 80

4 CIROPEDIA UM ROMANCE DE FORMACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE 85

41 BILDUNGSROMAN E SUAS ORIGENS 86 42 A PAIDEacuteIA COMO TEMA DA NARRATIVA O PROEcircMIO (CIROP I11-6) 91 43 AS ARCHAICA DO ROMANCE DE FORMACcedilAtildeO 97

431 A Instituiccedilatildeo educacional a paideia persa e a consciecircncia teleoloacutegica 97 432 Enganos e desmedidas a participaccedilatildeo dos mentores 108 4321 Afastamento da casa paterna Visita agrave Meacutedia 112 4322 Cambises mentor de Ciro (Cirop 16) 116

44 O GRAU DE ASSIMILACcedilAtildeO DO TEMPO HISTOacuteRICO 125 45 XENOFONTE EDUCADOR 130

5 IMAGEM E EVOLUCcedilAtildeO DO HEROacuteI DA CIROPEDIA 133

51 A MAacuteXIMA ESTRUTURA E CONTEUacuteDO 134 52 O HEROacuteI-SAacuteBIO 139

521 Quem fala quem ouve o contexto das maacuteximas na Ciropedia 140

53 O PERCURSO DE CIRO A FORMACcedilAtildeO DO ΔΙΔάΣΚΑΛΟΣ 153

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 159

7 TRADUCcedilAtildeO 163

8 BIBLIOGRAFIA 187

81 EDICcedilOtildeES E TRADUCcedilOtildeES DE XENOFONTE 187

82 AUTORES ANTIGOS 187

83 OUTROS AUTORES 189

10

IacuteNDICE DE FIGURAS E QUADROS

FIGURAS Figura 1 Ciro na corte do rei Astiacuteages 63 Figura 2 Creso a ponto de ser incendiado a mando de Ciro Acircnfora grega 75 Figura 3 Ciro comandando o exeacutercito persa 124 Figura 4 Cilindro de Ciro 158 QUADROS Quadro 1 Maacuteximas da Ciropedia 139 Quadro 2 Maacuteximas de guerra proferidas por Ciro 154 Quadro 3 Maacuteximas gerais proferidas por Ciro 154

11

1 Introduccedilatildeo

Redescobrir uma obra literaacuteria que tem sido desvalorizada pela criacutetica eacute uma

tarefa aacuterdua a que o estudioso estaacute sujeito poreacutem uma tarefa intensamente gratificante

A presente Dissertaccedilatildeo de Mestrado trata da Ciropedia de Xenofonte que se na

Antiguidade e no Renascimento foi muito apreciada nos dois uacuteltimos seacuteculos tem sido

rotulada de obra tediosa graccedilas principalmente ao seu caraacuteter idealista

O nosso interesse pela Ciropedia de Xenofonte nasceu em virtude das relaccedilotildees

da obra com a origem do gecircnero do romance Pareceu-nos que a Ciropedia apresentava

importantes inovaccedilotildees no campo da narrativa ficcional do Ocidente Aleacutem disso alguns

criacuteticos como Lesky (1986) e Bakhtin (2010) a classificam como um romance de

formaccedilatildeo um dos principais subgecircneros do romance moderno Apesar disso a obra natildeo

tem recebido atenccedilatildeo dos estudiosos do romance e mesmo no acircmbito da literatura

antiga a obra natildeo tem dispertado o interesse dos pesquisadores Observe-se que em

liacutengua portuguesa natildeo haacute estudos a respeito de Xenofonte

A criacutetica norte-americana no entanto a partir do estudo de Higgins (1977)

mostrou uma nova postura em relaccedilatildeo agraves obras de Xenofonte como um todo Sobre a

Ciropedia podemos citar os importantes trabalhos de Tatum (1989) Due (1989) e Gera

(1993) Os trabalhos destes trecircs autores satildeo relevantes pois tomam a Ciropedia como

objeto de estudo literaacuterio nem histoacuterico nem filosoacutefico Por este vieacutes os trabalhos

revelaram um escritor muito superior agravequele que a criacutetica da Histoacuteria do iniacutecio do seacuteculo

XX quis apresentar Pretendemos portanto analisar a Ciropedia como uma obra

literaacuteria mais especificamente como uma narrativa ficcional Ressaltamos que a nosso

ver um estudo aprofundado desta obra pode ajudar-nos a compreender melhor as

origens do romance moderno

Xenofonte viveu e produziu suas obras na Greacutecia do seacuteculo IV periacuteodo de

profundas mudanccedilas sociais poliacuteticas e culturais que assistiu tanto agrave decadecircncia do

Seacuteculo de Ouro de Peacutericles quanto agrave pavimentaccedilatildeo de um solo feacutertil para o surgimento

do helenismo (GLOTZ 1980 p240) No helenismo os ideais ciacutevicos e coletivos do

seacuteculo V aC foram substituiacutedos por um individualismo novo cuja preocupaccedilatildeo maior

era com a vida particular do indiviacuteduo Xenofonte foi um precursor do helenismo tanto

por suas posturas na vida puacuteblica quanto pela sua produccedilatildeo literaacuteria Podemos dizer que

foi um homem de vanguarda que se distanciou das ideias do seacuteculo anterior e pelas

12

novidades que apresentou foi muito admirado pelos escritores do helenismo No

capiacutetulo 2 Introduccedilatildeo agrave Ciropedia apresentamos algumas informaccedilotildees biograacuteficas a

respeito de Xenofonte e a respeito do contexto histoacuterico em que Xenofonte viveu e

produziu suas obras Aleacutem disso mostramos a questatildeo da prosa ficcional na Greacutecia

claacutessica e como a Ciropedia se insere nesta tradiccedilatildeo

Uma das principais dificuldades que se potildee ao estudioso da Ciropedia eacute

classificar a obra quanto ao gecircnero A intensa polecircmica sobre o enquadramento geneacuterico

da Ciropedia deve-se principalmente ao fato de a obra tratar de um tema histoacuterico (a

vida de Ciro o Velho) com liberdade manipulando ficcionalmente o material histoacuterico

conhecido A partir disso a obra tem sido designada de diversas maneiras

historiografia biografia histoacuteria romanceada biografia romanceada romance

filosoacutefico romance didaacutetico tratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Neste trabalho

efetuamos uma anaacutelise literaacuteria da Ciropedia no que tange seus aspectos romanescos

procurando argumentar que por meio de tais aspectos a obra de Xenofonte pode ser

lida como um romance ou proto-romance1

Classificar a obra por um determinado vieacutes significa necessariamente rejeitar as

outras classificaccedilotildees propostas pelos criacuteticos Poreacutem natildeo significa que na tessitura

narrativa da obra os elementos discursivos daqueles outros gecircneros natildeo estejam

presentes todavia a presenccedila por exemplo de elementos historiograacuteficos natildeo eacute o fator

determinante de caracterizaccedilatildeo da obra uma vez que eles estatildeo romancizados nela ou

seja estatildeo a serviccedilo de uma proposta ficcional que difere dos objetivos do texto

historiograacutefico Constituem portanto como traccedilos estiliacutesticos que adornam a narrativa

mas que natildeo a enformam natildeo a determinam

A argumentaccedilatildeo de que a Ciropedia pode ser lida como um romance deve

entatildeo levar em conta a anacronia do uso terminoloacutegico do romance A palavra romance

data do seacuteculo XII dC e referiu-se primeiramente agraves produccedilotildees literaacuterias em liacutenguas

romacircnicas em oposiccedilatildeo agraves obras literaacuterias produzidas em liacutenguas claacutessicas neste

contexto o termo romance designava tanto narrativas em prosa quanto narrativas em

verso Apenas no seacuteculo XV o termo passa a designar narrativas de ficccedilatildeo em prosa

Neste sentido o romance tem sido teorizado como um fenocircmeno estritamente moderno

proacuteprio das sociedades burguesas Para Lukaacutecs (1999) a forma do romance estabelece

1 A falta de uma terminologia entre os antigos para definir as obras de ficccedilatildeo em prosa torna necessaacuterio o uso anacrocircnico do termo romance Ressaltamos que tal uso deve levar em conta determinadas ressalvas para que natildeo pareccedilamos ingecircnuos ao efetuar tal classificaccedilatildeo anacrocircnica

13

uma oposiccedilatildeo entre indiviacuteduo e sociedade entre os impulsos daquele frente agraves

imposiccedilotildees desta O heroacutei romanesco portanto eacute o heroacutei problemaacutetico que

contestando os valores impostos pela sociedade inicia uma querela interna ou externa

contra esta opressatildeo Estes aspectos segundo Lukaacutecs (1999) satildeo proacuteprios da sociedade

burguesa e portanto o romance eacute um fenocircmeno artiacutestico desta sociedade

A teoria do romance proposta por Bakhtin tem o meacuterito entre muitos outros de

ampliar esta visatildeo lukacseana do romance Bakhtin natildeo nega o caraacuteter moderno da

forma do romance poreacutem observa em seus trabalhos de poeacutetica histoacuterica que o discurso

romanesco eacute fruto de um desenvolvimento longo provindo mesmo da Antiguidade e

que se desenvolveu plenamente na Modernidade Isso significa que aleacutem do romance

moderno haacute outras formas romanescas antes deste romance que satildeo essenciais para a

formaccedilatildeo do gecircnero O surgimento de uma obra e a sua permanecircncia estabelecem novos

criteacuterios literaacuterios que satildeo imitados ou negados pelos novos escritores Neste sentido o

desenvolvimento discursivo do romance pode e deve ser pesquisado em outros acircmbitos

para aleacutem do romance moderno para que o compreendamos da forma mais ampla

possiacutevel Desse modo a teoria de Bakhtin cujo conceito de romance adotamos

estabelece criteacuterios de anaacutelise e conceitos fundamentais para o nosso estudo

Aleacutem disso as poeacuteticas claacutessicas natildeo se interessaram pelas narrativas de ficccedilatildeo

em prosa e o gecircnero natildeo foi reconhecido pelo cacircnone claacutessico Por causa disso natildeo haacute

na Antiguidade uma terminologia especiacutefica para as prosas ficcionais Palavras como

argumentum e πλάσμα (plaacutesma) foram usadas respectivamente por Macroacutebius e o

Imperador Juliano para se referirem ao romance idealista grego cuja produccedilatildeo data do

periacuteodo entre os seacuteculos I aC e IV dC Por isso para Whitmarsh (2008 p3) o uso

anacrocircnico do termo romance ou novel natildeo eacute soacute um roacutetulo conveniente mas tambeacutem

necessaacuterio para o trabalho do criacutetico Holzberg (2003 p11) a despeito do anacronismo

dos termos dada a semelhanccedila entre as formas antigas e modernas acredita que

devemos aceitar sem dificuldades tais anacronismos Para Holzberg (2003) o real

problema eacute discutir quais as obras da Antiguidade podem ser chamadas de romance O

conceito de gecircnero deve ser legitimado nesse contexto fixando criteacuterios precisos para a

classificaccedilatildeo dessas obras

Em geral reconhecem-se como romance na Antiguidade as narrativas idealistas

gregas Nestas narrativas o tema amoroso e o da viagem configuram-se como uma

unidade caracterizadora Um jovem casal apaixonado de compleiccedilatildeo e alma perfeitas eacute

14

separado pelas vicissitudes do acaso Na separaccedilatildeo enfrentam todo tipo de obstaacuteculos

para um possiacutevel reencontro poreacutem eles se preservam fieacuteis um ao outro ateacute que no

final vencidos todos os obstaacuteculos eles podem viver juntos e felizes Basicamente esta

estrutura estaacute presente nos romances As Etioacutepicas de Heliodoro Queacutereas e Caliacuterroe de

Caacuteriton de Afrodiacutesias Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio Daacutefnis e Cloeacute de Longo e

As Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso Acrescentam-se ainda duas obras latinas que

combinam os temas de amor e de aventura com a mordaz saacutetira da sociedade Satyricon

de Petrocircnio e O Asno de ouro de Apuleio Por causa deste caraacuteter homogecircneo na

estrutura interna e pela sua finalidade luacutedica Holzberg (2003) define estas obras como

novels proper ou seja romances de fato

Para Holzberg (2003) a relaccedilatildeo da Ciropedia com os novels proper eacute legitimada

pela presenccedila de uma narrativa secundaacuteria a narrativa de Panteacuteia e Abradatas De fato

interligada agrave narrativa principal esta narrativa secundaacuteria apresenta os principais

elementos do tema amoroso do romance idealista grego o amor puro dos protagonistas

que satildeo personagens completamente ficcionais a separaccedilatildeo dos namorados a fidelidade

constantemente posta agrave prova e por fim o reencontro dos apaixonados Esta narrativa

foi muito famosa na Antiguidade e segundo alguns teorizadores do romance antigo

serviu de modelo para o romance idealista grego

No entanto uma vez que a estrutura da Ciropedia natildeo se resume agrave estrutura de

narrativas amorosas erotikoi logoi mas abrange outras haacute dificuldade por parte dos

criacuteticos (por exemplo BRANDAtildeO 2005 GUAL 1988) em aceitaacute-la como um

romance propriamente dito Devemos portanto observar para aleacutem da estrutura da

narrativa amorosa outros elementos da Ciropedia que se configuram como ficcionais e

romanescos e por meio da anaacutelise destes eacute que poderemos compreender a obra de fato

Ao lado dos novels proper Holzberg (2003) chama a atenccedilatildeo para os novels

fringe romances perifeacutericos obras de ficccedilatildeo em prosa que apresentam natildeo soacute uma

variedade temaacutetica muito mais ampla do que a dos novels proper mas tambeacutem uma

aproximaccedilatildeo com outros gecircneros discursivos (historiografia filosofia etc) Esta

aproximaccedilatildeo dificulta a demarcaccedilatildeo de limites precisos nessas obras em que a ficccedilatildeo se

relaciona com algum objetivo didaacutetico ou informativo e assim Holzberg (2003) atribui

a este grupo as mais variadas obras a-) biografia ficcional Ciropedia de Xenofonte

Vida e Andanccedilas de Alexandre da Macedocircnia de Pseudo-Caliacutestenes Vida de Esopo

(anocircnimo) Vida de Apolocircnio de Tiana de Filoacutestrato Atos dos apoacutestolos apoacutecrifos b-)

15

autobiografia ficcional Pseudo-Clemente c-) Cartas ficcionais Cartas de Eacutesquines

Cartas de Quioacuten Cartas de Euriacutepides Cartas de Hipoacutecrates Cartas de Platatildeo Cartas

de Soacutecrates e dos socraacuteticos e Cartas de Temiacutestocles

Aleacutem da diferenccedila temaacutetica os novels proper narram a histoacuteria de personagens

completamente inventadas ao contraacuterio dos novels fringe que ficcionalizam um dado

material histoacuterico A mais antiga dos novels fringe eacute a Ciropedia de Xenofonte escrita

por volta de 360 aC

Portanto no capiacutetulo 3 Reescrevendo o passado ficcionalizando a histoacuteria

observaremos as relaccedilotildees entre a ficccedilatildeo e a histoacuteria uma vez que o narrador se utiliza de

dados histoacutericos na construccedilatildeo da ficccedilatildeo na Ciropedia e demonstraremos como a

histoacuteria eacute manipulada incrementada e embelezada com ficccedilatildeo Nosso objetivo neste

capiacutetulo eacute a partir da anaacutelise argumentar que a Ciropedia natildeo eacute uma narrativa

historiograacutefica nos moldes do projeto estabelecido por Heroacutedoto e desenvolvido por

Tuciacutedides mas uma narrativa ficcional de tema histoacuterico Isso significa que a ficccedilatildeo se

mescla ao texto histoacuterico e com ele se confunde por meio desta estrateacutegia narrativa o

leitor eacute persuadido da verdade dos fatos narrados pela obra ficcional natildeo da verdade

enquanto fato veriacutedico mas como construccedilatildeo verossiacutemil

O capiacutetulo 4 Ciropedia um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade e o

capiacutetulo 5 Imagem e evoluccedilatildeo do heroacutei da Ciropedia constituem um bloco temaacutetico

em nossa Dissertaccedilatildeo Ambos por meios diferentes tratam da trajetoacuteria e do caraacuteter da

personagem principal da narrativa o heroacutei da Ciropedia e em ambos demonstraremos

que Ciro natildeo eacute uma personagem estaacutetica formada desde o iniacutecio da narrativa mas uma

personagem dinacircmica que evolui no decorrer da narrativa A personagem dinacircmica eacute

segundo Bakhtin (2010) a principal caracteriacutestica do romance de formaccedilatildeo o que o

distingue dos outros tipos de romance

No capiacutetulo 4 Ciropedia um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade o nosso

foco eacute a possiacutevel classificaccedilatildeo da obra xenofonteana como romance de formaccedilatildeo

gecircnero moderno cujo paradigma eacute a obra Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister

de Goethe escrita no seacuteculo XVIII Para efetuarmos nossa anaacutelise recorreremos aos

estudos a respeito do romance de formaccedilatildeo para identificar as estruturas que ainda hoje

caracterizam o gecircnero Segundo Bakhtin (2010) todo gecircnero conserva na dinacircmica de

sua produccedilatildeo e reproduccedilatildeo determinadas estruturas que lhe satildeo caracterizadoras e satildeo

denominadas de archaica A permanecircncia destas estruturas natildeo eacute um fenocircmeno estaacutetico

poreacutem um fenocircmeno dinacircmico que se renova a cada nova manifestaccedilatildeo artiacutestica e

16

renovando-se permanecem como traccedilos distintivos do gecircnero Eacute por meio deste caraacuteter

de permanecircncia das estruturas que os leitores reconhecem se determinada obra pertence

ou natildeo a um gecircnero Aleacutem disso reconhecendo estes elementos podemos identificar a

histoacuteria do gecircnero os principais movimentos estruturais que determinam o

desenvolvimento da forma artiacutestica Desse modo a anaacutelise da archaica eacute fundamental

em um trabalho de poeacutetica histoacuterica

No capiacutetulo 5 Imagem e evoluccedilatildeo do heroacutei da Ciropedia analisaremos o

caraacuteter evolutivo de Ciro por meio do estudo de maacuteximas As maacuteximas configuram-se

como um discurso didaacutetico de grande potencial retoacuterico e apresentam na tessitura

narrativa da Ciropedia a nosso ver um importante papel na construccedilatildeo da personagem

principal Seraacute feito um levantamento das maacuteximas formuladas no decorrer de toda a

obra e uma avaliaccedilatildeo da forma como essas maacuteximas aparecem atentando-se para o

enunciador o destinataacuterio e o contexto de enunciaccedilatildeo e como elas participam da

formaccedilatildeo de Ciro Por meio desta anaacutelise poderemos observar a evoluccedilatildeo da

personagem

Segundo Aristoacuteteles na Retoacuterica as maacuteximas apresentam um caraacuteter eacutetico uma

vez que emitem um preceito moral decorrente de se pretender uma ldquonorma reconhecida

do conhecimento do mundordquo (LAUSBERG 1966 p235) Aleacutem disso por emitirem um

preceito moral natildeo soacute revelam as preferecircncias do orador mas o proacuteprio caraacuteter dele

Aleacutem disso como efeito retoacuterico as maacuteximas contecircm em si um elemento discursivo

extremamente poeacutetico que se relaciona muito menos com o conteuacutedo da mensagem do

que com a forma de sua expressatildeo Neste sentido o uso de maacuteximas aliado a outros

expedientes retoacutericos revela tambeacutem um esforccedilo de embelezar o discurso prosaico

A Ciropedia de Xenofonte eacute uma narrativa ficcional de caraacuteter idealizante que

trata da vida de Ciro o Velho fundador do Impeacuterio persa O principal interesse de

Xenofonte eacute discutir sobre a arte de governar poreacutem ao inveacutes de fazer um tratado sobre

o tema ele faz suas reflexotildees em forma de uma narrativa biograacutefica O tema da vida de

Ciro uma personagem especiacutefica do passado eacute representado como paradigma da arte de

governar Para efetuar esta representaccedilatildeo Xenofonte desatrela-se da fidelidade agrave

histoacuteria que para os antigos soacute pode ser alcanccedilada por meio da verdade e ficcionaliza

esse passado Eacute nosso objetivo portanto analisar como Xenofonte constroacutei a sua ficccedilatildeo

reconhecer os elementos romanescos e observar o grau de inovaccedilatildeo literaacuteria apresentado

por esta narrativa xenofonteana

17

2 Introduccedilatildeo agrave Ciropedia

Εἰ καὶ σέ Ξενοφῶν Κραναοῦ Κέκροπός τε πολῖται

φεύγειν κατέγνων τοῦ φίλου χάριν Κύρου

ἀλλὰ Κόρινθος ἔδεκτο φιλόξενος ᾗ σὺ φιληδῶν

(οὕτως ἀρέσκῃ) κεῖθι καὶ μένειν ἔγνως2 Dioacutegenes Laeacutercio

Antologia Palatina 7981

21 O autor

211 Vida

Xenofonte3 nasceu por volta de 430 aC na Aacutetica no demo de Eacuterquia4 em

plena guerra do Peloponeso Descendente de uma famiacutelia abastada de proprietaacuterios

rurais era filho de Grilo5 e acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense na primeira

fase de sua vida Sua origem e educaccedilatildeo aristocraacutetica emergem de forma clara por toda

sua obra ao condenar muitas das accedilotildees dos poliacuteticos democratas6 Conforme

comentaacuterio drsquoAs Helecircnicas7 (1994) Xenofonte participou da cavalaria ateniense tanto

na Liacutedia em 410 aC8 quanto ao lado dos oligarcas do Governo dos Trinta na

turbulenta Atenas poacutes-Peloponeso9 Para Jaeger (1995 p1144) a imagem filoespartana

de Xenofonte decorrente deste periacuteodo natildeo permitiu durante deacutecadas que o escritor

ateniense tivesse um contato paciacutefico com a paacutetria

2 Traduccedilatildeo nossa Se tambeacutem a ti Xenofonte os cidadatildeos de Cranau e Ceacutecropes Acusavam de fugir por causa do amigo Ciro Corinto hospitaleira te recebeu onde encontrando o prazer (a ponto de ficar satisfeito) ali resolveste permanecer 3 As informaccedilotildees a respeito da vida de Xenofonte satildeo conhecidas principalmente pela biografia que Dioacutegenes Laeacutercio dedica a ele no livro II de sua obra Vidas dos Filoacutesofos Ilustres (II 48-59) 4 O demo de Eacuterquia fica localizado entre Himeto montanha da Aacutetica e Pentele demo ateniense a quinze quilocircmetros de Atenas 5 Filoacutestrato na obra Vida dos Sofistas refere-se a Xenofonte apenas como ldquoo filho de Grilordquo (I 12 96) 6 Hutchinson (2000) cita como exemplo a criacutetica que nas Helecircnicas Xenofonte faz agrave condenaccedilatildeo dos vitoriosos generais de Arginusas em 406 aC que estes sofreram por natildeo terem retirado os corpos dos soldados do mar em plena tempestade 7 Hel I2 8 Hutchinson 2000 p14 9 Para Luciano Cacircnfora (2003 p40) a viagem de Xenofonte agrave Peacutersia para integrar-se ao exeacutercito de Ciro o Jovem vincula-se a sua participaccedilatildeo no governo dos Trinta Isso explicaria para ele o verdadeiro motivo de Xenofonte ter desobedecido ao conselho de Soacutecrates natildeo perguntando ao oraacuteculo de Delfos se deveria ou natildeo partir para a Peacutersia como o mestre aconselhara mas perguntando a quais deuses deveria sacrificar para retornar a salvo agrave Greacutecia

18

Durante sua juventude manteve contato com o ciacuterculo socraacutetico Os

ensinamentos de Soacutecrates ainda que natildeo tenham feito dele um filoacutesofo de fato como

Platatildeo e Antiacutestenes tiveram uma profunda influecircncia em sua personalidade10 A

respeito do primeiro encontro de Xenofonte com Soacutecrates Dioacutegenes Laeacutercio (1977)

narra a seguinte anedota (L II48) Soacutecrates caminhando pelas ruas de Atenas ao

deparar-se com Xenofonte11 barrou-lhe a passagem com um bastatildeo e perguntou-lhe

onde se adquire todo tipo de mercadorias (ποῦ πιπράσκοιτο τῶν προσφερομένων

ἕκαστον) Xenofonte indicou-lhe o caminho e Soacutecrates entatildeo lhe perguntou em que

lugar os homens tornavam-se excelentes (ποῦ δὲ καλοὶ κἀγαθοὶ γίνονται

ἄνθρωποι) e diante da perplexidade do jovem convidou-o a segui-lo12

Na primavera de 401aC Xenofonte se juntou com mais dez mil mercenaacuterios

gregos ao exeacutercito persa13 de Ciro o Jovem que tentava destronar seu irmatildeo

Artaxerxes II do trono persa Na batalha de Cunaxa apesar da vitoacuteria sobre os

inimigos Ciro foi morto Os aliados persas de Ciro natildeo tendo mais o seu liacuteder

renderam-se ao exeacutercito do rei Artaxerxes e os gregos se viram desamparados no

territoacuterio baacuterbaro Neste contexto os gregos elegeram Xenofonte como um de seus

novos generais que os guiaria em retirada atraveacutes da Aacutesia Menor14 em ldquo[] uma das

mais surpreendentes experiecircncias militares da histoacuteria []rdquo (HUTCHINSON 2000

p14)

Com a chegada do exeacutercito na estrateacutegica regiatildeo do Helesponto Xenofonte

entregou o exeacutercito de mercenaacuterios gregos agraves matildeos do rei espartano Agesilau que

naquele momento lutava contra os mesmos persas Em 396 aC por causa da guerra

contra Corinto Agesilau retornou agrave paacutetria e em 394 aC a cidade de Atenas aliada dos

10 Lesky 1986 p651 11 Em sua narrativa Dioacutegenes Laeacutercio natildeo elucida o que exatamente teria chamado a atenccedilatildeo de Soacutecrates em Xenofonte Poreacutem no iniacutecio de sua biografia ele afirma que Xenofonte era tido como um homem ldquoextremamente modesto e de oacutetima aparecircnciardquo (αἰδήμων δὲ καὶ εὐειδέστατος εἰς ὑπερβολήν) (L II48) 12 Para Luciano Cacircnfora ldquoNessa anedota na qual talvez pela primeira vez no Ocidente filosofia e mercadoria satildeo colocadas como antiacutepodas tem desde logo um clima de proselitismo e conversaccedilatildeo O encontro com o mestre configura um corte com o passadordquo (2003 p61) 13 ldquoNatildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino de sua vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde dos Persasrdquo (JAEGER 1995 p1142) 14 Ao alcanccedilarem o mar os gregos teriam gritado θἁλαττα θἁλαττα thaacutelatta thaacutelatta oh mar oh mar James Joyce em seu monumental Ulysses faz uma referecircncia a esta passagem quando Buck Mulligam ao observar da torre em que mora com Stephen Dedalus exclama em grego o citado vocativo Esta cena tambeacutem serviu de referecircncia para o poema ldquoMeergrussrdquo do livro Buch Der Lieder (Livros das Canccedilotildees) de Henrich Heine

19

beoacutecios travou batalha contra os espartanos e Xenofonte lutou contra os seus

compatriotas na batalha de Queroneacuteia Por causa da sua participaccedilatildeo na batalha

Xenofonte foi exilado de Atenas15 Em compensaccedilatildeo pelos altos serviccedilos prestados a

Esparta Xenofonte recebeu em homenagem a proxenia16 e um terreno em Escilunte

perto de Oliacutempia

Em Escilunte Xenofonte dedicou-se agrave vida de proprietaacuterio de terra ao exerciacutecio

da caccedila e da equitaccedilatildeo e a escrever seus textos literaacuterios17 Permaneceu ali ateacute 371 aC

quando Tebas derrotou Esparta na batalha de Leuctra sendo obrigado a viver em

Corinto Nesta eacutepoca entretanto como Tebas era inimiga tambeacutem de Atenas Atenas e

Esparta aproximaram suas relaccedilotildees e o exiacutelio de Xenofonte foi revogado Em 362 aC

na batalha de Mantineia Grilo filho de Xenofonte serviu na cavalaria ateniense e

morreu em combate A atuaccedilatildeo valorosa de Grilo na batalha segundo Dioacutegenes

Laeacutercio rendeu a ele vaacuterios epigramas18 Xenofonte morreu com aproximadamente 70

anos entre os anos de 359-355 aC Natildeo se sabe se de fato ele retornou a Atenas ou se

morreu em Corinto mas eacute provaacutevel que tenha retornado agrave cidade natal

Como observa Jaeger (1995) Xenofonte jaacute natildeo podia sentir-se integrado na

ordem tradicional da polis ateniense Segundo Glotz (1980 p269) o que sucede de

mais grave no seacuteculo IV para o regime poliacutetico da polis eacute o fato de que em face agraves

crescentes dificuldades do regime democraacutetico o individualismos se aprofunda19

sobrepujando as ideias de patriotismo Xenofonte eacute neste sentido o tipo perfeito de

grego deste periacuteodo desatado de qualquer laccedilo que o vincule agrave terra natal Abandonou

Atenas quando o impeacuterio se desfalecia interior e exteriormente e ldquo[] tomou em suas

15 Cacircnfora (2003) acredita que o exiacutelio de Xenofonte se deu em 399aC por ele ser partidaacuterio dos oligarcas em Atenas A maior parte da criacutetica no entanto seguindo as informaccedilotildees de Dioacutegenes Laeacutercio e a interpretaccedilatildeo claacutessica de Delebecque (1957) aceita a data de 394aC para seu exiacutelio relacionando-o agrave sua participaccedilatildeo na batalha de Queroneacuteia 16 O tiacutetulo de proxenia era dado aos estrangeiros que recebiam inuacutemeros privileacutegios da cidade a προεδρία (proedria) direito a lugar de honra nas festas puacuteblicas προδικία (prodikia) direito de prioridade perante os tribunais ἀσυλία (asylia) garantias contra o direito de captura ἀτέλεια (ateleia) isenccedilatildeo de taxas ἐνκτεσις γῆς τῆς οἰκίας (enktesis ges tes oikias) direito de adquirir imoacuteveis Em troca o cidadatildeo tornava-se patrono e protetor da cidade (JARDEacute 1977 p202) 17 Lesky (1986 p652) a despeito das informaccedilotildees dos antigos ndash principalmente Plutarco em Sobre el Destierro (1996) ndash acredita que a fase de maior produtividade de Xenofonte se deu com seu retorno a Atenas eacutepoca de sua vida sobre a qual temos menos informaccedilotildees No entanto a maior parte da criacutetica seguindo Delebecque (1957) manteacutem que Xenofonte compocircs suas obras em Escilunte 18 O proacuteprio Dioacutegenes levanta a questatildeo de que os que compuseram epigramas desejavam mais tornarem-se agradaacuteveis a Xenofonte do que tornar o nome de Grilo imortal 19 Glotz (1980) observa que o individualismo crescente na vida social grega tambeacutem influencia a literatura do seacuteculo IV justificando por esta tendecircncia o aparecimento dos escritos encomiaacutesticos e das novas tendecircncias da historiografia grega

20

matildeos a direccedilatildeo de sua proacutepria vida []rdquo (JAEGER 1995 p1143) Esta sua postura

inovadora no campo social tambeacutem se revela no acircmbito literaacuterio

Xenofonte era homem de muacuteltiplos interesses dono de uma linguagem clara

que lhe valeu o epiacuteteto na Antiguidade de ldquoMusa Aacuteticardquo O aacutetico xenofonteano

apresenta algumas diferenccedilas do aacutetico claacutessico pois uma vez que esteve afastado de

Atenas por muito tempo entrou em contato com outras regiotildees e dialetos Segundo

Gautier em sua obra La langue de Xenophon (apud SANSALVADOR 1987 p46) a

liacutengua de Xenofonte apresenta elementos doacutericos jocircnicos e ateacute particularidades

poeacuteticas Estas particularidades estranhas ao aacutetico claacutessico propiciaram ao autor a

oportunidade de enriquecer a liacutengua materna apontando conforme Lesky (1986 p656)

a κοινή a liacutengua comum do periacuteodo heleniacutestico

A liacutengua e o estilo de Xenofonte foram muito admirados na Antiguidade O

Suda o chama de ldquoabelha aacuteticardquo pela doccedilura de sua linguagem a que Ciacutecero jaacute aludira

no Orator (IX 22) Os gramaacuteticos da Antiguidade apreciavam sua simplicidade

Demeacutetrio (Sobre o estilo 137 181) admirava sua concisatildeo e solenidade aleacutem do ritmo

quase meacutetrico de algumas passagens

Quanto ao estilo Xenofonte foi influenciado tanto pelos sofistas quanto pelos

retores ldquo[] poreacutem seu caraacuteter ateniense o preservou de todo excesso levando-o a

utilizar os recursos da prosa artiacutestica com a maacutexima moderaccedilatildeo []rdquo

(SANSALVADOR 1987 p46) Xenofonte foi disciacutepulo de Proacutedico e talvez tenha

frequentado os cursos de Goacutergias cujo estilo exerceu forte influecircncia na prosa da

eacutepoca20 (SANSALVADOR 1987 p47) O uso de figuras de linguagem revela a

preocupaccedilatildeo esteacutetica do escritor que procurava tornar o texto natildeo soacute informativo mas

tambeacutem agradaacutevel a seus leitores

Aleacutem disso Xenofonte foi um escritor poliacutegrafo ndash o primeiro na Greacutecia ndash ou

seja sua produccedilatildeo abarca vaacuterios gecircneros literaacuterios ndash diaacutelogo socraacutetico banquete

encocircmio tratados narrativas A Ciropedia que eacute uma obra de maturidade de

Xenofonte combina em sua estrutura narrativa elementos destes outros gecircneros

literaacuterios que se mesclam agrave narrativa e de certa forma datildeo vivacidade a ela Satildeo os

20 Para Momigliano (1984 p12) o estilo da historiografia era regulado pelas normas da prosa retoacuterica diferenciando-se deste gecircnero discursivo pela finalidade Esta influecircncia da retoacuteria na historiografia demonstra a preocupaccedilatildeo dos historiadores com o embelezamento dos seus discursos ainda que este embelezamento natildeo seja o principal objetivo do historiador Cf Joly F D (Org) Histoacuteria e retoacuterica Ensaios sobre historiografia antiga (2007)

21

discursos21 os diaacutelogos socraacuteticos22 e os episoacutedios romanescos23 que natildeo surgem de

forma desconexa mas satildeo entrelaccedilados perfeitamente com a accedilatildeo principal da narrativa

(GERA 1993 p187) A experiecircncia obtida durante a escrita destas outras obras eacute

fundamental para o manejo consciente destes elementos dentro da narrativa principal da

Ciropedia

212 Corpus Xenofontis

A cronologia das obras de Xenofonte eacute incerta e por isso os criacuteticos tendem a

classificaacute-las de acordo com o estilo No entanto a classificaccedilatildeo quanto ao estilo

tambeacutem natildeo eacute segura como afirma Ana Lia A de A Prado (1999) Para fins didaacuteticos

a classificaccedilatildeo apresentada a seguir das obras de Xenofonte segue a adotada por Lesky

(1986 p652)

a-) Obras histoacutericas

Anaacutebase24 (Κύρου ἀνάβασις) considerada por alguns a mais bela obra de

Xenofonte esta narrativa memorialista trata da fuga dos mercenaacuterios atraveacutes da Peacutersia

apoacutes expediccedilatildeo frustrada de Ciro o Jovem contra seu irmatildeo Artaxerxes II

Helecircnicas (Ἐλλήνικα) a mais historiograacutefica das obras de Xenofonte conta a

histoacuteria da Greacutecia de 411 aC ateacute 362 aC continuando a narrativa de Tuciacutedides

exatamente do ponto em que este a deixou com a sua morte

21 O sentido de discurso aqui empregado eacute o de mensagem oral proferida perante uma assistecircncia Tanto a obra de Heroacutedoto quanto a de Tuciacutedides apresentam diversos discursos que entremeiam a narrativa Em geral estes discursos aparecem antes das batalhas retardando-as para criar o cliacutemax na narrativa e sendo uma influecircncia da eacutepica homeacuterica eacute um topos do gecircnero historiograacutefico 22 Xenofonte escreveu os diaacutelogos socraacuteticos Econocircmico Banquete Memoraacuteveis e Hieratildeo Este gecircnero proporciona maior vivacidade dinamismo e expressividade da linguagem Aparecem em geral relacionados a banquetes e nota-se a frequente preocupaccedilatildeo didaacutetica nos diaacutelogos marcada pela presenccedila de um mestre e um disciacutepulo Eacute importante ressaltar que na Ciropedia os diaacutelogos versam sobre temas gerais poreacutem conforme a anaacutelise feita por Gera (1993) o estilo destes diaacutelogos eacute o mesmo do usado naquelas obras citadas 23 Nestes episoacutedios Xenofonte procura comover e deleitar seus leitores com narrativas repletas de πάθος

(pathos) As narrativas apresentam ainda forte impressatildeo didaacutetica sempre ligadas agrave narrativa principal de Ciro Gera (1993 p197) analisando estas narrativas afirma que nelas Xenofonte tem uma preocupaccedilatildeo maior com a linguagem criando textos de grande valor esteacutetico Uma destas narrativas a de Panteacuteia foi muito imitada pelos romancistas gregos tendo-se notiacutecia de um romance perdido provavelmente do seacuteculo II dC que tinha como tiacutetulo o nome das personagens Panteacuteia e Araspas Cf Brandatildeo J L A invenccedilatildeo do romance (2005 p61) 24 Todas as obras de Xenofonte referidas aqui satildeo datadas da primeira metade do seacuteculo IV aC Agrave medida que pudermos apresentar mais precisatildeo em alguma obra vamos oferecer a possiacutevel data de escrita da obra

22

Agesilau (Αγησιλαος) encocircmio25 ao rei Agesilau de Esparta obra em que

Xenofonte revela forte retoricismo principalmente quando comparada agrave descriccedilatildeo da

mesma personagem feita pelo mesmo Xenofonte nas Helecircnicas

Constituiccedilatildeo dos Lacedemocircnios (Λακεδαιμονίων Πολιτεία) descriccedilatildeo das

leis espartanas na qual Xenofonte fala das causas do apogeu e da decadecircncia da cidade

de Esparta

Os recursos ou sobre as rendas (Πόροι ἢ περί προσόδων) cuja autenticidade

hoje jaacute natildeo se contesta eacute um escrito a respeito das financcedilas de Atenas procurando

solucionar seus problemas

b-) Obras didaacuteticas

Hipaacuterquicos (Ἱππαρχικος) texto dirigido aos comandantes da cavalaria

ateniense

Sobre a equitaccedilatildeo (περὶ ἱππιχῆς) um manual sobre a praacutetica da equitaccedilatildeo e do

modo de se tratar o cavalo para ter do animal um completo domiacutenio

Cinegeacutetico (Κυνηγέτικος) livro a respeito da praacutetica da caccedila Sua

autenticidade eacute contestada principalmente por causa da linguagem que se afasta da

habitual clareza e simplicidade agradaacutevel de Xenofonte

c-) Obras socraacuteticas

Econocircmico (Οἰκονόμικος) que teve muitos admiradores na Antiguidade eacute um

diaacutelogo sobre a administraccedilatildeo do casa (οἴκος) e por causa de seu caraacuteter teacutecnico

alguns criacuteticos como Lesky (1986) preferem classificaacute-la nas obras didaacuteticas de

Xenofonte

Memoraacuteveis (Ἀπομνημονεύματα Σώκρατους) obra feita de reminiscecircncias

do velho mestre Soacutecrates colocando-o no centro de diversas discussotildees nas quais

muitos dos temas de interesse de Xenofonte satildeo retomados

Apologia de Soacutecrates (Ἀπολογία Σώκρατους) como a obra homocircnima de

Platatildeo trata do julgamento de Soacutecrates

25 A retoacuterica antiga distinguia trecircs gecircneros de discurso em prosa judiciaacuterio deliberativo e o encocircmio ou epidiacutetico O epidiacutetico trata do elogio ou criacutetica a determinada pessoa puacuteblica Sua origem estaacute nas oraccedilotildees fuacutenebres Cf Reboul O Introduccedilatildeo agrave Retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 1998

23

Banquete (Συμπόσιον) diaacutelogo simposiaacutestico que trafega pelos principais

temas discutidos por Xenofonte em suas outras obras

Hieratildeo (Ἱερῶν) diaacutelogo no qual o tirano Hieratildeo e o poeta Simocircnides discutem a

respeito da tirania

Atribui-se ainda a Xenofonte por paralelismo com a Constituiccedilatildeo dos

Lacedemocircnios o texto Constituiccedilatildeo Ateniense (Ἑλλήνικα πολιτεία) poreacutem se aceita

que a obra seja espuacuteria e data do uacuteltimo quarto do seacuteculo V aC quando Xenofonte

deveria ter menos de vinte anos

Das obras de Xenofonte a mais difiacutecil de se classificar eacute a Ciropedia (Κύρου

Παιδέια) Lesky (1986) a classifica como uma obra histoacuterica pois o tema da

Ciropedia eacute a vida de Ciro o Velho imperador da Peacutersia No entanto Lesky reconhece

a dificuldade desta classificaccedilatildeo Ana Lia A de A Prado (1999) classifica-a como obra

didaacutetica em virtude do caraacuteter didaacutetico que sublinha a narrativa A obra ainda tem sido

chamada de biografia histoacuteria romanceada biografia romanceada romance filosoacutefico

romance didaacutetico tratado de educaccedilatildeo instituiccedilatildeo militar obra socraacutetica26

A influecircncia da Ciropedia na literatura posterior eacute sentida em obras como A vida

de Apolocircnia de Tiana (seacutec II) de Filoacutestrato No Renascimento a obra foi muito

traduzida e imitada inserindo-se como modelo dos romances de Feneloacuten As aventuras

de Telecircmaco (1694-1695) M de Scudery Artamene ou o grande Ciro (1649-1653) e

Wieland Agathon (1766) Wieland escreveu ainda um drama chamado de Araspas und

Panthea (1759) retomando a narrativa amorosa destas personagens da Ciropedia Esta

influecircncia de Xenofonte sobre Wieland eacute de particular interesse uma vez que o Agathon

de Wieland eacute classificado como uma das primeiras manifestaccedilotildees do Bildungsroman

alematildeo e teve grande influecircncia sobre o Wilhelm Meister de Goethe Aleacutem disso

Montaigne e Maquiavel principalmente em O Priacutencipe apreciavam as ideacuteias expressas

na Ciropedia Na literatura em liacutengua portuguesa podemos encontrar referecircncias agrave

Ciropedia em autores claacutessicos como Camotildees nrsquoOs Lusiacuteadas (1962 X 48-49) e

Claacuteudio Manoel da Costa em seu poema Vila Rica (2002 IV) Machado de Assis no

seu romance Esauacute e Jacoacute (1976) no capiacutetulo LXI intitulado Lendo Xenofonte

apresenta a personagem do Conselheiro Aires manuseando o texto grego do primeiro

capiacutetulo da Ciropedia No seacuteculo XX dois apreciadores das obras de Xenofonte satildeo 26 Cf a introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo de Marcel Bizos Belles Lettres 1972

24

Iacutetalo Calvino que lhe dedica um capiacutetulo na sua obra Por que ler os claacutessicos (1993) e

o escritor portuguecircs Aquilino Ribeiro que traduziu tanto a Ciropedia com o tiacutetulo de O

Priacutencipe Perfeito (1952) quanto a Anaacutebase com o tiacutetulo de A Retirada dos dez mil

(1957) Sobre a Anaacutebase eacute interessante a retomada desta narrativa no filme de Walter

Hill (1979) Selvagens da noite (The Warriors) em que o diretor transporta a narrativa

para um tempo futuro na cidade de Nova York dominada por gangues

22 Ciropedia

221 O tiacutetulo

ΚΥΡΟΥ ΠΑΙΔΕΙΑ27 (Cyrou paideia) eacute a forma tradicional com que nossa obra

de estudo eacute referida desde Aulo Geacutelio28 A maior parte das traduccedilotildees dessa obra procura

geralmente ou manter a transliteraccedilatildeo da liacutengua grega com o termo Ciropedia ou

traduzir o sentido dos termos por A Educaccedilatildeo de Ciro29 Alguns criacuteticos

(BREITENBACH 1966 BIZOS 1972) assinalam que este tiacutetulo conveacutem apenas ao

Livro I da narrativa jaacute que os objetivos dos outros livros seriam apresentar o ideal de

soldado e soberano a partir da figura exemplar de Ciro o Velho Para Marcel Bizos

(1972) o tiacutetulo que mais se adequaria agrave obra seria simplesmente Ciro seguindo a

tradiccedilatildeo das biografias retoacutericas do seacuteculo IV como a proacutepria obra de Xenofonte

Agesilau ou o Evaacutegoras de Isoacutecrates30

Outros autores como Higgins (1977) e Due (1989) interpretam o sentido de

educaccedilatildeo na obra de forma ampla compreendendo-a como um aprendizado atraveacutes da

vida Neste sentido o tiacutetulo seria coerente com o todo da narrativa Ana Vegas

Sansalvador (1987 p7) tem a mesma opiniatildeo e procura demonstraacute-la analisando o

27 Ciacutecero (1946 p203) em carta ao seu irmatildeo Quintus refere-se agrave obra apenas como Ciro Cyrus ille a Xenophonte non ad historiae finem scriptus 28 Cf Noches Aticas XIV 3 Neste capiacutetulo o autor trata da possiacutevel inimizade entre Xenofonte e Platatildeo atestada por outros bioacutegrafos 29 Das traduccedilotildees em portuguecircs Jaime Bruna (1965) prefere o tiacutetulo A Educaccedilatildeo de Ciro enquanto Joatildeo Feacutelix Pereira (1964) prefere Ciropedia Jaacute Aquilino Ribeiro (1952) inova ao nomear a sua traduccedilatildeo de O Priacutencipe Perfeito Adotaremos neste trabalho o tiacutetulo de Ciropedia a partir de agora 30 Tal interpretaccedilatildeo de Marcel Bizos em nossa opiniatildeo condiz apenas com o conteuacutedo da Ciropedia em comparaccedilatildeo com as narrativas biograacuteficas Demonstraremos no entanto em seu devido momento que do ponto de vista da forma narrativa a Ciropedia se distancia deste tipo de biografia

25

proecircmio da obra Para a autora em Ciropedia (I 1 6) Xenofonte estabelece os trecircs

aspectos fundamentais de sua investigaccedilatildeo ndash a linhagem (genean) as qualidades

naturais (phusin) e a educaccedilatildeo (paideia) A partir disso o narrador se compromete a

apresentar o desenvolvimento de seu heroacutei (Livro I) e seu modo de atuar entendido

como consequecircncia desse desenvolvimento (Livros II-VIII) Assim a educaccedilatildeo natildeo

seria apenas a participaccedilatildeo do jovem em instituiccedilotildees de ensino mas a caminhada pela

vida na qual os ensinamentos da juventude satildeo testados reavaliados e aprimorados

Bodil Due (1989 p15) analisando a descriccedilatildeo que Xenofonte faz da paideia31 persa

nos mostra que esta eacute um assunto puacuteblico cabendo ao Estado regulamentar os deveres

programas e funcionamento da comunidade para cada classe divididas por faixa etaacuteria

e que mesmo os mais velhos estatildeo sob a vigilacircncia contiacutenua em vista do

aperfeiccediloamento a paideia persa neste sentido prolonga-se atraveacutes da vida

222 Siacutentese da narrativa

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC O enredo trata da vida de Ciro o

Velho fundador do Impeacuterio persa desde o seu nascimento ateacute sua morte

O Livro I abre com um proecircmio (Livro I 11-6) no qual o narrador reflete

sobre as dificuldades de se governar concluindo que esta eacute uma tarefa aacuterdua mas natildeo

impossiacutevel pois descobriu em sua pesquisa que existiu certo Ciro que se fez respeitar e

amar pelos suacuteditos de seu Impeacuterio No capiacutetulo 2 narra-se a genealogia e as qualidades

naturais de Ciro e o sistema educacional persa pelo qual Ciro como cidadatildeo teria

passado Nos capiacutetulos 3 e 4 narra-se de modo romanesco a visita de Ciro agrave corte de seu

avocirc materno Astiacuteages rei da Meacutedia32 Ciro decide permanecer na Meacutedia para

aperfeiccediloar-se e tornar-se o melhor quando retornasse agrave Peacutersia Eacute interessante que Ciro

revela agrave sua matildee os limites da educaccedilatildeo persa e justifica a sua estadia na Meacutedia pelo

complemento da sua educaccedilatildeo No Capiacutetulo 4 (16-24) quando estava com quinze ou

dezesseis anos Ciro participa com extraordinaacuteria bravura de sua primeira expediccedilatildeo

beacutelica Apoacutes essa experiecircncia Ciro retorna agrave Peacutersia (I 5) prosseguindo sua formaccedilatildeo 31 A παιδεία segundo Jaeger (1995) eacute um projeto de educaccedilatildeo que visava agrave formaccedilatildeo do homem em todas as suas dimensotildees A palavra aparece apenas no seacuteculo V aC poreacutem reflete preocupaccedilotildees que jaacute encontramos em Homero 32 A Meacutedia eacute a antiga regiatildeo da Aacutesia entre o mar Hircacircnion e a Peacutersia Na versatildeo de Heroacutedoto apoacutes ser dominada por Ciro passou a fazer parte do Impeacuterio persa Jaacute na versatildeo de Xenofonte ela passa a fazer parte do Impeacuterio persa por meio de uma alianccedila quando Ciro se casa com a filha de Ciaxares

26

ciacutevica e moral de acordo com o sistema educacional descrito no capiacutetulo 2

distinguindo-se dos seus compatriotas no cumprimento dos seus deveres Apoacutes dez

anos Ciro eacute escolhido pelos anciatildeos do conselho para liderar o exeacutercito persa na

alianccedila com a Meacutedia em guerra contra a Assiacuteria (I 52-5) e faz seu primeiro discurso

como liacuteder aos principais generais (I 56-14) Por fim o uacuteltimo capiacutetulo do primeiro

livro eacute um longo diaacutelogo entre Ciro e seu pai Cambises e este enquanto acompanha seu

filho ateacute a fronteira da Peacutersia com a Meacutedia expotildee as qualidades que devem adornar um

bom chefe militar e os conhecimentos para obter a obediecircncia de seus soldados

O Livro II e o Livro III (este ateacute o capiacutetulo 3 paraacutegrafo 9) formam uma unidade

temaacutetica O capiacutetulo 1 do Livro II inicia-se com o relato dos preparativos para a

campanha Haacute um cataacutelogo dos inimigos e dos aliados (II 15-6) e as primeiras atuaccedilotildees

de Ciro como chefe militar resolvendo a falta de contingente equipando os soldados

rasos com o mesmo armamento dos soldados de elite (II 19) e organizando concursos e

recompensas para fomentar a emulaccedilatildeo e treinar seus homens (II 111-18) No capiacutetulo

2 daacute-se lugar a um simpoacutesio na tenda de Ciro na qual se reuacutenem os principais generais

do exeacutercito que narram pequenas e divertidas anedotas da vida cotidiana do exeacutercito

Apoacutes Ciro acertar com os seus subordinados a forma de divisatildeo dos espoacutelios (II 3)

inicia-se a campanha da Armecircnia (II 4 ndash III 1) antiga aliada da Meacutedia que se negava a

pagar os impostos cobrados pelos aliados e sua submissatildeo a Ciro que tem seu ponto

alto no diaacutelogo entre Ciro e Tigranes filho do rei Armecircnio que tenta salvar seu pai do

julgamento em que Ciro representa o papel de juiz No Livro 3 capiacutetulo 2 relata-se a

expediccedilatildeo agrave Caldeia em que Ciro conclui a paz entre a Armecircnia e a Caldeia

Do Livro III 39 ateacute o Livro V 136 a narrativa trata da expediccedilatildeo agrave Assiacuteria

Comeccedila com os preparativos o discurso exortativo a discussatildeo entre Ciro e Ciaxares a

respeito da taacutetica que se deve seguir (III 39-55) prossegue com a marcha contra o

inimigo e a primeira batalha que garante a vitoacuteria aos persas (III 356 - IV 118) A

despeito do temor de Ciaxares Ciro junto com alguns voluntaacuterios medos persegue os

inimigos (IV 119-24) e consegue o apoio dos hircanos ex-aliados dos assiacuterios (IV 2)

Nos capiacutetulos 3 4 e 5 do Livro IV Ciro projeta e organiza uma cavalaria persa nestes

capiacutetulos se contrastam a figura de Ciaxares incapaz e ciumento do ecircxito de Ciro e

este empreendedor e triunfante No capiacutetulo 6 (Livro IV) conta-se a histoacuteria de

Goacutebrias o desertor do rei Assiacuterio O filho de Goacutebrias fora assassinado pelo rei Assiacuterio

pois ficara com ciuacutemes da beleza do jovem A uacuteltima seccedilatildeo do livro IV (611-12) narra a

27

divisatildeo de espoacutelio e fica-se sabendo que a Ciro coube a dama de Susa a mulher mais

formosa da Aacutesia Panteacuteia

O Livro V se inicia com a narrativa da bela Panteacuteia propriamente dita Ciro

convoca Araspas para guardar Panteacuteia Os dois travam um diaacutelogo a respeito do amor e

apesar das advertecircncias de Ciro sobre os perigos de Eros Araspas se apaixona pela bela

prisioneira Entrementes continua a campanha contra a Assiacuteria com Goacutebrias dando

valiosas informaccedilotildees sobre aquele paiacutes a Ciro (V 2) que resulta em enfrentamentos de

menor importacircncia (V 3) e no aliciamento do assiacuterio Gadatas que assim como Goacutebrias

tinha motivos de sobra para odiar o rei Assiacuterio (V 38 - V 4) Em V 5 Ciaxares e Ciro

restabelecem a alianccedila apoacutes Ciro convencecirc-lo de que sua inveja eacute infundada

Do Livro VI ateacute o Livro VII 1 2 a obra se refere agrave campanha a Sardes capital

da Liacutedia Apoacutes os primeiros preparativos (VI 131-55) a narrativa retorna as

personagens de Araspas e Panteacuteia Ciro aproveitando que seu soldado apaixonara-se

pela bela prisioneira envia-o como espiatildeo dos inimigos Panteacuteia grata por Ciro ter

garantido sua dignidade diante dos ataques apaixonados de Araspas envia uma carta ao

seu marido Abradatas que trai o rei Assiacuterio indo juntar-se ao exeacutercito de Ciro

Abradatas se prepara com a armadura feita do ouro das joacuteias da esposa para ser o

melhor aliado possiacutevel para Ciro Segue-se a narraccedilatildeo de corte teacutecnico-militar com Ciro

fortalecendo seu exeacutercito com os aliados da India (VI 2) o treinamento dos soldados

(VI 24-8) a organizaccedilatildeo para a batalha (VI 223-41) a ordem de marcha (VI 31-4) e

as uacuteltimas exortaccedilotildees e instruccedilotildees de Ciro (VI 412 - VII 122) Em VI 42-11 Panteacuteia

despede-se de Abradatas que parte para a batalha na posiccedilatildeo mais perigosa de luta

O primeiro capiacutetulo do Livro VII narra a batalha de Sardes com a morte de

Abradatas pelos egiacutepcios (VII 129-32) Ciro derrota o inimigo e toma a cidade (VII

136 - VII 214) ele se encontra com o rei da Liacutedia Creso (VII 215-29) e Panteacuteia

apoacutes velar seu esposo se suicida (VII 3 4-16)

A partir de VII 4 ateacute VII 536 narra-se a marcha para a Babilocircnia e a

submissatildeo dos povos das regiotildees pelas quais Ciro atravessa a Caacuteria as Friacutegias a

Capadoacutecia e a Araacutebia A partir desse ponto Ciro torna-se soberano assentando-se no

trono da Babilocircnia (VII 537-69) granjeando o favor dos suacuteditos e tomando medidas

para manter a unidade do Impeacuterio (VII 570-86) Goacutebrias e Gadatas se vingam do rei

Assiacuterio matando-o

O Livro VIII trata da organizaccedilatildeo da corte (VIII 11-8) e prossegue com a

organizaccedilatildeo do Impeacuterio (VIII 19 - VIII 228) Em VIII 31-34 narra-se o desfile

28

triunfal com toda a magnificecircncia completando a imagem de um Ciro no cume da

gloacuteria Depois de um banquete com seus amigos de sempre (VIII 4) Ciro retorna agrave

Peacutersia e agrave Meacutedia formalizando uma uniatildeo com este paiacutes ao casar-se com a filha de

Ciaxares (VIII 5) Em VIII 6 Ciro estabelece uma instituiccedilatildeo sem precedentes a

satrapia para controlar as diversas proviacutencias do Impeacuterio O capiacutetulo 7 deste Livro VIII

apresenta Ciro jaacute anciatildeo perto de uma morte natural em sua cama e rodeado por seus

filhos discursa a eles suas uacuteltimas palavras estabelecendo a sucessatildeo de seu trono

A narrativa termina com um Epiacutelogo (VIII 8) no qual o narrador descreve a

decadecircncia do Impeacuterio apoacutes a morte de Ciro atribuindo-a agrave perda dos valores morais

por parte tanto dos suacuteditos quanto dos seus governantes valores estes que fizeram

possiacutevel a gloacuteria passada

O Epiacutelogo tem sido objeto de muita discussatildeo por parte dos criacuteticos que se

dividem em aceitaacute-lo como texto autecircntico de Xenofonte (DELEBECQUE 1957

BREITENBACH 1966 SANSALVADOR 1987) ou como espuacuterio um acreacutescimo

posterior dos comentadores (HEacuteMARDINQUER 1872 BIZOS 1972) Alguns

tradutores como Jaime Bruna (1965) considerando espuacuterio o texto natildeo o apresentam

em suas traduccedilotildees terminando a obra no capiacutetulo 7 do Livro VIII Os estudiosos alegam

que o epiacutelogo apresenta traccedilos que destoam do tom idealista do resto da obra Jaeger

(1995 p1157) no entanto observa que a estrutura do epiacutelogo eacute a mesma da estrutura

do epiacutelogo da Constituiccedilatildeo dos Lacedemocircnios e que eacute improvaacutevel que ambas as obras

tenham sofrido acreacutescimos idecircnticos posteriormente

Compartilhamos a posiccedilatildeo que aceita o epiacutelogo como autecircntico pois a base das

contradiccedilotildees eacute soacute aparente (SANSALVADOR 1987 DELEBECQUE 1957) e

respondem a um interesse do autor em contrastar o passado esplendoroso com o

momento atual por meio da expressatildeo ἕτι καὶ νῦν ldquoainda hojerdquo O Epiacutelogo se

concentra no contraste do passado glorioso com a decadecircncia atual do Impeacuterio

Delebecque (1957) estabelece que o ἕτι καὶ νῦν se refere agrave Peacutersia liderada pelo

soberano Artaxerxes II que na visatildeo de Xenofonte encarnava a decadecircncia do Impeacuterio

aludindo-se ao seu despotismo e deslealdade (VIII 8 4) e agrave revolta das proviacutencias

ocidentais do Impeacuterio que teria ocorrido entre 362-361 aC

Devemos notar por outro lado que Xenofonte dirigia-se a um puacuteblico grego

principalmente ateniense que outrora tambeacutem fora um grande e glorioso impeacuterio

poreacutem assistia naquela eacutepoca agrave decadecircncia de sua poliacutetica Talvez nosso autor como

29

antes fizera Aristoacutefanes em suas comeacutedias pretendesse apresentar uma advertecircncia aos

proacuteprios atenienses mostrando-lhes que a gloacuteria do passado estava intimamente

relacionada com princiacutepios morais que a tradiccedilatildeo transmitia e que a decadecircncia decorria

do desapego destes mesmos princiacutepios

Bodil Due (1989 p16) defende a autenticidade do Epiacutelogo como produto

natural do desenvolvimento da obra reconhecendo tanto o estilo de Xenofonte por meio

de vocabulaacuterio e construccedilotildees sintaacuteticas quanto a continuaccedilatildeo do plano inicial

estabelecido por Xenofonte no proecircmio O objeto de pesquisa era o ato de governar os

homens ἄρχειν ἀνθρώπων (archeim anthropon) e os governantes fazerem-se

obedecer πείθεσθαι τοῖς ἄρχουσι (peithesthai tois archousi) Para Due a

decadecircncia moral apresentada por Xenofonte relaciona-se agrave incapacidade dos liacutederes

ldquopoacutes-Cirordquo de conseguirem a obediecircncia de seus suacuteditos pois os costumes morais e

ciacutevicos instituiacutedos por Ciro deixaram de ser respeitados

Assim compreendido o Epiacutelogo forma juntamente com o Proecircmio uma moldura

ao redor da vida de Ciro e esta passa a ser um ldquoquadrordquo que ilustra as ideias contidas

nesta moldura

223 A Ciropedia e a ideologia poliacutetica do seacuteculo IV

A biografia de um escritor estaacute sempre inserida em um contexto histoacuterico cujos

impulsos sociais determinam mais ou menos o modo do escritor ver a realidade Por

isso nesta seccedilatildeo procuraremos expor as principais correntes ideoloacutegicas do seacuteculo IV

para associarmos as preocupaccedilotildees dos homens da eacutepoca agrave experiecircncia singular da vida

de Xenofonte Eacute importante este comentaacuterio ainda que sumaacuterio pois demonstraraacute que a

arte de governar natildeo eacute um tema caro apenas a Xenofonte pois outros autores do seacuteculo

IV aC procuraram refletir sobre este tema Aleacutem disso estas referecircncias datildeo um

suporte seguro sobre o qual podemos ler a Ciropedia como uma ficccedilatildeo idealizada

De modo geral podemos dizer que a Ciropedia eacute o resultado de constantes

indagaccedilotildees de Xenofonte a respeito da arte de governar A importacircncia do elemento

pessoal para a confecccedilatildeo das obras de Xenofonte eacute notada pelo tom memorialista de

suas obras (LESKY 1986 SANSALVADOR 1987) A experiecircncia de vida eacute o motor

temaacutetico de produccedilatildeo de Xenofonte Na Ciropedia cujo tema se estende no tempo

30

histoacuterico a experiecircncia aparece tanto na ficionalizaccedilatildeo da histoacuteria quanto na

aproximaccedilatildeo que o autor faz da cultura grega com a cultura persa33

Quando participou do exeacutercito de Ciro o Jovem Xenofonte entrou

provavelmente em contato com numerosas tradiccedilotildees orais que tinham no centro a figura

de Ciro o Velho A Christensen (1936 apud SANSALVADOR 1987) ressalta a

influecircncia da eacutepica iraniana na Ciropedia em especial nas narrativas secundaacuterias Aleacutem

disso a participaccedilatildeo efetiva nesta campanha teria ensinado a Xenofonte as dificuldades

inerentes agrave arte de governar Sansalvador (1987) assinala que quando se compara a

Ciropedia com a Anaacutebase muitos dos incidentes que resultaram em malogro nesta

uacuteltima satildeo reavaliados e corrigidos naquela Para Sansalvador (1987 p38)

Natildeo eacute em vatildeo que se chegou a dizer que a Ciropedia era menos uma histoacuteria de Ciro o Velho do que o sonho do que teria feito Ciro o Jovem vencer ou que a Ciropedia eacute uma teoria das ideacuteias poliacuteticas e militares suscitada pela Anaacutebase no pensamento de Xenofonte

Natildeo podemos esquecer no entanto que Atenas vivia um periacuteodo de profundas

atribulaccedilotildees poliacuteticas e que estes contratempos marcaram decisivamente a forma de

Xenofonte compreender a poliacutetica Os uacuteltimos anos da Guerra do Peloponeso (435-404

aC) foram marcados por conflitos internos em Atenas com a constante disputa pelo

poder primeiro a subida dos Oligarcas ao poder no Governo dos Trezentos (411 aC)

em seguida o governo misto dos Cinco Mil (410 aC) ao qual Tuciacutedides se refere

como uma saacutebia mescla de oligarquia e democracia34 seguiu-se a retomada do poder

dos democratas mais radicais em 410 aC e por fim o retorno da Oligarquia com o

Governo dos Trinta (404 aC) sob o impulso do apoio espartano Apoacutes alguns meses de

terror os democratas35 retomaram o poder Poreacutem a democracia moderada que se

instaurou cometeu em seu nome tantos excessos e horrores36 que natildeo encontrou nos

principais intelectuais da eacutepoca defensor algum Neste ambiente nada mais natural que

autores como Platatildeo Isoacutecrates e Xenofonte procurassem expor suas ideias a respeito

33 Cf o Capiacutetulo 431 de nossa Dissertaccedilatildeo em que fazemos uma anaacutelise mais aprofundada a respeito desta aproximaccedilatildeo feita por Xenofonte e das implicaccedilotildees desta nova concepccedilatildeo cultural na estrutura educacional persa descrita na obra 34 Cf Tuciacutedides Histoacuteria da Guerra do Peloponeso VII97-98 Trad Mario da Gama Kury Brasiacutelia Ed UNB 1986 35 A democracia restaurada aparentemente manteve-se em vigor ateacute a invasatildeo da Macedocircnia Natildeo significa isso que o periacuteodo foi de total calmaria mas sim de revoluccedilatildeo das estruturas sociais Cf G Glotz A cidade grega Satildeo PauloRio de Janeiro Difel 1980 C Mosseacute Atenas A histoacuteria de uma democracia Brasiacutelia Ed UnB 1970 36 O mais famoso destes excessos eacute a condenaccedilatildeo de Soacutecrates Cf O Julgamento de Soacutecrates de I F Stone Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2005

31

do que seria o governo ideal e o meio de se alcanccedilaacute-lo37 se posicionando contra o

regime democraacutetico

O regime poliacutetico dos persas descrito nos primeiros livros da Ciropedia tinha

pouco a ver com a realidade histoacuterica Ao contraacuterio da esperada tirania o governo persa

na Ciropedia eacute composto como uma oligarquia moderada ou seja o poder que o

monarca exerce eacute regulamentado por leis Sua atuaccedilatildeo estaacute restrita agraves leis e agrave supervisatildeo

dos anciatildeos38 A distinccedilatildeo entre a administraccedilatildeo poliacutetica da Peacutersia e da Meacutedia aparece

em Ciropedia I 3 18 quando Mandane matildee de Ciro lhe diz

[18] ldquoMas filho natildeo satildeo as mesmas coisas aqui e na Peacutersia que satildeo acordadas como justas Pois seu avocirc de um lado faz-se deacutespota de todos na Meacutedia de outro na Peacutersia considera-se justiccedila possuir a igualdade E o teu pai eacute o primeiro a fazer o que foi ordenado pela cidade e a aceitar o que foi ordenado pois a medida dele eacute a lei natildeo a paixatildeo De modo que portanto natildeo morras tu sendo chicoteado quando em casa estiveres depois de chegares tendo apreendido da parte do avocirc a tirania na qual haacute a crenccedila de que eacute necessaacuterio possuir mais do que todos e eacute por isso contraacuterio agrave realeza39

Assim na Peacutersia o rei tem os mesmos direitos dos outros cidadatildeos pois se

considera justo ldquopossuir a igualdaderdquo (ison ekhein) e os mesmos deveres pois ldquoa

medida dele eacute a lei natildeo a paixatildeordquo ou seja as accedilotildees do governante eram limitadas pelas

leis O governante regido pela ψυχή40 (psyche) eacute movido pelas suas paixotildees41

distancia-se do caminho da justiccedila pois nesta constituiccedilatildeo eacute o proacuteprio desejo do rei

que eacute a lei

37 Tambeacutem Platatildeo apresenta nrsquoA Repuacuteblica as suas reflexotildees sobre a poliacutetica ideal assim como Isoacutecrates que no Panegiacuterico versa sobre este tema 38 Nas Memoraacuteveis IV 6 12 o Soacutecrates xenofonteano descreve esta forma de governo como a ideal 39 No original [18] ἀλλ᾽ οὐ ταὐτά ἔφη ὦ παῖ παρὰ τῷ πάππῳ καὶ ἐν Πέρσαις δίκαια

ὁμολογεῖται οὗτος μὲν γὰρ τῶν ἐν Μήδοις πάντων ἑαυτὸν δεσπότην πεποίηκεν ἐν

Πέρσαις δὲ τὸ ἴσον ἔχειν δίκαιον νομίζεται καὶ ὁ σὸς πρῶτος πατὴρ τὰ τεταγμένα μὲν ποιεῖ

τῇ πόλει τὰ τεταγμένα δὲ λαμβάνει μέτρον δὲ αὐτῷ οὐχ ἡ ψυχὴ ἀλλ᾽ ὁ νόμος ἐστίν ὅπως

οὖν μὴ ἀπολῇ μαστιγούμενος ἐπειδὰν οἴκοι ᾖς ἂν παρὰ τούτου μαθὼν ἥκῃς ἀντὶ τοῦ

βασιλικοῦ τὸ τυραννικόν ἐν ᾧ ἐστι τὸ πλέον οἴεσθαι χρῆναι πάντων ἔχειν (Cirop 1318) 40 Segundo o dicionaacuterio A Bailly o termo ψυχή pode ser traduzido por ldquoalmardquo no sentido de espiacuterito que daacute vida aos seres Poreacutem uma das acepccedilotildees eacute a de ldquoalmardquo como sede dos sentimentos das paixotildees desejos 41 Aleacutem de Astiacuteages rei da Meacutedia os outros reis principalmente os inimigos de Ciro satildeo apresentados na obra como deacutespotas neste sentido de governar segundo suas paixotildees Esta eacute a caracteriacutestica dos homens desmedidos ὑβριστής e se constitui entre as principais caracteriacutesticas com que o Oriente eacute descrito pelo Ocidente (SAID 2008)

32

A figura idealizada de Ciro na Ciropedia eacute fruto da inovadora aproximaccedilatildeo feita

por Xenofonte da virtude (ἀρετή arete) persa aos elementos da mais alta virtude grega

da καλοκαγαθία (kalokagathia) eliminando os aspectos negativos da cultura persa

Como afirma Jaeger (1995 p1148)

Embora transpareccedila constantemente em Xenofonte o orgulho nacional e a feacute na superioridade da cultura e do talento gregos ele estaacute muito longe de pensar que a verdadeira areteacute seja um dom dos deuses depositado no berccedilo de qualquer burguezinho helecircnico Na sua pintura dos melhores Persas ressalta por toda a parte o que nele despertou o seu trato com os representantes mais notaacuteveis daquela naccedilatildeo a impressatildeo de que a autecircntica kalokagathiacutea constitui sempre no mundo inteiro algo de muito raro a flor suprema da forma e da cultura humanas a qual soacute floresce de modo completo nas criaturas mais nobres de uma raccedila

O conceito de homem grego no seacuteculo IV aC amplia-se para aleacutem dos muros

da Heacutelade Isoacutecrates no Panegiacuterico 50 afirma que os povos que participam da paideia

recebem o nome de gregos com maior propriedade do que os proacuteprios gregos Tambeacutem

natildeo podia passar despercebido que ldquo[] a grandeza dos Persas reside em terem sabido

criar um escol de cultura e formaccedilatildeo humana []rdquo (JAEGER 1995 p1148) Xenofonte

ensaia uma cultura globalizada na qual o melhor de cada povo acorreria para a formaccedilatildeo

do liacuteder ideal42 As qualidades do soberano ideal traccediladas por Xenofonte trafegam tanto

pela helenofilia quanto pela areteacute persa a piedade (εὐσέβεια eusebeia) a justiccedila43

(δικαιοσύνε dikaiosyne) o respeito (αἰδώς aidos) a generosidade44 (εὐεργεσία

euergesia) a gentileza (πραότης praotes) a obediecircncia (πειθώ peitho) e a

continecircncia (ενκράτεια enkrateia)

Segundo Collingwood (1981 p45) no helenismo os gregos observaratildeo os

baacuterbaros como detentores de uma cultura vaacutelida da qual os gregos tambeacutem podem

apreender valiosos ensinamentos Para os gregos do seacuteculo V aC em especial

Heroacutedoto o baacuterbaro surgia apenas como contraste como elemento valorativo da sua

42 A ideia da intercomunicaccedilatildeo de culturas perpassa de algum modo pela proacutepria obra figurativizada na experiecircncia da infacircncia de Ciro em contato com a cultura dos medos A despeito do efeito pateacutetico do luxo desmedido dos medos Ciro aprende com eles ensinamentos valiosos que o distinguiraacute dos persas que foram educados apenas na instituiccedilatildeo educacional do Estado persa Veremos mais agrave frente que a supremacia de Ciro eacute fruto da intercomunicaccedilatildeo da cultura persa e meda 43 A justiccedila eacute a principal meta da educaccedilatildeo dos persas em contraste com a educaccedilatildeo ateniense que se centrava na aprendizagem da γραμματική τέχνή 44 A generosidade eacute apresentada na Ciropedia por meio de qualidades mais concretas φιλανθροπία

φιλομαθία φιλοτίμια

33

proacutepria cultura O baacuterbaro surgia pelo exotismo natildeo pela ἀρετή Segundo Edward Said

(2008) o orientalismo eacute um discurso estruturalmente formado e reforccedilado pelo e para o

Ocidente sobre o Oriente em que se constroacuteem uma incisiva relaccedilatildeo de poder de uma

cultura sobre a outra O Oriente nesse sentido eacute uma invenccedilatildeo do Ocidente

estigmatizado pelo exotismo e pela inferioridade como lugar de episoacutedios romanescos

seres exoacuteticos lembranccedilas e paisagens encantadas e extraordinaacuterias (SAID 2008 p27)

Concluiacutemos que Xenofonte em vista de expor as suas ideias a respeito do

governo ideal procurou associar elementos gregos e persas A idelizaccedilatildeo de Ciro

portanto eacute consequumlecircncia e causa da ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria Com isso Xenofonte

negligenciou tambeacutem a principal lei da histoacuteria a fidelidade agrave verdade Como observa

Fancan um dos primeiros teoacutericos do romance europeu no seacuteculo XVIII

Concordo que louvem agrave vontade entre outros a Ciropedia de Xenofonte por causa do proveito oriundo da sua leitura contanto que confessem tambeacutem que este autor lanccedilou por escrito natildeo quem foi Ciro mas o que Ciro deveria ser (FANCAN apud CANDIDO 1989 p98)

224 A Ciropedia na tradiccedilatildeo da narrativa

Jaacute assinalamos anteriormente a dificuldade dos criacuteticos em classificar a

Ciropedia quanto ao gecircnero A dificuldade quanto ao enquadramento geneacuterico da

Ciropedia reside principalmente no fato de a obra tratar de um tema histoacuterico (a vida

de Ciro) com liberdade manipulando ficcionalmente o material histoacuterico conhecido

Nesta subseccedilatildeo apontaremos como a Ciropedia se insere na tradiccedilatildeo narrativa do

Ocidente buscando compreender as relaccedilotildees da obra com o gecircnero do romance Neste

percurso eacute inevitaacutevel e essencial refletir a respeito das questotildees entre ficccedilatildeo e histoacuteria

Nossa preocupaccedilatildeo eacute definir a Ciropedia como uma obra ficcional em conformidade

com Due (1989) Stadtler (2010) Tatum (1989) e Gera (2003)

Neste percurso de anaacutelise procuraremos conciliar com as reflexotildees sobre o

romance propriamente dito a interpretaccedilatildeo dos antigos a respeito dos seus proacuteprios

gecircneros Aleacutem disso fazem-se necessaacuterios alguns esclarecimentos a respeito da

34

terminologia para que natildeo pareccedila uma enorme anacronia ndash e ingenuidade ndash chamar uma

obra do seacuteculo IV aC de romance

2241 O conceito de romance e seu uso anacrocircnico

Na Antiguidade natildeo havia uma terminologia especiacutefica para a prosa ficcional

Para Whitmarsh (2008 p3) a ausecircncia de um termo proacuteprio para este tipo de produccedilatildeo

literaacuterio torna o uso anacrocircnico do termo romance (em inglecircs novel) necessaacuterio para o

estudioso Todavia acreditamos que mais do que rotular a obra do passado o uso

anacrocircnico de um termo nos permite observar a preacute-histoacuteria do gecircnero no caso do

gecircnero do romance As formas literaacuterias passam por um intenso processo de formaccedilatildeo

ateacute que encontram o momento histoacuterico propiacutecio para a sua formulaccedilatildeo literaacuteria e

esteacutetica caracterizadora A eacutepica homeacuterica por exemplo eacute um momento posterior de

um longo processo de tradiccedilatildeo oral que se desenvolveu ateacute encontrar em Homero a sua

mais perfeita realizaccedilatildeo Neste sentido eacute necessaacuterio termos a consciecircncia dos limites do

uso da terminologia estabelecendo as suas devidas ressalvas

O surgimento da palavra romance no seacuteculo XII estaacute ligado agraves literaturas de

liacutenguas romacircnicas em oposiccedilatildeo agrave literatura escrita em latim (romanice loqui latine

loqui) Por conseguinte o romance opotildee-se agravequeles gecircneros discursivos que foram

produzidos pela Antiguidade e que ainda eram aceitos como verdadeira literatura Aleacutem

disso o termo implicava uma ldquomodalidade de gecircnero narrativo ficcional cuja

intencionalidade baacutesica seria o divertimentordquo (BRANDAtildeO 2005 p25) Assim o

romance designa desde o comeccedilo uma forma de discurso literaacuterio nova moderna em

oposiccedilatildeo aos gecircneros da Antiguidade Natildeo havia no entanto distinccedilatildeo entre as

narrativas em verso e em prosa distinccedilatildeo esta que comeccedila a surgir no seacuteculo XV com

os romances de cavalaria em prosa tomando o sentido moderno a partir do seacuteculo XVII

com a publicaccedilatildeo do Dom Quixote de Cervantes (GOFF 1972 p164) Diante desse

fato ldquo[] alguns estudiosos consequentemente ainda hoje refutam chamar as prosas

narrativas da Antiguidade como ldquoromancesrdquo ou ldquonovelas []rdquo45 (HOLZBERG 2003

p11)

45 No original ldquoSome scholars consequently still refuse now to talk of the prose narratives of antiquity as ldquoromancesrdquo or ldquonovelsrdquordquo

35

Holzberg entretanto a despeito do anacronismo dos termos mas mediante a

semelhanccedila entre as formas antigas e modernas acredita que devemos consentir com os

anacronismos (HOLZBERG 2003 p11) Para o criacutetico o real problema eacute discutir quais

obras da Antiguidade podem ser chamadas de romance O conceito de gecircnero deve ser

legitimado nesse contexto fixando criteacuterios para a classificaccedilatildeo destas obras

O romance como gecircnero seacuterio do cacircnone literaacuterio se afirma apenas com o

desenvolvimento da sociedade burguesa nos seacuteculos XVIII e XIX Para Georg Lukaacutecs

em seu artigo O romance como epopeia burguesa (1999 p87) embora existam obras

em muitos aspectos semelhantes aos romances na Antiguidade e na Idade Meacutedia todas

as contradiccedilotildees da sociedade burguesa encontram sua expressatildeo neste gecircnero

provocando mudanccedilas tatildeo sensiacuteveis agraves formas narrativas que ldquo[] se pode aqui falar de

uma forma artiacutestica substancialmente nova []rdquo No romance o caraacuteter poeacutetico da

epopeia eacute substituiacutedo pelo caraacuteter prosaico da modernidade O caraacuteter poeacutetico da

epopeia eacute caracterizado segundo Lukaacutecs ndash que retoma as concepccedilotildees esteacuteticas de Hegel

ndash pela totalidade extensiva da vida pois nela os desejos do heroacutei e as ambiccedilotildees da

sociedade encontram-se espontaneamente ligados (LUKAacuteCS 2009 p55) Na sociedade

moderna ao contraacuterio o caraacuteter prosaico eacute fruto da desagregaccedilatildeo do indiviacuteduo com a

sociedade e o romance deve retratar a realidade prosaica e a luta do indiviacuteduo contra

esta mesma realidade (LUKAacuteCS 1999 p91) Desse modo apesar do romance ldquo[]

apresentar todos os elementos caracteriacutesticos da forma eacutepica [] [e aspirar] os mesmos

fins a que aspira a epopeia antiga []rdquo (1999 p93) o produto romanesco eacute oposto

daquele da epopeia uma vez que as contradiccedilotildees sociais jaacute referidas impedem a

totalidade extensiva da vida a conjunccedilatildeo harmocircnica entre o homem e o mundo que eacute

caracteriacutestico da epopeia O destino do homem na epopeia estaacute em conjunccedilatildeo com o

destino da sociedade os impulsos do indiviacuteduo satildeo os mesmos da sociedade

Bakhtin (1998 p425) tambeacutem considera que ldquoUm dos principais temas

interiores do romance eacute justamente o tema da inadequaccedilatildeo de um homem ao seu destino

ou sua posiccedilatildeo []rdquo poreacutem esta desagregaccedilatildeo eacute apenas um tema fundamental e

produtivo para seu desenvolvimento moderno mas que natildeo abarca todas as

possibilidades romanescas Para o teoacuterico russo ainda que o gecircnero se afirme com a

sociedade burguesa a forma romanesca surge muito antes desenvolvendo-se em

variados processos literaacuterios e culturais ateacute encontrar no romance moderno a sua forma

mais apropriada Isso significa que o romance moderno eacute uma das formas mais

produtivas da eacutepica poreacutem natildeo a uacutenica e sua formaccedilatildeo e desenvolvimento satildeo

36

devedoras de diversas formas literaacuterias Em Epos e Romance Bakhtin (1998 p427)

afirma que a principal diferenccedila entre a epopeia e o romance estaacute na distacircncia entre o

autor e o passado enquanto a epopeia constroacutei uma distacircncia eacutepica entre o presente e o

passado que eacute absoluto e fechado o romance se formou no processo de destruiccedilatildeo da

distacircncia eacutepica representando tanto o passado quanto o presente como uma realidade

inacabada A partir desta definiccedilatildeo Bakhtin natildeo receia em chamar de romance uma

variedade muito ampla tanto histoacuterica como formal de narrativas inclusive a

Ciropedia cuja ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria eacute para Bakhtin marca essencial do caraacuteter

romanesco da obra pois destroacutei a distacircncia entre o presente do autor e o passado do

narrado O passado eacute aproximado pelo presente inacabado com suas contradiccedilotildees e

interesses que deformam aquele passado Desse modo Bakhtin amplia o conceito de

romance para aleacutem daquela especificidade lukacseana

Em A Natureza da Narrativa (1977) os estudiosos Scholes e Kellogg comentam

que escrever sobre a tradiccedilatildeo da narrativa no Ocidente eacute de certa forma escrever sobre

a genealogia do romance jaacute que tem sido este o gecircnero dominante na literatura do

Ocidente nos uacuteltimos seacuteculos No entanto eles observam que o conceito de narrativa

que se centraliza no romance ldquo[] nos aparta da literatura narrativa do passado e da

cultura do passado [] [assim como] nos separa da literatura do futuro e mesmo da

vanguarda de nossos proacuteprios dias []rdquo (SCHOLES KELLOGG 1977 p5)

Procurando portanto outra abordagem Scholes e Kellogg natildeo encaram o romance

como um produto final das formas narrativas anteriores mas como uma possibilidade

narrativa que encontrou na Idade Moderna solo propiacutecio para se firmar e afirmar

Assim a definiccedilatildeo de narrativa por eles proposta permite a generalizaccedilatildeo necessaacuteria

para abarcar as mais variadas formas de narrativa ldquoEntendemos por narrativa todas as

obras literaacuterias marcadas por duas caracteriacutesticas a presenccedila de uma estoacuteria e de um

contador de estoacuterias []rdquo (SCHOLES KELLOGG 1977 p1) Brandatildeo (2005 p33)

acrescenta ainda uma terceira categoria a do destinataacuterio ou narrataacuterio

O romance eacute antes de tudo uma narrativa ficcional em prosa uma das formas

do epos que se divide (e se modifica) em uma grande quantidade de formas literaacuterias

Ao utilizarmos portanto a terminologia romance noacutes temos em vista seu caraacuteter

formal miacutenimo das narrativas e principalmente a aproximaccedilatildeo do passado histoacuterico por

meio da ficccedilatildeo

37

2242 A ficccedilatildeo em prosa na Greacutecia

Na Antiguidade segundo Holzberg a ficccedilatildeo soacute se constroacutei como gecircnero

autocircnomo ou seja desvinculado da historiografia e da filosofia a partir do seacuteculo II

dC A dataccedilatildeo destas narrativas eacute incerta variando de criacutetico para criacutetico Muito

provavelmente estas primeiras narrativas surgiram nos seacuteculos I ou II aC e essa

produccedilatildeo desenvolveu-se ateacute o seacuteculo IV dC

Como gecircnero autocircnomo sua principal finalidade mas natildeo uacutenica eacute a expressatildeo

esteacutetica o luacutedico A narrativa em prosa que antes estava vinculada agrave histoacuteria e agrave

filosofia volta-se neste momento tambeacutem ao domiacutenio da ficccedilatildeo (BRANDAtildeO 2005

p30) Desse modo o corpus do romance grego antigo eacute representado pelas obras As

Etioacutepicas de Heliodoro Queacutereas e Caliacuterroe de Caacuteriton de Afrodiacutesias Leucipe e

Clitofonte de Aquiles Taacutecio Daacutefnis e Cloeacute de Longo e As Efesiacuteacas de Xenofonte de

Eacutefeso Essas obras satildeo denominadas de romances idealistas gregos e apresentam uma

estrutura em comum a uniatildeo do tema amoroso e do tema da viagem Acrescenta-se a

este grupo os romances latinos Satyricon de Petrocircnio e O Asno de ouro de Apuleio que

aleacutem de parodiarem os temas de amor e de aventura do romance idealista apresentam

uma mordaz saacutetira da sociedade romana Por este caraacuteter homogecircneo de sua estrutura

interna Holzberg define estas obras como proper novels (romances de fato)

Ao lado dos proper novels Holzberg chama a atenccedilatildeo para os fringe novels

romances perifeacutericos obras de ficccedilatildeo em prosa que apresentam natildeo soacute uma variedade

temaacutetica muito mais ampla do que a do proper novels mas tambeacutem uma aproximaccedilatildeo

com outros gecircneros (historiografia filosofia etc) o que torna o caraacuteter fronteiriccedilo

destas obras Nestas narrativas a ficccedilatildeo se relaciona com algum objetivo didaacutetico ou

informativo Neste conjunto Holzberg arrola as mais variadas obras a-) biografia

ficcional Ciropedia de Xenofonte Vida e Andanccedilas de Alexandre da Macedocircnia de

Pseudo-Caliacutestenes Vida de Esopo (anocircnimo) Vida de Apolocircnio de Tiana de Filoacutestrato

Atos dos apoacutestolos apoacutecrifos b-) autobiografia ficcional Pseudo-Clemente c-)

Cartas ficcionais Cartas de Eacutesquines Cartas de Quioacuten Cartas de Euriacutepides Cartas

de Hipoacutecrates Cartas de Platatildeo Cartas de Soacutecrates e dos socraacuteticos e Cartas de

Temiacutestocles

Aleacutem desta diferenccedila temaacutetica os proper novels narram a histoacuteria de

personagens completamente inventadas (nem miacuteticas nem histoacutericas) com particular

ecircnfase nos aspectos eroacuteticos ndash amor ideal dos jovens sua separaccedilatildeo e os obstaacuteculos para

38

o reencontro (WHITMARSH 2008 p3) ndash ao contraacuterio dos fringe novels que

ficcionalizam um dado material histoacuterico A mais antiga manifestaccedilatildeo de um fringe

novel eacute Ciropedia de Xenofonte escrita por volta de 360 aC

A relaccedilatildeo da Ciropedia com o romance ideal grego os proper novels pode ser

demonstrada por algumas razotildees primeiramente os mais antigos romancistas gregos

estabeleceram uma conexatildeo mais ou menos expliacutecita com Xenofonte Caacuteriton conhecia

e imitou certas partes da Ciropedia enquanto que o nome Xenofonte serviu como

pseudocircnimo para alguns dos romancistas (TATUM 1994 p15) Em segundo lugar

pela presenccedila da narrativa secundaacuteria de Panteacuteia e Abradatas na tessitura narrativa da

Ciropedia Esta narrativa secundaacuteria apresenta os principais elementos do tema amoroso

do romance idealista grego o amor puro dos protagonistas que satildeo personagens

completamente ficcionais a separaccedilatildeo dos namorados a fidelidade eacute constantemente

posta agrave prova e por fim o reencontro dos apaixonados

No entanto uma vez que a estrutura da Ciropedia natildeo se resume a estrutura dos

ἐρότικοι λόγοι (erotikoi logoi) mas abrange outras estruturas narrativas haacute

dificuldade por parte dos criacuteticos (BRANDAtildeO 2005 GUAL 1988 HOLZBERG

1993) em aceitaacute-la como um romance propriamente dito Para Jacyntho Lins Brandatildeo

haacute em Heroacutedoto e Xenofonte assim como tambeacutem nos historiadores helenistas ldquo[]

trechos claramente romanceados envoltos entretanto num enquadramento histoacuterico

[]rdquo (2005 p165) O enquadramento histoacuterico a que se refere Brandatildeo (2005)

concede ao texto uma finalidade diferente da finalidade do texto romanesco pois

determina que o objetivo da narrativa natildeo seja o prazeroso e o agradaacutevel poreacutem o uacutetil46

O uacutetil se alcanccedila apenas com a verdade Nesta perspectiva os elementos romanescos em

Xenofonte seriam traccedilos estiliacutesticos aqui e ali revisitados que embelezam o discurso

mas natildeo o determinam

Poreacutem a clara idealizaccedilatildeo da personagem Ciro revela que o autor tinha outros

propoacutesitos aleacutem do da verdade histoacuterica e sua utilidade do ponto de vista histoacuterico e

que esta em verdade natildeo determina o estatuto da obra poreacutem estaacute a serviccedilo como

estrateacutegia discursiva do propoacutesito ficcional da narrativa Discutiremos no Capiacutetulo 3 de

nossa Dissertaccedilatildeo a respeito de como a idealizaccedilatildeo com que Ciro eacute apresentado estaacute

intimamente ligada a processos de ficcionalizaccedilatildeo do material histoacuterico

46 Cf Luciano de Samoacutestata Como se deve escrever a histoacuteria Belo Horizonte Tessitura 2009

39

O Ciro pintado por Xenofonte estaacute mais proacuteximo do heroacutei de uma gesta heroica

do que de uma personagem real (GERA 1993 CHRISTENSEN 1957) isto em virtude

dos elementos idealizantes da narrativa A Ciropedia portanto apresenta tanto

caracteriacutesticas romacircnticas quanto idealistas antecipando o caraacuteter essencial da temaacutetica

do romance grego Em nossa opiniatildeo a escolha de um tema histoacuterico por parte de

Xenofonte estaacute intimamente ligada ao estatuto da ficccedilatildeo no seacuteculo V e IV aC Quando

Xenofonte escreve suas obras a ficccedilatildeo natildeo eacute tema das narrativas em prosa mas da

poesia seja dramaacutetica seja liacuterica (DrsquoONOFRIO 1976 BOWERSOCK 1994)

A ficccedilatildeo estabelece o reino do ψεῦδος (pseudos) mentira que unida a

verossimilhanccedila cria o efeito de verdade ἀληθήα (alethea) Os historiadores do

seacuteculo V procuraram dissociar-se dos gecircneros poeacuteticos depurando pelo λόγος (loacutegos)

o passado histoacuterico Desse modo o discurso em prosa eacute um discurso que se pretende

verdadeiro No entanto por exemplo nas Histoacuterias de Heroacutedoto haacute prazerosas

narrativas que deveriam em seu puacuteblico de ouvintes repercutir como belas histoacuterias

inventadas iguais as aventuras que Odisseu narrava aos feaacutecios Entretanto Heroacutedoto

reserva o maravilhoso agravequilo que natildeo pode ser comprovado pela visatildeo e pela

investigaccedilatildeo (ἱστορίη historie) A etimologia da palavra ἱστορίη relaciona-se com o

vocaacutebulo ἵστωρ (histor) aquele que viu algo a testemunha Portanto a ficccedilatildeo na

historiografia de Heroacutedoto faz parte do incerto uma mentira que se assume como natildeo

comprovaacutevel por testemunhas

Para pensar no estatuto ficcional dos gecircneros literaacuterios natildeo devemos nos

esquecer de um gecircnero que se desenvolveu no seacuteculo V e que mesmo em prosa

procurava assumir as qualidades dos textos poeacuteticos o discurso epidiacutetico Segundo

Roland Barthes (1975 p149) Goacutergias ao compor seu Elogio de Helena estabelece agrave

prosa o direito de ser natildeo apenas uacutetil mas tambeacutem agradaacutevel O gecircnero epidiacutetico (para

os romanos encomiaacutestico) marca o aparecimento de uma prosa decorativa com

finalidade esteacutetica

O desenvolvimento deste gecircnero epidiacutetico estimulou a criaccedilatildeo de um tipo de

narrativa em prosa cujo tema eacute o elogio de uma personagem histoacuterica e ilustre a

biografia47 As primeiras obras que surgiram com este tema satildeo o Evaacutegoras de

47 O termo biografia aparece pela primeira vez na Vida de Alexandre de Plutarco no seacuteculo II Segundo Momigliano (1993) as formas biograacuteficas anteriores a Plutarco satildeo denominadas pelos antigos como gecircnero epidiacutetico ou encocircmio Neste trabalho trataremos todas as obras com caraacuteter biograacutefico sejam posteriores sejam anteriores a Plutarco como biografia

40

Isoacutecrates48 e o Agesilau de Xenofonte Aleacutem de narrarem a vida de uma personagem

ilustre e real as biografias apresentam tambeacutem um caraacuteter didaacutetico pois os homens

ilustres escolhidos devem servir de modelo para os leitores (CARINO 1999) O gecircnero

biograacutefico portanto une agrave utilidade didaacutetica a preocupaccedilatildeo esteacutetica pois se origina do

gecircnero epidiacutetico Precisamos agora relacionar o gecircnero biograacutefico agrave ficccedilatildeo

O tema da biografia como o da historiografia eacute um tema da histoacuteria do

passado No entanto como satildeo gecircneros diferentes a forma e o sentido destes gecircneros

satildeo construiacutedos e se dirigem para puacuteblicos diferentes Como nos lembra Linda

Hutcheon (1991 p122) ldquo[] o sentido e a forma natildeo estatildeo nos acontecimentos mas

nos sistemas que transformam esses lsquoacontecimentosrsquo passados em lsquofatosrsquo histoacutericos

presentes []rdquo Momigliano em seu livro The development of the ancient biography

(1993 p 55) afirma que a biografia adquiriu um novo significado quando no seacuteculo IV

aC os bioacutegrafos ligados a Soacutecrates trafegavam com liberdade os limites entre verdade

e ficccedilatildeo A biografia era direcionada para capturar as potencialidades tanto quanto a

realidade da vida individual A fronteira entre ficccedilatildeo e realidade foi mais diluiacuteda na

biografia do que na historiografia e a expectativa do leitor para cada um dos gecircneros

deveria ser diferente Assim o que os leitores esperavam da biografia era diferente do

que esperavam das histoacuterias poliacuteticas Enquanto a historiografia tratava de temas

poliacuteticos e militares pois estes eram os feitos grandiosos dos homens os bioacutegrafos

tratavam da vida particular dos homens ilustres O puacuteblico da biografia queria

informaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo os casos de amor e o caraacuteter de seus heroacuteis Mas essas

informaccedilotildees satildeo menos faacuteceis de se documentar do que guerras e reformas poliacuteticas e se

os bioacutegrafos quisessem manter seu puacuteblico eles deveriam se utilizar da ficccedilatildeo

(MOMIGLIANO 1993 p57)

Tomemos o testemunho de Poliacutebio Em suas Histoacuterias 1021 Poliacutebio afirma que

escreveu sobre Filopoimen49 uma obra em trecircs livros na qual revela a natureza desta

personagem de qual descendecircncia provinha e qual a natureza da sua educaccedilatildeo aleacutem de

seus feitos mais famosos Poreacutem nesta obra isto eacute nas Histoacuterias que eacute uma obra

historiograacutefica ldquo[] eacute adequado (πρέπον prepon) subtrair (ἀφελεῖν aphelein) toda

48 No Evaacutegoras Isoacutecrates afirma que o objetivo de sua obra eacute encomiar com palavras a virtude de um homem e que nenhum autor jaacute escrevera sobre este tema Aleacutem disso nos paraacutegros 8-12 Isoacutecrates procura asseguar ao orador do encocircmio os mesmos recursos estiliacutesticos dos poetas para que dessa forma o discurso seja reconhecido pelas suas qualidades esteacuteticas 49 Filopoimen (253-183) foi general e poliacutetico grego que ocupou o cargo de estratego da Liga Aqueia em oito ocasiotildees Em 183 foi aprosionado em uma expediccedilatildeo agrave Messecircnia e obrigado a beber cicuta

41

quota sobre a sua formaccedilatildeo juvenil [] para que o que eacute caracteriacutestico de cada uma das

composiccedilotildees seja respeitado []rdquo Aleacutem desta constataccedilatildeo temaacutetica Poliacutebio ainda

acrescenta que em sua obra anterior escrita em forma encomiaacutestica (ἐγκωμιαστικός

enkomiastikos) impunha (ἀπῄτει apeitei) uma narraccedilatildeo (ἀπολογισμόν

apologismon) sumaacuteria (τὸν κεφαλαιώδη kefalaiode) e exagerada (amplificaccedilatildeo) dos

fatos (μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων metrsquo aukseseos ton prakseon) enquanto que na

obra presente que eacute uma histoacuteria (ἱστορίας historias) os elogios e as censuras

(ἐπαίνου καὶ ψόγου epainou kai psogou) satildeo distribuiacutedos imparcialmente visando agrave

verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ dzetei ton alethe)

Poliacutebio distingue conscientemente o encocircmio da histoacuteria pelo criteacuterio de verdade

dos fatos enquanto a Histoacuteria deve sempre visar agrave verdade pois eacute esta que garante a

utilidade da Histoacuteria ao encocircmio eacute permitido amplificar os fatos exageraacute-los ou

inventaacute-los desde que estes revelem o caraacuteter do homem biografado O interesse do

historiador eacute a verdade dos fatos o do encomiaacutesta eacute o caraacuteter do homem Para alcanccedilar

este objetivo o bioacutegrafo se utiliza de diversos modos de ficcionalizar este passado

Desse modo compreendemos que haacute no gecircnero biograacutefico um importante

desenvolvimento ficcional da narrativa em prosa na Greacutecia que natildeo deve ser

menosprezado pelo criacutetico literaacuterio A biografia em virtude de sua origem epidiacutetica

estava mais preocupada com valores esteacuteticos e didaacuteticos do que com a utilidade da

verdade

O tema da Ciropedia natildeo eacute a histoacuteria dos povos como as obras de Heroacutedoto e de

Tuciacutedides mas a vida de um homem ilustre Ciro Afasta-se deste modo dos temas

historiograacuteficos e se aproxima dos temas da biografia No proecircmio da Ciropedia o

narrador afirma que

[6] Em vista de esse homem ser merecedor de admiraccedilatildeo noacutes examinamos de qual famiacutelia era qual natureza possuiacutea e em que tipo de educaccedilatildeo foi instruiacutedo a tal ponto que se distinguiu no governar os homens Portanto o quanto noacutes averiguamos e o quanto julgamos ter compreendido sobre ele tentaremos discorrer 50 (Cirop 11 6)

50 Nas referecircncias agrave obra Ciropedia passaremos a fazer a abreviaccedilatildeo Cirop No original ἡμεῖς μὲν δὴ

ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδρα ἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν

τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶς παιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν

ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα

πειρασόμεθα διηγήσασθαι

42

O tema da Ciropedia portanto eacute a vida (βίος bios) de Ciro o homem (ἀνδρα

andra) que foi digno da admiraccedilatildeo do narrador O narrador divide seu material em trecircs

temas principais a genealogia γένεαν (geacutenean) a natureza φύσιν (phyacutesin) e a

educaccedilatildeo παιδεία (paideia) Segundo Menandro Reacutetor (1996) em seu segundo tratado

sobre o gecircnero epidiacutetico γένεαν φύσιν e παιδέια satildeo toacutepoi do gecircnero epidiacutetico

Portanto o narrador da Ciropedia jaacute assinala aos leitores que eles devem esperar da

narrativa natildeo dados histoacutericos precisos mas a narrativa da vida particular da

personagem e que esta revelaraacute o verdadeiro caraacuteter do heroacutei

2243 Modos de Imitaccedilatildeo da Ciropedia

A combinaccedilatildeo de ficccedilatildeo e histoacuteria entretanto natildeo eacute exclusividade desta obra

mas segundo Momigliano eacute proacutepria do gecircnero da biografia antiga e portanto deve ser

entendida como um fator de novidade na literatura do seacuteculo IV aC A nosso ver a

novidade apresentada pela Ciropedia estaacute em aliar esta temaacutetica da biografia ao modo

de imitaccedilatildeo executado na narrativa51 pois o modo de imitaccedilatildeo da Ciropedia difere do

modelo apresentado pelas biografias anteriores

Para compreendermos esta afirmaccedilatildeo pensemos nas obras Agesilau de

Xenofonte e Evaacutegoras de Isoacutecrates Estas satildeo biografias cujo modo de imitaccedilatildeo eacute

executado por uma narraccedilatildeo simples (ἁπλή διήγησις aple diegesis) ou seja o

narrador (ἀπαγγέλλον52 apangellon) fala sempre por si mesmo sem mimetizar outros

locutores no discurso direto Desse modo o narrador estaacute expliacutecito por todo o discurso

mediando e distanciando o narrado do leitor Este tipo de biografia modernamente eacute

chamado de biografia analiacutetica ldquo[] do tipo ensaiacutestico interpretativo e natildeo

forccedilosamente factualista []rdquo (REIS 2000 p48)

51 A terminologia aqui adotada eacute a que Platatildeo apresenta na Repuacuteblica (III 392 d) ldquoAcaso tudo quanto dizem os prosadores e poetas natildeo eacute uma narrativa de acontecimentos passados presentes ou futuros [] Porventura eles natildeo a executam por meio de simples narrativa [ἁπλῇ διήγήσει] atraveacutes da miacutemese [διὰ

μιμήσεως] ou por meio de ambas [διrsquo ἀμφοτέρων περαίνουσιν]rdquo Essa traduccedilatildeo eacute de Maria Helena da Rocha Pereira (1980) 52 O termo ἀπαγγέλλον particiacutepio do verbo ἀπαγγέλειν eacute usado por Aristoacuteteles na Poeacutetica 1448 a Para Brandatildeo (2005 p46-48) este termo estaacute ligado agrave funccedilatildeo do mensageiro ἄγγελος das trageacutedias Os mensageiros satildeo introduzidos em cena para narrar as accedilotildees ocorridas fora de cena Assim a funccedilatildeo do narrador eacute comunicar ldquosituaccedilotildees falas objetos distanciados do recebedor no tempo e no espaccedilordquo (BRANDAtildeO p48)

43

A Ciropedia entretanto desenvolve-se como uma narrativa mista executada ora

por meio da narraccedilatildeo (διὰ διηγήσεως dia diegeseos) ora por meio da imitaccedilatildeo (διὰ

μιμήσεως dia mimeseos) Assim ao contraacuterio do que ocorre nas outras biografias o

narrador da Ciropedia aleacutem de mediar o discurso tambeacutem mimetiza outros locutores

por meio de discurso direto O resultado deste procedimento eacute uma sorte de narrativa

ldquodramatizadardquo53 no sentido de que por meio de cenas54 o narrador desaparece

parcialmente da cena do discurso Parcialmente pois o narrador controla a organizaccedilatildeo

destas locuccedilotildees desenrolando ou condensando a cena Eacute a biografia narrativa ldquo[]

centrada na dinacircmica da histoacuteria de uma vida recorrendo de forma mais ou menos

acentuada a estrateacutegias de iacutendole narrativardquo (REIS 2000 p48)

Isso significa que pelo modo de imitaccedilatildeo a Ciropedia se assemelha ao gecircnero

eacutepico pois este gecircnero tambeacutem apresenta uma narrativa mista tanto narrada quanto

mimetizada e se afasta do gecircnero biograacutefico cujo modo de imitaccedilatildeo eacute executado por

uma narraccedilatildeo simples Por isso a obra eacute singular pois dentre as obras biograacuteficas a

Ciropedia foi a primeira a trazer essa sorte de imitaccedilatildeo mista55

O gecircnero historiograacutefico tambeacutem eacute um gecircnero misto No entanto diferencia-se

do gecircnero eacutepico e do biograacutefico porque seu discurso pretende ser a narraccedilatildeo do

verdadeiro isto eacute narrar as accedilotildees que realmente aconteceram natildeo as que poderiam

acontecer O gecircnero biograacutefico no entanto como dissemos anteriormente incrementa

os dados histoacutericos com informaccedilotildees ficcionais da vida particular do homem ilustre

Assim a Ciropedia eacute uma narrativa mista de eventos que aconteceram mas

principalmente de eventos da vida particular que poderiam ter acontecido Portanto

podemos dizer que a Ciropedia eacute uma obra eacutepica de ficccedilatildeo em prosa

Desse modo acreditamos que se revela a verdadeira inovaccedilatildeo da Ciropedia em

relaccedilatildeo ao romance tanto antigo quanto moderno Nesta perspectiva a obra torna-se

profundamente importante na tradiccedilatildeo da narrativa

Aleacutem disso o modo de imitaccedilatildeo da Ciropedia ou seja com um narrador

executando uma narrativa mista propicia a absorccedilatildeo de outros gecircneros literaacuterios dentro

53 O sentido de dramatizada aqui usado eacute o mesmo da mimese em oposiccedilatildeo agrave diegeacutese ou seja o narrador reproduz por meio do discurso direto as falas das personangens e desse modo aproximando-se do tipo de representaccedilatildeo teatral Na terminologia estabelecida por Lubbock (1939) este tipo de representaccedilatildeo da narrativa eacute chamada de showing 54 Segundo Reis (2000 p53) ldquo[] a instauraccedilatildeo da cena traduz-se antes de mais na reproduccedilatildeo do discurso das personagens [] que naturalmente implica que o narrador desapareccedila total ou parcialmente da cena do discursordquo 55 As outras biografias romanceadas ou ficcionais da Antiguidade posteriores agrave Ciropedia tambeacutem apresentam este caraacuteter de imitaccedilatildeo mista

44

da estrutura diegeacutetica Isso porque a mimetizaccedilatildeo de locutores dentro da narrativa

fornece a oportunidade para que as personagens discursem dialoguem ou mesmo

narrem narrativas secundaacuterias Desse modo o narrador conduz a narrativa introduzindo

os entrechos poreacutem logo introduzindo outras personagens cuja locuccedilatildeo seraacute

mimetizada56

Retomando e concluindo o primeiro capiacutetulo a Ciropedia eacute uma narrativa

biograacutefica e desse modo procura incrementar os dados histoacutericos com a narraccedilatildeo da

vida particular do homem ilustre que eacute objeto da biografia Luciano Cacircnfora (2004)

aponta a erupccedilatildeo da vida privada dentro da narrativa histoacuterica como a principal

inovaccedilatildeo da narrativa claacutessica para o desenvolvimento do romance grego idealista

Aleacutem disso o modo de imitaccedilatildeo da Ciropedia eacute o de uma narrativa mista pois o

narrador mimetiza na diegese a locuccedilatildeo de outras personagens ou seja o narrador daacute

voz agraves personagens A mimetizaccedilatildeo de outros locutores propicia a absorccedilatildeo de outros

gecircneros literaacuterios pois fornece a oportunidade para as personagens discursarem

dialogarem e narrarem pequenas narrativas Assim a Ciropedia tanto efetua a siacutentese de

elementos ficcionais e histoacutericos quanto absorve gecircneros literaacuterios dentro da narrativa

estabelecendo-se como uma verdadeira forma romanesca inovadora na preacute-histoacuteria do

romance

56 Brandatildeo (2005) intrepreta o sentido de mimetizar como ldquoimitaccedilatildeo de diferentes locutoresrdquo A interpretaccedilatildeo baseia-se na formulaccedilatildeo de Aristoacuteteles na Poeacutetica (1460 a) quando Aristoacuteteles elogia Homero como o melhor dos mimetai pois o proacuteprio narrador interfere pouco na narraccedilatildeo preferindo mimetizar a locuccedilatildeo de outros personagens

45

3 Reescrevendo o passado ficcionalizando a histoacuteria

Como o romance a historia seleciona simplifica organiza faz com que um seacuteculo caiba numa paacutegina e essa siacutentese

da narrativa eacute tatildeo espontacircnea quanto a da nossa memoacuteria []

Paul Veyne 1982 p11-12

Por sua forma narrativa pelos conflitos personalizados de suas personagens o romance

estaacute junto natildeo soacute da prosa diaacuteria quanto da forma narrativa privilegiada desde fins do

seacuteculo XVIII a forma da Histoacuteria Luiacutez Costa Lima 1984 p111

Neste capiacutetulo analisaremos a relaccedilatildeo de intertextualidade existente entre a

narrativa de Xenofonte e a obra Histoacuterias de Heroacutedoto uma vez que o tema da

Ciropedia a vida de Ciro jaacute fora abordado antes na obra de Heroacutedoto Aleacutem de

Heroacutedoto tambeacutem Cteacutesias de Cnido e Antiacutestenes abordaram a vida de Ciro poreacutem

apenas a obra de Heroacutedoto nos chegou in extenso Eacute portanto a nossa uacutenica fonte

histoacuterica disponiacutevel para nos informar o que era considerado dado histoacuterico sobre o

tema na eacutepoca de Xenofonte Assim consideramos que a comparaccedilatildeo entre as

narrativas tanto do conteuacutedo quanto dos aspectos formais faz-se necessaacuteria para uma

melhor compreensatildeo da obra xenofonteana

Efetuaremos nossa anaacutelise retomando conceitos de intertextualidade e

imitaccedilatildeo aleacutem de pensar na relaccedilatildeo entre histoacuteria e ficccedilatildeo Nosso objetivo eacute demonstrar

como Xenofonte cria sua ficccedilatildeo idealizada a partir dos dados histoacutericos Isso significa

que a ficccedilatildeo se mescla ao texto histoacuterico e com ele se confunde Por meio desta

estrateacutegia o leitor eacute persuadido da verdade dos fatos narrados pela obra ficcional Para

isso antes da anaacutelise comparativa propriamente dita traremos alguma discussatildeo que

vise agrave aproximaccedilatildeo entre histoacuteria e literatura para que estas duas produccedilotildees do

pensamento humano natildeo sejam vistas como dissociadas

31 Histoacuteria e Literatura

46

O passado existe no tempo e antes de ser tomado pela linguagem mas o passado

soacute se torna fato histoacuterico por meio da linguagem Assim o discurso recupera e

reconstroacutei os acontecimentos passados para lhes dar um sentido e uma forma estando o

sentido e a forma conforme Linda Hutcheon (1991 p122) natildeo nos ldquoacontecimentos

em sirdquo mas na linguagem que os recuperou Entretanto cada gecircnero (histoacuteria romance

teatro etc) apresenta as suas proacuteprias caracteriacutesticas linguiacutesticas e discursivas o que

significa que o passado seraacute representado de um modo especiacutefico de acordo com o

gecircnero que o reconstrua Eacute necessaacuterio observar como cada gecircnero recupera o passado

tanto nos aspectos formais quanto nos aspectos discursivos sabendo que o mesmo

passado tende a se reconstruir diferentemente de acordo com as caracteriacutesticas de cada

gecircnero

Todos os romancistas gregos mantecircm uma importante relaccedilatildeo com a

historiografia seja construindo a narrativa em uma eacutepoca historicamente importante

seja se utilizando de recursos linguiacutesticos e estiliacutesticos dos historiadores (MORGAN

HARRISON 2008 p220)

No entanto o romance grego soacute se desenvolve plenamente entre o primeiro

seacuteculo aC e o quarto seacuteculo dC Poreacutem em suas primeiras manifestaccedilotildees a ficccedilatildeo em

prosa ainda estava intrinsecamente relacionada com a histoacuteria ou melhor com os

acontecimentos histoacutericos A histoacuteria com efeito eacute um dos elementos base na

organizaccedilatildeo da ficccedilatildeo (REacuteMY 1972 p157) Desse modo devemos para melhor

compreender as primeiras manifestaccedilotildees da ficccedilatildeo em prosa na Greacutecia Claacutessica

observar que relaccedilatildeo mantinham com o passado os gecircneros que neste tempo preacute-

romance floresciam na Antiguidade Nos seacuteculos V e IV aC a historiografia e a

biografia concorriam como gecircneros que representavam o passado

Sobre a historiografia podemos dizer que o sentido etimoloacutegico da palavra

histoacuteria ἱστορίη (historie) tal qual Heroacutedoto o emprega pela primeira vez significa

inqueacuterito ou pesquisa e a obra do historiador dessa forma eacute a ldquoexposiccedilatildeo da pesquisardquo

(ἀπόδεξις ἰστορίης apodeksis historiacutees) (Histoacuterias I1) Por conseguinte o

historiador deve por meio da pesquisa separar dos fatos passados o que eacute verdade e o

que eacute fantasia Os temas principais da historiografia grega eram os fatos poliacuteticos e

militares dos poderosos Estados (RAHN 1971 p498) para que os grandes feitos dos

homens natildeo fossem esquecidos (ἐξίτηλα γένηται eksitela genetai) Dessa forma

tanto com Heroacutedoto quanto com Tuciacutedides o historiador ldquo[] colocava-se como

47

testemunha e como registrador de mudanccedilas [] que em sua opiniatildeo eram importantes

o bastante para serem transmitidas agrave posteridaderdquo (MOMIGLIANO 1998 p187)

Quanto agrave biografia este gecircnero surgiu como forma de elogio de um indiviacuteduo

em conexatildeo com o gecircnero retoacuterico epidiacutetico ou encocircmio O epidiacutetico (ἐπιδεικτικόν

epideiktikon) ao lado do deliberativo (συμβουλευτικόν sumbouleutikon) e do

judiciaacuterio (δικανικόν dikanikon) formava os gecircneros da retoacuterica antiga57

(ARISTOacuteTELES Retoacuterica III 13) e estes gecircneros se distinguiam entre si pela

finalidade O fim do gecircnero epidiacutetico eacute o belo e o feio (τὸ καλὸν καὶ τὸ αἰσχρόν to

kalon kai to aischron) porque nele se censura e louva (ἐπαινοῦσιν καὶ ψέγουσιν

epainousin kai psegousin)

Segundo Momigliano (1998 p188) os relatos biograacuteficos natildeo eram

reconhecidos pelos antigos como histoacuteria mas como um gecircnero retoacuterico pois a

essecircncia da biografia era o elogio ou censura de uma personalidade enquanto que a

historiografia visando agrave verdade deveria abster-se de excessos de elogios e censuras

Assim a histoacuteria visava agrave objetividade para alcanccedilar a verdade enquanto no texto

biograacutefico deixava transparecer no relato a visatildeo subjetiva do bioacutegrafo

A palavra biografia eacute composta pelos termos βίος (vida) e γράφειν (escrever) e

foi usada pela primeira vez por Plutarco (seacutec II dC) na Vida de Alexandre (12-3) As

formas biograacuteficas anteriores a Plutarco satildeo denominadas pelos antigos de encocircmio

revelando com isso a origem epidiacutetica do gecircnero biograacutefico58 (MOMIGLIANO 1993

p10)

Como afirmamos anteriormente59 a fronteira entre ficccedilatildeo e realidade (histoacuteria)

foi mais diluiacuteda na biografia do que na historiografia60 O gecircnero biograacutefico segundo

Plutarco (Alexandre 12-3) revela uma verdade diferente da verdade historiograacutefica

pois natildeo aborda a narraccedilatildeo dos grandes feitos ndash tema da historiografia ndash mas dos

pequenos e cotidianos que revelam o verdadeiro caraacuteter dos homens ilustres

57 A triparticcedilatildeo dos gecircneros retoacutericos em deliberativo judiciaacuterio ou epidiacutetico (demonstrativo) manteve-se nos tratados retoacutericos dos romanos Cf Pseudo-Ciacutecero Retoacuterica a Herecircnio 2005 p55 58 Como afirmamos no capiacutetulo 1 no decorrer deste trabalho utilizaremos a designaccedilatildeo biografia de forma ampla seguindo desse modo Momigliano (1993) abrangendo por isso as obras encomiaacutesticas do seacuteculo IV aC 59 Cf a subseccedilatildeo 2242 60 Para Francis a riacutegida distinccedilatildeo entre literatura e histoacuteria deveria ser muito estranha para os leitores antigos pois a historiografia antiga foi a primeira a empregar estrateacutegias discursivas para criar ldquoficccedilotildees verdadeirasrdquo (FRANCIS 1988 p421) Para Morgan (1993 p186-187) a condiccedilatildeo essencial para que uma obra seja reconhecida como ficcional eacute que exista um contrato ficcional estabelecido que seja aceito pelos leitores

48

Momigliano (1993 p55) afirma que eacute justamente por meio da narraccedilatildeo dos fatos

pequenos cotidianos e particulares que a ficccedilatildeo se infiltra no material histoacuterico na

biografia A biografia se utiliza de um material histoacuterico (dados comprovaacuteveis pelas

fontes) a fim de que a narrativa ficcional tenha a aparecircncia de verdade e se confunda

com a proacutepria histoacuteria Assim a narrativa ficcional da biografia deveria ser coerente

com os dados para que o caraacuteter ndash revelado por meio dos feitos pequenos e cotidianos ndash

fosse coerente com as accedilotildees do biografado ndash revelado por meio dos feitos grandiosos

comprovados pelos dados histoacutericos61 Os leitores das biografias portanto natildeo soacute

mantinham como tambeacutem esperavam esse contrato de cumplicidade ficcional com as

biografias

Seria portanto a historiografia um gecircnero que se opusesse completamente agrave

ficccedilatildeo Segundo Momigliano (1998 p188) natildeo se pode compreender o trabalho dos

historiadores do seacuteculo V aC sem se levar em conta a formalizaccedilatildeo da retoacuterica puacuteblica

pois ldquo[o] relato dos historiadores devia proporcionar algum tipo de satisfaccedilatildeo a seus

leitoresrdquo (MOMIGLIANO 1998 p190) Tuciacutedides acusava Heroacutedoto de colocar o

deleite antes da instruccedilatildeo poreacutem uma das invenccedilotildees mais caracteriacutesticas de Tuciacutedides

ldquo[] o uso de falas fictiacutecias para relatar correntes da opiniatildeo puacuteblica e restabelecer as

motivaccedilotildees dos liacutederes poliacuteticos []rdquo (MOMIGLIANO 1998 p188) seria impensaacutevel

sem a formalizaccedilatildeo da retoacuterica O influxo da retoacuterica na historiografia fecirc-la

desenvolver-se para aleacutem da ambiccedilatildeo de verdade dos proacuteprios historiadores

Por meio destas primeiras reflexotildees parece-nos que a distinccedilatildeo para os antigos

entre a histoacuteria e a literatura eacute muito tecircnue Tanto a biografia quanto a historiografia

claacutessicas mostravam aptidatildeo para estetizar o material histoacuterico seja por meio de

recursos retoacutericos e estiliacutesticos seja por meio da ficccedilatildeo O romance grego acreditamos

surge dos desenvolvimentos narrativos efetuados por estes gecircneros Assim literatura e

histoacuteria natildeo devem ser vistas como poacutelos opostos e incomunicaacuteveis Para Bowersock

(1994 p14-15) o principal erro da teoria dos gecircneros eacute acreditar que os gecircneros satildeo

formas estanques e isoladas culturalmente poreacutem noacutes devemos lembrar que o contato

entre os gecircneros eacute mais constante do que se costuma afirmar

61 Na Poeacutetica 1454 Aristoacuteteles afirma que ldquo[t]anto na representaccedilatildeo dos caracteres como no entrecho das accedilotildees importa procurar sempre a verossimilhanccedila e a necessidade por isso as palavras e os atos de uma personagem de certo caraacuteter devem justificar-se por sua verossimilhanccedila e necessidade tal como nos mitos os sucessos de accedilatildeo para accedilatildeordquo (ARISTOacuteTELES 1966 p20)

49

Passemos agora a retomar algumas importantes reflexotildees feitas por Aristoacuteteles

Ciacutecero Hegel Barthes Veyne e Lukaacutecs a respeito das relaccedilotildees entre Literatura e

Histoacuteria procurando nelas observar limites mais frouxos entre os dois modos de

representaccedilatildeo

Aristoacuteteles na Poeacutetica 1451a-b estabelece que a distinccedilatildeo entre histoacuteria e poesia

se manifesta natildeo tanto pelo seu caraacuteter formal (o meio de imitaccedilatildeo) mas pelo conteuacutedo

(objeto de imitaccedilatildeo) Desse modo natildeo eacute o uso da prosa ou do verso que torna um texto

respectivamente histoacuterico ou poeacutetico A distinccedilatildeo para Aristoacuteteles estaacute no fato de que a

histoacuteria narra acontecimentos que realmente sucederam enquanto a poesia narra

acontecimentos que poderiam acontecer O discurso literaacuterio eacute a representaccedilatildeo ldquodo

possiacutevel segundo a verossimilhanccedila e a necessidaderdquo (ARISTOacuteTELES 1996 p79) Jaacute

o discurso histoacuterico se apropria dos fatos reais passados e particulares por isso ldquo[] a

poesia eacute algo de mais filosoacutefico e mais seacuterio do que a histoacuteria pois refere aquela

principalmente o universal e esta o particularrdquo (ARISTOacuteTELES 1996 p78)

Ao historiador cabe separar dos fatos passados a verdade excluir deles a

fantasia e ordenaacute-los O poeta na concepccedilatildeo aristoteacutelica de arte como imitaccedilatildeo do real

eacute criador de uma imagem-representaccedilatildeo da realidade e de um ldquomitordquo (enredo)

verossiacutemil posto que organizado pela necessidade e verossimilhanccedila A construccedilatildeo

verossiacutemil amplia-se como relaccedilatildeo causal implicando a sucessatildeo de cenas de modo

homogecircneo criando desta forma certo efeito do real Como criador de representaccedilatildeo

ldquosua atuaccedilatildeo natildeo tem limites fixosrdquo (GOBBI 2004 p40) abrangendo todo campo do

possiacutevel Isso significa que eacute parte do material poeacutetico todo conteuacutedo discursivo

inclusive o material histoacuterico Na Poeacutetica 1451b Aristoacuteteles acrescenta

[] ainda que lhe aconteccedila fazer uso de sucessos reais nem por isso deixa de ser poeta pois nada impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam por natureza verossiacutemeis e possiacuteveis e por isso mesmo venha o poeta a ser o autor delas (ARISTOacuteTELES 1966 p79)

A ficccedilatildeo portanto ainda que tome por representaccedilatildeo a temaacutetica histoacuterica logo

o verdadeiro natildeo perde por isso o estatuto ficcional e natildeo se confunde com o discurso

historiograacutefico O criteacuterio de verdade natildeo eacute ao que parece para Aristoacuteteles um conceito

absoluto para a distinccedilatildeo entre os gecircneros mas confunde-se tambeacutem com outros

conceitos da poeacutetica principalmente o da verossimilhanccedila

50

Como jaacute assinalamos os tratados retoacutericos estabeleciam que a diferenccedila

essencial entre os gecircneros histoacutericos e poeacuteticos foca-se na sua finalidade pois enquanto

o fim da historiografia eacute o uacutetil que soacute se pode alcanccedilar por meio do verdadeiro o fim

do discurso poeacutetico eacute o prazeroso o luacutedico62 No entanto o discurso historiograacutefico se

regulava desde o seacuteculo V aC pelas orientaccedilotildees retoacutericas e segundo Momigliano

(1984) a partir do seacuteculo IV aC os historiadores aproximaram ainda mais do

agradaacutevel a utilidade ao utilizarem para o enriquecimento de suas narrativas de teacutecnica

de ldquosuperdramatizaccedilotildees pateacuteticasrdquo (MOMIGLIANO 1998 p191)

Ciacutecero compreende a histoacuteria como um gecircnero retoacuterico (opus oratorium) e que

portanto estaacute regulado pelas leis da retoacuterica (BOWERSOCK 1993 p13) Em Ad

Familiares (apud HARTOG 2001) Ciacutecero afirma que para tornar a histoacuteria mais

prazerosa eacute necessaacuterio que o escritor a enriqueccedila com a linguagem e o discurso mesmo

que com isso negligencie as leis da histoacuteria Diz ele

Nada com efeito eacute mais conveniente ao deleite do leitor que a variedade das circunstacircncias e as vicissitudes da Fortuna [] De fato a organizaccedilatildeo dos anais prende-nos mediocremente da mesma forma que a enumeraccedilatildeo dos fatos enquanto frequentemente as desventuras perigosas e variadas de um homem eminente geram admiraccedilatildeo atenccedilatildeo alegria pena esperanccedila medo e se terminam com uma morte insigne o espiacuterito entatildeo se eleva pelo agradabiliacutessimo prazer da leitura (CIacuteCERO 5 12 apud HARTOG 2001 p157)

A partir destas reflexotildees levanta-se a questatildeo ateacute que ponto na Antiguidade eacute

possiacutevel separar da literatura o discurso da histoacuteria Pois se para Aristoacuteteles o uso de

um tema histoacuterico por parte do poeta natildeo o confunde com o historiador para Ciacutecero e

outros retores o discurso historiograacutefico deve se orientar pelas leis retoacutericas nem que

com isso o historiador viole a principal lei da histoacuteria fidelidade agrave verdade Os limites

entre os gecircneros natildeo satildeo portanto estanques e facilmente delimitados poreacutem

claramente interrelacionaacuteveis e este cruzamento de formas constitui a essecircncia da

proacutepria poeacutetica

A historiografia e a oratoacuteria estatildeo no limite do que Hegel considera arte pois

estes gecircneros visam a objetos extra-literaacuterios e essa ausecircncia de gratuidade eacute o que as

distingue da poesia No entanto Hegel aproxima a historiografia da poesia ao admitir a

62 Sobre a distinccedilatildeo cf Como se deve escrever a Histoacuteria (2009) de Luciano

51

subjetividade da escrita da histoacuteria a histoacuteria natildeo eacute soacute a exatidatildeo dos fatos mas

necessita de um sujeito que introduza uma determinada ordem nos eventos que os

agrupe e os interprete construindo assim a imagem do objeto (GOBBI 2004 p42)

No entanto Hegel as distingue em termos de criaccedilatildeo uma vez que o historiador

soacute pode ser o organizador natildeo o inventor dos fatos enquanto ao poeta tudo eacute permitido

inclusive reconstruir a histoacuteria A arte ndash que eacute para Hegel substancialidade pura ndash pode

corrigir a histoacuteria ndash que eacute substancialidade e acidentalidade ndash transformando a verdade

externa conforme a verdade interna (GOBBI 2004 p43) Desse modo Hegel abre a

perspectiva de que o poeta retomando o fio dos fatos histoacutericos os modifique e os

corrija desde que sua finalidade natildeo seja a verdade do histoacuterico mas uma verdade de

representaccedilatildeo verossiacutemil tal qual afirmava Aristoacuteteles

Quando no seacuteculo XIX a ciecircncia da Histoacuteria foi fundada procurou-se sob o

influxo do positivismo estabelecer um maior rigor na investigaccedilatildeo das fontes e dos

documentos e desse modo opor-se ldquoagrave livre invenccedilatildeo romanescardquo (FREITAS 1986

p2) Assim os historiadores modernos sob o impulso da obra historiograacutefica de Ranke

(1795-1886) considerado o pai da historiografia cientiacutefica elegeram dos antigos aquele

historiador que melhor representasse esta praacutexis do historiador Tuciacutedides63 No entanto

alguns estudiosos modernos procuraram revisitar estas ideias positivistas para tornar a

ciecircncia da histoacuteria mais proacutexima da arte uma vez que ldquo[] o historiador tendo que

formar concepccedilotildees a partir de indiacutecios potildee muito de si mesmo em seu discursordquo

(FREITAS 1986 p2)

O huacutengaro Geog Lukaacutecs um dos mais importantes teorizadores do romance no

seacuteculo XX foi pioneiro na teorizaccedilatildeo do ldquoromance histoacutericordquo Em sua obra Le roman

historique (2000) afirma que o romance histoacuterico nasce no iniacutecio do seacuteculo XIX com a

obra de Walter Scott Antes jaacute encontraacutevamos romances com temas histoacutericos (seacutec

XVII e XVIII) que podem ser considerados como antecedentes do romance histoacuterico

Contudo estas obras satildeo histoacutericas apenas pela escolha de temas e costumes pois neste

passado representado natildeo somente a psicologia das personagens mas tambeacutem os meios

sociais pintados satildeo inteiramente aqueles do tempo do proacuteprio escritor Nestas obras

importa apenas o caraacuteter curioso e exoacutetico do ambiente pintado e natildeo a reproduccedilatildeo

histoacuterica fiel de uma era historicamente concreta Conforme Lukaacutecs

63 ldquo[Tuciacutedides] introduziu poreacutem uma nota de austeridade que se tornou parte do caraacuteter (senatildeo da praacutexis) dos historiadores []rdquo (MOMIGLIANO 1998 p187)

52

O que falta ao pretendido romance histoacuterico anterior a Walter Scott eacute justamente aquilo que eacute especificamente histoacuterico o fato de que a particularidade das personagens deriva da especificidade histoacuterica do tempo deles [] A questatildeo da verdade histoacuterica na representaccedilatildeo artiacutestica da realidade se situa muito aleacutem do horizonte destes escritores64 (LUKAacuteCS 2000 p17)

Para Lukaacutecs o romance de Walter Scott estabelece pela primeira vez uma

relaccedilatildeo entre passado e presente em uma perspectiva em que o presente eacute fruto do

passado Nos romances anteriores a Walter Scott esta perspectiva estaacute ausente A partir

disso Lukaacutecs estabelece algumas caracteriacutesticas ndash como por exemplo a presenccedila do

heroacutei mediano ou a representaccedilatildeo de um microcosmo que reflete a totalidade histoacuterica ndash

que formaria a estrutura do romance histoacuterico nascido a partir de Walter Scott

Entretanto Jacques Le Goff (1972) com uma percepccedilatildeo mais ampla avalia que estatildeo

presentes em muitas narrativas da Idade Meacutedia as caracteriacutesticas que Lukaacutecs (2000)

classifica como proacuteprias do romance moderno de Scott Novamente entramos no

problema terminoloacutegico do romance uma vez que Lukaacutecs (2000) natildeo vecirc essas

narrativas anteriores como romance por faltarem a elas o conflito interno entre o homem

e a sociedade Poreacutem a anaacutelise de Le Goff (1972) demonstra que do ponto de vista da

forma os elementos essenciais do gecircnero natildeo surgem ex nihilo com o gecircnero pronto

mais se desenvolvem por um longo periacuteodo ateacute que finalmente encontrem o solo

propiacutecio para se afirmar

Entretanto os romances contemporacircneos de temaacutetica histoacuterica que Linda

Hutcheon (1991) denomina de meta-ficccedilatildeo historiograacutefica apresentam novas

caracteriacutesticas inclusive substituindo os heroacuteis medianos por heroacuteis histoacutericos ldquo[] que

instalam e depois indefinem a linha de separaccedilatildeo entre a ficccedilatildeo e a histoacuteria []rdquo (1991

p150) Desse modo as caracteriacutesticas que Lukaacutecs classifica como determinantes para o

romance histoacuterico satildeo na verdade determinantes para um tipo de ficccedilatildeo histoacuterica o

romance histoacuterico do seacuteculo XIX mas natildeo resolvem toda a problemaacutetica do romance

histoacuterico ou da ficccedilatildeo histoacuterica

Outro ponto essencial da teoria lukaacutecseana sobre a relaccedilatildeo do romance moderno

com a Histoacuteria eacute o fato de o romance moderno desenvolver sua forma realista a partir

64 Na traduccedilatildeo francesa Ce qui manque au preacutetendu roman historique avant Walter Scott crsquoest justement ce qui est speacutecifiquement historique le fait que la particulariteacute des personnages derive de la speacutecificiteacute historique de leur temps [] La question de la veriteacute historique dans la reproduction artistique de la reacutealite se situe encore au-delaacute de son horizon (LUKAacuteCS 2000 p17)

53

da representaccedilatildeo da histoacuteria contemporacircnea como mateacuteria narrativa A interpretaccedilatildeo que

Lukaacutecs faz da obra de Balzac justamente revela a busca incessante do romancista

francecircs em fazer de sua obra uma ldquohistoacuteriardquo da Franccedila poacutes-revolucionaacuteria O romance

moderno ao se formalizar realista infiltra em sua mateacuteria ficcional a representaccedilatildeo de

aspectos histoacutericos ideoloacutegicos e sociais

No final do seacuteculo XX Paul Veyne65 (1982) aproxima o discurso histoacuterico do

discurso ficcional ao se opor agrave ideia de que a histoacuteria seja uma ciecircncia objetiva Para

Veyne retomando a problemaacutetica lanccedilada por Hegel a histoacuteria eacute uma narrativa de

eventos selecionados e organizados em vista de um determinado fim de acordo com a

subjetividade e idelogia de um sujeito histoacuterico Assim a objetividade do texto histoacuterico

deve-se a procedimentos de escritura a toacutepos e iacutendices do gecircnero tanto quanto a

estilizaccedilatildeo realista do texto literaacuterio O autor do discurso historiograacutefico eacute portanto um

criador de simulacros como o poeta manejando seu material a fim de que a sua verdade

seja comunicada A imagem de verdade que eacute lanccedilada pela representaccedilatildeo histoacuterica eacute

apenas uma ilusatildeo linguiacutestica e literaacuteria criada por procedimentos estiliacutesticos Agrave medida

que se fortalecia enquanto gecircnero discursivo a tradiccedilatildeo historiograacutegfica desenvolveu

determinadas regras de escritura que natildeo soacute criam a ilusatildeo de verdade mas tambeacutem

tornam o texto reconheciacutevel como historiograacutefico para o puacuteblico

Roland Barthes66 (1988) se questiona se eacute legiacutetimo opor do ponto de vista

estrutural da linguagem a narrativa ficcional agrave narrativa histoacuterica discutindo

justamenteo os iacutendices linguiacutesticos Para Barthes a anaacutelise do discurso e de suas

unidades constitutivas poderaacute ldquo[] problematizar a claacutessica oposiccedilatildeo natildeo soacute dos gecircneros

literaacuterios como tambeacutem aquela que se faz entre o texto literaacuterio e o texto histoacuterico []rdquo

(GOBBI 2004 p54) O fato histoacuterico eacute um produto de significaccedilatildeo do discurso desse

modo assemelhando-se com o fato literaacuterio A questatildeo central eacute que Barthes nega a

referencialidade ao mundo como toacutepico de anaacutelise e estabelece que por meio da anaacutelise

linguiacutestica os gecircneros histoacuteriograacutefico e romanesco aproximam-se como construccedilatildeo da

linguagem Conforme Josipovic (1971 p148 apud HUTCHEON 1991 p143) a

anaacutelise dos iacutendices linguiacutesticos utilizados pelos historiadores e pelos primeiros

romancistas modernos demonstra que ambos pareciam fingir que a sua obra natildeo era

65 A primeira publicaccedilatildeo do livro Comment on eacutecrit lhistoire essai deacutepisteacutemologie de Paul Veyne eacute de 1970 Utilizamos a traduccedilatildeo de Alda Baltar e Maria A Kneipp de 1982 66 A primeira ediccedilatildeo da obra Le bruissement de la langue de Barthes (1984) Utilizamos a traduccedilatildeo de Mario Laranjeira de 1988

54

criada mas que existia no tempo e se apresentava agrave narraccedilatildeo Esta praacutetica foi

fundamental para a afirmaccedilatildeo da mimese realista do romance moderno

Neste breve percurso em que historiamos as discussotildees sobre a relaccedilatildeo entre

literatura e histoacuteria podemos observar que as distinccedilotildees entre estes gecircneros discursivos

nunca foram claramente definidas Mesmo Aristoacuteteles e Hegel que se esforccedilaram para

separaacute-los apresentam em seus discursos elementos que os aproximam ndash Aristoacuteteles ao

tomar a temaacutetica histoacuterica como poeacutetica Hegel ao compreender que a Histoacuteria eacute criada

por um sujeito que organiza as informaccedilotildees Jaacute Ciacutecero na Antiguidade e Barthes e

Veyne na Modernidade preocupados mais com questotildees de escrita dos gecircneros do que

com o referente entendem histoacuteria e literatura como fenocircmenos do discurso literaacuterio

Por fim para Lukaacutecs (2000) o romancista moderno trabalha como um historiador

observando as tendecircncias sociais e ideoloacutegicas seja do seu tempo seja do tempo

passado e desse modo a representaccedilatildeo histoacuterica no romance eacute essencial para o

desenvolvimento e afirmaccedilatildeo da forma realista do romance moderno

Levantamos estas questotildees inicialmente porque a dificuldade em se estabelecer

os limites entre estes dois gecircneros talvez tambeacutem explique a contiacutenua eterna e muacutetua

atraccedilatildeo que eles sempre demonstraram incluindo a relaccedilatildeo de imitaccedilatildeo que os

romancistas gregos estabeleceram com os historiadores claacutessicos

Para Brandatildeo (2005) o narrador do romance grego se apresenta em conexatildeo

com algumas estrateacutegias discursivas estabelecidas pelos historiadores gregos tais como

a presenccedila de um narrador em terceira pessoa que objetiva a narraccedilatildeo e de algum modo

se oculta no narrado Aleacutem disso as foacutermulas de enquadramento presentes nos

proecircmios e eventualmente tambeacutem nos epiacutelogos criam a impressatildeo de que os romances

teriam derivados da historiografia (BRANDAtildeO 2005 p110)

Em nossa opiniatildeo os romancistas encontraram na historiografia um espelho

onde poderiam experimentar novas formulaccedilotildees narrativas e ainda assim aparentarem

por meio de estrateacutegias da historiografia verossimilhanccedila Para Salvatore DrsquoOnofrio

toda a narrativa ficcional procura ser criacutevel verossiacutemil e ldquo[] mesmo quando [a prosa]

adentrou o territoacuterio da poesia [a ficccedilatildeo] procurou salvaguardar este seu estigma inicial

ter uma aparecircncia de veracidaderdquo (DrsquoONOFRIO 1976 p12) O estudo portanto de

como a ficccedilatildeo se infiltra no discurso historiograacutefico (em sentido lato) eacute a nosso ver

fundamental para a compreensatildeo da histoacuteria do discurso ficcional em prosa O romance

histoacuterico como o entende Lukaacutecs (2000) eacute uma das formas da complexa relaccedilatildeo entre

55

ficccedilatildeo e histoacuteria mas esta estaacute na base do proacuteprio desenvolvimento ficcional E mais na

Antiguidade a infiltraccedilatildeo da ficccedilatildeo se daacute em maior medida no gecircnero biograacutefico que

aborda um tema que tambeacutem eacute um tema historiograacutefico do passado Portanto na

anaacutelise das obras biograacuteficas principalmente do romance biograacutefico poderemos

compreender importantes aspectos da evoluccedilatildeo da prosa ficcional no Ocidente

Quando os textos ficcionais se apropriam da temaacutetica histoacuterica a relaccedilatildeo da

literatura com a historiografia pode ser vista de trecircs modos (1) haacute ficccedilotildees literaacuterias que

aludem a situaccedilotildees histoacutericas geralmente com o fito de criar certo efeito do real (2) haacute

obras que apenas situam sua intriga em um determinado contexto soacutecio-histoacuterico e (3)

haacute romances que transformam em sua mateacuteria o universo histoacuterico como parte

integrante de sua estrutura fazendo da realidade histoacuterica uma realidade esteacutetica

(GOBBI 2004 p38) Procuraremos a partir desta classificaccedilatildeo determinar que tipo de

relaccedilatildeo com a histoacuteria a Ciropedia cria por meio da ficccedilatildeo

32 Ciro na histoacuteria e na ficccedilatildeo

O tema da Ciropedia eacute a vida de uma personagem histoacuterica Ciro fundador do

impeacuterio persa A vida puacuteblica da personagem seus feitos poliacuteticos e militares eacute

combinada com cenas da vida particular em especial a sua infacircncia Por exemplo

participaccedilatildeo em banquetes experiecircncias de caccedila relacionamento com outras crianccedilas

Desse modo podemos afirmar que o tema da Ciropedia enquadra na definiccedilatildeo de

gecircnero biograacutefico e portanto as relaccedilotildees entre os dados histoacutericos e a ficccedilatildeo satildeo muito

fluidas e de difiacutecil determinaccedilatildeo No entanto uma vez que Xenofonte combina

narrativas ficcionais com narrativa histoacuterica necessitamos responder as questotildees a-)

por que Xenofonte se utiliza desse material histoacuterico ao inveacutes de construir uma obra

totalmente ficcional uma vez que eacute evidente o caraacuteter ficcional e idealista da obra b-)

como ele utiliza esse material conhecido de seus leitores

Sabemos que na eacutepoca em que Xenofonte escreveu sua obra a vida de Ciro jaacute

havia sido tema de vaacuterias obras de outros escritores e que estas provavelmente lhe

serviram de fonte para a obra Segundo Sansalvador (1987 p22) eacute seguro que a figura

de Ciro tenha sido tratada nos Peacutersica dos logoacutegrafos antigos como Caratildeo de

56

Laacutempsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico ndash todas perdidas Uma obra perdida da qual

conhecemos apenas o tiacutetulo e que parece ter tido grande influecircncia na Ciropedia foi a

obra Ciro do filoacutesofo ciacutenico Antiacutestenes Nesta obra em forma de diaacutelogo socraacutetico o

filoacutesofo Antiacutestenes apresentava Ciro como modelo da exaltaccedilatildeo do esforccedilo (πόνος

ponos)

Cteacutesias de Cnido foi meacutedico do rei persa Artarxerxes II67 (404-3987 aC) e

autor de uma histoacuteria da Peacutersia Peacutersica em vinte e trecircs livros dos quais nos restaram

apenas escassos fragmentos Holzberg (2003 p629) observa que Diodoro de Siculo nos

daacute um sumaacuterio dos livros 1-6 que trata da histoacuteria do Impeacuterio Assiacuterio e Medo desde

Nino ateacute Astiacuteages enquanto Foacutecio resume os livros de 7-23 no qual Cteacutesias narra a

histoacuteria da Peacutersia de Ciro ateacute Artarxerxes II Segundo Holzberg (2003 p629) um

fragmento da obra (POxy2330) conteacutem um relato amoroso que tanto pelo estilo

quanto pelo motivo se assemelha agrave estrutura dos romances gregos Gera (1993 p201)

observa semelhanccedilas neste relato amoroso com a narrativa de Panteacuteia escrita por

Xenofonte Por fim o livro primeiro das Histoacuterias de Heroacutedoto tambeacutem traz a narrativa

a respeito da vida de Ciro Segundo Heroacutedoto a narrativa que ele nos apresenta era uma

das trecircs versotildees sobre a vida de Ciro que ele tinha conhecimento

Aleacutem disso ao ter viajado agrave Peacutersia Xenofonte deve ter entrado em contato com

inuacutemeras tradiccedilotildees orais seja diretamente referindo-se a Ciro seja referindo-se a

tradiccedilatildeo persa Em todo caso estamos limitados neste campo pois seria difiacutecil

reconhecer quais elementos da tradiccedilatildeo oral persa foi aproveitado por Xenofonte

Destas obras a uacutenica que nos chegou in extenso eacute a de Heroacutedoto o que natildeo soacute

delimita a nossa anaacutelise do uso do material histoacuterico por Xenofonte como tambeacutem

torna necessaacuteria a anaacutelise comparativa das duas obras Para nossa anaacutelise seguiremos o

modelo proposto por Maria Teresa de Freitas (1986) em Literatura e Histoacuteria em que a

autora propotildee a confrontaccedilatildeo do texto literaacuterio com documentos histoacutericos que

permitam verificar a fidelidade ou manipulaccedilatildeo destes dados pelo escritor A partir

desta anaacutelise identificaremos que tipo de manipulaccedilatildeo o texto ficcional efetuou no texto

de autoridade do discurso histoacuterico Justificamos ainda nossa anaacutelise pelo conceito de

intertextualidade pois uma vez que natildeo podemos nos certificar do material das outras

fontes sobre a vida de Ciro que Xenofonte poderia ter usado as alusotildees ao texto de

67 Esta informaccedilatildeo nos eacute dada pelo proacuteprio Xenofonte na Anaacutebase I

57

Heroacutedoto sugerem que Xenofonte nas passagens indicadas natildeo usou outra fonte mas

ficcionalizou conscientemente o material narrado por Heroacutedoto

321 O λόγος de Ciro na Histoacuteria de Heroacutedoto

Nesta seccedilatildeo apresentaremos brevemente de que forma a narrativa sobre Ciro

estaacute inserida na obra de Heroacutedoto para delimitarmos os momentos da narrativa que

faratildeo parte de nossa anaacutelise

Na obra de Heroacutedoto a narrativa de Ciro estaacute inserida na segunda parte do livro

I (1 95-216) motivada pela participaccedilatildeo da personagem Ciro no episoacutedio de Creso rei

liacutedio Segundo os professores Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria de Faacutetima Silva (2002

p22) a histoacuteria dos monarcas em Heroacutedoto apoacuteia-se no ldquo[] princiacutepio da ascensatildeo e

queda do chefe de um povo que tem por traacutes a ideia da instabilidade da fortuna e da

fragilidade da natureza humanardquo A focalizaccedilatildeo de Heroacutedoto nesta narrativa natildeo visa agrave

anaacutelise da personalidade de Ciro mas prioritariamente a tomaacute-la ldquo[] como paradigma

com funccedilotildees determinadas no conjunto da narrativardquo (FERREIRA SILVA 2002

p38) Assim compreendida pelo seu caraacuteter paradigmaacutetico esta narrativa se estrutura

pelos temas da ascensatildeo e queda do monarca fruto da sua ὕβρις (hybris) a sua

desmedia

A comparaccedilatildeo entre as narrativas de Xenofonte e de Heroacutedoto natildeo eacute uma ideia

nova jaacute tendo sido realizada por vaacuterios estudiosos (DUE 1989 p117) No entanto

nossa comparaccedilatildeo procuraraacute responder novas questotildees a respeito da ficcionalizaccedilatildeo da

histoacuteria na Ciropedia justificando por isso nosso empreendimento Outras anaacutelises

comparativas tendem a estabelecer as diferenccedilas entre as narrativas e o resultado

alcanccedilado na narrativa xenofonteana mediante estas diferenccedilas poreacutem em geral natildeo

elucidam a praacutetica intertextual de Xenofonte Aleacutem disso demonstraremos que a

ficcionalizaccedilatildeo na Ciropedia eacute construiacuteda a partir do texto de autoridade de Heroacutedoto

confundindo histoacuteria e ficccedilatildeo

A leitura das obras nos mostra que satildeo vaacuterios os momentos do ponto de vista

histoacuterico em que elas se diferenciam e que poderiam fazer parte desta anaacutelise Poreacutem

nos centraremos nas cenas em que a narrativa de Heroacutedoto ecoe na narrativa de

Xenofonte porque nestas cenas nos parece que Xenofonte natildeo se utilizou de outra

fonte na construccedilatildeo da Ciropedia mas ficcionalizou a narrativa de Heroacutedoto

58

Como observa Dioniacutesio de Halicarnaso em seu tratado Sobre a Imitaccedilatildeo (2005)

de que hoje conhecemos apenas alguns fragmentos a imitaccedilatildeo de um autor por outro

deve possuir elementos que resultem claros e perceptiacuteveis ao seu puacuteblico Genette

(1982) estabelece que a intertextualidade eacute uma relaccedilatildeo de copresenccedila entre dois ou

mais textos e das formas de intertextualidade estabelecidas pelo criacutetico francecircs a que

melhor se enquadra para nosso estudo eacute a alusatildeo ou seja ldquo[] um enunciado cuja

plena inteligecircncia supotildee a percepccedilatildeo de uma relaccedilatildeo entre ele e um outro []rdquo68

(GENETTE 1982 p8) Desse modo focalizaremos nossa anaacutelise nas seguintes

passagens por que nelas sentimos a presenccedila de Heroacutedoto a-) a origem e infacircncia de

Ciro b-) a tomada de Sardes (a cena de Creso) e c-) a morte de Ciro

322 Origem e infacircncia de Ciro

Analisaremos primeiramente as diferenccedilas com que Heroacutedoto e Xenofonte

trabalham o tema da origem e da infacircncia de Ciro Segundo Due (1989 p118) a

narrativa de Heroacutedoto apresenta vaacuterios elementos provenientes das lendas populares

Desse modo a biografia do fundador do Impeacuterio da Peacutersia estaacute repleta de pressaacutegios

sobrenaturais sonhos oacutedio e horror A descriccedilatildeo da origem e da infacircncia de Ciro69

(Histoacuterias 1107 1) se inicia a partir de um sonho de Astiacuteages rei da Meacutedia Heroacutedoto

natildeo nos descreve o conteuacutedo deste sonho poreacutem avisa que os inteacuterpretes deixaram o rei

atormentado com o seu significado Para que a previsatildeo natildeo se realizasse Astiacuteages casa

sua filha Mandane com Cambises um persa socialmente inferior No entanto apoacutes o

casamento um novo sonho atormenta o rei meda revelando que seu neto o destronaria

Quando a crianccedila nasce Astiacuteages para se precaver ordena a Haacuterpago

(Histoacuterias 1108 4) ndash um parente em quem depositava a maior confianccedila ndash que matasse

a crianccedila Haacuterpago aparentemente aceita poreacutem na realidade ele refuta a ordem do rei

ldquo[] em parte por sentimentos familiares em parte por caacutelculo poliacutetico []rdquo (DUE

1989 p119) Haacuterpago reflete dessa maneira

68 No original [] crsquoeacutest-agrave-dire drsquoun eacutenonceacute dont la pleine intelligence suppose la perception drsquoun rapport entre lui et un autre (GENETTE 1982 p8) 69 Como jaacute nos referimos a narrativa de Ciro estaacute subordinada agrave narrativa de Creso Assim a sucessatildeo de eventos natildeo eacute descrito por ordem cronoloacutegica A infacircncia e carreira militar de Ciro (Histoacuterias 1 96-297) satildeo narradas apoacutes a conquista de Sardes e sua vitoacuteria sobre Creso (Histoacuterias 1 46-91)

59

Natildeo vou cumprir as ordens de Astiacuteages respondeu Mesmo que ele estivesse transtornado e delirasse mais do que agora delira natildeo era eu que ia apoiar as suas decisotildees nem colaborar com semelhante crime Sobram-me razotildees para natildeo matar a crianccedila primeiro porque eacute do meu sangue depois porque Astiacuteages estaacute velho e natildeo tem descendente varatildeo (Histoacuterias 1109 2)70

Decide entatildeo levar a crianccedila a um pastor para que ele a expusesse em uma

montanha selvagem onde as feras a matariam No entanto ldquopor divina vontaderdquo

(Histoacuterias 1111 1) a mulher deste pastor chamada Cino acabara de dar a luz a uma

crianccedila morta Os pastores trocaram as crianccedilas e criaram Ciro como se fosse filho

deles O nascimento de Ciro tal qual nos narra Heroacutedoto eacute composto de significativos

elementos dos mitos heroicos Assim como Eacutedipo e Paacuteris por exemplo por causa de

um oraacuteculo devastador Ciro eacute extirpado do seio familiar Astiacuteages como Laio e

Priacuteamo crentes de que com sua accedilatildeo estariam fugindo da realizaccedilatildeo do oraacuteculo estatildeo

na verdade construindo a teia necessaacuteria para que a prediccedilatildeo seja realizada

Ao completar dez anos Ciro em uma brincadeira com outras crianccedilas revelou a

sua verdadeira identidade Na brincadeira o menino Ciro ldquoa quem chamavam filho do

boieiro foi escolhido reirdquo (Histoacuterias 11092) por isso ele distribuiu aos outros meninos

diversas tarefas e funccedilotildees Como uma das crianccedilas lhe desobedecera Ciro o prendeu e o

chicoteou Por causa disso foi levado ao rei A simples presenccedila dele fez com que

Astiacuteages comeccedilasse a desconfiar da verdadeira identidade do ldquofilho do boieirordquo

(Histoacuterias 11141)

Agrave medida que o rapaz falava apoderava-se de Astiacuteages a suspeita de quem ele era Os traccedilos fisionocircmicos de Ciro faziam-lhe lembrar os seus A sua resposta parecia-lhe mais proacutepria de um homem livre e a idade compatiacutevel com a data da exposiccedilatildeo (Histoacuterias 11161-2)

A suspeita de Astiacuteages leva-o a interrogar primeiramente o pastor em seguida

Haacuterpago e estes dois lhe confirmam que aquele menino eacute seu neto A desobediecircncia de

Haacuterpago enfurece o rei Astiacuteages que para castigaacute-lo serve-lhe de jantar o seu proacuteprio

filho que Haacuterpago come satisfeito O castigo tambeacutem eacute inspirado nos mitos por

exemplo de Atreu e Tiestes em que ao pai satildeo servidas as carnes do filho71 Quanto a

70 A traduccedilatildeo das Histoacuterias de Heroacutedoto utilizada neste trabalho eacute a de Joseacute Ribeira Ferreira e de Maria de Faacutetima Souza e Silva (1994) 71 Este castigo haveria de prover a consumaccedilatildeo do oraacuteculo pois Haacuterpago desejando vinganccedila instiga Ciro a rebelar-se contra o avocirc

60

Astiacuteages apoacutes nova consulta aos Magos decide entregar Ciro ao seu verdadeiro lar na

Peacutersia A partir desse momento haacute um salto temporal da narrativa e em sua proacutexima

participaccedilatildeo Ciro jaacute eacute adulto (11231-1303) Ciro eacute instigado por Haacuterpago que

desejava vingar-se de Astiacuteages a destituir este do trono e a dominar a Meacutedia Com seu

exeacutercito persa apesar da sua juventude Ciro derrota Astiacuteages e toma-o como

prisioneiro Poreacutem Ciro natildeo castiga o avocirc com crueldade mas apenas o manteacutem ao seu

lado ldquo[] ateacute a morte sem lhe fazer nenhum mal Esta eacute a histoacuteria do nascimento e

criaccedilatildeo de Ciro e da sua ascensatildeo ao poderrdquo (Histoacuterias 1130 3) Assim termina em

Heroacutedoto a primeira fase da vida de Ciro

A narrativa apresentada por Heroacutedoto conteacutem alguns elementos importantes na

comparaccedilatildeo com a Ciropedia o retrato de Astiacuteages eacute pintado como o de um deacutespota

um tirano destemperado que pela ambiccedilatildeo do poder eacute cruel com todos aqueles que estatildeo

subordinados ao seu poder poliacutetico independente de laccedilos de parentescos Esse retrato eacute

bem diferente do Astiacuteages apresentado por Xenofonte na Ciropedia cuja conduta

harmoniosa com seus parentes eacute revelada em todas as suas apariccedilotildees na narrativa Em

verdade noacutes encontramos em Xenofonte a construccedilatildeo de uma famiacutelia harmoniosa e

paciacutefica com quase nenhum traccedilo de conflito72 (DUE 1989 p120) Aleacutem disso natildeo haacute

na Ciropedia referecircncia a sonhos ou pressaacuterios que desencadeassem algum conflito

familiar Neste sentido podemos concluir que o autor da Ciropedia tomou o cuidado de

ao compor a sua obra eliminar de sua narrativa todos os vestiacutegios da narrativa de

Heroacutedoto que contrastariam com a imagem harmoniosa da famiacutelia real meda Deste

modo tanto a inferioridade social do pai de Ciro quanto seu afastamento da casa

paterna por ordem de Astiacuteages e ateacute a rebeliatildeo de Ciro contra seu avocirc satildeo manipulados

na narrativa de Xenofonte Ele tambeacutem omite todas as caracteriacutesticas da lenda e do mito

heroico ldquo[] porque seu objetivo eacute antes poliacutetico do que histoacuterico ou traacutegicordquo73

(TATUM 1989 p101)

O Ciro da Ciropedia eacute filho de Mandane com Cambises mas este natildeo eacute qualquer

persa eacute o rei da Peacutersia E a famiacutelia real descende da figura mitoloacutegica Perseu (Cirop

I21) Segundo Momigliano (1993) a preocupaccedilatildeo com a linhagem eacute uma caracteriacutestica

da aristocracia grega e estaacute presente nas narrativas gregas desde Homero Desse modo

Ciro eacute produto das aristocracias da Meacutedia e da Peacutersia A partir destas informaccedilotildees o

72 O uacutenico conflito familiar presente na Ciropedia se daacute pela participaccedilatildeo de Ciaxares tio de Ciro que invejava as capacidades intelectuais e militares do sobrinho 73 No original [] because his aim is political rather than historical or tragic (TATUM 1989 p101)

61

narrador natildeo nos informa nada a respeito de Ciro ateacute ele completar doze anos quando

sua matildee resolve fazer uma viagem agrave Meacutedia para visitar seu pai Astiacuteages o avocirc de Ciro

Eacute interessante que o narrador comeccedila a apresentaccedilatildeo de sua narrativa justamente

no momento em que Heroacutedoto faz um salto temporal em sua histoacuteria Heroacutedoto nos fala

do nascimento de Ciro e o encontramos novamente quando ele completa dez anos apoacutes

isso haacute um lapso temporal e o encontramos pela terceira vez jaacute um homem adulto e se

rebelando contra o avocirc A narrativa de Xenofonte entretanto comeccedila quando Ciro tem

doze anos ou seja Xenofonte se aproveita das arestas temporais deixadas pela narrativa

de Heroacutedoto para construir a sua proacutepria histoacuteria Podemos desse modo assumir que a

ficccedilatildeo se apodera do vaacutecuo deixado pelos dados histoacutericos Como afirma Freitas

[] a ficccedilatildeo se apodera agraves vezes da Histoacuteria com fins especificamente literaacuterios elementos romanescos se interpotildeem aos elementos histoacutericos a histoacuteria se confunde com a Histoacuteria eacute o que chamaremos aqui de invasatildeo da Histoacuteria pela ficccedilatildeo (FREITAS 1986 p43)

Todo o primeiro livro da Ciropedia eacute composto de cenas que se aproveitam

deste lapso temporal deixado por Heroacutedoto Nestas cenas da Ciropedia Ciro permanece

na Meacutedia ateacute a idade de dezesseis anos quando seu pai ordena que ele retorne agrave Peacutersia

para concluir sua educaccedilatildeo Durante este periacuteodo satildeo descritos banquetes diaacutelogos com

seu avocirc diaacutelogos com seus amigos experiecircncias de caccedila de Ciro sua primeira

participaccedilatildeo em uma campanha militar e ateacute a narrativa amorosa de um persa

apaixonado por Ciro O que percebemos eacute que satildeo narrativas da vida particular do heroacutei

da Ciropedia Desse modo como jaacute ressaltamos em conformidade com Momigliano

(1993) satildeo temas cujo acesso a dados satildeo mais complicados e portanto mais propiacutecios

a serem imaginados

Vamos analisar mais de perto a narrativa da experiecircncia de caccedila de Ciro na

Ciropedia O importante desta narrativa para nosso estudo comparativo eacute que nela haacute o

tema do reconhecimento das qualidades inatas da natureza φύσις (physis) de Ciro O

tema do reconhecimento tambeacutem aparece em Heroacutedoto e surge nas Histoacuterias por meio

de uma brincadeira Sobre o reconhecimento de Ciro em Heroacutedoto afirmam Ferreira e

Silva (2002 p40)

Se eacute romanesca dentro de uma velha tradiccedilatildeo a origem do futuro monarca persa abandonado e miraculosamente salvo o reconhecimento de Ciro dez anos depois daacute-se por um processo que se deseja racional Natildeo eacute de qualquer sinal ou objeto conservado dos primeiros anos de vida que depende mas inteiramente da aparecircncia

62

fiacutesica e das primeiras manifestaccedilotildees de determinaccedilatildeo e autoridade que eacute dotada esta jovem natureza real

Na Ciropedia (I 47-15) Ciro ao conseguir permissatildeo do avocirc para caccedilar fora

dos muros do jardim do palaacutecio parte com uma comitiva em sua primeira experiecircncia

de caccedila Os mais velhos que o acompanhavam iam lhe dando valiosos ensinamentos

mas bastava Ciro ver um cervo ldquo[] esquecendo-se de todas as coisas que ouvira

perseguia-o e nenhuma outra coisa via aleacutem do para onde o cervo fugia []rdquo74 Os

acompanhantes ralhavam pelo seu ousado e perigoso comportamento poreacutem Ciro ao

ouvir um grito ldquo[] salta sobre o cavalo como possuiacutedo pelo ecircxtase e quando viu agrave sua

frente um javali vindo ao encontro lanccedila-se diretamente e entesando a lanccedila

diretamente agrave testa e domina o javali75rdquo Ciro portanto mostra-se corajoso e habilidoso

na arte da caccedila ainda que imprudente76 sendo dominado pela sua paixatildeo desmedida

em seguida em Cirop I416-24 Ciro participa de sua primeira batalha Nela seu

comportamento na caccedila se repete confirmando o que o narrador jaacute dissera antes ldquoDe

modo que natildeo eacute faacutecil encontrar algo que acontecendo na guerra falte agrave caccedilardquo77 (Cirop

I210) Assim como desobedecera aos guardas na caccedila extasiado pela coragem

tambeacutem desobedece ao avocirc Astiacuteages primeiro indo ao campo de batalha em seguida

tomando a dianteira dos cavaleiros

Como um catildeo de boa raccedila mas inexperiente imprudentemente vai de encontro ao javali assim tambeacutem Ciro arremetia apenas tentando golpear quem ele alcanccedilasse natildeo se precavendo de nenhuma outra coisa78 (I 421)

Portanto Ciro em suas primeiras experiecircncias puacuteblicas de guerreiro ndash a de caccedila e

a de batalha ndash demonstra suas qualidades inatas para a guerra No entanto pela

juventude e inexperiecircncia lhe faltam ainda determinados ensinamentos principalmente

74 No Original πάντων ἐπιλαθόμενος ὧν ἤκουσεν ἐδίωκεν οὐδὲν ἄλλο ὁρῶν ἢ ὅπῃ ἔφευγε

(CiropI48) 75 No original [hellip] ἀνεπήδησεν ἐπὶ τὸν ἵππον ὥσπερ ἐνθουσιῶν καὶ ὡς εἶδεν ἐκ τοῦ ἀντίου

κάπρον προσφερόμενον ἀντίος ἐλαύνει καὶ διατεινάμενος εὐστόχως βάλλει εἰς τὸ

μέτωπον καὶ κατέσχε τὸν κάπρον (Cirop 148) 76 Sobre o valor educacional desta cena falaremos no capiacutetulo 4 deste trabalho 77 No original ὥστε οὐ ῥᾴδιον εὑρεῖν τί ἐν τῇ θήρᾳ ἄπεστι τῶν ἐν πολέμῳ παρόντων

(Cirop1210) 78 No original ὥσπερ δὲ κύων γενναῖος ἄπειρος ἀπρονοήτως φέρεται πρὸς κάπρον οὕτω καὶ

ὁ Κῦρος ἐφέρετο μόνον ὁρῶν τὸ παίειν τὸν ἁλισκόμενον ἄλλο δ᾽ οὐδὲν προνοῶν

(Cirop1421)

63

de autocontrole diante de suas paixotildees O Ciro de Xenofonte natildeo eacute um homem formado

em corpo de uma crianccedila o Ciro de Heroacutedoto por sua vez jaacute eacute na infacircncia o rei capaz

de tomar as mesmas medidas que no futuro de fato tomaraacute O castigo que quando

crianccedila impotildee ao colega revela o mesmo temperamento despoacutetico do avocirc o mesmo

despotismo que ele revelaraacute quando adulto79 A personagem de Xenofonte neste

sentido eacute mais complexa pois vai moldando seu modo de agir no mundo aprendendo

com as experiecircncias por que passa A infacircncia de Ciro em Xenofonte eacute uma narrativa

com traccedilos romanescos e didaacuteticos mas em nada ingecircnua que propiciaraacute a formaccedilatildeo do

Ciro adulto Quanto ao tema do reconhecimento da mesma forma que em Heroacutedoto

durante uma brincadeira Ciro eacute reconhecido como rei em Xenofonte durante uma caccedila

Ciro eacute reconhecido como heroacutei

Concluiacutemos reafirmando que Xenofonte molda a narrativa da infacircncia de Ciro a

partir das brechas deixadas pela narrativa de Heroacutedoto Segundo Freitas (1989 p43)

este tipo de procedimento dos narradores de ficccedilatildeo eacute chamado de ldquoinfraccedilatildeo do material

histoacutericordquo Aleacutem de moldar sua narrativa nas brechas da narrativa de Heroacutedoto

Xenofonte tambeacutem apaga dela o que seria incoerente com o tom idealizante de sua

narrativa Desse modo a manipulaccedilatildeo do material histoacuterico eacute organizada em virtude da

lei da necessidade e da verossimilhanccedila na representaccedilatildeo da evoluccedilatildeo do caraacuteter para

tornaacute-lo coerente com a idealizaccedilatildeo proposta por Xenofonte

Figura 1 Ciro na corte do rei Astiacuteages Nesta cena Ciro estaacute servindo vinho ao rei conforme a Ciropedia I3

Fonte Baldwin J Fifty famous stories retold by James Baldwin (2008)

79 A atitude que melhor exemplifica o despotismo de Ciro na narrativa de Heroacutedoto eacute o castigo que ele impotildee ao seu inimigo Creso a quem Ciro queria queimar vivo

64

323 A cena de Creso o encontro dos monarcas

Analisaremos nesta seccedilatildeo a Cena de Creso que corresponde ao primeiro

encontro entre os monarcas Ciro e Creso rei da Liacutedia Tanto na narrativa de Heroacutedoto

quanto na de Xenofonte o encontro acontece apoacutes a tomada da cidade de Sardes a

capital da Liacutedia descrita ldquo[] como a cidade mais opulenta da Aacutesia apoacutes a Babilocircniardquo

(Cirop 1965 p209) Deter-nos-emos nesta narrativa porque nela as noccedilotildees de Genette

(1982 p8) de intertextualidade e alusatildeo satildeo aplicadas com mais clareza

Primeiramente devemos lembrar que enquanto em Heroacutedoto eacute Ciro quem

aparece na narrativa dedicada a Creso (Histoacuterias 1731) em Xenofonte eacute Creso quem

aparece na narrativa de Ciro (Cirop VII29-14) Esta observaccedilatildeo ainda que agrave primeira

vista pareccedila demasiadamente simples ressalta o que chamamos de inversatildeo do ἔθος

(ethos) Isso significa que a mudanccedila de focalizaccedilatildeo80 de uma obra para a outra

influenciaraacute na caracterizaccedilatildeo eacutetica e psicoloacutegica das personagens e o tema da sabedoria

das personagens seraacute o eixo central dessa inversatildeo da focalizaccedilatildeo e estaraacute implicado em

toda Cena de Creso

3231 Preparativos

Antes no entanto de analisarmos o encontro dos monarcas eacute preciso recapitular

em que circunstacircncias o encontro ocorre Creso na Ciropedia eacute o maior aliado do rei

Assiacuterio em sua campanha contra a coalizatildeo medo-persa De fato Creso preenche a

funccedilatildeo de verdadeiro inimigo de Ciro na obra jaacute que nenhum outro dos seus inimigos

(nem o rei Assiacuterio nem seu filho nem o rei Armecircnio) concretiza pela figurativizaccedilatildeo81

accedilotildees no enredo que preencham a funccedilatildeo de oponente real de Ciro

Nas Histoacuterias ao contraacuterio a luta entre liacutedios e persas decorre da ambiccedilatildeo de

Creso Segundo Heroacutedoto dois anos apoacutes a morte de seu filho Aacutetis (Histoacuterias1351-

453) Creso fica alarmado ao ouvir falar da derrota de Astiacuteages por seu neto Ciro e

80 Cf Reis (2000 p159) ldquoA focalizaccedilatildeo pode ser definida como a representaccedilatildeo da informaccedilatildeo diegeacutetica que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciecircncia quer seja o de uma personagem da histoacuteria quer o do narrador heterodiegeacuteticordquo 81 Entendemos a figurativizaccedilatildeo como um componente semacircntico que por meio da ilusatildeo referencial evoca o mundo real Por meio dela as funccedilotildees da narrativa satildeo preenchidas ou concretizadas com accedilotildees que se encadeiam na constituiccedilatildeo da histoacuteria Cf Reis (2000 p158)

65

comeccedila a pensar em diminuir o poder dos persas antes que este aumente em demasia

Aleacutem disso Creso deseja vingar-se de Ciro porque Astiacuteages era seu cunhado casado

com sua irmatilde Tomado por este desejo Creso pergunta ao oraacuteculo de Delfos se deveria

ou natildeo atacar os persas O oraacuteculo responde-lhe que se Creso atacasse os persas um

grande impeacuterio seria destruiacutedo Isso motiva Creso a iniciar a batalha que culmina com a

invasatildeo pelos persas da capital da Liacutedia (Histoacuterias153) As diferenccedilas entre as duas

narrativas ateacute aqui satildeo de ordem da infraccedilatildeo dos dados histoacutericos A infraccedilatildeo segundo

Freitas (1986 p48) desloca deforma ou simplesmente negligencia os dados histoacutericos

na ficccedilatildeo Pode-se questionar se as oposiccedilotildees deste entrecho da narrativa natildeo poderiam

provir de outras fontes a que Xenofonte teria acesso como a Peacutersica de Cteacutesias ou

mesmo de alguma gesta persa No entanto a escassez de dados a respeito destas outras

fontes natildeo nos permite responder a esta questatildeo com absoluta seguranccedila

Podemos entatildeo conjeturar a hipoacutetese de que estas informaccedilotildees foram

manipuladas em funccedilatildeo tanto da coerecircncia da sequecircncia das accedilotildees da narrativa quanto

da manutenccedilatildeo da verossimilhanccedila entre as accedilotildees e o caraacuteter da personagem pois a

noccedilatildeo de justiccedila na Ciropedia eacute expressa de acordo com a foacutermula de que devemos

fazer bem aos amigos e mal aos inimigos Neste sentido o heroacutei da narrativa nunca

inicia uma guerra mas apenas se defende daqueles que o atacam Acima referimos que

nas Histoacuterias Creso inicia a guerra contra Ciro para se vingar deste porque Astiacuteages era

seu cunhado Neste caso Ciro havia cometido um ato injusto ao rebelar-se contra

Astiacuteages uma vez que este era seu avocirc Jaacute na Ciropedia se natildeo houvesse a agressatildeo de

Creso (membro da coalisatildeo Assiacuteria) a Ciro natildeo haveria a guerra contra a Liacutedia

Portanto a manipulaccedilatildeo de um dado histoacuterico por Xenofonte impeliu-o a manipular

toda uma sequecircncia da narrativa Todavia estas manipulaccedilotildees foram todas feitas com o

intuito de caracterizar a personagem com verossimilhanccedila em vista de idealizar o heroacutei

da narrativa e expressar o referido ideal de justiccedila Se Ciro iniciasse uma guerra contra

Creso a coerecircncia entre caraacuteter e accedilotildees natildeo seria obtida uma vez que romperia com a

ideia de justiccedila expressa na obra e a obra fracassaria como literatura pedagoacutegica O

caraacuteter da personagem condiz com suas accedilotildees e o veriacutedico ndash os dados histoacutericos ndash eacute

substituiacutedo pelo verossiacutemil (FREITAS 1986 p49)

Quanto agrave narrativa da tomada da cidade de Sardes Xenofonte apresenta uma

revisatildeo do texto de Heroacutedoto captando da narrativa de Heroacutedoto os elementos gerais e

suprimindo dela alguns detalhes Nos dois autores a tomada se daacute apoacutes uma primeira

66

vitoacuteria do exeacutercito persa na batalha de Pteacuteria82 que forccedila a fuga dos liacutedios agrave cidade de

Sardes Agrave testa da fuga estaacute Creso que se refugia em seu palaacutecio83

Due (1989 p123) mostra que em ambas as narrativas a tomada da cidade se daacute

escalando as muralhas da cidadela no entanto em Histoacuterias a invasatildeo ocorre por um

erro de Creso que natildeo fortificara uma parte da cidadela ldquo[] jaacute que natildeo era de temer que

alguma vez pudesse ser tomada por aquele lado []rdquo (Histoacuterias 184)84 na narrativa

xenofonteana a escalada eacute fruto de um estratagema de Ciro demonstrando com isso a

superioridade militar do liacuteder persa sobre seu inimigo Creso Pela primeira vez o eixo

da inversatildeo do ἔθος eacute revelado a sabedoria

Em seguida agrave invasatildeo Heroacutedoto conta que enquanto os persas saqueavam a rica

cidade um persa acerca-se de Creso no palaacutecio e natildeo o reconhecendo estava pronto

para mataacute-lo quando o filho de Creso que era mudo assustado deu um miraculoso

grito ldquoNatildeo mates Cresordquo (Histoacuterias 1854) O persa entatildeo aprisionou Creso Heroacutedoto

afirma ainda que Creso governou a Liacutedia por catorze anos e que suportou o saque da

cidade por catorze dias e com a sua queda pocircs-se fim a um grande Impeacuterio ndash o seu ndash

(Histoacuterias1861-2) cumprindo desse modo o vaticiacutenio do oraacuteculo de Delfos

Jaacute na Ciropedia apoacutes a tomada da cidade Creso trancado no palaacutecio convoca

Ciro para para primeira vez se encontrarem face a face No entanto Ciro envia um

grupo de guardas para vigiaacute-lo enquanto manteacutem a ordem na cidade impedindo que

seus soldados saqueiem Sardes Apoacutes controlar seus soldados85 Ciro parte ao encontro

de Creso

Concordamos com Tatum (1989 p152-153) de que haacute no gesto de Creso em

convocar Ciro um empreendimento calculado e ardiloso Mesmo derrotado Creso toma

uma atitude imperiosa convocando seu inimigo para ir ao seu encontro Poreacutem na

situaccedilatildeo de vencedor em que se encontra seria inverossiacutemil se Ciro obedecesse

prontamente ao seu inimigo derrotado por isso Ciro responde a Creso enviando

82 Histoacuterias 176 Cirop 71 83 Essa fuga de Creso para Heroacutedoto ocorre por um erro de julgamento do rei que pensou que jamais seria atacado em sua capital por Ciro jaacute Xenofonte mostra que na fuga de Creso estaacute representada a rendiccedilatildeo do monarca da Liacutedia rendiccedilatildeo que proporcionaraacute o encontro entre os dois 84 O feito em verdade eacute de Meles um mardo pois eacute ele que descobre este furo na proteccedilatildeo da cidadela Segundo Maria de Faacutetima (1994 nota 138 p114) a inexpugnabilidade da cidade de Sardes eacute lugar comum nas fontes 85 O tema do saque da cidade da Liacutedia estaacute presente em ambas as narrativas No entanto parece-nos que o saque em Heroacutedoto eacute um problema econocircmico Creso aconselha a Ciro de que a cidade agora eacute de Ciro e os soldados estatildeo saqueando as riquezas de Ciro Na Ciropedia o saque eacute um problema moral pois com esta conduta os piores soldados teratildeo iguais ou mais recompensas do que os melhores soldados contrariando a noccedilatildeo de justiccedila expressa na obra

67

soldados para vigiaacute-lo Aleacutem disso Ciro demora-se em assuntos aparentemente

menores como o saque agrave cidade Ciro coloca Creso em segundo plano abaixo de

qualquer outro assunto

Se Ciro tivesse ido ao comando de Creso ele o teria encontrado em um terreno familiar provavelmente em um cenaacuterio magniacutefico que deveria enfatizar de modo nada sutil a riqueza e a nobreza de seu anfitriatildeo Ciro deveria ser o convocador natildeo o convocado De fato ele demonstra seu controle sobre Creso colocando-o sob a guarda de soldados ordinaacuterios e deixa claro que haacute assuntos mais importantes para cuidar do que Creso da Liacutedia O primeiro round foi dado em favor de Ciro86 (TATUM 1989 p153 traduccedilatildeo nossa)

A anaacutelise de Tatum revela a sutileza com que Xenofonte constroacutei este embate de

egos entre os dois monarcas demonstrando a qualidade esteacutetica da cena Aleacutem disso

em nossa opiniatildeo mais uma vez Ciro mostra-se mesmo nos menores detalhes superior

moral e intelectualmente a Creso

3232 Creso prisioneiro de Ciro

O primeiro encontro de Creso e Ciro se daacute portanto nestas circunstacircncias A

interpretaccedilatildeo de Lefegravevre (2010 p403) nos parece acertada quando este afirma que o

diaacutelogo travado entre Ciro e Creso na Ciropedia condensa temas importantes de dois

diaacutelogos essenciais da narrativa de Heroacutedoto sobre Creso o diaacutelogo de Ciro e Creso e o

diaacutelogo de Creso e Soacutelon87 (Histoacuterias129-33) Eacute pela anaacutelise dos temas destes

diaacutelogos que podemos sentir a copresenccedila do texto de Heroacutedoto na narrativa de

Xenofonte Procuraremos demonstrar nesta seccedilatildeo de que forma isso ocorre

Em Histoacuterias apoacutes capturar Creso Ciro ergue uma pira sobre a qual coloca seu

inimigo com mais sete jovens liacutedios ldquo[] ou por ter em mente sacrificaacute-los como

primiacutecias a algum deus ou por desejar cumprir um voto ou ainda por ter ouvido dizer

86 No original If Cyrus had come at Croesus bidding he would have encountered him on home ground presumably in a magnificent setting which would have emphasized in none too subtle ways the wealth and nobility of his host Cyrus would have been the one summoned rather than the summoner Instead he demonstrates his control over Croesus by putting him under guard with ordinary soldiers and he makes it clear that there are more important matters to attend to than Croesus of Lydia The first round has gone in Cyrusrsquos favor (TATUM 1989 p153) 87 Lefegravevre (2010) comenta que a improbabilidade de que o encontro entre Creso e Soacutelon tenha ocorrido realmente natildeo impediu seu impacto na literatura posterior sendo recontado por diversos autores Diodoro Plutarco Dioacutegenes Laeacutercio e Luciano por exemplo Ferreira e Silva (2002 p6) confirmam o anacronismo deste encontro pois na altura em que Heroacutedoto diz que o encontro ocorreu Soacutelon jaacute devia ter morrido

68

que Creso era piedoso []rdquo (Histoacuterias1862) Creso diante da morte iminente lembra-

se das palavras que Soacutelon lhe dissera a respeito da felicidade εὐδαιμονία

(eudaimonia) ldquoningueacutem eacute feliz enquanto viverrdquo (Histoacuterias 1863) Com tais palavras

em mente Creso pronuncia o nome de Soacutelon por trecircs vezes Ciro curioso com aquela

lamentaccedilatildeo por meio de inteacuterpretes perguntou a Creso a quem ele invocava A partir

deste mote Creso narra a Ciro o encontro que tivera com o filoacutesofo ateniense

Segundo Heroacutedoto Sardes estava no auge da riqueza e por isso afluiacuteam para a

cidade muitos saacutebios (Histoacuterias 1291) Soacutelon que desejava conhecer as terras dos

povos baacuterbaros foi hospedado por Creso que apoacutes demonstrar-lhe as suas riquezas lhe

indagou ldquo[] se jaacute viste algueacutem que fosse mais feliz88 dos homensrdquo Creso esperava

que Soacutelon respondesse que o proacuteprio Creso era o mais feliz dos homens mas Soacutelon

respondeu que dos homens o mais feliz era Telo de Atenas cuja vida fora proacutespera e

tivera dois filhos belos e bons καλοκαγάθοι (kalokagathoi) Contrastam os filhos de

Telo belos e bons com os dois filhos do proacuteprio Creso jaacute que um Aacutetis estava

destinado a morrer ferido por uma ponta de ferro enquanto o outro nascera surdo e

mudo Aleacutem disso Telo morrera de forma gloriosa auxiliando os atenienses em guerra

contra os eleusinos provocando a fuga destes Por causa da sua bela morte os

atenienses sepultaram-no com ldquoexeacutequias e tributaram-lhe grandes honrasrdquo (Histoacuterias

1305) Creso incitado pela fala de Soacutelon perguntou-lhe entatildeo quem seria o segundo

homem mais feliz e Soacutelon desta vez respondeu que eram Cleacuteobis e Biacuteton dois jovens da

raccedila argiva dotados de grande forccedila fiacutesica Quando os argivos celebravam uma festa em

honra a Hera a matildee dos jovens que era esperada no templo natildeo podia dirigir-se ateacute laacute

por falta de bois que puxassem o carro Eles entatildeo atrelaram o carro agraves costas e

carregaram a matildee por ldquoquarenta e cinco estaacutediosrdquo e ldquo[] sob os olhares de toda a

assembleia sobreveio-lhes o melhor termo de vida e neles mostrou a divindade ser

melhor para o homem morrer do que viver []rdquo (Histoacuterias1313) A matildee jubilosa pelo

feito dos filhos pediu a Hera que lhes desse o que de melhor um homem pudesse obter

A deusa entatildeo lhes deu o sono eterno e ldquo[] eles foram consagrados em Delfos como

homens excelentes que eram []rdquo (Histoacuterias 1315)

Creso por fim perguntou a Soacutelon se ele achava que a sua felicidade nada valia

e Soacutelon em um longo discurso responde-lhe que o homem antes da morte natildeo pode ser

considerado feliz ὄλβος (olbos) mas deve-se dizer afortunado εὐτυχής (eutuches)

88 O termo usado nesta passagem eacute ὀλβιώτατος (olbioacutetatos)

69

pois a vida eacute repleta de vicissitudes sob o impeacuterio da inveja dos deuses Soacutelon diferencia

do bem-estar passageiro o bem-estar definitivo que eacute eternizado por meio da memoacuteria

dos homens (FERREIRA SILVA 2002 p8) Eacute necessaacuterio que a vida termine para que

se possa julgar se algueacutem eacute feliz ou natildeo e tornar-se digno de memoacuteria

As advertecircncias de Soacutelon natildeo satildeo suficientes para que Creso se afaste do

caminho da desmedida ὕβρις (hybris) Creso ainda acreditando que era o homem mais

feliz de todos eacute atingido por um terriacutevel castigo enviado pela divindade Primeiramente

morre seu filho Aacutetis cumprindo-se dessa forma o oraacuteculo em seguida apoacutes dois anos

de luto Creso entra em guerra contra os Persas sendo derrotado Jaacute nos referimos

anteriormente sobre o oraacuteculo de Delfos que Creso interpreta de forma errocircnea

Acreditamos que a maacute interpretaccedilatildeo que Creso faz do oraacuteculo resulte da auto-avaliaccedilatildeo

que ele faz da sua proacutepria vida Em verdade Creso acreditava-se o homem mais feliz

portanto para ele soacute poderia ser o impeacuterio persa que deveria ruir jamais o seu

Apoacutes Creso narrar a Ciro o encontro que tivera com o filoacutesofo Ciro arrepende-

se pois ldquo[] pensou que ele tambeacutem um homem estava a entregar vivo agraves chamas

outro homem cuja prosperidade natildeo fora inferior agrave sua []rdquo (Histoacuterias 1866) Ciro

conteacutem sua ὕβρις temendo uma futura vinganccedila divina

Contudo embora os soldados tentassem apagar o fogo da pira natildeo conseguiam

Creso suplica a Apolo e recebe do deus a ajuda em forma de chuva que apaga todo o

fogo Ciro reconhece deste modo que Creso era querido pelos deuses e lhe pergunta

por que ele decidira combater contra os persas Creso culpa o deus dos helenos ldquo[]

que me induziu a entrar em guerra []rdquo (Histoacuterias1874) Vendo em Creso um homem

saacutebio Ciro faz dele seu conselheiro a quem pede ajuda em importantes decisotildees como

por exemplo a respeito do saque da cidade de Sardes Creso no final da narrativa envia

alguns liacutedios ao oraacuteculo de Delfos para questionar por que os deuses o enganaram

quanto a entrar em guerra contra os persas A resposta da piacutetia lembrava a Creso

primeiro que ele estava marcado pelos crimes de seus antepassados e que os deuses

resguardaram-no por anos do castigo que as Moiras89 preparavam a ele segundo

lembrava-lhe que o culpado de seu infortuacutenio era ele mesmo uma vez que natildeo

compreendera o que lhe fora dito pelo oraacuteculo (Histoacuterias 1911-6) Esta eacute

89 Na mitologia grega as Moiras (Μοῖραι) eram as trecircs irmatildes que determinavam o destino tanto dos homens quanto dos deuses Pertenciam agrave primeira geraccedilatildeo divina Cf Grimal (1993)

70

resumidamente a narrativa de Creso nos detalhes que mais interessam para a nossa

anaacutelise

A questatildeo do oraacuteculo de Delfos e suas ambiguidades permeiam toda a obra de

Heroacutedoto Na narrativa de Xenofonte no entanto como bem observa Due (1989

p125) o papel consagrado aos oraacuteculos eacute diminuiacutedo Deste modo o destino dos

homens eacute fruto mais de suas escolhas e accedilotildees do que do pesado jugo das Moiras dando

assim mais relevo ao papel do Homem na formaccedilatildeo da sua proacutepria histoacuteria

Na Ciropedia toda a cena da pira eacute omitida Natildeo haacute nenhuma referecircncia a ela e

pelo contraacuterio Ciro natildeo precisa das palavras de Creso para ser clemente pois aprendera

de seu pai que a obediecircncia conquistada era muito melhor do que a imposta (Cirop

16) Tatum (1989 p146) observa com felicidade que todas as relaccedilotildees humanas na

Ciropedia de uma forma ou de outra constituem um complemento da educaccedilatildeo de

Ciro apresentada no Livro I Assim a vida de Creso em nenhum momento corre perigo

nas matildeos de Ciro A confrontaccedilatildeo desta cena com a experiecircncia de Ciro com outro

inimigo na Ciropedia o rei Armecircnio parece-nos elucidar o procedimento do heroacutei da

narrativa Com este rei (Cf Livro III) Ciro natildeo se mostrara tatildeo benevolente e julgando-o

culpado de traiccedilatildeo estaacute pronto para condenaacute-lo agrave morte Entretanto o filho do rei um

antigo amigo de Ciro chamado Tigranes discursa em defesa do pai discurso este que

Ciro resume nestes termos

Entatildeo parece a ti disse Ciro que eacute suficiente tal derrota para corrigir os homens tendo reconhecido que os outros satildeo melhores do que eles mesmos 90 (Cirop III120 traduccedilatildeo nossa)

A partir disso Tigranes convence Ciro de que transformar os inimigos em

aliados eacute muito melhor do que mantecirc-los escravizados pois os derrotados sempre

esperaratildeo uma oportunidade para se vingar Ao contraacuterio os que forem perdoados teratildeo

uma vida completamente dedicada agravequele que os salvou Em nossa opiniatildeo haacute na

postura benevolente de Ciro para com seus inimigos um claro contraste com o Ciro em

Heroacutedoto mas principalmente com o Astiacuteages das Histoacuterias Retomemos por um

momento a narrativa da infacircncia de Ciro Astiacuteages castiga Haacuterpago pela desobediecircncia

e este desejando vingar-se instiga Ciro a destronar o avocirc O castigo do inimigo

portanto eacute um tema importante nas duas narrativas A narrativa apresentada em

Heroacutedoto de certo modo figurativiza a reflexatildeo de Tigranes Acreditamos portanto que 90 No original ἔπειτα δοκεῖ σοι ἔφη ὁ Κῦρος καί ἡ τοιαύτη ἧττα σωφρονίζειν ἱκανὴ εἷναι

ἀνθρώπους τὸ γνῶναι ἑαυτῶν αλλους βελτίονας ὄντας

71

a alusatildeo agrave narrativa de Heroacutedoto se estabeleccedila nesta passagem pois eacute significativo como

o tema do castigo complementa-se da forma como eacute discutido e figurativizado em

ambas as obras

Quando Ciro na Ciropedia encontra-se com Creso ele jaacute assimilara esses

ensinamentos e natildeo necessitava do tema da pira para lembraacute-lo de que ele eacute soacute um ser

humano Ao contraacuterio quando eles se encontram pela primeira vez Creso ο sauacuteda desta

forma ldquoSauacutedo-te senhor [δεσπότης] pois a Fortuna [τυχή] a partir de hoje concede

a ti estar nesta posiccedilatildeo e a mim de saudar-te por elardquo91 (Cirop 72 9 traduccedilatildeo nossa)

O uso da palavra δεσπότης (despoteacutes) por Creso natildeo eacute meramente casual pois

como observa Lefegravevre (2010 p404) eacute com esta mesma palavra que Creso se dirige a

Ciro nas Histoacuterias (190 2) Aleacutem disso eacute tambeacutem o modo como os suacuteditos se dirigem

ao rei Assiacuterio na Ciropedia Doravante acreditamos que Creso novamente tenta tomar o

controle da situaccedilatildeo como tentara quando convocara Ciro a ir ao seu encontro Creso

quando sauacuteda Ciro como senhor estaacute implicitamente apelando para a vaidade de Ciro

convidando-o a assumir o papel de soberano enquanto ele Creso estaria

implicitamente no papel de seu escravo (δοῦλος doulos) (TATUM 1989 p153)

A artimanha de Creso ganha maior relevo quando refletimos tambeacutem sobre o

termo τύχη (tyche) (Cirop 72 10) A τύχη eacute destino no sentido de acaso fortuna

Desse modo Creso estaacute afirmando que foi a fortuna quem o colocou na situaccedilatildeo de

submissatildeo a Ciro A frase retoma a ideia proposta na narrativa herodoteana jaacute que a

τύχη para Heroacutedoto ldquo[] tem um papel decisivo no agir de cada pessoa []rdquo

(FERREIRA SILVA 2008 p8) No entanto se eacute ao acaso que se deve a derrota de

Creso a vitoacuteria de Ciro torna-se assunto de mera sorte resultado dos desejos divinos e

natildeo da capacidade de Ciro A resposta de Ciro entretanto neutraliza tanto o apelo agrave sua

vaidade quanto a implicaccedilatildeo de que foi o acaso a causadora de sua vitoacuteria ldquoEu tambeacutem

te sauacutedo Creso visto que ambos somos seres humanos []rdquo92 (Cirop 72 10 traduccedilatildeo

nossa)

Esta fala de Ciro tambeacutem eacute uma alusatildeo agrave narrativa de Heroacutedoto Ciro apoacutes a

cena da Pira em Heroacutedoto chega a esta conclusatildeo e eacute por esta conclusatildeo que decide

perdoar Creso Ambos satildeo seres humanos passiacuteveis portanto da infelicidade se natildeo

91 No original Χαῖρε ὦ δέςποτα ἔφη τοῦτο γὰρ ἡ τύχη καὶ ἔχειν τὸ ἀπὸ τοῦδε δίδωσι σοὶ καὶ

ἐμοὶ προσαγορεύειν 92 No original Καὶ σύ γε ἔφη ὦ Κροῖσε ἐπείπερ ἄνθρωποί γε ἔσμεν ἀμφότεροι

72

respeitarem os homens e os deuses Na Ciropedia natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Soacutelon

entatildeo eacute Ciro quem executa o papel de Soacutelon como detentor da sabedoria Ciro

astutamente responde neutralizando tanto o apelo para a sua vaidade quanto a ideia de

que a sorte foi responsaacutevel pela sua vitoacuteria ao mesmo tempo que se estabelece em niacutevel

de superioridade intelectual a Creso Demonstraremos no proacuteximo capiacutetulo deste

trabalho o importante papel da educaccedilatildeo na tessitura da Ciropedia Poreacutem podemos

por ora dizer que se houvesse a aceitaccedilatildeo de que foi a τύχη quem decidiu a vitoacuteria no

embate o papel da educaccedilatildeo e da formaccedilatildeo se tornaria irrelevante no conteuacutedo da obra

A diferenccedila entre Ciro e Creso natildeo seria mais a especiacutefica paideia de Ciro poreacutem um

capricho dos deuses e da fortuna Por esta razatildeo acreditamos que interpretar a fala de

Ciro como a neutralizaccedilatildeo da τύχη eacute fundamental pois o discurso de Ciro restitui o

valor do homem e de sua paideia na construccedilatildeo do seu futuro

Na sequecircncia da cena apoacutes esta ardilosa saudaccedilatildeo Creso narra sua vida a Ciro

Nesta narrativa de Creso a Ciro haacute vaacuterias alusotildees agrave narrativa construiacuteda por Heroacutedoto

Podemos dizer que de certa forma a narraccedilatildeo de Creso sumariza com breves

referecircncias toda a narrativa de Heroacutedoto retomando por exemplo os temas dos dois

filhos de Creso ou dos vaacuterios questionamentos feitos ao oraacuteculo de Delfos (Cirop 72

19) Lefegravevre (2010 p406) argumenta que as alusotildees contidas neste trecho soacute podem ser

compreendias se o leitor tiver o conhecimento da obra de Heroacutedoto Desse modo

quando Creso narra que um de seus filhos eacute mudo e o outro morreu na flor da vida eacute

evidente que ele se refere a Aacutetis assassinado por Adrasto e ao filho mudo que em

Heroacutedoto recupera a voz para salvar o pai Em Xenofonte no entanto o filho mudo

permanece neste estado

O uacuteltimo tema encontrado nesta cena da Ciropedia tambeacutem encontrado em

Heroacutedoto diz respeito agrave discussatildeo sobre a felicidade Quando resumimos a narrativa de

Heroacutedoto procuramos sublinhar a importacircncia deste tema para a construccedilatildeo da narrativa

sobre Creso Natildeo nos parece portanto de modo algum casual a presenccedila deste tema na

Cena de Creso da Ciropedia onde jaacute encontramos vaacuterias alusotildees agrave narrativa

herodoteana

O tema da felicidade surge na Ciropedia quando Creso assume a culpa por se

encontrar submisso a Ciro Para Creso seu erro comeccedilou ao procurar testar os oraacuteculos

questionando a veracidade de suas profecias Aleacutem disso tambeacutem assume que natildeo

73

soube seguir o preceito do oraacuteculo de Delfos93 que lhe indicava que o melhor caminho

para se desfrutar da felicidade eacute conhecer-se a si mesmo Para Creso conhecer-se a si

mesmo era uma tarefa faacutecil pois ele se presumia ldquotalhado para a grandezardquo (Cirop 72

24) Por causa dessa avaliaccedilatildeo diz Creso

Quando todos os reis em assembleacuteia me elegeram para ser o chefe na guerra eu aceitei o comando pois me achava capaz de ser grande enganando a mim mesmo com efeito porque me julgava capaz de fazer guerra contra ti que primeiramente eacute descendente dos deuses em seguida nascido atraveacutes de reis e por fim exercitado na virtude desde a infacircncia94 (Cirop 72 24 traduccedilatildeo nossa)

Nesta fala de Creso eacute retomado o proacuteprio discurso do narrador no proecircmio da

obra onde ele estabelece que sua pesquisa sobre Ciro tematizaraacute a γένεαν

descendecircncia a φύσιν a natureza e a παιδεία a educaccedilatildeo Isso significa que o

projeto a que o narrador se dedica atinge seu apogeu com o reconhecimento de Creso

Creso reconhece as qualidades de Ciro e que seu erro foi julgar-se no mesmo niacutevel do

rei persa No entanto tendo passado da felicidade agrave infelicidade no periacuteodo de um dia

como uma personagem traacutegica Creso pode afirmar que hoje ele reconhece a si mesmo

ou seja reconhece sua inferioridade em relaccedilatildeo a Ciro O tema da felicidade portanto

estaacute intimamente ligado ao tema da sabedoria eacute feliz aquele que conhece a si mesmo

poreacutem conhecer a si mesmo eacute a mais difiacutecil das tarefas

Por fim analisaremos o uacuteltimo segmento da narrativa concernente a Creso

Nesta passagem ainda seraacute desenvolvido o tema da felicidade Apoacutes decidir tornar

Creso seu conselheiro Ciro devolve a Creso toda a sua famiacutelia e lhe restitui a vida

luxuosa de antes No entanto retira-lhe os direitos poliacutetico e militares Creso agradece a

Ciro o tipo de vida que este estaacute lhe proporcionando pois passaraacute a viver do modo que

julga ser o mais feliz A explicaccedilatildeo de Creso eacute que a vida que a partir de agora ele

passaraacute a ter seraacute equivalente ao tipo de vida que sua esposa vivia ldquo[] pois ela de um

lado partilhava igualmente comigo de todos os bens luxos prazeres e de outro lado

natildeo dizia respeito a ela as preocupaccedilotildees de como ter estas coisas nem de guerra e de 93 Segundo Creso o ensinamento do oraacuteculo foi ldquoconheccedilendo-te a ti mesmo Creso e atravesseraacutes feliz a vidardquo (Cirop VII220 traduccedilatildeo nossa) No original Σαυτόν γιγνώσκων εὐδαίμων Κροίσε

περάσεις (Cirop VII220) 94 No original ὡς εἵλοντό με πάντες οἱ κύκλῳ βασιλεῖς προστάτην τοῦ πολέμου ὑπεδεξάμην

τὴν στρατηγίαν ὡς ἱκανὸς ὢν μέγιστος γενέσθαι ἀγνοῶν ἄρα ἐμαυτόν ὅτι σοὶ ἀντιπολε

μεῖν ἱκανὸς ᾤμην εἶναι πρῶτον μὲν ἐκ θεῶν γεγονότι ἔπειτα δὲ διὰ βασιλέων πεφυκότι

ἔπειτα δ ἐκ παιδὸς ἀρετὴν ἀςκοῦντι (Cirop 72 24)

74

batalhardquo 95 (Cirop VII228 traduccedilatildeo nossa) Estaacute impliacutecita nesta cena mais uma alusatildeo

agrave narrativa de Heroacutedoto Nas Histoacuterias Creso aconselha a Ciro que perdoe aos liacutedios

revoltosos

Mas perdoa aos liacutedios e para eles natildeo se sublevarem nem te darem cuidado impotildee-lhes restriccedilotildees proiacutebe-os de usarem armas de guerra obriga-os a vestir tuacutenicas por baixo dos mantos e a calccedilar coturnos e ordena-lhes que ensinem os filhos a tocar ciacutetara a dedilharem instrumentos de cordas e a fazerem negoacutecios E natildeo tarda meu senhor que vejas passar de homens a mulheres e assim desaparece o risco de se revoltarem [] (Histoacuterias 1155 4)

Ou seja Creso em Heroacutedoto define uma vida de oacutecio luxo e sem preocupaccedilotildees

como uma vida efeminada ndash ldquopassar de homens a mulheresrdquo (Histoacuterias 1155 4)

Entretanto a vida que Ciro permitiraacute que Creso tenha seraacute tambeacutem uma vida de oacutecio e

luxo mas sem preocupaccedilotildees militares e poliacuteticas Assim a vida que Creso nas

Histoacuterias julga efeminada e refuta na Ciropedia ele a julga como a mais feliz Aleacutem

disso mais uma vez observamos a inversatildeo do ethos em Heroacutedoto eacute Creso quem

aconselha a Ciro tomar tal decisatildeo em Xenofonte Ciro toma esta decisatildeo sem ajuda de

seu inimigo

A referecircncia agraves Memoraacuteveis (2121-34) nos ajudaraacute a compreender um pouco

mais estas implicaccedilotildees e por meio desta referecircncia percebemos que a afirmaccedilatildeo de

Creso eacute absurda para Xenofonte

Neste trecho referido das Memoraacuteveis a personagem Soacutecrates narra uma

narrativa que ouviu de Proacutedico em uma de suas leituras puacuteblicas Segundo a narrativa

Heacuteracles estava na idade em que os jovens devem escolher entre a virtude e o viacutecio

Apareceram-lhe entatildeo duas mulheres de extraordinaacuteria estatura uma agindo como

pessoa de condiccedilatildeo livre (ἐλευθέριον eleutherion) e de ar nobre (εὐπρεπῆ euprepe)

a outra corpulenta (πολυσαρκίαν polusarkian) e mole (ἁπαλότητα hapaloteta) A

segunda aproximou-se de Heacuteracles e lhe disse que se a seguisse ela o conduziria a um

caminho prazeroso e faacutecil livre de penas sem ocupar-se de guerras e de negoacutecios

aproveitando-se do trabalho alheio Chamava-se Felicidade poreacutem seus inimigos a

chamavam de Perversidade96 (Memoraacuteveis 1987 p65) A outra mulher aproximou-se

95 No original ἐκείνη γὰρ τῶν μὲν ἀγαθῶν καὶ τῶν μαλακῶν καὶ εὐφροσυνῶν πασῶν ἐμοὶ τὸ

ἴσον μετεῖχε φροντίδων δὲ ὅπως ταῦτα ἔσται καὶ πολέμου καὶ μάχης οὐ μετῆν αὐτῇ (Cirop VII228) 96 Κακία (Kakiacutea)

75

em seguida e tambeacutem lhe fez um discurso natildeo procurando enganaacute-lo com promessas de

prazeres mas prometendo um futuro glorioso e belo desde que agrave base de sacrifiacutecios e

diligecircncias Esta se chamava Virtude (Αρετή Arete) A Perversidade disse-lhe em

resposta

Compreendes Heracles que esta mulher descreve a ti um aacuterduo e longo caminho para a felicidade Eu de outro lado te conduzirei por um caminho curto e cocircmodo em direccedilatildeo a felicidade97 (Memoraacuteveis LII129 traduccedilatildeo nossa)

A resposta proferida pela Virtude mostra a Heacuteracles o quanto as conquistas (do

corpo e da alma) provindas do trabalho e da virtude satildeo melhores do que as provindas

pelo caminho faacutecil do oacutecio A verdadeira felicidade portanto eacute fruto da Virtude ainda

que a felicidade provinda da Virtude esteja acompanhada de trabalhos e penas A

felicidade provinda pela vida faacutecil eacute apenas aparente Creso portanto escolhe o

caminho da Perversidade no sentido de que ele estaacute preferindo uma vida de oacutecio A

afirmaccedilatildeo de Tatum (1989 p151) nos parece acertada ldquoHaacute uma bizarra implicaccedilatildeo

sobre o presente status de Creso Comparando sua antiga relaccedilatildeo com sua mulher com a

sua nova relaccedilatildeo com Ciro Creso inconscientemente compara-se a uma mulher []98rdquo

Figura 2 Creso a ponto de ser incendiado a mando de Ciro Acircnfora grega

Fonte httpeswikipediaorgwikiArchivoKroisos_stake_Louvre_G197jpg

97 No original Ἐννοεῖς ὦ Ἡράκλεις ὡς χαλεπὴν καὶ μακρὰν ὁδὸν ἐπὶ τὰς εὐφροσύνας ἡ

γυνή σοι αὕτη διηγεῖται ἐγὼ δὲ ῥᾳδίαν καὶ βραχεῖαν ὁδὸν ἐπὶ τὴν εὐδαιμονίαν ἄξω σε

(Memoraacuteveis LII129 traduccedilatildeo nossa) 98 No original There is a bizarre implication here about Croesusrsquo present status By comparing his former relationship whit his wife to Cyrusrsquos relationship with him now Croesus unknowingly likes himself to a woman (TATUM 1989 p151)

76

3233 A intertextualidade e a reescrita da histoacuteria

A partir desta nossa anaacutelise da Cena de Creso podemos concluir que a narrativa

da Ciropedia alude em muitos momentos agrave narrativa de Heroacutedoto A alusatildeo eacute uma

forma impliacutecita de intertextualidade mas que se revela por exemplo na repeticcedilatildeo de

temas jaacute antes abordados pelo texto modelo Uma vez que a alusatildeo eacute uma forma

impliacutecita de intertextualidade podemos presumir que Xenofonte esperava o preacutevio

conhecimento da narrativa de Heroacutedoto Aleacutem disso uma vez que natildeo estamos em

condiccedilotildees de confrontar a narrativa de Xenofonte com todas as obras que poderiam ter

sido suas fontes podemos afirmar que nas passagens em que identificamos a

intertextualidade o material histoacuterico autorizado por Heroacutedoto foi manipulado natildeo por

conhecimento de outra fonte mas por um processo de ficcionalizaccedilatildeo Nestas

condiccedilotildees a ficccedilatildeo infringe a histoacuteria Segundo Freitas (1986 p50)

[] ao constatar que as informaccedilotildees histoacutericas oscilam sem cessar entre o real e o fictiacutecio por razotildees esteacuteticas ideoloacutegicas ou pragmaacuteticas percebe-se que na verdade a Histoacuteria eacute adaptada agraves intenccedilotildees especificamente literaacuterias do escritor ela perde seu estatuto de referencial autocircnomo e se torna elemento constitutivo do universo interno do romance de ficccedilatildeo

Quais seriam entatildeo as intenccedilotildees de Xenofonte ao efetuar a adaptaccedilatildeo do

material histoacuterico Procuramos demonstrar em nossa anaacutelise que as adaptaccedilotildees do texto

de Heroacutedoto procuravam sempre sublinhar a sabedoria de Ciro em contraste com seu

oponente Creso Desse modo denominamos a inversatildeo do ἔθος o caraacuteter de Ciro

como eixo principal das modificaccedilotildees da Ciropedia A anaacutelise do texto de Heroacutedoto

revela que Creso apoacutes sua derrota para Ciro compreende os ensinamentos de Soacutelon e

torna-se de algum modo um homem saacutebio Ciro contudo mostra-se detentor deste

mesmo conhecimento porque em nossa opiniatildeo na Ciropedia a sabedoria estaacute

intimamente ligada agrave formaccedilatildeo da personagem Ciro assume o papel de Soacutelon de saacutebio

capaz de aplicar algum ensinamento a Creso

Desse modo Xenofonte procura a partir de estrateacutegias de ficcionalizaccedilatildeo

idealizar Ciro e com isso estruturar verossimilmente a representaccedilatildeo das accedilotildees e do

caraacuteter da personagem de Ciro

77

324 A Morte de Ciro

Trataremos da cena a respeito da morte de Ciro Segundo Sancisi-Weerdenburg

(2010 p441) Heroacutedoto natildeo eacute a autoridade mais confiaacutevel sobre este assunto e a

estudiosa acredita que Xenofonte estruturou sua narrativa a partir da tradiccedilatildeo oral

iraniana Acreditamos que uma vez que temos escassas informaccedilotildees a respeito das

fontes sobre a vida de Ciro eacute muito complicado afirmar qual fonte eacute mais ou menos

confiaacutevel Mais complicado ainda eacute afirmar qual das fontes Xenofonte julgou ser a

correta Infelizmente a uacutenica destas fontes que nos chegou foi a obra de Heroacutedoto e eacute

apenas por meio da comparaccedilatildeo com ela que podemos verificar se Xenofonte manteacutem-

se fiel ou manipula o material histoacuterico Aleacutem disso haacute ainda nesta cena algumas

alusotildees a narrativa de Heroacutedoto

Em Heroacutedoto Ciro morre no campo de batalha durante a tentativa de subjugar

os massaacutegetas (Histoacuterias 1201-214) A tentativa de Ciro eacute por Heroacutedoto descrita

como negativa motivada ldquo[] em primeiro lugar [pelas] circunstacircncias do seu

nascimento que o levavam a considerar-se mais do que um simples mortal depois o

sucesso que sempre obtinha em campanha []rdquo (Histoacuterias12042) Aleacutem disso os

massaacutegetas jamais cometeram agressatildeo contra os persas (Histoacuterias1206) Portanto

Heroacutedoto descreve a atitude de Ciro como desmedida ὑβριστής (hybristes) e prepara

a atenccedilatildeo do leitor para a queda do monarca persa

A primeira aproximaccedilatildeo de Ciro em busca de seu objetivo foi uma proposta de

casamento com a rainha Toacutemiris mas esta percebendo o real desejo de Ciro o proibiu

de se aproximar de seu paiacutes Ciro entatildeo inicia a expediccedilatildeo e atravessa o rio Araxes

lanccedilando uma ponte sobre o rio Para Sancisi-Weerdenburg (2010 p445) o tema do

atravessamento do rio eacute um leitmotiv das Histoacuterias para o desencadeamento da queda

do monarca99

Due (1989 p131) observa que a descriccedilatildeo da batalha entre os persas e os

massaacutegetas eacute repleta de elementos sobrenaturais oraacuteculos e avisos Ciro como Creso o

fizera anteriormente interpreta de forma equivocada um oraacuteculo acreditando que Dario

estava tramando contra ele A maacute interpretaccedilatildeo eacute fruto de sua ὕβρις (hybris) a

99 Cf a travessia de Dario no Istros de Xerxes no Helesponto e de Cambises em sua invasatildeo da Etioacutepia Aleacutem disso estes povos invadidos satildeo tambeacutem descritos por Heroacutedoto como inocentes de qualquer ofensa ao povo persa Desse modo Heroacutedoto estabelece como injusta a guerra iniciada por estes persas assim como julgava injusta a guerra promovida por Creso contra Ciro

78

arrogacircncia de se crer invenciacutevel O sonho na verdade predizia a sua morte e que ldquo[]

seu poder passaria para as matildeos de Dario []rdquo (Histoacuterias 12101)

A batalha em que Ciro morre eacute descrita por Heroacutedoto como a mais violenta entre

dois povos baacuterbaros na qual mais pessoas pereceram O reinado de Ciro durou vinte e

nove anos e apoacutes descrever o ultraje que o corpo morto de Ciro sofreu nas matildeos da

rainha Toacutemiris (Histoacuterias1214) Heroacutedoto termina sua narrativa estabelecendo que

dentre as muitas versotildees a respeito da morte de Ciro ldquo[] esta eacute a mais criacutevel []rdquo

(Histoacuterias 1214 5) Heroacutedoto deve ter rejeitado as outras versotildees porque elas

deveriam conter elementos de glorificaccedilatildeo a Ciro e o encocircmio destoaria da estrutura

traacutegica criada pelo autor para os monarcas baacuterbaros

Jaacute afirmamos anteriormente que a narrativa de Ciro em Heroacutedoto visava a ser

paradigmaacutetica ldquocom funccedilotildees determinadas no conjunto da narrativardquo (FERREIRA

SILVA 2002 p38) Deste modo a narrativa da vida de Ciro preenche o padratildeo

estrutural definido por Immerwahr (1981 apud FERREIRA SILVA 2002) Segundo

Immerwahr o padratildeo das narrativas de Heroacutedoto assume a seguinte estrutura a-) as

origens do monarca (como nasceu e como chegou ao poder) b-) primoacuterdios do reinado

ateacute atingir o apogeu c-) curva descendente que culmina com a queda do monarca

Pudemos observar em nossa anaacutelise como este modelo se aplica facilmente a narrativa

sobre a vida de Ciro Primeiramente sua origem eacute marcada pelos signos da lenda o

afastamento da casa materna por causa de um oraacuteculo e o subsequente reconhecimento

de sua verdadeira identidade Em seguida a carreira militar vitoriosa primeiro

destronando seu avocirc Astiacuteages depois derrotando Creso e dominando a Liacutedia e a

Babilocircnia Por fim sua queda porque acreditou ser mais do que um simples mortal Eacute

interessante como Heroacutedoto ata esta estrutura com perfeiccedilatildeo pois remonta a arrogacircncia

de Ciro que eacute a causa da sua queda agrave sua origem e agrave sua carreira militar de sucesso

(Histoacuterias12042)

Em Xenofonte (CiropVIII7) encontramos uma narrativa completamente

diferente Ciro morre idoso contente e de um modo paciacutefico em casa rodeado pelos

seus amigos e parentes No final de sua vida Ciro retorna agrave Peacutersia ldquo[] pela seacutetima vez

em seu reinado []rdquo100 (Cirop VIII71) onde tem um sonho no qual uma pessoa de

estatura extraordinaacuteria lhe revelou que iria morrer Assim que ele acorda faz rituais aos

100 No original [] τὸ ἕβδομον ἑπί τῆς αὐτοῦ ἀρχῆς []

79

deuses e orando agradece-os por terem revelado por meio de sinais ldquo[] as coisas que

eu deveria e as coisas que natildeo deveria fazer []rdquo101 (Cirop VIII73) Em seguida diz

Muito agradeccedilo a voacutes pois reconhecia a vossa atenccedilatildeo e jamais na prosperidade me considerei acima dos homens Peccedilo que voacutes deis agora a felicidade a meus filhos minha esposa meus amigos e minha paacutetria e a mim decirc uma morte tatildeo digna quanto a vida que me destes102

O discurso de Ciro retoma o tema da felicidade eudaimonia discutido no

encontro com Creso Ademais Ciro agradece aos deuses por nunca terem deixado que

ele se tornasse na prosperidade hubristes e se julgasse mais do que qualquer homem

De sorte que Ciro em Xenofonte agradece por natildeo ter tido o mesmo fim que a

personagem Ciro teve em Heroacutedoto

Acreditamos que esta alusatildeo natildeo eacute meramente casual nem mesmo ingecircnua Pelo

contraacuterio em nossa opiniatildeo as alusotildees revelam que Xenofonte estava dialogando

diretamente com a obra de Heroacutedoto aleacutem de servirem de pequenas pistas para que o

leitor possa observar a manipulaccedilatildeo do material de Heroacutedoto Como notamos a partir

da anaacutelise da Cena de Creso as alusotildees em geral referem-se a temas importantes na

obra de Heroacutedoto e que satildeo retrabalhados na Ciropedia Assim natildeo eacute soacute o tema da

felicidade e ο da arrogacircncia que aparecem na narrativa da morte de Ciro mas tambeacutem o

tema do sonho

O tema do sonho frequente em Heroacutedoto tem pouca participaccedilatildeo na estrutura

narrativa da Ciropedia poreacutem assim como em Histoacuterias (1210) os deuses enviam um

sonho a Ciro em que revelam a sua morte A mensagem dos sonhos no entanto diverge

completamente pois o sonho narrado em Heroacutedoto eacute ambiacuteguo e enigmaacutetico Ou seja a

divindade alerta Ciro mas o Ciro de Heroacutedoto eacute incapaz de interpretar corretamente a

mensagem dos deuses Jaacute o sonho enviado a Ciro na Ciropedia eacute claro e direto O sonho

em Heroacutedoto revela o destino traacutegico dos homens que natildeo conseguem compreender os

deuses O sonho em Xenofonte revela que Ciro eacute agraciado pelos deuses pela sua

conduta correta durante a vida

101 No original [] ἅ τrsquo ἐχρῆν ποιεῖν καὶ ἃ οὐκ ἐχρῆν [] 102 No original πολλὴ δ ὑμῖν χάρις ὅτι κἀγὼ ἐγίγνωσκον τὴν ὑμετέραν ἐπιμέλειαν καὶ

οὐδεπώποτε ἐπὶ ταῖς εὐτυχίαις ὑπὲρ ἄνθρωπον ἐφρόνησα αἰτοῦμαι δ ὑμᾶς δοῦναι καὶ νῦν

παισὶ μὲν καὶ γυναικὶ καὶ φίλοις καὶ πατρίδι εὐδαιμονίαν ἐμοὶ δὲ οἷόνπερ αἰῶνα δεδώκατε

τοιαύτην καὶ τελευτὴν δοῦναι

80

Por fim apoacutes dois dias Ciro convocou103 seus dois filhos alguns amigos e

convidados e lhes fez um discurso vindo a falecer em seguida O discurso de Ciro eacute

bem elaborado e retoma os principais temas discutidos na obra Ciro retoma seu passado

e seus feitos observando que a felicidade eudaimonia sempre o acompanhou Ele foi

haacutebil para ajudar os amigos e para prejudicar os inimigos tornou seu paiacutes conhecido e

admirado mas ateacute o momento da sua morte tivera medo de que algo terriacutevel lhe

acontecesse buscando escapar do perigo da hubris Em seguida Ciro estabelece a

divisatildeo de sua heranccedila entre seus dois filhos Cambises e Tanaoxares Apoacutes isso faz

uma reflexatildeo a respeito da imortalidade da alma que deve viver apoacutes a destruiccedilatildeo do

corpo104 Antes de morrer ele ainda daacute algumas instruccedilotildees a respeito do seu funeral

Nossa anaacutelise sobre a narrativa da morte de Ciro demonstrou que a versatildeo de

Xenofonte eacute bem diferente da versatildeo de Heroacutedoto Pode-se justificar tal diferenccedila pelo

conhecimento que Xenofonte tinha das tradiccedilotildees persas conforme Sancisi-

Weerdenburg (2010) Mesmo assim observamos que alguns dos temas caros a

Heroacutedoto satildeo retomados e retrabalhados na cena da Ciropedia O Ciro de Xenofonte

encontrou o caminho da felicidade e ldquo[] foi bem sucedido onde Creso Ciro e todos os

reis persas falharam em Heroacutedoto []rdquo (DUE 1989 p135) isto eacute ele natildeo se deixou

dominar pela arrogacircncia compreendendo que era apenas um ser humano A nosso ver

seja manipulando elementos da tradiccedilatildeo oral seja por pura imaginaccedilatildeo Xenofonte

compocircs um final que pudesse condizer de forma verossiacutemil com o todo de sua obra

para que seu leitor admirasse e imitasse seu heroacutei

33 O Ciro eacutepico e o Ciro traacutegico

Procuraremos a partir de nossas reflexotildees responder as questotildees formuladas no

iniacutecio deste capiacutetulo a-) por que Xenofonte se utiliza de um material histoacuterico ao inveacutes

de construir uma obra totalmente ficcional uma vez que eacute evidente o caraacuteter ficcional e

idealista da obra b-) como ele utiliza esse material conhecido de seus leitores 103 Sancisi-Weerdenburg (2010 p447-448) observa que segundo o resumo de Foacutecio na narrativa de Cteacutesias Ciro tambeacutem termina a vida discursando para os filhos No entanto ele tambeacutem morre por causa de uma batalha estando por isso em meio termo em relaccedilatildeo agraves narrativas de Heroacutedoto e de Xenofonte 104 Segundo Sansalvador (1987 p32) a teoria da imortalidade da alma eacute uma influecircncia das ideias socraacuteticas O tema foi abordado e desenvolvido por Platatildeo no diaacutelogo Feacutedon ou Da Alma (1999)

81

Comeccedilaremos pela segunda questatildeo que de certa forma acreditamos jaacute ter respondido

no decorrer da anaacutelise das narrativas Retomaremos portanto as principais conclusotildees

obtidas em nossa anaacutelise

A partir de nossa anaacutelise pudemos comprovar que Xenofonte construiu sua

narrativa contrastando-a e dialogando diretamente com a narrativa de Heroacutedoto As

Histoacuterias funcionavam como um discurso de autoridade para Xenofonte e na sua versatildeo

da narrativa era necessaacuterio suprimir tudo que contrastasse com essa visatildeo Desse modo

Xenofonte manipula o material estabelecido pela narrativa de Heroacutedoto e essa

manipulaccedilatildeo do discurso estabelecido pela histoacuteria se daacute tanto pela invasatildeo da ficccedilatildeo na

Histoacuteria quanto pela infraccedilatildeo

Como exemplo de invasatildeo temos a cena da narrativa da infacircncia de Ciro pois

Xenofonte cria toda uma seacuterie de episoacutedios e personagens aproveitando o lapso

temporal da narrativa de Heroacutedoto Ou seja Xenofonte se aproveita das arestas

temporais que natildeo foram preenchidas pelo discurso de autoridade do historiador A

ficccedilatildeo portanto se integra agrave Histoacuteria e com ela se confunde dando-lhe uma nova forma

e um novo sentido Os episoacutedios fictiacutecios se constroem a partir de referecircncias histoacutericas

ligando-se a elas que datildeo agrave ficccedilatildeo um efeito de verdade Desse modo comportamentos

culturais (accedilotildees das personagens no banquete) e personagens histoacutericos (Astiacuteages e

Mandane) caracterizam os episoacutedios como verossiacutemeis O discurso narrativo ficcional

neste caso cria situaccedilotildees ldquo[] que funcionam como instrumentos de representaccedilatildeo

soacutecio-cultural atendendo ao objetivo de retratar um povo e uma sociedade numa

determinada eacutepocardquo (FREITAS 1986 p39)

Satildeo exemplos de infraccedilatildeo tanto a narrativa concernente a Creso quanto a

narrativa da morte de Ciro Os elementos dados como histoacutericos nestas cenas ldquo[] satildeo

deformados deslocados ou simplesmente negligenciados pela ficccedilatildeordquo (FREITAS

1986 p48) Na Cena de Creso Xenofonte trabalhou o material dado por Heroacutedoto

condensando em um uacutenico diaacutelogo os principais temas abordados por Heroacutedoto em sua

narraccedilatildeo sobre a vida de Creso Neste caso podemos dizer que houve deformaccedilatildeo do

material histoacuterico Quanto agrave narrativa da morte de Ciro Xenofonte simplesmente

negligencia a narrativa de Heroacutedoto construindo uma narrativa completamente oposta

agravequela de Heroacutedoto Para Due (1989 p22) a liberdade com que Xenofonte trabalha os

dados histoacutericos se deve agrave distacircncia do tempo e do espaccedilo que o tema da narrativa de

Ciro representava ao puacuteblico grego

82

O resultado da manipulaccedilatildeo eacute uma sorte de narrativa idealista O Ciro de

Heroacutedoto eacute uma personagem traacutegica que conforme Northop Frye (1973) estaacute ldquo[]

situada no topo da roda da fortuna a meio caminho entre a sociedade humana no solo

e algo maior no ceacuteurdquo (FRYE 1973 p204) A epifania da lei que conduz o mundo

herodoteano arremessa Ciro para a queda traacutegica em coerecircncia com seu nascimento

traacutegico e esta lei do mundo eacute governada pelo destino (Μοῖρα Moira)

O Ciro da Ciropedia eacute em essecircncia eacutepico o heroacutei cuja experiecircncia interior

produz accedilotildees no acircmbito puacuteblico Conforme Hegel (apud LUKAacuteCS 1999 p98) aquilo

que o homem eacute no mais profundo de sua interioridade soacute se revela pela accedilatildeo e eacute

portanto a accedilatildeo que caracteriza a essecircncia do eacutepico Diferentemente das personanges da

epopeia contudo a personagem de Xenofonte natildeo surge acabada na narraccedilatildeo em um

passado remoto e absolutamente fechado mas evolui e se constroacutei no decorrer da

narrativa Aleacutem disso eacute um heroacutei ideal que representa os valores eacuteticos e morais da

aristocracia Xenofonte portanto manipulou o material histoacuterico para criar o efeito de

verossimilhanccedila entre as accedilotildees ideais e o caraacuteter ideal de sua personagem

Resta-nos por fim responder a primeira questatildeo formulada no iniacutecio do

capiacutetulo se Xenofonte desejava criar uma personagem idealizada e ficcionalizou a vida

de uma personagem histoacuterica por que ele natildeo escreveu uma obra completamente

ficcional No iniacutecio deste capiacutetulo referimos que segundo a Retoacuterica Antiga a

finalidade do discurso histoacuterico eacute o uacutetil enquanto que a finalidade do discurso ficcional

eacute o prazeroso o agradaacutevel Desse modo a ficccedilatildeo eacute o reino do ψεῦδός (pseudos) da

mentira e do divertimento natildeo da utilidade

Xenofonte queria compor uma obra idealizada e buscava que seus leitores natildeo soacute

se deleitassem com sua narrativa mas tambeacutem tirassem dela alguma liccedilatildeo aprendessem

com ela Jaacute referimos que a Ciropedia efetua a siacutentese de elementos ficcionais e

histoacutericos e que o gecircnero biograacutefico no seacuteculo IV aC dilui as fronteiras entre Histoacuteria e

Ficccedilatildeo O gecircnero biograacutefico eacute em essecircncia pedagoacutegico (CARINO 1999) por isso o

tema da biografia natildeo pode ser qualquer indiviacuteduo mas um indiviacuteduo que mereccedila ser

imitado um indiviacuteduo ilustre A ficccedilatildeo neste sentido idealiza a personagem

reescrevendo os dados histoacutericos Ao mesmo tempo os dados histoacutericos e as estrateacutegias

discursivas da histoacuteria garantem ao texto biograacutefico como ao romanesco o efeito de

real A utilizaccedilatildeo de um tema histoacuterico bem como de estruturas linguiacutesticas e formais

83

da historiografia atribuem ao texto literaacuterio natildeo soacute um cunho realista (FREITAS 1986

p14) como tambeacutem verdadeiro

Os gecircneros natildeo podem ser apenas analisados por questotildees de estrutura mas

tambeacutem devem discutir questotildees como audiecircncia performance circulaccedilatildeo de textos e a

autoconsciecircncia criacutetica do papel que o gecircnero estabelece (GOLDHILL 2008 p186-

187) Neste sentido natildeo devemos esquecer a preocupaccedilatildeo didaacutetica da Ciropedia e se

Xenofonte construiacutesse uma personagem completamente ficcional a sua audiecircncia

experimentaria outra experiecircncia esteacutetica da qual se desvincularia a utilidade e a obra

falharia como literatura pedagoacutegica

Poderemos traccedilar um quadro paralelo com o desenvolvimento do romance

burguecircs nos seacuteculos XVII e XVIII Segundo Ian Watt (1997) as primeiras narrativas

ficcionais ressentiam-se de natildeo serem enquadradas no cacircnone seacuterio A ficccedilatildeo neste

contexto ficava relegada a um puacuteblico inculto Desse modo os primeiros romancistas

como Defoe em Robson Crusoe105(2004) se utilizavam do recurso dos proacutelogos com

os quais procuravam estabelecer para o leitor que suas narrativas eram diaacuterios

biografias manuscritos perdidos encontrados por um determinado editor que agora as

tornavam puacuteblicas Esse processo segundo Watt (1990) estaacute ligado agrave busca em conferir

ao romance um realismo formal106 A narrativa de ficccedilatildeo portanto adquiria um estatuto

de verdade pois se estabelecia como produto da confissatildeo de um indiviacuteduo real

Provavelmente os primeiros ficcionistas da Antiguidade ressentiram-se da

mesma necessidade dos primeiros romancistas modernos que sua obra de ficccedilatildeo fosse

aceita como literatura seacuteria Desse modo procuraram suprir essa necessidade visando

estrateacutegias discursivas que criassem no texto de ficccedilatildeo efeitos de real e entre estas

estrateacutegias estava a ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria

Para concluir gostariacuteamos por fim de refletir a respeito dos resultados dessa

manipulaccedilatildeo dos dados histoacutericos por Xenofonte O objetivo de Xenofonte ao

reescrever a histoacuteria estaacute ligado ao caraacuteter didaacutetico de sua narrativa O caraacuteter didaacutetico

dessa ficcionalizaccedilatildeo prevecirc no entanto menos recontar o passado tal qual ele ldquode fato

aconteceurdquo do que se dirigir como exemplum para seus leitores presentes e futuros

Desse modo Xenofonte aproxima-se do passado rompendo a distacircncia eacutepica com o

105 Defoe (apud WATT 1997 p155) em defesa do Robinson Crusoeacute daqueles que consideravam essa obra mera ficccedilatildeo disse ldquo[] afirmo que a histoacuteria embora alegoacuterica eacute tambeacutem histoacutericardquo 106 Cf Linda Hutcheon (1991 p143) ldquoAs obras de Defoe diziam ser veriacutedicas e chegaram a convencer alguns leitores de que eram mesmo factuais poreacutem a maioria dos leitores atuais (e muitos dos leitores da eacutepoca) tiveram o prazer da dupla conscientizaccedilatildeo da natureza fictiacutecia e de uma base no ldquorealrdquo ndash assim como ocorre com os leitores da metaficccedilatildeo historiograacutefica contemporacircneardquo

84

caraacuteter inacabado do presente Os exemplos que analisamos neste capiacutetulo demonstram

a tentativa de Xenofonte de recriar esse passado para construir um todo concreto e ideal

Natildeo eacute o passado o ponto de partida de Xenofonte mas a contemporaneidade que ldquo[]

dita os pontos de vista e as orientaccedilotildees para certos valores []rdquo (BAKHTIN 1998

p418) e neste sentido o passado eacute modernizado Desse modo podemos falar da

Ciropedia como um romance a partir da definiccedilatildeo de Bakhtin107 pois em sua mateacuteria

narrativa o passado fechado eacute destruiacutedo reconduzindo-o a uma nova interpretaccedilatildeo sob

o olhar ideoloacutegico do presente

107 Cf o capiacutetulo 2 seccedilatildeo 241

85

4 Ciropedia um Romance de Formaccedilatildeo na Antiguidade

O mestre [] eacute o prolongamento do amor paterno eacute o complemento da ternura das matildees o guia zeloso dos primeiros passos na senda escabrosa que vai agraves conquistas do saber e da moralidade [] Devemos ao pai a existecircncia do corpo o mestre cria-nos o espiacuterito (sorites de sensaccedilatildeo) e o espiacuterito eacute a forccedila que impele o impulso que triunfa o triunfo que nobilita o enobrecimento que glorifica e a gloacuteria eacute o ideal da vida o louro do guerreiro o carvalho do artista a palma do crente

Raul Pompeacuteia 1976 p26

Procuramos no capiacutetulo anterior estabelecer o estatuto ficcional108 da Ciropedia

pela ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria Demonstramos em nossa anaacutelise que Xenofonte cria sua

obra manipulando os dados presentes no discurso de autoridade de Heroacutedoto pela

invasatildeo e pela infraccedilatildeo do material histoacuterico Aleacutem disso tambeacutem procuramos

demonstrar que a Ciropedia se afasta do projeto historiograacutefico estabelecido por

Heroacutedoto e desenvolvido por Tuciacutedides e se aproxima do gecircnero biograacutefico109 ao

combinar os feitos poliacuteticos e militares com a narrativa ficcional da vida particular do

heroacutei da Ciropedia Todavia ao observarmos o modo de imitaccedilatildeo executado na

Ciropedia demonstramos que ela se afasta do modelo das biografias de narraccedilatildeo

simples e se aproxima do gecircnero de imitaccedilatildeo mista da eacutepica Desse modo podemos

afirmar que a Ciropedia eacute uma narrativa eacutepica (mista) de ficccedilatildeo em prosa ou seja seu

estatuto eacute tal qual o do romance

Estabelecido tal estatuto analisaremos as estruturas da Ciropedia que a tornam a

mais antiga ancestral do Romance de Formaccedilatildeo (Bildungsroman)

Criacuteticos como Lesky (1986) Bakhtin (2010) e Tatum (1989) afirmam que a

Ciropedia eacute uma das obras ancestrais do Romance de Formaccedilatildeo poreacutem em seus estudos

108 Assinalar o caraacuteter ficcional de uma obra natildeo eacute necessariamente diminuir o valor esteacutetico de uma obra historiograacutefica nem enfatizar o valor esteacutetico de uma obra ficcional Eacute antes estabelecer o caraacuteter ontoloacutegico do proacuteprio escrito ficcional qualquer que seja ele no qual as oraccedilotildees projetam ldquo[] contextos objectuais e atraveacutes destes seres e mundos puramente intencionais que natildeo se referem a natildeo ser de modo indireto a seres tambeacutem intencionaisrdquo (CAcircNDIDO 2002 p17) 109 A palavra biografia eacute composta pelos termos βίος (vida) γράφειν (escrever) e foi usado pela primeira vez por Plutarco na Vida de Alexandre (1992) Segundo Momigliano (1993 p10) as formas biograacuteficas do seacuteculo IV aC satildeo denominadas pelos antigos de encocircmio revelando por isso a origem epidiacutetica do gecircnero biograacutefico Como afirmamos no capiacutetulo 1 no decorrer deste trabalho utilizaremos a designaccedilatildeo biografia de forma ampla seguindo desse modo Momigliano (1993) abrangendo por isso as obras encomiaacutesticas do seacuteculo IV aC

86

natildeo haacute uma anaacutelise que de fato justifique tal afirmaccedilatildeo Procuraremos neste capiacutetulo

portanto efetivar esta anaacutelise de forma a justificar tal classificaccedilatildeo com a qual tambeacutem

concordamos

41 Bildungsroman e suas origens

Se o romance de formaccedilatildeo por um lado eacute um gecircnero cujo paradigma se

inscreve na obra de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796)

de outro eacute fruto de um intenso e longo jogo de influecircncias e transformaccedilotildees Como

observa Todorov (1988 p34) a origem de um gecircnero repousa sempre em outros

gecircneros discursivos Tais processos dialoacutegicos nem sempre satildeo claros e evidentes ao

pesquisador da poeacutetica histoacuterica devido ao fato de que muitas obras que tiveram um

papel importante na histoacuteria da literatura natildeo sobreviveram ao tempo No entanto ldquo[]

o gecircnero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica []rdquo (BAKHTIN

2010 p121) que satildeo aqueles elementos estruturais primitivos do gecircnero que se

renovam em cada nova obra literaacuteria e que renovando-se permanecem

A anaacutelise destes elementos pode nos oferecer valiosas informaccedilotildees a respeito da

histoacuteria do gecircnero Tal anaacutelise no entanto necessita do conhecimento preacutevio de quais

elementos constituem determinantes para a caracterizaccedilatildeo de gecircnero e que formam

portanto a archaica do Bildungsroman Segundo Maas (1999 p64)

[] a abordagem genealoacutegica permite que se investigue ao lado das semelhanccedilas formais a proacutepria histoacuteria do gecircnero [] Historiar a obra significa captaacute-la na dinacircmica dos processos de sintetizaccedilatildeo empreacutestimo transformaccedilatildeo e exclusatildeo que ocorrem entre as vaacuterias obras singulares que constituem um determinado universo literaacuterio

Ou seja a partir da repeticcedilatildeo em obras singulares de elementos estruturais eacute

possiacutevel estabelecer um diaacutelogo entre as formas estruturais do gecircnero Tal abordagem

deve levar em conta a existecircncia de determinadas obras que se configuram como

paradigmaacuteticas (MAAS 2000 p65) isto eacute caracterizam os elementos miacutenimos de

comparaccedilatildeo A obra paradigmaacutetica do romance de formaccedilatildeo eacute Os anos de

87

aprendizagem de Wilhelm Meister de Goethe e por meio da comparaccedilatildeo com as

estruturas do Meister poderemos determinar se esta ou aquela obra se insere no gecircnero

O conceito de Bildungsroman aparece pela primeira vez em 1810 quando o

professor Karl Morgenstern o emprega durante uma conferecircncia na Universidade de

Dorpat Segundo Maas

A definiccedilatildeo inaugural do Bildungsroman por Morgenstern entende sob o termo aquela forma de romance que ldquorepresenta a formaccedilatildeo do protagonista em seu iniacutecio e trajetoacuteria ateacute alcanccedilar um determinado grau de perfectibilidaderdquo Uma tal representaccedilatildeo deveraacute promover tambeacutem ldquoa formaccedilatildeo do leitor de uma maneira mais ampla do que qualquer outro tipo de romancerdquo (MAAS 2000 p19)

O romance de Goethe Os Anos de aprendizado de Wilhelm Meister publicado

nos anos de 1795-1796 jaacute era por Morgenstern considerado o paradigma modelo dessa

subespeacutecie do gecircnero do romance condiccedilatildeo esta ainda mantida e por isso ldquo[] a

classificaccedilatildeo de obras uacutenicas sob o gecircnero do Bildungsroman deve ainda considerar o

cacircnone miacutenimo constituiacutedo por Os Anos de aprendizado de Wilhem Meisterrdquo (MAAS

2000 p24)

As condiccedilotildees para o surgimento do conceito e por que natildeo do proacuteprio romance

de Goethe ligam-se agrave Revoluccedilatildeo Francesa e ao novo ideal de homem por ela

propagada o burguecircs agrave nova concepccedilatildeo da infacircncia e da crianccedila e agrave crenccedila de que uma

sociedade educadora pode moldar o caraacuteter do individuo A educaccedilatildeo do indiviacuteduo

preconizada no Meister estaacute ligada agrave formaccedilatildeo por um estado regulador sendo a escola

para todos fruto de um dos siacutembolos da Revoluccedilatildeo Francesa a igualdade Goethe ilustra

dessa forma a tensatildeo existente entre o burguecircs cuja aspiraccedilatildeo por uma formaccedilatildeo

universal ultrapassa os limites impostos pela sociedade burguesa e o nobre cuja

formaccedilatildeo universal ultrapassa os ldquo[] limites estreitos da educaccedilatildeo para o trabalho e

para a perpetuaccedilatildeo do capital herdado []rdquo (MAAS 2000 p20) a que estava destinado

o burguecircs

No gecircnero romance Goethe encontrou o solo propiacutecio para tornar feacutertil sua obra

uma vez que o advento do romance moderno coincide com a erupccedilatildeo da vida privada

portanto apta a tratar das ambiccedilotildees natildeo do heroacutei eacutepico mas do heroacutei comum da

oposiccedilatildeo do subjetivismo do indiviacuteduo com o mundo exterior

Para Maas (2000) as questotildees histoacutericas e discursivas que cercam tanto a

criaccedilatildeo do Meister de Goethe quanto da cunhagem do termo Bildungsroman tornam-na

88

uacutenica e nesse sentido natildeo lhe parece possiacutevel reconhecer um gecircnero chamado

ldquoRomance de Formaccedilatildeordquo para aleacutem daquelas condiccedilotildees histoacutericas de sua origem Ou

em outras palavras o Romance de Formaccedilatildeo seria um gecircnero de uma obra soacute Aleacutem

disso segundo Lukaacutecs (2000) a divisatildeo do romance em gecircneros eacute implicada muito mais

por questotildees ideoloacutegicas do que por problemas de estrutura ou caracterizaccedilatildeo

As tentativas portanto segundo Maas de transportar para aleacutem deste contexto o

termo Bildungsroman satildeo insiacutepidas pois a grande quantidade de obras que criacuteticos

arrolam sob este roacutetulo sugere a hipoacutetese de um Bildungsromam ldquo[] antes discursivo

do que propriamente literaacuterio []rdquo (p24) ou seja tendo como elemento unificador mais

um ideal de formaccedilatildeo do que elementos estruturais e literaacuterios do romance

O Bildungsromam mostra-se entatildeo como uma forma literaacuteria definiacutevel apenas a partir da grande Bildungs-Frage da grande questatildeo da formaccedilatildeo considerada natildeo apenas em relaccedilatildeo ao momento especiacutefico de sua gecircnese mas por meio das diferentes eacutepocas histoacutericas [] a formaccedilatildeo no sentido amplo como a considera Jacobs ultrapassa os limites histoacutericos da gecircnese do conceito Bildungsroman (MAAS 2000 p63)

No entanto Bakhtin (2010 p223) demonstra que a histoacuteria do romance e de

suas formas variantes pode ser baseada em princiacutepios estruturais como a imagem do

heroacutei da narrativa e o grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico O que distingue no seu

entender o romance de formaccedilatildeo dos outros tipos de romance ndash romance de provas

romance de viagem romance biograacutefico ndash eacute justamente a construccedilatildeo do heroacutei Isso natildeo

significa que negamos a historicidade do termo Bildungsroman e sua problemaacutetica

discursiva mas que este subgecircnero romanesco enquanto forma desenvolve-se

reformulando-se ateacute finalmente desenvolver suas amplas capacidades na obra de

Goethe

Segundo Bakhtin (2010 p235) nos outros tipos de romance o heroacutei eacute imutaacutevel

e nem mesmo todas as aventuras pelas quais ele passa satildeo capazes de fazecirc-lo evoluir O

homem eacute estaacutetico mesmo se movimentando em espaccedilo amplo Assim o romance de

formaccedilatildeo uma variante especiacutefica do romance difere-se das outras formas pela imagem

dinacircmica do heroacutei Conforme Bakhtin (2010 p237)

As mudanccedilas por que passa o heroacutei adquirem importacircncia para o enredo romanesco que seraacute por conseguinte repensado e reestruturado O tempo se introduz no interior do homem impregna-lhe toda a imagem modificando a importacircncia substancial do seu

89

destino e da sua vida Pode-se chamar este tipo de romance numa acepccedilatildeo muito ampla de romance de formaccedilatildeo do homem

A partir desta distinccedilatildeo Bakhtin (2010 p235-236) aceita com tranquilidade a

grande variedade que se costuma relacionar a esta variante do gecircnero

Ciropedia de Xenofonte (Antiguidade) Parzival de Wolfram com Eschenbach (Idade Meacutedia) Gargantua e Pantragruel de Rabelais Simplicissimus de Grimmelshausen (Renascimento) Telecircmaco de Fenecirclon (Neoclassicismo) Emiacutelio de Rousseau (na medida em que este tratado pedagoacutegico comporta muitos elementos romanescos) Agathon de Wieland Tobias Knaut de Wetzel Correntes de vida por linhas ascendentes de Hippel Wilhelm Meister de Goethe (os dois romances) Titatilde de Jean Paul (e alguns outros romances seus) David Copperfield de Dickens O pastor da fome de Raabe Henrique o Verde de Gottfried Keller Pedro o afortunado de Pontoppidan Infacircncia adolescecircncia e juventude de Tolstoi Uma Histoacuteria comum de Gontcharov Jean-Christophe de Romam Rolland Os Budenbrook e A Montanha Magica de Tomas Mann etc

Tanto obras anteriores agrave de Goethe quanto posteriores formam a histoacuteria dessa

nova acepccedilatildeo do homem na literatura um homem que se forma enquanto lemos a sua

narrativa Natildeo escapa a Bakhtin contudo a homogeneidade destas obras e esta

homogeneidade eacute fruto dos diferentes modos de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico no

interior do enredo e principalmente no interior do homem Segundo o teoacuterico russo

ldquo[] a formaccedilatildeo (transformaccedilatildeo) do homem varia poreacutem muito conforme o grau de

assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico realrdquo (BAKHTIN 2010 p238) A partir disso ele

dividiraacute o romance de formaccedilatildeo em cinco distintos grupos de acordo com o grau de

assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico Retomaremos esta divisatildeo feita por Bakhtin na seccedilatildeo

44 deste capiacutetulo Podemos por ora concluir que para Bakhtin se de um lado o que

une tatildeo diversas obras sob o roacutetulo de Romance de Formaccedilatildeo eacute a transformaccedilatildeo da

personagem principal de outro lado o que as separa eacute o grau de transformaccedilatildeo dessa

personagem variando de acordo com o grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico

Juumlrgen Jacobs (1989) estabelece uma definiccedilatildeo para Bildungsroman que

segundo Maas (1999) flexibiliza o conceito de modo que ele possa abranger uma

grande diversidade de obras

Fica clara portanto a opccedilatildeo pelas caracteriacutesticas predominantemente conteuacutedisticas em detrimento das formais Estas em vez de traccedilos diferenciadores satildeo apenas suporte decorrente do elenco temaacuteticoconteudiacutestico natildeo produzindo portanto um corpus definidor (MAAS 2000 p63)

90

Concordamos com a pesquisadora quanto agrave grande abrangecircncia que o conceito

de Jakobs adquire principalmente quando pensadas para o romance moderno

Entretanto os eixos temaacuteticos revelam-se intimamente interessantes para o estudo das

obras anteriores ao Wilhelm Meister porque por meio da anaacutelise deles podemos

reconhecer os elementos da archaica do gecircnero e que por seu caraacuteter temaacutetico

promovem a evoluccedilatildeo da personagem na narrativa Parece-nos muito relevante

encontrar em uma obra tatildeo distante temporalmente como a Ciropedia a presenccedila de

certos elementos que ainda hoje surgem como determinantes na composiccedilatildeo de certo

tipo variante do gecircnero do romance seja na sua manutenccedilatildeo seja na sua paroacutedia como

eacute o caso de O Tambor (1959) de Guumlnter Grass As caracteriacutesticas segundo Jacobs (apud

MAAS 2000 p62) satildeo

bull a consciecircncia do protagonista de que ele percorre um processo de aprendizado

(concepccedilatildeo teleoloacutegica da educaccedilatildeo)

bull o percurso do protagonista estaacute determinado por enganos e avaliaccedilotildees

equivocadas que devem ser corrigidas no transcorrer do romance

bull o protagonista tem como experiecircncias tiacutepicas a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave casa

paterna a atuaccedilatildeo de mentores e de instituiccedilotildees educacionais o encontro com a

esfera da arte experiecircncias intelectuais eroacuteticas [sic] aprendizado de uma

profissatildeo e o contato com a vida puacuteblica

Observamos que estes eixos temaacuteticos propostos por Jacobs referem-se todos ao

percurso do heroacutei em formaccedilatildeo da narrativa Isso significa que a partir da anaacutelise destes

eixos reconheceremos justamente a evoluccedilatildeo da personagem que segundo Bakhtin

(2010) eacute determinante na configuraccedilatildeo do gecircnero Os eixos temaacuteticos configuram-se

como figurativizaccedilotildees da estrutura interna da narrativa A personagem no Romance de

Formaccedilatildeo natildeo pode ser estaacutetica mas evolutiva Desse modo a anaacutelise dos temas revela

uma estrutura formal natildeo apenas conteudiacutestica

Portanto na sequecircncia desse capiacutetulo procuraremos demonstrar de que modo

essas caracteriacutesticas satildeo construiacutedas na tessitura narrativa da Ciropedia de Xenofonte

Nem todas as experiecircncias tiacutepicas a que se refere Jacobs todavia surgem no romance110

110 Lembramos que o uso do termo romance quando nos referimos agrave Ciropedia deve-se levar em conta as ressalvas as ressalvas feitas sobre o uso anacrocircnico do gecircnero no capiacutetulo 2241

91

de Xenofonte jaacute que o modelo de formaccedilatildeo por que Ciro passa difere ideologicamente

por questotildees histoacutericas e culturais daquelas encontradas no romance moderno burguecircs

de forma geral Restringiremos entatildeo nossa exposiccedilatildeo agraves experiecircncias tiacutepicas da

separaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave casa paterna a atuaccedilatildeo de mentores e de instituiccedilotildees

educacionais aleacutem da consciecircncia teleoloacutegica da educaccedilatildeo por parte da proacutepria

personagem E mostraremos como elas satildeo representadas na Ciropedia de Xenofonte e

como elas atuam de forma significativa no processo final de formaccedilatildeo de Ciro Por fim

analisaremos o grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico na Ciropedia de Xenofonte

42 A paideacuteia como tema da narrativa o proecircmio (Cirop I11-6)

Antes de entrar na anaacutelise propriamente dita dos elementos que constituem a

archaica do Bildungsroman na tessitura da Ciropedia gostariacuteamos de analisar o

proecircmio da Ciropedia porque os proecircmios se configuram como um discurso

autoexplicativo metaliteraacuterio e acreditamos que a sua anaacutelise nos proveraacute de

informaccedilotildees interessantes tanto a respeito da estrutura quanto a respeito do tema da

narrativa

Os proecircmios nas obras dos historiadores trazem elementos de autoridade e

autoria para a sua narraccedilatildeo (BRANDAtildeO 2005 p164) Nestes entrechos pode-se

apreender ldquo[] um projeto historiograacutefico singular configuraccedilotildees do saber conjecturas

intelectuais e poliacuteticas []rdquo (HARTOG 2001 p10) O leitor pode entrever nos

proacutelogos as intenccedilotildees objetivos e meacutetodo do historiador que ao contraacuterio do orador

natildeo tem necessidade de agradar a um puacuteblico poreacutem precisa demonstrar a utilidade de

sua obra Eacute importante ressaltar que esses procedimentos assim como os tiacutetulos das

obras dos historiadores foram imitados pelos romancistas gregos provavelmente

devido ao seu caraacuteter de autoridade (BRANDAtildeO 2005 p110 HAumlGG 1991 p111)

Xenofonte a rigor natildeo apresenta proacutelogos em suas obras historiograacuteficas e isso

jaacute eacute uma inovaccedilatildeo da sua escrita Nas Helecircnicas o comeccedilo eacute abrupto com a frase

ldquoDepois dissordquo111 indicando que Xenofonte se propotildee continuar a obra de Tuciacutedides

exatamente do ponto onde esta se interrompe e na conclusatildeo de sua proacutepria obra

111 Helecircnicas 1 11 Μετὰ δὲ ταῦτα

92

convida a quem assim desejar que continue a sua histoacuteria112 Para Hartog essa ausecircncia

aproximada de outros traccedilos da peculiar escrita da histoacuteria de Xenofonte revela a

mudanccedila de postura tiacutepica de um momento de perturbaccedilatildeo (HARTOG 2001 p11)

Na Ciropedia ao contraacuterio do que ocorre nas Helecircnicas Xenofonte inicia sua

obra com um proecircmio natildeo tatildeo denso e vasto quanto o proecircmio de Tuciacutedides mas no

qual estabelece as causas e motivos de sua obra Por que tal mudanccedila de atitude Nas

Helecircnicas o objeto de exposiccedilatildeo do ateniense eacute a proacutepria histoacuteria contemporacircnea de

Atenas e na esteira de Tuciacutedides para quem a uacutenica histoacuteria possiacutevel eacute a histoacuteria do seu

proacuteprio tempo Xenofonte estabelece-se como seu continuador No entanto que modelo

Xenofonte poderia tomar para imitar na Ciropedia uma vez que o tema de sua

narrativa natildeo eacute a histoacuteria dos povos mas eacute a biografia de Ciro

O modelo historiograacutefico anterior a Xenofonte eacute o modelo das histoacuterias dos

povos e a histoacuteria do indiviacuteduo surge agrave medida que ele interfere participando

ativamente do mundo poliacutetico A vida de Ciro narrada por Heroacutedoto interessa ao

historiador natildeo tanto pela vida do monarca em si mas porque ela representa tanto as

ideias de Heroacutedoto sobre o divino quanto as causas que deram iniacutecio ao verdadeiro

tema da sua obra as Guerras Meacutedicas Eacute neste sentido que Momigilano (1993) fala de

traccedilos biograacuteficos na historiografia as narrativas da vida de Ciro de Creso e de outros

encontrados nas Histoacuterias de Heroacutedoto soacute tecircm sentido dentro da percepccedilatildeo da histoacuteria

de seus povos Assim tambeacutem a vida de Alcibiacuteades narrada por Tuciacutedides soacute se

motiva em conjunccedilatildeo com a proacutepria Guerra do Peloponeso O tema dessas narrativas

histoacutericas natildeo satildeo os homens que a vivenciaram mas no caso de Heroacutedoto as Guerras

Meacutedicas e no caso de Tuciacutedides a Guerra do Peloponeso

Jaacute afirmamos anteriormente que do ponto de vista temaacutetico a Ciropedia se

enquadra no gecircnero biograacutefico pois apresenta a anaacutelise do caraacuteter de uma personagem

por meio da narraccedilatildeo de eventos particulares e puacuteblicos (MOMIGLIANO 1993 p16) e

que do ponto de vista do modo de imitaccedilatildeo a obra eacute diversa das outras biografias de

seu tempo Isso significa que a obra desenvolve um modo de imitaccedilatildeo proacuteprio ndash

comparado agraves biografias encomiaacutesticas ndash e natildeo encontra na tradiccedilatildeo dos bioacutegrafos

paralelo a ser imitado Aleacutem disso ao enquadrar sua narrativa a um proacutelogo

historiograacutefico Xenofonte almeja o efeito de verdade para a sua narrativa ficcional

Poreacutem esse proacutelogo apresenta sensiacuteveis diferenccedilas comparadas aos proacutelogos dos

112 Helecircnicas 7 527 Tὰ δὲ μετὰ ταῦτα ἴσως ἄλλῳ μελήσει Que igualmente outro se ocupe do que aconteceu a partir disso (Traduccedilatildeo nossa)

93

historiadores Primeiramente como jaacute afirmamos113 o narrador divide seu material em

trecircs temas principais a genealogia γένεαν a natureza φύσιν e a educaccedilatildeo παιδέια

Conforme Menandro Reacutetor (1996) em seu segundo tratado sobre o gecircnero epidiacutetico

γένεαν φύσιν e παιδέια satildeo toacutepoi do gecircnero epidiacutetico Ao trazer para o discurso

narrativo da historiografia um tema do encocircmio Xenofonte deixava de visar em sua

narrativa agrave rigorosa verdade pois do epidiacutetico a verdade factual natildeo fazia parte do

conjunto de procedimentos de escritura O proacutelogo portanto eacute um artifiacutecio literaacuterio a

fim de dar veracidade agrave narrativa

Outra diferenccedila entre o proacutelogo de Xenofonte e dos historiadores claacutessicos eacute a

forma de apresentaccedilatildeo do narrador O proecircmio da Ciropedia inicia-se na primeira

pessoa do plural114 e no decorrer de toda narrativa o narrador jamais se nomeia Cria-se

assim uma estrateacutegia de distanciamento entre narrador e autor e de certo modo entre o

narrador e o narrado O narrador natildeo se identifica com o proacuteprio autor de forma clara

como o fazem Tuciacutedides e Heroacutedoto que se nomeiam jaacute nas primeiras linhas de suas

respectivas obras O anonimato do narrador cria o efeito de factualidade da narrativa

como se os fatos surgissem por si mesmos sem o intermeacutedio de uma investigaccedilatildeo

subjetiva Jacyntho Lins Brandatildeo (2005) argumenta que a voz de Xenofonte natildeo seria

anocircnima em virtude da identificaccedilatildeo que o leitor faria entre esses pronomes com a

informaccedilatildeo paratextual que deveria encabeccedilar os textos divulgados (o tiacutetulo da obra e o

nome do autor) Acreditamos em sintonia com Dellebecque (1957) que eacute difiacutecil

determinar quando estas informaccedilotildees paratextuais foram acrescidas ao texto conhecido

por noacutes e se isso era uma teacutecnica estabelecida por Xenofonte ou foi acrescentada por

comentadores posteriores Aleacutem disso vale lembrar que a Anaacutebase foi primeiramente

publicada com o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa e nas Helecircnicas Xenofonte

refere-se agrave obra de Temistoacutegenes como se de fato a obra natildeo fosse sua Percebemos

desse modo que o jogo entre autor narrador e narrado desdobra-se em problemaacutetica nas

narrativas de Xenofonte e esta confusatildeo entre escritor e narrador na Ciropedia parece

determinante como processo de imitaccedilatildeo do futuro romance

113 Cf a subseccedilatildeo 2242 114 Por exemplo ἡmicroῖν (heacutemin a noacutes) ἐδοκοῦmicroεν (edokouacutemen julgaacutevamos) ἐνενοοῦmicroεν (enenoouacutemen pensamos) ᾐσθήmicroεθα (eistheacutemetha percebemos) ἐνεθυmicroούmicroεθα (enethumouacutemetha refletimos) ἐνενοήσαmicroεν (enenoeacutesamen pensaacutevamos) ἴσmicroεν (iacutesmen vimos) θαυmicroάζεσθαι (thaumaacutedzesthai ficamos admirados) ἐσκεψάmicroεθα (eskepsaacutemetha observamos) ἐπυθόmicroεθα (eputhoacutemeta) δοκοῦmicroεν (dokouacutemen julgamos)

94

Esta ilusatildeo de objetividade e realismo caracteriacutestica do discurso historiograacutefico

estilizou-se no discurso dos romancistas sejam eles modernos ou claacutessicos Xenofonte

ao que nos parece foi o primeiro escritor da Greacutecia a recuperar a objetividade do

discurso histoacuterico a fim de narrar uma narrativa ficcional

Do ponto de vista da estrutura o proecircmio de uma obra histoacuterica segundo

Luciano de Samoacutestata115 deve esclarecer o leitor e facilitar-lhe a compreensatildeo do relato

que se seguiraacute As formas de inauguraccedilatildeo do discurso histoacuterico segundo Barthes

(1988) satildeo duas

a-) abertura performativa igual ao canto dos poetas invocativo

b-) prefaacutecio ato que caracteriza a enunciaccedilatildeo ao confrontar os dois tempos

marcando com signos expliacutecitos de enunciaccedilatildeo o discurso histoacuterico

No primeiro caso temos as obras de Heroacutedoto e de Tuciacutedides enquanto que no

segundo caso temos a narrativa de Xenofonte O narrador no proecircmio da Ciropedia

nos chama a atenccedilatildeo para o resultado de suas reflexotildees a respeito da arte de governar os

homens eram incapazes de serem governados pois tanto nos regimes democraacuteticos

quanto nos monaacuterquicos e oligaacuterquicos eles sempre estavam a reclamar outro regime

Entretanto

Contudo desde que observamos que existiu Ciro o persa aquele que conservou numerosos homens obedientes a ele numerosas cidades numerosos povos a partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de que o governar os homens natildeo eacute das tarefas nem impossiacuteveis nem aacuterduas se algueacutem agir com habilidade Ao menos sabemos que a Ciro eram obedientes de bom grado uns estando distantes uma marcha de numerosos dias enquanto que outros de meses e outros ainda que jamais o viram e mesmo os outros que bem sabiam que natildeo o veriam e todavia desejavam lhe obedecer116 (Cirop 11 3 grifo nosso)

Mas no que consiste este ldquoagir habilmente para issordquo A traduccedilatildeo para liacutengua

portuguesa do Brasil de Jaime Bruna parafraseia esta expressatildeo pela forma ldquoteacutecnicardquo

115 Em Como se deve escrever a Histoacuteria (LUCIANO 2009) traduccedilatildeo de Jacyntho Lins Brandatildeo 116 No original ἐπειδὴ δὲ ἐνενοήσαμεν ὅτι Κῦρος ἐγένετο Πέρσης ὃς παμπόλλους μὲν

ἀνθρώπους ἐκτήσατο πειθομένους αὑτῷ παμπόλλας δὲ πόλεις πάμπολλα δὲ ἔθνη ἐκ

τούτου δὴ ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν μὴ οὔτε τῶν ἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ

ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τις ἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ Κύρῳ γοῦν ἴσμεν ἐθελήσαντας

πείθεσθαι τοὺς μὲν ἀπέχοντας παμπόλλων ἡμερῶν ὁδόν τοὺς δὲ καὶ μηνῶν τοὺς δὲ οὐδ᾽

ἑωρακότας πώποτ᾽ αὐτόν τοὺς δὲ καὶ εὖ εἰδότας ὅτι οὐδ᾽ ἂν ἴδοιεν καὶ ὅμως ἤθελον αὐτῷ

ὑπακούειν (Cirop 113)

95

(XENOFONTE 1965 p14) e tal opccedilatildeo reflete certa interpretaccedilatildeo que repousa na

histoacuteria de leituras da obra segundo a qual este texto eacute um manual de teacutecnicas sobre a

arte de governar Decorre desta interpretaccedilatildeo muito da criacutetica que sofreu a Ciropedia

nos uacuteltimos tempos de uma obra tediosa Parece-nos que ao compreender o texto desta

maneira os criacuteticos simplificam todo o conteuacutedo da obra pois ela na verdade mais do

que um manual eacute antes de tudo e acima de tudo uma narrativa As reflexotildees sobre as

qualidades humanas e o discurso didaacutetico em geral estatildeo figurativizadas e inseridas na

narrativa de um uacutenico homem Ciro A narrativa portanto nos conduz e nos

conduzindo por meio dos atos das personagens nos ensina

Haacute neste proecircmio o que Barthes chama de descronologizaccedilatildeo do fio histoacuterico

pois o narrador mostra-se sabedor daquilo que ainda natildeo foi contado Os signos do

enunciador tornam-se evidentes construindo sua proacutepria imagem como um detentor de

um saber que se transmite como uma verdade que natildeo pode ser desmentida Como sabe

alguma coisa o narrador estaacute apto e autorizado a instruir por meio de uma narrativa dos

feitos ldquomemoraacuteveisrdquo substituindo desse modo a Musa homeacuterica pela pesquisa e pelo

conhecimento Contudo quais seriam esses feitos memoraacuteveis Hartog (2001 p101)

nos diz que

Xenofonte natildeo cessou de refletir sobre a questatildeo do comando buscar compreender diz ele por que o espartano Telecircucias era a tal ponto admirado pelos seus soldados eacute ldquoa tarefa mais digna de um homemrdquo (Hel 51 4) Satildeo essas qualidades que fazem do espartano Agesilau um modelo a ser imitado Enfim a ficccedilatildeo poliacutetica da Ciropedia responde agrave seguinte questatildeo que espeacutecie de homem era Ciro para fazer-se obedecer por um tatildeo grande nuacutemero de pessoas

Portanto as causas do ldquoagir com habilidaderdquo constituem o tema de narraccedilatildeo de

Xenofonte neste sentido o agir natildeo eacute um dado meramente inato do liacuteder poreacutem fruto

de um processo no qual estatildeo relacionados trecircs fenocircmenos que seratildeo segundo ele

objetos de sua narrativa

Em vista desse homem que foi merecedor de nossa admiraccedilatildeo noacutes examinamos de qual famiacutelia era qual natureza possuiacutea e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo a tal ponto que o conduziram a governar os homens Portanto o quanto noacutes averiguamos e o quanto julgamos ter compreendido sobre ele tentaremos expor117 (Cirop 11 6)

117 No original [6] ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδρα ἐσκεψάμεθα τίς ποτ᾽ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶς παιδείᾳ τοσοῦτον

96

A partir dessa triparticcedilatildeo118 o narrador iniciaraacute a diegese propriamente dita Eacute

interessante notar a distinccedilatildeo ldquoentre qualidades herdadas ou inatas e qualidades

adquiridas atraveacutes da educaccedilatildeo e do ambienterdquo119 (DUE 1989 p148 traduccedilatildeo nossa)

que Xenofonte postula Quanto aos ascendentes ou genealogia (γενεάν) o narrador

nos diz que Ciro eacute pelo lado paterno filho de Cambises rei persa descendente de

Perseu heroacutei mitoloacutegico e pelo lado materno neto do rei dos Medos Quanto aos seus

dotes naturais (φύσιν) ele era ldquo[] de aparecircncia muito bela com alma muitiacutessima

bondosa amantiacutessimo dos estudos e das honras de tal modo que suportava todas as

fadigas resistia a todos os perigos pelo amor aos elogios 120rdquo (Cirop 12 1)

Vemos que o espaccedilo dedicado agrave descriccedilatildeo dos ascendentes e dos dotes naturais eacute

pequeno e breve natildeo passando de um raacutepido paraacutegrafo Natildeo devemos contudo

subestimar o importante papel desses dados biograacuteficos tanto para o desenvolvimento

da narrativa quanto para o proacuteprio pensar grego Observa-se por exemplo em Homero

que as personagens ao se apresentarem sempre se distinguem pela sua genealogia e a

descendecircncia divina garante a elas o respeito dos homens comuns (VERNANT 1992)

aleacutem de um destino heroico e glorioso

Quanto agrave descriccedilatildeo da natureza das personagens Heroacutedoto por exemplo na

narrativa que dedica a Ciro mostra que jaacute na infacircncia o futuro imperador Persa

demonstrava as qualidades de governante sendo elas portanto da sua proacutepria natureza

natildeo ensinadas ou adquiridas pela educaccedilatildeo jaacute que Ciro foi educado entre os pastores

Aleacutem disso Xenofonte no decorrer da narrativa iraacute contrapor justamente

personagens cuja ascendecircncia e dotes naturais satildeo os mesmos dos de Ciro mas que ao

contraacuterio deste fracassaram de algum modo na sua carreira Ciaxares121 por exemplo

eacute tio de Ciro ou seja sua ascendecircncia tambeacutem real contudo quando Ciaxares e seu

διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι (Cirop116) 118 Essa a triparticcedilatildeo que propotildee Xenofonte ndash genealogia natureza e educaccedilatildeo ndash encontra-se ainda na obra biograacutefica de Plutarco do seacuteculo I dC Momigliano em The Development of greek biography (1993) acrescenta que aliado a estas trecircs caracteriacutesticas o fato de Xenofonte tratar da vida de Ciro em ordem cronoloacutegica do nascimento ateacute sua morte torna-a a mais inovadora obra para a biografia grega 119 No original between inherited or innate qualities and quailities acquired through education and environment 120 No original [hellip] εἶδος μὲν κάλλιστος ψυχὴν δὲ φιλανθρωπότατος καὶ φιλομαθέστατος

καὶ φιλοτιμότατος ὥστε πάντα μὲν πόνον ἀνατλῆναι πάντα δὲ κίνδυνον ὑπομεῖναι τοῦ

ἐπαινεῖσθαι ἕνεκα (Cirop121) 121 Parece haver unanimidade entre criacuteticos de que Ciaxares eacute uma personagem inventada por Xenofonte Cf James Tatum The Envy of Uncle Ciaxaes In Xenophonrsquos Imperial Fiction 1989 p115-133

97

sobrinho vatildeo agrave guerra liderando o exeacutercito persa e medo Ciro mostra-se muito mais

preparado em tomar as decisotildees corretas e por isso eacute honrado e seguido pelos soldados

de bom grado (ἐθελήσαντας ethelesantas) inclusive pelos proacuteprios soldados de

Ciaxares Isso provoca fortes ciuacutemes em seu tio e a resoluccedilatildeo desse impasse se daraacute

apenas quando Ciaxares reconhecer a superioridade de Ciro e aceitar de bom grado uma

alianccedila entre eles122

Do mesmo modo a figura de Creso rei da Liacutedia eacute sintomaacutetica tal qual Ciro ele

representa a ambiccedilatildeo por honras e elogios e se destaca como um bom liacuteder para os seus

suacuteditos liacutedios Poreacutem na guerra empreendida contra Ciro Creso sai derrotado pois ao

contraacuterio de Ciro eacute atingido pelo excesso de suas paixotildees Enquanto Ciro compreende

que o autocontrole eacute essencial para evitar uma maacute interpretaccedilatildeo da realidade e promover

um bom julgamento de suas proacuteprias accedilotildees Creso dominado pelo desejo fracassa

Em ambos os casos o que diferencia Ciro das personages de Ciaxares e Creso eacute

a sua paideia a formaccedilatildeo e o exerciacutecio contiacutenuo dos ensinamentos obtidos quando

crianccedila Desse modo a educaccedilatildeo torna-se o elemento determinante desta triparticcedilatildeo

para que o heroacutei avance e venccedila em sua trajetoacuteria

Passaremos a analisar os elementos da archaica do romance de formaccedilatildeo na

tessitura narrativa da Ciropedia A nossa tese eacute a de que estes elementos da archaica

satildeo figurativizados de modo a proporcionar uma educaccedilatildeo exemplar a Ciro Assim

analisaremos os seguintes elementos estruturais a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave casa paterna

a atuaccedilatildeo de mentores e de instituiccedilotildees educacionais aleacutem da consciecircncia teleoloacutegica da

educaccedilatildeo por parte da proacutepria personagem Procuraremos averiguar como estes

elementos satildeo representados na Ciropedia e como atuam de forma significativa no

processo final de formaccedilatildeo de Ciro

43 As archaica do Romance de Formaccedilatildeo

431 A Instituiccedilatildeo educacional a paideia persa e a consciecircncia

teleoloacutegica

122 A alianccedila entre tio e sobrinho seraacute concretizada por meio de um casamento Ciro casa-se com sua prima filha de Ciaxares e com isso fortalece a alianccedila O casamento se daacute no final da narrativa e natildeo eacute objeto de muita atenccedilatildeo por parte do narrador

98

Muito se pode dizer como de fato muito jaacute foi dito a respeito da educaccedilatildeo persa

relatada no Livro I 2 da Ciropedia poreacutem o que mais realccedila aos olhos eacute sua

semelhanccedila com o modelo de educaccedilatildeo espartana O filoespartanismo natildeo eacute uma

peculiaridade inerente apenas a Xenofonte jaacute que ele natildeo foi o uacutenico ateniense a exaltar

Esparta O espiacuterito filoespartano estaacute presente tambeacutem nas obras de Isoacutecrates de Platatildeo

e de Aristoacuteteles atenienses ilustres que criticaram a experiecircncia democraacutetica de Atenas

(MOURA 2000 p15) O que mais nos surpreende nesta atitude dos pensadores

atenienses eacute que mesmo a Guerra do Peloponeso fruto da rivalidade histoacuterica entre

Atenas e Esparta natildeo impediu que estes pensadores admirassem o grande rival do povo

ateniense

Segundo Moura (2000 p37) essa situaccedilatildeo ideoloacutegica do seacuteculo IV aC tatildeo

diacutespare do comportamento dos aristocratas do seacuteculo VI aC liga-se ao fato de que

ldquo[] a questatildeo do nascimento primordial para a argumentaccedilatildeo dos primeiros [os

aristocratas do seacuteculo VI aC] era para os uacuteltimos [os intelectuais do seacuteculo IV aC]

em termos de regime poliacutetico ideal apenas um entre outros muitos fatoresrdquo

Aleacutem disso os valores que estes intelectuais pregavam como virtude sabedoria

justiccedila disciplina temperanccedila satildeo valores que se orientam natildeo para uma ideologia

aristocraacutetica mas para uma ideologia oligaacuterquica123 Para Aristoacuteteles a diferenccedila

primordial entre democracia e oligarquia finca-se na questatildeo da pobreza e da riqueza

pois ldquo[] onde quer que os homens governem segundo a sua riqueza sejam eles poucos

ou muitos haacute oligarquia e onde os pobres governam haacute uma democracia []rdquo

(ARISTOacuteTELES 1999 1279 b14-15) Isso significa que onde quer que os governos

oligarcas se estabeleccedilam as suas instituiccedilotildees pouco difeririam das democraacuteticas

(Assembleias Conselhos Magistraturas) ldquo[] diferenciando-se apenas em relaccedilatildeo agrave

maior ou menor participaccedilatildeo dos cidadatildeos nas instituiccedilotildees puacuteblicasrdquo (MOURA 2000

p43)

Os oligarcas de modo geral tinham como ideal o oacutecio conceito este vinculado agrave

ideia de tempo livre poreacutem produtivo na qual os homens deveriam exercer praacuteticas

para seu engrandecimento moral e fiacutesico como a filosofia dedicaccedilatildeo aos negoacutecios

puacuteblicos agrave retoacuterica agrave caccedila agrave cavalaria participaccedilatildeo em banquetes etc Atraveacutes destas

praacuteticas ldquo[] alcanccedilar-se-ia a distinccedilatildeo sobre os demais membros da sociedade jaacute que

123 No Agesilau 14 Xenofonte define democracia oligarquia monarquia e tirania como os governos existentes na Greacutecia de seu tempo

99

cada uma delas continha regras esteacuteticas e comportamentais especiacuteficasrdquo (MOURA

2000 p40)

Em vista disso faacutecil eacute compreender o papel de Esparta no pensamento grego do

seacuteculo IV aC O modelo espartano de governo apresentava vaacuterias caracteriacutesticas que o

aproximavam dos ideais das elites oligaacuterquicas gregas como a organizaccedilatildeo do governo

as suas leis e o seu modo de vida Assim como afirma Johnstone (apud MOURA 2000

p53)

[] muito da argumentaccedilatildeo das elites do seacuteculo quarto vai se afastar um pouco da retoacuterica do nascimento e passar a ter como base a necessidade de se afirmarem enquanto atores sociais possuidores de uma forma de vida estilizada cujas praacuteticas e comportamentos sociais deviam ser capazes de manifestar sua superioridade sobre o resto da populaccedilatildeo

Xenofonte portanto encontra nesse modelo de organizaccedilatildeo espartana subsiacutedios

para a afirmaccedilatildeo de seus ideais oligaacuterquicos Neste sentido a aproximaccedilatildeo efetuada

entre a instituiccedilatildeo persa e a instituiccedilatildeo espartana na Ciropedia cuja fidelidade agrave histoacuteria

eacute secundada pela fidelidade ao didatismo parece natural ldquoOs espartanos tinham na

visatildeo de Xenofonte todo o desprendimento das coisas materiais que os ricos deveriam

terrdquo (MOURA 2000 p65) Na visatildeo de Xenofonte os espartanos ao menos os ricos

aproveitavam seu tempo engrandecendo-se a partir de praacuteticas estilizadoras A

separaccedilatildeo entre ricos e pobres fica evidente na Ciropedia quando o narrador diz

Mas certamente os que podem sustentar os filhos sem que eles trabalhem enviam os que natildeo podem natildeo enviam Aos que foram educados junto aos mestres puacuteblicos eacute permitido por lei passar a juventude na classe dos efebos mas aos que natildeo foram educados dessa maneira natildeo eacute permitido124 (Cirop 12 15)

Portanto Xenofonte aproveitou-se dos elementos estilizadores da educaccedilatildeo

espartana para criar a imagem da formaccedilatildeo ideal representada na narrativa como persa

Desse modo justifica-se o que parecia agrave primeira vista injustificaacutevel a filiaccedilatildeo de um

ateniense ao partidarismo espartano

124 No original ἀλλ᾽ οἱ μὲν δυνάμενοι τρέφειν τοὺς παῖδας ἀργοῦντας πέμπουσιν οἱ δὲ μὴ

δυνάμενοι οὐ πέμπουσιν οἳ δ᾽ ἂν παιδευθῶσι παρὰ τοῖς δημοσίοις διδασκάλοις ἔξεστιν

αὐτοῖς ἐν τοῖς ἐφήβοις νεανισκεύεσθαι τοῖς δὲ μὴ διαπαιδευθεῖσιν οὕτως οὐκ ἔξεστιν

100

Como entatildeo funcionam as engrenagens da educaccedilatildeo espartana e como

Xenofonte fundiu na tessitura de sua narrativa a educaccedilatildeo espartana com a educaccedilatildeo

persa

NrsquoA Repuacuteblica dos Lacedemocircnios obra na qual Xenofonte demonstra o

funcionamento da constituiccedilatildeo espartana ele nos diz

Faz tempo que eu observo que Esparta foi muito poderosa e ceacutelebre na Heacutelade [] No entanto depois que me fixei nas ocupaccedilotildees dos espartiatas125 jaacute natildeo fico surpreso A Licurgo que deu a eles as leis com as quais por meio da observacircncia conseguiram sua prosperidade a ele admiro e considero saacutebio no mais alto grau126 (Const LacLI1-2 traduccedilatildeo nossa)

A partir da constataccedilatildeo de que foi Licurgo o responsaacutevel pela grandeza de

Esparta Xenofonte passa a expor as leis instituiacutedas por ele e a explicar o funcionamento

da educaccedilatildeo na cidade de Esparta

Outra obra que nos traz informaccedilotildees valiosas a respeito da constituiccedilatildeo espartana

eacute a vida de Licurgo narrada por Plutarco Segundo Xenofonte e Plutarco Licurgo deu

aos παιδόνομοι (paidonomoi) a autoridade de reunir os meninos e corrigi-los

energicamente Os παιδόνομοι satildeo magistrados importantes e a escolha de homens

importantes agrave cabeccedila da instituiccedilatildeo educacional revela uma verdadeira preocupaccedilatildeo com

a educaccedilatildeo pois esta natildeo poderia ficar a cargo de qualquer cidadatildeo

Entretanto eacute preciso ressaltar que esta educaccedilatildeo era estritamente formadora de

cidadatildeos-soldados ou seja a educaccedilatildeo proposta eacute um caminho que culminaraacute na

retribuiccedilatildeo dos homens agrave cidade que lhes deu a formaccedilatildeo devida Desse modo diz

Xenofonte Licurgo pensava que a procriaccedilatildeo era a primeira funccedilatildeo das mulheres e por

isso elas tinham que exercitar o corpo pois estava convencido ldquo[] de que dos casais

125 Os ldquoespartiatasrdquo satildeo os espartanos com plenos direitos civis e poliacuteticos em oposiccedilatildeo aos ldquoperiecosrdquo que tinham apenas direitos civis e natildeo poliacuteticos e os ldquohilotasrdquo os escravos que careciam de ambos Assim a educaccedilatildeo ndash essa educaccedilatildeo estatal ndash eacute um privileacutegio de poucos 126 No original ἀλλ᾽ ἐγὼ ἐννοήσας ποτὲ ὡς ἡ Σπάρτη τῶν ὀλιγανθρωποτάτων πόλεων οὖσα

δυνατωτάτη τε καὶ ὀνομαστοτάτη ἐν τῇ Ἑλλάδι ἐφάνη ἐθαύμασα ὅτῳ ποτὲ τρόπῳ τοῦτ᾽

ἐγένετο ἐπεὶ μέντοι κατενόησα τὰ ἐπιτηδεύματα τῶν Σπαρτιατῶν οὐκέτι ἐθαύμαζον

Λυκοῦργον μέντοι τὸν θέντα αὐτοῖς τοὺς νόμους οἷς πειθόμενοι ηὐδαιμόνησαν τοῦτον καὶ

θαυμάζω καὶ εἰς τὰ ἔσχατα [μάλα] σοφὸν ἡγοῦμαι (Const LacLI1-2)

101

vigorosos tambeacutem nascem os filhos mais robustosrdquo127 (Const Lac LI4 traduccedilatildeo

nossa)128

A educaccedilatildeo espartana portanto eacute um assunto de Estado129 e a participaccedilatildeo de

todos os seus membros civis eacute vital O Estado eacute seu iniacutecio e seu fim ao contrario do que

ocorria em Atenas onde cada chefe de famiacutelia poderia educar seus filhos agrave maneira que

bem desejasse em Esparta os meninos eram supervisionados e impelidos agrave obediecircncia

Segundo o grande estudioso da cultura claacutessica o alematildeo Werner Jaeger (1995 p1162)

tornar a educaccedilatildeo assunto do Estado eacute a principal contribuiccedilatildeo de Esparta para a

Histoacuteria da Humanidade

O mesmo tipo de educaccedilatildeo ao menos na narraccedilatildeo de Xenofonte ocorre na

Peacutersia130 desde a infacircncia as crianccedilas satildeo entregues agrave tutela do Estado e devem ali

permanecer cumprindo tarefas sob o jugo do aprendizado da justiccedila (δικαιοσύνην

dikaosynen) e da moderaccedilatildeo (σωφροσύνην sophrosynen) em cada uma das classes

As classes satildeo dividas em quatro a das crianccedilas (παῖδες paides) a dos moccedilos

(ἐφήβος ephebos) a dos adultos (τελεῖοι ἄνδρες teleioi andres) e a dos anciatildeos

(γεραίτεροι geraiteroi) Eacute obrigatoacuteria a participaccedilatildeo de todas as crianccedilas e moccedilos e

eles se reuacutenem em uma praccedila chamada Liberdade (ἐλευθέρα ἀγορὰ eleuthera agora)

onde praticam exerciacutecios fiacutesicos e recebem ensinamentos a respeito de noccedilotildees de justiccedila

e moral Quanto aos adultos e anciatildeos apenas aqueles em condiccedilotildees de se apresentar eacute

que participam natildeo sendo a apresentaccedilatildeo obrigatoacuteria salvo em dias determinados Cada

classe tem como tutores os melhores da classe subsequente dessa forma o meacuterito de

cada um eacute retribuiacutedo pela participaccedilatildeo como tutor da classe inferior Assim eacute

127 No original νομίζων ἐξ ἀμφοτέρων ἰσχυρῶν καὶ τὰ ἔκγονα ἐρρωμενέστερα γίγνεσθαι (Const Lac LI4) 128 Rousseau criticaraacute no seu Emiacutelio a educaccedilatildeo espartana justamente nesse ponto formava apenas cidadatildeos natildeo homens ldquoO homem civil eacute apenas uma unidade fracionaacuteria que se liga ao denominador e cujo valor estaacute em relaccedilatildeo com o todo que eacute o corpo social As boas instituiccedilotildees sociais satildeo as que melhor sabem desnaturar o homem retirar-lhes sua existecircncia absoluta para dar-lhes uma relativa e transferir o eu para a unidade comum de sorte que cada particular natildeo se julgue mais como tal e sim como parte da unidade e soacute seja perceptiacutevel no todo [] Uma mulher Espartana tinha cinco filhos no exeacutercito e esperava notiacutecias da batalha Chega um hilota ela lhe pede notiacutecias tremendo ldquoVossos cinco filhos foram mortos ndash Vil escravo terei perguntado isso ndash Noacutes ganhamos a batalhardquo A matildee corre ateacute o templo e daacute graccedilas aos deuses Eis a cidadatilde (ROUSSEAU 1992 p11-12) 129 A Educaccedilatildeo Espartana como a Educaccedilatildeo na Antiguidade em geral muito difere da nossa concepccedilatildeo moderna de Educaccedilatildeo esta se baseia nas conquistas da Revoluccedilatildeo Francesa como demonstra Carlota Boto em A Escola do Homem Novo (1996) 130 Eacute importante salientar que Xenofonte lutou como mercenaacuterio na guerra civil persa ao lado de Ciro o jovem contra seu irmatildeo Artaxerxes Nesta viagem tomou contato com a cultura persa poreacutem as informaccedilotildees sobre a educaccedilatildeo persa satildeo muito escassas para podermos avaliar o quanto haacute de verdadeiro na elaboraccedilatildeo dessa educaccedilatildeo persa

102

estabelecida uma visatildeo teleoloacutegica da educaccedilatildeo de um processo meritoacuterio cujo fim

enquanto aponta para o desenvolvimento das capacidades dos educandos consagra o

melhor para a retribuiccedilatildeo dessas qualidades ao Estado A noccedilatildeo de processo segundo

Maas (1999 p27) eacute evocado pelo termo Bildung raiz formadora do conceito de

Bildungsroman essa noccedilatildeo

[] eacute essencial para a compreensatildeo do romance de formaccedilatildeo a noccedilatildeo de processo Processo neste contexto eacute a sucessatildeo de etapas teleologicamente encadeadas que compotildeem o aperfeiccediloamento do indiviacuteduo em direccedilatildeo agrave harmonia e ao conhecimento de si e do mundo Formaccedilatildeo (Bildung) passa entatildeo a dialogar com educaccedilatildeo (Erziehung) (MAAS 2000 p27)

A compreensatildeo teleoloacutegica angaria ao educando a percepccedilatildeo de que as etapas

pelas quais ele passa natildeo satildeo meramente casuais mas determinadas pela virtude de seu

aperfeiccediloamento seja em alguma habilidade especiacutefica seja na sua formaccedilatildeo espiritual

Aleacutem disso no romance de formaccedilatildeo esta compreensatildeo teleoloacutegica natildeo deve apenas ser

do Estado que regula e exige do indiviacuteduo o cumprimento de uma conduta determinada

desde a infacircncia poreacutem uma concepccedilatildeo do proacuteprio indiviacuteduo que compreende esse

processo natildeo apenas na instituiccedilatildeo oficial mas na proacutepria vida Ciro por exemplo na

sua infacircncia em uma cena que seraacute analisada a seguir com mais atenccedilatildeo revela seu

projeto iacutentimo de auto-aperfeiccediloamento ao escolher permanecer por um tempo na

Meacutedia junto ao avocirc Ele se justifica deste modo agrave matildee

Porque em casa entre os da minha idade sou e tenho a reputaccedilatildeo de ser o melhor em lanccedilar dardos e flechas e aqui eu sei que no cavalgar sou inferior aos da minha idade E veja bem matildee que isto muito me aborrece Se me deixares aqui e eu aprender a cavalgar quando de um lado eu estiver na Peacutersia penso que para ti vencerei nos exerciacutecios de infantaria aqueles que satildeo os melhores de outro quando vier agrave Meacutedia aqui me esforccedilarei sendo o melhor do que os bons cavaleiros do avocirc para ser aliado dele na cavalaria131 (Cirop 13 15)

131 No original ὅτι οἴκοι μὲν τῶν ἡλίκων καὶ εἰμὶ καὶ δοκῶ κράτιστος εἶναι ὦ μῆτερ καὶ

ἀκοντίζων καὶ τοξεύων ἐνταῦθα δὲ οἶδ᾽ ὅτι ἱππεύων ἥττων εἰμὶ τῶν ἡλίκων καὶ τοῦτο εὖ

ἴσθι ὦ μῆτερ ἔφη ὅτι ἐμὲ πάνυ ἀνιᾷ ἢν δέ με καταλίπῃς ἐνθάδε καὶ μάθω ἱππεύειν ὅταν

μὲν ἐν Πέρσαις ὦ οἶμαί σοι ἐκείνους τοὺς ἀγαθοὺς τὰ πεζικὰ ῥᾳδίως νικήσειν ὅταν δ᾽ εἰς

Μήδους ἔλθω ἐνθάδε πειράσομαι τῷ πάππῳ ἀγαθῶν ἱππέων κράτιστος ὢν ἱππεὺς

συμμαχεῖν αὐτῷ (Cirop 1315)

103

Ou seja o breve intercacircmbio cultural de Ciro lhe ilumina os limites da sua

proacutepria cultura e lhe instiga a aprender o que o outro tem de melhor para ele mesmo

ser em seu paiacutes o melhor βέλτιστος (beltistos) A cultura helecircnica desde Homero

revelou-se sempre como uma cultura que premia o melhor e o peso dessa tradiccedilatildeo ecoa

por toda a literatura grega A epopeia em essecircncia toma como material de seu canto

(ἔπος epos) o feito glorioso (κλέος kleos) que deve manter-se na memoacuteria coletiva O

heroacutei deve ser o melhor de todos na batalha e sua honra (τιμή time) deve ser invejada e

respeitada por todos e qualquer sinal do menor desrespeito a sua reputaccedilatildeo eacute motivo

para uma contenda Nesse sentido a ira de Aquiles eacute o melhor exemplo de honra ferida

do guerreiro e nesse jogo em que soacute existem o tudo e o nada o heroacutei teme natildeo ser

lembrado em cantos apoacutes a sua morte132

Ser o melhor eacute uma busca que acaba apenas com a morte pois como ressalta

Soacutefocles no final do Eacutedipo Rei ldquo[] devemos considerar o dia derradeiro do mortal e

natildeo o julgar feliz antes que transponha o termo da existecircncia sem ter sofrido dor

algumardquo 133 ([1964] p89) daiacute a ontoloacutegica melancolia do heroacutei morrer jovem e belo

no campo de batalha com coragem e virtude para ser lembrado pela eternidade Os

atenienses do seacuteculo V aC davam tanto valor agrave competiccedilatildeo agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica aos

olhos de todos e agraves obrigaccedilotildees reciacuteprocas quanto qualquer heroacutei homeacuterico como denota

Peter Jones (1997 p139) Ciro de certo modo ainda que os meios para se tornar tema

do eacutepos sejam diferentes dos da eacutepica arcaica segue essa tradiccedilatildeo de heroacuteis na pena de

Xenofonte jaacute que natildeo eacute outro o objetivo dele senatildeo ser o melhor de todos e conseguir

por isso uma fama imorredoura

Retomemos o tema da educaccedilatildeo persa cada classe tem obrigaccedilotildees e funccedilotildees

proacuteprias Observando estas obrigaccedilotildees dos meninos apreendemos uma forma peculiar

de se encarar a infacircncia

[6] Os meninos frequentando a escola passam o tempo aprendendo a justiccedila e dizem que vatildeo agrave busca de aprender isso do mesmo modo que entre noacutes os meninos dizem que vatildeo agrave busca de aprender as letras Os chefes deles passam a maior parte do dia julgando-os pois ocorrem entre os meninos como entre os adultos acusaccedilotildees muacutetuas de furto roubo violecircncia traiccedilotildees e injuacuterias e outras coisas parecidas [7] Se reconhecem neles que satildeo injustos punem Castigam tambeacutem se acaso descobrirem que eles estatildeo acusando injustamente Julgam

132 Cf o artigo de Jean Pierre Vernant (1979) A bela morte e o cadaacutever ultrajado 133 Traduccedilatildeo de Jaime Bruna In Teatro Grego Eacutesquilo Soacutefocles Euriacutepedes e Aristoacutefanes Satildeo Paulo Cultrix sd

104

ainda a falta que por causa dela os homens se odeiam bem mais mas processam menos a ingratidatildeo Pois se observam que algueacutem podendo expressar gratidatildeo natildeo expressa punem-no com severidade Crecircem pois que os ingratos satildeo mais negligentes com os deuses com os familiares com a paacutetria e com os amigos Entretanto nada parece estar mais junto da ingratidatildeo do que a impudecircncia pois esta parece ser de todas as vergonhas a guia134 (Cirop 12 6-7)

Por essa descriccedilatildeo do narrador determinados viacutecios podem ser encarados como

tambeacutem inatos ao ser humano jaacute que nas proacuteprias crianccedilas accedilotildees deste tipo satildeo

percebidas e por essa razatildeo eacute que elas devem aprender desde cedo o significado da

justiccedila As crianccedilas aprendem tambeacutem a moderaccedilatildeo (σοφροσύνη sophrosyne) e a

respeitar as autoridades Ο exemplo dos mais velhos eacute fundamental no aprendizado

desses ensinamentos pois eacute ldquo[] para aprender a ser moderado que observem os mais

velhos ao longo de todo o dia vivendo com moderaccedilatildeordquo135 (Cirop 128)

A partir da classe dos moccedilos a educaccedilatildeo se torna cada vez mais voltada para a

praacutetica dos soldados aleacutem de frequentes exerciacutecios fiacutesicos tambeacutem a participaccedilatildeo

efetiva na guarda da cidade Ademais sempre que possiacutevel o rei quando vai agrave caccedila

leva junto consigo os melhores efebos pois ldquo[] esse exerciacutecio parece ser a eles o mais

justo para guerra []rdquo136 pois acostuma o homem agraves diversas dificuldades e ldquo[] natildeo eacute

faacutecil encontrar algo que acontecendo na guerra falte agrave caccedilardquo137 (Cirop 12 10)

A caccedila era uma das praacuteticas sociais mais caracteriacutesticas das elites gregas e por

meio dela os aristocratas treinavam e mediam a coragem a astuacutecia e a virilidade Em

Sobre a caccedila manual teacutecnico escrito por Xenofonte nota-se claramente que esta praacutetica

134 No original [6] οἱ μὲν δὴ παῖδες εἰς τὰ διδασκαλεῖα φοιτῶντες διάγουσι μανθάνοντες

δικαιοσύνην καὶ λέγουσιν ὅτι ἐπὶ τοῦτο ἔρχονται ὥσπερ παρ᾽ ἡμῖν ὅτι γράμματα

μαθησόμενοι οἱ δ᾽ ἄρχοντες αὐτῶν διατελοῦσι τὸ πλεῖστον τῆς ἡμέρας δικάζοντες αὐτοῖς

γίγνεται γὰρ δὴ καὶ παισὶ πρὸς ἀλλήλους ὥσπερ ἀνδράσιν ἐγκλήματα καὶ κλοπῆς καὶ

ἁρπαγῆς καὶ βίας καὶ ἀπάτης καὶ κακολογίας καὶ ἄλλων οἵων δὴ εἰκός [7] οὓς δ᾽ ἂν γνῶσι

τούτων τι ἀδικοῦντας τιμωροῦνται κολάζουσι δὲ καὶ ὃν ἂν ἀδίκως ἐγκαλοῦντα εὑρίσκωσι

δικάζουσι δὲ καὶ ἐγκλήματος οὗ ἕνεκα ἄνθρωποι μισοῦσι μὲν ἀλλήλους μάλιστα

δικάζονται δὲ ἥκιστα ἀχαριστίας καὶ ὃν ἂν γνῶσι δυνάμενον μὲν χάριν ἀποδιδόναι μὴ

ἀποδιδόντα δέ κολάζουσι καὶ τοῦτον ἰσχυρῶς οἴονται γὰρ τοὺς ἀχαρίστους καὶ περὶ θεοὺς

ἂν μάλιστα ἀμελῶς ἔχειν καὶ περὶ γονέας καὶ πατρίδα καὶ φίλους ἕπεσθαι δὲ δοκεῖ

μάλιστα τῇ ἀχαριστίᾳ ἡ ἀναισχυντία καὶ γὰρ αὕτη μεγίστη δοκεῖ εἶναι ἐπὶ πάντα τὰ

αἰσχρὰ ἡγεμών (Cirop 126-7) 135 No original μέγα δὲ συμβάλλεται εἰς τὸ μανθάνειν σωφρονεῖν αὐτοὺς ὅτι καὶ τοὺς

πρεσβυτέρους ὁρῶσιν ἀνὰ πᾶσαν ἡμέραν σωφρόνως διάγοντας (Cirop 128) 136 No original ὅτι ἀληθεστάτη αὐτοῖς δοκεῖ εἶναι αὕτη ἡ μελέτη τῶν πρὸς τὸν πόλεμον

(Cirop 1210) 137 No original ὥστε οὐ ῥᾴδιον εὑρεῖν τί ἐν τῇ θήρᾳ ἄπεστι τῶν ἐν πολέμῳ παρόντων

(Cirop1210)

105

era uma atividade apenas dos homens ricos pois para ser um bom caccedilador eram

necessaacuterios determinados gastos financeiros ter bons catildees de caccedila escravos que

ajudassem na captura dos animais ser portador de material necessaacuterio para empreender

a captura e conhecer o comportamento dos animais a serem caccedilados (MOURA 2000

p68) A praacutetica da caccedila na Ciropedia ganha um relevo especial na formaccedilatildeo do

soldado pois ela ensina ao jovem caccedilando os animais como ele deve agir contra os

inimigos quando houver guerra Assim Cambises pai de Ciro o estimula para a

batalha

Por que razatildeo entatildeo filho tu aprendestes a atirar com o arco Por que razatildeo a lanccedilar dardos Por que razatildeo a enganar javalis selvagens com redes e fossos E por que razatildeo aos cervos com armadilhas e cordas E por que razatildeo aos leotildees ursos e leopardos voacutes natildeo combatiacuteeis colocando-se em igualdade mas sempre procuraacuteveis lutar contra eles provido de alguma vantagem Ou natildeo reconheces que todas essas coisas satildeo maldades ardis enganos e subterfuacutegios138 (Cirop 16 28) [39] Mas se tu filho transferires aos inimigos nenhuma outra coisa aleacutem dos truques que muito planejaste contra os animais pequenos natildeo achas que avanccedilas sobre os inimigos muito adiantado em vantagens Pois tu contra as aves te levantavas no inverno rigoroso e marchavas de noite e antes que os paacutessaros se movessem as cordas para eles eram preparadas por ti e tornavas o chatildeo movido semelhante ao natildeo tocado os paacutessaros eram ensinados por ti para te servirem com utilidade e para enganar os paacutessaros da mesma espeacutecie Tu armavas emboscada para vecirc-las sem ser visto por elas e estavas preparado para puxar antes que os paacutessaros fugissem [40] Por outro lado contra a lebre que vive na escuridatildeo e evita o dia criava catildees que a descobriam pelo faro Assim quando era encontrada fugia rapidamente mas tinhas catildees preparados para capturaacute-las correndo Se entatildeo fugia tambeacutem destes procurando saber quais lugares as lebres fugindo alcanccedilaram nesses estendia redes de caccedila difiacuteceis de ver e na fuga veemente ela mesma caindo sobre a rede ficava amarrada E para natildeo fugirem daiacute tu colocavas guardas para o que estava ocorrendo os que de perto estavam tinham condiccedilotildees de sobrevir rapidamente e tu mesmo atraacutes com clamor natildeo ficavas atraacutes da lebre e bradando aterrorizava-a de tal modo que era capturada enlouquecida e para os que estavam defronte explicava

138 No original τίνος μὴν ἕνεκα ἔφη ἐμανθάνετε τοξεύειν τίνος δ᾽ ἕνεκα ἀκοντίζειν τίνος δ᾽

ἕνεκα δολοῦν ὗς ἀγρίους καὶ πλέγμασι καὶ ὀρύγμασι τί δ᾽ ἐλάφους ποδάγραις καὶ

ἁρπεδόναις τί δὲ λέουσι καὶ ἄρκτοις καὶ παρδάλεσιν οὐκ εἰς τὸ ἴσον καθιστάμενοι

ἐμάχεσθε ἀλλὰ μετὰ πλεονεξίας τινὸς αἰεὶ ἐπειρᾶσθε ἀγωνίζεσθαι πρὸς αὐτά ἢ οὐ πάντα

γιγνώσκεις ταῦτα ὅτι κακουργίαι τέ εἰσι καὶ ἀπάται καὶ δολώσεις καὶ πλεονεξίαι (Cirop 16 28)

106

para fazer silecircncio e permanecerem ocultos na emboscada (Cirop 16 39-40)139

Na Lacedemocircnia segundo Xenofonte em A Repuacuteblica dos lacedemocircnios o

jovem era obrigado a participar dessa praacutetica tendo como objetivo maior o preparo do

bom cidadatildeo (Cirop 64)

Por fim ficam os efebos nessa classe por dez anos e passam entatildeo para a classe

dos adultos na qual permanecem por vinte e cinco anos Os cargos oficiais satildeo

preenchidos por essa classe que cuida das exigecircncias do bem comum aleacutem eacute claro de

formar o exeacutercito do paiacutes Depois de permanecerem vinte e cinco anos na classe dos

adultos eles vatildeo para a classe dos anciatildeos Estes permanecem no paiacutes julgando os

casos de direito puacuteblico e privado aleacutem das faltas denunciadas contra os cidadatildeos

Ressoa ainda as palavras de Plutarco a respeito da educaccedilatildeo espartana instituiacuteda por

Licurgo ldquo[] a educaccedilatildeo era um aprendizado da obediecircnciardquo (PLUTARCO 1991

p113)

Ciro portanto passa por todo esse processo enquanto cidadatildeo persa ldquo[] e

mostrava-se superando a todos os da sua idade tanto no aprender com rapidez as coisas

que fossem necessaacuterias quanto no cumprir cada tarefa com nobreza e virilidaderdquo

(Cirop 13 1)140 A elite persa tem como praacuteticas portanto as mesmas da elite

espartana surgindo ldquo[] como sendo compostas de homens de costumes moderados

exiacutemios praticantes da arte da cavalaria oacutetimos combatentes de infantaria instruiacutedos e

139 No original [39] εἰ δὲ σύ γε ἔφη ὦ παῖ μηδὲν ἄλλο ἢ μετενέγκοις ἐπ᾽ ἀνθρώπους τὰς μηχανὰς ἃς καὶ πάνυ ἐπὶ τοῖς μικροῖς θηρίοις ἐμηχανῶ οὐκ οἴει ἄν ἔφη πρόσω πάνυ ἐλάσαι τῆς πρὸς τοὺς πολεμίους πλεονεξίας σὺ γὰρ ἐπὶ μὲν τὰς ὄρνιθας ἐν τῷ ἰσχυροτάτῳ χειμῶνι ἀνιστάμενος ἐπορεύου νυκτός καὶ πρὶν κινεῖσθαι τὰς ὄρνιθας ἐπεποίηντό σοι αἱ πάγαι αὐταῖς καὶ τὸ κεκινημένον χωρίον ἐξείκαστο τῷ ἀκινήτῳ ὄρνιθες δ᾽ ἐπεπαίδευντό σοι ὥστε σοὶ μὲν τὰ συμφέροντα ὑπηρετεῖν τὰς δὲ ὁμοφύλους ὄρνιθας ἐξαπατᾶν αὐτὸς δὲ ἐνήδρευες ὥστε ὁρᾶν μὲν αὐτάς μὴ ὁρᾶσθαι δὲ ὑπ᾽ αὐτῶν ἠσκήκεις δὲ φθάνων ἕλκειν ἢ τὰ πτηνὰ φεύγειν [40] πρὸς δ᾽ αὖ τὸν λαγῶ ὅτι μὲν ἐν σκότει νέμεται τὴν δ᾽ ἡμέραν ἀποδιδράσκει κύνας ἔτρεφες αἳ τῇ ὀσμῇ αὐτὸν ἀνηύρισκον ὅτι δὲ ταχὺ ἔφευγεν ἐπεὶ εὑρεθείη ἄλλας κύνας εἶχες ἐπιτετηδευμένας πρὸς τὸ κατὰ πόδας αἱρεῖν εἰ δὲ καὶ ταύτας ἀποφύγοι τοὺς πόρους αὐτῶν ἐκμανθάνων καὶ πρὸς οἷα χωρία φεύγοντες ἀφικνοῦνται οἱ λαγῷ ἐν τούτοις δίκτυα δυσόρατα ἐνεπετάννυες ἄν καὶ τῷ σφόδρα φεύγειν αὐτὸς ἑαυτὸν ἐμπεσὼν συνέδει τοῦ δὲ μηδ᾽ ἐντεῦθεν διαφεύγειν σκοποὺς τοῦ γιγνομένου καθίστης οἳ ἐγγύθεν ταχὺ ἔμελλον ἐπιγενήσεσθαι καὶ αὐτὸς μὲν σὺ ὄπισθεν κραυγῇ οὐδὲν ὑστεριζούσῃ τοῦ λαγῶ βοῶν ἐξέπληττες αὐτὸν ὥστε ἄφρονα ἁλίσκεσθαι τοὺς δ᾽ ἔμπροσθεν σιγᾶν διδάξας ἐνεδρεύοντας λανθάνειν ἐποίεις 140 No original [] καὶ πάντων τῶν ἡλίκων διαφέρων ἐφαίνετο καὶ εἰς τὸ ταχὺ μανθάνειν ἃ δέοι καὶ εἰς τὸ καλῶς καὶ ἀνδρείως ἕκαστα ποιεῖν (Cirop 131)

107

letrados obedientes e disciplinados e exiacutemios praticantes da caccedila de animais ferozesrdquo

(MOURA 2000 p100)

Para Jaeger (1995 p1148) nessa forma de Xenofonte ver os povos baacuterbaros

repousa a influecircncia das palavras de Soacutecrates pois do mesmo modo que entre os gregos

havia muitos corruptos entre os estrangeiros havia verdadeiros ἄνδρες καλoὶ

κἀγαθoὶ (andres kaloi kagathoi) homens excelentes Como nos lembra Collingwood

em A Ideia da Histoacuteria (1981 p45) uma das caracteriacutesticas essenciais do Helenismo eacute

compreender os ldquobaacuterbarosrdquo como detentores de uma cultura vaacutelida Se para os gregos do

periacuteodo claacutessico os estrangeiros interessavam como paralelo ao que era grego natildeo

interessando por si mesmos mas enquanto participantes dos feitos dos proacuteprios gregos

para os gregos do periacuteodo Heleniacutestico os estrangeiros baacuterbaros ganham autonomia e

passam a interessar naquilo que possuiacuteam de melhor Xenofonte desse modo prenuncia

uma visatildeo cultural mais ampla tiacutepica dos seacuteculos seguintes

Ciro portanto percorre etapas educativas na instituiccedilatildeo de ensino persa

formando-se de acordo com as leis do paiacutes O narrador expressa a admiraccedilatildeo de todos

pela excelente conduta de Ciro nas praacuteticas formadoras A noccedilatildeo de formaccedilatildeo expressa

na Ciropedia eacute uma noccedilatildeo teleoloacutegica que pressupotildee um percurso diretivo que seraacute

cumprido em sua totalidade apenas pelos melhores cidadatildeos jaacute na vida adulta As

praacuteticas educacionais natildeo se resumem no entanto apenas agraves crianccedilas mas a todos os

homens-cidadatildeos que devem permanecer em constante aprendizado visando a sua

perfectibilidade

A educaccedilatildeo em uma instituiccedilatildeo educacional todavia natildeo eacute de fato um tema

essencial ao Romance de Formaccedilatildeo pois em algumas narrativas o percurso do heroacutei

estaacute completamente dissociado desta instituiccedilatildeo Entretanto na Ciropedia em virtude

do seu caraacuteter idealizante a educaccedilatildeo formal apresenta-se como um momento decisivo

e positivo na formaccedilatildeo do caraacuteter positivo do indiviacuteduo No Romance de Formaccedilatildeo

moderno a educaccedilatildeo formal eacute contestada como uma etapa da vida em que o indiviacuteduo e

suas potencialidades satildeo oprimidos pelos valores morais e eacuteticos das classes

dominantes Neste sentido a educaccedilatildeo formal eacute um aspecto negativo da vida do

indiviacuteduo e em alguns romances ndash O Tambor de Guumlnter Grass (1956) por exemplo ndash o

heroacutei se afasta totalmente de qualquer instituiccedilatildeo educacional enquanto que em outros

romances ndash Retrato do artista quanto jovem de James Joyce (1916) por exemplo ndash os

108

aspectos negativos da educaccedilatildeo riacutegida permitem ao heroacutei descobrir as potencialidades

interiores negando os proacuteprios valores que a educaccedilatildeo formal transmite

432 Enganos e desmedidas a participaccedilatildeo dos mentores

Um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do romance de formaccedilatildeo eacute a presenccedila de

mentores ou seja de homens responsaacuteveis pela educaccedilatildeo de um jovem Segundo Maas

(2000 p29) a presenccedila da figura masculina do mentor constitui-se desde o Emilio de

Rousseau uma tradiccedilatildeo nas obras pedagoacutegicas No entanto podemos observar que a

narrativa de Xenofonte jaacute apresenta personagens cujo saber e autoridade permitem

representar a funccedilatildeo de preceptores Na Literatura Grega entretanto a presenccedila de

mentores natildeo eacute uma novidade da Ciropedia pois este tipo de personagem remonta aos

poemas homeacutericos

Na Iliacuteada narra-se que Aquiles foi primeiramente educado por Quiratildeo o

Centauro mais justo141 depois por Fecircnix um nobre da corte de seu pai Quiratildeo infundiu

em Aquiles os preceitos de honra para se tornar um heroacutei enquanto Fecircnix lhe ensinou

ldquocomo dizer bons discursos e grandes accedilotildees pocircr em praacuteticardquo142

Outro exemplo se encontra na Odisseia Logo no canto I apoacutes o conciacutelio dos

deuses no qual se decide que Zeus iraacute ajudar Odisseu em seu retorno a Iacutetaca Atena

metamorfoseada no estrangeiro Mentor descendente de Anquiacutealo surge diante de

Telecircmaco que

Pesaroso se achava no meio dos moccedilos soberbos Vendo no espiacuterito a imagem do pai valoroso se acaso Logo viesse a expulsar de seu proacuteprio palaacutecio os intrusos E conquistar nome excelso qual dono dos proacuteprios haveres (Odisseia 1 v114-117)

Telecircmaco recebe o estrangeiro com todas as honras agasalhando-o e servindo-

lhe um banquete farto Depois de saciaacute-lo a imagem nefanda dos pretendentes se

banqueteando estimula Telecircmaco a declarar sua anguacutestia pela ausecircncia paterna e pelo

desrespeito demonstrado pelos pretendentes que enquanto esperavam uma decisatildeo de

141 IlXI830-32 142 IlIX444 A Traduccedilatildeo eacute de Carlos Alberto Nunes (1962)

109

Peneacutelope ndash se ela aceitaraacute ou natildeo novas nuacutepcias ndash se fartavam com os rebanhos da casa

de Odisseu A deusa Atena aconselha-o a convocar uma assembleia com os

pretendentes e lhes expor o projeto de sair agrave procura de notiacutecias do pai primeiro ateacute

Pilo interrogar Nestor e em seguida ateacute Esparta para falar com Menelau (v 284-285)

Nesta cena o importante para a formaccedilatildeo de Telecircmaco eacute que apoacutes o conselho dado por

Atena ela lhe instiga a coragem de Telecircmaco citando o exemplo de Orestes que

retornara agrave terra para matar o tio Egisto e a proacutepria matildee Clitemnestra vingando assim a

morte de Agamecircmnon Suas palavras satildeo

Logo que tudo hajas feito e a bom termo de acocircrdo levado no iacutentimo da alma reflete e no peito tambeacutem valoroso como consigas matar claramente ou por modo encoberto os pretendentes no proacuteprio palaacutecio que bem natildeo te fica como crianccedila brincar para tal jaacute passaste da idade Ou natildeo soubeste da fama que Orestes divino entre os homens veio a alcanccedilar por haver dado a morte ao Tiestiacuteada Egisto que com traiccediloeira artimanha matara seu pai muito ilustre Tu tambeacutem caro Crescido te vejo e com bela aparecircncia Secirc corajoso porque tambeacutem possam vindoiros louvar-te (Odisseia 1 v293-302)

Sob o espectro exemplar de Orestes as accedilotildees de Telecircmaco seratildeo consideradas e

avaliadas Atena instiga a Telecircmaco agrave emulaccedilatildeo com Orestes e eacute por meio da orientaccedilatildeo

de Atena que ele pode agir e seguir o caminho do seu amadurecimento

No final do seacuteculo XVII Feacutenelon escreve As Aventuras de Telecircmaco (1699)

onde realccedila a relaccedilatildeo de Mentor e Telecircmaco sendo a proacutepria relaccedilatildeo o centro da

narrativa Graccedilas a Feacutenelon e sua influecircncia no ideal Iluminista a palavra ldquomentorrdquo

passou a designar a relaccedilatildeo entre um adulto mais experiente e um jovem cuja

orientaccedilatildeo o mentor provecirc

Eacute importante ter em mente que sem o auxiacutelio de Atena o caminho de Telecircmaco

seria outro Segundo Peter Jones

Telecircmaco precisa tambeacutem de encorajamento para assumir esse papel (ἐποτρύνω portanto) e explica o porquecirc o dever de Telecircmaco eacute a vinganccedila mas ele se distanciou em demasiado desse sentido de dever agrave medida que tem apenas uma imagem obscura e indistinta de seu pai Atena precisa implantar na mente de Telecircmaco uma imagem clara e

110

inambiacutegua da ἀρετή (ldquoexcelecircnciardquo) de seu pai se quiser criar nele o desejo de agir143 (JONES 1988)

Eacute com essa percepccedilatildeo que o papel dos mentores tem importacircncia definitiva no

Romance de Formaccedilatildeo o destino do heroacutei sem a participaccedilatildeo dos mentores seria

outro bem afastado da perfectibilidade A funccedilatildeo de mentor natildeo eacute necessariamente

representada por preceptores professores ou algum tipo de profissional da educaccedilatildeo

mas pode ser preenchida por qualquer personagem da narrativa desde que o contato do

heroacutei com esta personagem torne-se um elemento importante da mudanccedila teoacuterica e

praacutetica na trajetoacuteria do heroacutei constituindo-se assim um elemento importante da proacutepria

mateacuteria narrativa

NrsquoOs anos de aprendizado de Wilhem Meister de Goethe por exemplo no

capiacutetulo 17 do Livro II Meister encontra-se com um desconhecido que reconheceu

Meister como ldquo[] o neto do velho Meister aquele que possuiacutea uma valiosa coleccedilatildeo

artiacutesticardquo (GOETHE 1994 p80) Esse desconhecido revela-se o apreciador de arte que

ajudou a um velho rico a comprar a coleccedilatildeo do avocirc de Wilhelm A partir do tema dos

quadros do velho Meister os dois conversam sobre questotildees de arte nas quais Meister

revela um comportamento extremamente subjetivista reconhecendo nas obras os

valores artiacutesticos natildeo por questotildees esteacuteticas ou pela teacutecnica apenas agrave medida que a obra

revela seus proacuteprios anseios interiores O desconhecido-mentor entatildeo lhe diz

Estes sentimentos estatildeo certamente muito distantes das consideraccedilotildees que costuma levar em conta um amante das artes ao apreciar a obra dos grandes mestres mas eacute bem provaacutevel que se o gabinete ainda estivesse em poder de sua famiacutelia aos poucos se revelaria os sentidos daquelas obras e o senhor acabaria por ver nelas algo mais do que a si mesmo e sua inclinaccedilatildeo (GOETHE 1994 p82)

Meister entatildeo concorda que muita falta faz aquela coleccedilatildeo poreacutem se ldquo[] teve

de acontecer para despertar em mim uma paixatildeo um talento que exerceriam em minha

vida uma influecircncia muito maior que o teriam feito aquelas imagens inanimadas

resigno-me de bom grato e acato o destinordquo (GOETHE 1994 p82-83) O

desconhecido lhe reprova o uso da palavra destino com tanta veemecircncia e indagado

por Meister se ele natildeo acredita em destino responde-lhe

143 A traduccedilatildeo do artigo The Kleos of Telemachus Odyssey 195 de Peter Von Jones eacute de Leonardo Teixeira de Oliveira 2007 Encontra-se disponiacutevel no site da internet httpwwwclassicasufprbrprojetosbolsapermanencia2006artigosPeter_Jones-KleosDeTelemacopdf O texto original de Jones data de 1988 e foi publicado na revista American Journal of Philology vol 109 p496-506

111

Natildeo se trata aqui do que creio nem eacute este o lugar para lhe explicar como procuro tornar de certo modo concebiacuteveis coisas que fogem agrave compreensatildeo de todos noacutes a questatildeo aqui eacute saber como o melhor modo de representaccedilatildeo para noacutes A trama desse mundo eacute tecida pela necessidade e pelo acaso a razatildeo do homem se situa entre os dois e sabe dominaacute-los ela trata o necessaacuterio como a base de sua existecircncia sabe desviar conduzir e aproveitar o acaso e soacute enquanto se manteacutem firme e inquebrantaacutevel eacute que o homem merece ser chamado de um deus na Terra Infeliz aquele que desde a sua juventude habitua-se a querer encontrar no necessaacuterio alguma coisa de arbitraacuterio a querer atribuir ao acaso uma espeacutecie de razatildeo tornando-se mesmo uma legiatildeo segui-lo Que seria isso senatildeo renunciar agrave proacutepria razatildeo e dar ampla margem a suas inclinaccedilotildees [] Soacute me anima o homem que sabe o que eacute uacutetil a ele e aos outros e trabalha para limitar o arbitraacuterio Cada um tem a felicidade em suas matildeos assim como o artista tem a mateacuteria bruta com a qual ele haacute de modelar uma figura Mas ocorre com essa arte como com todas soacute a capacidade nos eacute inata faz-se necessaacuterio pois aprendecirc-la e exercitaacute-la cuidadosamente (GOETHE 1994 p83)

O desconhecido natildeo convencera Meister de todo no entanto quando suas

frustraccedilotildees surgirem no decorrer da narrativa as palavras daquele desconhecido-mentor

tornar-se-atildeo claras e evidentes Meister estava crente de que seu destino era o mundo

das artes em especial o teatro poreacutem frustra-se convivendo com uma trupe e com o

fracaso da sua representaccedilatildeo do Hamlet de Shakespeare No desfecho de sua trajetoacuteria

que permanece neste livro em aberto e soacute seraacute resolvido no terceiro livro da seacuterie Os

anos de peregrinaccedilatildeo de Wilhelm Meister de 1829 Meister caminha da dedicaccedilatildeo ao

teatro para a Medicina e termina seus anos de aprendizado integrado ao avanccedilo

econocircmico e social da burguesia o projeto idealista da formaccedilatildeo universal se perde

portanto em funccedilatildeo de uma formaccedilatildeo praacutetica especializada

O tal desconhecido se revelaraacute como participante de uma sociedade humanista

chamada Sociedade da Torre ldquo[] que preconiza o desenvolvimento das qualidades e

talentos inatos no indiviacuteduo orientado para a vida em sociedaderdquo (MAAS 2000 p30)

e que acompanhava agrave distacircncia o desenvolvimento de Meister O diaacutelogo entre os dois

faz parte do projeto de educaccedilatildeo da Sociedade que enquanto conceitua o mundo pela

sua verdade natildeo impede que o educando sofra com o seu proacuteprio erro de avaliaccedilatildeo

para que ele tambeacutem se converta por fim agrave verdade professada pela Sociedade da

Torre No final drsquoOs anos de aprendizagem Meister descobre que muitas personagens

que no decorrer da narrativa surgiram e tiveram alguma influecircncia sobre ele eram na

verdade membros desta sociedade e estavam cuidando de sua formaccedilatildeo

112

O papel do mentor caracteriacutestica essencial ao romance de formaccedilatildeo eacute portanto

fundamental na formaccedilatildeo do indiviacuteduo no que tange a sua caminhada agrave

perfectibilidade jaacute que eles direcionam a personagem Na Ciropedia a experiecircncia de

Ciro com mentores segue esse mesmo caminho rumo agrave perfectibilidade e se daraacute em

dois estaacutegios no primeiro estaacutegio quando crianccedila em sua visita agrave Meacutedia e no segundo

estaacutegio antes de partir para a guerra contra os Assiacuterios agrave frente do exeacutercito persa

Vamos entatildeo discutir a participaccedilatildeo dos mentores na Ciropedia

4321 Afastamento da casa paterna Visita agrave Meacutedia

A primeira cena que analisaremos a respeito da participaccedilatildeo de mentores na

Ciropedia estaacute ligada a outra experiecircncia tiacutepica dos romances de formaccedilatildeo segundo

Jacobs (1989) o afastamento da casa paterna Quando Ciro tinha doze anos foi com a

sua matildee visitar o avocirc Astiacuteages o rei da Meacutedia a pedido deste Nesta viagem na qual

haveraacute o primeiro contato de Ciro com uma cultura diferente todas as qualidades que o

narrador descreveu em Ciro seratildeo exemplificadas (Cirop 131-1427)144 A narrativa eacute

composta de diferentes cenas principalmente banquetes com diaacutelogos raacutepidos nos

quais Ciro interage com diversas personagens e ldquo[] dessa forma temos por assim

dizer uma visatildeo completa do ambiente social de Cirordquo145 (DUE 1989 p151 traduccedilatildeo

nossa)

Quando sua matildee resolve retornar Ciro decide permanecer na casa do avocirc pois

ali poderia se instruir em conhecimentos diferentes dos de seus pares persas A

separaccedilatildeo da casa paterna aqui revela-se mais como a separaccedilatildeo da cultura paterna do

que propriamente um afastamento da custoacutedia do pai uma vez que o avocirc substitui social

e psicologicamente a figura paterna

Ciro na Meacutedia desenvolveraacute habilidades tanto teacutecnicas principalmente na arte

da equitaccedilatildeo e da caccedila quanto sociais e apreenderaacute a conviver com as pessoas de modo

mais harmocircnico controlando suas paixotildees Eacute instrutivo que no primeiro jantar com o

144 Na primeira descriccedilatildeo que Xenofonte faz de Ciro ele enfatiza suas qualidades inatas Segundo o narrador Ciro era por natureza φιλανθρωπότατος (amante da bondade) φιλομαθέστατος (amante do aprender) e φιλοτιμότατος (amante das honras) Em seguida estabelece que as qualidades que o sistema educacional persa enfatiza satildeo a διχαιοσύνε (justiccedila) χάρις (gratidatildeo) σωφροσύνε (temperanccedila) πείθεσται (obediecircncia) 145 No Original in this way we get so to speak a full picture of Cyrusrsquo social environment (DUE 1989 p151)

113

seu avocirc quando ainda estava a matildee presente Ciro uma crianccedila presunccedilosa faz um

sem-fim de comentaacuterios a respeito da cultura meda principalmente a respeito do luxo

das roupas e da alimentaccedilatildeo meda os quais muito divertem mas tambeacutem constrangem

os participantes do banquete

Nesses comentaacuterios ele se distingue como persa dos medos pela sophrosyne

moderaccedilatildeo que segundo Due (1989 p170) natildeo eacute um termo particularmente

caracteriacutestico do seacuteculo IV aC mas uma das mais tiacutepicas virtudes gregas No diaacutelogo

em questatildeo Ciro relaciona a temperanccedila com os atos de beber e comer poreacutem a palavra

carrega semanticamente o sentido de abstinecircncia de prazeres ἡδονῶν (edonon) de

modo geral Os medos na visatildeo de Ciro corrompem-se com a mesa farta de comidas e

bebidas e a principal consequecircncia disso eacute no seu entender uma espeacutecie de

carnavalizaccedilatildeo das posiccedilotildees sociais

Por Zeus pois via vos cambaleando o corpo e o juiacutezo Primeiramente o que natildeo permites a noacutes as crianccedilas fazer voacutes mesmos o faziam Todos gritavam ao mesmo tempo e nada entendiacuteeis uns dos outros cantaacuteveis de modo muito risiacutevel e natildeo ouvindo com atenccedilatildeo o que cantaacuteveis julgaacuteveis cantar nobremente cada um deles falava de sua proacutepria forccedila em seguida se levantassem para danccedilar natildeo soacute natildeo danccedilavam no ritmo mas nem conseguiam endireitar-se Tu esqueceste-te totalmente de que tu eras o rei e os outros de que tu eras o governante pois nesse momento eu ao menos pela primeira vez entendi que isso com efeito era a igualdade de expressatildeo o que voacutes praticaacuteveis entatildeo Ao menos jamais voacutes vos calaacuteveis146 (Cirop 13 10)

A loquacidade de Ciro que por causa desses comentaacuterios ldquonatildeo revelava

temeridade mas inocecircncia e ternura de sorte que se desejava ainda mais ouvi-lo do que

estar presente em silecircnciordquo (Cirop 14 3) aos poucos agrave medida que ele crescia apaga-

se de seu comportamento puacuteblico Assim

[4] Conforme o tempo fazia-o progredir no tamanho para a hora de tornar-se adolescente com isso servia-se das palavras mais raramente e da voz mais suavemente pois ficava cheio de vergonha a ponto de

146 No original ὅτι νὴ Δί᾽ ὑμᾶς ἑώρων καὶ ταῖς γνώμαις καὶ τοῖς σώμασι σφαλλομένους

πρῶτον μὲν γὰρ ἃ οὐκ ἐᾶτε ἡμᾶς τοὺς παῖδας ποιεῖν ταῦτα αὐτοὶ ἐποιεῖτε πάντες μὲν γὰρ

ἅμα ἐκεκράγειτε ἐμανθάνετε δὲ οὐδὲν ἀλλήλων ᾔδετε δὲ καὶ μάλα γελοίως οὐκ

ἀκροώμενοι δὲ τοῦ ᾁδοντος ὠμνύετε ἄριστα ᾁδειν λέγων δὲ ἕκαστος ὑμῶν τὴν ἑαυτοῦ

ῥώμην ἔπειτ᾽ εἰ ἀνασταίητε ὀρχησόμενοι μὴ ὅπως ὀρχεῖσθαι ἐν ῥυθμῷ ἀλλ᾽ οὐδ᾽

ὀρθοῦσθαι ἐδύνασθε ἐπελέλησθε δὲ παντάπασι σύ τε ὅτι βασιλεὺς ἦσθα οἵ τε ἄλλοι ὅτι σὺ

ἄρχων τότε γὰρ δὴ ἔγωγε καὶ πρῶτον κατέμαθον ὅτι τοῦτ᾽ ἄρ᾽ ἦν ἡ ἰσηγορία ὃ ὑμεῖς τότ᾽

ἐποιεῖτε οὐδέποτε γοῦν ἐσιωπᾶτε (Cirop 1310)

114

corar quando se encontrava com os mais velhos e natildeo mais como um cachorrinho jogava-se sobre todos conduzindo-se com semelhante fogosidade Assim de um lado era mais circunspecto de outro nas reuniotildees era inteiramente gracioso147 (Cirop 144)

Esse comportamento estouvado vai dando lugar a um comportamento mais

circunspeto que chega mesmo a preocupar o proacuteprio Ciro

Mas natildeo por Zeus eu natildeo sei que homem eu me tornei pois natildeo sou capaz de falar e olhar o meu avocirc como podia antes Se progredir desse modo temo tornar-me completamente indeciso e insensato e quando era crianccedila eu parecia ser extraordinariamente haacutebil no falar148 (Cirop 1412)

Ciro revela a autoconsciecircncia de seu comportamento quando eacute instigado pelos

colegas a pedir em favor deles que Astiacuteages permita que eles saiam para caccedilar Uma

vez que Ciro jaacute mais maduro percebe os limites que se impotildeem entre os homens nas

relaccedilotildees sociais e natildeo mais pode ser o ldquofalastratildeordquo da infacircncia sente a necessidade de

maquinar um meio de convencer o avocirc149

O nosso interesse por ora eacute verificar a evoluccedilatildeo do comportamento de Ciro se

em um primeiro momento ele eacute loquaz falando abertamente o que pensa e sente a

partir da evoluccedilatildeo de seu caraacuteter ele passa a buscar estrateacutegias discursivas mais

complexas para conseguir a persuasatildeo de seu interlocutor O resultado desta

transformaccedilatildeo eacute um orador eficiente e capaz de conduzir as massas como nenhum outro

liacuteder

Haacute aleacutem disso outras experiecircncias fundamentais que vatildeo caracterizando Ciro

na juventude como imaturo e demedido e que serviratildeo justamente de exemplo para o

proacuteprio Ciro aprender a controlar-se

147 No original ὡς δὲ προῆγεν αὐτὸν ὁ χρόνος σὺν τῷ μεγέθει εἰς ὥραν τοῦ πρόσηβον

γενέσθαι ἐν τούτῳ δὴ τοῖς μὲν λόγοις μανοτέροις ἐχρῆτο καὶ τῇ φωνῇ ἡσυχαιτέρᾳ αἰδοῦς

δ᾽ ἐνεπίμπλατο ὥστε καὶ ἐρυθραίνεσθαι ὁπότε συντυγχάνοι τοῖς πρεσβυτέροις καὶ τὸ

σκυλακῶδες τὸ πᾶσιν ὁμοίως προσπίπτειν οὐκέθ᾽ ὁμοίως προπετὲς εἶχεν οὕτω δὴ

ἡσυχαίτερος μὲν ἦν ἐν δὲ ταῖς συνουσίαις πάμπαν ἐπίχαρις (Cirop 144) 148 No original ἀλλὰ μὰ τὸν Δία ἔφη ἐγὼ μὲν οὐκ οἶδ᾽ ὅστις ἄνθρωπος γεγένημαι οὐδὲ γὰρ

οἷός τ᾽ εἰμὶ λέγειν ἔγωγε οὐδ᾽ ἀναβλέπειν πρὸς τὸν πάππον ἐκ τοῦ ἴσου ἔτι δύναμαι ἢν δὲ

τοσοῦτον ἐπιδιδῶ δέδοικα ἔφη μὴ παντάπασι βλάξ τις καὶ ἠλίθιος γένωμαι παιδάριον δ᾽

ὢν δεινότατος λαλεῖν ἐδόκουν εἶναι (Cirop 1412) 149 Gera (1993 p32-33) ao analisar essa passagem Cirop 14 13-14 diz que o recurso estiliacutestico oratoacuterio usado por Ciro assemelha-se ao recurso utilizado por Soacutecrates tanto nas Memoraacuteveis quanto no Econocircmico iniciar com frases hipoteacuteticas para depois a partir da analogia falar diretamente

115

A primeira destas experiecircncias acontece na primeira caccedila fora dos limites do

palaacutecio do avocirc em campo aberto Acompanhado de seu tio Ciaxares Ciro eacute levado pela

excitaccedilatildeo da caccedila e desrespeitando as ordens do tio se arrisca demasiadamente para

caccedilar um javali Ainda que tenha matado o javali seu tio jaacute naquele momento ldquo[]

certamente o repreendia vendo a grande imprudecircncia Ciro apesar de ser repreendido

pedia tudo quanto ele obtivera e a permissatildeo de levar essas coisas para dar ao avocircrdquo150

(Cirop 14 9) Obtendo a permissatildeo do tio leva o javali ao avocirc crente de que isso o

faraacute feliz poreacutem o velho responde

Filho eu recebo com prazer tudo quanto tu me daacutes mas de fato natildeo preciso de nada destas coisas para tu te arriscares151 (Cirop 14 10)

Esta admoestaccedilatildeo ressoa em outro comentaacuterio

Que coisa agradaacutevel seria se por causa de um pedaccedilo de carne eu viesse a perder o filho da minha filha152 (Cirop 14 13)

A segunda experiecircncia (Cirop 14 16-28) se daacute quando Ciro ainda entre os

medos toma parte em sua primeira batalha O priacutencipe Assiacuterio desejou para comemorar

suas bodas caccedilar na fronteira entre a Assiacuteria e a Meacutedia Levando numerosa infantaria e

cavalaria ambicionou saquear a terra dos medos causando com isso uma batalha entre

as naccedilotildees Quando Astiacuteages e Ciaxares partiram para a batalha Ciro escondido partiu

junto A participaccedilatildeo de Ciro nessa batalha seraacute fundamental pois ele planejaraacute o modo

de agir dos soldados medos revelando portanto sua natureza belicosa Poreacutem

Como um catildeo de boa raccedila mas inexperiente imprudentemente vai de encontro ao javali assim tambeacutem Ciro arremetia apenas tentando golpear quem ele alcanccedilasse natildeo se precavendo de nenhuma outra coisa Os inimigos quando viram os seus sofrendo avanccedilaram as tropas a fim de que interrompessem a perseguiccedilatildeo ao verem que eles estavam se lanccedilando adiante153 (Cirop 14 21)

150 No original [9] ἐνταῦθα μέντοι ἤδη καὶ ὁ θεῖος αὐτῷ ἐλοιδορεῖτο τὴν θρασύτητα ὁρῶν ὁ

δ᾽ αὐτοῦ λοιδορουμένου ὅμως ἐδεῖτο ὅσα αὐτὸς ἔλαβε ταῦτα ἐᾶσαι εἰσκομίσαντα δοῦναι

τῷ πάππῳ (Cirop 149) 151 No original ἀλλ᾽ ὦ παῖ δέχομαι μὲν ἔγωγε ἡδέως ὅσα σὺ δίδως οὐ μέντοι δέομαί γε

τούτων οὐδενός ὥστε σε κινδυνεύειν (Cirop 1410) 152 No original χαρίεν γάρ ἔφη εἰ ἕνεκα κρεαδίων τῇ θυγατρὶ τὸν παῖδα

ἀποβουκολήσαιμι(Cirop 1413) 153 No original ὥσπερ δὲ κύων γενναῖος ἄπειρος ἀπρονοήτως φέρεται πρὸς κάπρον οὕτω

καὶ ὁ Κῦρος ἐφέρετο μόνον ὁρῶν τὸ παίειν τὸν ἁλισκόμενον ἄλλο δ᾽ οὐδὲν προνοῶν οἱ δὲ

πολέμιοι ὡς ἑώρων πονοῦντας τοὺς σφετέρους προυκίνησαν τὸ στῖφος ὡς παυσομένους

τοῦ διωγμοῦ ἐπεὶ σφᾶς ἴδοιεν προορμήσαντας (Cirop 1421)

116

Em vista disso Astiacuteages apoacutes o fim da batalha natildeo sabia o que dizer a Ciro

ldquo[] pois de um lado reconhecia que ele era o responsaacutevel pelo feito mas de outro

percebia que ele fora arrebatado pela coragem154rdquo (Cirop 14 24) Aleacutem disso Ciro eacute

visto rodeando com seu cavalo os mortos da batalha contemplando-os Com muito

custo arrancaram-no de laacute e ao ver o semblante do avocirc Ciro escondeu-se atraacutes dos que

o conduziam (Cirop 14 24)

O silecircncio de Astiacuteages e a sua admoestaccedilatildeo apoacutes a caccedila satildeo instrutivos para Ciro

que revendo suas accedilotildees pode refletir o quanto desagradou ao avocirc pelas accedilotildees

intempestivas que colocaram sua proacutepria vida em risco Desse modo como mentor de

Ciro nestas passagens Astiacuteages provoca uma mudanccedila vital em sua personalidade sem

a qual talvez Ciro teria um fim diverso provavelmente o mesmo fim de Creso e dos

reis baacuterbaros representados por Heroacutedoto

Essas passagens portanto mostram que haacute uma evoluccedilatildeo na construccedilatildeo da

personagem e que Ciro natildeo nasce pronto como modelo de liacuteder que viraacute a ser no final da

obra A importacircncia dessa passagem na tessitura narrativa eacute que Ciro a partir disso natildeo

mais se arriscaraacute nem arriscaraacute os seus aliados gratuitamente no campo de batalha

Conter a impetuosidade do menino eacute fundamental para sua trajetoacuteria posterior e este

abrandamento de sua paixatildeo soacute eacute conseguido por meio das admoestaccedilotildees do seu avocirc-

mentor Astiacuteages

4322 Cambises mentor de Ciro (Cirop 16)

O segundo mentor de Ciro na Ciropedia eacute seu pai Cambises O diaacutelogo entre

Ciro e Cambises se daacute no fim do primeiro livro quando o pai escolta o filho ateacute a

Media para este comandar o exeacutercito persa Antes o narrador nos informa que de

volta agrave Peacutersia Ciro continuou sua educaccedilatildeo na instituiccedilatildeo estatal frequentando as

classes determinadas e cumprindo as tarefas estabelecidas

[1] Ciro entatildeo tendo voltado a Peacutersia dizem um ano ainda permaneceu na classe dos meninos A princiacutepio os meninos zombavam dele pois voltara habituado agrave vida de prazeres na Meacutedia Quando entatildeo o viram comendo e bebendo agradavelmente como eles e se alguma vez na festa havia banquete perceberam que ele

154 No original [] αἴτιον μὲν ὄντα εἰδὼς τοῦ ἔργου μαινόμενον δὲ γιγνώσκων τῇ τόλμῃ (Cirop 1424)

117

oferecia mais da sua proacutepria porccedilatildeo do que pedia mais e aleacutem dessas coisas viram que ele era superior a eles mesmos a partir de entatildeo os da sua idade voltaram a respeitaacute-lo Depois que concluiu essa educaccedilatildeo imediatamente foi para a classe dos efebos e tambeacutem nessa parecia ser superior ocupando-se das coisas que eram necessaacuterias suportar e reverenciando os mais velhos e obedecendo aos chefes155 (Cirop 15 1)

Haacute um salto temporal na narrativa O rei dos Assiacuterios tomado de ambiccedilatildeo

forma uma alianccedila com os povos vizinhos contra os medos e persas acusados de se

fortalecerem para dominar a regiatildeo Astiacuteages jaacute era falecido e Ciaxares que se tornara

rei dos medos pediu auxiacutelio a Ciro

Antes de iniciar a guerra o narrador nos apresenta duas cenas cuja leitura mostra

a amplitude do papel de seu pai como mentor Na primeira cena Ciro reuacutene seu exeacutercito

e discursa aos seus soldados discurso no qual busca criar a confianccedila de seus

subordinados pelo seguinte argumento

[] jaacute que na verdade temos consciecircncia de que noacutes desde a infacircncia tendo comeccedilado sendo atletas das obras boas e belas nos lanccedilaremos contra os inimigos os quais eu sei com clareza satildeo amadores para combater contra noacutes Pois esses ainda natildeo satildeo combatentes muito fortes se de um lado lanccedilam flechas e dardos e cavalgam com conhecimento de outro quando for necessaacuterio sofrer fadigas nisso eles seratildeo inferiores pois satildeo pessoas sem praacutetica em relaccedilatildeo aos trabalhos fatigantes Quando for necessaacuterio natildeo dormir seratildeo vencidos pelo sono pois eles satildeo inexperientes com relaccedilatildeo a isso nem os que acaso satildeo haacutebeis nisso pois esses satildeo ignorantes no como eacute necessaacuterio agir com os aliados e com os inimigos e eacute evidente que esses tiveram seus principais conhecimentos inabilmente (Cirop 15 11)

A confianccedila que Ciro projeta em seu exeacutercito adveacutem justamente da consciecircncia

de que sua educaccedilatildeo cuja finalidade era a formaccedilatildeo de soldados seria determinante

para distinguir os vencedores dos perdedores E podemos dizer o fato de os inimigos

natildeo serem educados na moderaccedilatildeo os tornaria fracos diante das fadigas da guerra agraves

quais os persas jaacute estavam acostumados educados nela a vida toda 155 No original ἀλλ᾽ ἐπείπερ σύνισμεν ἡμῖν αὐτοῖς ἀπὸ παίδων ἀρξάμενοι ἀσκηταὶ ὄντες τῶν

καλῶν κἀγαθῶν ἔργων ἴωμεν ἐπὶ τοὺς πολεμίους οὓς ἐγὼ σαφῶς ἐπίσταμαι ἰδιώτας

ὄντας ὡς πρὸς ἡμᾶς ἀγωνίζεσθαι οὐ γάρ πω οὗτοι ἱκανοί εἰσιν ἀγωνισταί οἳ ἂν τοξεύωσι

καὶ ἀκοντίζωσι καὶ ἱππεύωσιν ἐπιστημόνως ἢν δέ που πονῆσαι δέῃ τούτῳ λείπωνται ἀλλ᾽

οὗτοι ἰδιῶταί εἰσι κατὰ τοὺς πόνους οὐδέ γε οἵτινες ἀγρυπνῆσαι δέον ἡττῶνται τούτου

ἀλλὰ καὶ οὗτοι ἰδιῶται κατὰ τὸν ὕπνον οὐδέ γε οἱ ταῦτα μὲν ἱκανοί ἀπαίδευτοι δὲ ὡς χρὴ

καὶ συμμάχοις καὶ πολεμίοις χρῆσθαι ἀλλὰ καὶ οὗτοι δῆλον ὡς τῶν μεγίστων

παιδευμάτων ἀπείρως ἔχουσιν (Cirop 1511)

118

Em seguida Ciro parte para junto do pai momento em que se daacute o referido

diaacutelogo entre filho e pai no qual Cambises instrui corrige e guia Ciro Segundo Gera

(1993 p50) os meacutetodos utilizados por Cambises satildeo similares aos de Soacutecrates nas

Memoraacuteveis poreacutem a autora filia essa longa conversa com o gecircnero de instruccedilatildeo moral

dos ὐποθέκαι (ypothekai) escritos que inicialmente em verso apresentam um locutor

que exorta e aconselha Segundo a autora haacute nesse gecircnero a tradiccedilatildeo de que um homem

mais velho dirija-se a um mais novo como por exemplo Hesiacuteodo dirigindo-se ao seu

irmatildeo Perses nrsquoOs Trabalhos e os Dias Inicialmente apenas com um locutor o gecircnero

foi inovado ao que parece por Hiacutepias que adaptando-o agrave prosa deu voz agrave segunda

figura desse impliacutecito diaacutelogo o jovem As informaccedilotildees a respeito desse gecircnero satildeo

escassas o certo eacute que nesta cena da Ciropedia o narrador se apaga quase totalmente

mimetizando os locutores do diaacutelogo Ciro e Cambises Em sua participaccedilatildeo o narrador

enquadra o diaacutelogo que seguiraacute e ordena as falas com construccedilotildees do tipo ldquoCiro disserdquo

ldquoCambises disserdquo organizando as locuccedilotildees da personagem e dramatizando a cena

Os temas do diaacutelogo giram em torno das qualidades referidas anteriormente a

temperanccedila a obediecircncia a piedade entre outras uma vez que Cambises retoma

avaliando por meio de perguntas todos os ensinamentos do filho Seria dispendioso

analisar todo o diaacutelogo entre pai e filho porque Ciro se mostra conhecedor de muitos

dos conceitos discutidos O importante na participaccedilatildeo dos mentores natildeo eacute averiguar

aquilo que a personagem sabe mas justamente demonstrar que suas avaliaccedilotildees satildeo

equivocadas Portanto analisaremos apenas as passagens em que Cambises corrige

Ciro

Em Cirop 168 a primeira correccedilatildeo de Cambises justamente retoma o

discurso que Ciro proferira em Cirop 157-14 Quando Ciro reafirma a superioridade

dos persas sobre os inimigos seu discurso se fixa novamente sobre o tema da

moderaccedilatildeo na visatildeo do priacutencipe persa enquanto os inimigos acreditavam que o

governante deve se distinguir dos governados na indolecircncia e no oacutecio os persas

acreditavam que a distinccedilatildeo devia surgir pela providecircncia e amor ao trabalho Sua

comparaccedilatildeo natildeo poupa os proacuteprios medos cuja cultura considerada luxuosa fora

criticada por Ciro no primeiro banquete diante do avocirc Cambises lembra a Ciro poreacutem

que nem sempre a luta dos homens eacute contra outros homens mas sim ldquo[] contra coisas

em si mesmas [πρὸς αὐτὰ τὰ πράγματα] das quais natildeo eacute faacutecil ser superior com

119

desembaraccedilo156rdquo (Cirop 16 9) e que o bom general deve prover todas as coisas

necessaacuterias aos seus soldados Ciro afirma que Ciaxares traraacute provisotildees necessaacuterias para

o exeacutercito poreacutem quando seu pai lhe pergunta se ele sabe o real tamanho das riquezas

de Ciaxares e Ciro nega seu pai lhe pergunta ldquoApesar de tudo confias em coisas

desconhecidasrdquo157 (Cirop 16 9)

Com esse mote Cambises estabeleceraacute que para um bom general eacute necessaacuterio

prever tambeacutem as necessidades futuras e que confiando no incerto o homem pego

desprevenido pelo acaso natildeo teraacute como agir Seguir-se-aacute entatildeo o diaacutelogo com Cambises

e Ciro retomando os pontos essenciais que um general natildeo deve negligenciar as

provisotildees a sauacutede e o fiacutesico dos soldados as estrateacutegias militares a preparaccedilatildeo dos

soldados como incutir ardor na tropa e como conquistar a obediecircncia dos soldados

Para cada um destes pontos as estrateacutegias discursivas satildeo quase sempre as

mesmas Pode-se descrever uma determinada estrutura de argumentaccedilatildeo primeiro

Cambises pergunta a respeito de um desses pontos entatildeo Ciro daacute uma resposta que

Cambises imediatamente revisa marcando os limites do ponto de vista de Ciro Ciro

entatildeo se convence pede ajuda e Cambises daacute conselhos praacuteticos para conseguir realizar

o objetivo Ou seja Cambises como pai mas tambeacutem como mentor evita que Ciro vaacute agrave

batalha com conceitos preestabelecidos e errocircneos O diaacutelogo faz Ciro evoluir passo a

passo agrave medida que aprende a tornar-se um bom general Para exemplificar essa postura

tomaremos o tema da obediecircncia

Apoacutes Cambises admoestaacute-lo a nunca confiar no incerto pois o verdadeiro

comandante planeja tudo antes de seus soldados Ciro revela que o melhor meio de

conseguir a obediecircncia dos homens ldquo[] eacute louvar e honrar o obediente e ao

desobediente desprezar e punir158rdquo (Cirop 16 20) Cambises entatildeo lhe responde

Esse filho eacute o caminho para a obediecircncia forccedilada para uma muito melhor do que essa a obediecircncia voluntaacuteria haacute um caminho muito mais curto Pois os homens obedecem com grande prazer aqueles que consideram mais sensatos nos seus interesses do que eles mesmos159 (Cirop 16 21)

156 No original [hellip] ἀλλὰ πρὸς αὐτὰ τὰ πράγματα ὧν οὐ ῥᾴδιον εὐπόρως περιγενέσθαι (Cirop 169) 157 No original ὅμως δὲ τούτοις πιστεύεις τοῖς ἀδήλοις (Cirop 169) 158 No original [hellip] τὸ τὸν πειθόμενον ἐπαινεῖν τε καὶ τιμᾶν τὸν δὲ ἀπειθοῦντα ἀτιμάζειν τε

καὶ κολάζειν (Cirop 1620) 159 No original [21] καὶ ἐπὶ μέν γε τὸ ἀνάγκῃ ἕπεσθαι αὕτη ὦ παῖ ἡ ὁδός ἐστιν ἐπὶ δὲ τὸ

κρεῖττον τούτου πολύ τὸ ἑκόντας πείθεσθαι ἄλλη ἐστὶ συντομωτέρα ὃν γὰρ ἂν

120

Esse ensinamento marcaraacute toda a conduta militar de Ciro na narrativa e a

clemecircncia dele para com os inimigos se basearaacute neste toacutepico busca de aliados

obedientes pois a puniccedilatildeo garante uma obediecircncia aparente poreacutem no punido sempre

irrompem iacutempetos de vinganccedila Em Heroacutedoto no livro 1 Haacuterpago que natildeo cumpriu a

ordem de Astiacuteages de matar Ciro eacute punido pelo rei medo banqueteando-se com as

carnes do proacuteprio filho Haacuterpago que continuou a viver na corte submisso ao rei quando

observou que Ciro crescera aliou-se a ele para depor Astiacuteages do trono Ciro na

Ciropedia entretanto perdoaraacute seus inimigos e com isso conquistaraacute valiosos aliados

como Tigranes Araspas Goacutebrias Gaacutedatas e Abradatas

Apoacutes estabelecer qual o melhor meio de conseguir obediecircncia Cambises passa a

expressar a verdade de seu ensinamento por meio de siacutemiles o doente obedece com

ardor ao meacutedico o navegante ao piloto aquele que natildeo sabe o caminho confia em quem

sabe Ciro entatildeo pede que o pai lhe ensine a ter a reputaccedilatildeo de saacutebio nas coisas

necessaacuterias para que os homens obedeccedilam a ele jaacute que os homens obedecem melhor

agravequele em quem confiam Cambises lhe responde

Natildeo haacute filho caminho mais curto a respeito das coisas em que desejas parecer ser sensato do que tornar-se de fato sensato a respeito desses assuntos Observando a fundo cada uma das coisas reconheceraacutes que eu digo a verdade Se quiseres natildeo sendo bom agricultor parecer ser bom ou cavaleiro ou meacutedico ou flautista ou qualquer outra coisa imagine quatildeo numerosas coisas a ti seria necessaacuterio maquinar por causa da aparecircncia E se tu persuadires a muitos a te louvares para que obtenhas fama e adquiras bons equipamentos de cada um destes ofiacutecios em um instante seria o embusteiro mas pouco depois quando precisasse oferecer uma prova tu te verias desmascarado e ainda um charlatatildeo160 (Cirop 1622)

Desse modo o que seria de Ciro nas campanhas que se seguiratildeo na narrativa

sem esses conselhos paternos Natildeo seria por certo modelo de virtude de lideranccedila tanto

aos leitores quanto aos proacuteprios personagens que se submetem agraves suas ordens de boa

ἡγήσωνται περὶ τοῦ συμφέροντος ἑαυτοῖς φρονιμώτερον ἑαυτῶν εἶναι τούτῳ οἱ ἄνθρωποι

ὑπερηδέως πείθονται (Cirop 1621) 160 No original Οὐκ ἔστιν ἔφη ὦ παῖ συντομωτέρα ὁδὸς ltἐπὶ τόgt περὶ ὧν βούλει δοκεῖν

φρόνιμος εἶναι ἢ τὸ γενέσθαι περὶ τούτων φρόνιμον καθ ἓν δ ἕκαστον σκοπῶν γνώσῃ ὅτι

ἐγὼ ἀληθῆ λέγω ἢν γὰρ βούλῃ μὴ ὢν ἀγαθὸς γεωργὸς δοκεῖν εἶναι ἀγαθός ἢ ἱππεὺς ἢ

ἰατρὸς ἢ αὐλητὴς ἢ ἄλλ ὁτιοῦν ἐννόει πόσα σε δέοι ἂν μηχανᾶσθαι τοῦ δοκεῖν ἕνεκα καὶ

εἰ δὴ πείσαις ἐπαινεῖν τέ σε πολλούς ὅπως δόξαν λάβοις καὶ κατασκευὰς καλὰς ἐφ

ἑκάστῳ αὐτῶν κτήσαιο ἄρτι τε ἐξηπατηκὼς εἴης ἂν καὶ ὀλίγῳ ὕστερον ὅπου πεῖραν δοίης

ἐξεληλεγμένος ἂν προσέτι καὶ ἀλαζὼν φαίνοιο

121

vontade Sem Cambises como bem observou Tatum (1989 p78) Ciro cometeria os

mesmos erros dos outros deacutespotas Assim o papel de Cambises como mentor eacute

essencial na formaccedilatildeo de Ciro e no seu sucesso como governante Para Tatum (1989)

esta cena ainda fala de como

Harmonia entre pai e filho eacute fundamental para o projeto de um padratildeo eacutetico que participa de toda accedilatildeo de Ciro na Ciropedia O encontro amplamente demonstra porque Cambises merece tal obediecircncia161 (1989 p87 traduccedilatildeo nossa)

Cambises para tornar seu discurso criacutevel utiliza-se de recursos oratoacuterios

precisos O mais significativo eacute a utilizaccedilatildeo de siacutemiles nos quais compara a arte de

governar a alguma outra profissatildeo em especial agrave de agricultor agrave de meacutedico agrave de piloto

agrave do atleta etc Poreacutem uma interessante analogia de Cambises refere-se agrave muacutesica Em

Cirop 1638 ele diz

[38] Eacute necessaacuterio por isso que tu sejas um amante do aprender todas as coisas natildeo para te servires soacute das coisas que aprendestes mas tambeacutem para seres tu um inventor de artifiacutecios contra os inimigos Como os muacutesicos que natildeo se servem apenas das coisas que aprenderam mas tambeacutem procuram criar outras novas E de um lado nas artes musicais as peccedilas novas e exuberantes satildeo muito honradas de outro as novas maquinaccedilotildees satildeo muito mais honradas na guerra pois com essas pode-se melhor enganar os inimigos162 (Cirop 1638)

Ampliando o sentido de muacutesica agrave poeacutetica de um modo geral ao artista eacute

necessaacuterio tanto o conhecimento das obras que lhe precederam quanto agrave inovaccedilatildeo de

sua proacutepria escrita Interpretando esse comentaacuterio como uma passagem metaliteraacuteria

parece-nos que Xenofonte conscientemente imagina sua obra como nova nova no

sentido de conhecer o que foi produzido anteriormente e inovadora a partir do jogo de

influecircncias Como viemos tentando demonstrar nesse estudo acreditamos na novidade

estrutural instituiacuteda pela obra de Xenofonte e este comentaacuterio de Cambises parece

confirmar a consciecircncia de Xenofonte sobre o papel do artista

161 No Original Harmony between father and son is basic to the design of the ethical pattern that informs every action of Cyrus in the Cyropaedia The encounter amply demonstrates why Cambyses merits such obedience (TATUM 1989 p87) 162 No original [38] δεῖ δή ἔφη φιλομαθῆ σε τούτων ἁπάντων ὄντα οὐχ οἷς ἂν μάθῃς τούτοις

μόνοις χρῆσθαι ἀλλὰ καὶ αὐτὸν ποιητὴν εἶναι τῶν πρὸς τοὺς πολεμίους μηχανημάτων

ὥσπερ καὶ οἱ μουσικοὶ οὐχ οἷς ἂν μάθωσι τούτοις μόνον χρῶνται ἀλλὰ καὶ ἄλλα νέα

πειρῶνται ποιεῖν καὶ σφόδρα μὲν καὶ ἐν τοῖς μουσικοῖς τὰ νέα καὶ ἀνθηρὰ εὐδοκιμεῖ πολὺ

δὲ καὶ ἐν τοῖς πολεμικοῖς μᾶλλον τὰ καινὰ μηχανήματα εὐδοκιμεῖ ταῦτα γὰρ μᾶλλον καὶ

ἐξαπατᾶν δύναται τοὺς ὑπεναντίους (Cirop 1638)

122

Cambises eacute o que Detienne ([sd]) chama de ldquomestre da verdaderdquo Natildeo eacute o

adivinho o poeta e o rei da justiccedila do mundo arcaico que possuiacuteam o dom de espalhar a

verdade pois eram agraciados pelas Musas Eacute o ldquomestre da verdaderdquo de conhecimentos

praacuteticos que promove a educaccedilatildeo ao transportar o educando para o caminho da

perfeiccedilatildeo Ciro no final da narrativa torna-se tambeacutem um mestre da verdade pois

podendo olhar seu passado de sucessos torna-se possuidor de um conhecimento que

deve passar aos seus filhos no leito de morte (Cirop VIII7) justamente como seu pai

fizera na sua juventude (Cirop I6)

Cambises apareceraacute novamente no final da obra (Cirop VIII5) quando Ciro

apoacutes a captura da Babilocircnia e do fim da guerra com os Assiacuterios retorna agrave Peacutersia levando

presentes para seu pai e sua matildee Cambises preparando a Ciro uma festa de boas vindas

estritamente formal convoca uma assembleia para qual discursa o quanto essa

assembleia deve a Ciro de quantas riquezas graccedilas a ele agora podem desfrutar e

quanto ele ldquotornou-vos oacute Persas gloriosos a todos os homens e honrados em toda a

Aacutesiardquo163 (Cirop LVIII523 traduccedilatildeo nossa) No entanto mesmo apoacutes grandes

demonstraccedilotildees de admiraccedilatildeo Cambises natildeo deixa de aconselhar tanto a assembleia

quanto o proacuteprio filho

Se tu Ciro excitado pelas daacutedivas presentes por cobiccedila tentares governar os persas do mesmo modo que os outros povos ou voacutes cidadatildeos invejando seu poder tentares derrubaacute-lo do poder sabei bem que sereis obstaacuteculos uns aos outros a muitos bens [25] Portanto para que isso natildeo aconteccedila e sim boas coisas eu julgo bom que voacutes sacrifiqueis em comum e com os deuses tomados como testemunhas faccedilam um trato de que tu Ciro se algueacutem fazer expediccedilatildeo contra o territoacuterio persa ou tentar destruir as leis dos persas viraacutes em socorro com toda a forccedila e voacutes oacute Persas se algueacutem ou empreender derrubar Ciro do poder ou se algum dos que estatildeo em seu poder se rebelar vireis em socorro de voacutes mesmos e de Ciro conforme aquilo que ele solicitar [26] Enquanto eu viver a soberania na Peacutersia seraacute minha quando eu morrer eacute evidente que seraacute de Ciro enquanto ele viver (CiropVIII524-26)164

163 No original εὐκλεεῖς μὲν ὑμᾶς ὧ Πέρσαι ἐν πᾶσιν ἀνθρώποις ἐποίησεν ἐντίμους δrsquo ἐν τῇ

Ἀσίᾳ πάσῃ (Cirop LVIII523) 164 Traduccedilatildeo nossa No original εἰ δὲ ἢ σύ ὦ Κῦρε ἐπαρθεὶς ταῖς παρούσαις τύχαις

ἐπιχειρήσεις καὶ Περσῶν ἄρχειν ἐπὶ πλεονεξίᾳ ὥσπερ τῶν ἄλλων ἢ ὑμεῖς ὦ πολῖται

φθονήσαντες τούτῳ τῆς δυνάμεως καταλύειν πειράσεσθε τοῦτον τῆς ἀρχῆς εὖ ἴστε ὅτι

ἐμποδὼν ἀλλήλοις πολλῶν καὶ ἀγαθῶν ἔσεσθε [25] ὡς οὖν μὴ ταῦτα γίγνηται ἀλλὰ

τἀγαθά ἐμοὶ δοκεῖ ἔφη θύσαντας ὑμᾶς κοινῇ καὶ θεοὺς πιμαρτυραμένους συνθέσθαι σὲ

μέν ὦ Κῦρε ἤν τις ἐπιστρατεύηται χώρᾳ Περσίδι ἢ Περσῶν νόμους διασπᾶν πειρᾶται

βοηθήσειν παντὶ σθένει ὑμᾶς δέ ὦ Πέρσαι ἤν τις ἢ ἀρχῆς Κῦρον ἐπιχειρῇ καταπαύειν ἢ

ἀφίστασθαί τις τῶν ὑποχειρίων βοηθήσειν καὶ ὑμῖν αὐτοῖς καὶ Κύρῳ καθ ὅ τι ἂν οὗτος

123

A questatildeo que se oferece nessa passagem eacute complexa e exige algum comentaacuterio

Primeiramente fica evidenciado que haacute dois poderes estabelecidos o de Cambises na

Peacutersia e o de Ciro no resto do Impeacuterio Contudo o poder de Ciro estaacute submetido ao de

Cambises ao qual Ciro como filho deve ainda obedecer Para Tatum (1989 p77-78)

Cambises em seu discurso estaacute determinado a estabelecer que ele natildeo Ciro eacute o rei dos

persas e Ciro por maior que seja o seu nome eacute ainda seu filho Aleacutem disso ldquoCiro eacute

ainda o filho de seu pai ainda capaz de ser ensinado por elerdquo165 (TATUM 1989 p80

traduccedilatildeo nossa) A educaccedilatildeo de Ciro e sua identidade como pessoa dependem desse

laccedilo cuja cena mostra que eacute extremamente forte (TATUM 1989 p80) Ademais esse

retorno de Cambises revela a eacutetica paternalista que sublinha a obra e o proacuteprio conceito

de educaccedilatildeo por ela expressa Dessa forma Cambises que aparecera antes da guerra

contra os assiacuterios ao retornar apoacutes essa guerra enquadra a narrativa militar de Ciro que

compreende os livros II a VIII Essa estrutura eacute chamada por Tatum (1989) de ring

composition a narrativa termina onde ela comeccedila

Evidencia-se portanto o papel do pai Cambises como mentor de Ciro Ele

com seus ensinamentos impede que Ciro seja acometido pela hybris e torne-se

desmedido e desvairado com seu poder Due (1989) diz que os ensinamentos paternos

no livro I seratildeo retomados durante todo o resto da obra sendo figurativizados e que

esse diaacutelogo eacute uma espeacutecie de siacutentese de todo o romance os problemas ali colocados

seratildeo os problemas resolvidos por Ciro Tatum (1989 p68) acrescenta que natildeo soacute Ciro

eacute o monarca ideal como tambeacutem as personagens que o rodeiam satildeo suacuteditos ideais

porque colocam problemas a ele que soacute um monarca ideal poderia resolver

A questatildeo da plena educaccedilatildeo que a relaccedilatildeo de Ciro com outros personagens

garante tanto a Ciro quanto ao leitor eacute interessante poreacutem afasta-se do objetivo desse

capiacutetulo No entanto como Tatum (1989 p68) observa eacute necessaacuterio lembrar que o

estatuto das personagens secundaacuterias na Ciropedia eacute duplo de um lado satildeo

personagens proacuteprias bem caracterizadas produtos da imaginaccedilatildeo de Xenofonte e de

outro estruturas que formam a educaccedilatildeo ideal de Ciro

ἐπαγγέλλῃ καὶ ἕως μὲν ἂν ἐγὼ ζῶ ἐμὴ γίγνεται ἡ ἐν Πέρσαις βασιλεία ὅταν δ ἐγὼ

τελευτήσω δῆλον ὅτι Κύρου ἐὰν ζῇ 165 No original Cyrus is still his fatherrsquos child still capable of being taught by him (TATUM 1989 p80)

124

Analisamos os elementos estruturais que compotildeem a archaica do romance de

formaccedilatildeo ou seja aqueles elementos constitutivos e determinantes na caracterizaccedilatildeo do

gecircnero Percebemos a partir da anaacutelise que a combinaccedilatildeo destes elementos efetua a

evoluccedilatildeo da personagem principal da narrativa O Ciro do iniacutecio da narrativa eacute diverso

do Ciro do fim da narrativa e essa diferenccedila se deve agrave formaccedilatildeo de Ciro que por meio

da instituiccedilatildeo e da participaccedilatildeo de mentores torna-se no fim da obra aleacutem do liacuteder

ideal um mestre da verdade capaz de ensinar pela autoridade da sua vida Portanto a

personagem natildeo eacute estaacutetica mas evolutiva

Segundo Due (1989 p162) descriccedilotildees de crianccedilas na Literatura Grega natildeo satildeo

muito frequentes e isso justifica os esforccedilos de Xenofonte em descrever o

desenvolvimento de Ciro de forma realista Assim observa-se que a personalidade de

Ciro sofre uma determinada evoluccedilatildeo que sinalizaraacute o aperfeiccediloamento de suas

qualidades tanto as inatas quanto as desenvolvidas nas instituiccedilotildees educacionais Sem

este aperfeiccediloamento o destino do heroacutei correria por cursos outros que satildeo

exemplificados pelo destino traacutegico de outras personagens Concluiacutemos portanto que

do ponto de vista da construccedilatildeo da personagem ela natildeo eacute estaacutetica como as personagens

dos outros tipos de romance inclusive o biograacutefico poreacutem se enquadra na definiccedilatildeo de

Bakhtin (2010 p235) para o romance de formaccedilatildeo

Figura 3 Ciro comandando o exeacutercito persa Fonte httposaquemenidasblogspotcom200912ciro-ii-o-grande-559-530-ac-parte-iiihtml

125

44 O grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico

Outra caracteriacutestica segundo Bakhtin (2010 p223) que diferencia o romance

de formaccedilatildeo dos outros tipos de romance eacute o tipo de relaccedilatildeo da ficccedilatildeo com o tempo

histoacuterico real pois eacute esta caracteriacutestica que garante a modificaccedilatildeo da imagem do homem

nos diversos tipos de romances Segundo o teoacuterico russo na maior parte dos romances a

imagem do heroacutei eacute preestabelecida e imutaacutevel

Na maioria das variantes do gecircnero romanesco o enredo a composiccedilatildeo e toda a estrutura do romance postulam a imutabilidade a firmeza da imagem do heroacutei a unidade estaacutetica que ele representa (BAKHTIN2010 p236)

No entanto na modalidade romance de formaccedilatildeo o heroacutei eacute dinacircmico e variaacutevel

e as mudanccedilas pelas quais ele passa adquirem um novo estatuto na estrutura do enredo

do romance ldquo[] que seraacute por conseguinte repensado e reestruturado O tempo se

introduz no interior do homem impregna-lhe toda a imagem modificando a

importacircncia substancial de seu destino e de sua vidardquo (BAKHTIN 2010 p237)

O grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico entretanto varia e esta variaccedilatildeo

delimita o enfoque de formaccedilatildeo do homem com isso Bakhtin organiza o romance de

formaccedilatildeo em cinco tipos

a-) no primeiro tipo o romance ciacuteclico de tipo puro ldquo[] o tempo se presta a

uma representaccedilatildeo do desenrolar da vida humana []rdquo (BAKHTIN 2010 p238) e as

modificaccedilotildees internas do homem correspondem ao proacuteprio envelhecimento natural

b-) o segundo tipo de temporalidade ciacuteclica consiste na representaccedilatildeo de um

desenvolvimento tiacutepico no qual o mundo e a vida satildeo assimilados a uma experiecircncia

pela qual ldquo[] todo os homens devem passar para retirar delas o mesmo resultado[]rdquo

(BAKHTIN 2010 p238)

c-) o terceiro tipo eacute representado pelo tempo biograacutefico no qual estaacute ausente o

elemento ciacuteclico Desse modo o heroacutei atravessa fases individuais e sua transformaccedilatildeo

ldquo[] eacute o resultado de um conjunto de circunstacircncias de acontecimentos de atividades

de empreendimentos que modificam a vida []rdquo (BAKHTIN 2010 p239)

d-) a Ciropedia de Xenofonte corresponde ao quarto tipo de romance de

formaccedilatildeo ldquo[] o romance didaacutetico-pedagoacutegico que se fundamenta numa ideia

126

pedagoacutegica determinada concebida com maior ou menor amplitude []rdquo (BAKHTIN

2010 p239)

e-) no quinto tipo ldquo[] a evoluccedilatildeo do homem eacute indissoluacutevel da evoluccedilatildeo

histoacuterica []rdquo (BAKHTIN 2010 p239) por isso evolui ao mesmo tempo que o mundo

Note-se que ao tratar do quarto tipo de romance de formaccedilatildeo Bakhtin natildeo

analisa o tempo em si e sua assimilaccedilatildeo por esses romances-pedagoacutegicos Poreacutem na

sequecircncia do seu artigo Bakhtin enquadra estes quatro primeiros tipos como romances

cujo tempo histoacuterico eacute fechado Segundo Bakhtin (2010 p239)

O que este mundo concreto e estaacutevel [dos romances dos quatro primeiros tipos] esperava do homem em sua atualidade era que este se adaptasse conhecesse as leis da vida e se submetesse a elas Era o homem que se formava e natildeo o mundo o mundo pelo contraacuterio servia de ponto de referecircncia para o homem em desenvolvimento [] A proacutepria noccedilatildeo de mundo servindo de experiecircncia de escola era muito produtiva no romance de educaccedilatildeo

Jaacute o romance de formaccedilatildeo do quinto tipo o tipo realista o heroacutei se situa entre

duas eacutepocas e com o tempo histoacuterico em evoluccedilatildeo as leis da vida natildeo satildeo determinadas

e estaacuteticas mas vatildeo se formando paralelamente agrave formaccedilatildeo do indiviacuteduo Poreacutem ldquoEacute

evidente que o romance de formaccedilatildeo de quinto tipo natildeo pode ser compreendido

independentemente dos quatro outros tipos de romance de formaccedilatildeo []rdquo (BAKHTIN

2010 p241)

O tempo narrativo do romance de formaccedilatildeo realista portanto eacute um momento de

transiccedilatildeo do tempo histoacuterico situado entre duas eacutepocas a que passou e a que vai

nascendo com seus valores e ideais Para Koselleck (2006 p14) o conceito de tempo

histoacuterico nasce com a modernidade principalmente apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa jaacute que

as diversas revoluccedilotildees que a Revoluccedilatildeo Francesa desencadeou irromperam uma nova

percepccedilatildeo temporal Neste novo tempo raacutepido e incerto o tempo histoacuterico seria uma

dimensatildeo dinacircmica em que passado presente e futuro natildeo se separariam mas se

fundiriam ou nas palavras de Koselleck (2006 p15) ldquoA maneira pela qual em um

determinado tempo presente a dimensatildeo temporal do passado entra em relaccedilatildeo de

reciprocidade com a dimensatildeo temporal do futurordquo

Esta visatildeo de Koselleck natildeo estaacute dissociada da visatildeo de Bakhtin Ao analisar o

romance de Goethe Bakhtin chama a atenccedilatildeo para o fato de que para Goethe o

contemporacircneo ldquo[] tanto na natureza como na vida humana se manifesta como uma

diacronia essencial ou como remanescentes ou reliacutequias de diversos graus de evoluccedilatildeo

127

e das formaccedilotildees do passado ou entatildeo como germes de um futuro []rdquo (BAKHTIN

2010 p247) O tempo histoacuterico aberto portanto soacute eacute possiacutevel na Era Moderna em

virtude da capacidade de ver o tempo no espaccedilo pois eacute no espaccedilo que o homem deixa as

marcas de sua atividade criadora (BAKHTIN 2010 p243) Por isso para Bakhtin essa

relaccedilatildeo de cronotopo eacute uma das caracteriacutesticas fundamentais do romance moderno dito

realista pois justamente por este caraacuteter aberto do tempo histoacuterico eacute que o indiviacuteduo se

opotildee contra a ordem estabelecida pela sociedade ndash o heroacutei do romance duvida do mundo

(PAZ 1972 p226)

Devemos pois ao analisar o tempo histoacuterico na Ciropedia lembrar que natildeo

estamos nos referindo a este tempo histoacuterico moderno mas a um tempo histoacuterico mais

amplo e social em que qualquer indiviacuteduo sempre se situa caracteriacutestico dos outros

quatro tipos de romance de formaccedilatildeo

A respeito da Ciropedia de Xenofonte tomando os comentaacuterios de Bakhtin

como guia podemos constatar que primeiramente as outras modalidades de tempo se

entrecruzam na Ciropedia em segundo lugar a representaccedilatildeo do passado ndash como

mateacuteria da narraccedilatildeo ndash em discurso propicia a perfeita harmonizaccedilatildeo entre o homem e o

mundo pois este eacute um mundo jaacute fechado e estaacutetico e natildeo em formaccedilatildeo

Parece-nos ao menos que duas modalidades de tempo descritas por Bakhtin satildeo

possiacuteveis de serem encontradas na Ciropedia A obra eacute a narraccedilatildeo da biografia de Ciro

que se tornaraacute o fundador desse grande impeacuterio desde o seu nascimento ateacute a sua morte

Momigliano (1993 p54-55 traduccedilatildeo nossa) afirma que

A maior contribuiccedilatildeo de Xenofonte para a biografia [eacute] a Ciropedia A Ciropedia eacute de fato a mais acabada biografia que noacutes temos na literatura grega claacutessica Eacute a apresentaccedilatildeo da vida de um homem do comeccedilo ao fim e elogia o lugar da sua educaccedilatildeo e do caraacuteter moral166

Ora narrando uma determinada vida uma vida especiacutefica desde seu nascimento

ateacute a sua morte Xenofonte faz com que sua personagem atravesse fases individuais e

especiacuteficas e sua transformaccedilatildeo ldquo[] eacute o resultado de um conjunto de circunstacircncias de

acontecimentos de atividades de empreendimentos que modificam a vida []rdquo

(BAKHTIN 2010 p239) Vemos os acontecimentos de Ciro como acontecimentos

uacutenicos que por serem uacutenicos faratildeo a diferenccedila na formaccedilatildeo final da personagem Como

166 No original Xenophonrsquos greatest contribuition to biography the Cyropaedia The Cyropaedia is indeed the most accomplished biography we have in classical Greek literature It is a presentation of the life of a man from beginning to end and gives pride of place to his education and moral character (MOMIGLIANO 1993 p54-55)

128

ressaltamos no iniacutecio a participaccedilatildeo de mentores ndash o avocirc e o pai ndash completaratildeo a

educaccedilatildeo inicial de Ciro no entanto essa participaccedilatildeo de mentores natildeo eacute um

acontecimento comum a todos mas uacutenico dependente de seu estatuto real filho e neto

de reis

Portanto podemos dizer que a obra Ciropedia ao unir um determinado conceito

pedagoacutegico agrave forma biograacutefica compotildee-se de um tempo biograacutefico no qual as fases

individuais satildeo essenciais na formaccedilatildeo

No entanto natildeo podemos deixar de notar que a formaccedilatildeo a que Ciro eacute submetido

ndash as transformaccedilotildees pelas quais ele passa ndash segue um modelo ciacuteclico de tempo

caracteriacutestico do segundo grupo apresentado por Bakhtin pois compreende as fases

naturais do homem representando um desenvolvimento tiacutepico e idiacutelico A passagem do

menino desobediente e imprudente que confia demais em si a adulto comedido e

responsaacutevel para no fim tornar-se um velho saacutebio um ldquomestre da verdaderdquo parece-nos

condizer com um tipo de temporalidade ciacuteclica cuja natureza ideal da passagem do

tempo no interior do homem forma tambeacutem um homem ideal

As experiecircncias individuais ndash ao menos as bem sucedidas ndash devem conduzir

necessariamente a um tipo de formaccedilatildeo universal posto que natural ao homem em si

mesmo cujo significado expressivo encontra-se em uma visatildeo de mundo moralista e

paternalista na qual a obediecircncia e a auto-censura das paixotildees sophrosyne ton pathon

adquirem importacircncia na realizaccedilatildeo ldquotriunfalistardquo e harmocircnica do homem com o mundo

Unindo agrave modalidade biograacutefica a modalidade ciacuteclica Xenofonte a partir de uma

experiecircncia de vida particular espera conseguir a educaccedilatildeo de seus leitores convicto do

modelo ideal de educaccedilatildeo que ele cria pois este se conduz na trilha da evoluccedilatildeo natural

do homem ao menos na hipoacutetese de uma evoluccedilatildeo ideal A experiecircncia individual

torna-se entatildeo experiecircncia universal possiacutevel

Ao mesmo tempo a harmonia entre homem e sociedade e a visatildeo triunfalista de

um modelo determinado soacute satildeo possiacuteveis em um mundo fechado jaacute formulado Ainda

que por se tratar de uma narrativa de temaacutetica histoacuterica o mundo ali retratado esteja em

um ponto determinado de tensatildeo ao qual sucederaacute a formaccedilatildeo do impeacuterio persa

portanto politicamente em formaccedilatildeo os ideais desse mundo se mantecircm ainda os

mesmos A educaccedilatildeo de Ciro eacute o aprendizado de leis especiacuteficas que aqueles homens jaacute

vividos formularam e seu sucesso na carreira tanto militar quanto governamental se

deve agrave maacutexima compreensatildeo dessas leis e natildeo agrave formulaccedilatildeo de novas leis ou agrave criaccedilatildeo

129

de um homem novo se assim podemos dizer O Ciro adulto estaacute adaptado em um

mundo que lhe serviu de referecircncia em sua formaccedilatildeo

Pode-se objetar que alguns dos ensinamentos satildeo peculiares ao Xenofonte-autor

e que eles satildeo dirigidos a um puacuteblico-leitor grego o que portanto lhes daria um

estatuto de novas formulaccedilotildees sobre o mundo No entanto ainda que essas verdades

sejam apreendidas e formuladas por Xenofonte e de algum modo inovadoras dentro

das ideias gregas e respondendo a questotildees do seu proacuteprio tempo dirigidas a um

puacuteblico contemporacircneo esta relaccedilatildeo estaacute em um niacutevel extradiegeacutetico e natildeo afeta a

questatildeo do tempo histoacuterico na mateacuteria narrativa O importante eacute que dentro da narrativa

em niacutevel intradiegeacutetico satildeo os mentores ou a instituiccedilatildeo educacional que passam a Ciro

os conhecimentos sobre o mundo em que Ciro se ampara adaptando-se a um

conhecimento jaacute formulado Eacute neste sentido que falamos de mundo fechado pois natildeo

podemos esquecer que Xenofonte ao criar a Ciropedia tinha em vista mais a sua

proacutepria eacutepoca do que a necessidade de contar ou recontar uma histoacuteria fiel aos fatos

Inclusive para Bakhtin (2002 p418) a essecircncia romanesca da Ciropedia manifesta-se

nessa modificaccedilatildeo do passado motivada por um interesse presente

A reflexatildeo a partir do grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico real parece nos

levar a uma profunda concepccedilatildeo da realidade enfocada no material narrativo e talvez

seja a base ideal para o estudo da mimese do gecircnero romanesco em suas formas

primevas A maneira peculiar de Xenofonte conduzir a narrativa biograacutefica deve-se em

muitos pontos ao manejo dessa categoria narrativa com andamentos pausas e elipses

que retardam ou avanccedilam a narrativa de um modo realista no sentido de uma mimese

verossiacutemil e criacutevel do tempo Com isso diferencia-se sua narrativa sensivelmente da

narrativa historiograacutefica cujo enfoque natildeo era a vida de um homem mas a vida de um

povo determinado e que enformava em especial Heroacutedoto uma espeacutecie de tempo

ciacuteclico

O romancista Tolstoi retomando a distinccedilatildeo aristoteacutelica entre poesia e histoacuteria

diz no prefaacutecio de Guerra e Paz

O historiador e o artista ao relatarem uma eacutepoca tecircm finalidades completamente diferentes [] A diferenccedila torna-se mais sensiacutevel e essencial quando se trata de descrever acontecimentos O historiador considera os resultados de um acontecimento o artista o proacuteprio acontecimento (1960 vol I pXI)

130

Na Ciropedia a ficccedilatildeo adentra o mundo histoacuterico enfocando acontecimentos da

vida privada em meio ao tumulto da guerra puacuteblica Aleacutem disso as batalhas em si

mesmas se satildeo importantes no todo da narrativa natildeo apresentam um enfoque especial

na narraccedilatildeo ao contraacuterio eacute justamente a preparaccedilatildeo para as batalhas os sentimentos

dos homens e os discursos antes das batalhas que marcam a obra de uma maneira

singular ldquoA Ciropedia natildeo eacute uma histoacuteria sobre coisas que aconteceram mas uma

narrativa sobre coisas que poderiam ter acontecido167rdquo (TATUM 1989 p69) O foco

natildeo estaacute no que aconteceu mas no modo como aconteceu A prova disso eacute que jaacute no

proacutelogo Xenofonte resume todas as conquistas de Ciro ou seja ao adentrarmos a

narrativa propriamente dita jaacute sabemos qual seraacute o fim dela Assim os banquetes e as

festas entre os soldados a camaradagem os casos particulares de inveja amor etc

entremeiam a obra e a enriquecem criando o efeito de pausa e retardamento da accedilatildeo

Aleacutem disso haacute pequenas narrativas secundaacuterias que se conectam com a narrativa

principal de Ciro nas quais se expressa o poder dos viacutecios desmedidos nos homens

uma vez que essas personagens satildeo os contrapontos exatos da figura de Ciro

desprovidos de uma educaccedilatildeo ideal satildeo dadas ao erro e revelam a sorte daqueles que

natildeo dominam suas paixotildees

Todos estes elementos ficcionais modernizam no sentido expresso por Bakhtin

a narrativa pois mais do que a fidelidade agrave histoacuteria Xenofonte estaacute preocupado com a

fidelidade ao ficcional didaacutetico e romanesco respondendo com isso a questotildees do seu

proacuteprio tempo Estes elementos dilatam a narrativa e enriquecem os fatos histoacutericos

dando a eles uma dimensatildeo mais humana que se presentifica para o leitor

45 Xenofonte educador

A moralidade expressa na Ciropedia de Xenofonte repercute a voz de Hesiacuteodo

em Os Trabalhos e Os Dias168 (1991 v295-297)

167 No Original The Cyropaedia is not a story about things that happened but an account of things that could happen 168 Traduccedilatildeo de Mary Lafer (1991)

131

e eacute bom tambeacutem quem ao bom conselheiro obedece mas quem natildeo pensa por si nem ouve o outro eacute atingido no acircnimo este pois eacute homem inuacutetil

A partir da figurativizaccedilatildeo de uma determinada vida a de Ciro o Velho

Xenofonte quer instruir seus leitores Natildeo podemos pois menosprezar o fato de que a

poesia na Greacutecia claacutessica tinha como funccedilatildeo a formaccedilatildeo de seus leitores O papel do

poeta-educador da Greacutecia nos revela uma percepccedilatildeo miacutestica da atividade literaacuteria que

ao lado dos sacerdotes era inspirado pelas musas para cantar a verdade e mesmo com a

secularizaccedilatildeo da linguagem no seacuteculo da filosofia a visatildeo do prosador como educador

parece ter se mantido Horaacutecio na sua Arte Poeacutetica nos fala que uma das funccedilotildees da

literatura eacute ensinar e se hoje perdemos essa percepccedilatildeo chegando mesmo a dizer que o

ato de leitura pode ser alienatoacuterio natildeo devemos esquecer-nos disso quando tratamos de

um texto da Antiguidade

Xenofonte afastado dos tempos das musas e dos cantos heroicos tem ainda em

seu acircmago o projeto de educador Se de um lado a Ciropedia ficccedilatildeo em prosa revela

como o homem ideal deve agir e liderar seu povo de outro a narrativa da vida de Ciro

garante ao autor o estatuto de saacutebio pois ela eacute a figurativizaccedilatildeo de suas proacuteprias ideias

As maacuteximas proferidas admoestam natildeo soacute as personagens mas tambeacutem os

interlocutores a respeitarem o homem e os deuses e a nunca extrapolar os limites da sua

liberdade A hyacutebris a desmedida que embeleza os palcos traacutegicos deve ser suprimida

para a felicidade da vida humana real A educaccedilatildeo proposta eacute uma educaccedilatildeo moralista

uma educaccedilatildeo da justiccedila e da obediecircncia Uma educaccedilatildeo que leva o homem agrave boa

compreensatildeo dos limites do humano

Procuramos demonstrar neste capiacutetulo que a preocupaccedilatildeo didaacutetica com que

Xenofonte reveste a narrativa ficcional cria estruturas narrativas que ainda hoje satildeo

determinantes para a acepccedilatildeo do romance de formaccedilatildeo ao menos em um sentido ldquoda

formardquo do Romance de Formaccedilatildeo Assim analisamos o que Jacobs (1989 apud MAAS

2000) denomina de experiecircncias tiacutepicas do heroacutei nos romances de formaccedilatildeo como o

afastamento da casa paterna a presenccedila de mentores a passagem por instituiccedilotildees

educacionais os erros de avaliaccedilatildeo da personagem principal e a visatildeo teleoloacutegica de

educaccedilatildeo Estes elementos estruturais natildeo aparecem de forma estaacutetica mas se

combinam em cenas bem organizadas e conduzem a evoluccedilatildeo da personagem principal

no decorrer da narrativa O heroacutei da Ciropedia portanto eacute uma ldquounidade dinacircmicardquo

132

(BAKHTIN 2010 p237) e se enquadra no tipo de personagem do romance de

formaccedilatildeo

Aleacutem disso buscamos refletir a respeito do grau de assimilaccedilatildeo do tempo

histoacuterico e demonstramos que a modalidade temporal da Ciropedia combina o tempo

biograacutefico com o tempo ciacuteclico idiacutelico Desse modo as aventuras pelas quais o heroacutei

passa satildeo uacutenicas e singulares poreacutem o tipo de desenvolvimento que a personagem

efetua na narrativa eacute um desenvolvimento tiacutepico do homem concebido como a

passagem natural do tempo na formaccedilatildeo do homem Tambeacutem averiguamos que as

informaccedilotildees culturais natildeo visam agrave fidelidade agrave histoacuteria mas a um projeto didaacutetico e que

por isso elas satildeo fictiacutecias Desse modo a Ciropedia moderniza o passado em virtude da

preocupaccedilatildeo com o presente O processo de modernizaccedilatildeo do passado se efetua pela

ficcionalizaccedilatildeo do material histoacuterico que eacute problematizado a partir da atualidade natildeo

da fidelidade agrave histoacuteria Por estas caracteriacutesticas nos parece acertada a classificaccedilatildeo da

Ciropedia como uma das formas embrionaacuterias do ldquoRomance de Formaccedilatildeordquo

133

5 Imagem e evoluccedilatildeo do heroacutei da Ciropedia

Neste capiacutetulo discutiremos sobre a evoluccedilatildeo da personagem Ciro na Ciropedia

e sua imagem dinacircmica conforme expressatildeo bakhtiniana (BAKHTIN 2010)

Compreendemos que por meio da anaacutelise das maacuteximas encontradas na tessitura

narrativa da obra de Xenofonte poderemos abalizar a tese jaacute defendida nos capiacutetulos

anteriores de que Ciro natildeo eacute uma personagem estaacutetica mas dinacircmica e evolutiva

Avaliaremos a forma como essas maacuteximas aparecem atentando-nos para o enunciador

o destinataacuterio e o contexto de enunciaccedilatildeo e como elas propiciam a formaccedilatildeo

propriamente dita dessa personagem O heroacutei evolutivo eacute uma das principais

caracteriacutesticas do romance de formaccedilatildeo ldquo[pois as] mudanccedilas por que passa o heroacutei

adquirem importacircncia para o enredo romanesco que seraacute por conseguinte repensado e

reestruturado []rdquo (BAKHTIN 2010 p237)

Segundo Bakhtin (2010) na configuraccedilatildeo da personagem a construccedilatildeo do

caraacuteter pode obedecer a duas tendecircncias a claacutessica e a romacircntica Fundamental para a

tendecircncia claacutessica eacute o valor artiacutestico do destino e neste caso a vida eacute somente a

realizaccedilatildeo daquilo que desde o iniacutecio jaacute fora determinado o curso de sua vida os

acontecimentos e a sua morte e mesmo a sua vida interior satildeo percebidos como

necessaacuterios e predeterminados pelo destino Em face da visatildeo de mundo da personagem

claacutessica o autor eacute dogmaacutetico e sua posiccedilatildeo eacutetica natildeo eacute contestada Na caracterizaccedilatildeo da

personagem romacircntica o caraacuteter da personagem eacute dotado de arbiacutetrio e inicitativa

axioloacutegica Os valores do destino natildeo podem servir para a caracterizaccedilatildeo da personagem

de modo definitivo e fundamental eacute a ideia pois ela determina a individualidade da

personagem ndash a personagem age segundo sua ideia Por isso a distacircncia entre autor e

personagem na caracterizaccedilatildeo da personagem romacircntica eacute menos estaacutevel do que a

distacircncia na personagem claacutessica O enfraquecimento desta posiccedilatildeo promove a

desintegraccedilatildeo da personagem Haacute portanto maior identificaccedilatildeo entre heroacutei e autor nas

personagens claacutessicas e o heroacutei torna-se um veiacuteculo de expressatildeo das proacuteprias ideias do

autor (BAKHTIN 2010 p158-167)

Na biografia e na variante romanesca da biografia a personagem eacute importante

como portadora de uma vida historicamente significativa ndash a biografia responde o que a

personagem fez ou o que ela viveu Poreacutem eacute na anaacutelise do caraacuteter que compreendemos

134

a personagem como um todo significantemente enformada pelos desiacutegnios do seu

criador a ponto de respondermos a pergunta ldquoquem erardquo a personagem (BAKHTIN

2010 p159)

Nas maacuteximas que povoam a narrativa da Ciropedia Xenofonte manifesta o

caraacuteter da personagem as suas preferecircncias de comportamento social seus anseios e

objetivos eacutetico-morais Neste sentido a maacutexima torna-se um objeto de caracterizaccedilatildeo

importante na construccedilatildeo da personagem No entanto por se tratar de uma personagem

claacutessica na acepccedilatildeo do termo de Bakhtin as maacuteximas manifestam tambeacutem o caraacuteter do

proacuteprio Xenofonte Natildeo eacute no entanto nosso anseio neste capiacutetulo analisar as maacuteximas

como uma possiacutevel descriccedilatildeo do pensamento de Xenofonte mas analisar as maacuteximas

como elas representam de fato a evoluccedilatildeo da personagem Ciro na narrativa

Analisaremos portanto as maacuteximas quanto ao seu contexto de enunciaccedilatildeo e

quanto ao enunciador e destinaacuterio procurando observar de que modo elas propiciam a

formaccedilatildeo da personagem uma vez que elas transmitem o caraacuteter da personagem

Faremos inicialmente alguma discussatildeo a respeito da estrutura formal da maacutexima a

fim de que nossa anaacutelise seja abalizada por observaccedilotildees linguiacutesticas

51 A maacutexima estrutura e conteuacutedo

O levantamento das maacuteximas formuladas na Ciropedia regulou-se observando

alguns pontos essenciais Em primeiro lugar vale ressaltar que por toda a obra impera

um tipo de discurso pedagoacutegico no qual satildeo articulados ensinamentos principalmente

de caraacuteter praacutetico tanto a respeito da arte militar e das coisas puacuteblicas quanto a respeito

da vida particular do homem Entretanto este tipo de discurso pedagoacutegico natildeo eacute em

essecircncia representado por maacuteximas e se utiliza de outros expedientes retoacutericos A

seleccedilatildeo portanto considerou o ponto de vista formal e soacute foram selecionados aqueles

discursos que estavam estruturados como verdadeiras maacuteximas Devemos primeiro

portanto estabelecer a maacutexima do ponto de vista formal (a relaccedilatildeo de sua estrutura e de

seu conteuacutedo) para podermos justificar a nossa anaacutelise

Os mais antigos poetas gregos incluiacuteam uma grande quantidade de expressotildees

que emitiam instruccedilotildees gerais em sua poesia estas expressotildees a partir do seacuteculo V aC

135

foram coletadas e chamadas de γνωμολογίαι (gnomologiai) coletacircneas de maacuteximas

que eram lidas nas escolas e usadas pelos retores Segundo Lardinois (1997 p214) na

poesia arcaica os poetas referiam-se a estes ldquoproveacuterbiosrdquo por meio de expressotildees como

ἔπος (epos) λόγος (logos) ou αἶνος (ainos) No curso do quinto e quarto seacuteculos

alguns novos termos para expressotildees proverbiais foram introduzidos na linguagem

grega παροίμια (paroimia) ὑποθήκη (hupotheke) ἀπόφθεγμα (apophthegma)

γνώμη (gnome)

A maacutexima (γνώμη em grego sententia em latim) segundo a Arte Retoacuterica (L

II XXI) de Aristoacuteteles (2005) eacute um meio pelo qual se expressa uma determinada

maneira de ver o mundo mas que natildeo se refere ao particular (τῶν καθrsquo ἕκαστων ton

kathrsquo ekaston) mas ao universal (ἀλλά καθόλου alla katholou) Este universal natildeo eacute

o universal em toda a sua extensatildeo mas o universal que tem por objeto as accedilotildees com os

quais ela se relaciona

Do ponto de vista de sua estrutura frasal a maacutexima eacute um entimema169

(ἐνθύμημα enthymema) abreviado Haacute na estrutura do entimema trecircs partes a

premissa (πρότασις protasis) a deduccedilatildeo (συλλογισμός syllogismos) e a conclusatildeo

(συμπέρασμα sumperasma) A maacutexima em geral corresponde apenas agrave conclusatildeo

do entimema estando ausente da sua forma tanto a premissa quanto a deduccedilatildeo poreacutem

a maacutexima soacute se viabiliza se a deduccedilatildeo for intuiacuteda na recepccedilatildeo da maacutexima (DUFEUR

1967 p37) Desse modo a maacutexima deve ser um discurso conciso no qual devem estar

ausentes as causas e os porquecircs do seu caraacuteter universal pois a explicaccedilatildeo tornaria a

maacutexima em entimema

Ainda segundo Aristoacuteteles as maacuteximas garantem tanto o prazer (χαρίς kharis)

aos ouvintes do discurso quanto o caraacuteter moral (ἠθικός ethikos) do orador O prazer

da maacutexima decorre do fato de que ldquo[] as pessoas ficam satisfeitas quando elas ouvem

coisas em termos gerais os quais elas compreenderam antes em um caso particularrdquo170

(ARISTOacuteTELES 2005 p210) Jaacute a eacutetica do orador relaciona-se ao fato de a emissatildeo

de maacuteximas conforme Aristoacuteteles ser adequada agraves pessoas mais velhas

169 O entimema eacute uma forma de silogismo ou argumentaccedilatildeo em que uma das premissas ou um dos argumentos fica subentendido Devido agrave sua concisatildeo o entimema facilita a expressatildeo do pensamento e pode incluir uma demonstraccedilatildeo ou uma refutaccedilatildeo 170 No original [] χαίρουσι δὲ καθόλου λεγομένων ἃ κατά μέρος προυπολαμβάνοντες

τυγχάνουσιν

136

(πρεσβυτέροις presbyterois) e experimentes (ἔμπειροῖς empeirois) ldquoDe maneira

que fazer uso de maacuteximas quando natildeo se atingiu tal idade eacute tatildeo pouco oportuno como

andar a contar histoacuterias Do mesmo modo fazecirc-lo sobre temas de que natildeo se tem

experiecircncia eacute uma parvoiacutece e uma falta de educaccedilatildeo171rdquo (ARISTOacuteTELES 2005

p211)

Roland Barthes (1974) em seu ensaio ldquoLa Rochefoucauld Reflexotildees ou

Sentenccedilas e Maacuteximasrdquo reflete a respeito da produccedilatildeo das maacuteximas que para ele

devem ser analisadas segundo o conteuacutedo semacircntico e os padrotildees estruturais A maacutexima

eacute um discurso moralizante condensado resumido a respeito da natureza humana Para

Barthes (1994) a maacutexima se estabelece dentro de uma estruturaccedilatildeo bastante controlada

que nada tem a ver com um discurso libertaacuterio uma vez que pressupotildee um conteuacutedo

padronizado e moral do comportamento humano No entanto haacute na maacutexima em virtude

de sua estrutura concisa um caraacuteter de espetaacuteculo que a aproxima da poesia172 e este

promove o prazer no espectador um prazer muito proacuteximo da contemplaccedilatildeo Para

Barthes a estrutura da maacutexima eacute visiacutevel pois a essecircncia da maacutexima eacute seu caraacuteter de

espetaacuteculo Desse modo haacute na maacutexima uma estrutura que sendo visiacutevel torna a

maacutexima facilmente reconheciacutevel Barthes posteriormente em seu ensaio analisa como

as maacuteximas produzidas por La Rochefoucauld satildeo construiacutedas por meio de uma

linguagem esteacutetica se utilizando de recursos tiacutepicos do discurso poeacutetico Portanto a

maacutexima eacute um estilo de discurso ligado agrave percepccedilatildeo do mundo que ajuiacuteza sobre o

comportamento humano e sob o qual transparece os valores eacuteticos e morais de uma

sociedade Seu caraacuteter conciso contribui para a expressividade da mensagem e a sua

expressividade garante seu caraacuteter mnemocircnico

Tanto Aristoacuteteles quanto Barthes apontam para o caraacuteter esteacutetico da maacutexima ou

seja as emoccedilotildees desenvolvidas e impulsionadas por meio da maacutexima no auditoacuterio-

leitor que recebe este tipo de discurso Aristoacuteteles no entanto retoma ainda o caraacuteter

didaacutetico do discurso proferido pela maacutexima e como seu efeito persuasivo depende do

caraacuteter tambeacutem do orador ndash o ensinamento seraacute recebido como verdade se o orador for

aceito como experiente em tal assunto As maacuteximas portanto natildeo soacute emitem um

preceito moral decorrente de se pretender ldquonorma reconhecida do conhecimento do

171 No original ὥστε τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ τὸ

μυθολογεῖν περὶ δὲ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτον σημεῖον δὲ ἱκανόν (ARISTOTE 1967 1395a5)1395a5 172 ldquo[] como se sabe existe uma afinidade especial entre o verso e a maacutexima a comunicaccedilatildeo aforiacutestica e a comunicaccedilatildeo divinatoacuteriardquo (Barthes 1974 p12)

137

mundordquo (LAUSBERG 1966 p235) mas por emitir um preceito moral em uma forma

geral e declarar as preferecircncias do orador revelam o proacuteprio caraacuteter do orador Desse

modo ldquotodas as maacuteximas satildeo honestasrdquo (DUFEUR 1967 p38)

Linguisticamente as maacuteximas satildeo formadas em portuguecircs de tempos verbais

mais ou menos precisos o presente do indicativo ou tempos do subjuntivo Jaacute na

liacutengua grega estas maacuteximas vecircm expressas no chamado ldquoaoristo gnocircmicordquo que

traduzimos em geral pelo presente Agraves vezes tambeacutem encontramos frases que se

iniciam com expressotildees como por exemplo ἀναγκαῖον ἐστιν (ananksion estin) ldquoeacute

necessaacuteriordquo ou δίχαίον ἐστιν (dikhaion estin) ldquoeacute justordquo ou de χρή (khre) ldquoeacute

necessaacuteriordquo seguido de infinitivos e que tambeacutem se constituem como maacuteximas no

texto grego O importante eacute que tanto em grego quanto em portuguecircs os tempos

verbais nas maacuteximas apresentam um caraacuteter temporal que natildeo se mede em uma linha

cronoloacutegica mas que se estende no tempo como uma verdade eterna e atemporal

Conforme Aristoacuteteles as maacuteximas referem-se sempre a atos ndash que satildeo expressos

em discurso ndash e dessa relaccedilatildeo iacutentima manteacutem seu caraacuteter universal Eacute portanto um

discurso que se refere a outro discurso e que por resumiacute-lo manteacutem um caraacuteter

metadiscursivo A estrutura da maacutexima por exemplo estaacute presente no gecircnero da faacutebula

No livro A tradiccedilatildeo da Faacutebula ndash de Esopo a La Fontaine de Maria Celeste C Dezotti

(2003) a autora discute os elementos estruturais da faacutebula a faacutebula eacute um ato de fala

que concretizado numa narrativa apresenta uma atitude de ensinamento (recomendar

mostrar censurar aconselhar etc) de um enunciador para um leitor Analisando as

faacutebulas de Esopo observa-se que estruturalmente ela eacute formada por duas instacircncias

textuais a instacircncia narrativa e a instacircncia epimiacutetica a primeira eacute o discurso narrativo

propriamente dito ou seja personagens ndash em geral animais antropomorfizados ndash

concretizam accedilotildees enquanto que a segunda constitui na interaccedilatildeo de dois outros

discursos um interpretativo ou moral que vai mostrar ao leitor uma maacutexima que

interpreta a narrativa e um metalinguiacutestico que vai informar a accedilatildeo que o enunciador da

faacutebula estaacute realizando (por exemplo os discursos ldquoA faacutebula dizrdquo ou ldquoA faacutebula mostrardquo)

Este uacuteltimo nem sempre estaacute presente tambeacutem o discurso interpretativo agraves vezes estaacute

ausente na estrutura da faacutebula ficando portanto ao cargo do leitor a interpretaccedilatildeo da

narrativa da faacutebula Outra instacircncia da faacutebula encontrada sobretudo nas faacutebulas de

Fedro eacute o promiacutetio este se difere do epimiacutetio pela posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave narrativa pois

138

enquanto o epimiacutetio vem expresso apoacutes a narrativa o promiacutetio vem expresso antes da

narrativa

A faacutebula ldquoO Cavalo e o Asnordquo de Esopo (2003) nos serviraacute de exemplo Na

primeira parte da faacutebula narra-se a histoacuteria de um asno que pede ao cavalo que o ajude

a carregar o pesado fardo que lhe competia O cavalo nega a ajuda e o asno

extremamente cansado acaba morrendo Por fim o dono dos animais pega toda a carga

que o asno carregava e daacute para o cavalo carregar ldquoA faacutebula mostra que se os grandes

forem companheiros dos pequenos ambos viveratildeo satildeos e salvosrdquo (DEZOTTI 2003)

Observemos que a maacutexima apresenta-se intimamente vinculada agrave narrativa e que esta

figurativiza em um acontecimento particular a verdade expressa na maacutexima geral vaacutelida

para outras circunstacircncias A narraccedilatildeo na faacutebula funciona como a deduccedilatildeo do

entimema pois ela prepara o espiacuterito do leitor para a verdade da maacutexima A maacutexima

portanto sendo uma reflexatildeo sobre o comportamento geral dos homens sempre se

refere a accedilotildees particulares

Haacute portanto um viacutenculo inerente entre o conteuacutedo da maacutexima e o conteuacutedo da

narrativa As maacuteximas de La Rochefoucauld por exemplo analisadas por Barthes

(1994) natildeo estatildeo vinculadas a esta estrutura fabular pois natildeo apresentam uma narrativa

que figurativize a maacutexima geral No entanto mesmo dissociada de qualquer contexto

textual a maacutexima sempre se refere a outro discurso que eacute presumido pelo ouvinte da

maacutexima Este outro discurso que recupera pela linguagem os atos valida a maacutexima daacute

agrave maacutexima o exemplo singular da verdade geral que ela expressa

As maacuteximas portanto apresentam-se como estruturas metalinguiacutesticas que

desenvolvem seu sentido a partir de uma referecircncia seja narrativa seja argumentativa

Natildeo podemos portanto ao tratar das maacuteximas da Ciropedia deixar de pensar nessa

relaccedilatildeo das maacuteximas com os atos ndash expressos pela linguagem ndash praticados pelas

personagens Assim acreditamos que dentro da narrativa constroacutei-se uma espeacutecie de

estrutura fabular na qual tais maacuteximas repercutem ou ecoam outras passagens da

narrativa pois com elas as maacuteximas estatildeo necessariamente e intimamente ligadas

Isso nos leva a um segundo ponto de nossa anaacutelise que diz respeito ao conteuacutedo

das maacuteximas levantadas na Ciropedia Por se tratar de um enredo que podemos chamar

de beacutelico cujo tema principal eacute a arte do liacuteder ideal podemos distinguir dois tipos de

maacuteximas de acordo com o conteuacutedo proferido por elas as maacuteximas de guerra e as

maacuteximas gerais As maacuteximas gerais dizem respeito ao comportamento humano em

qualquer circunstacircncia natildeo se limitando ao contexto da guerra ainda que natildeo o exclua

139

de sua anaacutelise por isso muitas vezes nas maacuteximas de guerra temos sintagmas como

ldquoestando em guerrardquo ldquona guerrardquo que delimitam o terreno em que a maacutexima eacute vaacutelida

Aleacutem disso devemos averiguar se as maacuteximas proferidas correspondem a accedilotildees

expressas na narrativa a fim de que as maacuteximas sejam recebidas como um

conhecimento verdadeiro Portanto deve-se ter em mente que as maacuteximas na Ciropedia

correspondem a accedilotildees representadas por toda a narrativa mas nem sempre ela estaacute

relacionada de modo claro Neste sentido devemos averiguar o contexto da locuccedilatildeo da

maacutexima interpretando o discurso da maacutexima como uma espeacutecie de epimiacutetio do discurso

da faacutebula cujo sentido soacute se pode abranger tendo em mente o contexto referencial

O terceiro ponto de nossa anaacutelise eacute contemplar o locutor e o destinataacuterio das

maacuteximas proferidas Como nosso intuito eacute a anaacutelise da personagem Ciro e demonstrar

como ela mostra-se evolutiva eacute importante observar quando Ciro passa a se utilizar de

maacuteximas quais maacuteximas ele profere e quais satildeo os seus destinataacuterios Desse modo

reagrupamos as maacuteximas de guerra e as maacuteximas gerais em outros trecircs grupos maacuteximas

proferidas por Ciro maacuteximas proferidas pelo narrador e maacuteximas proferidas por

outra personagem

52 O heroacutei-saacutebio

Observemos a seguir o quadro de ocorrecircncias das maacuteximas encontradas na

Ciropedia de Xenofonte neste quadro procuramos dividir as maacuteximas tanto pelo seu

conteuacutedo (maacuteximas de guerra e maacuteximas gerais) quanto pelos locutores que

proferem as maacuteximas (o narrador Ciro ou alguma personagem secundaacuteria)

Maacuteximas de guerra Maacuteximas gerais

Narrador 7 11

Ciro 22 22

Personagem secundaacuteria 7 25

Quadro 1 Maacuteximas da Ciropedia

140

Ciro ao todo formula 44 maacuteximas enquanto o narrador formula 18 e todas as

outras personagens em conjunto formulam 32 maacuteximas Entretanto as personagens

secundaacuterias satildeo as que mais formulam maacuteximas gerais totalizando 25 Os nuacutemeros

apresentados no quadro demonstram natildeo soacute a sapiecircncia com que Ciro eacute representado na

Ciropedia mas tambeacutem demonstra o importante papel que as personagens secundaacuterias

tecircm na narrativa de Xenofonte Conforme James Tatum (1989 p68) todas as

personagens tecircm alguma funccedilatildeo pedagoacutegica na obra pois elas apresentam situaccedilotildees-

modelos para que ele liacuteder-modelo as resolva Xenofonte segundo Tatum (1989)

inventa e adapta personagens que satildeo invocadas para servir como suacuteditos ideais de um

priacutencipe que ele mesmo inventou para exemplificar um liacuteder ideal Os encontros com

esses personagens ficcionais satildeo a educaccedilatildeo de Ciro

No entanto nem sempre as maacuteximas proferidas configuram-se como elemento

de saber verdadeiro (ao menos para o enredo da Ciropedia) Algumas vezes as maacuteximas

formuladas satildeo contestadas e negadas pela proacutepria narrativa que apresenta um desfecho

que contradiz a maacutexima formulada em geral essas maacuteximas contestadas satildeo proferidas

pelas personagens secundaacuterias Nesse contexto haacute uma reformulaccedilatildeo de uma verdade

que Ciro e principalmente a narrativa demonstram ser falsa ndash uma das funccedilotildees das

maacuteximas segundo Aristoacuteteles (2005) eacute contestar o senso comum apresentar uma nova

forma de ver aquilo que a tradiccedilatildeo popular consagrara Como nosso interesse de anaacutelise

eacute a personagem de Ciro comentaremos das personagens secundaacuterias apenas aquelas

maacuteximas que de algum modo ou revelam a sapiecircncia de Ciro ou proferidas por outras

personagens satildeo importantes na formaccedilatildeo e evoluccedilatildeo da personagem Ciro Antes

analisaremos o contexto em que Ciro profere as maacuteximas tanto as maacuteximas de guerra

quanto as maacuteximas gerais

521 Quem fala quem ouve o contexto das maacuteximas na Ciropedia

O contexto em que as maacuteximas estatildeo inseridas na narrativa eacute principalmente o

contexto dos preparativos das batalhas Analisando as ocorrecircncias percebemos que a

maior parte das maacuteximas de guerra proferidas por Ciro se localiza imediatamente antes

da narraccedilatildeo das principais campanhas seja em discurso para seus soldados seja em

debates com seus principais aliados Tambeacutem as maacuteximas gerais se entremeiam nestes

141

contextos Vamos analisar algumas destas ocorrecircncias para observar os efeitos que as

maacuteximas resultam no discurso de Ciro interpretando uma ocorrecircncia assumimos que

ela apresenta o caraacuteter geral das ocorrecircncias Seria muito fastidioso a anaacutelise total das

maacuteximas proferidas Procuraremos no entanto efetuar a anaacutelise mais completa

possiacutevel refletindo sobre o contexto os aspectos formais e conteudistas das maacuteximas

Selecionamos dois contextos de enunciaccedilatildeo das maacuteximas o diaacutelogo com outras

personagens e o discurso para os soldados

a-) diaacutelogo com as outras personagens

No Livro 52 haacute um jantar em que Ciro se reuacutene com Goacutebrias um varatildeo assiacuterio

que de boa vontade se rendera a ele Goacutebrias (Cirop 46 1-11) era um dos nobres da

Assiacuteria e era muito amigo do antigo rei um homem bom e justo No entanto apoacutes a

morte do rei o poder passou para as matildeos de seu filho um homem vaidoso e injusto

que matara o filho de Goacutebrias durante um exerciacutecio de caccedila segundo Goacutebrias o atual

rei natildeo suportou ver-se ultrapassado nas habilidades de caccedila pelo filho de Goacutebrias que

abatera duas feras enquanto ele natildeo conseguira matar nenhuma e natildeo contendo sua

raiva e inveja cravou uma lanccedila no peito do jovem que iria se casar com a filha do rei

O assassino jamais mostrou arrependimento pelo que fizera enquanto que ldquoO pai dele

em verdade teve compaixatildeo por mim e era visiacutevel que se atormentava por meu

infortuacuteniordquo173 (Cirop 465) Eacute interessante o fato de ele acrescentar ldquoEu de fato se

ele estivesse vivo jamais viria para junto de ti para causar mal a ele pois recebi dele

muitas demonstraccedilotildees de amizaderdquo174 (Cirop 466) Mas agora com o poder nas matildeos

do filho ele nunca poderia ser amigo e aliado dele entatildeo lhe vinha como suplicante

pedir-lhe para ser seu vingador e tambeacutem adotar Ciro como filho Goacutebrias se mostra

extremamente uacutetil a Ciro principalmente na campanha contra a Assiacuteria e na tomada da

Babilocircnia onde Goacutebrias vinga seu filho matando o rei Assiacuterio (Livro VII)

No referido jantar do Livro 52 apoacutes apreciar a simplicidade dos costumes dos

persas Goacutebrias narra a Ciro a histoacuteria de Gadatas outro assiacuterio que fora castigado pela

inveja do Rei Assiacuterio Entretanto quando Ciro pergunta a Goacutebrias se era possiacutevel que

Gadatas se aliasse a eles Goacutebrias apesar de afirmar diz a Ciro que eacute muito difiacutecil

173 No original Ὅ γε μὴν πατήρ αὐτοῦ καὶ συνῴκρισέ με καὶ δῆλος ἦν συναχθόμενός μοι τῇ

συμφορᾷ (Cirop 465) 174 No original Ἐγώ οὖν εἰ μὲν ἔζη ἐκεῖνος οὐκ ἄν ποτε ἦλθον πρός σὲ ἐπὶ τῷ ἐκείνου κακῷ˙

πολλὰ γὰρ φίλια καὶ ἔπαθον δὴ ὑπrsquo ἐκείνου καὶ ὑπηρέτησα ἐκείνῳ (Cirop 466)

142

encontrar Gadatas pois para se chegar a ele ldquoera necessaacuterio passar ao lado da

Babilocircniardquo175 (Cirop 5229) e haveria o risco de enfrentar um exeacutercito muito maior do

que o de Ciro (Cirop 5229) Por isso Goacutebrias aconselha a Ciro que seja cauteloso na

marcha Ciro no entanto afirma que ao contraacuterio do que pensa Goacutebrias o melhor eacute ir

rumo agrave Babilocircnia pois ldquoali estaacute o melhor dos inimigosrdquo176 (Cirop 5231) A partir

disso Ciro procura convencer Goacutebrias da verdade de suas palavras para ele se as

numerosas tropas inimigas natildeo virem os soldados de Ciro crendo que natildeo aparecem por

terem medo deles tornar-se-atildeo extremamente corajosos e temiacuteveis no entanto se os

persas avanccedilarem ainda encontrariam os inimigos sofrendo dos males da uacuteltima

batalha Ciro resume a sua reflexatildeo com uma maacutexima177

Εὖ δrsquo ἴσθι ἔφη ὧ Γωβύα ἵνα καὶ τοῦτrsquo εἰδῇς οἱ πολλοὶ

ἄνθρωποι ὅταν μὲν θαρρῶσιν ἀνυπόστατον τὸ φρόνημα

παρέχονται˙ ὅταν δὲ δείσωσιν ὅσῳ ἄν πλείους ὦσι τοσούτῳ

μείζω καί ἐκπεπληγμένον μᾶλλον τὸν φόβον κέκτηνται

Sabes bem Goacutebrias jaacute que deveis saber disso que os homens numerosos quando satildeo tomados de coragem mostram uma arrogacircncia irresistiacutevel poreacutem quando satildeo tomados de pavor quatildeo numerosos sejam tanto maior e mais perturbado o medo que sentem (Cirop 5233)

Apoacutes proferir esta maacutexima Ciro desenvolve uma argumentaccedilatildeo em que procura

explicar a verdade desta maacutexima primeiro argumenta que em uma multidatildeo eacute difiacutecil

dissuadir o medo por meio de palavras em seguida demonstra a Goacutebrias que em todas

as batalhas decorridas natildeo foi o nuacutemero de soldados que decidiu as batalhas mas a

competecircncia dos exeacutercitos e desse modo natildeo haveria razatildeo a temer

Inicialmente analisemos a maacutexima com relaccedilatildeo ao seu contexto de locuccedilatildeo ou

seja o discurso de Ciro a Goacutebrias Goacutebrias havia levantado um problema a Ciro (como

atravessar a Babilocircnia e chegar a Gadatas) e o aconselhara a ser cauteloso na marcha

em virtude do tamanho do exeacutercito inimigo Ciro no entanto argumenta o contraacuterio e

procura convencer seu ouvinte ele inicia seu discurso a partir de uma reflexatildeo de um

discurso argumentativo em que revela sua concepccedilatildeo estrateacutegica na qual o poder estaacute

175 No original παρrsquo αὐτήν τὴν Βαβυλῶνα δεῖ παριέναι (Cirop 5229) 176 No original ἐκεῖ τῶν πολεμίων ἐστὶ τό κράτιστον (Cirop 5231) 177 Na transcriccedilatildeo que efetuaremos das maacuteximas colocaremos em itaacutelico o bloco discursivo que representa o conceito da maacutexima segundo a terminologia de Barthes (1994)

143

intimamente relacionado ao ato de ver (εἰδεῖν eidein)178 Conforme Harman (2008

p81 traduccedilatildeo nossa) na visatildeo de Ciro

Poder natildeo eacute soacute baseado no real (o exeacutercito eacute grande ou pequeno) mas no como ele eacute realmente visto precedentemente um pequeno exeacutercito foi visto de um modo que lhe deu poder enquanto que agora um grande exeacutercito se ele for visto pareceraacute (e tambeacutem seraacute) fraco Na correccedilatildeo e reformulaccedilatildeo do problema da disponibilidade visual do exeacutercito parece que a abertura para a observaccedilatildeo deve ser rigorosamente policiada a resposta do contemplador natildeo eacute estaacutetica mas assunto para uma contiacutenua reinterpretaccedilatildeo179

Na anaacutelise de Harman observamos que a imagem de poder natildeo estaacute conforme a

Ciropedia nos eventos em si mas eacute construiacuteda e representada de acordo com a intenccedilatildeo

de Ciro As relaccedilotildees de poder satildeo produzidas em um complexo e nuanccedilado encontro

entre espectador e espetaacuteculo (HARMAN 2008 p91) A interpretaccedilatildeo de Harman nos

parece acertada e a maacutexima proferida por Ciro parece nos indicar justamente a

consciecircncia da expectativa que Ciro tem da reaccedilatildeo do inimigo diante do seu exeacutercito e

como Ciro procura controlar a reaccedilatildeo do inimigo A maacutexima portanto natildeo estaacute isolada

no discurso mas estaacute intimamente relacionada com a reflexatildeo inicial ela a resume e a

torna manifesta de um comportamento geral Aleacutem disso pelo seu caraacuteter geral e

atemporal o uso desta estrateacutegia discursiva por Ciro eacute fundamental para o

convencimento de Goacutebrias Na sequecircncia do discurso Ciro procura justificar a maacutexima

natildeo por meio de uma narrativa hipoteacutetica poreacutem mediante o passado imediato

relembrando os sucessos de sua armada Os atos ndash as vitoacuterias nas batalhas ndash tornam

manifesta a verdade da maacutexima porque a experiecircncia torna-se um elemento de

validaccedilatildeo da maacutexima O problema levantado por Goacutebrias eacute portanto resolvido e eles

partem em marcha de acordo com os desiacutegnios de Ciro A narrativa demonstraraacute que

Ciro tinha razatildeo em seu discurso Estamos portanto diante de uma maacutexima que

aprendida pelo passado revela os acontecimentos futuros

Analisemos agora a maacutexima xenofonteana anteriormente citada do ponto de

vista estrutural e semacircntico O primeiro bloco semacircntico (Sabes bem Goacutebrias jaacute que

deveis saber disso) constitui o que Lardinois chama de tying phrase um discurso 178 Para uma anaacutelise das relaccedilotildees de visatildeo e poder na Ciropedia cf Harman R Viewing Power and interpretation in Xenophonrsquos Cyropaedia 2008 p69-91 179 No original Power is not only based in the actual (is the army large or small) but on how actual is seen previously a small army was seen in a way which gave it Power whereas now a big army If it is seen will seem (and therefore also be) weak In the restatement and reformulation of the problem of the armyrsquos visual availability it appears that openness to observation must be rigorously policed the response of the viewer is not static but subject to continual reinterpretation (HARMAN 2008 p81)

144

introdutoacuterio da maacutexima que ldquosinaliza o status do discurso seguinte como uma

explicaccedilatildeo para aquilo que o precederdquo180 (LARDINOIS 1997 p219 traduccedilatildeo nossa)

Em geral na liacutengua grega nos tying phrase haacute a recorrecircncia dos verbos φημί (phemi

dizer) ou οἴδα (oida saber) que datildeo ao orador muita responsabilidade para o que ele

diz Estes verbos satildeo tipicamente usados por um falante superior a um inferior ou por

aquele que quer clamar tal superioridade (LARDINOIS 1997 p220) Na maacutexima

proferida por Ciro o uso do verbo οἴδα reclama a seu locutor que ele jaacute compartilhe do

saber expresso na maacutexima A frase ἵνα καὶ τοῦτrsquo εἰδῇς (jaacute que deveis saber disso) que

muitos tradutores preferem excluir sob a justificativa de que se trata de uma

redundacircncia181 eacute na verdade uma peccedila importante no jogo discursivo incitado por

Ciro uma vez que conduz Goacutebrias a aceitar passivamente a verdade que seraacute expressa

na maacutexima O uso do verbo oida no subjuntivo passado na forma de eideis implica que

Goacutebrias deveria ser conhecedor desta verdade e neste momento da conversaccedilatildeo

reconhececirc-la negar seu conhecimento de algum modo eacute se colocar abaixo de Ciro

Ademais esse acordo taacutecito entre Ciro e Goacutebrias estabelecido pelo jogo

semacircntico do uso do verbo oida nos parece indicar que esta maacutexima eacute assumida como

um conhecimento que faz parte de uma tradiccedilatildeo popular formulada para aleacutem deste

contexto em que ela eacute proferida

O segundo bloco semacircntico (os homens numerosos quando satildeo tomados de

coragem mostram uma arrogacircncia irresistiacutevel poreacutem quando satildeo tomados de pavor quatildeo

numerosos sejam tanto maior e mais perturbado o medo que sentem) eacute a maacutexima

propriamente dita ou o conceito que transforma a maacutexima em espetaacuteculo (BARTHES

1974 p16) O conceito eacute sempre submetido a uma relaccedilatildeo pelos termos principais nele

expressos o estado mais elementar desta relaccedilatildeo eacute a comparaccedilatildeo (a maacutexima confronta

dois objetos propondo uma relaccedilatildeo quantitativa entre ambos) aleacutem da comparaccedilatildeo haacute

o estado de equivalecircncia (esta conexatildeo natildeo eacute definida em termos de quantidade mas de

essecircncia procura-se compreender qual a verdadeira identidade do termo analisado) o

terceiro tipo de estado de relaccedilatildeo do conceito eacute a relaccedilatildeo de identidade deceptiva

(neste caso haacute um projeto de dessacralizar o conceito procurando estabelecer que o

conceito natildeo passa de)

180 No original signal the status of the succeeding discourse as an explanation of what preceded it (LARDINOIS 1997 p219) 181 Cf nota 1 da paacutegina 97 da traduccedilatildeo de Marcel Bizos (1967)

145

Segundo o meacutetodo de anaacutelise de Barthes (1974) podemos compreender melhor

estas relaccedilotildees analisando os tempos fortes e tempos fracos que constituem a sintaxe

da maacutexima Os tempos fortes satildeo as substacircncias ou essecircncias das maacuteximas em geral

substantivo Seu caraacuteter indica o conceito que a maacutexima procura definir e os termos

com os quais a maacutexima define o conceito Jaacute os tempos fracos satildeo os termos

instrumentais ou relacionais que estabelecem as relaccedilotildees sintaacuteticas da maacutexima

A maacutexima que estamos analisando apresenta cinco tempos fortes muitos

homens (πολλοὶ ἄνθρωποι polloi anthropoi) tomados de coragem (θαρρῶσιν

tharrosin) arrogacircncia (φρόνημα fronema) tomados de pavor (δείσωσιν deisosin)

medo (φόβον fobon) e dois tempos fracos quando poreacutem quando (ὅταν μὲν

ὅταν δὲ) Os tempos fracos conduzem nosso modo de ler o texto estabelecendo a

sintaxe do conceito no caso formulando uma antiacutetese (quando poreacutem quando) jaacute

os tempos fortes satildeo os termos que determinam a substacircncia da maacutexima no caso e

revelam que tipo de relaccedilatildeo semacircntica se estabelece no conceito Temos nesta maacutexima a

relaccedilatildeo de comparaccedilatildeo o primeiro termo polloi anthropoi eacute o sujeito da maacutexima o

termo que a maacutexima procura definir Eacute este termo que serve de referecircncia para os outros

termos fortes tharrosin fronema deisosin fobon (ser tomado de coragem e arrogacircncia

ser tomado de pavor e medo) Estes quatro termos satildeo confrontados e o resultado de tal

confronto expressa a definiccedilatildeo do primeiro termo Assim estes termos constituem os

verdadeiros esteios da relaccedilatildeo de antiacutetese desse modo o primeiro termo eacute o sujeito da

maacutexima enquanto que os outros termos do tempo forte satildeo seus predicados que o

qualificam

Aleacutem disso a maacutexima eacute construiacuteda de modo preciso com a ideia de oposiccedilatildeo

sendo repetida pelas estruturas linguiacutesticas marcando a antiacutetese formulada pela

maacutexima Aleacutem da oposiccedilatildeo dos tempos fracos haacute a oposiccedilatildeo morfossintaacutetica

representada a-) pelos verbos na terceira pessoal do plural do subjuntivo (tharrosin

deisosin) b-) pelos verbos na terceira pessoa do plural do indicativo (parekhontai

kektentai) c-) os complementos verbais e seus adjuntos no acusativo estas repeticcedilotildees

reforccedilam a antiacutetese e criam o efeito de espetaacuteculo da maacutexima Construiacuteda desse modo

a maacutexima estetiza o discurso do orador e torna-o mais convincente

Ao observarmos as outras ocorrecircncias na Ciropedia em que Ciro profere

maacuteximas em diaacutelogos com outras personagens percebemos que elas satildeo formuladas

com o objetivo de Ciro convencer seus aliados sobre determinado ponto Eis alguns

146

exemplos no Livro 3319 Ciro dialoga com Ciaxares a respeito da necessidade de

iniciar o combate contra os Assiacuterios imediatamente e entatildeo formula a maacutexima

Conforme meu pai sempre dizia tu dizes e os outros todos estatildeo de acordo que as

batalhas satildeo decididas mais pelos espiacuteritos do que pela forccedila dos corpos 182ldquo no Livro

3350 apoacutes o persa Crisantas afirmar a necessidade de Ciro exortar seus soldados Ciro

o rebate afirmando que ldquoNenhuma exortaccedilatildeo por mais bela que seja produziraacute em um

dia ouvintes corajosos que jaacute natildeo sejam corajososrdquo 183 O interessante desta maacutexima eacute

que ela eacute proferida logo apoacutes o narrador nos apresentar pela primeira e uacutenica vez um

discurso do rei Assiacuterio com o qual ele tenta incutir coragem em seus soldados Os

rumores dos discursos do rei chegaram aos soldados persas e o pedido de Crisantas

demonstra o temor que os rumores causavam nas tropas Ciro que ao longo de toda

obra discursa aos seus soldados buscando incentivaacute-los e exortaacute-los neste momento

relembra a Crisantas que os belos discursos natildeo decidiratildeo a batalha mas o fato de os

persas estarem preparados para a batalha pois foram educados em um sistema que

previa a formaccedilatildeo de soldados exemplares no Livro 539 Ciro dialoga com Goacutebrias a

respeito de Gadatas e da necessidade de tornar este assiacuterio seu aliado pois ldquoNa guerra

nenhuma coisa melhor se pode fazer aos amigos do que fingir ser seu inimigo nem

mais mal aos seus inimigos do que fingir ser seu amigordquo184 no Livro 5511 Ciro se

utiliza de uma maacutexima procurando dissuadir as criacuteticas de seu tio Ciaxares que

enciumado das conquistas de Ciro acreditava que este desejava usurpar-lhe a soberania

da Meacutedia Ciro contesta os temores de Ciaxares e critica o modo com que ele estava

tratando seus subalternos medos e lhe lembra que ldquoFatalmente quem aterroriza a

muitos muitos inimigos produz quem a todos se mostrar violento ao mesmo tempo

todos se lanccedilam em concoacuterdia contra elerdquo185 na sequecircncia no Livro 5541 jaacute desfeita a

sua animosidade Ciaxares convoca Ciro para jantar poreacutem este o admoesta a convocar

tambeacutem os principais aliados pois ldquoQuando imaginam que satildeo negligenciados

enquanto os bons soldados tornam-se muito mais covardes os maus soldados tornam-

182 No original ltὡςgt καί ὁ πατὴρ αἰεὶ λέγει καὶ σύ φῄς καί οἱ ἄλλοι δὲ πάντες μολογοῦσιν ὡς

αἱ μάχαι κρίνονται μᾶλλον ταῖς ψυχαῖς ἤ ταῖς τῶν σωμάτων ῥώμαις (Cirop 3319) 183 No original οὐδεμία γάρ οὕτως ἐστί καλή παραίνεσις ἤτις τοὺς μὴ ὄντας ἀγαθοὺς

αὐθημερὸν ἀκούσαντας ἀγαθοὺς ποιήσει(Cirop 3350) 184 No original οὔτε γὰρ ἃν φίλους τις ποιήσειεν ἅλλως πως πλείω ἀγαθά ἐν πολέμῳ ἤ

ηολέμιος δοκῶν εἶναι οὕτrsquo ἄν ἐχθρούς πλείω τις βλάψειεν ἄλλως πως ἢ φίλος δοκῶν εἶναι (Cirop 539) 185 No original Ἀνάγκη γάρ διὰ τό πολλούς μέν φοβεῖν πολλοὺς ἐχθροὺς ποιεῖσθαι διὰ δὲ

τό πᾶσιν ἄμα χαλεπαίνειν πᾶσιν αὐτοῖς ὁμόνοιαν ἐμβάλλειν (Cirop 5511)

147

se muito mais insolentesrdquo186 no Livro 7118 Ciro em diaacutelogo com Abradatas procura

incentivaacute-lo agrave batalha afirmando que se vencerem a batalha todos diratildeo doravante que

ldquoNada eacute mais proveitoso do que a coragemrdquo187 no Livro 7211 na cena em que Ciro se

encontra com Creso que analisamos no Capiacutetulo 3 de nossa Dissertaccedilatildeo Ciro discute

com Creso os aspectos negativos da praacutetica do saque pois no saque ldquoEu sei bem que os

mais covardes levariam vantagemrdquo 188 Esta eacute a uacutenica passagem da Ciropedia em que

Ciro dialoga com algum inimigo

Essas satildeo algumas maacuteximas que Ciro formula em diaacutelogo com outras

personagens da trama Em todas essas ocorrecircncias Ciro se utiliza das maacuteximas para

convencer seus interlocutores da verdade de suas palavras estabelecendo desse modo

um niacutetido contraste entre a sua sabedoria e a de seus interlocutores O uso da maacutexima

reflete a posiccedilatildeo de superioridade de Ciro com relaccedilatildeo aos seus interlocutores uma vez

que a sequecircncia da narrativa demonstra que Ciro estava com a razatildeo Como afirma Ciro

a Ciaxares ldquoQuando eacute preciso persuadir aquele que consegue o maior nuacutemero de

concordantes para noacutes justamente deve ser distinguido como o melhor orador e o mais

eficazrdquo189 (Cirop 5546) e Ciro para ser o melhor na arte de persuadir se utiliza das

maacuteximas com recorrecircncia

b-) discurso para os soldados

Passemos agora a analisar um segundo caso quando Ciro dirige-se a seus

soldados em longos discursos A primeira diferenccedila entre estas ocorrecircncias e as

anteriores e que legitima a separaccedilatildeo que fizemos em nossa anaacutelise eacute a posiccedilatildeo do

interlocutor no discurso No caso do diaacutelogo com outras personagens noacutes temos um

diaacutelogo em que as duas instacircncias (locutorinterlocutor) estatildeo claramente definidas e

posicionadas participantes ativos do diaacutelogo Aleacutem disso e por isso abre-se a

perspectiva de um contato dialoacutegico real no qual as outras personagens podem

discordar das formulaccedilotildees de Ciro A proacutepria aceitaccedilatildeo por parte das personagens

secundaacuterias das formulaccedilotildees de Ciro o que em geral ocorre eacute em si tambeacutem um

186 No original ἀμελεῖσθαι δὲ δοκοῦντες στρατιῶται οἱ μὲν ἀγαθοὶ πολὺ ἀθυμότεροι

γίγνονται οἱ δὲ πονηροὶ πολὺ ὑβριστότεροι (Cirop 5541) 187 No original μηδὲν εἶναι κερδαλεώτερον ἀρετῆς (Cirop 7118) 188 No original εὖ οἶδ ὅτι οἱ πονηρότατοι πλεονεκτήσειαν ἄν (Cirop 7211) 189 No original ὅταν πεῖσαι δέῃ ὁ πλείστους ὁμογνώμονας ἡμῖν ποιήσας οὗτος δικαίως ἂν

λεκτικώτατός τε καὶ πρακτικώτατος κρίνοιτο ἂν εἶναι (Cirop 5546)

148

aspecto dialoacutegico da essecircncia do diaacutelogo jaacute que a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo satildeo as

respostas miacutenimas a um discurso

Nos discursos proferidos por Ciro aos seus soldados em nossa opiniatildeo o caraacuteter

dialoacutegico desaparece Os soldados natildeo emitem opiniatildeo a respeito das determinaccedilotildees de

seu liacuteder e as suas ideias natildeo entram em um real campo de contato dialoacutegico com o

discurso de Ciro Ciro como liacuteder estaacute em um pavimento superior ao de seus soldados

pavimento que lhe permite que o discurso seja contemplado e seguido e natildeo

desautorizado ou contestado A maacutexima portanto deve ter outra funccedilatildeo que a funccedilatildeo

persuasiva que encontramos nas ocorrecircncias anteriores

Analisemos o discurso proferido por Ciro no Livro 7572-86 Haacute neste

discurso a maior concentraccedilatildeo de maacuteximas na Ciropedia que se configuram tanto

como maacuteximas de guerra como maacuteximas gerais Esse discurso eacute proferido apoacutes a

tomada da Babilocircnia ou seja eacute o fim da carreira militar de Ciro descrita na Ciropedia

O Livro 8 eacute inteiramente dedicado agrave construccedilatildeo do Impeacuterio Persa e a narrativa portanto

comeccedila a tratar de uma nova temaacutetica Isso justifica o fato de este discurso ser a uacuteltima

vez em que Ciro profere maacuteximas de guerra Suas preocupaccedilotildees a partir deste

momento passaratildeo a ser o modo como conduzir o seu governo e natildeo mais como

conduzir soldados No entanto jaacute neste discurso algumas das preocupaccedilotildees futuras satildeo

realccediladas

Ciro inicia o discurso agradecendo aos deuses pelas daacutedivas conseguidas pelo

exeacutercito persa ndash terras extensas e feacuterteis (γῆν πολλὴν καὶ ἀγαθήν gen pollen kai

agathen) casas (οἰκίας oikias) etc Em seguida profere a primeira maacutexima que se

refere ao γέρας (geras) as recompensas ou espoacutelios de guerra Ciro diz a seus soldados

que

[] νόμος γὰρ ἐν πᾶσιν ἀνθρώποις ἀίδίος ἐστιν ὅταν

πολεμούντων πόλις ἁλῳ τῶν ἑλόντων εἷναι καὶ τά σώματα

τῶν ἐν τῇ πόλει καὶ τὰ χρήματα [] (Cirop 7572)

[] pois eacute lei eterna para todos os homens quando uma cidade eacute tomada estando em guerra dos conquistadores satildeo tanto o corpo como os bens dos cidadatildeos []

A maacutexima vincula-se ao comentaacuterio anterior de Ciro no iniacutecio do discurso mas

e mais importante eacute de algum modo um convite para que os persas participem do novo

projeto de Ciro a construccedilatildeo de seu Impeacuterio Os conquistadores tecircm agora a

149

responsabilidade de ajudar Ciro na construccedilatildeo de seu Impeacuterio uma vez que os corpos e

os bens dos cidadatildeos submetidos pela guerra satildeo seus espoacutelios ou seja suas riquezas

A maacutexima eacute construiacuteda por dois blocos semacircnticos o primeiro (νόμος γὰρ ἐν πᾶσιν

ἀνθρώποις ἀίδίος ἐστιν) se configura segundo a terminologia de Lardinois (1997)

como identity of the owner que deve ser entendida como a identidade do criador da

maacutexima Esse tipo de discurso fornece agrave maacutexima a sua legitimidade pois a partir dele

natildeo se compreenderaacute a maacutexima como produto de seu locutor imediato fruto de um

conhecimento particular e subjetivo do mundo mas como um conhecimento tradicional

e eterno cuja formulaccedilatildeo eacute muito anterior ao momento de sua enunciaccedilatildeo no discurso

O locutor seraacute apenas um veiacuteculo para expressar a maacutexima jaacute antes formulada e

possivelmente conhecida

O segundo bloco semacircntico (ὅταν πολεμούντων πόλις ἁλῳ τῶν ἐλόντων

εἷναι καὶ τά σώματα τῶν ἐν τῇ πόλει καὶ τὰ χρήματα) eacute o conceito da maacutexima

formado por cinco tempos fortes πόλις-πολεμούντων (polis-polemounton) ἐλόντων

(elonton) πόλει (polei) σώματα (somata) χρήματα (khremata) no qual os quatro

uacuteltimos termos estabelecem uma relaccedilatildeo de equivalecircncia formando o predicado do

primeiro termo sujeito da maacutexima A polis (cidade) sujeito da maacutexima torna-se no

contexto da guerra um objeto que passa das matildeos dos vencidos para as dos

conquistadores Neste caso kremata (bens) e somata (corpos) que constituem as

propriedades do cidadatildeo-livre tornam-se tambeacutem objetos dos conquistadores

destituindo assim o cidadatildeo da sua condiccedilatildeo de homem livre Jaacute o termo polemounton

estando em guerra estabelece o contexto em que a maacutexima eacute vaacutelida limitando-a

portanto ao contexto da guerra

Na sequecircncia de seu discurso Ciro reflete o quanto eacute mais faacutecil conquistar do

que manter as coisas conquistadas Nesta reflexatildeo Ciro retoma o valor do trabalho

(ponos) da moderaccedilatildeo (sophrosune) da temperanccedila (enkhrateia) valores que desde a

infacircncia a educaccedilatildeo persa incutira nele e por toda a narrativa demonstraram ser vitais

na vitoacuteria persa sobre os inimigos Ciro entatildeo formula a segunda maacutexima do discurso

(Livro 7575) ldquoPois natildeo basta que os homens sejam bons no iniacutecio para permanecer

bons se natildeo se ocupar com isso ateacute o fimrdquo190 Esta maacutexima apresenta apenas o conceito

sem discursos introdutoacuterios ou de validaccedilatildeo da maacutexima isso porque a maacutexima estaacute 190 No original Οὐ γὰρ τοι τὸ ἀγαθοὺς ἄνδρας γενέσθαι τοῦτο ἀρκεῖ ὥστε καὶ διατελεῖν ἤν μή

τις ἀυτοῦ τέλους ἐπιμελῆται (Cirop 7575)

150

relacionada com todo o conjunto de reflexatildeo anterior e posterior agrave formulaccedilatildeo da

maacutexima a reflexatildeo valida a maacutexima e tambeacutem a explica Esta eacute uma maacutexima

deceptiva na qual os predicados dessacralizam a imagem do sujeito da maacutexima

(ἀγαθοὺς ἄνδρας agathous andras) Nesta maacutexima mais do que os tempos fortes ndash

διατελεῖν (diatelein) ἐπιμελῆται (epimeletai) ndash satildeo os tempos fracos (Οὐhellip ἀρκεῖ

ἤν μή τέλους) que determinam a sua dessacralizaccedilatildeo pois estes termos impotildeem

concessotildees agrave realizaccedilatildeo do sujeito da maacutexima que eacute ser homens corajosos Ser corajoso

natildeo eacute uma essecircncia inata e imoacutevel no homem poreacutem o resultado de um exerciacutecio que

deve ser continuamente aplicado

Como acima afirmamos a maacutexima relaciona-se com alguma reflexatildeo tanto

anterior a sua formulaccedilatildeo quanto posterior Desse modo na sequecircncia do discurso Ciro

utiliza-se de comparaccedilotildees para justificar a maacutexima acima assim como as artes (τέχναι

tekhnai) quando negligenciadas tornam-se sem valor (μείονος ἄξιαι γίγνονται

meionos aksiai gignontai) e os corpos em boa forma (τὰ σώματά γε τὰ εὖ ἔχοντα

ta somata ge ta eu ekhonta) quando se entregam agrave preguiccedila (ῥᾳδιουργίαν

raidiourgian) tornam-se novamente em mau estado (πονήρως πάλιν poneros palin)

as virtudes tambeacutem se convertem em viacutecios (πονηρίαν ponerian) quando se abandona

a sua praacutetica (ἀνῇ τὴν ἄσκησιν anei tem askesin) A partir destas comparaccedilotildees Ciro

revela qual o seu verdadeiro temor expresso em duas maacuteximas uma subsequente a

outra primeiramente Ciro formula que ldquoPois considero de um lado um grande

trabalho conquistar o poder mas de outro lado ainda maior conservaacute-lo depois de

conquistadordquo191 (Livro 7576) Nesta maacutexima comparativa o conceito eacute introduzido

pelo bloco semacircntico γὰρ οἶμαι (gar oimai) que estabelece Ciro natildeo soacute como o

locutor da maacutexima como tambeacutem seu formulador Deste modo este bloco semacircntico se

configura tanto como um tying phrase quanto um identity of the owner

Jaacute a segunda maacutexima natildeo apresenta nenhum tipo de discurso introdutoacuterio

iniciando-se diretamente no conceito da maacutexima ldquoPois frequentemente de um lado a

conquista ocorreu provocada soacute pela coragem mas de outro preservar as conquistas

191 No original μέγα μὲν γὰρ οἶμαι ἔργον καὶ τὸ ἀρχὴν καταπρᾶξαι πολὺ δ ἔτι μεῖζον τὸ

λαβόντα διασώσασθαι (Cirop 7576)

151

natildeo se alcanccedila sem moderaccedilatildeo nem sem temperanccedila nem sem grande diligecircncia192rdquo

(Livro 7576) Desse modo esta maacutexima ao contraacuterio da anterior se estabelece como

um conhecimento para aleacutem da narrativa legitimando natildeo soacute toda a reflexatildeo mas

tambeacutem a maacutexima anterior O conceito desta maacutexima comparativa eacute expresso pela

oposiccedilatildeo entre as virtudes de um lado a coragem (tolma) e de outro a moderaccedilatildeo

(sophrosune) temperanccedila (enkrateia) e diligecircncia (epimeleia) retomando a oposiccedilatildeo jaacute

expressa na reflexatildeo anterior A reflexatildeo portanto se fecha na maacutexima o conceito

condensa o todo e se torna um espetaacuteculo expressivo

Estas trecircs virtudes aliadas a outras que desde o iniacutecio da Ciropedia satildeo

constantemente afirmadas como essenciais seratildeo retomadas a partir deste passo no

discurso de Ciro A preocupaccedilatildeo de Ciro ao incutir em seus soldados a ambiccedilatildeo de bem

governar seus suacuteditos eacute a de que seus soldados natildeo desprezem a praacutetica destas virtudes

pois foi esta praacutetica que garantiu a eles a supremacia frente aos inimigos

No Livro 81 que narra os primeiros afazeres de Ciro como liacuteder de seu Impeacuterio

o narrador nos conta como Ciro procurava persuadir seus suacuteditos a seguirem a praacutetica da

piedade da justiccedila da obediecircncia da moderaccedilatildeo e da temperanccedila as principais virtudes

da educaccedilatildeo persa Enquanto no Livro 88 o narrador no epiacutelogo da obra afirma que a

decadecircncia do Impeacuterio Persa se deve ao abandono da praacutetica destas virtudes O discurso

de Ciro portanto indica alguns movimentos subsequentes da narrativa e esta eacute uma

particularidade interessante das maacuteximas analisadas da Ciropedia elas ao mesmo

tempo em que se relacionam com a narrativa anterior agrave sua locuccedilatildeo ndash pois satildeo os atos e

as experiecircncias que datildeo ensinamentos para que Ciro expresse e formule suas maacuteximas ndash

revelam os projetos futuros de Ciro e a sequecircncia da narrativa

Retornemos agrave anaacutelise do discurso de Ciro Preocupado portanto em garantir

que os soldados natildeo desprezem a praacutetica das virtudes Ciro os lembra de que agora que

satildeo conquistadores devem exercitar-se em dobro pois ldquoSabendo bem que quando

algueacutem tem numerosas coisas entatildeo haveraacute maior nuacutemero de invejosos de

conspiradores e de inimigosrdquo193 (Livro 7577) Para Ciro necessariamente todos os

homens sofrem pelos mesmos motivos (frio fome cansaccedilo etc) igualando os suacuteditos

192 No original τὸ μὲν γὰρ λαβεῖν πολλάκις τῷ τόλμαν μόνον παρασχομένῳ ἐγένετο τὸ δὲ

λαβόντα κατέχειν οὐκέτι τοῦτο ἄνευ σωφροσύνης οὐδ ἄνευ ἐγκρατείας οὐδ ἄνευ πολλῆς

ἐπιμελείας γίγνεται (Cirop 7576) 193 No original εὖ εἰδότας ὅτι ὅταν πλεῖστά τις ἔχῃ τότε πλεῖστοι καὶ φθονοῦσι καὶ

ἐπιβουλεύουσι καὶ πολέμιοι γίγνονται (Cirop 7577)

152

com os comandantes por isso eacute necessaacuterio que os comandantes se mostrem sempre

melhores (βελτίονας) que os seus suacuteditos e isto soacute ocorreraacute pela praacutetica das virtudes

Esse pensamento vem expresso na maacutexima ldquoMas sem duacutevida natildeo eacute conveniente ao

governante ser inferior aos governados194rdquo (Livro VII583) Aleacutem disso todo o

cuidado para natildeo se deixar dominar pelos suacuteditos vem expresso na maacutexima geral

Conquistar belas coisas natildeo eacute tatildeo difiacutecil como a dor de ser privado das coisas

conquistadas195 (Livro 7582)

Ciro reconhece todavia o quatildeo custoso eacute para seus homens depois de terem

suportado tantas fadigas durante a guerra continuar suportando-as depois de

vencedores da guerra por isso ele afirma que ldquo[] as boas coisas encantam tanto mais

quanto mais labores tiver sofrido para chegar a elas As fadigas satildeo os temperos das

boas coisasrdquo196 (Livro 7580) Esta maacutexima geral eacute interessante pois apresenta duas

maacuteximas interligadas formada por dois blocos poreacutem o segundo bloco ndash As fadigas satildeo

os temperos das boas coisas ndash tem maior alcance retoacuterico do ponto de vista da

expressividade pois ela condensa em sua forma a proacutepria maacutexima anterior Aleacutem disso

eacute uma maacutexima que funciona como validaccedilatildeo da outra maacutexima

No final do discurso de Ciro ele ainda profere mais duas maacuteximas gerais ambas

relacionadas agrave praacutetica da virtude principal tema de seu discurso a primeira maacutexima

determina que ldquo[] natildeo haacute outra proteccedilatildeo melhor do que ser belo e nobrerdquo197 (Livro

7584) enquanto a segunda maacutexima ldquoAo que estaacute separado da virtude nada conveacutem a

natildeo ser comportar-se bemrdquo 198 (Livro 7584)

Analisando este discurso procuramos compreender o uso das maacuteximas no

discurso proferido para os soldados Anteriormente referimos que no discurso ao

contraacuterio do que ocorre no diaacutelogo os interlocutores estatildeo em um niacutevel abaixo do

orador no caso Ciro e este portanto natildeo necessita de maacutexima para convencecirc-los a

fazer as suas vontades jaacute que sua posiccedilatildeo social imporia a obediecircncia Natildeo haacute a

necessidade de convencimento de persuasatildeo Aleacutem disso naturalmente seriacuteamos

194 No original Ἀλλrsquo οὐ δήπου τὸν ἄρχοντα τῶν ἀρχομένων πονηρότερον προσήκει εἴναι (Cirop 7583) 195 No original οὐ γὰρ τὸ μὴ λαβεῖν τἀγαθὰ οὔτω χαλεπόν ὥσπερ τό λαβόντα στερηθῆναι

λυπηρόν (Cirop 7582) 196 No original ὅτι τοσούτῳ τἀγαθὰ μᾶλλον εὐφραίνει ὅσῳ ἂν μᾶλλον προπονήσας τις ἐπ

αὐτὰ ἴῃ οἱ γὰρ πόνοι ὄψον τοῖς ἀγαθοῖς (Cirop 7580) 197 No original ὅτι οὐκ ἔστιν ἄλλη φυλακὴ τοιαύτη οἴα αὐτόν τινα καλὸν κάγαθὸν ὑπάρχειν (Cirop 7584) 198 No original τῷ δ ἀρετῆς ἐρήμῳ οὐδὲ ἄλλο καλῶς ἔχειν οὐδὲν προσήκει (Cirop 7584)

153

levados a interpretar estas maacuteximas como discurso exortativo a fim de que os soldados

se encorajem Entretanto o discurso exortativo aparece sob outras formas de locuccedilatildeo

que natildeo necessariamente a maacutexima Por isso natildeo podemos pensar apenas no caraacuteter

exortativo das maacuteximas como uma funccedilatildeo predominante das maacuteximas no discurso de

Ciro

Podemos entatildeo interpretar estas maacuteximas de dois modos primeiramente nelas

Ciro revela tanto suas intenccedilotildees e objetivos quanto principalmente suas preferecircncias

de comportamento O caraacuteter eacutetico da maacutexima estabelece portanto um modelo de

comportamento para os soldados comportamento este que os soldados devem seguir

caso queiram ser agradaacuteveis ao proacuteprio Ciro Desse modo os discursos de Ciro para

seus soldados tambeacutem satildeo uma oacutetima oportunidade para que o narrador possa

caracterizar Ciro uma vez que as maacuteximas revelam as preferecircncias de comportamento

Por outro lado devemos lembrar que segundo Aristoacuteteles as maacuteximas

produzem prazer aos ouvintes A relaccedilatildeo que Ciro estabelece com seus ouvintes eacute uma

relaccedilatildeo de cumplicidade como se estes estivessem em um mesmo niacutevel discursivo O

prazer do ouvinte surge agrave medida que ele se sente feliz em reconhecer na maacutexima um

conhecimento que ele mesmo jaacute intuiacutera estabelecendo portanto um forte traccedilo de

cumplicidade entre comandante e suacuteditos Cumplicidade entre o comandante e seus

suacuteditos eacute uma das mais caracteriacutesticas peculiaridades do governo ideal de Ciro e que

mais o diferencia dos tiranos orientais da tradiccedilatildeo da literatura grega

53 O percurso de Ciro a formaccedilatildeo do διδάσκαλος199

A personagem no romance de formaccedilatildeo eacute uma grandeza moacutevel evolutiva A

formaccedilatildeo deve neste sentido revelar uma determinada mudanccedila na postura da

personagem e esta mudanccedila torna-se o ponto principal do conteuacutedo do romance o

proacuteprio material do romancista No capiacutetulo anterior demonstramos alguns aspectos

desta mudanccedila ou evoluccedilatildeo da personagem Ciro poreacutem nossa anaacutelise se limitou a

observar as estruturas que constituiacuteam a archaica do romance de formaccedilatildeo Nesta

199 διδάσκαλος (didaskalos) eacute aquele que ensina o mestre

154

subseccedilatildeo demonstraremos por fim que a locuccedilatildeo de maacuteximas eacute uma caracteriacutestica

importante no processo de formaccedilatildeo da personagem na Ciropedia As maacuteximas satildeo

recursos descritivos com os quais Xenofonte apresenta a profundidade da sua

personagem Haacute de fato o uso do discurso indireto em algumas passagens poreacutem eacute

quase sempre por meio do discurso direto que conhecemos Ciro e que Ciro se deixa

conhecer

Observemos a seguir os quadros

Maacuteximas de guerras proferidas por Ciro LIVRO I - LIVRO II - LIVRO III 1 LIVRO IV - LIVRO V 9 LIVRO VI 4 LIVRO VII 8 LIVRO VII -

Quadro 2 Relaccedilatildeo por maacuteximas de guerra

Maacuteximas gerais proferidas por Ciro LIVRO I 3 LIVRO II 2 LIVRO III 1 LIVRO IV 1 LIVRO V 4 LIVRO VI 1 LIVRO VII 7 LIVRO VII 3

Quadro 3 Relaccedilatildeo por livro de maacuteximas gerais

A respeito do contexto das locuccedilotildees das maacuteximas podemos acrescentar que Ciro

natildeo formula nenhuma maacutexima de guerra nos dois primeiros livros da Ciropedia Suas

primeiras locuccedilotildees estatildeo expressas no Livro 33 em um diaacutelogo com Ciaxares poreacutem eacute

a partir dos Livros 55 que Ciro passa a se utilizar de maacuteximas com mais frequecircncia

Antes disso Ciro participara da expediccedilatildeo agrave Armecircnia e agrave Caldeacuteia (Livro 3) da

expediccedilatildeo da Assiacuteria (Livro 4) aleacutem de batalhas esparsas na Meacutedia (Livro 1) e na

Babilocircnia (Livro 5) Isso significa que a experiecircncia da guerra eacute fundamental para que

Ciro formule e se expresse por meio de maacuteximas O maior efeito retoacuterico do discurso

gnocircmico estaacute na relaccedilatildeo deste discurso com os atos e como afirma Aristoacuteteles soacute fica

155

bem ao homem experiente se expressar com maacuteximas Deste modo a personagem sofre

uma evoluccedilatildeo na qual a elocuccedilatildeo das maacuteximas eacute uma caracteriacutestica determinante na

figurativizaccedilatildeo desta evoluccedilatildeo

Com relaccedilatildeo agraves maacuteximas gerais Ciro as formula de forma esporaacutedica desde o

primeiro livro (Livro 16) todavia uma das maacuteximas proferidas por Ciro neste livro eacute

reformulada pelo seu pai Cambises200 Como afirmamos no capiacutetulo anterior ao longo

do Livro 1 Ciro passa por experiecircncias (tanto no acircmbito da guerra quanto no acircmbito

particular) em que demonstra erros de avaliaccedilatildeo e de conduta Estes erros seratildeo

corrigidos por seus mentores o avocirc Astiacuteages e o pai Cambises Do mesmo modo

quando Ciro afirma a seu pai ldquoE com efeito refletindo sobre essas coisas parece-me

observar que o que mais incita a obediecircncia eacute louvar e honrar o obediente e ao

desobediente desprezar e punir []rdquo201 (Cirop 1620) Essa maacutexima natildeo se concretiza

como uma verdade jaacute que seu pai iraacute em seguida refutaacute-la Esta maacutexima apresenta

valores de um verdadeiro tirano um deacutespota exatamente o contraacuterio do que Ciro se

revelaraacute no restante da narrativa mostrando assim novamente que os ensinamentos do

pai surtiram efeito Ciro portanto natildeo permanece inalterado com as circunstacircncias seu

espiacuterito se modifica e se aperfeiccediloa Ciro eacute representado como μαθητής (mathetes)

um disciacutepulo sempre pronto a aprender para melhor agir no futuro Haacute portanto

equiacutevocos de avaliaccedilatildeo por parte de Ciro poreacutem a sua reeducaccedilatildeo eacute fundamental na

continuidade da narrativa Assim como as maacuteximas de guerra as maacuteximas gerais

tornam-se mais comuns a partir do Livro V Observamos portanto que haacute na

Ciropedia a relaccedilatildeo entre experiecircncias e elocuccedilatildeo das maacuteximas e que elas constituem

desse modo uma importante faceta na construccedilatildeo da personagem Ciro

Agrave medida que a narrativa avanccedila e Ciro mostra-se um liacuteder natildeo soacute competente

e vencedor mas caracterizado como ideal a personagem passa a se expressar por

maacuteximas com mais regularidade Ciro entatildeo torna-se um διδάσκαλος o mestre que

passa a ensinar seus conhecimentos

200 No Capiacutetulo 4322 de nossa Dissertaccedilatildeo analisamos o papel de Cambises como mentor de Ciro e de como ele reavalia as afirmaccedilotildees de Ciro 201 No original οι δοκῶ τὸ προτρέπον πείθεσθαι μάλιστα ὂν τὸ τὸν πειθόμενον ἐπαινεῖν τε

καὶ τιμᾶν τὸν δὲ ἀπειθοῦντα ἀτιμάζειν τε καὶ κολάζειν (Cirop 1620)

156

Um exemplo desta passagem do aluno para o mestre ocorre na narrativa de

Panteacuteia e Abradatas202 Ciro ordena que Araspas seja o guarda de Panteacuteia No Livro

512-18 quando Araspas encontra-se com Ciro e lhe conta sobre a beleza de Panteacuteia

inicia-se a discussatildeo entre os dois a respeito do amor Ciro afirma que teme se apaixonar

pela bela dama de Susa pois a paixatildeo lhe impediria de cumprir as suas obrigaccedilotildees

Araspas retruca a Ciro e inicia a reflexatildeo na qual ele afirma que ldquoO amor de outro

lado estaacute subordinado agrave vontaderdquo203 (Cirop 5117) e para comprovar a verdade de

suas palavras ele a exemplifica dizendo que se o amor natildeo dependesse da vontade o

pai desejaria a filha o irmatildeo desejaria a irmatilde poreacutem o amor eacute um sentimento diferente

da fome da sede do sentir frio no inverno ou sentir calor no veratildeo pois nenhuma lei eacute

capaz de evitar que o homem tenha estes sentimentos enquanto a lei impede o incesto

Ciro para dissuadir seu soldado lhe diz ldquo[] pois enquanto que o fogo queima quem

estaacute proacuteximo os belos excitam tambeacutem quem os contempla de longe a ponto de arder

de paixatildeordquo204 (Cirop 5116)

A maacutexima eacute formada pela comparaccedilatildeo entre fogo (πῦρ pur) e belos (καλοὶ

kaloi) e pela semacircntica dos verbos queimar (ἁπτω hapto) e excitar (ὑφάπτω

huphapto) formados pelo mesmo radical ἅπτ-205 pois o verbo uphaptousin eacute composto

pela preposiccedilatildeo ὑπό + ἀπτω (hupo + apto) Na primeira frase (ὡς τό μὲν πῦρ τοὺς

ἁπτομένους καίει) o sentido do verbo hapto que estaacute no particiacutepio meacutedio acusativo

plural eacute ldquoascenderrdquo ou seja uma accedilatildeo concreta na segunda frase (οἱ δὲ καλοὶ καὶ

τούς ἄπωθεν θεωμένους ὑφάπτουσιν) o sentido do verbo huphapto que estaacute na

terceira pessoa do plural eacute ldquoexcitarrdquo ou seja accedilatildeo abstrata que reafirma o alcance do

amor que queima mesmo os que estatildeo longe Araspas no entanto despreza o conselho

de Ciro e afirma que mesmo que nunca parasse de contemplaacute-la natildeo haveria perigo de

ser subjugado pelo amor a tal ponto que faltasse com seus deveres Todavia o narrador

nos conta que agrave medida que Araspas contemplava Panteacuteia ele se apaixonava cada vez

202 A narrativa de Panteacuteia e Abradatas eacute uma narrativa secundaacuteria cujo tema principal eacute o amor do casal que luta contra alguns obstaacuteculos para se manter fieacutel Esta narrativa serviu de referecircncia para os romancistas gregos 203 No original Τὸ δrsquo ἐρᾶν ἐθελούσιόν ἐστιν (Cirop 5117) 204 No original ὡς τό μὲν πῦρ τοὺς ἁπτομένους καίει οἱ δὲ καλοὶ καὶ τούς ἄπωθεν θεωμένους

ὑφάπτουσιν ὥστε αἴθεσται τῷ ἔρωτι (Cirop 5116) 205 O verbo ὑφάπτουσιν eacute composto pela preposiccedilatildeo ὑπό + ἀπτω

157

mais por ela O narrador e a narrativa portanto confirmam que a avaliaccedilatildeo correta

sobre o amor era a de Ciro e natildeo a de Araspas

Portanto do mesmo modo que no iniacutecio da narrativa da Ciropedia a maacutexima de

Ciro eacute reformulada pelos ensinamentos de seu pai na cena entre Ciro e Araspas eacute Ciro

quem reformula a maacutexima proferida por Araspas Ciro portanto assume o papel que

antes era o do seu pai tornando-se tambeacutem uma espeacutecie de mentor Este aspecto

caracteriacutestico de Ciro fica ainda mais evidente durante a uacuteltima cena da narrativa (Livro

87) quando diante de seus familiares Ciro pronuncia um longo discurso dirigindo-se a

seus dois filhos no qual revisita todos os principais ensinamentos discorridos pela obra

Ciro ao estabelecer Cambises o primogecircnito como herdeiro do Impeacuterio Persa

daacute a Tanaoxares as satrapias da Meacutedia da Armecircnia e da Caldeacuteia regiotildees que antes da

construccedilatildeo do impeacuterio jaacute eram ou aliadas dos persas ou submetidas a eles Apoacutes

determinar sua sucessatildeo Ciro procura acalmar a vaidade de Tanaoxares demonstrando

que de um lado se ele eacute apenas um saacutetrapa de outro os trabalhos e os infortuacutenios do

seu irmatildeo imperador seratildeo muito maiores Depois afirma a Cambises que ldquoOs amigos

fieacuteis satildeo para os reis os cetros mais verdadeiros e mais confiaacuteveisrdquo206 (Livro 8713)

Poreacutem afirma que os homens natildeo satildeo leais por natureza mas que cada um deve criar as

suas lealdades Eacute interessante este comentaacuterio por demostrar demonstrar que todos

aqueles que na narrativa foram servos fieacuteis e leais a Ciro tiveram suas lealdades

conquistadas por ele A partir destes comentaacuterios Ciro ainda faz mais algumas reflexotildees

a respeito da lealdade dos homens afirmando que nenhum homem eacute mais leal a outro

homem do que o irmatildeo e termina esse tema de seu discurso com outra maacutexima Quem

zela pelo irmatildeo de si mesmo cuida207 (Livro 8715) Ciro continua seu discurso

versando sobre outros temas ndash sobre a imortalidade da alma sobre o devido respeito aos

deuses e sobre o desejo de ser cremado apoacutes a morte no final Ciro profere sua uacuteltima

maacutexima pouco antes de se despedir dos filhos Beneficiando aos amigos sereis capazes

de castigar os inimigos208 (L 8728)

Ciro termina a narrativa como um saacutebio mestre da verdade que depois de

experienciar uma vida repleta de sucessos pode ldquoespalhar a verdaderdquo conforme a

expressatildeo de Detienne ([sd])

206 No original οἱ πιστοὶ φίλοι σκῆπτρον βασιλεῦσιν ἀληθέστατον καiacute ἀσφαλέστατον (Livro VIII713) 207 No original Ἑαυτοῦ τοι κήδεται ὁ προνοῶν ἀδελφῳ (Livro VIII715) 208 No original τοὺς φίλους εὐεργετοῦντες καὶ τοὺς ἐχθροὺς δυνήσεσθε κολάζειν (L VIII828)

158

Concluiacutemos este capiacutetulo reafirmando que as maacuteximas na tessitura narrativa da

Ciropedia apresentam-se como uma instacircncia discursiva importante na caracterizaccedilatildeo

da personagem Ciro Ciro evolui de aprendiz para mestre e esta transformaccedilatildeo eacute

figurativizada na narrativa por meio da locuccedilatildeo de maacuteximas A anaacutelise do contexto de

locuccedilatildeo das maacuteximas demonstrou que os conhecimentos apreendidos pelas diversas

experiecircncias por que Ciro passa lhe permitem natildeo soacute reproduzir maacuteximas mas tambeacutem

as produzir As experiecircncias tanto na guerra quanto nas relaccedilotildees com as outras

personagens desenvolvem o comportamento do heroacutei da Ciropedia e este experiente

passa a ensinar os que o rodeiam por meio de maacuteximas As maacuteximas de Ciro que no

iniacutecio eram reformuladas pelos seus mentores no final da Ciropedia passam a ser

palavras de guia para seus filhos instituindo Ciro como um saacutebio mentor

Figura 4 Cilindro de Ciro cilindro de argila descoberto em 1879 e considerado a primeira declaraccedilatildeo dos direitos humanos da humanidade Fonte Foto de Marco Prins e J Lendering visualisada em httpwwwliviusorgct-czcyrus_Icyrus_cylinderhtml

159

6 Consideraccedilotildees finais

O final de um percurso revela em geral mais do que se esperava em seu iniacutecio

Apesar disso eacute inevitaacutevel a satisfaccedilatildeo de descobrir que algumas de nossas intuiccedilotildees

primevas revelaram-se verdadeiras e coerentes Este trabalho de anaacutelise da Ciropedia se

deve muito agraves intuiccedilotildees iniciais que no longo trajeto de formaccedilatildeo da Dissertaccedilatildeo

sempre clarearam a nossa visatildeo mesmo nos momentos de maiores dificuldades e

incertezas

Iniciamos nosso trabalho repletos de duacutevidas a respeito de como enfrentar os

problemas terminoloacutegicos a respeito do gecircnero do romance De que modo poderiacuteamos

usar uma terminologia moderna para tratar de uma obra literaacuteria produzida na

Antiguidade Quais as inevitaacuteveis consequecircncias de tal uso E principalmente o que

significa no acircmbito da literatura grega claacutessica uma obra ficcional em prosa Nossa

preocupaccedilatildeo era tornar plausiacutevel a argumentaccedilatildeo de que a Ciropedia efetua importantes

inovaccedilotildees na prosa ficcional da Antiguidade e por conseguinte na prosa ficcional

moderna podendo ser considerada uma das primeiras manifestaccedilotildees romanescas da

literatura Ocidental

A questatildeo eacute problemaacutetica uma vez que o romance (prosa ficcional) comeccedilou a

fazer parte do cacircnone literaacuterio apenas a partir dos seacuteculos XVIII e XIX e o termo

romance surgiu apenas no seacuteculo XII Assim os teoacutericos identificaram o romance como

uma manifestaccedilatildeo literaacuteria proacutepria dos tempos modernos sem precedentes na

Antiguidade O romance portanto eacute uma forma que natildeo se estrutura a partir do cacircnone

claacutessico e que por isso apresenta uma forma aberta sempre renovadora Aleacutem desse

caraacuteter sempre inovador tambeacutem identificava um tipo de mateacuteria em que a personagem

problemaacutetica se opunha agrave sociedade opressora proacutepria da sociedade burguesa

revolucionaacuteria Nestas circunstacircncias uma obra como a Ciropedia que apresenta em

sua forma o caraacuteter idealizado do heroacutei e a sua trajetoacuteria harmocircnica com a sociedade

dificilmente poderia ser classificada como um romance antes do romance A ausecircncia

do caraacuteter problemaacutetico entretanto da mateacuteria narrativa natildeo significa que do ponto de

vista da forma as correspondecircncias natildeo se acentuam com mais clareza

A teoria do romance de Bakhtin nos ajudou a identificar um ponto preciso nesta

discussatildeo Para o teoacuterico russo a problemaacutetica do indiviacuteduo com a sociedade eacute um tema

160

de grande produtividade no romance poreacutem natildeo eacute o uacutenico Assim o romance deve ser

compreendido principalmente a partir de questotildees estruturais como por exemplo a

representaccedilatildeo da personagem ou do cronotopo etc No entanto sem negar a

potencialidade do romance moderno Bakhtin natildeo nega tambeacutem que a base do

desenvolvimento da forma romanesca estaacute presente em algumas formas discursivas da

Antiguidade e da Idade Meacutedia Seria inoportuno neste momento retomar todas as

valiosas contribuiccedilotildees de Bakhtin para a teoria do romance Para nosso trabalho as duas

principais contribuiccedilotildees foram os conceitos de moderniazaccedilatildeo da histoacuteria e de

archaica

Quanto agrave modernizaccedilatildeo da histoacuteria em seu estudo Epos e Romance Bakhtin

(2002) afirma que a forma romanesca surge da desintegraccedilatildeo da distacircncia eacutepica entre

presente e passado Enquanto na epopeia o passado miacutetico surge como um fenocircmeno

fechado e destituiacutedo de autoria o passado no romance surge a partir de questotildees

colocadas pelo presente do autor Neste sentido um tema da histoacuteria natildeo eacute representado

pela fidelidade agrave histoacuteria em ordenar e descrever o passado tal qual ele aconteceu mas

eacute representado em vista de responder a questotildees do presente Desse modo o passado eacute

ficcionalizado e o factual e o veriacutedico abrem espaccedilo para a infiltraccedilatildeo do verossimil

Demonstramos no terceiro capiacutetulo de nossa Dissertaccedilatildeo que Xenofonte

ficcionaliza os dados histoacutericos a respeito da vida de Ciro Nossa anaacutelise privilegiou a

comparaccedilatildeo da narrativa apresentada por Xenofonte com a narrativa que Heroacutedoto faz a

respeito de Ciro em seu livro Histoacuterias Uma vez que natildeo podemos nos certificar de

outras possiacuteveis fontes com que Xenofonte pudesse ter trabalhado pudemos comprovar

a partir do conceito de intertextualidade que Xenofonte construiu sua narrativa

contrastando-a e dialogando diretamente com a narrativa de Heroacutedoto As Histoacuterias

funcionavam como um discurso de autoridade para Xenofonte e nesta nova versatildeo da

narrativa sobre Ciro era necessaacuterio suprimir o que contrastasse com a visatildeo idealizada e

encomiaacutestica narrada por Xenofonte que manipula portanto o material estabelecido

pela narrativa de Heroacutedoto

O resultado de tal manipulaccedilatildeo eacute uma narrativa idealizada em que o tema do

governo ideal caro agrave sua eacutepoca histoacuterica eacute constantemente levantado e respondido O

caraacuteter didaacutetico dessa ficcionalizaccedilatildeo visa menos recontar o passado a partir de

estrateacutegicas de validaccedilatildeo da narrativa ldquocomo de fato aconteceurdquo do que se dirigir como

exemplum para os leitores gregos do presente Desse modo em sua narrativa

Xenofonte-autor aproxima-se do passado inacabado rompendo a distacircncia eacutepica com

161

caraacuteter inacabado do presente Os exemplos que analisamos neste capiacutetulo demonstram

a tentativa de Xenofonte de recriar esse passado para construir um todo concreto e ideal

Natildeo eacute o passado o ponto de partida de Xenofonte mas a contemporaneidade que ldquodita

os pontos de vista e as orientaccedilotildees para certos valoresrdquo (BAKHTIN 1998 p418) e

neste sentido o passado eacute modernizado A Ciropedia portanto pode ser lida como um

romance

A partir disso entramos em uma segunda fase da nossa Dissertaccedilatildeo em que

procuramos demonstrar a relaccedilatildeo da Ciropedia com o romance de formaccedilatildeo moderno

uma vez que muitos criacuteticos classificavam-na como uma das primeiras manifestaccedilotildees

deste subgecircnero literaacuterio Contudo em nossa opiniatildeo natildeo havia uma anaacutelise eficaz que

justificasse tal classificaccedilatildeo Procuramos portanto em nossa anaacutelise privilegiar os

aspectos estruturais do gecircnero e neste sentido o conceito de archaica empregado por

Bakhtin (2010) foi fundamental A archaica eacute a estrutura de um gecircnero que estaacute sempre

presente e ainda que constantemente renovando-se permanece como caracteriacutestico da

forma

Procuramos identificar quais as estruturas miacutenimas que caracterizam o gecircnero do

Romance de formaccedilatildeo moderno e em seguida verificar se estas estruturas estavam

tambeacutem presentes na Ciropedia Analisamos cenas da narrativa como o afastamento da

casa materna a presenccedila de mentores a passagem por instituiccedilotildees educacionais os

erros de avaliaccedilatildeo da personagem principal e a visatildeo teleoloacutegica de educaccedilatildeo que

constituem experiecircncias tiacutepicas pelas quais o heroacutei passa no romance de formaccedilatildeo

(JACOBS 1989 apud MAAS 2000) Estes elementos estruturais natildeo aparecem de

forma estaacutetica mas se combinam em cenas bem organizadas e conduzem a evoluccedilatildeo da

personagem principal no decorrer da narrativa

Aleacutem disso verificamos que o heroacutei da Ciropedia como uma personagem tiacutepica

do romance de formaccedilatildeo natildeo eacute uma personagem estaacutetica mas eacute de algum modo

dinacircmica ou seja evoluiacute no decorrer da narrativa Esta evoluccedilatildeo fica patente quando

observamos a locuccedilatildeo das maacuteximas na obra uma vez que Ciro que no iniacutecio natildeo

formula maacuteximas passa a formular e a instruir os que o rodeiam tornando-se desse

modo um mestre da verdade passando de um inexperiente mathetes para um saacutebio

didaskalos Assim o heroacutei da Ciropedia portanto eacute uma ldquounidade dinacircmicardquo

(BAKHTIN 2010 p237) e se enquadra no tipo de personagem do romance de

formaccedilatildeo

162

Concluiacutemos nossa Dissertaccedilatildeo afirmando que a Ciropedia natildeo deve ser lida

como uma obra historiograacutefica e sim como uma obra de ficccedilatildeo em prosa Xenofonte

assim inovou na Literatura Grega rompendo com a tradiccedilatildeo da prosa claacutessica e

iniciando um novo caminho um caminho em que a prosa se assume ficcional

163

7 Traduccedilatildeo

A traduccedilatildeo aqui apresentada eacute uma traduccedilatildeo de serviccedilo ou escolar Isso significa

que nossa intenccedilatildeo ao propor tal empreitada natildeo eacute recriar em liacutengua vernaacutecula por

criteacuterios estiliacutesticos o texto grego mas sim apenas nos aproximar do texto original de

Xenofonte Julgamos necessaacuterio tal aproximaccedilatildeo uma vez que as traduccedilotildees para nossa

liacutengua ainda que competentes natildeo nos satisfaziam completamente quando comparadas

ao texto original Neste sentido procuramos manter sempre que possiacutevel os

componentes sintaacuteticos e semacircnticos ainda que tornassem o texto mais ldquotruncadordquo

Talvez um projeto de traduccedilatildeo integral da Ciropedia repensando o texto grego pelos

equivalentes vernaculares seja desenvolvido por noacutes uma vez que a empreitada eacute muito

atrativa Poreacutem isto satildeo cousas futuras

Como se trata de um trabalho de Mestrado natildeo houve tempo para que fosse feita

uma traduccedilatildeo integral dos oito livros da Ciropedia Por esse motivo pudemos traduzir

apenas o seu Livro I Entretanto neste livro se encontram todos os elementos discutidos

nesta Dissertaccedilatildeo ndash tanto a ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria quanto as estruturas da archaica

e por isso a sua traduccedilatildeo adequou-se aos objetivos desta Dissertaccedilatildeo

Utilizamos o texto grego estabelecido por E C Marchant editado pela

Clarendon (1910) comparando com o texto extabelecido por Marcel Bizos editado pela

Belles Lettres (1972)

CIROPEDIA LIVRO I

I [1] Ocorreu a noacutes certa vez o pensamento de quantas democracias foram dissolvidas

por aqueles que desejavam mais viver como cidadatildeos de algum outro regime do que na democracia e por sua vez de quantas monarquias quantas oligarquias foram aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam a tirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido e totalmente outros tanto quanto fosse o tempo que governaram satildeo admirados por terem se tornando homens saacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem disso que muitos em suas proacuteprias casas tanto quem tem numerosos servos como quem tem muito poucos nem mesmo os senhores de pouquiacutessimos servos conseguiam que a obediecircncia fosse observada

[2] Ainda sobre essas coisas pensaacutevamos que governantes eram tambeacutem os boieiros e os eguariccedilos e todos os que satildeo chamados pastores os quais podem com razatildeo ser considerados governantes dos animais que comandam Com efeito pareciacuteamos testemunhar todos esses rebanhos obedecendo aos pastores com mais boa vontade do que os homens aos governantes Pois os rebanhos marcham por onde quer que os pastores os conduzam pastam nas terras para

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onde eles os levam e mantecircm-se afastados dos lugares que eles lhes vedam E quanto aos lucros produzidos por eles permitem que os pastores deles se utilizem da forma que desejarem Aleacutem disso jamais ouvimos que algum rebanho tenha conspirado contra os pastores nem por natildeo obedecer nem por natildeo lhes confiar o uso dos lucros mas os rebanhos satildeo mais bravios com os estranhos do que com quem os governa e tira proveito deles Os homens ao contraacuterio contra ningueacutem satildeo mais rebeldes do que contra aqueles em que percebem o desejo de governaacute-los

[3] Desde que entatildeo refletiacuteamos a respeito dessas coisas concluiacutemos que eacute da natureza humana que seja mais faacutecil governar todos os outros animais do que os homens Contudo quando observamos que existiu Ciro o persa que conservou numerosos homens obedientes a ele numerosas cidades numerosos povos a partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de que o governar os homens natildeo eacute das tarefas nem impossiacuteveis nem aacuterduas se algueacutem agir com habilidade Ao menos sabemos que a Ciro eram obedientes de bom grado uns estando distantes uma marcha de numerosos dias outros de meses e outros ainda que jamais o viram e mesmo aqueles que bem sabiam que natildeo o veriam todavia desejavam lhe obedecer

[4] Por isso distinguiu-se tanto dos outros reis seja dos que receberam os governos dos pais seja dos que o conquistaram por si mesmos tanto que o rei Cita embora numerosos fossem os citas natildeo conseguiria governar nenhum outro povo e se consideraria satisfeito se continuasse governante dos proacuteprios citas tambeacutem o rei Traacutecio em relaccedilatildeo aos traacutecios o rei Iliacuterio em relaccedilatildeo aos iliacuterios e ouvimos o mesmo dos outros povos Os da Europa aleacutem disso ainda hoje se dizem autocircnomos e independentes uns dos outros

Ciro encontrando os povos da Aacutesia do mesmo modo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito de persas e governou os medos com o bom grado destes e os hircanos tambeacutem com o bom grado destes mas subjugou os siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutedios os caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendia e a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e os magaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeo se saberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendo por mar os cipriotas e os egiacutepcios

[5] E de fato governou esses povos sem que falassem a mesma liacutengua que ele e nem uns com os outros e apesar de tudo pocircde estender-se sobre tatildeo vasta regiatildeo pelo temor que inspirava a ponto de causar medo em todos e ningueacutem se rebelar contra ele Pocircde tambeacutem incutir tal desejo de que todos fossem agradaacuteveis a ele que sempre consideravam justo ser guiados pelo seu juiacutezo Submeteu ainda povos tatildeo numerosos que percorrecirc-los eacute trabalhoso por onde quer que se comece a marchar a partir do palaacutecio real seja em direccedilatildeo da aurora seja em direccedilatildeo do poente seja em direccedilatildeo do norte ou do sul [6] Em vista deste homem ser digno de nossa admiraccedilatildeo refletimos qual era a sua origem qual natureza possuiacutea e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo que a tal ponto o conduziram a governar os homens Portanto quanto averiguamos e quanto julgamos ter compreendido sobre Ciro tentaremos narrar detalhadamente

II [1] Ciro dizem era filho de Cambises rei dos persas esse Cambises dos Persidas

descendia e os Persidas receberam esse nome graccedilas a Perseu Eacute consenso que a matildee foi Mandane e esta Mandane era filha de Astiacuteages rei dos Medos Ainda hoje louva-se e canta-se pelos baacuterbaros que Ciro era por natureza de aparecircncia beliacutessima com alma boniacutessima amantiacutessimo dos estudos e das honras de tal modo que suportava todas as fadigas e resistia a todos os perigos pelo amor agraves honras [2] Guarda-se a recordaccedilatildeo de que tinha essa natureza de corpo e de alma

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Certamente foi educado nas leis dos persas Estas leis parecem comeccedilar dando a atenccedilatildeo ao bem puacuteblico natildeo onde comeccedilam a maioria dos estados Pois a maioria das cidades permite educar os filhos tal como se deseje e aos proacuteprios adultos levar a vida conforme desejem Em seguida ordenam a eles natildeo roubar nem furtar nem invadir os domiciacutelios nem bater em quem natildeo merece nem cometer adulteacuterio nem desobedecer a um magistrado e outras coisas desse tipo se algueacutem transgride alguma dessas leis impotildeem puniccedilatildeo a eles

[3] As leis persas entretanto agindo preventivamene cuidam para que desde o iniacutecio os cidadatildeos natildeo sejam capazes de desejar alguma maldade ou accedilatildeo vergonhosa E cuidam dessa maneira haacute para eles uma praccedila chamada Liberdade onde foram construiacutedos o palaacutecio real e as outras magistraturas Desse lugar os mercadores com seus produtos gritarias e vulgaridades foram expulsos a fim de que a desordem natildeo se misture com a dececircncia daqueles que se educando [4] A proacutepria praccedila que estaacute ao redor das magistraturas divide-se em quatro partes Uma delas eacute para os meninos uma para os efebos uma para os adultos e uma para os que jaacute passaram da idade do serviccedilo militar

Segundo a lei cada um se apresenta agrave sua seccedilatildeo os meninos e os adultos ao nascer do dia os de idade avanccedilada quando convier a cada um exceto em determinados dias quando eacute preciso que estejam presentes com os outros Os efebos tambeacutem dormem ao redor das magistraturas com os armamentos de infantaria exceto os casados Estes por um lado natildeo satildeo requesitados caso natildeo seja ordenado com antecedecircncia que estejam presentes mas natildeo eacute bom que estejam ausentes com frequecircncia

[5] Satildeo doze os chefes agrave frente de cada uma dessas seccedilotildees pois em doze satildeo divididas as tribos da Peacutersia Para o comando dos meninos satildeo escolhidos dentre os mais velhos aqueles que parecem capazes de tornar os meninos melhores Agrave frente dos efebos por outro lado aqueles entre os adultos que por sua vez pareccedilam capazes de tornar os efebos melhores No comando dos adultos aqueles que forem considerados capazes de proporcionar a eles o melhor cumprindo as ordens e as determinaccedilotildees do poder supremo Satildeo tambeacutem escolhidos os chefes para os mais velhos que tomam medidas necessaacuterias para que esses cumpram as coisas estabelecidas O que a cada idade eacute ordenado fazer contaremos detalhadamente a fim de que se torne mais evidente como eles cuidam para que os cidadatildeos sejam melhores

[6] Os meninos frequentando a escola passam o tempo aprendendo a justiccedila e dizem que vatildeo agrave busca de aprender isso do mesmo modo que entre noacutes dizem que vatildeo agrave busca de aprender as letras Os chefes deles passam a maior parte do dia julgando-os pois ocorrem entre os meninos como entre os adultos acusaccedilotildees muacutetuas de furto roubo violecircncia traiccedilotildees e injuacuterias e outras coisas parecidas [7] Se reconhecem neles que satildeo injustos punem Castigam tambeacutem se acaso descobrirem que eles estatildeo acusando injustamente Julgam ainda a falta que por causa dela os homens se odeiam bem mais mas processam menos a ingratidatildeo Pois se observam que algueacutem podendo expressar gratidatildeo natildeo expressa punem-no com severidade Crecircem pois que os ingratos satildeo mais negligentes com os deuses com os familiares com a paacutetria e com os amigos Entretanto nada parece estar mais junto da ingratidatildeo do que a impudecircncia pois esta parece ser de todas as vergonhas a guia [8] Ensinam ainda aos meninos a temperanccedila e contribui muito para aprender a ser moderado que observem os mais velhos ao longo de todo o dia vivendo com moderaccedilatildeo Ensinam tambeacutem a eles a obedecer aos chefes e muito contribui para isso que eles observem os mais velhos obedecendo aos chefes com rigor Ensinam aleacutem disso a moderaccedilatildeo no beber e no comer e muito contribui para isso que eles observem os mais velhos natildeo saindo para comer antes que os chefes os liberem e tambeacutem que os meninos natildeo se alimentem junto das matildees mas dos mestres quando as autoridades

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determinem Trazem de casa patildeo de trigo tempero e agriatildeo e para beber se algueacutem tem sede uma grande taccedila para tirar aacutegua do rio Ademais aprendem a atirar com arco e flecha e a lanccedilar dardos Os meninos fazem isso ateacute os dezessete anos de idade apoacutes isso eles passam para a classe dos efebos

[9] Os efebos por sua vez passam o tempo dessa maneira ao saiacuterem da classe dos meninos por dez anos dormem em torno das magistraturas como predissemos para proteger tanto a cidade quanto a prudecircncia pois essa idade parece ter necessidade de mais diligecircncia Durante o dia se colocam a disposiccedilatildeo das autoridades no caso de alguma necessidade em favor da comunidade E quando eacute preciso todos permanecem ao redor das magistraturas Quando o rei sai agrave caccedila leva metade dos guardas e faz isso muitas vezes no mecircs Os que vatildeo necessitam de arcos e flechas e junto com a aljava na bainha a espada ou um machado aleacutem de um escudo e duas lanccedilas uma para arremessar e a outra caso seja necessaacuterio para atacar com as matildeos [10] Em vista disso organizam em nome do Estado a caccedila e o rei como eacute chefe deles na guerra tambeacutem o eacute na caccedila e cuida para que os outros cacem porque esse exerciacutecio parece ser o mais propiacutecio para guerra pois habitua a levantar cedo e a suportar o frio e o calor exercita nas caminhadas e nas corridas e eacute necessaacuterio lanccedilar flechas e dardos numa fera quando ela surge de imprevisto E frequentemente eacute preciso excitar a alma quando algueacutem se coloca diante de uma fera robusta pois sem duacutevida alguma eacute preciso atacar quando ela se aproxima e se proteger quando ela ataca De modo que natildeo eacute faacutecil encontrar algo que acontecendo na guerra falte agrave caccedila

[11] Saem agrave caccedila levando uma refeiccedilatildeo que de um lado como eacute natural eacute mais abundante do que a dos meninos mas de outro eacute semelhante agrave deles Quando estatildeo caccedilando natildeo almoccedilam se tem alguma necessidade de permanecer mais tempo por causa de uma fera ou por qualquer outro motivo desejam demorar-se na caccedila entatildeo eles jantam a comida do almoccedilo e no dia seguinte caccedilam ateacute a ceia e calculam esses dois dias como um porque consomem o alimento de um uacutenico dia Fazem isso em razatildeo do habituar-se para que se tiver alguma necessidade na guerra poderatildeo fazecirc-lo E os dessa idade tecircm como alimento aquilo que caccedilarem se natildeo mastruccedilo Se algueacutem pensa que eles comem sem prazer quando tecircm com o patildeo apenas o mastruccedilo ou bebem sem prazer quando bebem aacutegua deve se lembrar como eacute prazeroso comer patildeo de cevada e patildeo de trigo quando se tem fome e como eacute prazeroso beber aacutegua quando se tem sede

[12] Por sua vez as seccedilotildees que permanecem passam o tempo exercitando-se nas outras coisas que aprenderam quando eram crianccedilas sobretudo no lanccedilar flechas e dardos e mantecircm-se em disputa uns com os outros Haacute tambeacutem competiccedilotildees puacuteblicas entre eles e se oferecem precircmios Se existir em algum dos grupos numerosos homens haacutebeis corajosos e obedientes os cidadatildeos louvam e honram natildeo soacute o arconte atual mas tambeacutem aquele que os ensinou quando eram crianccedilas As autoridades se servem daqueles efebos que permanecem e se houver alguma necessidade ou de montar-guarda ou de procurar criminosos ou correr atraacutes de ladrotildees entre outras coisas tanto quanto for trabalho de forccedila e agilidade Os efebos portanto se ocupam com essas coisas Depois que completam dez anos chegam agrave classe dos adultos

[13] A partir do momento que chegam nesta classe passam vinte e cinco anos dessa maneira primeiramente como os efebos se colocam agrave disposiccedilatildeo das autoridades se houver necessidade em prol da comunidade tanto quanto for trabalho de reflexatildeo e vigor Se haacute necessidade de servir como soldado em algum lugar os que foram educados dessa maneira fazem expediccedilotildees natildeo mais levando arco e flecha nem lanccedilas mas armas ditas de combate corpo-a-corpo couraccedila ao redor do peito e escudo na matildeo esquerda tal como os persas satildeo

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representados e na destra uma adaga ou espada curta E todos os magistrados satildeo escolhidos dentre eles exceto os professores das crianccedilas Depois de completarem vinte e cinco anos eles poderatildeo vir a ter algo mais que cinquenta anos de idade partem nesse momento para a classe dos que sendo mais velhos satildeo assim chamados

[14] Esses mais velhos por sua vez natildeo mais fazem expediccedilotildees no exterior e permanecendo na paacutetria julgam todas as coisas da comunidade e dos particulares E eles tambeacutem julgam as sentenccedilas de morte e elegem todos os magistrados E se algueacutem dos efebos ou dos homens adultos negligencia alguma das leis e cada um dos chefes ou qualquer outro que quiser denuncia-o os mais velhos tendo escutado a acusaccedilatildeo condenam e o julgado passa o resto da vida separado

[15] A fim de que toda a constituiccedilatildeo dos persas seja mostrada com mais evidecircncia recapitulo um pouco pois agora graccedilas ao que foi dito anteriormente poderaacute ser mostrado rapidamente Os persas dizem satildeo em torno de cento e vinte mil e nenhum deles estaacute excluiacutedo por lei das honras e dos cargos mas eacute permitido a todos os persas enviar seus filhos para as escolas puacuteblicas de justiccedila Mas certamente os que podem sustentar os filhos sem que eles trabalhem enviam os que natildeo podem natildeo enviam Aos que foram educados junto aos mestres puacuteblicos eacute permitido por lei passar a juventude na classe dos efebos mas aos que natildeo foram educados dessa maneira natildeo eacute permitido Aos que por sua vez permanecem na classe dos efebos cumprindo as leis a eles eacute permitido entrar na classe dos adultos e participar dos cargos e das honras e os que natildeo passam na classe dos efebos natildeo entram na classe dos adultos Os que resistem irrepreensiacuteveis na classe dos adultos esses chegam agrave classe dos mais velhos Desse modo entatildeo a classe dos mais velhos constitui-se por aqueles que atingiram todas as classes com honra essa eacute a constituiccedilatildeo que consideram que obedecendo se tornaratildeo os melhores

[16] Ainda hoje persistem testemunhos do modo de vida moderado dos persas e do exercitar-se habitualmente pois ainda hoje eacute vergonhoso para os persas escarrar e assuar o nariz e mostrar-se repleto de flatos e tambeacutem eacute vergonhoso aparecer em puacuteblico indo a algum lugar urinar ou para alguma outra coisa Natildeo poderiam fazer isso se natildeo dispusessem de um regime moderado e natildeo digerissem os liacutequidos exercitando-se de tal modo que sejam expelidos por qualquer outro lugar

Isso eacute o que podemos dizer a respeito dos persas em geral Narraremos agora as accedilotildees de Ciro que a narrativa comeccedilou por causa disso iniciando a partir da infacircncia

III [1] Ciro com efeito ateacute os doze anos ou pouco mais foi educado nessa paideia e

mostrava-se superando a todos os da sua idade tanto no aprender com rapidez as coisas que fossem necessaacuterias quanto no cumprir cada tarefa com nobreza e virilidade

Nesse tempo Astiacuteages mandou chamar sua filha e o filho dela pois desejava vecirc-lo jaacute que ouvira que ele era excelente A proacutepria Mandane parte ateacute o pai levando o filho Ciro [2] Logo que chegou Ciro reconheceu Astiacuteages como sendo seu avocirc e de imediato como era uma crianccedila amorosa por natureza beijava-o como algueacutem beijaria a antigos convivas e a antigos amigos E notou que ele estava enfeitado de acordo com o costume medo com contornos nos olhos pintado com arrebiques e de cabeleiras posticcedilas Todas essas coisas satildeo medas as tuacutenicas puacuterpuras os casacos os colares ao redor do pescoccedilo braceletes em torno dos punhos Aleacutem disso ainda hoje os persas em suas casas usam roupas muitas mais simples e tecircm um regime mais frugal

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Notando entatildeo a maquiagem do avocirc fixou os olhos nele e disse ldquoMatildee como eacute belo o meu avocircrdquo Tendo a matildee perguntado a ele qual dos dois o pai ou o avocirc parecia ser a ele o mais

belo Ciro respondeu ldquoMatildee entre os persas meu pai eacute muito mais belo seguramente dos quantos medos que

eu vi tanto nas estradas quanto na corte meu avocirc eacute o mais belordquo [3] O avocirc retribuindo-o vestiu-o com uma bela estola e honrou-o e enfeitou-o com

braceletes e colares e se ia sair agrave cavalo levava-o consigo sobre um cavalo de freios dourados como ele proacuteprio costumava ir Ciro como era uma crianccedila que amava as belezas e as honrarias se alegrou com a estola e se regozijou extremamente aprendendo a cavalgar pois na Peacutersia por ser difiacutecil criar cavalos e cavalgar no paiacutes que eacute montanhoso era muito raro ver um cavalo

[4] Astiacuteages jantando com a filha e Ciro querendo que a crianccedila comesse com o maacuteximo de prazer para que sentisse menos saudades de casa conduziu em torno dele guloseimas toda a sorte de molhos e alimentos Dizem que entatildeo Ciro disse

ldquoAvocirc quantas inquietaccedilotildees tecircm na ceia se eacute necessaacuterio a ti estender as matildeos sobre todas essas travessas e degustar do tipo de alimentosrdquo

ldquoMas quecirc ndash disse Astiacuteages ndash pois natildeo parece a ti ser muito mais gostosa esta ceia do que a que tem na Peacutersiardquo E Ciro visando responder a isso disse

ldquoNatildeo avocirc pois o caminho para saciar-se eacute para noacutes muito mais simples e muito mais direto do que para voacutes pois enquanto o patildeo e a carne nos conduzem a isso voacutes indo na mesma direccedilatildeo vos lanccedilais e perdendo-se em muitos giros para cima e para baixo chegais arduamente aonde noacutes desde haacute muito chegamosrdquo

[5] ldquoMas crianccedila erramos em torno disso e natildeo ficamos aflitos Tu contudo provando reconheceraacutes que eacute prazerosordquo

ldquoMas vejo-te oacute avocirc experimentando horror por estas comidasrdquo ldquoFilho por qual sinal tu dizes issordquo ldquoPorque vejo quando tocas no patildeo que tu natildeo limpas a matildeo em nada mas quando ao

contraacuterio toca em algum desses alimentos imediatamente limpa a matildeo nos guardanapos de modo que estava muito aborrecido por ter as matildeos cheias delesrdquo

[6] Depois disso Astiacuteages disse ldquoSe entatildeo pensas assim filho regala-te com a carne para que voltes robusto para casardquo Ao mesmo tempo em que dizia isso serviu a ele inuacutemeras carnes de animais selvagens e domeacutesticos Ciro assim que viu a numerosa carne disse ldquoDe fato avocirc tu me daacutes toda essa carne para que eu faccedila com elas o que eu quiserrdquo

[7] ldquoSim filho por Zeusrdquo Ciro pegando a carne distribuiu aos serviccedilais ao redor do avocirc dizendo a cada um ldquoIsso eacute para ti pois me ensinas de boa vontade a cavalgar para ti pois me daacutes a lanccedila e agora eu a tenho para ti pois serves meu avocirc nobremente e a ti pois honras minha matildeerdquo Dizia assim enquanto distribuiacutea as carnes que pegava

[8] ldquoA Sacas disse Astiacuteages o escanccedilatildeo a quem eu tenho muitiacutessima estima nada daacutesrdquo Sacas com efeito calhava de ser belo e de ter a funccedilatildeo de conduzir a Astiacuteages os que tivessem necessidade e de impedir quem ele julgasse que natildeo fosse oportuno ser conduzido E Ciro perguntou com petulacircncia como uma crianccedila que natildeo eacute tiacutemida ldquoPor que avocirc honra-o desse modordquo

Astiacuteages divertindo-se disse ldquoNatildeo vecircs quatildeo belo e honradamente ele verte o vinhordquo Os escanccedilotildees desses reis vertem o vinho com graccedila e servem com limpeza servem segurando a taccedila com trecircs dedos e entregam assim para que quem receber possa melhor apanhar a taccedila para beber

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[9] ldquoAvocirc ordena entatildeo a Sacas que me decircs a taccedila para que eu tambeacutem te servindo belamente o que beber conquiste-te se eu puderrdquo Ele ordenou-o a dar Ciro tomando a taccedila de tal modo enxaguou-a bem como vira Sacas fazer e de tal modo fixando o rosto com gravidade apresentou-se nobremente e deu a taccedila ao avocirc provocando na matildee e no avocirc muitas risadas E o proacuteprio Ciro pondo-se a rir atirou-se sobre o avocirc e enquanto o beijava disse

ldquoOacute Sacas estaacutes perdido Demitir-te-ei do cargo pois verterei o vinho melhor do que vocecirc e natildeo beberei o vinho delerdquo Com efeito os escanccedilotildees dos reis cada vez que lhes entregam a taccedila tiram um pouco dela para si com uma concha e vertendo o vinho na matildeo esquerda experimentam-no para que se algueacutem verteu veneno natildeo obtenha sucesso

[10] Depois disso Astiacuteages gracejando disse ldquoPorque Ciro imitando Sacas nas outras coisas natildeo sorveu o vinhordquo

ldquoPorque por Zeus temia que tivessem misturado veneno na cratera Pois quando tu recebeste os amigos nas festas de aniversaacuterio claramente observei que ele vos servia venenordquo

ldquoE de que maneira tu notavas issordquo ldquoPor Zeus pois via vos cambaleando o corpo e o juiacutezo Primeiramente o que natildeo

permites a noacutes as crianccedilas fazer voacutes mesmos o faziam Todos gritavam ao mesmo tempo e nada entendiacuteeis uns dos outros cantaacuteveis de modo muito risiacutevel e natildeo ouvindo com atenccedilatildeo o que cantaacuteveis julgaacuteveis cantar nobremente cada um deles falava de sua proacutepria forccedila em seguida se levantassem para danccedilar natildeo soacute natildeo danccedilavam no ritmo mas nem conseguiam endireitar-se Tu esqueceste-te totalmente de que tu eras o rei e os outros de que tu eras o governante pois nesse momento eu ao menos pela primeira vez entendi que isso com efeito era a igualdade de expressatildeo o que voacutes praticaacuteveis entatildeo Ao menos jamais voacutes vos calaacuteveisrdquo

[11] E Astiacuteages disse ldquoE o seu pai menino quando bebe natildeo se embriagardquo ldquoNatildeo por Zeusrdquo ldquoMas como ele fazrdquo ldquoEle sacia a sua sede e nenhum outro mal sofre pois penso avocirc natildeo eacute Sacas quem lhe

serve o vinhordquo A matildee entatildeo disse ldquoMas por que tu filho fazes guerra a Sacas desse modordquo ldquoPorque por Zeus disse Ciro odeio-o pois muitas vezes quando eu desejava correr

para junto do meu avocirc esse miseraacutevel me impedia Mas imploro avocirc daacute-me trecircs dias para chefiaacute-lordquo

ldquoE de que modo o comandariardquo disse Astiacuteages ldquoEstender-me-ia de peacute como ele na porta da entrada e cada vez que ele quisesse entrar

para o almoccedilo diria que ainda natildeo era possiacutevel encontrar-se com o almoccedilo pois ele estaria ocupado com algumas pessoas Em seguida quando ele chegasse para o jantar diria que o jantar estava a banhar-se e se estivesse com pressa para comer diria que a fome estava junto com as mulheres a fim de fazecirc-lo esperar como ele me faz esperar impedindo-me de estar junto a tirdquo

[12] Com tal alegria mostrava-se entre eles no jantar Durante o dia se percebesse que o avocirc ou o irmatildeo da sua matildee tivessem necessidade de algo era difiacutecil que outro fosse o primeiro a fazecirc-lo pois Ciro se alegrava extremamente agradando-os naquilo que pudesse

[13] Assim que Mandane se preparava para voltar para junto do marido Astiacuteages pedia a ela que deixasse Ciro Ela respondeu que sem duacutevida queria agradar em tudo ao pai em todo caso era difiacutecil pensar em deixar o menino contra a sua vontade Astiacuteages entatildeo disse a Ciro [14] ldquoMenino se permaneceres comigo primeiramente Sacas natildeo se colocaraacute agrave tua frente na porta de entrada para junto de mim mas cada vez que quiseres entrar estaraacutes comigo E serei grato a ti quanto mais frequente entrares para estares comigo Depois tu te serviraacutes dos meus

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cavalos e de todos os outros que quiseres e quando partires tu partiraacutes levando aqueles que tu quiseres Em seguida no jantar conforme tu desejes seguiraacutes o caminho que pareccedila a ti conduzir a moderaccedilatildeo Depois dou a ti as feras que agora estatildeo no parque e reunirei outras de todas as espeacutecies as quais assim que aprenderes a cavalgar perseguiraacutes e abateraacutes dardejando e flechando como homens grandes e fornecerei a ti crianccedilas como companheiros de jogos e qualquer outra coisa que desejares dizendo a mim natildeo seraacutes privadordquo

[15] Depois que Astiacuteages disse essas coisas a matildee perguntou a Ciro qual dos dois ele queria ficar ou ir embora Ele natildeo hesitou mas respondeu prontamente que queria ficar Tendo sido perguntado novamente pela matildee o porquecirc dizem que ele respondeu ldquoPorque em casa entre os da minha idade sou e tenho a reputaccedilatildeo de ser o melhor em lanccedilar dardos e flechas e aqui eu sei que no cavalgar sou inferior aos da minha idade E veja bem matildee que isto muito me aborrece Se me deixares aqui e eu aprender a cavalgar quando de um lado eu estiver na Peacutersia penso que para ti vencerei nos exerciacutecios de infantaria aqueles que satildeo os melhores de outro quando vier agrave Meacutedia aqui me esforccedilarei sendo o melhor do que os bons cavaleiros do avocirc para ser aliado dele na cavalariardquo

A matildee disse entatildeo [16] ldquoMas filho como aprenderaacutes a justiccedila aqui estando teus preceptores laacuterdquo

ldquoMas matildee eu certamente sei isso com precisatildeordquo ldquoComo tu sabesrdquo disse Mandane ldquoPor que o mestre jaacute me colocou para julgar os outros jaacute me tendo como preciso na

justiccedila E com efeito apenas uma vez tendo eu julgado de modo incorreto recebi golpes como castigo [17] O processo foi esse um menino grande possuindo uma tuacutenica pequena despojou um menino pequeno que possuiacutea uma tuacutenica grande e de um lado vestiu aquele com a sua e de outro vestiu a si mesmo com a daquele Eu portanto julgando-os entendi ser melhor para ambos que cada um ficasse com a tuacutenica que lhe melhor ajustava Acerca disso o mestre me bateu tendo dito que quando eu for ser o juiz do que se ajusta melhor entatildeo eacute conveniente agir de tal modo todavia quando for necessaacuterio julgar de qual dos dois eacute a tuacutenica disse que eacute preciso refletir de quem eacute a posse de acordo com as leis daquele que tomou agrave forccedila ou daquele que tem a posse por ter comprado ou fabricado para si Pois o que eacute conforme a lei eacute justo e o que age com violecircncia natildeo estaacute conforme agraves leis Ele sempre exortava ao juiz determinar o voto conforme agrave lei Eu assim mostro a ti matildee que sobre a justiccedila jaacute estudei com muito rigor Se com efeito eu tiver a necessidade de algo o avocirc me ensinaraacute isso em acreacutescimordquo

[18] ldquoMas filho natildeo satildeo as mesmas coisas aqui e na Peacutersia que satildeo acordadas como justas Pois seu avocirc de um lado faz-se deacutespota de todos na Meacutedia de outro na Peacutersia considera-se justiccedila possuir a igualdade E o teu pai eacute o primeiro a fazer o que foi ordenado pela cidade e a aceitar o que foi ordenado pois a medida dele eacute a lei natildeo a paixatildeo De modo que portanto natildeo morras tu sendo chicoteado quando em casa estiveres depois de chegares tendo apreendido da parte do avocirc a tirania na qual haacute a crenccedila de que eacute necessaacuterio possuir mais do que todos e eacute por isso contraacuterio a realezardquo

ldquoMas disse Ciro teu pai eacute o mais haacutebil em ensinar a possuir menos do que mais ou natildeo vecircs que ele ensinou a todos os medos a ter menos do que ele Assim fiques tranquila matildee pois nem teu pai nem nenhum outro me enviaraacute de volta me ensinando a ter mais do que os outrosrdquo

IV [1] De um lado Ciro tagarelava muitas coisas desse tipo de outro por fim partiu a

matildee Ciro entatildeo permaneceu e foi educado por ele E rapidamente misturou-se com os da sua

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idade de modo que se sentia em casa e rapidamente conquistou os pais deles agradando-os e dando mostras que se alegrava com os filhos deles assim se tivessem alguma necessidade do rei eles ordenavam aos filhos que procurassem Ciro para negociar com ele e Ciro naquilo que as crianccedilas precisassem dele por amor agrave bondade e agraves honras fazia de tudo para obter

[2] Astiacuteages para aquilo que Ciro pedisse a ele em nada podia resistir para lhe ser agradaacutevel Pois tendo ele adoecido jamais Ciro afastava-se do avocirc nem cessava de chorar mas era evidente a todos que temia muito que o avocirc morresse E durante a noite se Astiacuteages precisasse de alguma coisa Ciro era o primeiro a perceber e o mais diligente de todos para servir naquilo que imaginava lhe ser agradaacutevel desse modo conquistou completamente Astiacuteages [3] Era igualmente falastratildeo tanto graccedilas agrave educaccedilatildeo jaacute que era obrigado pelo mestre a narrar o que fazia e a receber da parte dos outros quando julgava quanto graccedilas a ser um amante do aprender e sempre perguntava aos presentes como calhavam das coisas se conduzirem e tanto quanto era indagado pelos outros por ser perspicaz respondia rapidamente De modo que nele todas estas coisas resultaram o haacutebito de falar muito Mas do mesmo modo que no corpo quantos sendo jovens ganham altura e todavia neles o manifesto frescor da juventude denuncia-lhes a pouca idade assim tambeacutem por causa da loquacidade de Ciro ele natildeo revelava imprudecircncia mas inocecircncia e ternura de sorte que se desejava ainda mais ouvi-lo do que se estivesse presente em silecircncio

[4] Conforme o tempo fazia-o progredir no tamanho para a hora de tornar-se adolescente com isso servia-se das palavras mais raramente e da voz mais suavemente pois ficava cheio de vergonha a ponto de corar quando se encontrava com os mais velhos e natildeo mais como um cachorrinho jogava-se sobre todos conduzindo-se com semelhante fogosidade Assim de um lado era mais circunspecto de outro nas reuniotildees era inteiramente gracioso

E pois agrave medida que os da sua idade rivalizavam frequentemente uns com os outros Ciro se sabia que era mais forte do que eles natildeo provocava os companheiros nisso do mesmo modo que se bem sabia-se inferior tomava a iniciativa dizendo fazer melhor do que eles e imediatamente dava o exemplo atirando-se sobre os cavalos e do alto lutava com o arco ou com a lanccedila e natildeo sendo ainda muito haacutebil no cavalgar ele quando vencido era o que mais ria de si mesmo [5] Como natildeo fugia de ser vencido e natildeo fazer aquilo em que era inferior poreacutem passava o tempo praticando para no futuro fazer melhor rapidamente natildeo soacute conseguiu a igualdade na equitaccedilatildeo entre os da sua idade como tambeacutem rapidamente os sobrepujou graccedilas ao amor ao trabalho bem raacutepido tambeacutem fez perecer os animais que estavam no parque perseguindo-os atirando e matando e em consequecircncia disso Astiacuteages natildeo mais tinha como reunir animais no para ele E Ciro tendo percebido que o avocirc querendo natildeo podia fornecer animais vivos disse a ele ldquoAvocirc porque eacute necessaacuterio a ti ter o estorvo de procurar animais Mas se me enviares agrave caccedila com o tio tudo quanto animal que eu ver consideraacute-los-ei criados para mimrdquo [6] Ainda que desejasse com veemecircncia ir agrave caccedila natildeo podia insistir como quando crianccedila mas aproximava-se com a maior timidez possiacutevel E quando antes censurava a Sacas por que natildeo o deixava ir para junto do avocirc ele agora era o seu proacuteprio Sacas pois natildeo se aproximava se visse que natildeo era oportuno e pedia a Sacas que quando fosse oportuno lhe fizesse um sinal Assim Sacas jaacute o amava excessivamente e os outros todos tambeacutem

[7] Quando entatildeo Astiacuteages percebeu que ele desejava com veemecircncia caccedilar fora enviou-o com o tio e como guardas enviou junto os mais velhos sobre cavalos a fim de que o protegessem de terrenos difiacuteceis e se algum animal selvagem aparecesse Ciro indagava com ardor para os que estavam lhe seguindo de quais os animais que era necessaacuterio natildeo se aproximar e de quais era necessaacuterio perseguir com coragem Eles diziam que ursos javalis

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leotildees e leopardos jaacute mataram a muitos que se aproximaram mas os cervos as gazelas os carneiros selvagens e os asnos selvagens eram inofensivos Diziam ainda que era necessaacuterio se proteger natildeo menos do que das feras dos terrenos difiacuteceis pois muitos jaacute se precipitaram do alto a baixo com os proacuteprios cavalos [8] E Ciro aprendia tudo isso com ardor

Poreacutem assim que viu que um cervo saltara esquecendo-se de todas as coisas que acabara de ouvir perseguia-o sem nada ver aleacutem do lugar para onde o cervo fugia E de alguma maneira o cavalo saltando com ele cai de joelhos e por pouco natildeo o lanccedilou por cima do pescoccedilo Entretanto Ciro resistiu com alguma dificuldade e o cavalo levantou-se de sorte que chegou na planiacutecie e tendo desferido o dardo abateu o cervo uma peccedila bela e grande Ciro regozijou-se excessivamente os guardas no entanto tendo avanccedilado a cavalo repreenderam-no dizendo quanto perigo passara e falaram que denunciar-no-iam Ciro entatildeo ficou em peacute tendo descido e ouvido essas coisas afligiu-se Mas quando percebeu um grito salta sobre o cavalo como possuiacutedo pelo ecircxtase e quando o viu agrave sua frente um javali vindo ao encontro lanccedila-se diretamente e entesando a lanccedila diretamente agrave testa e domina o javali

[9] Jaacute naquele momento o tio certamente repreendia-o vendo a grande imprudecircncia Ciro apesar de ser repreendido pedia tudo quanto ele obtivera e a permissatildeo de levar essas coisas para dar ao avocirc O tio entatildeo dizem disse

ldquoMas se ele vir o que tu perseguiste natildeo soacute a ti censuraraacutes como tambeacutem a mim por ter te permitidordquo

ldquoSe ele quiser respondeu Ciro que ele accediloite-me depois que eu decirc a ele E tu mesmo tio no que quiser castigue-me por causa disso no entanto faccedila-me esse favorrdquo

E Ciaxares concluindo disse ldquoFaccedila como quiseres pois agora tu pareces ser mesmo o nosso reirdquo

[10] Desse modo Ciro tendo levado as presas deu-as ao avocirc dizendo que as tinha caccedilado para ele Natildeo exibiu os dardos mas colocou os que estavam ensanguentados onde pensava que o avocirc veria Astiacuteages em seguida disse

ldquoFilho eu recebo com prazer tudo quanto tu me daacutes mas de fato natildeo preciso de nada destas coisas para tu te arriscaresrdquo

ldquoSe entatildeo tu natildeo precisas disse Ciro avocirc decirc-as para mim para que eu entregue aos da minha idaderdquo

ldquoBem Filho tomando estas coisas entregues para quem tu quiseres e tanto quanto das outras coisas tu desejesrdquo

[11] Ciro tendo pegado e levado as carnes as destribuiu enquanto dizia ldquoRapazes como com efeito falaacutevamos com frivolidade quando caccedilaacutevamos animais no parque Para mim ao menos parece ser igual como se algueacutem caccedilasse um animal acorrentado Primeiramente pois estavam em um lugar pequeno depois eram fracos e sarnentos e alguns deles eram coxos e outros mutilados Os animais selvagens nas montanhas e prados por sua vez quatildeo belos quatildeo grandes quatildeo esplecircndidos se mostravam E de um lado os cervos como os paacutessaros saltam para o ceacuteu e de outro os javalis como dizem dos homens corajosos atacam indo ao encontro e por causa da largura natildeo era possiacutevel erraacute-los Ao menos para mim parece que esses mortos satildeo mais belos do que aqueles animais vivos e encerrados Mas seraacute que os vossos pais permitiriam que voacutes saiacutessem agrave caccedilardquo

ldquoFacilmente disseram se Astiacuteages ordenasserdquo [12] E Ciro disse ldquoQuem intercederia a Astiacuteages por voacutesrdquo ldquoQuem disseram eacute mais capaz de convencecirc-lo do que turdquo

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ldquoMas natildeo por Zeus eu natildeo sei que homem eu me tornei pois natildeo sou capaz de falar e olhar o meu avocirc como podia antes Se progredir desse modo temo tornar-me completamente indeciso e insensato e quando era crianccedila eu parecia ser extraordinariamente haacutebil no falarrdquo

Os meninos disseram ldquoTu dizes uma coisa penosa se em nosso favor natildeo podes fazer nada seraacute necessaacuterio a noacutes que peccedilamos para algum outro aquilo que respeita a tirdquo

[13] Ouvido essas coisas Ciro ficou mordido e em silecircncio partiu e tendo encorajado a si mesmo a ousar apresentou-se Tramara uma maneira mais inofensiva de falar com o avocirc e obter dele o que ele e os outros todos desejavam Comeccedilou portanto dessa maneira

ldquoDiga-me avocirc se algum dos servos fugisse e tu o apanhasses o que farias com elerdquo ldquoQue outra coisa do que tendo aprisionado obrigaacute-lo a trabalharrdquo ldquoSe ele viesse ao contraacuterio espontaneamente como agiriasrdquo ldquoComo senatildeo depois de accediloitaacute-lo para que natildeo faccedila isso no futuro servir-me-ia dele

como desde o iniacuteciordquo ldquoTalvez entatildeo seja hora de ti te preparares para accediloitar-me pois estou planejando fugir

em segredo de ti levando meus colegas para a caccedilardquo ldquoFez bem em declarar pois te proiacutebo de te moveres daqui de dentro Que coisa

agradaacutevel seria se por causa de um pedaccedilo de carne eu viesse a perder o filho da minha filhardquo [14] Apoacutes ouvir isso Ciro obedeceu enquanto esperava aflito e chateado e permanecia

em silecircncio Astiacuteages em todo caso visto que reconhecia que ele estava aborrecido querendo agradaacute-lo levou-o para caccedila e reunindo muitos soldados da infantaria cavaleiros e crianccedilas saiacuteram juntos para um terreno bom de cavalgar e fizeram uma grande caccedila E regiamente estando presente ele mesmo proibiu que ningueacutem lanccedilasse antes que Ciro estivesse saciado das caccedilas Mas Ciro natildeo consentia com a proibiccedilatildeo e disse

ldquoMas avocirc se queres que eu cace com prazer permitas a todos os que estatildeo comigo que persigam e lutem com o melhor que cada um puderrdquo [15] Entatildeo Astiacuteages permitiu e pondo-se em peacute observava os competidores cheios de emulaccedilatildeo perseguindo e golpeando os animais E alegrava-se com Ciro que natildeo podia ficar em silecircncio por causa da felicidade mas como um jovem catildeo de boa raccedila bradava cada vez que se aproximava de um animal e exortava cada um chamando pelo nome Encantou-se tambeacutem vendo que ele tanto ria dos outros como tambeacutem os louvava sem notar nele o menor sinal de inveja Por fim levando muitos animais Astiacuteages foi embora E doravante de tal modo alegrou-se nessa caccedila que sempre que fosse possiacutevel saiacutea com Ciro e levava consigo muitos outros tambeacutem meninos por causa de Ciro Assim Ciro passava a maior parte do tempo sendo a causa de coisas boas e felizes para todos mas nunca de coisas ruins

[16] Quando Ciro tinha por volta dos quinze ou dezesseis anos de idade o filho do rei dos Assiacuterios estando para casar por esta eacutepoca desejou caccedilar Ouvindo que nas fronteiras da Assiacuteria com a da Meacutedia havia muitos animais natildeo caccedilados por causa da guerra para ali mesmo desejava ir A fim de caccedilar com seguranccedila tomou consigo muitos cavaleiros e peltastas prontos para expulsar para ele os animais da densa vegetaccedilatildeo para os campos cultivaacuteveis e adequados para cavalgar Chegado onde estavam as suas guarniccedilotildees e o forte ali fez a ceia desejando caccedilar na manhatilde seguinte [17] Assim que o entardecer chegou a tropa de revezamento cavaleiros e infantaria vieram da cidade para a proacutexima guarda Parecia-lhe portanto que numerosa armada estava agrave disposiccedilatildeo pois eram duas guarniccedilotildees juntas e tinha agrave sua disposiccedilatildeo numerosos cavaleiros e infantes Decidiu por isso que seria melhor saquear a terra dos medos e pensava que esse trabalho se mostraria mais ilustre do que a caccedila pois haveria grande abundacircncia de viacutetimas Desse modo tendo levantando cedo conduziu as tropas deixou

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atraacutes na fronteira os infantes em bloco e entatildeo avanccedilou com a cavalaria contra as guarniccedilotildees dos medos e mantendo junto consigo numerosos nobres ali permaneceu para que as guarniccedilotildees medas natildeo viessem em socorro contra os que atacaram Enviou as tropas apropriadas para atacar de um lado a outro e exortava que eles cercassem quem encontrassem e o conduzissem consigo Eles entatildeo faziam isso

[18] Astiacuteages ao ser informado que os inimigos estavam no paiacutes saiu em socorro para a fronteira com soldados ao seu redor e o proacuteprio filho como ele com os cavaleiros que ao seu redor e a todos os outros ordenou que fossem em socorro Quando viu os muitos homens dos assiacuterios em formaccedilatildeo de combate e os cavaleiros em repouso tambeacutem os medos ficaram em formaccedilatildeo Ciro vendo os outros saindo em socorro com todas as forccedilas reunidas saiu ele tambeacutem e pela primeira vez entatildeo veste as armas temendo que isso jamais ocorresse tanto desejava se armar dos peacutes agrave cabeccedila Era muito bonita e ajustava-se convenientemente nele pois o avocirc mandara fazer agrave medida do corpo Desse modo armado conduziu-se com o cavalo Astiacuteages espantado perguntou-lhe quem tinha ordenado que ele viesse no entanto disse a ele que permanecesse junto de si [19] Ciro ao ver muitos cavaleiros do lado oposto perguntou

ldquoSeraacute que avocirc esses satildeo os inimigos os que estatildeo assentados imoacuteveis sobre os cavalosrdquo

ldquoInimigos certamenterdquo ldquoSeraacute que tambeacutem aqueles os que estatildeo avanccedilandordquo ldquoAqueles tambeacutem certamenterdquo ldquoAvocirc por Zeus Mas mostrando-se penosos e sobre reles cavalinhos saqueiam nossa

riqueza Sendo assim eacute necessaacuterio que alguns dos nossos avancem sobre elesrdquo ldquoMas natildeo vecircs filho quatildeo grande eacute a massa compacta dos cavaleiros postados em ordem

de batalha Se os nossos os atacarem aqueles interceptaratildeo os nossos por traacutes e o grosso das nossas forccedilas natildeo estaacute presente aindardquo

ldquoPoreacutem se tu resistires e te recuperares os que vecircm em socorro eles teratildeo medo e natildeo se mexeratildeo enquanto que os saqueadores imediatamente largaratildeo o butim quando virem alguns sendo perseguidos por noacutesrdquo

[20] Dito essas coisas pareceu a Astiacuteages que Ciro falara sensatamente E enquanto estava maravilhado com a sua sabedoria e vigilacircncia ordenou ao filho que tomasse um esquadratildeo de cavaleiros e atacasse sobre os que levavam o saque

ldquoEu ao contraacuterio disse Astiacuteages sobre estes se se moverem sobre ti avanccedilarei de modo que seratildeo obrigados a se preocuparem conoscordquo

Desse modo Ciaxares tomando cavalos e homens vigorosos avanccedilou Ciro quando os viu partirem lanccedila-se e ele rapidamente conduziu-se agrave frente e Ciaxares certamente seguia de perto e os outros natildeo se deixaram ficar para traacutes Quando viram eles se aproximando os saqueadores imediatamente tendo largado as coisas fugiram [21] Os que estavam ao redor de Ciro interceptavam e sendo Ciro o primeiro imediatamente golpeavam aqueles que surpreendiam e quantos passavam adiante deles fugindo eles corriam atraacutes e natildeo afrouxavam mas capturavam alguns deles Como um catildeo de boa raccedila mas inexperiente imprudentemente vai de encontro ao javali assim tambeacutem Ciro arremetia apenas tentando golpear quem ele alcanccedilasse natildeo se precavendo de nenhuma outra coisa Os inimigos quando viram os seus sofrendo avanccedilaram as tropas a fim de que interrompessem a perseguiccedilatildeo ao verem que eles estavam se lanccedilando adiante [22] Ciro por nada cedia mas sob o efeito do prazer invocou o tio e continuava a persegui-los e com forccedila impocircs a fuga aos inimigos Ciaxares de fato seguia de perto talvez com vergonha do pai e os outros tambeacutem estando eles ardorosos em tal

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circunstacircncia seguiam na perseguiccedilatildeo mesmo os que natildeo eram muito corajosos em face dos inimigos Astiacuteages quando viu de um lado os que estavam perseguindo imprudentemente e de outro os inimigos em bloco marchando ao encontro e em posiccedilatildeo apropriada temeu pelo filho e por Ciro que eles sofressem algo ao se precipitarem em desordem aos que estavam bem dispostos e conduziu-se de imediato contra os inimigos [23] Os inimigos por sua vez ao verem os medos avanccedilando uns entesaram as lanccedilas e enquanto outros ergueram os arcos de modo que quando chegassem ao alcance de tiro eles parassem como a maioria tem o haacutebito de fazer Pois ateacute agora quando chegam o mais proacuteximo possiacutevel avanccedilando uns contra os outros frequentemente atiram de longe ateacute o anoitecer

Quando poreacutem viram os seus em fuga correndo em sua proacutepria direccedilatildeo e os que estavam com Ciro conduzindo-se muito proacuteximos contra eles e Astiacuteages com os cavalos chegando ao limite dos tiros de arco os inimigos recuaram e fugiram com eles perseguindo de perto com todo vigor Capturam muitos e os que eram alcanccedilados os medos golpeavam cavalos e homens e os caiacutedos eles matavam E natildeo se detiveram antes que tivessem chegado agrave face da infantaria dos Assiacuterios Ali certamente temendo que uma emboscada maior estivesse escondida se detiveram

[24] Depois disso Astiacuteages retirou-se bastante feliz com a vitoacuteria em combate da cavalaria mas natildeo sabendo o que dizer a Ciro pois de um lado reconhecia que ele era o responsaacutevel pelo feito mas de outro percebia que ele fora arrebatado pela coragem E no momento em que partiam para casa Ciro isolado de todos nenhuma outra coisa fazia do que cavalgando ao redor dos mortos os contemplava Os designados para isso com muito custo arrancaram-no e o conduziram a Astiacuteages Ciro deixou seus condutores bem agrave frente pois via o semblante irado do avocirc por causa da contemplaccedilatildeo dele

[25] Essas coisas na Meacutedia ocorreram e todos tinham Ciro na boca seja nas narrativas seja nas canccedilotildees e Astiacuteages que jaacute antes o estimava nesse momento passara a ficar estupefato por causa dele Cambises o pai de Ciro alegrava-se ao ser informado dessas coisas poreacutem quando ouviu que Ciro punha as matildeos sobre os trabalhos de homens chamou-o de volta para que se formasse nos costumes persas Ciro entatildeo disse que queria partir para que o pai natildeo se afligisse com alguma coisa e a cidade o censurasse A Astiacuteages parecia que era imperioso enviaacute-lo de volta

Nesse momento entatildeo enviou-o tendo dado a ele os cavalos que ele desejava levar e equipado com muitas outras coisas porque o amava mas tambeacutem por ter grandes esperanccedilas de que nele houvesse um homem capaz de ajudar os amigos e de afligir aos inimigos E estando Ciro partindo todos meninos jovens adultos e os mais velhos escoltavam-no a cavalo e o proacuteprio Astiacuteages tambeacutem e dizem que nenhum daqueles voltou sem estar chorando

[26] E dizem ainda que o proacuteprio Ciro afastava-se com muitas laacutegrimas E dizem ainda que ele distribuiu muitos presentes aos da sua idade daqueles que Astiacuteages lhe havia dado Por fim levava uma tuacutenica meda da qual despojando-se deu a algueacutem dando mostras de que o prezava muitiacutessimo Os que pegavam e aceitavam os presentes dizem devolveram a Astiacuteages e Astiacuteages aceitando enviou-os de volta a Ciro que enviou novamente aos medos e disse ldquoSe tu queres avocirc que eu retorne a ti sem ficar constrangido se eu entregar algo a algueacutem permite que ele a mantenhardquo Astiacuteages apoacutes ouvir isso fez como Ciro mandara

[27] Por ventura eacute necessaacuterio recordar a histoacuteria de um jovenzinho dizem que Ciro partia se afastando dos outros Os parentes despediam-se o beijando na boca segundo o costume persa Ainda hoje os persas fazem isso um homem dos medos sendo muito belo e

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nobre e que ficara pasmado por muito tempo graccedilas a beleza de Ciro quando viu os parentes beijando-o ficou para traacutes quando os outros se foram foi-se para junto de Ciro e disse

ldquoDos parentes Ciro soacute a mim natildeo reconhecesrdquo ldquoPor quecirc Acaso tu eacutes meu parenterdquo ldquoCertamente disserdquo ldquoEntatildeo eacute por isso que me olhavas fixamente Pois parece que muitas vezes te reconheci

fazendo issordquo ldquoPois de ti sempre querendo aproximar-me pelos deuses ficava envergonhadordquo ldquoMas natildeo era preciso disse Ciro sendo parenterdquo Em seguida aproximando-se beijou-

o [28] E o Medo tendo recebido o beijo perguntou ldquoDe fato na Peacutersia eacute lei beijar os parentesrdquo ldquoCertamente disse quando se vecircem depois de certo tempo ou se afastam para um lugar

longe uns dos outrosrdquo ldquoTalvez seja a hora disse o medo de me beijares novamente pois como vecircs jaacute estou

partindordquo Assim Ciro beijando-o novamente afastou-se e partiu Ainda natildeo completava um

grande caminho entre eles o Medo chega novamente com o cavalo suando E Ciro tendo o visto disse

ldquoMas acaso esquecestes alguma coisa que querias dizerrdquo ldquoNatildeo por Zeus Mas venho depois de certo tempordquo ldquoPor Zeus parente por pouco tempo certamenterdquo ldquoComo pouco Natildeo sabes Ciro que justamente o tempo em que pisco os olhos parece-

me ser muito maior pois durante esse tempo natildeo te vejordquo Naquele momento riu Ciro depois de ter chorado antes e disse a ele que partisse com

confianccedila pois estaria presente entre eles em pouco tempo de modo que seria permitido olhaacute-lo e se quisesse sem piscar

V [1] Ciro entatildeo tendo voltado a Peacutersia dizem um ano ainda permaneceu na classe dos

meninos A princiacutepio os meninos zombavam dele pois voltara habituado agrave vida de prazeres na Meacutedia Quando entatildeo o viram comendo e bebendo agradavelmente como eles e se alguma vez na festa havia banquete perceberam que ele oferecia mais da sua proacutepria porccedilatildeo do que pedia mais e aleacutem dessas coisas viram que ele era superior a eles mesmos a partir de entatildeo os da sua idade voltaram a respeitaacute-lo Depois que concluiu essa educaccedilatildeo imediatamente foi para a classe dos efebos e tambeacutem nessa parecia ser superior ocupando-se das coisas que eram necessaacuterias suportar e reverenciando os mais velhos e obedecendo aos chefes

[2] Com o tempo avanccedilando Astiacuteages morreu na Meacutedia e Ciaxares filho de Astiacuteages e irmatildeo da matildee de Ciro recebeu o reinado dos medos O rei dos Assiacuterios apoacutes conquistar toda a Siacuteria naccedilatildeo numerosa conseguiu a submissatildeo do rei das Araacutebias e jaacute tendo como suacuteditos os Ircanos e cercando os Bactriatildeos considerou que se tornasse os medos mais fracos faacutecil seria comandar todas as naccedilotildees ao redor Pois a Meacutedia parecia ser das naccedilotildees proacuteximas a mais forte [3] Desse modo enviou embaixadores a todos os povos submetidos a ele a Creso rei da Liacutedia ao da Capadoacutecia a ambas as Frigias a Paflagocircnia e a Iacutendia a Caacuteria e a Ciliacutecia acusando medos e persas dizendo que essas eram naccedilotildees grandes e fortes e que por isso associaram-se e permitiam fazer casamentos entre si e se ningueacutem se prevenindo contra eles os tornasse mais fracos estariam em perigo pois se lanccedilariam sobre cada uma das naccedilotildees para conquistaacute-las

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Fizeram entatildeo alianccedila com ele uns por essas palavras convencidos outros persuadidos por presentes e coisas preciosas pois muitas coisas desse tipo pertenciam a ele

[4] Ciaxares o filho de Astiacuteages quando percebeu a conspiraccedilatildeo e a preparaccedilatildeo dos que se associaram contra ele ele imediatamente preparou-se tanto quanto podia e aos persas enviou embaixadores visando o conselho e visando Cambises esposo de sua irmatilde e rei dos Persas Enviou tambeacutem a Ciro pedindo a ele que procurasse vir comandando os homens se o conselho persa enviasse alguns soldados Pois Ciro completado dez anos na classe dos efebos jaacute estava na classe dos adultos [5] Ciro assim aceitara e os anciotildees deliberando elegem-no comandante para a expediccedilatildeo dos medos Permitiram a ele escolher duzentos dos homoacutetimos e por sua vez a cada um dos homoacutetimos permitiram escolher quatro tambeacutem esses dentre os homoacutetimos esses entatildeo chegam a mil Ordenaram a cada um desses mil por sua vez a escolher dentro dos demos da Peacutersia dez peltastas dez fundibulaacuterios e dez arqueiros e desse modo chegaram a dez mil arqueiros dez mil peltastas e dez mil fundibulaacuterios aleacutem daqueles mil que estavam agrave disposiccedilatildeo anteriormente Esse era o exeacutercito que foi dado a Ciro

[6] Assim que ele foi eleito primeiramente sacrificou aos deuses tendo obtido bons auspiacutecios em seguida escolheu os duzentos e quando cada um deles escolheu os quatro os reuniu e entatildeo pela primeira vez discursou nestes termos a eles [7] ldquoHomens amigos eu os escolhi natildeo por vos ter julgado bons agora pela primeira vez mas por que desde a infacircncia observo que voacutes executaacuteveis com ardor aquilo que a cidade considerava bom e aquilo que a cidade considerava vil afastaacuteveis disso inteiramente Em razatildeo de quais motivos eu de bom grado apresentei-me a esse posto e invoquei-vos desejo revelar a voacutes [8] Pois eu refleti que os nossos ancestrais em nada eram inferiores a noacutes sem duacutevida exercitando-se aqueles cumpriam as obras que justamente consideravam virtuosas O quecirc em todo caso adquiriram sendo assim tanto para a comunidade dos persas quanto para eles mesmos eu natildeo posso mais ver [9] Entretanto eu imagino que nenhuma virtude eacute praticada pelos homens para que os que satildeo bons natildeo tenham nenhuma vantagem sobre os maus Mas os que se absteacutem dos prazeres imediatos agem assim natildeo para nunca mais se alegrarem mas por meio dessa temperanccedila preparam-se assim para se alegrarem no futuro muitas vezes mais Aqueles que desejam com ardor tornar-se haacutebil no falar praticam a declamaccedilatildeo natildeo para ficarem falando bem sem jamais parar mas confiando que com o bem falar persuadindo os homens obteratildeo muitos e grandes bens os que por sua vez se esforccedilam nas artes da guerra natildeo se exercitam nisso para ficar combatendo sem parar mas esses julgando que ao se tornarem bons nas artes beacutelicas atribuiratildeo muita riqueza muita felicidade e grandes honras a eles mesmos e tambeacutem a cidade [10] Se algueacutem tendo se exercitado em algo e antes de saborear algum fruto dessa praacutetica observa que se tornou incapaz na velhice ao menos parece-me sofrer igual a algueacutem que tendo desejado tornar-se um bom agricultor bem semeando e bem plantando quando era necessaacuterio colher os frutos permite que o fruto caia de novo sobre a terra e natildeo o recolhe E se algum atleta suportado muitas fadigas e tendo se tornado digno de vencer permanecesse sem disputar o precircmio esse me parece merecer com justiccedila a acusaccedilatildeo de insensato [11] Mas noacutes homens natildeo sofreremos isso jaacute que na verdade temos consciecircncia de que noacutes desde a infacircncia tendo comeccedilado sendo atletas das obras boas e belas nos lanccedilaremos contra os inimigos os quais eu sei com clareza satildeo amadores para combater contra noacutes Pois esses ainda natildeo satildeo combatentes muito fortes se de um lado lanccedilam flechas e dardos e cavalgam com conhecimento de outro quando for necessaacuterio sofrer fadigas nisso seratildeo inferiores pois esses satildeo pessoas sem praacutetica em relaccedilatildeo aos trabalhos fatigantes Quando for necessaacuterio natildeo dormir seratildeo vencidos pelo sono pois eles satildeo inexperientes com relaccedilatildeo a isso nem os que acaso satildeo haacutebeis nisso pois esses satildeo

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ignorantes no como eacute necessaacuterio agir com os aliados e com os inimigos e eacute evidente que esses tiveram seus principais conhecimentos inabilmente [12] Voacutes sem duacutevida podereis vos servir da noite tanto quanto os outros do dia e julgais que as fadigas conduzem a uma vida com prazeres e assim podereis vos servir da fome tanto quanto do manjar fino e suportais mais facilmente que os leotildees soacute beberem aacutegua e voacutes adquiris na sua alma o bem mais valioso e belicoso de todos voacutes vos alegrais em ser louvado mais do que a todos os outros juntos Aos amantes do louvor eacute imperioso enfrentar todo tipo de pena todo tipo de perigo com prazer [13] Se eu digo essas coisas a respeito de voacutes pensando outras a mim mesmo enganaria pois se alguma dessas virtudes de vossa parte falhar sobre mim recairaacute essa negligecircncia Poreacutem creio na vossa experiecircncia na afeiccedilatildeo que voacutes tendes por mim e tambeacutem na ignoracircncia dos inimigos e que essas boas esperanccedilas natildeo me enganaratildeo Mas marchemos confiantes visto que estaacute longe de noacutes a reputaccedilatildeo de cobiccedilarmos injustamente as coisas alheias Pois agora os inimigos avanccedilam tendo comeccedilado a guerra enquanto que os nossos amigos nos chamam em socorro E o que na verdade eacute mais justo que defender-se ou mais belo do que socorrer aos amigos [14] Poreacutem creio ainda em outra coisa para voacutes vos encorajardes pois natildeo farei a partida negligenciando os deuses pois estando a muito comigo prestais a atenccedilatildeo que nas grandes como tambeacutem nas pequenas empresas sempre comeccedilo pelos deusesrdquo Finalmente Ciro disse ldquoO que ainda eacute necessaacuterio dizer Voacutes tendo escolhido os homens e os tomado para dirigir e se encarregado das outras coisas dirijais-vos agrave Meacutedia Eu irei depois de estar primeiramente junto a meu pai a fim de que as coisas dos inimigos eu aprenda o mais raacutepido possiacutevel e tanto quanto for possiacutevel nos preparemos naquilo que for necessaacuterio para que combatamos o mais nobremente possiacutevel com a ajuda dos deusesrdquo

Eles entatildeo agiram dessa forma

VI [1] Ciro tendo ido para casa e feito as oraccedilotildees agrave Estia ancestral e a Zeus ancestral e

tambeacutem aos outros deuses partiu para a expediccedilatildeo com o proacuteprio pai escoltando-o Quando estavam fora de casa dizem que raios e trovotildees ocorreram favoraacuteveis a ele Depois desses fenocircmenos marcharam natildeo fazendo nenhuma outra consulta porque nenhum sinal do deus grandiacutessimo passaria oculto [2] Durante o caminho o pai comeccedilou essa conversa com Ciro

ldquoFilho que os deuses enviam a ti favores e benefiacutecios eacute evidente nos pressaacutegios e sinais celestes tu mesmo o reconheces Pois eu de propoacutesito te instruiacute nessas coisas para que por causa de outros inteacuterpretes natildeo possas reconhecer os desiacutegnios dos deuses mas tu mesmo vendo as coisas visiacuteveis e ouvindo as audiacuteveis reconheccedilas sem estar agrave custa dos adivinhos nem se quiserem te enganar dizendo coisas diversas das que foram reveladas pelos deuses nem por sua vez se alguma vez estiveres com efeito sem adivinho ficaraacutes sem saber o que fazer para se servir dos sinais divinos mas reconhecendo por meio da arte da adivinhaccedilatildeo os conselhos dos deuses poderaacutes obedecer-lhesrdquo

[3] ldquoDe fato pai e para que os deuses se mostrem favoraacuteveis e desejem aconselhar-nos na medida em que possa cumpro diligentemente conforme seu conselho Pois me lembro de ter ouvido uma vez de ti que seria com razatildeo o meio mais eficiente para obter dos deuses como tambeacutem dos homens natildeo soacute chamaacute-los quando estivesse em dificuldade mas quando adquirisse as melhores coisas aiacute entatildeo eacute muito melhor lembrar-se dos deuses E disse tambeacutem que eacute necessaacuterio do mesmo modo ocupar-se dos amigosrdquo

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[4] ldquoNatildeo eacute verdade filho que graccedilas agravequelas diligecircncias vais agora rogar aos deuses com mais prazer e esperas muito mais obter as coisas que precisa pois te pareces ter consciecircncia de que jamais os negligenciourdquo

ldquoCom certeza pai muito mais pois me encontro com tal disposiccedilatildeo para com os deuses como se fossem amigos meusrdquo

[5] ldquoPois lembra-te daquilo que uma vez foi considerado por noacutes Que do mesmo modo que os homens agem melhor sabendo o que os deuses lhe deram do que ignorando os trabalhadores realizam mais obras do que os ociosos e os diligentes vivem mais seguros do que os descuidados assim tambeacutem eacute mostrando-se tal qual eacute preciso parecia a noacutes ser necessaacuterio pedir graccedilas dos deusesrdquo

[6] ldquoSim por Zeus certamente lembro-me de ter ouvido essas coisas de ti pois foi-me forccediloso ser convencido pelo argumento Eu sei tambeacutem que tu dizias sempre que natildeo era permitido solicitar aos deuses vencer nos combates a cavalo natildeo sabendo montar nem aos que natildeo satildeo haacutebeis no arco pedir para superar no arco os que satildeo haacutebeis nem a quem natildeo sabe pilotar pedir para preservar-se satildeo e salvo pilotando o navio nem a quem natildeo semeia o trigo pedir que lhes nasccedila uma boa safra nem a quem natildeo se protege na guerra pedir salvaccedilatildeo pois todas essas coisas satildeo contraacuterias agraves leis dos deuses E aos que rogam coisas iliacutecitas eacute natural tu dizias natildeo ter ecircxito junto aos deuses do mesmo modo que natildeo obteacutem nada dos homens quem faz pedidos contraacuterios agraves leisrdquo

[7] ldquoPoreacutem filho tu te esquecestes daquelas coisas que uma vez eu e tu meditamos que seria obra nobre e suficiente para um homem se pudesse trabalhar para que ele mesmo se tornasse honestamente bom e belo e ele e a famiacutelia tivessem provisotildees suficientes Mas sendo isso uma grande obra do mesmo modo ser capaz de governar os outros homens para que tivessem abundacircncia de todas as provisotildees e para que todos fossem como eacute necessaacuterio isso revelou ser naquela vez para noacutes sem duacutevida alguma algo admiraacutevelrdquo

[8] ldquoSim por Zeus pai recordo-me que tu dizias isso sem duacutevida me parecia igualmente ser uma enorme obra o governar belamente e tambeacutem agora parece-me isso mesmo quando medito observando o governar em si mesmo Quando em todo caso observando os outros homens compreendi de que natureza satildeo aqueles que passam a vida governando e qual a natureza dos que seratildeo nossos adversaacuterios parece-me ser muito vergonhoso ter medo deles e natildeo desejar nos lanccedilar contra os inimigos Aqueles eu noto comeccedilando por esses nossos amigos acreditam que eacute necessaacuterio que os governantes se distingam dos governados no comer copiosamente no ter mais ouro em casa no dormir por mais tempo e no viver em tudo com mais oacutecio do que os governados Eu por outro lado penso que o governante deve se distinguir dos governados natildeo no ser indolente com as necessidades mas na providecircncia e no amor ao trabalhordquo

[9] ldquoMas filho haacute em alguns casos que natildeo lutamos contra homens mas contra coisas em si mesmas das quais natildeo eacute faacutecil ser superior com desembaraccedilo Assim por exemplo tu sabes sem duacutevida que se o exeacutercito natildeo tiver as provisotildees o teu comando seraacute anuladordquo

ldquoNa verdade pai isso Ciaxares disse que forneceraacute a todos os que se lanccedilam daqui tatildeo numerosos quantos foremrdquo

ldquoE tu filho partiraacutes crendo nessas riquezas de Ciaxaresrdquo ldquoSimrdquo ldquoTu sabes entatildeo de qual tamanho eacute a riqueza delerdquo ldquoNatildeo por Zeus natildeo seirdquo

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ldquoApesar de tudo confias em coisas desconhecidas Natildeo reconheces que teraacutes necessidade de muitas coisas e agora mesmo a Ciaxares eacute necessaacuterio gastar em muitas outras coisasrdquo

ldquoReconheccedilordquo ldquoSe entatildeo o recurso dele for insuficiente ou voluntariamente ele te enganar como se

manteraacute o teu exeacutercitordquo ldquoEacute evidente que natildeo muito bem Entretanto pai se tu reconheces algum recurso que

possa ser produzido por mim enquanto ainda estamos entre amigos digardquo [10] ldquoPerguntais filho qual recurso poderia ser produzido por ti De quem eacute mais

provaacutevel receber os recursos do que de quem tem poder Tu partes daqui levando tanto uma poderosa infantaria e eu bem sei que em troca dela natildeo aceitarias outra muito mais numerosa aleacutem disso seraacute teu aliado a cavalaria dos medos justamente aquela que eacute a melhor Qual povo portanto dos vizinhos natildeo julgaraacute bom ser agradaacutevel a ti ou desejando servir-vos ou temendo algum sofrimento Isso eacute necessaacuterio a ti em comum com Ciaxares observar para que jamais estejas em falta das coisas que eacute preciso estar a disposiccedilatildeo e por causa do costume maquinar fontes de renda Lembra-te disso mais do que tudo jamais esperes para procurar os recursos ateacute que a necessidade te obrigue mas quanto maior abundacircncia tiveres entatildeo maquines antes da carecircncia pois obteraacutes mais da parte de quem pedires natildeo parecendo estar sem recursos E aleacutem disso obteraacutes mais respeito dos outros e se quiser fazer bem ou mal a algueacutem com a tropa os soldados serviratildeo a ti melhor enquanto mantiver as coisas necessaacuterias e sabes bem os discursos mais persuasivos diraacutes nesse momento quando melhor puderes demonstrar que eacutes capaz de fazer o bem e o malrdquo

[11] ldquoMas pai ainda por cima me parece que tu dizes tudo isso com nobreza pois das coisas que agora os soldados dizem que iratildeo receber nenhum deles seraacute agradecido a mim por elas Pois sabem sob quais condiccedilotildees Ciaxares os leva consigo como aliados o que algueacutem receber aleacutem do combinado consideraratildeo isso um precircmio e naturalmente seratildeo agradecidos a quem as deu Tendo um exeacutercito com o qual eacute possiacutevel de um lado retribuir favores fazendo bem aos amigos e de outro tendo inimigos tentar puni-los e em seguida negligencias o fornecimento pensas que isso eacute menos vergonhoso do que se algueacutem tendo um campo e tendo trabalhadores com os quais cultivasse o campo e em seguida permitisse que o campo esteja ocioso e improdutivo Quanto a mim jamais negligenciarei de procurar meios de subsistecircncia aos soldados nem nas terras amigas nem nas inimigas e nessas condiccedilotildees fiques tranquilordquo

[12] ldquoPois filho das outras coisas que um dia parecia nos forccediloso natildeo negligenciar lembra-te delasrdquo

ldquoCom efeito pai lembro-me bem de quando fui para junto de ti em busca de dinheiro para pagar aquele que declarava me instruir em ser general Tu enquanto me davas o dinheiro perguntavas coisas como estas lsquoDigas filho seraacute que entre as funccedilotildees de general algo de economia domeacutestica mencionou a ti o homem a quem levas o soldo Certamente os soldados precisam natildeo menos das provisotildees do que os servos em casarsquo Depois que eu dizendo a ti a verdade que nem a menor coisa a respeito disso ele mencionou perguntastes novamente se algo sobre a sauacutede e a forccedila fiacutesica tinha dito para mim para que o general se ocupe dessas necessidades tanto quanto da estrateacutegia [13] Como tambeacutem a isso disse que natildeo perguntaste-me ainda se alguns artifiacutecios tinha me ensinado que seriam os melhores aliados dos trabalhos beacutelicos Eu neguei tambeacutem a isso e tu me interrogaste novamente se ele me ensinara algo que pudesse incutir ardor na tropa dizendo que em todo o trabalho o ardor faz toda a diferenccedila sobre a ausecircncia de acircnimo Quando a isso neguei meneando a cabeccedila para traacutes tu perguntaste-me se

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tinha feito alguma discussatildeo instruindo-me sobre o fazer-se obedecer pelo exeacutercito como algueacutem poderia tramar isso perfeitamente [14] Quando tambeacutem a isso mostrava-me absolutamente ignoto finalmente indagaste-me o que entatildeo me ensinara dizendo ensinar estrateacutegia Eu entatildeo respondi que ldquoa taacuteticardquo e tu pondo-se a rir retomando cada um dos pontos expocircs qual seria a utilidade da taacutetica para o exeacutercito sem as provisotildees sem a sauacutede sem ocupar-se em obter para si as teacutecnicas beacutelicas e sem a obediecircncia Agrave medida que tu tornastes evidente a mim que a taacutetica era uma pequena parte da estrateacutegia eu perguntei se alguma dessas coisas tu serias capaz de me ensinar Partindo me exortastes a conversar com os homens ditos estrategistas e a inquiri-los em como alcanccedilar a cada um desses pontos [15] Depois disso eu me encontrava com aqueles que ouvia serem os mais inteligentes sobre esses assuntos E quanto agraves provisotildees estou convencido que satildeo suficientes as disposiccedilotildees de que Ciaxares estaacute em condiccedilotildees de fornecer para noacutes quanto agrave sauacutede ouvindo e vendo que as cidades desejando ter boa sauacutede escolhem os meacutedicos e os generais por causa dos soldados tambeacutem levam meacutedicos assim eu tambeacutem quando este posto alcancei imediatamente apoacutes ocupei-me disso e penso pai que tenho comigo os homens mais competentes na arte meacutedicardquo

Em funccedilatildeo disso o pai falou [16] ldquoMas filho esses a quem tu te referes satildeo como quem repara mantos rasgados de fato os meacutedicos tratam das pessoas quando elas adoecem A ti a atenccedilatildeo com a sauacutede deve ser mais altiva do que isso pois que as tropas de modo algum devem ficar doentes e esse haacute de ser o teu deverrdquo

ldquoPai seguindo qual caminho serei capaz de fazer issordquo ldquoSem duacutevida se tiveres a intenccedilatildeo de permanecer em um mesmo local durante um

tempo primeiramente eacute necessaacuterio natildeo negligenciar a higiene do acampamento se te preocupares com isso natildeo falharaacutes aleacutem disso os homens natildeo param de falar sobre regiotildees insalubres e sobre regiotildees salubres Testemunhas evidentes de cada um deles se oferecem nos corpos e tambeacutem na cor da pele Depois natildeo seraacute proteccedilatildeo suficiente examinar soacute a regiatildeo mas lembra-te de como se esforccedilar para cuidar de ti mesmo para que estejas satildeordquo

[17] E Ciro disse ldquoPrimeiramente por Zeus me esforccedilo para jamais me empanturrar pois eacute desagradaacutevel em seguida faccedilo a digestatildeo dos alimentos pois desse modo parece-me que mantenho melhor a sauacutede e adquiro forccedilardquo

ldquoDesse modo com efeito filho eacute necessaacuterio cuidar dos outrosrdquo ldquoMas de fato haveraacute tempo livre para os soldados se exercitaremrdquo ldquoPor Zeus disse o pai natildeo apenas eacute certo mas tambeacutem eacute necessaacuterio pois ao exeacutercito eacute

preciso se tiveres a intenccedilatildeo de que eles cumpram os deveres que jamais cessem ou de praticar o mal aos inimigos ou o bem aos seus e agrave medida que eacute difiacutecil alimentar um homem ocioso muito mais difiacutecil ainda filho uma casa toda mas mais difiacutecil de tudo eacute alimentar um exeacutercito inativo Pois as bocas no exeacutercito satildeo numerosas e partindo com o miacutenimo as coisas que recebem se se servem prodigamente seraacute necessaacuterio que jamais o exeacutercito fique ociosordquo

[18] ldquoParece-me que tu dizes pai que como em nada eacute uacutetil um agricultor ocioso assim tambeacutem em nada eacute uacutetil um general ociosordquo

ldquoMas o general trabalhador eu assumo que se nenhum deus lhe prejudicar ao mesmo tempo em que determina aos soldados como manter o maacuteximo das provisotildees tambeacutem determina a manter melhor o preparo fiacutesicordquo

ldquoPor certo quanto agrave praacutetica de cada uma das atividades guerreiras parece-me que pai prescrevendo disputas a cada uma delas e oferecendo precircmios faraacutes que cada um esteja exercitado nelas muitiacutessimo bem para que quando tiver necessidade se servir de homens preparadosrdquo

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ldquoDizes muito bem filho pois tendo feito isso saibas bem que sempre tu os veraacutes exercitados de modo conveniente como coros ordenadosrdquo

[19] ldquoMas com efeito para incutir o entusiasmo nos soldados nada me parece ser mais eficaz do que poder produzir esperanccedilas nos homensrdquo

ldquoPoreacutem filho isso eacute tal como se algueacutem chamasse os catildees na caccedila sempre com o mesmo chamado de quando vecircs a caccedila pois num primeiro momento eu sei bem que obteacutem respostas ardorosas ao chamado mas se muitas vezes os engana acabam natildeo obedecendo ao chamado nem quando realmente vecirc Assim tambeacutem ocorre com relaccedilatildeo agraves esperanccedilas se algueacutem mente frequentemente incutindo esperanccedilas em muitos bens nem quando declarar sinceras esperanccedilas o tal poderaacute persuadir Mas eacute necessaacuterio de um lado afastar-se de dizer aquilo que tu mesmo natildeo sabes seguramente filho de outro lado outros incitados dizendo essas coisas podem conseguir Eacute necessaacuterio que tu preserves o maacuteximo da confianccedila em tuas exortaccedilotildees para os grandes perigosrdquo

ldquoMas sim por Zeus a mim pareces dizer belamente pai e a mim tambeacutem desse modo eacute o mais agradaacutevel [20] Quanto ao produzir a obediecircncia dos soldados natildeo me pareccedilo ser inexperiente pai pois tu me ensinaste isso desde a infacircncia obrigando-me a obedececirc-lo Em seguida confiou-me aos professores e eles por sua vez agiram do mesmo modo quando estaacutevamos entre os efebos o comandante ocupava-se muito destas mesmas coisas E parece-me que a maioria das leis ensina principalmente essas duas coisas a governar e a ser governado E com efeito refletindo sobre essas coisas parece-me observar em tudo que o que mais incita a obediecircncia eacute louvar e honrar o obediente e ao desobediente desprezar e punirrdquo

[21] ldquoEsse filho eacute o caminho para a obediecircncia forccedilada para uma muito melhor do que essa a obediecircncia voluntaacuteria haacute um caminho muito mais curto Pois os homens obedecem com grande prazer aqueles que consideram mais sensatos nos seus interesses do que eles mesmos Poderaacutes reconhecer que isso eacute assim em muitas outras coisas inclusive os doentes que com ardor chamam aqueles que prescrevem o que lhes eacute necessaacuterio fazer e no mar com ardor os que estatildeo navegando obedecem aos pilotos e aqueles que julgam que outros sabem o caminho melhor do que eles com muita forccedila natildeo desejam abandonaacute-los Quando poreacutem crecircem que a obediecircncia resultaraacute em algum mal natildeo consentem absolutamente em ceder nem por causa de castigos nem induzidos por presentes Pois ningueacutem a troco da proacutepria desgraccedila aceita espontaneamente presentesrdquo

[22] ldquoDizes tu pai que nada eacute mais eficaz para manter a obediecircncia do que parecer ser mais inteligente do que os governadosrdquo

ldquoCom efeito digo issordquo ldquoE qual a maneira pai que algueacutem poderia produzir rapidamente sobre si mesmo tal

reputaccedilatildeordquo ldquoNatildeo haacute filho caminho mais curto a respeito das coisas em que desejas parecer ser

sensato do que tornar-se de fato sensato a respeito desses assuntos Observando a fundo cada uma das coisas reconheceraacutes que eu digo a verdade Se quiseres natildeo sendo bom agricultor parecer ser bom ou cavaleiro ou meacutedico ou flautista ou qualquer outra coisa imagine quatildeo numerosas coisas a ti seria necessaacuterio maquinar por causa da aparecircncia E se tu persuadires a muitos a te louvares para que obtenhas fama e adquiras bons equipamentos de cada um destes ofiacutecios em um instante seria o embusteiro mas pouco depois quando precisasse oferecer uma prova tu te verias desmascarado e ainda um charlatatildeordquo

[23] ldquoComo algueacutem pai poderia tornar-se sensato sobre algo que no futuro lhe seraacute uacutetilrdquo

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ldquoEacute evidente filho que tudo quanto eacute possiacutevel saber aprendendo aprender como aprendeste sobre taacutetica E tudo quanto os homens natildeo podem aprender e natildeo se pode prever pela previdecircncia humana serias mais sensato do que os outros interrogando aos deuses por meio da arte da adivinhaccedilatildeo Tambeacutem aquilo que reconheces ser o melhor a fazer ocupa-te para a realizaccedilatildeo disso pois natildeo o negligencia mas cuidar do que for necessaacuterio eacute proacuteprio do homem sensatordquo

[24] ldquoMas certamente quanto a ser estimado pelos governados que me parece ser das coisas mais importantes eacute evidente que eacute o mesmo caminho para quem deseja ser querido pelos amigos jaacute que penso que eacute necessaacuterio ser distinguido fazendo o bemrdquo

ldquoMas isso filho de fato eacute difiacutecil o sempre poder fazer o bem para aqueles que se deseja mostrar-se feliz se algo bom acontece com eles estar junto se algo de mal socorrer de boa vontade nas suas dificuldades temendo que caiacuteam em erros e velar se esforccedilando para que natildeo os cometam essas satildeo as melhores maneiras de estar junto dos amigos [25] E durante as obras da guerra se estiverem no veratildeo eacute necessaacuterio que seja manifesto que o general eacute superior com relaccedilatildeo ao sol e se estiverem no inverno ao frio se durante os trabalhos agraves penas pois tudo isso ajuda a ser estimado pelo subordinadosrdquo

ldquoDizes tu pai que eacute necessaacuterio que o governante seja mais vigoroso do que os governados em todas as coisasrdquo

ldquoPois sem duacutevida digo Em todo caso fique tranquilo quanto a isso filho Eu bem sei que embora os corpos sejam iguais as penas natildeo atingem de modo igual o general e o homem simples mas a honra suaviza algo das penas no comandante como proacuteprio saber de que aquilo que fizer natildeo passaraacute despercebidordquo

[26] ldquoPai poreacutem quando os soldados estiverem tanto com os recursos necessaacuterios quanto gozando de sauacutede e tambeacutem puderem suportar as fadigas e estejam treinados nas artes beacutelicas e aleacutem disso ambiciosos de se mostrarem nobres e estejam mais contentes em obedecer do que desobedecer natildeo te pareceria ser prudente entatildeo quem desejasse lutar contra os inimigos o mais raacutepido possiacutevelrdquo

ldquoSim por Zeus se estiveres em condiccedilotildees de obter a superioridade se natildeo eu ao menos quanto melhor acreditasse ser e melhores seguidores tivesse tanto mais seria prudente Como os bens que julgamos serem para noacutes os mais preciosos essas procurarmos nos servir com o maacuteximo de seguranccedilardquo

[27] ldquoPai qual a melhor maneira de algueacutem de poder obter a superioridade sobre os inimigosrdquo

ldquoPor Zeus isso que perguntas filho natildeo eacute assunto faacutecil nem simples Mas eu bem sei que eacute necessaacuterio a quem tiver intenccedilatildeo de fazer isso ser ardiloso e dissimulado mentiroso e embusteiro ladratildeo e tirar vantagem em tudo sobre os inimigosrdquo

E Ciro rindo disse ldquoHeracles que tipo de homem tu dizes que eacute necessaacuterio que eu me torne pairdquo

ldquoTal como serias filho o homem mais justo e mais conforme agraves leisrdquo [28] ldquoComo entatildeo voacutes nos ensinastes quando crianccedilas e jovens o contraacuterio destas

coisasrdquo ldquoSim por Zeus e agora mesmo para os amigos e os concidadatildeos Natildeo sabes que voacutes

aprendestes muitas praacuteticas fraudulentas a fim de que pudeacutesseis fazer mal aos inimigosrdquo ldquoEacute claro que natildeo pairdquo ldquoPor que razatildeo entatildeo filho tu aprendestes a atirar com o arco Por que razatildeo a lanccedilar

dardos Por que razatildeo a enganar javalis selvagens com redes e fossos E por que razatildeo aos

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cervos com armadilhas e cordas E por que razatildeo aos leotildees ursos e leopardos voacutes natildeo combatiacuteeis colocando-se em igualdade mas sempre procuraacuteveis lutar contra eles provido de alguma vantagem Ou natildeo reconheces que todas essas coisas satildeo maldades ardis enganos e subterfuacutegiosrdquo

[29] ldquoSim mas contra animais por Zeus contra os homens se eu tivesse em mente o desejo de enganar algueacutem sei que receberia muitas pancadasrdquo

ldquoDe fato creio que nem lanccedilar flechas nem dardos sobre os homens noacutes permitiriacuteamos a voacutes mas ensinaacutevamos a visar o alvo para que entatildeo natildeo machucaacutesseis aos amigos e se algum dia houvesse guerra pudesse mirar homens tambeacutem E natildeo ensinaacutevamos a enganar e a ter vantagem sobre os homens mas aos animais a fim de que com isso natildeo causaacutesseis danos aos amigos e se um dia houvesse guerra natildeo focircsseis inexperientes nestes assuntosrdquo

[30] ldquoSem duacutevida pai se eacute verdade que eacute uacutetil saber ambas as coisas fazer o bem e o mal aos homens era necessaacuterio que aprendecircssemos as duas coisas com homensrdquo

[31] ldquoMas dizem filho que outrora no tempo dos nossos ancestrais havia um homem professor de meninos que ensinava com efeito a justiccedila aos meninos assim como tu desejas a natildeo enganar e enganar a natildeo mentir e a mentir a natildeo iludir e a iludir a natildeo ter vantagens e a ter vantagens Distinguia dessas coisas o que fazer aos amigos e o que aos inimigos E aleacutem dessas coisas ensinava que era justo enganar aos amigos em vista de um bem e roubar algo dos amigos em vista de um bem [32] Ensinando essas coisas era forccediloso fazer aos meninos praticar isso uns contra os outros como dizem que os gregos ensinam a enganar no combate e exercitavam aos meninos para que pudessem fazer isso uns contra os outros Alguns de fato tornaram-se assim haacutebeis no roubar com justeza e levar vantagem poreacutem natildeo sendo igualmente haacutebeis na cupidez natildeo abstinham-se de tentar levar vantagem sobre os outros nem mesmo sobre os amigos [33] Criou-se portanto em consequecircncia dessas coisas uma lei que ainda hoje usamos de ensinar as crianccedilas de modo simples como ensinamos os proacuteprios escravos a dizer a verdade a natildeo enganar e a natildeo tirar vantagem em relaccedilatildeo a noacutes Se entatildeo fizerem contrariamente a isso castigamos para que tendo se habituado com tais costumes tornam-se os cidadatildeos mais moderados [34] Quando entatildeo tiverem a idade que tu tens hoje entatildeo pareceraacute seguro ensinar as leis para agir contra os inimigos pois natildeo mais parecia que se deixariam levar a tornarem-se cidadatildeos selvagens criados no muacutetuo respeito Como tambeacutem natildeo discorriacuteamos sobre os prazeres do amor para os muito jovens para que juntando a falta de escruacutepulos agrave forccedila de seu desejo os jovens natildeo se servissem do amor imoderadamenterdquo

[35] ldquoSim por Zeus como entatildeo comeccedilou tarde a me instruir nessas vantagens pai natildeo te abstenhas se algo tu tens a ensinar para que eu leve vantagem sobre os inimigosrdquo

ldquoMaquine com efeito para que tu surpreendas aos inimigos desordenados com a tua proacutepria tropa estando com homens bem ordenados os teus estando armados e os deles desarmados os teus despertos e os deles dormindo eles visiacuteveis a ti e tu invisiacutevel para eles e eles estando em terreno desfavoraacutevel e tu estando protegido em terreno fortificado

[36] ldquoE como algueacutem poderia pai surpreender os inimigos cometendo tais errosrdquo ldquoEacute forccediloso filho que tanto voacutes quanto os inimigos proporcionem muitos destes pois a

ambos eacute forccediloso tomar as refeiccedilotildees a ambos eacute forccediloso repousar e desde a aurora todos vatildeo fazer as necessidades quase ao mesmo tempo e eacute forccediloso servir dos caminhos tais quais sejam Todas essas coisas a ti eacute necessaacuterio perceber e o que reconheceis em voacutes sendo as mais fracas nisso sobretudo deves proteger e o que notares nos inimigos sendo as mais faacuteceis de submeter nisso deves dedicar-se sobretudordquo

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[37] ldquoEacute soacute disse Ciro nessas circunstacircncias que se obteacutem vantagem ou em alguma outra tambeacutemrdquo

ldquoCertamente em muitas outras filho Pois nessas em geral todos montam guardas sabendo que elas existem forccedilosamente Mas os que querem enganar os inimigos podem fazendo-os agir com confianccedila surpreendecirc-los desprotegidos e permitindo-se ser perseguido por eles deixaacute-los desordenados e atirando-os em fuga para um terreno difiacutecil ali mesmo atacar [38] Eacute necessaacuterio por isso que tu sejas um amante do aprender todas as coisas natildeo para te servires soacute das coisas que aprendestes mas tambeacutem para seres tu um inventor de artifiacutecios contra os inimigos Como os muacutesicos que natildeo se servem apenas das coisas que aprenderam mas tambeacutem procuram criar outras novas E de um lado nas artes musicais as peccedilas novas e exuberantes satildeo muito honradas de outro as novas maquinaccedilotildees satildeo muito mais honradas na guerra pois com essas pode-se melhor enganar os inimigos [39] Mas se tu filho transferires aos inimigos nenhuma outra coisa aleacutem dos truques que muito planejaste contra os animais pequenos natildeo achas que avanccedilas sobre os inimigos muito adiantado em vantagens Pois tu contra as aves te levantavas no inverno rigoroso e marchavas de noite e antes que os paacutessaros se movessem as cordas para eles eram preparadas por ti e tornavas o chatildeo movido semelhante ao natildeo tocado os paacutessaros eram ensinados por ti para te servirem com utilidade e para enganar os paacutessaros da mesma espeacutecie Tu armavas emboscadas para vecirc-las sem ser visto por elas e estavas preparado para puxar antes que os paacutessaros fugissem [40] Por outro lado contra a lebre que vive na escuridatildeo e evita o dia criava catildees que a descobriam pelo faro Assim quando era encontrada fugia rapidamente mas tinhas catildees preparados para capturaacute-las correndo Se entatildeo fugia tambeacutem destes procurando saber quais lugares as lebres fugindo alcanccedilaram nesses estendia redes de caccedila difiacuteceis de ver e na fuga veemente ela mesma caindo sobre a rede ficava amarrada E para natildeo fugirem daiacute tu colocavas guardas para o que estava ocorrendo os que de perto estavam tinham condiccedilotildees de sobrevir rapidamente e tu mesmo atraacutes com clamor natildeo ficavas atraacutes da lebre e bradando aterrorizava-a de tal modo que era capturada enlouquecida e aos que estavam defronte explicava para fazer silecircncio e permanecerem ocultos na emboscada [41] Como jaacute disse se puderes maquinar tais coisas contra os homens eu natildeo sei se seraacutes vencido por algum dos inimigos Se com efeito alguma vez houver necessidade de empreender um combate com ambos preparados e visiacuteveis no mesmo plano em tal circunstacircncia filho as vantagens preparadas de haacute muito tempo valem muito Eu digo que essas coisas existem a quem tem os corpos dos soldados bem exercitados as almas bem ordenadas e as taacuteticas beacutelicas bem estudadas [42] Eacute necessaacuterio saber bem tambeacutem que a tantos quantos tu exiges obediecircncia tambeacutem todos aqueles exigiratildeo de ti que decidas a respeito das coisas deles Jamais portanto fiques despreocupado mas durante a noite reflita sobre o que teus subordinados faratildeo quando chegar o dia e de dia para que a melhor noite esteja agrave disposiccedilatildeo deles [43] Como eacute necessaacuterio ordenar o exeacutercito na batalha ou como conduzir-te durante o dia ou a noite ou por estradas estreitas ou largas ou ainda nas montanhas ou nas planiacutecies ou como acampar ou como dispor guardas noturnos e diurnos ou como avanccedilar contra os inimigos ou afastar-se dos inimigos ou como conduzir para junto das cidades inimigas ou como dirigir-se ou recuar diante das muralhas ou como atravessar o vale ou os rios ou como proteger-se da cavalaria ou dos lanccediladores de dardos ou dos flecheiros ou se entatildeo a ti conduzindo o exeacutercito em coluna aparecem de suacutebito os inimigos como deves colocar-se diante deles ou se a ti agrave frente da falange conduzindo os inimigos se mostrarem de qualquer outro lado do que face a face como deves marchar contra ou como pode perceber melhor as coisas do inimigo ou como fazer os inimigos saberem o miacutenimo das tuas proacuteprias o que eu devo dizer a respeito dessas

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coisas para ti Pois tanto quanto eu sei muitas vezes ouvistes e aqueles outros que pareciam saber algo desses assuntos nenhum deles tu negligenciastes nem te tornastes ignorante Portanto diante dos acontecimentos eacute necessaacuterio se utilizar das coisas do modo que lhe pareccedila ser uacutetil [44] Aprenda de mim filho isto o mais importante eacute que contra pressaacutegios e auguacuterios jamais coloque em perigo nem a ti nem ao exeacutercito compreendendo que os homens escolhem as accedilotildees por conjecturas natildeo sabendo quais delas seratildeo para eles as melhores [45] Tu podes reconhecer isso da proacutepria histoacuteria pois de um lado outrora muitos que pareciam os mais saacutebios persuadiram estados a empreender guerra contra outras naccedilotildees pelas quais os que foram persuadidos a atacar foram derrotados e de outro lado muitos engrandeceram a muitos homens e estados e sofreram enormes males daqueles que progrediram Muitos tambeacutem que eram tratados como amigos e fazendo e recebendo apenas coisas boas preferindo trataacute-los mais como escravos do que como amigos receberam castigos desses mesmos Muitos outros que natildeo se contentavam em viver agradavelmente com o proacuteprio quinhatildeo que possuiacuteam tendo desejado ser dono de tudo por causa disso perderam tambeacutem o que tinham Muitos tendo conquistado a riqueza haacute muito desejada graccedilas a isso foram destruiacutedos [46] Assim a sabedoria humana natildeo sabe escolher o melhor mais do que algueacutem tirando a sorte agisse conforme obtivesse pela sorte Os deuses filho sendo eternos tudo sabem do que ocorreu do que estaacute ocorrendo e do que ocorreraacute a cada um E dos homens que os consultam anunciam o que eacute necessaacuterio fazer e aquilo que natildeo eacute para quem satildeo propiacutecios Se nem a todos desejam aconselhar natildeo haacute nada de maravilhoso nisso pois natildeo eacute necessaacuterio que eles se ocupem de quem natildeo queremrdquo

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8 Bibliografia

81 Ediccedilotildees e Traduccedilotildees de Xenofonte

XENOPHON Opera omnia Editado por E C Marchant 1910 Oxford University Press Clarendon Press Volume 4 Xenophon The education of Cyrus In Xenophon in seven volumes Walter Miller Harvard University Press Cambridge MA William Heinemann Ltd London 1914 Volume 5 e 6 XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Traduccedilatildeo de Marcel Bizos Paris Les Belles Lettres 1972 Tome I JENOFONTE Anaacutebasis Traduccedilatildeo de Ramoacuten Bach Pellicer Introduccedilatildeo Carlos Garciacutea Gual Madrid Gredos 1982 JENOFONTE Ciropedia Traduccedilatildeo de Ana Vegas Sansalvador Madrid Gredos 1987 JENOFONTE Helecircnicas Traduccedilatildeo de Orlando Guntintildeas Irintildeon Madrid Gredos 1994 JENOFONTE Obras Menores Traduccedilatildeo de Orlando Guntintildeas Irintildeon Madrid Gredos 1984 XENOFONTE A educaccedilatildeo de Ciro Traduccedilatildeo de Jaime Bruna Satildeo Paulo Cultrix 1985 XENOFONTE Ciropedia Traduccedilatildeo de Joatildeo Felix Pereira Rio de Janeiro Editora W M Jackson 1964 vol 1 (Coleccedilatildeo Claacutessicos Jackson) XENOFONTE O priacutencipe perfeito Prefaacutecio e Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Lisboa Bertrand 1952 XENOFONTE A retirada dos dez mil Prefaacutecio e Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Lisboa Bertrand 1957 XENOFONTE Econocircmico Traduccedilatildeo de Anna Lia A de A Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 XENOFONTE Ditos e feitos memoraacuteveis de Soacutecrates In Soacutecrates Trad de Liacutebero Rangel de Andrade 4ordm Ed Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p30-158

82 Autores Antigos

ARISTOTE Rheacutetorique (Livre II) Texte eacutetabili et traduit par Meacutedeacuteric Dufeur Paris Les Belles Lettres 1967

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83 Outros Autores

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Page 3: EMERSON CERDAS - Unesp

3

EMERSON CERDAS

A CIROPEDIA DE XENOFONTE

Um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade

Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras da Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo ndash UNESP Cacircmpus de Araraquara visando agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Estudos Literaacuterios

Teoria e Criacutetica da Narrativa

FAPESP

Data de aprovaccedilatildeo 05052011

MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA

Presidente e Orientador Profa Dra Maria Celeste Consolin Dezotti UNESPFCLAraraquara

Membro Titular Prof Dr Claacuteudio Aquati UNESPIBILCESatildeo Joseacute do Rio Preto

Membro Titular Profa Dra Maacutercia Valeacuteria Zamboni Gobbi UNESPFCLAraraquara

Local Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciecircncias e Letras UNESP ndash Campus de Araraquara

4

A meus pais Claacuteudio e Filomena

5

AGRADECIMENTOS Agrave Profa Dra Maria Celeste Consolin Dezotti pela formaccedilatildeo helenista e humana pela confianccedila e apoio e sobretudo pela amizade Agrave Profa Dra Maacutercia V Zamboni Gobbi agrave Profa Dra Wilma Patriacutecia M Dinardo Maas e ao Prof Dr Claacuteudio Aquati pelas valiosiacutessimas leituras que renderam valiosiacutessimas contribuiccedilotildees e pela generosidade de seus comentaacuterios Ao Prof Dr Henrique Cairus e agrave Profa Dra Maria Aparecida de Oliveira Silva pelas contribuiccedilotildees precisas Aos Professores Fernando Edvanda Anise e em especial agrave professora Claacuteudia pela formaccedilatildeo e encaminhamento nesta via sem volta que eacute a paixatildeo pela Heacutelade Agrave minha matildee Filomena pela eterna dedicaccedilatildeo agrave famiacutelia e aos cuidados prestimosos Ao meu pai Claacuteudio que primeiro me apresentou o maacutegico mundo da leitura com seu exemplo de leitor ndash saudades eternas Aos meus irmatildeos Viviane Anderson e Eliane principalmente pela compreensatildeo da ausecircncia e em especial agrave minha irmatilde Luciene e ao Brunno pela hospedagem intelectual nos meus anos de graduaccedilatildeo Agrave Patriacutecia presente e auxiliante nos momentos mais difiacuteceis e pelo incentivo seguro e sincero agredeccedilo profundamente Agrave FAPESP cujo financiamento deste trabalho possibilitou que ele se desenvolvesse tal qual o desejado Aos amigos Ceacutesar Augusto Ceacutesar Henrique Itamar Joatildeo Daniele Ceacutesar Erasmo Priscila Marco Aureacutelio sempre presentes

6

O historiador e o artista ao relatarem uma eacutepoca tecircm finalidades completamente diferentes [] A diferenccedila torna-se mais sensiacutevel e essencial quando se trata de descrever acontecimentos O historiador considera os resultados de um acontecimento o artista o proacuteprio acontecimento Leoacuten Tolstoi

A uacutenica coisa que devemos agrave histoacuteria eacute a tarefa de reescrevecirc-la Oscar Wilde

7

RESUMO A Ciropedia de Xenofonte escrita no seacuteculo IV aC eacute uma obra de caraacuteter hiacutebrido em que a ficccedilatildeo e a histoacuteria se mesclam com muita liberdade Em virtude disto tem-se discutido qual seria a melhor classificaccedilatildeo de gecircnero para a obra romance biograacutefico obra historiograacutefica romance histoacuterico A presente dissertaccedilatildeo investiga em que medida a Ciropedia de Xenofonte apresenta elementos narrativos que nos permitam reconhecer nela aspectos do gecircnero do romance mais especificamente do ldquoromance de formaccedilatildeordquo (Bildungsroman) gecircnero cujo paradigma se encontra na obra de Goethe Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister (1795-1796) Primeiramente procuramos definir em que medida noacutes podemos ler a Ciropedia como uma obra de ficccedilatildeo e natildeo como uma obra historiograacutefica a partir de reflexotildees a respeito das relaccedilotildees entre Literatura e Histoacuteria e principalmente por meio de uma anaacutelise comparativa entre a narrativa da Ciropedia com a narrativa das Histoacuterias de Heroacutedoto Percebe-se que Xenofonte ficcionaliza a narrativa estabelecida por Heroacutedoto seja retomando temas seja fazendo alusotildees agrave narrativa herodoteana Em seguida partindo-se da noccedilatildeo bakhtiniana de que todo gecircnero conserva em sua estrutura elementos formais da archaica que natildeo soacute caracterizam o gecircnero de forma distintiva mas tambeacutem permitem a sua renovaccedilatildeo a cada nova manifestaccedilatildeo literaacuteria procuramos definir quais elementos essenciais presentes no Romance de Formaccedilatildeo moderno encontramos na Ciropedia Analisamos cenas em que satildeo evidentes a partipaccedilatildeo de mentores a presenccedila de uma instituiccedilatildeo pedagoacutegica a visatildeo teleoloacutegica da educaccedilatildeo Aleacutem disso uma das caracteriacutesticas essenciais do ldquoRomance de Formaccedilatildeordquo eacute a presenccedila de uma personagem dinacircmica e evolutiva que se forma e educa no decorrer da narrativa Analisamos a construccedilatildeo e evoluccedilatildeo da personagem principal da narrativa Ciro por meio da anaacutelise da locuccedilatildeo de maacuteximas A dissertaccedilatildeo apresenta a traduccedilatildeo completa do Livro I da Ciropedia Palavras-chaves Romance antigo Romance de formaccedilatildeo Histoacuteria e Literatura Historiografia Xenofonte Ciropedia

8

ABSTRACT

The Xenophonrsquos Cyropaedia written in the fourth century BC it is a work of hybrid character in which fiction and history mingle with a lot of freedom Because of this it has been discussed what would be the best genre classification for the work biographical novel work of historiography historical novel This dissertation investigates the extent to which Cyropaedia Xenophons narrative has elements that allow us to recognize aspects of her romance genre specifically the ldquoNovel of Educationrdquo (Bildungsroman) genre whose paradigm is in the work Goethersquos Wilhelm Meisters Apprenticeship (1795-1796) First we looked to define to what extent we can read the Cyropaedia as a work of fiction and not as a work of historiography from reflections on the relationship between Literature and History and mainly through a comparative analysis between the narrative of Cyropaedia and the narrative of Herodotusrsquo Histories We realize that Xenophon fictionalizes the narrative established by Herodotus whether taking up subjects or alluding to the Herodotus narratives Then starting from the Bakhtins notion that every genre preserves in the structure formal elements of archaica that not only characterize the genre in the form distinctive but also allows its renewal every new literary manifestation we tried to define which essential elements present in modern novel of education we can find in Cyropaedia We analyze scenes where are evident the action of mentors the presence of an educational institution the theological view of education Moreover an important characteristic essential of the ldquoNovel of Educationrdquo is the presence of a dynamic and evolutionary character that get formation in the course of the narrative We analyzed the construction and evolution of the main character of the narrative Cyrus by the analyzing of the expression of maxims The dissertation presents a full translation of Book I of Cyropaedia Keywords Ancient novel Novel of education History and Literature Historiography Xenophon Cyropaedia

9

SUMAacuteRIO

INDIacuteCE DE FIGURAS E QUADROS 10

1 INTRODUCcedilAtildeO 11

2 INTRODUCcedilAtildeO Agrave CIROPEDIA 17

21 O AUTOR 17 211 Vida 17 212 Corpus Xenofontis 21

22 CIROPEDIA 24 221 O tiacutetulo 24 222 Siacutentese da narrativa 25 223 A Ciropedia e a ideologia poliacutetica do seacuteculo IV 29 224 A Ciropedia na tradiccedilatildeo da narrativa 33 2241 O conceito de romance e seu uso anacrocircnico 34 2242 A ficccedilatildeo em prosa na Greacutecia 37 2243 Modos de Imitaccedilatildeo da Ciropedia 42

3 REESCREVENDO O PASSADO FICCIONALIZANDO A HISTOacuteRIA 45

31 HISTOacuteRIA E LITERATURA 45 32 CIRO NA HISTOacuteRIA E NA FICCcedilAtildeO 55

321 O ΛόΓΟΣ DE CIRO NA HISTOacuteRIA DE HEROacuteDOTO 57 322 Origem e infacircncia de Ciro 58 323 A cena de Creso o encontro dos monarcas 64 3231 Preparativos 64 3232 Creso prisioneiro de Ciro 67 3233 A intertextualidade e a reescrita da histoacuteria 76 324 A Morte de Ciro 77

33 O CIRO EacutePICO E O CIRO TRAacuteGICO 80

4 CIROPEDIA UM ROMANCE DE FORMACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE 85

41 BILDUNGSROMAN E SUAS ORIGENS 86 42 A PAIDEacuteIA COMO TEMA DA NARRATIVA O PROEcircMIO (CIROP I11-6) 91 43 AS ARCHAICA DO ROMANCE DE FORMACcedilAtildeO 97

431 A Instituiccedilatildeo educacional a paideia persa e a consciecircncia teleoloacutegica 97 432 Enganos e desmedidas a participaccedilatildeo dos mentores 108 4321 Afastamento da casa paterna Visita agrave Meacutedia 112 4322 Cambises mentor de Ciro (Cirop 16) 116

44 O GRAU DE ASSIMILACcedilAtildeO DO TEMPO HISTOacuteRICO 125 45 XENOFONTE EDUCADOR 130

5 IMAGEM E EVOLUCcedilAtildeO DO HEROacuteI DA CIROPEDIA 133

51 A MAacuteXIMA ESTRUTURA E CONTEUacuteDO 134 52 O HEROacuteI-SAacuteBIO 139

521 Quem fala quem ouve o contexto das maacuteximas na Ciropedia 140

53 O PERCURSO DE CIRO A FORMACcedilAtildeO DO ΔΙΔάΣΚΑΛΟΣ 153

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 159

7 TRADUCcedilAtildeO 163

8 BIBLIOGRAFIA 187

81 EDICcedilOtildeES E TRADUCcedilOtildeES DE XENOFONTE 187

82 AUTORES ANTIGOS 187

83 OUTROS AUTORES 189

10

IacuteNDICE DE FIGURAS E QUADROS

FIGURAS Figura 1 Ciro na corte do rei Astiacuteages 63 Figura 2 Creso a ponto de ser incendiado a mando de Ciro Acircnfora grega 75 Figura 3 Ciro comandando o exeacutercito persa 124 Figura 4 Cilindro de Ciro 158 QUADROS Quadro 1 Maacuteximas da Ciropedia 139 Quadro 2 Maacuteximas de guerra proferidas por Ciro 154 Quadro 3 Maacuteximas gerais proferidas por Ciro 154

11

1 Introduccedilatildeo

Redescobrir uma obra literaacuteria que tem sido desvalorizada pela criacutetica eacute uma

tarefa aacuterdua a que o estudioso estaacute sujeito poreacutem uma tarefa intensamente gratificante

A presente Dissertaccedilatildeo de Mestrado trata da Ciropedia de Xenofonte que se na

Antiguidade e no Renascimento foi muito apreciada nos dois uacuteltimos seacuteculos tem sido

rotulada de obra tediosa graccedilas principalmente ao seu caraacuteter idealista

O nosso interesse pela Ciropedia de Xenofonte nasceu em virtude das relaccedilotildees

da obra com a origem do gecircnero do romance Pareceu-nos que a Ciropedia apresentava

importantes inovaccedilotildees no campo da narrativa ficcional do Ocidente Aleacutem disso alguns

criacuteticos como Lesky (1986) e Bakhtin (2010) a classificam como um romance de

formaccedilatildeo um dos principais subgecircneros do romance moderno Apesar disso a obra natildeo

tem recebido atenccedilatildeo dos estudiosos do romance e mesmo no acircmbito da literatura

antiga a obra natildeo tem dispertado o interesse dos pesquisadores Observe-se que em

liacutengua portuguesa natildeo haacute estudos a respeito de Xenofonte

A criacutetica norte-americana no entanto a partir do estudo de Higgins (1977)

mostrou uma nova postura em relaccedilatildeo agraves obras de Xenofonte como um todo Sobre a

Ciropedia podemos citar os importantes trabalhos de Tatum (1989) Due (1989) e Gera

(1993) Os trabalhos destes trecircs autores satildeo relevantes pois tomam a Ciropedia como

objeto de estudo literaacuterio nem histoacuterico nem filosoacutefico Por este vieacutes os trabalhos

revelaram um escritor muito superior agravequele que a criacutetica da Histoacuteria do iniacutecio do seacuteculo

XX quis apresentar Pretendemos portanto analisar a Ciropedia como uma obra

literaacuteria mais especificamente como uma narrativa ficcional Ressaltamos que a nosso

ver um estudo aprofundado desta obra pode ajudar-nos a compreender melhor as

origens do romance moderno

Xenofonte viveu e produziu suas obras na Greacutecia do seacuteculo IV periacuteodo de

profundas mudanccedilas sociais poliacuteticas e culturais que assistiu tanto agrave decadecircncia do

Seacuteculo de Ouro de Peacutericles quanto agrave pavimentaccedilatildeo de um solo feacutertil para o surgimento

do helenismo (GLOTZ 1980 p240) No helenismo os ideais ciacutevicos e coletivos do

seacuteculo V aC foram substituiacutedos por um individualismo novo cuja preocupaccedilatildeo maior

era com a vida particular do indiviacuteduo Xenofonte foi um precursor do helenismo tanto

por suas posturas na vida puacuteblica quanto pela sua produccedilatildeo literaacuteria Podemos dizer que

foi um homem de vanguarda que se distanciou das ideias do seacuteculo anterior e pelas

12

novidades que apresentou foi muito admirado pelos escritores do helenismo No

capiacutetulo 2 Introduccedilatildeo agrave Ciropedia apresentamos algumas informaccedilotildees biograacuteficas a

respeito de Xenofonte e a respeito do contexto histoacuterico em que Xenofonte viveu e

produziu suas obras Aleacutem disso mostramos a questatildeo da prosa ficcional na Greacutecia

claacutessica e como a Ciropedia se insere nesta tradiccedilatildeo

Uma das principais dificuldades que se potildee ao estudioso da Ciropedia eacute

classificar a obra quanto ao gecircnero A intensa polecircmica sobre o enquadramento geneacuterico

da Ciropedia deve-se principalmente ao fato de a obra tratar de um tema histoacuterico (a

vida de Ciro o Velho) com liberdade manipulando ficcionalmente o material histoacuterico

conhecido A partir disso a obra tem sido designada de diversas maneiras

historiografia biografia histoacuteria romanceada biografia romanceada romance

filosoacutefico romance didaacutetico tratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Neste trabalho

efetuamos uma anaacutelise literaacuteria da Ciropedia no que tange seus aspectos romanescos

procurando argumentar que por meio de tais aspectos a obra de Xenofonte pode ser

lida como um romance ou proto-romance1

Classificar a obra por um determinado vieacutes significa necessariamente rejeitar as

outras classificaccedilotildees propostas pelos criacuteticos Poreacutem natildeo significa que na tessitura

narrativa da obra os elementos discursivos daqueles outros gecircneros natildeo estejam

presentes todavia a presenccedila por exemplo de elementos historiograacuteficos natildeo eacute o fator

determinante de caracterizaccedilatildeo da obra uma vez que eles estatildeo romancizados nela ou

seja estatildeo a serviccedilo de uma proposta ficcional que difere dos objetivos do texto

historiograacutefico Constituem portanto como traccedilos estiliacutesticos que adornam a narrativa

mas que natildeo a enformam natildeo a determinam

A argumentaccedilatildeo de que a Ciropedia pode ser lida como um romance deve

entatildeo levar em conta a anacronia do uso terminoloacutegico do romance A palavra romance

data do seacuteculo XII dC e referiu-se primeiramente agraves produccedilotildees literaacuterias em liacutenguas

romacircnicas em oposiccedilatildeo agraves obras literaacuterias produzidas em liacutenguas claacutessicas neste

contexto o termo romance designava tanto narrativas em prosa quanto narrativas em

verso Apenas no seacuteculo XV o termo passa a designar narrativas de ficccedilatildeo em prosa

Neste sentido o romance tem sido teorizado como um fenocircmeno estritamente moderno

proacuteprio das sociedades burguesas Para Lukaacutecs (1999) a forma do romance estabelece

1 A falta de uma terminologia entre os antigos para definir as obras de ficccedilatildeo em prosa torna necessaacuterio o uso anacrocircnico do termo romance Ressaltamos que tal uso deve levar em conta determinadas ressalvas para que natildeo pareccedilamos ingecircnuos ao efetuar tal classificaccedilatildeo anacrocircnica

13

uma oposiccedilatildeo entre indiviacuteduo e sociedade entre os impulsos daquele frente agraves

imposiccedilotildees desta O heroacutei romanesco portanto eacute o heroacutei problemaacutetico que

contestando os valores impostos pela sociedade inicia uma querela interna ou externa

contra esta opressatildeo Estes aspectos segundo Lukaacutecs (1999) satildeo proacuteprios da sociedade

burguesa e portanto o romance eacute um fenocircmeno artiacutestico desta sociedade

A teoria do romance proposta por Bakhtin tem o meacuterito entre muitos outros de

ampliar esta visatildeo lukacseana do romance Bakhtin natildeo nega o caraacuteter moderno da

forma do romance poreacutem observa em seus trabalhos de poeacutetica histoacuterica que o discurso

romanesco eacute fruto de um desenvolvimento longo provindo mesmo da Antiguidade e

que se desenvolveu plenamente na Modernidade Isso significa que aleacutem do romance

moderno haacute outras formas romanescas antes deste romance que satildeo essenciais para a

formaccedilatildeo do gecircnero O surgimento de uma obra e a sua permanecircncia estabelecem novos

criteacuterios literaacuterios que satildeo imitados ou negados pelos novos escritores Neste sentido o

desenvolvimento discursivo do romance pode e deve ser pesquisado em outros acircmbitos

para aleacutem do romance moderno para que o compreendamos da forma mais ampla

possiacutevel Desse modo a teoria de Bakhtin cujo conceito de romance adotamos

estabelece criteacuterios de anaacutelise e conceitos fundamentais para o nosso estudo

Aleacutem disso as poeacuteticas claacutessicas natildeo se interessaram pelas narrativas de ficccedilatildeo

em prosa e o gecircnero natildeo foi reconhecido pelo cacircnone claacutessico Por causa disso natildeo haacute

na Antiguidade uma terminologia especiacutefica para as prosas ficcionais Palavras como

argumentum e πλάσμα (plaacutesma) foram usadas respectivamente por Macroacutebius e o

Imperador Juliano para se referirem ao romance idealista grego cuja produccedilatildeo data do

periacuteodo entre os seacuteculos I aC e IV dC Por isso para Whitmarsh (2008 p3) o uso

anacrocircnico do termo romance ou novel natildeo eacute soacute um roacutetulo conveniente mas tambeacutem

necessaacuterio para o trabalho do criacutetico Holzberg (2003 p11) a despeito do anacronismo

dos termos dada a semelhanccedila entre as formas antigas e modernas acredita que

devemos aceitar sem dificuldades tais anacronismos Para Holzberg (2003) o real

problema eacute discutir quais as obras da Antiguidade podem ser chamadas de romance O

conceito de gecircnero deve ser legitimado nesse contexto fixando criteacuterios precisos para a

classificaccedilatildeo dessas obras

Em geral reconhecem-se como romance na Antiguidade as narrativas idealistas

gregas Nestas narrativas o tema amoroso e o da viagem configuram-se como uma

unidade caracterizadora Um jovem casal apaixonado de compleiccedilatildeo e alma perfeitas eacute

14

separado pelas vicissitudes do acaso Na separaccedilatildeo enfrentam todo tipo de obstaacuteculos

para um possiacutevel reencontro poreacutem eles se preservam fieacuteis um ao outro ateacute que no

final vencidos todos os obstaacuteculos eles podem viver juntos e felizes Basicamente esta

estrutura estaacute presente nos romances As Etioacutepicas de Heliodoro Queacutereas e Caliacuterroe de

Caacuteriton de Afrodiacutesias Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio Daacutefnis e Cloeacute de Longo e

As Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso Acrescentam-se ainda duas obras latinas que

combinam os temas de amor e de aventura com a mordaz saacutetira da sociedade Satyricon

de Petrocircnio e O Asno de ouro de Apuleio Por causa deste caraacuteter homogecircneo na

estrutura interna e pela sua finalidade luacutedica Holzberg (2003) define estas obras como

novels proper ou seja romances de fato

Para Holzberg (2003) a relaccedilatildeo da Ciropedia com os novels proper eacute legitimada

pela presenccedila de uma narrativa secundaacuteria a narrativa de Panteacuteia e Abradatas De fato

interligada agrave narrativa principal esta narrativa secundaacuteria apresenta os principais

elementos do tema amoroso do romance idealista grego o amor puro dos protagonistas

que satildeo personagens completamente ficcionais a separaccedilatildeo dos namorados a fidelidade

constantemente posta agrave prova e por fim o reencontro dos apaixonados Esta narrativa

foi muito famosa na Antiguidade e segundo alguns teorizadores do romance antigo

serviu de modelo para o romance idealista grego

No entanto uma vez que a estrutura da Ciropedia natildeo se resume agrave estrutura de

narrativas amorosas erotikoi logoi mas abrange outras haacute dificuldade por parte dos

criacuteticos (por exemplo BRANDAtildeO 2005 GUAL 1988) em aceitaacute-la como um

romance propriamente dito Devemos portanto observar para aleacutem da estrutura da

narrativa amorosa outros elementos da Ciropedia que se configuram como ficcionais e

romanescos e por meio da anaacutelise destes eacute que poderemos compreender a obra de fato

Ao lado dos novels proper Holzberg (2003) chama a atenccedilatildeo para os novels

fringe romances perifeacutericos obras de ficccedilatildeo em prosa que apresentam natildeo soacute uma

variedade temaacutetica muito mais ampla do que a dos novels proper mas tambeacutem uma

aproximaccedilatildeo com outros gecircneros discursivos (historiografia filosofia etc) Esta

aproximaccedilatildeo dificulta a demarcaccedilatildeo de limites precisos nessas obras em que a ficccedilatildeo se

relaciona com algum objetivo didaacutetico ou informativo e assim Holzberg (2003) atribui

a este grupo as mais variadas obras a-) biografia ficcional Ciropedia de Xenofonte

Vida e Andanccedilas de Alexandre da Macedocircnia de Pseudo-Caliacutestenes Vida de Esopo

(anocircnimo) Vida de Apolocircnio de Tiana de Filoacutestrato Atos dos apoacutestolos apoacutecrifos b-)

15

autobiografia ficcional Pseudo-Clemente c-) Cartas ficcionais Cartas de Eacutesquines

Cartas de Quioacuten Cartas de Euriacutepides Cartas de Hipoacutecrates Cartas de Platatildeo Cartas

de Soacutecrates e dos socraacuteticos e Cartas de Temiacutestocles

Aleacutem da diferenccedila temaacutetica os novels proper narram a histoacuteria de personagens

completamente inventadas ao contraacuterio dos novels fringe que ficcionalizam um dado

material histoacuterico A mais antiga dos novels fringe eacute a Ciropedia de Xenofonte escrita

por volta de 360 aC

Portanto no capiacutetulo 3 Reescrevendo o passado ficcionalizando a histoacuteria

observaremos as relaccedilotildees entre a ficccedilatildeo e a histoacuteria uma vez que o narrador se utiliza de

dados histoacutericos na construccedilatildeo da ficccedilatildeo na Ciropedia e demonstraremos como a

histoacuteria eacute manipulada incrementada e embelezada com ficccedilatildeo Nosso objetivo neste

capiacutetulo eacute a partir da anaacutelise argumentar que a Ciropedia natildeo eacute uma narrativa

historiograacutefica nos moldes do projeto estabelecido por Heroacutedoto e desenvolvido por

Tuciacutedides mas uma narrativa ficcional de tema histoacuterico Isso significa que a ficccedilatildeo se

mescla ao texto histoacuterico e com ele se confunde por meio desta estrateacutegia narrativa o

leitor eacute persuadido da verdade dos fatos narrados pela obra ficcional natildeo da verdade

enquanto fato veriacutedico mas como construccedilatildeo verossiacutemil

O capiacutetulo 4 Ciropedia um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade e o

capiacutetulo 5 Imagem e evoluccedilatildeo do heroacutei da Ciropedia constituem um bloco temaacutetico

em nossa Dissertaccedilatildeo Ambos por meios diferentes tratam da trajetoacuteria e do caraacuteter da

personagem principal da narrativa o heroacutei da Ciropedia e em ambos demonstraremos

que Ciro natildeo eacute uma personagem estaacutetica formada desde o iniacutecio da narrativa mas uma

personagem dinacircmica que evolui no decorrer da narrativa A personagem dinacircmica eacute

segundo Bakhtin (2010) a principal caracteriacutestica do romance de formaccedilatildeo o que o

distingue dos outros tipos de romance

No capiacutetulo 4 Ciropedia um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade o nosso

foco eacute a possiacutevel classificaccedilatildeo da obra xenofonteana como romance de formaccedilatildeo

gecircnero moderno cujo paradigma eacute a obra Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister

de Goethe escrita no seacuteculo XVIII Para efetuarmos nossa anaacutelise recorreremos aos

estudos a respeito do romance de formaccedilatildeo para identificar as estruturas que ainda hoje

caracterizam o gecircnero Segundo Bakhtin (2010) todo gecircnero conserva na dinacircmica de

sua produccedilatildeo e reproduccedilatildeo determinadas estruturas que lhe satildeo caracterizadoras e satildeo

denominadas de archaica A permanecircncia destas estruturas natildeo eacute um fenocircmeno estaacutetico

poreacutem um fenocircmeno dinacircmico que se renova a cada nova manifestaccedilatildeo artiacutestica e

16

renovando-se permanecem como traccedilos distintivos do gecircnero Eacute por meio deste caraacuteter

de permanecircncia das estruturas que os leitores reconhecem se determinada obra pertence

ou natildeo a um gecircnero Aleacutem disso reconhecendo estes elementos podemos identificar a

histoacuteria do gecircnero os principais movimentos estruturais que determinam o

desenvolvimento da forma artiacutestica Desse modo a anaacutelise da archaica eacute fundamental

em um trabalho de poeacutetica histoacuterica

No capiacutetulo 5 Imagem e evoluccedilatildeo do heroacutei da Ciropedia analisaremos o

caraacuteter evolutivo de Ciro por meio do estudo de maacuteximas As maacuteximas configuram-se

como um discurso didaacutetico de grande potencial retoacuterico e apresentam na tessitura

narrativa da Ciropedia a nosso ver um importante papel na construccedilatildeo da personagem

principal Seraacute feito um levantamento das maacuteximas formuladas no decorrer de toda a

obra e uma avaliaccedilatildeo da forma como essas maacuteximas aparecem atentando-se para o

enunciador o destinataacuterio e o contexto de enunciaccedilatildeo e como elas participam da

formaccedilatildeo de Ciro Por meio desta anaacutelise poderemos observar a evoluccedilatildeo da

personagem

Segundo Aristoacuteteles na Retoacuterica as maacuteximas apresentam um caraacuteter eacutetico uma

vez que emitem um preceito moral decorrente de se pretender uma ldquonorma reconhecida

do conhecimento do mundordquo (LAUSBERG 1966 p235) Aleacutem disso por emitirem um

preceito moral natildeo soacute revelam as preferecircncias do orador mas o proacuteprio caraacuteter dele

Aleacutem disso como efeito retoacuterico as maacuteximas contecircm em si um elemento discursivo

extremamente poeacutetico que se relaciona muito menos com o conteuacutedo da mensagem do

que com a forma de sua expressatildeo Neste sentido o uso de maacuteximas aliado a outros

expedientes retoacutericos revela tambeacutem um esforccedilo de embelezar o discurso prosaico

A Ciropedia de Xenofonte eacute uma narrativa ficcional de caraacuteter idealizante que

trata da vida de Ciro o Velho fundador do Impeacuterio persa O principal interesse de

Xenofonte eacute discutir sobre a arte de governar poreacutem ao inveacutes de fazer um tratado sobre

o tema ele faz suas reflexotildees em forma de uma narrativa biograacutefica O tema da vida de

Ciro uma personagem especiacutefica do passado eacute representado como paradigma da arte de

governar Para efetuar esta representaccedilatildeo Xenofonte desatrela-se da fidelidade agrave

histoacuteria que para os antigos soacute pode ser alcanccedilada por meio da verdade e ficcionaliza

esse passado Eacute nosso objetivo portanto analisar como Xenofonte constroacutei a sua ficccedilatildeo

reconhecer os elementos romanescos e observar o grau de inovaccedilatildeo literaacuteria apresentado

por esta narrativa xenofonteana

17

2 Introduccedilatildeo agrave Ciropedia

Εἰ καὶ σέ Ξενοφῶν Κραναοῦ Κέκροπός τε πολῖται

φεύγειν κατέγνων τοῦ φίλου χάριν Κύρου

ἀλλὰ Κόρινθος ἔδεκτο φιλόξενος ᾗ σὺ φιληδῶν

(οὕτως ἀρέσκῃ) κεῖθι καὶ μένειν ἔγνως2 Dioacutegenes Laeacutercio

Antologia Palatina 7981

21 O autor

211 Vida

Xenofonte3 nasceu por volta de 430 aC na Aacutetica no demo de Eacuterquia4 em

plena guerra do Peloponeso Descendente de uma famiacutelia abastada de proprietaacuterios

rurais era filho de Grilo5 e acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense na primeira

fase de sua vida Sua origem e educaccedilatildeo aristocraacutetica emergem de forma clara por toda

sua obra ao condenar muitas das accedilotildees dos poliacuteticos democratas6 Conforme

comentaacuterio drsquoAs Helecircnicas7 (1994) Xenofonte participou da cavalaria ateniense tanto

na Liacutedia em 410 aC8 quanto ao lado dos oligarcas do Governo dos Trinta na

turbulenta Atenas poacutes-Peloponeso9 Para Jaeger (1995 p1144) a imagem filoespartana

de Xenofonte decorrente deste periacuteodo natildeo permitiu durante deacutecadas que o escritor

ateniense tivesse um contato paciacutefico com a paacutetria

2 Traduccedilatildeo nossa Se tambeacutem a ti Xenofonte os cidadatildeos de Cranau e Ceacutecropes Acusavam de fugir por causa do amigo Ciro Corinto hospitaleira te recebeu onde encontrando o prazer (a ponto de ficar satisfeito) ali resolveste permanecer 3 As informaccedilotildees a respeito da vida de Xenofonte satildeo conhecidas principalmente pela biografia que Dioacutegenes Laeacutercio dedica a ele no livro II de sua obra Vidas dos Filoacutesofos Ilustres (II 48-59) 4 O demo de Eacuterquia fica localizado entre Himeto montanha da Aacutetica e Pentele demo ateniense a quinze quilocircmetros de Atenas 5 Filoacutestrato na obra Vida dos Sofistas refere-se a Xenofonte apenas como ldquoo filho de Grilordquo (I 12 96) 6 Hutchinson (2000) cita como exemplo a criacutetica que nas Helecircnicas Xenofonte faz agrave condenaccedilatildeo dos vitoriosos generais de Arginusas em 406 aC que estes sofreram por natildeo terem retirado os corpos dos soldados do mar em plena tempestade 7 Hel I2 8 Hutchinson 2000 p14 9 Para Luciano Cacircnfora (2003 p40) a viagem de Xenofonte agrave Peacutersia para integrar-se ao exeacutercito de Ciro o Jovem vincula-se a sua participaccedilatildeo no governo dos Trinta Isso explicaria para ele o verdadeiro motivo de Xenofonte ter desobedecido ao conselho de Soacutecrates natildeo perguntando ao oraacuteculo de Delfos se deveria ou natildeo partir para a Peacutersia como o mestre aconselhara mas perguntando a quais deuses deveria sacrificar para retornar a salvo agrave Greacutecia

18

Durante sua juventude manteve contato com o ciacuterculo socraacutetico Os

ensinamentos de Soacutecrates ainda que natildeo tenham feito dele um filoacutesofo de fato como

Platatildeo e Antiacutestenes tiveram uma profunda influecircncia em sua personalidade10 A

respeito do primeiro encontro de Xenofonte com Soacutecrates Dioacutegenes Laeacutercio (1977)

narra a seguinte anedota (L II48) Soacutecrates caminhando pelas ruas de Atenas ao

deparar-se com Xenofonte11 barrou-lhe a passagem com um bastatildeo e perguntou-lhe

onde se adquire todo tipo de mercadorias (ποῦ πιπράσκοιτο τῶν προσφερομένων

ἕκαστον) Xenofonte indicou-lhe o caminho e Soacutecrates entatildeo lhe perguntou em que

lugar os homens tornavam-se excelentes (ποῦ δὲ καλοὶ κἀγαθοὶ γίνονται

ἄνθρωποι) e diante da perplexidade do jovem convidou-o a segui-lo12

Na primavera de 401aC Xenofonte se juntou com mais dez mil mercenaacuterios

gregos ao exeacutercito persa13 de Ciro o Jovem que tentava destronar seu irmatildeo

Artaxerxes II do trono persa Na batalha de Cunaxa apesar da vitoacuteria sobre os

inimigos Ciro foi morto Os aliados persas de Ciro natildeo tendo mais o seu liacuteder

renderam-se ao exeacutercito do rei Artaxerxes e os gregos se viram desamparados no

territoacuterio baacuterbaro Neste contexto os gregos elegeram Xenofonte como um de seus

novos generais que os guiaria em retirada atraveacutes da Aacutesia Menor14 em ldquo[] uma das

mais surpreendentes experiecircncias militares da histoacuteria []rdquo (HUTCHINSON 2000

p14)

Com a chegada do exeacutercito na estrateacutegica regiatildeo do Helesponto Xenofonte

entregou o exeacutercito de mercenaacuterios gregos agraves matildeos do rei espartano Agesilau que

naquele momento lutava contra os mesmos persas Em 396 aC por causa da guerra

contra Corinto Agesilau retornou agrave paacutetria e em 394 aC a cidade de Atenas aliada dos

10 Lesky 1986 p651 11 Em sua narrativa Dioacutegenes Laeacutercio natildeo elucida o que exatamente teria chamado a atenccedilatildeo de Soacutecrates em Xenofonte Poreacutem no iniacutecio de sua biografia ele afirma que Xenofonte era tido como um homem ldquoextremamente modesto e de oacutetima aparecircnciardquo (αἰδήμων δὲ καὶ εὐειδέστατος εἰς ὑπερβολήν) (L II48) 12 Para Luciano Cacircnfora ldquoNessa anedota na qual talvez pela primeira vez no Ocidente filosofia e mercadoria satildeo colocadas como antiacutepodas tem desde logo um clima de proselitismo e conversaccedilatildeo O encontro com o mestre configura um corte com o passadordquo (2003 p61) 13 ldquoNatildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino de sua vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde dos Persasrdquo (JAEGER 1995 p1142) 14 Ao alcanccedilarem o mar os gregos teriam gritado θἁλαττα θἁλαττα thaacutelatta thaacutelatta oh mar oh mar James Joyce em seu monumental Ulysses faz uma referecircncia a esta passagem quando Buck Mulligam ao observar da torre em que mora com Stephen Dedalus exclama em grego o citado vocativo Esta cena tambeacutem serviu de referecircncia para o poema ldquoMeergrussrdquo do livro Buch Der Lieder (Livros das Canccedilotildees) de Henrich Heine

19

beoacutecios travou batalha contra os espartanos e Xenofonte lutou contra os seus

compatriotas na batalha de Queroneacuteia Por causa da sua participaccedilatildeo na batalha

Xenofonte foi exilado de Atenas15 Em compensaccedilatildeo pelos altos serviccedilos prestados a

Esparta Xenofonte recebeu em homenagem a proxenia16 e um terreno em Escilunte

perto de Oliacutempia

Em Escilunte Xenofonte dedicou-se agrave vida de proprietaacuterio de terra ao exerciacutecio

da caccedila e da equitaccedilatildeo e a escrever seus textos literaacuterios17 Permaneceu ali ateacute 371 aC

quando Tebas derrotou Esparta na batalha de Leuctra sendo obrigado a viver em

Corinto Nesta eacutepoca entretanto como Tebas era inimiga tambeacutem de Atenas Atenas e

Esparta aproximaram suas relaccedilotildees e o exiacutelio de Xenofonte foi revogado Em 362 aC

na batalha de Mantineia Grilo filho de Xenofonte serviu na cavalaria ateniense e

morreu em combate A atuaccedilatildeo valorosa de Grilo na batalha segundo Dioacutegenes

Laeacutercio rendeu a ele vaacuterios epigramas18 Xenofonte morreu com aproximadamente 70

anos entre os anos de 359-355 aC Natildeo se sabe se de fato ele retornou a Atenas ou se

morreu em Corinto mas eacute provaacutevel que tenha retornado agrave cidade natal

Como observa Jaeger (1995) Xenofonte jaacute natildeo podia sentir-se integrado na

ordem tradicional da polis ateniense Segundo Glotz (1980 p269) o que sucede de

mais grave no seacuteculo IV para o regime poliacutetico da polis eacute o fato de que em face agraves

crescentes dificuldades do regime democraacutetico o individualismos se aprofunda19

sobrepujando as ideias de patriotismo Xenofonte eacute neste sentido o tipo perfeito de

grego deste periacuteodo desatado de qualquer laccedilo que o vincule agrave terra natal Abandonou

Atenas quando o impeacuterio se desfalecia interior e exteriormente e ldquo[] tomou em suas

15 Cacircnfora (2003) acredita que o exiacutelio de Xenofonte se deu em 399aC por ele ser partidaacuterio dos oligarcas em Atenas A maior parte da criacutetica no entanto seguindo as informaccedilotildees de Dioacutegenes Laeacutercio e a interpretaccedilatildeo claacutessica de Delebecque (1957) aceita a data de 394aC para seu exiacutelio relacionando-o agrave sua participaccedilatildeo na batalha de Queroneacuteia 16 O tiacutetulo de proxenia era dado aos estrangeiros que recebiam inuacutemeros privileacutegios da cidade a προεδρία (proedria) direito a lugar de honra nas festas puacuteblicas προδικία (prodikia) direito de prioridade perante os tribunais ἀσυλία (asylia) garantias contra o direito de captura ἀτέλεια (ateleia) isenccedilatildeo de taxas ἐνκτεσις γῆς τῆς οἰκίας (enktesis ges tes oikias) direito de adquirir imoacuteveis Em troca o cidadatildeo tornava-se patrono e protetor da cidade (JARDEacute 1977 p202) 17 Lesky (1986 p652) a despeito das informaccedilotildees dos antigos ndash principalmente Plutarco em Sobre el Destierro (1996) ndash acredita que a fase de maior produtividade de Xenofonte se deu com seu retorno a Atenas eacutepoca de sua vida sobre a qual temos menos informaccedilotildees No entanto a maior parte da criacutetica seguindo Delebecque (1957) manteacutem que Xenofonte compocircs suas obras em Escilunte 18 O proacuteprio Dioacutegenes levanta a questatildeo de que os que compuseram epigramas desejavam mais tornarem-se agradaacuteveis a Xenofonte do que tornar o nome de Grilo imortal 19 Glotz (1980) observa que o individualismo crescente na vida social grega tambeacutem influencia a literatura do seacuteculo IV justificando por esta tendecircncia o aparecimento dos escritos encomiaacutesticos e das novas tendecircncias da historiografia grega

20

matildeos a direccedilatildeo de sua proacutepria vida []rdquo (JAEGER 1995 p1143) Esta sua postura

inovadora no campo social tambeacutem se revela no acircmbito literaacuterio

Xenofonte era homem de muacuteltiplos interesses dono de uma linguagem clara

que lhe valeu o epiacuteteto na Antiguidade de ldquoMusa Aacuteticardquo O aacutetico xenofonteano

apresenta algumas diferenccedilas do aacutetico claacutessico pois uma vez que esteve afastado de

Atenas por muito tempo entrou em contato com outras regiotildees e dialetos Segundo

Gautier em sua obra La langue de Xenophon (apud SANSALVADOR 1987 p46) a

liacutengua de Xenofonte apresenta elementos doacutericos jocircnicos e ateacute particularidades

poeacuteticas Estas particularidades estranhas ao aacutetico claacutessico propiciaram ao autor a

oportunidade de enriquecer a liacutengua materna apontando conforme Lesky (1986 p656)

a κοινή a liacutengua comum do periacuteodo heleniacutestico

A liacutengua e o estilo de Xenofonte foram muito admirados na Antiguidade O

Suda o chama de ldquoabelha aacuteticardquo pela doccedilura de sua linguagem a que Ciacutecero jaacute aludira

no Orator (IX 22) Os gramaacuteticos da Antiguidade apreciavam sua simplicidade

Demeacutetrio (Sobre o estilo 137 181) admirava sua concisatildeo e solenidade aleacutem do ritmo

quase meacutetrico de algumas passagens

Quanto ao estilo Xenofonte foi influenciado tanto pelos sofistas quanto pelos

retores ldquo[] poreacutem seu caraacuteter ateniense o preservou de todo excesso levando-o a

utilizar os recursos da prosa artiacutestica com a maacutexima moderaccedilatildeo []rdquo

(SANSALVADOR 1987 p46) Xenofonte foi disciacutepulo de Proacutedico e talvez tenha

frequentado os cursos de Goacutergias cujo estilo exerceu forte influecircncia na prosa da

eacutepoca20 (SANSALVADOR 1987 p47) O uso de figuras de linguagem revela a

preocupaccedilatildeo esteacutetica do escritor que procurava tornar o texto natildeo soacute informativo mas

tambeacutem agradaacutevel a seus leitores

Aleacutem disso Xenofonte foi um escritor poliacutegrafo ndash o primeiro na Greacutecia ndash ou

seja sua produccedilatildeo abarca vaacuterios gecircneros literaacuterios ndash diaacutelogo socraacutetico banquete

encocircmio tratados narrativas A Ciropedia que eacute uma obra de maturidade de

Xenofonte combina em sua estrutura narrativa elementos destes outros gecircneros

literaacuterios que se mesclam agrave narrativa e de certa forma datildeo vivacidade a ela Satildeo os

20 Para Momigliano (1984 p12) o estilo da historiografia era regulado pelas normas da prosa retoacuterica diferenciando-se deste gecircnero discursivo pela finalidade Esta influecircncia da retoacuteria na historiografia demonstra a preocupaccedilatildeo dos historiadores com o embelezamento dos seus discursos ainda que este embelezamento natildeo seja o principal objetivo do historiador Cf Joly F D (Org) Histoacuteria e retoacuterica Ensaios sobre historiografia antiga (2007)

21

discursos21 os diaacutelogos socraacuteticos22 e os episoacutedios romanescos23 que natildeo surgem de

forma desconexa mas satildeo entrelaccedilados perfeitamente com a accedilatildeo principal da narrativa

(GERA 1993 p187) A experiecircncia obtida durante a escrita destas outras obras eacute

fundamental para o manejo consciente destes elementos dentro da narrativa principal da

Ciropedia

212 Corpus Xenofontis

A cronologia das obras de Xenofonte eacute incerta e por isso os criacuteticos tendem a

classificaacute-las de acordo com o estilo No entanto a classificaccedilatildeo quanto ao estilo

tambeacutem natildeo eacute segura como afirma Ana Lia A de A Prado (1999) Para fins didaacuteticos

a classificaccedilatildeo apresentada a seguir das obras de Xenofonte segue a adotada por Lesky

(1986 p652)

a-) Obras histoacutericas

Anaacutebase24 (Κύρου ἀνάβασις) considerada por alguns a mais bela obra de

Xenofonte esta narrativa memorialista trata da fuga dos mercenaacuterios atraveacutes da Peacutersia

apoacutes expediccedilatildeo frustrada de Ciro o Jovem contra seu irmatildeo Artaxerxes II

Helecircnicas (Ἐλλήνικα) a mais historiograacutefica das obras de Xenofonte conta a

histoacuteria da Greacutecia de 411 aC ateacute 362 aC continuando a narrativa de Tuciacutedides

exatamente do ponto em que este a deixou com a sua morte

21 O sentido de discurso aqui empregado eacute o de mensagem oral proferida perante uma assistecircncia Tanto a obra de Heroacutedoto quanto a de Tuciacutedides apresentam diversos discursos que entremeiam a narrativa Em geral estes discursos aparecem antes das batalhas retardando-as para criar o cliacutemax na narrativa e sendo uma influecircncia da eacutepica homeacuterica eacute um topos do gecircnero historiograacutefico 22 Xenofonte escreveu os diaacutelogos socraacuteticos Econocircmico Banquete Memoraacuteveis e Hieratildeo Este gecircnero proporciona maior vivacidade dinamismo e expressividade da linguagem Aparecem em geral relacionados a banquetes e nota-se a frequente preocupaccedilatildeo didaacutetica nos diaacutelogos marcada pela presenccedila de um mestre e um disciacutepulo Eacute importante ressaltar que na Ciropedia os diaacutelogos versam sobre temas gerais poreacutem conforme a anaacutelise feita por Gera (1993) o estilo destes diaacutelogos eacute o mesmo do usado naquelas obras citadas 23 Nestes episoacutedios Xenofonte procura comover e deleitar seus leitores com narrativas repletas de πάθος

(pathos) As narrativas apresentam ainda forte impressatildeo didaacutetica sempre ligadas agrave narrativa principal de Ciro Gera (1993 p197) analisando estas narrativas afirma que nelas Xenofonte tem uma preocupaccedilatildeo maior com a linguagem criando textos de grande valor esteacutetico Uma destas narrativas a de Panteacuteia foi muito imitada pelos romancistas gregos tendo-se notiacutecia de um romance perdido provavelmente do seacuteculo II dC que tinha como tiacutetulo o nome das personagens Panteacuteia e Araspas Cf Brandatildeo J L A invenccedilatildeo do romance (2005 p61) 24 Todas as obras de Xenofonte referidas aqui satildeo datadas da primeira metade do seacuteculo IV aC Agrave medida que pudermos apresentar mais precisatildeo em alguma obra vamos oferecer a possiacutevel data de escrita da obra

22

Agesilau (Αγησιλαος) encocircmio25 ao rei Agesilau de Esparta obra em que

Xenofonte revela forte retoricismo principalmente quando comparada agrave descriccedilatildeo da

mesma personagem feita pelo mesmo Xenofonte nas Helecircnicas

Constituiccedilatildeo dos Lacedemocircnios (Λακεδαιμονίων Πολιτεία) descriccedilatildeo das

leis espartanas na qual Xenofonte fala das causas do apogeu e da decadecircncia da cidade

de Esparta

Os recursos ou sobre as rendas (Πόροι ἢ περί προσόδων) cuja autenticidade

hoje jaacute natildeo se contesta eacute um escrito a respeito das financcedilas de Atenas procurando

solucionar seus problemas

b-) Obras didaacuteticas

Hipaacuterquicos (Ἱππαρχικος) texto dirigido aos comandantes da cavalaria

ateniense

Sobre a equitaccedilatildeo (περὶ ἱππιχῆς) um manual sobre a praacutetica da equitaccedilatildeo e do

modo de se tratar o cavalo para ter do animal um completo domiacutenio

Cinegeacutetico (Κυνηγέτικος) livro a respeito da praacutetica da caccedila Sua

autenticidade eacute contestada principalmente por causa da linguagem que se afasta da

habitual clareza e simplicidade agradaacutevel de Xenofonte

c-) Obras socraacuteticas

Econocircmico (Οἰκονόμικος) que teve muitos admiradores na Antiguidade eacute um

diaacutelogo sobre a administraccedilatildeo do casa (οἴκος) e por causa de seu caraacuteter teacutecnico

alguns criacuteticos como Lesky (1986) preferem classificaacute-la nas obras didaacuteticas de

Xenofonte

Memoraacuteveis (Ἀπομνημονεύματα Σώκρατους) obra feita de reminiscecircncias

do velho mestre Soacutecrates colocando-o no centro de diversas discussotildees nas quais

muitos dos temas de interesse de Xenofonte satildeo retomados

Apologia de Soacutecrates (Ἀπολογία Σώκρατους) como a obra homocircnima de

Platatildeo trata do julgamento de Soacutecrates

25 A retoacuterica antiga distinguia trecircs gecircneros de discurso em prosa judiciaacuterio deliberativo e o encocircmio ou epidiacutetico O epidiacutetico trata do elogio ou criacutetica a determinada pessoa puacuteblica Sua origem estaacute nas oraccedilotildees fuacutenebres Cf Reboul O Introduccedilatildeo agrave Retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 1998

23

Banquete (Συμπόσιον) diaacutelogo simposiaacutestico que trafega pelos principais

temas discutidos por Xenofonte em suas outras obras

Hieratildeo (Ἱερῶν) diaacutelogo no qual o tirano Hieratildeo e o poeta Simocircnides discutem a

respeito da tirania

Atribui-se ainda a Xenofonte por paralelismo com a Constituiccedilatildeo dos

Lacedemocircnios o texto Constituiccedilatildeo Ateniense (Ἑλλήνικα πολιτεία) poreacutem se aceita

que a obra seja espuacuteria e data do uacuteltimo quarto do seacuteculo V aC quando Xenofonte

deveria ter menos de vinte anos

Das obras de Xenofonte a mais difiacutecil de se classificar eacute a Ciropedia (Κύρου

Παιδέια) Lesky (1986) a classifica como uma obra histoacuterica pois o tema da

Ciropedia eacute a vida de Ciro o Velho imperador da Peacutersia No entanto Lesky reconhece

a dificuldade desta classificaccedilatildeo Ana Lia A de A Prado (1999) classifica-a como obra

didaacutetica em virtude do caraacuteter didaacutetico que sublinha a narrativa A obra ainda tem sido

chamada de biografia histoacuteria romanceada biografia romanceada romance filosoacutefico

romance didaacutetico tratado de educaccedilatildeo instituiccedilatildeo militar obra socraacutetica26

A influecircncia da Ciropedia na literatura posterior eacute sentida em obras como A vida

de Apolocircnia de Tiana (seacutec II) de Filoacutestrato No Renascimento a obra foi muito

traduzida e imitada inserindo-se como modelo dos romances de Feneloacuten As aventuras

de Telecircmaco (1694-1695) M de Scudery Artamene ou o grande Ciro (1649-1653) e

Wieland Agathon (1766) Wieland escreveu ainda um drama chamado de Araspas und

Panthea (1759) retomando a narrativa amorosa destas personagens da Ciropedia Esta

influecircncia de Xenofonte sobre Wieland eacute de particular interesse uma vez que o Agathon

de Wieland eacute classificado como uma das primeiras manifestaccedilotildees do Bildungsroman

alematildeo e teve grande influecircncia sobre o Wilhelm Meister de Goethe Aleacutem disso

Montaigne e Maquiavel principalmente em O Priacutencipe apreciavam as ideacuteias expressas

na Ciropedia Na literatura em liacutengua portuguesa podemos encontrar referecircncias agrave

Ciropedia em autores claacutessicos como Camotildees nrsquoOs Lusiacuteadas (1962 X 48-49) e

Claacuteudio Manoel da Costa em seu poema Vila Rica (2002 IV) Machado de Assis no

seu romance Esauacute e Jacoacute (1976) no capiacutetulo LXI intitulado Lendo Xenofonte

apresenta a personagem do Conselheiro Aires manuseando o texto grego do primeiro

capiacutetulo da Ciropedia No seacuteculo XX dois apreciadores das obras de Xenofonte satildeo 26 Cf a introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo de Marcel Bizos Belles Lettres 1972

24

Iacutetalo Calvino que lhe dedica um capiacutetulo na sua obra Por que ler os claacutessicos (1993) e

o escritor portuguecircs Aquilino Ribeiro que traduziu tanto a Ciropedia com o tiacutetulo de O

Priacutencipe Perfeito (1952) quanto a Anaacutebase com o tiacutetulo de A Retirada dos dez mil

(1957) Sobre a Anaacutebase eacute interessante a retomada desta narrativa no filme de Walter

Hill (1979) Selvagens da noite (The Warriors) em que o diretor transporta a narrativa

para um tempo futuro na cidade de Nova York dominada por gangues

22 Ciropedia

221 O tiacutetulo

ΚΥΡΟΥ ΠΑΙΔΕΙΑ27 (Cyrou paideia) eacute a forma tradicional com que nossa obra

de estudo eacute referida desde Aulo Geacutelio28 A maior parte das traduccedilotildees dessa obra procura

geralmente ou manter a transliteraccedilatildeo da liacutengua grega com o termo Ciropedia ou

traduzir o sentido dos termos por A Educaccedilatildeo de Ciro29 Alguns criacuteticos

(BREITENBACH 1966 BIZOS 1972) assinalam que este tiacutetulo conveacutem apenas ao

Livro I da narrativa jaacute que os objetivos dos outros livros seriam apresentar o ideal de

soldado e soberano a partir da figura exemplar de Ciro o Velho Para Marcel Bizos

(1972) o tiacutetulo que mais se adequaria agrave obra seria simplesmente Ciro seguindo a

tradiccedilatildeo das biografias retoacutericas do seacuteculo IV como a proacutepria obra de Xenofonte

Agesilau ou o Evaacutegoras de Isoacutecrates30

Outros autores como Higgins (1977) e Due (1989) interpretam o sentido de

educaccedilatildeo na obra de forma ampla compreendendo-a como um aprendizado atraveacutes da

vida Neste sentido o tiacutetulo seria coerente com o todo da narrativa Ana Vegas

Sansalvador (1987 p7) tem a mesma opiniatildeo e procura demonstraacute-la analisando o

27 Ciacutecero (1946 p203) em carta ao seu irmatildeo Quintus refere-se agrave obra apenas como Ciro Cyrus ille a Xenophonte non ad historiae finem scriptus 28 Cf Noches Aticas XIV 3 Neste capiacutetulo o autor trata da possiacutevel inimizade entre Xenofonte e Platatildeo atestada por outros bioacutegrafos 29 Das traduccedilotildees em portuguecircs Jaime Bruna (1965) prefere o tiacutetulo A Educaccedilatildeo de Ciro enquanto Joatildeo Feacutelix Pereira (1964) prefere Ciropedia Jaacute Aquilino Ribeiro (1952) inova ao nomear a sua traduccedilatildeo de O Priacutencipe Perfeito Adotaremos neste trabalho o tiacutetulo de Ciropedia a partir de agora 30 Tal interpretaccedilatildeo de Marcel Bizos em nossa opiniatildeo condiz apenas com o conteuacutedo da Ciropedia em comparaccedilatildeo com as narrativas biograacuteficas Demonstraremos no entanto em seu devido momento que do ponto de vista da forma narrativa a Ciropedia se distancia deste tipo de biografia

25

proecircmio da obra Para a autora em Ciropedia (I 1 6) Xenofonte estabelece os trecircs

aspectos fundamentais de sua investigaccedilatildeo ndash a linhagem (genean) as qualidades

naturais (phusin) e a educaccedilatildeo (paideia) A partir disso o narrador se compromete a

apresentar o desenvolvimento de seu heroacutei (Livro I) e seu modo de atuar entendido

como consequecircncia desse desenvolvimento (Livros II-VIII) Assim a educaccedilatildeo natildeo

seria apenas a participaccedilatildeo do jovem em instituiccedilotildees de ensino mas a caminhada pela

vida na qual os ensinamentos da juventude satildeo testados reavaliados e aprimorados

Bodil Due (1989 p15) analisando a descriccedilatildeo que Xenofonte faz da paideia31 persa

nos mostra que esta eacute um assunto puacuteblico cabendo ao Estado regulamentar os deveres

programas e funcionamento da comunidade para cada classe divididas por faixa etaacuteria

e que mesmo os mais velhos estatildeo sob a vigilacircncia contiacutenua em vista do

aperfeiccediloamento a paideia persa neste sentido prolonga-se atraveacutes da vida

222 Siacutentese da narrativa

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC O enredo trata da vida de Ciro o

Velho fundador do Impeacuterio persa desde o seu nascimento ateacute sua morte

O Livro I abre com um proecircmio (Livro I 11-6) no qual o narrador reflete

sobre as dificuldades de se governar concluindo que esta eacute uma tarefa aacuterdua mas natildeo

impossiacutevel pois descobriu em sua pesquisa que existiu certo Ciro que se fez respeitar e

amar pelos suacuteditos de seu Impeacuterio No capiacutetulo 2 narra-se a genealogia e as qualidades

naturais de Ciro e o sistema educacional persa pelo qual Ciro como cidadatildeo teria

passado Nos capiacutetulos 3 e 4 narra-se de modo romanesco a visita de Ciro agrave corte de seu

avocirc materno Astiacuteages rei da Meacutedia32 Ciro decide permanecer na Meacutedia para

aperfeiccediloar-se e tornar-se o melhor quando retornasse agrave Peacutersia Eacute interessante que Ciro

revela agrave sua matildee os limites da educaccedilatildeo persa e justifica a sua estadia na Meacutedia pelo

complemento da sua educaccedilatildeo No Capiacutetulo 4 (16-24) quando estava com quinze ou

dezesseis anos Ciro participa com extraordinaacuteria bravura de sua primeira expediccedilatildeo

beacutelica Apoacutes essa experiecircncia Ciro retorna agrave Peacutersia (I 5) prosseguindo sua formaccedilatildeo 31 A παιδεία segundo Jaeger (1995) eacute um projeto de educaccedilatildeo que visava agrave formaccedilatildeo do homem em todas as suas dimensotildees A palavra aparece apenas no seacuteculo V aC poreacutem reflete preocupaccedilotildees que jaacute encontramos em Homero 32 A Meacutedia eacute a antiga regiatildeo da Aacutesia entre o mar Hircacircnion e a Peacutersia Na versatildeo de Heroacutedoto apoacutes ser dominada por Ciro passou a fazer parte do Impeacuterio persa Jaacute na versatildeo de Xenofonte ela passa a fazer parte do Impeacuterio persa por meio de uma alianccedila quando Ciro se casa com a filha de Ciaxares

26

ciacutevica e moral de acordo com o sistema educacional descrito no capiacutetulo 2

distinguindo-se dos seus compatriotas no cumprimento dos seus deveres Apoacutes dez

anos Ciro eacute escolhido pelos anciatildeos do conselho para liderar o exeacutercito persa na

alianccedila com a Meacutedia em guerra contra a Assiacuteria (I 52-5) e faz seu primeiro discurso

como liacuteder aos principais generais (I 56-14) Por fim o uacuteltimo capiacutetulo do primeiro

livro eacute um longo diaacutelogo entre Ciro e seu pai Cambises e este enquanto acompanha seu

filho ateacute a fronteira da Peacutersia com a Meacutedia expotildee as qualidades que devem adornar um

bom chefe militar e os conhecimentos para obter a obediecircncia de seus soldados

O Livro II e o Livro III (este ateacute o capiacutetulo 3 paraacutegrafo 9) formam uma unidade

temaacutetica O capiacutetulo 1 do Livro II inicia-se com o relato dos preparativos para a

campanha Haacute um cataacutelogo dos inimigos e dos aliados (II 15-6) e as primeiras atuaccedilotildees

de Ciro como chefe militar resolvendo a falta de contingente equipando os soldados

rasos com o mesmo armamento dos soldados de elite (II 19) e organizando concursos e

recompensas para fomentar a emulaccedilatildeo e treinar seus homens (II 111-18) No capiacutetulo

2 daacute-se lugar a um simpoacutesio na tenda de Ciro na qual se reuacutenem os principais generais

do exeacutercito que narram pequenas e divertidas anedotas da vida cotidiana do exeacutercito

Apoacutes Ciro acertar com os seus subordinados a forma de divisatildeo dos espoacutelios (II 3)

inicia-se a campanha da Armecircnia (II 4 ndash III 1) antiga aliada da Meacutedia que se negava a

pagar os impostos cobrados pelos aliados e sua submissatildeo a Ciro que tem seu ponto

alto no diaacutelogo entre Ciro e Tigranes filho do rei Armecircnio que tenta salvar seu pai do

julgamento em que Ciro representa o papel de juiz No Livro 3 capiacutetulo 2 relata-se a

expediccedilatildeo agrave Caldeia em que Ciro conclui a paz entre a Armecircnia e a Caldeia

Do Livro III 39 ateacute o Livro V 136 a narrativa trata da expediccedilatildeo agrave Assiacuteria

Comeccedila com os preparativos o discurso exortativo a discussatildeo entre Ciro e Ciaxares a

respeito da taacutetica que se deve seguir (III 39-55) prossegue com a marcha contra o

inimigo e a primeira batalha que garante a vitoacuteria aos persas (III 356 - IV 118) A

despeito do temor de Ciaxares Ciro junto com alguns voluntaacuterios medos persegue os

inimigos (IV 119-24) e consegue o apoio dos hircanos ex-aliados dos assiacuterios (IV 2)

Nos capiacutetulos 3 4 e 5 do Livro IV Ciro projeta e organiza uma cavalaria persa nestes

capiacutetulos se contrastam a figura de Ciaxares incapaz e ciumento do ecircxito de Ciro e

este empreendedor e triunfante No capiacutetulo 6 (Livro IV) conta-se a histoacuteria de

Goacutebrias o desertor do rei Assiacuterio O filho de Goacutebrias fora assassinado pelo rei Assiacuterio

pois ficara com ciuacutemes da beleza do jovem A uacuteltima seccedilatildeo do livro IV (611-12) narra a

27

divisatildeo de espoacutelio e fica-se sabendo que a Ciro coube a dama de Susa a mulher mais

formosa da Aacutesia Panteacuteia

O Livro V se inicia com a narrativa da bela Panteacuteia propriamente dita Ciro

convoca Araspas para guardar Panteacuteia Os dois travam um diaacutelogo a respeito do amor e

apesar das advertecircncias de Ciro sobre os perigos de Eros Araspas se apaixona pela bela

prisioneira Entrementes continua a campanha contra a Assiacuteria com Goacutebrias dando

valiosas informaccedilotildees sobre aquele paiacutes a Ciro (V 2) que resulta em enfrentamentos de

menor importacircncia (V 3) e no aliciamento do assiacuterio Gadatas que assim como Goacutebrias

tinha motivos de sobra para odiar o rei Assiacuterio (V 38 - V 4) Em V 5 Ciaxares e Ciro

restabelecem a alianccedila apoacutes Ciro convencecirc-lo de que sua inveja eacute infundada

Do Livro VI ateacute o Livro VII 1 2 a obra se refere agrave campanha a Sardes capital

da Liacutedia Apoacutes os primeiros preparativos (VI 131-55) a narrativa retorna as

personagens de Araspas e Panteacuteia Ciro aproveitando que seu soldado apaixonara-se

pela bela prisioneira envia-o como espiatildeo dos inimigos Panteacuteia grata por Ciro ter

garantido sua dignidade diante dos ataques apaixonados de Araspas envia uma carta ao

seu marido Abradatas que trai o rei Assiacuterio indo juntar-se ao exeacutercito de Ciro

Abradatas se prepara com a armadura feita do ouro das joacuteias da esposa para ser o

melhor aliado possiacutevel para Ciro Segue-se a narraccedilatildeo de corte teacutecnico-militar com Ciro

fortalecendo seu exeacutercito com os aliados da India (VI 2) o treinamento dos soldados

(VI 24-8) a organizaccedilatildeo para a batalha (VI 223-41) a ordem de marcha (VI 31-4) e

as uacuteltimas exortaccedilotildees e instruccedilotildees de Ciro (VI 412 - VII 122) Em VI 42-11 Panteacuteia

despede-se de Abradatas que parte para a batalha na posiccedilatildeo mais perigosa de luta

O primeiro capiacutetulo do Livro VII narra a batalha de Sardes com a morte de

Abradatas pelos egiacutepcios (VII 129-32) Ciro derrota o inimigo e toma a cidade (VII

136 - VII 214) ele se encontra com o rei da Liacutedia Creso (VII 215-29) e Panteacuteia

apoacutes velar seu esposo se suicida (VII 3 4-16)

A partir de VII 4 ateacute VII 536 narra-se a marcha para a Babilocircnia e a

submissatildeo dos povos das regiotildees pelas quais Ciro atravessa a Caacuteria as Friacutegias a

Capadoacutecia e a Araacutebia A partir desse ponto Ciro torna-se soberano assentando-se no

trono da Babilocircnia (VII 537-69) granjeando o favor dos suacuteditos e tomando medidas

para manter a unidade do Impeacuterio (VII 570-86) Goacutebrias e Gadatas se vingam do rei

Assiacuterio matando-o

O Livro VIII trata da organizaccedilatildeo da corte (VIII 11-8) e prossegue com a

organizaccedilatildeo do Impeacuterio (VIII 19 - VIII 228) Em VIII 31-34 narra-se o desfile

28

triunfal com toda a magnificecircncia completando a imagem de um Ciro no cume da

gloacuteria Depois de um banquete com seus amigos de sempre (VIII 4) Ciro retorna agrave

Peacutersia e agrave Meacutedia formalizando uma uniatildeo com este paiacutes ao casar-se com a filha de

Ciaxares (VIII 5) Em VIII 6 Ciro estabelece uma instituiccedilatildeo sem precedentes a

satrapia para controlar as diversas proviacutencias do Impeacuterio O capiacutetulo 7 deste Livro VIII

apresenta Ciro jaacute anciatildeo perto de uma morte natural em sua cama e rodeado por seus

filhos discursa a eles suas uacuteltimas palavras estabelecendo a sucessatildeo de seu trono

A narrativa termina com um Epiacutelogo (VIII 8) no qual o narrador descreve a

decadecircncia do Impeacuterio apoacutes a morte de Ciro atribuindo-a agrave perda dos valores morais

por parte tanto dos suacuteditos quanto dos seus governantes valores estes que fizeram

possiacutevel a gloacuteria passada

O Epiacutelogo tem sido objeto de muita discussatildeo por parte dos criacuteticos que se

dividem em aceitaacute-lo como texto autecircntico de Xenofonte (DELEBECQUE 1957

BREITENBACH 1966 SANSALVADOR 1987) ou como espuacuterio um acreacutescimo

posterior dos comentadores (HEacuteMARDINQUER 1872 BIZOS 1972) Alguns

tradutores como Jaime Bruna (1965) considerando espuacuterio o texto natildeo o apresentam

em suas traduccedilotildees terminando a obra no capiacutetulo 7 do Livro VIII Os estudiosos alegam

que o epiacutelogo apresenta traccedilos que destoam do tom idealista do resto da obra Jaeger

(1995 p1157) no entanto observa que a estrutura do epiacutelogo eacute a mesma da estrutura

do epiacutelogo da Constituiccedilatildeo dos Lacedemocircnios e que eacute improvaacutevel que ambas as obras

tenham sofrido acreacutescimos idecircnticos posteriormente

Compartilhamos a posiccedilatildeo que aceita o epiacutelogo como autecircntico pois a base das

contradiccedilotildees eacute soacute aparente (SANSALVADOR 1987 DELEBECQUE 1957) e

respondem a um interesse do autor em contrastar o passado esplendoroso com o

momento atual por meio da expressatildeo ἕτι καὶ νῦν ldquoainda hojerdquo O Epiacutelogo se

concentra no contraste do passado glorioso com a decadecircncia atual do Impeacuterio

Delebecque (1957) estabelece que o ἕτι καὶ νῦν se refere agrave Peacutersia liderada pelo

soberano Artaxerxes II que na visatildeo de Xenofonte encarnava a decadecircncia do Impeacuterio

aludindo-se ao seu despotismo e deslealdade (VIII 8 4) e agrave revolta das proviacutencias

ocidentais do Impeacuterio que teria ocorrido entre 362-361 aC

Devemos notar por outro lado que Xenofonte dirigia-se a um puacuteblico grego

principalmente ateniense que outrora tambeacutem fora um grande e glorioso impeacuterio

poreacutem assistia naquela eacutepoca agrave decadecircncia de sua poliacutetica Talvez nosso autor como

29

antes fizera Aristoacutefanes em suas comeacutedias pretendesse apresentar uma advertecircncia aos

proacuteprios atenienses mostrando-lhes que a gloacuteria do passado estava intimamente

relacionada com princiacutepios morais que a tradiccedilatildeo transmitia e que a decadecircncia decorria

do desapego destes mesmos princiacutepios

Bodil Due (1989 p16) defende a autenticidade do Epiacutelogo como produto

natural do desenvolvimento da obra reconhecendo tanto o estilo de Xenofonte por meio

de vocabulaacuterio e construccedilotildees sintaacuteticas quanto a continuaccedilatildeo do plano inicial

estabelecido por Xenofonte no proecircmio O objeto de pesquisa era o ato de governar os

homens ἄρχειν ἀνθρώπων (archeim anthropon) e os governantes fazerem-se

obedecer πείθεσθαι τοῖς ἄρχουσι (peithesthai tois archousi) Para Due a

decadecircncia moral apresentada por Xenofonte relaciona-se agrave incapacidade dos liacutederes

ldquopoacutes-Cirordquo de conseguirem a obediecircncia de seus suacuteditos pois os costumes morais e

ciacutevicos instituiacutedos por Ciro deixaram de ser respeitados

Assim compreendido o Epiacutelogo forma juntamente com o Proecircmio uma moldura

ao redor da vida de Ciro e esta passa a ser um ldquoquadrordquo que ilustra as ideias contidas

nesta moldura

223 A Ciropedia e a ideologia poliacutetica do seacuteculo IV

A biografia de um escritor estaacute sempre inserida em um contexto histoacuterico cujos

impulsos sociais determinam mais ou menos o modo do escritor ver a realidade Por

isso nesta seccedilatildeo procuraremos expor as principais correntes ideoloacutegicas do seacuteculo IV

para associarmos as preocupaccedilotildees dos homens da eacutepoca agrave experiecircncia singular da vida

de Xenofonte Eacute importante este comentaacuterio ainda que sumaacuterio pois demonstraraacute que a

arte de governar natildeo eacute um tema caro apenas a Xenofonte pois outros autores do seacuteculo

IV aC procuraram refletir sobre este tema Aleacutem disso estas referecircncias datildeo um

suporte seguro sobre o qual podemos ler a Ciropedia como uma ficccedilatildeo idealizada

De modo geral podemos dizer que a Ciropedia eacute o resultado de constantes

indagaccedilotildees de Xenofonte a respeito da arte de governar A importacircncia do elemento

pessoal para a confecccedilatildeo das obras de Xenofonte eacute notada pelo tom memorialista de

suas obras (LESKY 1986 SANSALVADOR 1987) A experiecircncia de vida eacute o motor

temaacutetico de produccedilatildeo de Xenofonte Na Ciropedia cujo tema se estende no tempo

30

histoacuterico a experiecircncia aparece tanto na ficionalizaccedilatildeo da histoacuteria quanto na

aproximaccedilatildeo que o autor faz da cultura grega com a cultura persa33

Quando participou do exeacutercito de Ciro o Jovem Xenofonte entrou

provavelmente em contato com numerosas tradiccedilotildees orais que tinham no centro a figura

de Ciro o Velho A Christensen (1936 apud SANSALVADOR 1987) ressalta a

influecircncia da eacutepica iraniana na Ciropedia em especial nas narrativas secundaacuterias Aleacutem

disso a participaccedilatildeo efetiva nesta campanha teria ensinado a Xenofonte as dificuldades

inerentes agrave arte de governar Sansalvador (1987) assinala que quando se compara a

Ciropedia com a Anaacutebase muitos dos incidentes que resultaram em malogro nesta

uacuteltima satildeo reavaliados e corrigidos naquela Para Sansalvador (1987 p38)

Natildeo eacute em vatildeo que se chegou a dizer que a Ciropedia era menos uma histoacuteria de Ciro o Velho do que o sonho do que teria feito Ciro o Jovem vencer ou que a Ciropedia eacute uma teoria das ideacuteias poliacuteticas e militares suscitada pela Anaacutebase no pensamento de Xenofonte

Natildeo podemos esquecer no entanto que Atenas vivia um periacuteodo de profundas

atribulaccedilotildees poliacuteticas e que estes contratempos marcaram decisivamente a forma de

Xenofonte compreender a poliacutetica Os uacuteltimos anos da Guerra do Peloponeso (435-404

aC) foram marcados por conflitos internos em Atenas com a constante disputa pelo

poder primeiro a subida dos Oligarcas ao poder no Governo dos Trezentos (411 aC)

em seguida o governo misto dos Cinco Mil (410 aC) ao qual Tuciacutedides se refere

como uma saacutebia mescla de oligarquia e democracia34 seguiu-se a retomada do poder

dos democratas mais radicais em 410 aC e por fim o retorno da Oligarquia com o

Governo dos Trinta (404 aC) sob o impulso do apoio espartano Apoacutes alguns meses de

terror os democratas35 retomaram o poder Poreacutem a democracia moderada que se

instaurou cometeu em seu nome tantos excessos e horrores36 que natildeo encontrou nos

principais intelectuais da eacutepoca defensor algum Neste ambiente nada mais natural que

autores como Platatildeo Isoacutecrates e Xenofonte procurassem expor suas ideias a respeito

33 Cf o Capiacutetulo 431 de nossa Dissertaccedilatildeo em que fazemos uma anaacutelise mais aprofundada a respeito desta aproximaccedilatildeo feita por Xenofonte e das implicaccedilotildees desta nova concepccedilatildeo cultural na estrutura educacional persa descrita na obra 34 Cf Tuciacutedides Histoacuteria da Guerra do Peloponeso VII97-98 Trad Mario da Gama Kury Brasiacutelia Ed UNB 1986 35 A democracia restaurada aparentemente manteve-se em vigor ateacute a invasatildeo da Macedocircnia Natildeo significa isso que o periacuteodo foi de total calmaria mas sim de revoluccedilatildeo das estruturas sociais Cf G Glotz A cidade grega Satildeo PauloRio de Janeiro Difel 1980 C Mosseacute Atenas A histoacuteria de uma democracia Brasiacutelia Ed UnB 1970 36 O mais famoso destes excessos eacute a condenaccedilatildeo de Soacutecrates Cf O Julgamento de Soacutecrates de I F Stone Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2005

31

do que seria o governo ideal e o meio de se alcanccedilaacute-lo37 se posicionando contra o

regime democraacutetico

O regime poliacutetico dos persas descrito nos primeiros livros da Ciropedia tinha

pouco a ver com a realidade histoacuterica Ao contraacuterio da esperada tirania o governo persa

na Ciropedia eacute composto como uma oligarquia moderada ou seja o poder que o

monarca exerce eacute regulamentado por leis Sua atuaccedilatildeo estaacute restrita agraves leis e agrave supervisatildeo

dos anciatildeos38 A distinccedilatildeo entre a administraccedilatildeo poliacutetica da Peacutersia e da Meacutedia aparece

em Ciropedia I 3 18 quando Mandane matildee de Ciro lhe diz

[18] ldquoMas filho natildeo satildeo as mesmas coisas aqui e na Peacutersia que satildeo acordadas como justas Pois seu avocirc de um lado faz-se deacutespota de todos na Meacutedia de outro na Peacutersia considera-se justiccedila possuir a igualdade E o teu pai eacute o primeiro a fazer o que foi ordenado pela cidade e a aceitar o que foi ordenado pois a medida dele eacute a lei natildeo a paixatildeo De modo que portanto natildeo morras tu sendo chicoteado quando em casa estiveres depois de chegares tendo apreendido da parte do avocirc a tirania na qual haacute a crenccedila de que eacute necessaacuterio possuir mais do que todos e eacute por isso contraacuterio agrave realeza39

Assim na Peacutersia o rei tem os mesmos direitos dos outros cidadatildeos pois se

considera justo ldquopossuir a igualdaderdquo (ison ekhein) e os mesmos deveres pois ldquoa

medida dele eacute a lei natildeo a paixatildeordquo ou seja as accedilotildees do governante eram limitadas pelas

leis O governante regido pela ψυχή40 (psyche) eacute movido pelas suas paixotildees41

distancia-se do caminho da justiccedila pois nesta constituiccedilatildeo eacute o proacuteprio desejo do rei

que eacute a lei

37 Tambeacutem Platatildeo apresenta nrsquoA Repuacuteblica as suas reflexotildees sobre a poliacutetica ideal assim como Isoacutecrates que no Panegiacuterico versa sobre este tema 38 Nas Memoraacuteveis IV 6 12 o Soacutecrates xenofonteano descreve esta forma de governo como a ideal 39 No original [18] ἀλλ᾽ οὐ ταὐτά ἔφη ὦ παῖ παρὰ τῷ πάππῳ καὶ ἐν Πέρσαις δίκαια

ὁμολογεῖται οὗτος μὲν γὰρ τῶν ἐν Μήδοις πάντων ἑαυτὸν δεσπότην πεποίηκεν ἐν

Πέρσαις δὲ τὸ ἴσον ἔχειν δίκαιον νομίζεται καὶ ὁ σὸς πρῶτος πατὴρ τὰ τεταγμένα μὲν ποιεῖ

τῇ πόλει τὰ τεταγμένα δὲ λαμβάνει μέτρον δὲ αὐτῷ οὐχ ἡ ψυχὴ ἀλλ᾽ ὁ νόμος ἐστίν ὅπως

οὖν μὴ ἀπολῇ μαστιγούμενος ἐπειδὰν οἴκοι ᾖς ἂν παρὰ τούτου μαθὼν ἥκῃς ἀντὶ τοῦ

βασιλικοῦ τὸ τυραννικόν ἐν ᾧ ἐστι τὸ πλέον οἴεσθαι χρῆναι πάντων ἔχειν (Cirop 1318) 40 Segundo o dicionaacuterio A Bailly o termo ψυχή pode ser traduzido por ldquoalmardquo no sentido de espiacuterito que daacute vida aos seres Poreacutem uma das acepccedilotildees eacute a de ldquoalmardquo como sede dos sentimentos das paixotildees desejos 41 Aleacutem de Astiacuteages rei da Meacutedia os outros reis principalmente os inimigos de Ciro satildeo apresentados na obra como deacutespotas neste sentido de governar segundo suas paixotildees Esta eacute a caracteriacutestica dos homens desmedidos ὑβριστής e se constitui entre as principais caracteriacutesticas com que o Oriente eacute descrito pelo Ocidente (SAID 2008)

32

A figura idealizada de Ciro na Ciropedia eacute fruto da inovadora aproximaccedilatildeo feita

por Xenofonte da virtude (ἀρετή arete) persa aos elementos da mais alta virtude grega

da καλοκαγαθία (kalokagathia) eliminando os aspectos negativos da cultura persa

Como afirma Jaeger (1995 p1148)

Embora transpareccedila constantemente em Xenofonte o orgulho nacional e a feacute na superioridade da cultura e do talento gregos ele estaacute muito longe de pensar que a verdadeira areteacute seja um dom dos deuses depositado no berccedilo de qualquer burguezinho helecircnico Na sua pintura dos melhores Persas ressalta por toda a parte o que nele despertou o seu trato com os representantes mais notaacuteveis daquela naccedilatildeo a impressatildeo de que a autecircntica kalokagathiacutea constitui sempre no mundo inteiro algo de muito raro a flor suprema da forma e da cultura humanas a qual soacute floresce de modo completo nas criaturas mais nobres de uma raccedila

O conceito de homem grego no seacuteculo IV aC amplia-se para aleacutem dos muros

da Heacutelade Isoacutecrates no Panegiacuterico 50 afirma que os povos que participam da paideia

recebem o nome de gregos com maior propriedade do que os proacuteprios gregos Tambeacutem

natildeo podia passar despercebido que ldquo[] a grandeza dos Persas reside em terem sabido

criar um escol de cultura e formaccedilatildeo humana []rdquo (JAEGER 1995 p1148) Xenofonte

ensaia uma cultura globalizada na qual o melhor de cada povo acorreria para a formaccedilatildeo

do liacuteder ideal42 As qualidades do soberano ideal traccediladas por Xenofonte trafegam tanto

pela helenofilia quanto pela areteacute persa a piedade (εὐσέβεια eusebeia) a justiccedila43

(δικαιοσύνε dikaiosyne) o respeito (αἰδώς aidos) a generosidade44 (εὐεργεσία

euergesia) a gentileza (πραότης praotes) a obediecircncia (πειθώ peitho) e a

continecircncia (ενκράτεια enkrateia)

Segundo Collingwood (1981 p45) no helenismo os gregos observaratildeo os

baacuterbaros como detentores de uma cultura vaacutelida da qual os gregos tambeacutem podem

apreender valiosos ensinamentos Para os gregos do seacuteculo V aC em especial

Heroacutedoto o baacuterbaro surgia apenas como contraste como elemento valorativo da sua

42 A ideia da intercomunicaccedilatildeo de culturas perpassa de algum modo pela proacutepria obra figurativizada na experiecircncia da infacircncia de Ciro em contato com a cultura dos medos A despeito do efeito pateacutetico do luxo desmedido dos medos Ciro aprende com eles ensinamentos valiosos que o distinguiraacute dos persas que foram educados apenas na instituiccedilatildeo educacional do Estado persa Veremos mais agrave frente que a supremacia de Ciro eacute fruto da intercomunicaccedilatildeo da cultura persa e meda 43 A justiccedila eacute a principal meta da educaccedilatildeo dos persas em contraste com a educaccedilatildeo ateniense que se centrava na aprendizagem da γραμματική τέχνή 44 A generosidade eacute apresentada na Ciropedia por meio de qualidades mais concretas φιλανθροπία

φιλομαθία φιλοτίμια

33

proacutepria cultura O baacuterbaro surgia pelo exotismo natildeo pela ἀρετή Segundo Edward Said

(2008) o orientalismo eacute um discurso estruturalmente formado e reforccedilado pelo e para o

Ocidente sobre o Oriente em que se constroacuteem uma incisiva relaccedilatildeo de poder de uma

cultura sobre a outra O Oriente nesse sentido eacute uma invenccedilatildeo do Ocidente

estigmatizado pelo exotismo e pela inferioridade como lugar de episoacutedios romanescos

seres exoacuteticos lembranccedilas e paisagens encantadas e extraordinaacuterias (SAID 2008 p27)

Concluiacutemos que Xenofonte em vista de expor as suas ideias a respeito do

governo ideal procurou associar elementos gregos e persas A idelizaccedilatildeo de Ciro

portanto eacute consequumlecircncia e causa da ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria Com isso Xenofonte

negligenciou tambeacutem a principal lei da histoacuteria a fidelidade agrave verdade Como observa

Fancan um dos primeiros teoacutericos do romance europeu no seacuteculo XVIII

Concordo que louvem agrave vontade entre outros a Ciropedia de Xenofonte por causa do proveito oriundo da sua leitura contanto que confessem tambeacutem que este autor lanccedilou por escrito natildeo quem foi Ciro mas o que Ciro deveria ser (FANCAN apud CANDIDO 1989 p98)

224 A Ciropedia na tradiccedilatildeo da narrativa

Jaacute assinalamos anteriormente a dificuldade dos criacuteticos em classificar a

Ciropedia quanto ao gecircnero A dificuldade quanto ao enquadramento geneacuterico da

Ciropedia reside principalmente no fato de a obra tratar de um tema histoacuterico (a vida

de Ciro) com liberdade manipulando ficcionalmente o material histoacuterico conhecido

Nesta subseccedilatildeo apontaremos como a Ciropedia se insere na tradiccedilatildeo narrativa do

Ocidente buscando compreender as relaccedilotildees da obra com o gecircnero do romance Neste

percurso eacute inevitaacutevel e essencial refletir a respeito das questotildees entre ficccedilatildeo e histoacuteria

Nossa preocupaccedilatildeo eacute definir a Ciropedia como uma obra ficcional em conformidade

com Due (1989) Stadtler (2010) Tatum (1989) e Gera (2003)

Neste percurso de anaacutelise procuraremos conciliar com as reflexotildees sobre o

romance propriamente dito a interpretaccedilatildeo dos antigos a respeito dos seus proacuteprios

gecircneros Aleacutem disso fazem-se necessaacuterios alguns esclarecimentos a respeito da

34

terminologia para que natildeo pareccedila uma enorme anacronia ndash e ingenuidade ndash chamar uma

obra do seacuteculo IV aC de romance

2241 O conceito de romance e seu uso anacrocircnico

Na Antiguidade natildeo havia uma terminologia especiacutefica para a prosa ficcional

Para Whitmarsh (2008 p3) a ausecircncia de um termo proacuteprio para este tipo de produccedilatildeo

literaacuterio torna o uso anacrocircnico do termo romance (em inglecircs novel) necessaacuterio para o

estudioso Todavia acreditamos que mais do que rotular a obra do passado o uso

anacrocircnico de um termo nos permite observar a preacute-histoacuteria do gecircnero no caso do

gecircnero do romance As formas literaacuterias passam por um intenso processo de formaccedilatildeo

ateacute que encontram o momento histoacuterico propiacutecio para a sua formulaccedilatildeo literaacuteria e

esteacutetica caracterizadora A eacutepica homeacuterica por exemplo eacute um momento posterior de

um longo processo de tradiccedilatildeo oral que se desenvolveu ateacute encontrar em Homero a sua

mais perfeita realizaccedilatildeo Neste sentido eacute necessaacuterio termos a consciecircncia dos limites do

uso da terminologia estabelecendo as suas devidas ressalvas

O surgimento da palavra romance no seacuteculo XII estaacute ligado agraves literaturas de

liacutenguas romacircnicas em oposiccedilatildeo agrave literatura escrita em latim (romanice loqui latine

loqui) Por conseguinte o romance opotildee-se agravequeles gecircneros discursivos que foram

produzidos pela Antiguidade e que ainda eram aceitos como verdadeira literatura Aleacutem

disso o termo implicava uma ldquomodalidade de gecircnero narrativo ficcional cuja

intencionalidade baacutesica seria o divertimentordquo (BRANDAtildeO 2005 p25) Assim o

romance designa desde o comeccedilo uma forma de discurso literaacuterio nova moderna em

oposiccedilatildeo aos gecircneros da Antiguidade Natildeo havia no entanto distinccedilatildeo entre as

narrativas em verso e em prosa distinccedilatildeo esta que comeccedila a surgir no seacuteculo XV com

os romances de cavalaria em prosa tomando o sentido moderno a partir do seacuteculo XVII

com a publicaccedilatildeo do Dom Quixote de Cervantes (GOFF 1972 p164) Diante desse

fato ldquo[] alguns estudiosos consequentemente ainda hoje refutam chamar as prosas

narrativas da Antiguidade como ldquoromancesrdquo ou ldquonovelas []rdquo45 (HOLZBERG 2003

p11)

45 No original ldquoSome scholars consequently still refuse now to talk of the prose narratives of antiquity as ldquoromancesrdquo or ldquonovelsrdquordquo

35

Holzberg entretanto a despeito do anacronismo dos termos mas mediante a

semelhanccedila entre as formas antigas e modernas acredita que devemos consentir com os

anacronismos (HOLZBERG 2003 p11) Para o criacutetico o real problema eacute discutir quais

obras da Antiguidade podem ser chamadas de romance O conceito de gecircnero deve ser

legitimado nesse contexto fixando criteacuterios para a classificaccedilatildeo destas obras

O romance como gecircnero seacuterio do cacircnone literaacuterio se afirma apenas com o

desenvolvimento da sociedade burguesa nos seacuteculos XVIII e XIX Para Georg Lukaacutecs

em seu artigo O romance como epopeia burguesa (1999 p87) embora existam obras

em muitos aspectos semelhantes aos romances na Antiguidade e na Idade Meacutedia todas

as contradiccedilotildees da sociedade burguesa encontram sua expressatildeo neste gecircnero

provocando mudanccedilas tatildeo sensiacuteveis agraves formas narrativas que ldquo[] se pode aqui falar de

uma forma artiacutestica substancialmente nova []rdquo No romance o caraacuteter poeacutetico da

epopeia eacute substituiacutedo pelo caraacuteter prosaico da modernidade O caraacuteter poeacutetico da

epopeia eacute caracterizado segundo Lukaacutecs ndash que retoma as concepccedilotildees esteacuteticas de Hegel

ndash pela totalidade extensiva da vida pois nela os desejos do heroacutei e as ambiccedilotildees da

sociedade encontram-se espontaneamente ligados (LUKAacuteCS 2009 p55) Na sociedade

moderna ao contraacuterio o caraacuteter prosaico eacute fruto da desagregaccedilatildeo do indiviacuteduo com a

sociedade e o romance deve retratar a realidade prosaica e a luta do indiviacuteduo contra

esta mesma realidade (LUKAacuteCS 1999 p91) Desse modo apesar do romance ldquo[]

apresentar todos os elementos caracteriacutesticos da forma eacutepica [] [e aspirar] os mesmos

fins a que aspira a epopeia antiga []rdquo (1999 p93) o produto romanesco eacute oposto

daquele da epopeia uma vez que as contradiccedilotildees sociais jaacute referidas impedem a

totalidade extensiva da vida a conjunccedilatildeo harmocircnica entre o homem e o mundo que eacute

caracteriacutestico da epopeia O destino do homem na epopeia estaacute em conjunccedilatildeo com o

destino da sociedade os impulsos do indiviacuteduo satildeo os mesmos da sociedade

Bakhtin (1998 p425) tambeacutem considera que ldquoUm dos principais temas

interiores do romance eacute justamente o tema da inadequaccedilatildeo de um homem ao seu destino

ou sua posiccedilatildeo []rdquo poreacutem esta desagregaccedilatildeo eacute apenas um tema fundamental e

produtivo para seu desenvolvimento moderno mas que natildeo abarca todas as

possibilidades romanescas Para o teoacuterico russo ainda que o gecircnero se afirme com a

sociedade burguesa a forma romanesca surge muito antes desenvolvendo-se em

variados processos literaacuterios e culturais ateacute encontrar no romance moderno a sua forma

mais apropriada Isso significa que o romance moderno eacute uma das formas mais

produtivas da eacutepica poreacutem natildeo a uacutenica e sua formaccedilatildeo e desenvolvimento satildeo

36

devedoras de diversas formas literaacuterias Em Epos e Romance Bakhtin (1998 p427)

afirma que a principal diferenccedila entre a epopeia e o romance estaacute na distacircncia entre o

autor e o passado enquanto a epopeia constroacutei uma distacircncia eacutepica entre o presente e o

passado que eacute absoluto e fechado o romance se formou no processo de destruiccedilatildeo da

distacircncia eacutepica representando tanto o passado quanto o presente como uma realidade

inacabada A partir desta definiccedilatildeo Bakhtin natildeo receia em chamar de romance uma

variedade muito ampla tanto histoacuterica como formal de narrativas inclusive a

Ciropedia cuja ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria eacute para Bakhtin marca essencial do caraacuteter

romanesco da obra pois destroacutei a distacircncia entre o presente do autor e o passado do

narrado O passado eacute aproximado pelo presente inacabado com suas contradiccedilotildees e

interesses que deformam aquele passado Desse modo Bakhtin amplia o conceito de

romance para aleacutem daquela especificidade lukacseana

Em A Natureza da Narrativa (1977) os estudiosos Scholes e Kellogg comentam

que escrever sobre a tradiccedilatildeo da narrativa no Ocidente eacute de certa forma escrever sobre

a genealogia do romance jaacute que tem sido este o gecircnero dominante na literatura do

Ocidente nos uacuteltimos seacuteculos No entanto eles observam que o conceito de narrativa

que se centraliza no romance ldquo[] nos aparta da literatura narrativa do passado e da

cultura do passado [] [assim como] nos separa da literatura do futuro e mesmo da

vanguarda de nossos proacuteprios dias []rdquo (SCHOLES KELLOGG 1977 p5)

Procurando portanto outra abordagem Scholes e Kellogg natildeo encaram o romance

como um produto final das formas narrativas anteriores mas como uma possibilidade

narrativa que encontrou na Idade Moderna solo propiacutecio para se firmar e afirmar

Assim a definiccedilatildeo de narrativa por eles proposta permite a generalizaccedilatildeo necessaacuteria

para abarcar as mais variadas formas de narrativa ldquoEntendemos por narrativa todas as

obras literaacuterias marcadas por duas caracteriacutesticas a presenccedila de uma estoacuteria e de um

contador de estoacuterias []rdquo (SCHOLES KELLOGG 1977 p1) Brandatildeo (2005 p33)

acrescenta ainda uma terceira categoria a do destinataacuterio ou narrataacuterio

O romance eacute antes de tudo uma narrativa ficcional em prosa uma das formas

do epos que se divide (e se modifica) em uma grande quantidade de formas literaacuterias

Ao utilizarmos portanto a terminologia romance noacutes temos em vista seu caraacuteter

formal miacutenimo das narrativas e principalmente a aproximaccedilatildeo do passado histoacuterico por

meio da ficccedilatildeo

37

2242 A ficccedilatildeo em prosa na Greacutecia

Na Antiguidade segundo Holzberg a ficccedilatildeo soacute se constroacutei como gecircnero

autocircnomo ou seja desvinculado da historiografia e da filosofia a partir do seacuteculo II

dC A dataccedilatildeo destas narrativas eacute incerta variando de criacutetico para criacutetico Muito

provavelmente estas primeiras narrativas surgiram nos seacuteculos I ou II aC e essa

produccedilatildeo desenvolveu-se ateacute o seacuteculo IV dC

Como gecircnero autocircnomo sua principal finalidade mas natildeo uacutenica eacute a expressatildeo

esteacutetica o luacutedico A narrativa em prosa que antes estava vinculada agrave histoacuteria e agrave

filosofia volta-se neste momento tambeacutem ao domiacutenio da ficccedilatildeo (BRANDAtildeO 2005

p30) Desse modo o corpus do romance grego antigo eacute representado pelas obras As

Etioacutepicas de Heliodoro Queacutereas e Caliacuterroe de Caacuteriton de Afrodiacutesias Leucipe e

Clitofonte de Aquiles Taacutecio Daacutefnis e Cloeacute de Longo e As Efesiacuteacas de Xenofonte de

Eacutefeso Essas obras satildeo denominadas de romances idealistas gregos e apresentam uma

estrutura em comum a uniatildeo do tema amoroso e do tema da viagem Acrescenta-se a

este grupo os romances latinos Satyricon de Petrocircnio e O Asno de ouro de Apuleio que

aleacutem de parodiarem os temas de amor e de aventura do romance idealista apresentam

uma mordaz saacutetira da sociedade romana Por este caraacuteter homogecircneo de sua estrutura

interna Holzberg define estas obras como proper novels (romances de fato)

Ao lado dos proper novels Holzberg chama a atenccedilatildeo para os fringe novels

romances perifeacutericos obras de ficccedilatildeo em prosa que apresentam natildeo soacute uma variedade

temaacutetica muito mais ampla do que a do proper novels mas tambeacutem uma aproximaccedilatildeo

com outros gecircneros (historiografia filosofia etc) o que torna o caraacuteter fronteiriccedilo

destas obras Nestas narrativas a ficccedilatildeo se relaciona com algum objetivo didaacutetico ou

informativo Neste conjunto Holzberg arrola as mais variadas obras a-) biografia

ficcional Ciropedia de Xenofonte Vida e Andanccedilas de Alexandre da Macedocircnia de

Pseudo-Caliacutestenes Vida de Esopo (anocircnimo) Vida de Apolocircnio de Tiana de Filoacutestrato

Atos dos apoacutestolos apoacutecrifos b-) autobiografia ficcional Pseudo-Clemente c-)

Cartas ficcionais Cartas de Eacutesquines Cartas de Quioacuten Cartas de Euriacutepides Cartas

de Hipoacutecrates Cartas de Platatildeo Cartas de Soacutecrates e dos socraacuteticos e Cartas de

Temiacutestocles

Aleacutem desta diferenccedila temaacutetica os proper novels narram a histoacuteria de

personagens completamente inventadas (nem miacuteticas nem histoacutericas) com particular

ecircnfase nos aspectos eroacuteticos ndash amor ideal dos jovens sua separaccedilatildeo e os obstaacuteculos para

38

o reencontro (WHITMARSH 2008 p3) ndash ao contraacuterio dos fringe novels que

ficcionalizam um dado material histoacuterico A mais antiga manifestaccedilatildeo de um fringe

novel eacute Ciropedia de Xenofonte escrita por volta de 360 aC

A relaccedilatildeo da Ciropedia com o romance ideal grego os proper novels pode ser

demonstrada por algumas razotildees primeiramente os mais antigos romancistas gregos

estabeleceram uma conexatildeo mais ou menos expliacutecita com Xenofonte Caacuteriton conhecia

e imitou certas partes da Ciropedia enquanto que o nome Xenofonte serviu como

pseudocircnimo para alguns dos romancistas (TATUM 1994 p15) Em segundo lugar

pela presenccedila da narrativa secundaacuteria de Panteacuteia e Abradatas na tessitura narrativa da

Ciropedia Esta narrativa secundaacuteria apresenta os principais elementos do tema amoroso

do romance idealista grego o amor puro dos protagonistas que satildeo personagens

completamente ficcionais a separaccedilatildeo dos namorados a fidelidade eacute constantemente

posta agrave prova e por fim o reencontro dos apaixonados

No entanto uma vez que a estrutura da Ciropedia natildeo se resume a estrutura dos

ἐρότικοι λόγοι (erotikoi logoi) mas abrange outras estruturas narrativas haacute

dificuldade por parte dos criacuteticos (BRANDAtildeO 2005 GUAL 1988 HOLZBERG

1993) em aceitaacute-la como um romance propriamente dito Para Jacyntho Lins Brandatildeo

haacute em Heroacutedoto e Xenofonte assim como tambeacutem nos historiadores helenistas ldquo[]

trechos claramente romanceados envoltos entretanto num enquadramento histoacuterico

[]rdquo (2005 p165) O enquadramento histoacuterico a que se refere Brandatildeo (2005)

concede ao texto uma finalidade diferente da finalidade do texto romanesco pois

determina que o objetivo da narrativa natildeo seja o prazeroso e o agradaacutevel poreacutem o uacutetil46

O uacutetil se alcanccedila apenas com a verdade Nesta perspectiva os elementos romanescos em

Xenofonte seriam traccedilos estiliacutesticos aqui e ali revisitados que embelezam o discurso

mas natildeo o determinam

Poreacutem a clara idealizaccedilatildeo da personagem Ciro revela que o autor tinha outros

propoacutesitos aleacutem do da verdade histoacuterica e sua utilidade do ponto de vista histoacuterico e

que esta em verdade natildeo determina o estatuto da obra poreacutem estaacute a serviccedilo como

estrateacutegia discursiva do propoacutesito ficcional da narrativa Discutiremos no Capiacutetulo 3 de

nossa Dissertaccedilatildeo a respeito de como a idealizaccedilatildeo com que Ciro eacute apresentado estaacute

intimamente ligada a processos de ficcionalizaccedilatildeo do material histoacuterico

46 Cf Luciano de Samoacutestata Como se deve escrever a histoacuteria Belo Horizonte Tessitura 2009

39

O Ciro pintado por Xenofonte estaacute mais proacuteximo do heroacutei de uma gesta heroica

do que de uma personagem real (GERA 1993 CHRISTENSEN 1957) isto em virtude

dos elementos idealizantes da narrativa A Ciropedia portanto apresenta tanto

caracteriacutesticas romacircnticas quanto idealistas antecipando o caraacuteter essencial da temaacutetica

do romance grego Em nossa opiniatildeo a escolha de um tema histoacuterico por parte de

Xenofonte estaacute intimamente ligada ao estatuto da ficccedilatildeo no seacuteculo V e IV aC Quando

Xenofonte escreve suas obras a ficccedilatildeo natildeo eacute tema das narrativas em prosa mas da

poesia seja dramaacutetica seja liacuterica (DrsquoONOFRIO 1976 BOWERSOCK 1994)

A ficccedilatildeo estabelece o reino do ψεῦδος (pseudos) mentira que unida a

verossimilhanccedila cria o efeito de verdade ἀληθήα (alethea) Os historiadores do

seacuteculo V procuraram dissociar-se dos gecircneros poeacuteticos depurando pelo λόγος (loacutegos)

o passado histoacuterico Desse modo o discurso em prosa eacute um discurso que se pretende

verdadeiro No entanto por exemplo nas Histoacuterias de Heroacutedoto haacute prazerosas

narrativas que deveriam em seu puacuteblico de ouvintes repercutir como belas histoacuterias

inventadas iguais as aventuras que Odisseu narrava aos feaacutecios Entretanto Heroacutedoto

reserva o maravilhoso agravequilo que natildeo pode ser comprovado pela visatildeo e pela

investigaccedilatildeo (ἱστορίη historie) A etimologia da palavra ἱστορίη relaciona-se com o

vocaacutebulo ἵστωρ (histor) aquele que viu algo a testemunha Portanto a ficccedilatildeo na

historiografia de Heroacutedoto faz parte do incerto uma mentira que se assume como natildeo

comprovaacutevel por testemunhas

Para pensar no estatuto ficcional dos gecircneros literaacuterios natildeo devemos nos

esquecer de um gecircnero que se desenvolveu no seacuteculo V e que mesmo em prosa

procurava assumir as qualidades dos textos poeacuteticos o discurso epidiacutetico Segundo

Roland Barthes (1975 p149) Goacutergias ao compor seu Elogio de Helena estabelece agrave

prosa o direito de ser natildeo apenas uacutetil mas tambeacutem agradaacutevel O gecircnero epidiacutetico (para

os romanos encomiaacutestico) marca o aparecimento de uma prosa decorativa com

finalidade esteacutetica

O desenvolvimento deste gecircnero epidiacutetico estimulou a criaccedilatildeo de um tipo de

narrativa em prosa cujo tema eacute o elogio de uma personagem histoacuterica e ilustre a

biografia47 As primeiras obras que surgiram com este tema satildeo o Evaacutegoras de

47 O termo biografia aparece pela primeira vez na Vida de Alexandre de Plutarco no seacuteculo II Segundo Momigliano (1993) as formas biograacuteficas anteriores a Plutarco satildeo denominadas pelos antigos como gecircnero epidiacutetico ou encocircmio Neste trabalho trataremos todas as obras com caraacuteter biograacutefico sejam posteriores sejam anteriores a Plutarco como biografia

40

Isoacutecrates48 e o Agesilau de Xenofonte Aleacutem de narrarem a vida de uma personagem

ilustre e real as biografias apresentam tambeacutem um caraacuteter didaacutetico pois os homens

ilustres escolhidos devem servir de modelo para os leitores (CARINO 1999) O gecircnero

biograacutefico portanto une agrave utilidade didaacutetica a preocupaccedilatildeo esteacutetica pois se origina do

gecircnero epidiacutetico Precisamos agora relacionar o gecircnero biograacutefico agrave ficccedilatildeo

O tema da biografia como o da historiografia eacute um tema da histoacuteria do

passado No entanto como satildeo gecircneros diferentes a forma e o sentido destes gecircneros

satildeo construiacutedos e se dirigem para puacuteblicos diferentes Como nos lembra Linda

Hutcheon (1991 p122) ldquo[] o sentido e a forma natildeo estatildeo nos acontecimentos mas

nos sistemas que transformam esses lsquoacontecimentosrsquo passados em lsquofatosrsquo histoacutericos

presentes []rdquo Momigliano em seu livro The development of the ancient biography

(1993 p 55) afirma que a biografia adquiriu um novo significado quando no seacuteculo IV

aC os bioacutegrafos ligados a Soacutecrates trafegavam com liberdade os limites entre verdade

e ficccedilatildeo A biografia era direcionada para capturar as potencialidades tanto quanto a

realidade da vida individual A fronteira entre ficccedilatildeo e realidade foi mais diluiacuteda na

biografia do que na historiografia e a expectativa do leitor para cada um dos gecircneros

deveria ser diferente Assim o que os leitores esperavam da biografia era diferente do

que esperavam das histoacuterias poliacuteticas Enquanto a historiografia tratava de temas

poliacuteticos e militares pois estes eram os feitos grandiosos dos homens os bioacutegrafos

tratavam da vida particular dos homens ilustres O puacuteblico da biografia queria

informaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo os casos de amor e o caraacuteter de seus heroacuteis Mas essas

informaccedilotildees satildeo menos faacuteceis de se documentar do que guerras e reformas poliacuteticas e se

os bioacutegrafos quisessem manter seu puacuteblico eles deveriam se utilizar da ficccedilatildeo

(MOMIGLIANO 1993 p57)

Tomemos o testemunho de Poliacutebio Em suas Histoacuterias 1021 Poliacutebio afirma que

escreveu sobre Filopoimen49 uma obra em trecircs livros na qual revela a natureza desta

personagem de qual descendecircncia provinha e qual a natureza da sua educaccedilatildeo aleacutem de

seus feitos mais famosos Poreacutem nesta obra isto eacute nas Histoacuterias que eacute uma obra

historiograacutefica ldquo[] eacute adequado (πρέπον prepon) subtrair (ἀφελεῖν aphelein) toda

48 No Evaacutegoras Isoacutecrates afirma que o objetivo de sua obra eacute encomiar com palavras a virtude de um homem e que nenhum autor jaacute escrevera sobre este tema Aleacutem disso nos paraacutegros 8-12 Isoacutecrates procura asseguar ao orador do encocircmio os mesmos recursos estiliacutesticos dos poetas para que dessa forma o discurso seja reconhecido pelas suas qualidades esteacuteticas 49 Filopoimen (253-183) foi general e poliacutetico grego que ocupou o cargo de estratego da Liga Aqueia em oito ocasiotildees Em 183 foi aprosionado em uma expediccedilatildeo agrave Messecircnia e obrigado a beber cicuta

41

quota sobre a sua formaccedilatildeo juvenil [] para que o que eacute caracteriacutestico de cada uma das

composiccedilotildees seja respeitado []rdquo Aleacutem desta constataccedilatildeo temaacutetica Poliacutebio ainda

acrescenta que em sua obra anterior escrita em forma encomiaacutestica (ἐγκωμιαστικός

enkomiastikos) impunha (ἀπῄτει apeitei) uma narraccedilatildeo (ἀπολογισμόν

apologismon) sumaacuteria (τὸν κεφαλαιώδη kefalaiode) e exagerada (amplificaccedilatildeo) dos

fatos (μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων metrsquo aukseseos ton prakseon) enquanto que na

obra presente que eacute uma histoacuteria (ἱστορίας historias) os elogios e as censuras

(ἐπαίνου καὶ ψόγου epainou kai psogou) satildeo distribuiacutedos imparcialmente visando agrave

verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ dzetei ton alethe)

Poliacutebio distingue conscientemente o encocircmio da histoacuteria pelo criteacuterio de verdade

dos fatos enquanto a Histoacuteria deve sempre visar agrave verdade pois eacute esta que garante a

utilidade da Histoacuteria ao encocircmio eacute permitido amplificar os fatos exageraacute-los ou

inventaacute-los desde que estes revelem o caraacuteter do homem biografado O interesse do

historiador eacute a verdade dos fatos o do encomiaacutesta eacute o caraacuteter do homem Para alcanccedilar

este objetivo o bioacutegrafo se utiliza de diversos modos de ficcionalizar este passado

Desse modo compreendemos que haacute no gecircnero biograacutefico um importante

desenvolvimento ficcional da narrativa em prosa na Greacutecia que natildeo deve ser

menosprezado pelo criacutetico literaacuterio A biografia em virtude de sua origem epidiacutetica

estava mais preocupada com valores esteacuteticos e didaacuteticos do que com a utilidade da

verdade

O tema da Ciropedia natildeo eacute a histoacuteria dos povos como as obras de Heroacutedoto e de

Tuciacutedides mas a vida de um homem ilustre Ciro Afasta-se deste modo dos temas

historiograacuteficos e se aproxima dos temas da biografia No proecircmio da Ciropedia o

narrador afirma que

[6] Em vista de esse homem ser merecedor de admiraccedilatildeo noacutes examinamos de qual famiacutelia era qual natureza possuiacutea e em que tipo de educaccedilatildeo foi instruiacutedo a tal ponto que se distinguiu no governar os homens Portanto o quanto noacutes averiguamos e o quanto julgamos ter compreendido sobre ele tentaremos discorrer 50 (Cirop 11 6)

50 Nas referecircncias agrave obra Ciropedia passaremos a fazer a abreviaccedilatildeo Cirop No original ἡμεῖς μὲν δὴ

ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδρα ἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν

τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶς παιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν

ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα

πειρασόμεθα διηγήσασθαι

42

O tema da Ciropedia portanto eacute a vida (βίος bios) de Ciro o homem (ἀνδρα

andra) que foi digno da admiraccedilatildeo do narrador O narrador divide seu material em trecircs

temas principais a genealogia γένεαν (geacutenean) a natureza φύσιν (phyacutesin) e a

educaccedilatildeo παιδεία (paideia) Segundo Menandro Reacutetor (1996) em seu segundo tratado

sobre o gecircnero epidiacutetico γένεαν φύσιν e παιδέια satildeo toacutepoi do gecircnero epidiacutetico

Portanto o narrador da Ciropedia jaacute assinala aos leitores que eles devem esperar da

narrativa natildeo dados histoacutericos precisos mas a narrativa da vida particular da

personagem e que esta revelaraacute o verdadeiro caraacuteter do heroacutei

2243 Modos de Imitaccedilatildeo da Ciropedia

A combinaccedilatildeo de ficccedilatildeo e histoacuteria entretanto natildeo eacute exclusividade desta obra

mas segundo Momigliano eacute proacutepria do gecircnero da biografia antiga e portanto deve ser

entendida como um fator de novidade na literatura do seacuteculo IV aC A nosso ver a

novidade apresentada pela Ciropedia estaacute em aliar esta temaacutetica da biografia ao modo

de imitaccedilatildeo executado na narrativa51 pois o modo de imitaccedilatildeo da Ciropedia difere do

modelo apresentado pelas biografias anteriores

Para compreendermos esta afirmaccedilatildeo pensemos nas obras Agesilau de

Xenofonte e Evaacutegoras de Isoacutecrates Estas satildeo biografias cujo modo de imitaccedilatildeo eacute

executado por uma narraccedilatildeo simples (ἁπλή διήγησις aple diegesis) ou seja o

narrador (ἀπαγγέλλον52 apangellon) fala sempre por si mesmo sem mimetizar outros

locutores no discurso direto Desse modo o narrador estaacute expliacutecito por todo o discurso

mediando e distanciando o narrado do leitor Este tipo de biografia modernamente eacute

chamado de biografia analiacutetica ldquo[] do tipo ensaiacutestico interpretativo e natildeo

forccedilosamente factualista []rdquo (REIS 2000 p48)

51 A terminologia aqui adotada eacute a que Platatildeo apresenta na Repuacuteblica (III 392 d) ldquoAcaso tudo quanto dizem os prosadores e poetas natildeo eacute uma narrativa de acontecimentos passados presentes ou futuros [] Porventura eles natildeo a executam por meio de simples narrativa [ἁπλῇ διήγήσει] atraveacutes da miacutemese [διὰ

μιμήσεως] ou por meio de ambas [διrsquo ἀμφοτέρων περαίνουσιν]rdquo Essa traduccedilatildeo eacute de Maria Helena da Rocha Pereira (1980) 52 O termo ἀπαγγέλλον particiacutepio do verbo ἀπαγγέλειν eacute usado por Aristoacuteteles na Poeacutetica 1448 a Para Brandatildeo (2005 p46-48) este termo estaacute ligado agrave funccedilatildeo do mensageiro ἄγγελος das trageacutedias Os mensageiros satildeo introduzidos em cena para narrar as accedilotildees ocorridas fora de cena Assim a funccedilatildeo do narrador eacute comunicar ldquosituaccedilotildees falas objetos distanciados do recebedor no tempo e no espaccedilordquo (BRANDAtildeO p48)

43

A Ciropedia entretanto desenvolve-se como uma narrativa mista executada ora

por meio da narraccedilatildeo (διὰ διηγήσεως dia diegeseos) ora por meio da imitaccedilatildeo (διὰ

μιμήσεως dia mimeseos) Assim ao contraacuterio do que ocorre nas outras biografias o

narrador da Ciropedia aleacutem de mediar o discurso tambeacutem mimetiza outros locutores

por meio de discurso direto O resultado deste procedimento eacute uma sorte de narrativa

ldquodramatizadardquo53 no sentido de que por meio de cenas54 o narrador desaparece

parcialmente da cena do discurso Parcialmente pois o narrador controla a organizaccedilatildeo

destas locuccedilotildees desenrolando ou condensando a cena Eacute a biografia narrativa ldquo[]

centrada na dinacircmica da histoacuteria de uma vida recorrendo de forma mais ou menos

acentuada a estrateacutegias de iacutendole narrativardquo (REIS 2000 p48)

Isso significa que pelo modo de imitaccedilatildeo a Ciropedia se assemelha ao gecircnero

eacutepico pois este gecircnero tambeacutem apresenta uma narrativa mista tanto narrada quanto

mimetizada e se afasta do gecircnero biograacutefico cujo modo de imitaccedilatildeo eacute executado por

uma narraccedilatildeo simples Por isso a obra eacute singular pois dentre as obras biograacuteficas a

Ciropedia foi a primeira a trazer essa sorte de imitaccedilatildeo mista55

O gecircnero historiograacutefico tambeacutem eacute um gecircnero misto No entanto diferencia-se

do gecircnero eacutepico e do biograacutefico porque seu discurso pretende ser a narraccedilatildeo do

verdadeiro isto eacute narrar as accedilotildees que realmente aconteceram natildeo as que poderiam

acontecer O gecircnero biograacutefico no entanto como dissemos anteriormente incrementa

os dados histoacutericos com informaccedilotildees ficcionais da vida particular do homem ilustre

Assim a Ciropedia eacute uma narrativa mista de eventos que aconteceram mas

principalmente de eventos da vida particular que poderiam ter acontecido Portanto

podemos dizer que a Ciropedia eacute uma obra eacutepica de ficccedilatildeo em prosa

Desse modo acreditamos que se revela a verdadeira inovaccedilatildeo da Ciropedia em

relaccedilatildeo ao romance tanto antigo quanto moderno Nesta perspectiva a obra torna-se

profundamente importante na tradiccedilatildeo da narrativa

Aleacutem disso o modo de imitaccedilatildeo da Ciropedia ou seja com um narrador

executando uma narrativa mista propicia a absorccedilatildeo de outros gecircneros literaacuterios dentro

53 O sentido de dramatizada aqui usado eacute o mesmo da mimese em oposiccedilatildeo agrave diegeacutese ou seja o narrador reproduz por meio do discurso direto as falas das personangens e desse modo aproximando-se do tipo de representaccedilatildeo teatral Na terminologia estabelecida por Lubbock (1939) este tipo de representaccedilatildeo da narrativa eacute chamada de showing 54 Segundo Reis (2000 p53) ldquo[] a instauraccedilatildeo da cena traduz-se antes de mais na reproduccedilatildeo do discurso das personagens [] que naturalmente implica que o narrador desapareccedila total ou parcialmente da cena do discursordquo 55 As outras biografias romanceadas ou ficcionais da Antiguidade posteriores agrave Ciropedia tambeacutem apresentam este caraacuteter de imitaccedilatildeo mista

44

da estrutura diegeacutetica Isso porque a mimetizaccedilatildeo de locutores dentro da narrativa

fornece a oportunidade para que as personagens discursem dialoguem ou mesmo

narrem narrativas secundaacuterias Desse modo o narrador conduz a narrativa introduzindo

os entrechos poreacutem logo introduzindo outras personagens cuja locuccedilatildeo seraacute

mimetizada56

Retomando e concluindo o primeiro capiacutetulo a Ciropedia eacute uma narrativa

biograacutefica e desse modo procura incrementar os dados histoacutericos com a narraccedilatildeo da

vida particular do homem ilustre que eacute objeto da biografia Luciano Cacircnfora (2004)

aponta a erupccedilatildeo da vida privada dentro da narrativa histoacuterica como a principal

inovaccedilatildeo da narrativa claacutessica para o desenvolvimento do romance grego idealista

Aleacutem disso o modo de imitaccedilatildeo da Ciropedia eacute o de uma narrativa mista pois o

narrador mimetiza na diegese a locuccedilatildeo de outras personagens ou seja o narrador daacute

voz agraves personagens A mimetizaccedilatildeo de outros locutores propicia a absorccedilatildeo de outros

gecircneros literaacuterios pois fornece a oportunidade para as personagens discursarem

dialogarem e narrarem pequenas narrativas Assim a Ciropedia tanto efetua a siacutentese de

elementos ficcionais e histoacutericos quanto absorve gecircneros literaacuterios dentro da narrativa

estabelecendo-se como uma verdadeira forma romanesca inovadora na preacute-histoacuteria do

romance

56 Brandatildeo (2005) intrepreta o sentido de mimetizar como ldquoimitaccedilatildeo de diferentes locutoresrdquo A interpretaccedilatildeo baseia-se na formulaccedilatildeo de Aristoacuteteles na Poeacutetica (1460 a) quando Aristoacuteteles elogia Homero como o melhor dos mimetai pois o proacuteprio narrador interfere pouco na narraccedilatildeo preferindo mimetizar a locuccedilatildeo de outros personagens

45

3 Reescrevendo o passado ficcionalizando a histoacuteria

Como o romance a historia seleciona simplifica organiza faz com que um seacuteculo caiba numa paacutegina e essa siacutentese

da narrativa eacute tatildeo espontacircnea quanto a da nossa memoacuteria []

Paul Veyne 1982 p11-12

Por sua forma narrativa pelos conflitos personalizados de suas personagens o romance

estaacute junto natildeo soacute da prosa diaacuteria quanto da forma narrativa privilegiada desde fins do

seacuteculo XVIII a forma da Histoacuteria Luiacutez Costa Lima 1984 p111

Neste capiacutetulo analisaremos a relaccedilatildeo de intertextualidade existente entre a

narrativa de Xenofonte e a obra Histoacuterias de Heroacutedoto uma vez que o tema da

Ciropedia a vida de Ciro jaacute fora abordado antes na obra de Heroacutedoto Aleacutem de

Heroacutedoto tambeacutem Cteacutesias de Cnido e Antiacutestenes abordaram a vida de Ciro poreacutem

apenas a obra de Heroacutedoto nos chegou in extenso Eacute portanto a nossa uacutenica fonte

histoacuterica disponiacutevel para nos informar o que era considerado dado histoacuterico sobre o

tema na eacutepoca de Xenofonte Assim consideramos que a comparaccedilatildeo entre as

narrativas tanto do conteuacutedo quanto dos aspectos formais faz-se necessaacuteria para uma

melhor compreensatildeo da obra xenofonteana

Efetuaremos nossa anaacutelise retomando conceitos de intertextualidade e

imitaccedilatildeo aleacutem de pensar na relaccedilatildeo entre histoacuteria e ficccedilatildeo Nosso objetivo eacute demonstrar

como Xenofonte cria sua ficccedilatildeo idealizada a partir dos dados histoacutericos Isso significa

que a ficccedilatildeo se mescla ao texto histoacuterico e com ele se confunde Por meio desta

estrateacutegia o leitor eacute persuadido da verdade dos fatos narrados pela obra ficcional Para

isso antes da anaacutelise comparativa propriamente dita traremos alguma discussatildeo que

vise agrave aproximaccedilatildeo entre histoacuteria e literatura para que estas duas produccedilotildees do

pensamento humano natildeo sejam vistas como dissociadas

31 Histoacuteria e Literatura

46

O passado existe no tempo e antes de ser tomado pela linguagem mas o passado

soacute se torna fato histoacuterico por meio da linguagem Assim o discurso recupera e

reconstroacutei os acontecimentos passados para lhes dar um sentido e uma forma estando o

sentido e a forma conforme Linda Hutcheon (1991 p122) natildeo nos ldquoacontecimentos

em sirdquo mas na linguagem que os recuperou Entretanto cada gecircnero (histoacuteria romance

teatro etc) apresenta as suas proacuteprias caracteriacutesticas linguiacutesticas e discursivas o que

significa que o passado seraacute representado de um modo especiacutefico de acordo com o

gecircnero que o reconstrua Eacute necessaacuterio observar como cada gecircnero recupera o passado

tanto nos aspectos formais quanto nos aspectos discursivos sabendo que o mesmo

passado tende a se reconstruir diferentemente de acordo com as caracteriacutesticas de cada

gecircnero

Todos os romancistas gregos mantecircm uma importante relaccedilatildeo com a

historiografia seja construindo a narrativa em uma eacutepoca historicamente importante

seja se utilizando de recursos linguiacutesticos e estiliacutesticos dos historiadores (MORGAN

HARRISON 2008 p220)

No entanto o romance grego soacute se desenvolve plenamente entre o primeiro

seacuteculo aC e o quarto seacuteculo dC Poreacutem em suas primeiras manifestaccedilotildees a ficccedilatildeo em

prosa ainda estava intrinsecamente relacionada com a histoacuteria ou melhor com os

acontecimentos histoacutericos A histoacuteria com efeito eacute um dos elementos base na

organizaccedilatildeo da ficccedilatildeo (REacuteMY 1972 p157) Desse modo devemos para melhor

compreender as primeiras manifestaccedilotildees da ficccedilatildeo em prosa na Greacutecia Claacutessica

observar que relaccedilatildeo mantinham com o passado os gecircneros que neste tempo preacute-

romance floresciam na Antiguidade Nos seacuteculos V e IV aC a historiografia e a

biografia concorriam como gecircneros que representavam o passado

Sobre a historiografia podemos dizer que o sentido etimoloacutegico da palavra

histoacuteria ἱστορίη (historie) tal qual Heroacutedoto o emprega pela primeira vez significa

inqueacuterito ou pesquisa e a obra do historiador dessa forma eacute a ldquoexposiccedilatildeo da pesquisardquo

(ἀπόδεξις ἰστορίης apodeksis historiacutees) (Histoacuterias I1) Por conseguinte o

historiador deve por meio da pesquisa separar dos fatos passados o que eacute verdade e o

que eacute fantasia Os temas principais da historiografia grega eram os fatos poliacuteticos e

militares dos poderosos Estados (RAHN 1971 p498) para que os grandes feitos dos

homens natildeo fossem esquecidos (ἐξίτηλα γένηται eksitela genetai) Dessa forma

tanto com Heroacutedoto quanto com Tuciacutedides o historiador ldquo[] colocava-se como

47

testemunha e como registrador de mudanccedilas [] que em sua opiniatildeo eram importantes

o bastante para serem transmitidas agrave posteridaderdquo (MOMIGLIANO 1998 p187)

Quanto agrave biografia este gecircnero surgiu como forma de elogio de um indiviacuteduo

em conexatildeo com o gecircnero retoacuterico epidiacutetico ou encocircmio O epidiacutetico (ἐπιδεικτικόν

epideiktikon) ao lado do deliberativo (συμβουλευτικόν sumbouleutikon) e do

judiciaacuterio (δικανικόν dikanikon) formava os gecircneros da retoacuterica antiga57

(ARISTOacuteTELES Retoacuterica III 13) e estes gecircneros se distinguiam entre si pela

finalidade O fim do gecircnero epidiacutetico eacute o belo e o feio (τὸ καλὸν καὶ τὸ αἰσχρόν to

kalon kai to aischron) porque nele se censura e louva (ἐπαινοῦσιν καὶ ψέγουσιν

epainousin kai psegousin)

Segundo Momigliano (1998 p188) os relatos biograacuteficos natildeo eram

reconhecidos pelos antigos como histoacuteria mas como um gecircnero retoacuterico pois a

essecircncia da biografia era o elogio ou censura de uma personalidade enquanto que a

historiografia visando agrave verdade deveria abster-se de excessos de elogios e censuras

Assim a histoacuteria visava agrave objetividade para alcanccedilar a verdade enquanto no texto

biograacutefico deixava transparecer no relato a visatildeo subjetiva do bioacutegrafo

A palavra biografia eacute composta pelos termos βίος (vida) e γράφειν (escrever) e

foi usada pela primeira vez por Plutarco (seacutec II dC) na Vida de Alexandre (12-3) As

formas biograacuteficas anteriores a Plutarco satildeo denominadas pelos antigos de encocircmio

revelando com isso a origem epidiacutetica do gecircnero biograacutefico58 (MOMIGLIANO 1993

p10)

Como afirmamos anteriormente59 a fronteira entre ficccedilatildeo e realidade (histoacuteria)

foi mais diluiacuteda na biografia do que na historiografia60 O gecircnero biograacutefico segundo

Plutarco (Alexandre 12-3) revela uma verdade diferente da verdade historiograacutefica

pois natildeo aborda a narraccedilatildeo dos grandes feitos ndash tema da historiografia ndash mas dos

pequenos e cotidianos que revelam o verdadeiro caraacuteter dos homens ilustres

57 A triparticcedilatildeo dos gecircneros retoacutericos em deliberativo judiciaacuterio ou epidiacutetico (demonstrativo) manteve-se nos tratados retoacutericos dos romanos Cf Pseudo-Ciacutecero Retoacuterica a Herecircnio 2005 p55 58 Como afirmamos no capiacutetulo 1 no decorrer deste trabalho utilizaremos a designaccedilatildeo biografia de forma ampla seguindo desse modo Momigliano (1993) abrangendo por isso as obras encomiaacutesticas do seacuteculo IV aC 59 Cf a subseccedilatildeo 2242 60 Para Francis a riacutegida distinccedilatildeo entre literatura e histoacuteria deveria ser muito estranha para os leitores antigos pois a historiografia antiga foi a primeira a empregar estrateacutegias discursivas para criar ldquoficccedilotildees verdadeirasrdquo (FRANCIS 1988 p421) Para Morgan (1993 p186-187) a condiccedilatildeo essencial para que uma obra seja reconhecida como ficcional eacute que exista um contrato ficcional estabelecido que seja aceito pelos leitores

48

Momigliano (1993 p55) afirma que eacute justamente por meio da narraccedilatildeo dos fatos

pequenos cotidianos e particulares que a ficccedilatildeo se infiltra no material histoacuterico na

biografia A biografia se utiliza de um material histoacuterico (dados comprovaacuteveis pelas

fontes) a fim de que a narrativa ficcional tenha a aparecircncia de verdade e se confunda

com a proacutepria histoacuteria Assim a narrativa ficcional da biografia deveria ser coerente

com os dados para que o caraacuteter ndash revelado por meio dos feitos pequenos e cotidianos ndash

fosse coerente com as accedilotildees do biografado ndash revelado por meio dos feitos grandiosos

comprovados pelos dados histoacutericos61 Os leitores das biografias portanto natildeo soacute

mantinham como tambeacutem esperavam esse contrato de cumplicidade ficcional com as

biografias

Seria portanto a historiografia um gecircnero que se opusesse completamente agrave

ficccedilatildeo Segundo Momigliano (1998 p188) natildeo se pode compreender o trabalho dos

historiadores do seacuteculo V aC sem se levar em conta a formalizaccedilatildeo da retoacuterica puacuteblica

pois ldquo[o] relato dos historiadores devia proporcionar algum tipo de satisfaccedilatildeo a seus

leitoresrdquo (MOMIGLIANO 1998 p190) Tuciacutedides acusava Heroacutedoto de colocar o

deleite antes da instruccedilatildeo poreacutem uma das invenccedilotildees mais caracteriacutesticas de Tuciacutedides

ldquo[] o uso de falas fictiacutecias para relatar correntes da opiniatildeo puacuteblica e restabelecer as

motivaccedilotildees dos liacutederes poliacuteticos []rdquo (MOMIGLIANO 1998 p188) seria impensaacutevel

sem a formalizaccedilatildeo da retoacuterica O influxo da retoacuterica na historiografia fecirc-la

desenvolver-se para aleacutem da ambiccedilatildeo de verdade dos proacuteprios historiadores

Por meio destas primeiras reflexotildees parece-nos que a distinccedilatildeo para os antigos

entre a histoacuteria e a literatura eacute muito tecircnue Tanto a biografia quanto a historiografia

claacutessicas mostravam aptidatildeo para estetizar o material histoacuterico seja por meio de

recursos retoacutericos e estiliacutesticos seja por meio da ficccedilatildeo O romance grego acreditamos

surge dos desenvolvimentos narrativos efetuados por estes gecircneros Assim literatura e

histoacuteria natildeo devem ser vistas como poacutelos opostos e incomunicaacuteveis Para Bowersock

(1994 p14-15) o principal erro da teoria dos gecircneros eacute acreditar que os gecircneros satildeo

formas estanques e isoladas culturalmente poreacutem noacutes devemos lembrar que o contato

entre os gecircneros eacute mais constante do que se costuma afirmar

61 Na Poeacutetica 1454 Aristoacuteteles afirma que ldquo[t]anto na representaccedilatildeo dos caracteres como no entrecho das accedilotildees importa procurar sempre a verossimilhanccedila e a necessidade por isso as palavras e os atos de uma personagem de certo caraacuteter devem justificar-se por sua verossimilhanccedila e necessidade tal como nos mitos os sucessos de accedilatildeo para accedilatildeordquo (ARISTOacuteTELES 1966 p20)

49

Passemos agora a retomar algumas importantes reflexotildees feitas por Aristoacuteteles

Ciacutecero Hegel Barthes Veyne e Lukaacutecs a respeito das relaccedilotildees entre Literatura e

Histoacuteria procurando nelas observar limites mais frouxos entre os dois modos de

representaccedilatildeo

Aristoacuteteles na Poeacutetica 1451a-b estabelece que a distinccedilatildeo entre histoacuteria e poesia

se manifesta natildeo tanto pelo seu caraacuteter formal (o meio de imitaccedilatildeo) mas pelo conteuacutedo

(objeto de imitaccedilatildeo) Desse modo natildeo eacute o uso da prosa ou do verso que torna um texto

respectivamente histoacuterico ou poeacutetico A distinccedilatildeo para Aristoacuteteles estaacute no fato de que a

histoacuteria narra acontecimentos que realmente sucederam enquanto a poesia narra

acontecimentos que poderiam acontecer O discurso literaacuterio eacute a representaccedilatildeo ldquodo

possiacutevel segundo a verossimilhanccedila e a necessidaderdquo (ARISTOacuteTELES 1996 p79) Jaacute

o discurso histoacuterico se apropria dos fatos reais passados e particulares por isso ldquo[] a

poesia eacute algo de mais filosoacutefico e mais seacuterio do que a histoacuteria pois refere aquela

principalmente o universal e esta o particularrdquo (ARISTOacuteTELES 1996 p78)

Ao historiador cabe separar dos fatos passados a verdade excluir deles a

fantasia e ordenaacute-los O poeta na concepccedilatildeo aristoteacutelica de arte como imitaccedilatildeo do real

eacute criador de uma imagem-representaccedilatildeo da realidade e de um ldquomitordquo (enredo)

verossiacutemil posto que organizado pela necessidade e verossimilhanccedila A construccedilatildeo

verossiacutemil amplia-se como relaccedilatildeo causal implicando a sucessatildeo de cenas de modo

homogecircneo criando desta forma certo efeito do real Como criador de representaccedilatildeo

ldquosua atuaccedilatildeo natildeo tem limites fixosrdquo (GOBBI 2004 p40) abrangendo todo campo do

possiacutevel Isso significa que eacute parte do material poeacutetico todo conteuacutedo discursivo

inclusive o material histoacuterico Na Poeacutetica 1451b Aristoacuteteles acrescenta

[] ainda que lhe aconteccedila fazer uso de sucessos reais nem por isso deixa de ser poeta pois nada impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam por natureza verossiacutemeis e possiacuteveis e por isso mesmo venha o poeta a ser o autor delas (ARISTOacuteTELES 1966 p79)

A ficccedilatildeo portanto ainda que tome por representaccedilatildeo a temaacutetica histoacuterica logo

o verdadeiro natildeo perde por isso o estatuto ficcional e natildeo se confunde com o discurso

historiograacutefico O criteacuterio de verdade natildeo eacute ao que parece para Aristoacuteteles um conceito

absoluto para a distinccedilatildeo entre os gecircneros mas confunde-se tambeacutem com outros

conceitos da poeacutetica principalmente o da verossimilhanccedila

50

Como jaacute assinalamos os tratados retoacutericos estabeleciam que a diferenccedila

essencial entre os gecircneros histoacutericos e poeacuteticos foca-se na sua finalidade pois enquanto

o fim da historiografia eacute o uacutetil que soacute se pode alcanccedilar por meio do verdadeiro o fim

do discurso poeacutetico eacute o prazeroso o luacutedico62 No entanto o discurso historiograacutefico se

regulava desde o seacuteculo V aC pelas orientaccedilotildees retoacutericas e segundo Momigliano

(1984) a partir do seacuteculo IV aC os historiadores aproximaram ainda mais do

agradaacutevel a utilidade ao utilizarem para o enriquecimento de suas narrativas de teacutecnica

de ldquosuperdramatizaccedilotildees pateacuteticasrdquo (MOMIGLIANO 1998 p191)

Ciacutecero compreende a histoacuteria como um gecircnero retoacuterico (opus oratorium) e que

portanto estaacute regulado pelas leis da retoacuterica (BOWERSOCK 1993 p13) Em Ad

Familiares (apud HARTOG 2001) Ciacutecero afirma que para tornar a histoacuteria mais

prazerosa eacute necessaacuterio que o escritor a enriqueccedila com a linguagem e o discurso mesmo

que com isso negligencie as leis da histoacuteria Diz ele

Nada com efeito eacute mais conveniente ao deleite do leitor que a variedade das circunstacircncias e as vicissitudes da Fortuna [] De fato a organizaccedilatildeo dos anais prende-nos mediocremente da mesma forma que a enumeraccedilatildeo dos fatos enquanto frequentemente as desventuras perigosas e variadas de um homem eminente geram admiraccedilatildeo atenccedilatildeo alegria pena esperanccedila medo e se terminam com uma morte insigne o espiacuterito entatildeo se eleva pelo agradabiliacutessimo prazer da leitura (CIacuteCERO 5 12 apud HARTOG 2001 p157)

A partir destas reflexotildees levanta-se a questatildeo ateacute que ponto na Antiguidade eacute

possiacutevel separar da literatura o discurso da histoacuteria Pois se para Aristoacuteteles o uso de

um tema histoacuterico por parte do poeta natildeo o confunde com o historiador para Ciacutecero e

outros retores o discurso historiograacutefico deve se orientar pelas leis retoacutericas nem que

com isso o historiador viole a principal lei da histoacuteria fidelidade agrave verdade Os limites

entre os gecircneros natildeo satildeo portanto estanques e facilmente delimitados poreacutem

claramente interrelacionaacuteveis e este cruzamento de formas constitui a essecircncia da

proacutepria poeacutetica

A historiografia e a oratoacuteria estatildeo no limite do que Hegel considera arte pois

estes gecircneros visam a objetos extra-literaacuterios e essa ausecircncia de gratuidade eacute o que as

distingue da poesia No entanto Hegel aproxima a historiografia da poesia ao admitir a

62 Sobre a distinccedilatildeo cf Como se deve escrever a Histoacuteria (2009) de Luciano

51

subjetividade da escrita da histoacuteria a histoacuteria natildeo eacute soacute a exatidatildeo dos fatos mas

necessita de um sujeito que introduza uma determinada ordem nos eventos que os

agrupe e os interprete construindo assim a imagem do objeto (GOBBI 2004 p42)

No entanto Hegel as distingue em termos de criaccedilatildeo uma vez que o historiador

soacute pode ser o organizador natildeo o inventor dos fatos enquanto ao poeta tudo eacute permitido

inclusive reconstruir a histoacuteria A arte ndash que eacute para Hegel substancialidade pura ndash pode

corrigir a histoacuteria ndash que eacute substancialidade e acidentalidade ndash transformando a verdade

externa conforme a verdade interna (GOBBI 2004 p43) Desse modo Hegel abre a

perspectiva de que o poeta retomando o fio dos fatos histoacutericos os modifique e os

corrija desde que sua finalidade natildeo seja a verdade do histoacuterico mas uma verdade de

representaccedilatildeo verossiacutemil tal qual afirmava Aristoacuteteles

Quando no seacuteculo XIX a ciecircncia da Histoacuteria foi fundada procurou-se sob o

influxo do positivismo estabelecer um maior rigor na investigaccedilatildeo das fontes e dos

documentos e desse modo opor-se ldquoagrave livre invenccedilatildeo romanescardquo (FREITAS 1986

p2) Assim os historiadores modernos sob o impulso da obra historiograacutefica de Ranke

(1795-1886) considerado o pai da historiografia cientiacutefica elegeram dos antigos aquele

historiador que melhor representasse esta praacutexis do historiador Tuciacutedides63 No entanto

alguns estudiosos modernos procuraram revisitar estas ideias positivistas para tornar a

ciecircncia da histoacuteria mais proacutexima da arte uma vez que ldquo[] o historiador tendo que

formar concepccedilotildees a partir de indiacutecios potildee muito de si mesmo em seu discursordquo

(FREITAS 1986 p2)

O huacutengaro Geog Lukaacutecs um dos mais importantes teorizadores do romance no

seacuteculo XX foi pioneiro na teorizaccedilatildeo do ldquoromance histoacutericordquo Em sua obra Le roman

historique (2000) afirma que o romance histoacuterico nasce no iniacutecio do seacuteculo XIX com a

obra de Walter Scott Antes jaacute encontraacutevamos romances com temas histoacutericos (seacutec

XVII e XVIII) que podem ser considerados como antecedentes do romance histoacuterico

Contudo estas obras satildeo histoacutericas apenas pela escolha de temas e costumes pois neste

passado representado natildeo somente a psicologia das personagens mas tambeacutem os meios

sociais pintados satildeo inteiramente aqueles do tempo do proacuteprio escritor Nestas obras

importa apenas o caraacuteter curioso e exoacutetico do ambiente pintado e natildeo a reproduccedilatildeo

histoacuterica fiel de uma era historicamente concreta Conforme Lukaacutecs

63 ldquo[Tuciacutedides] introduziu poreacutem uma nota de austeridade que se tornou parte do caraacuteter (senatildeo da praacutexis) dos historiadores []rdquo (MOMIGLIANO 1998 p187)

52

O que falta ao pretendido romance histoacuterico anterior a Walter Scott eacute justamente aquilo que eacute especificamente histoacuterico o fato de que a particularidade das personagens deriva da especificidade histoacuterica do tempo deles [] A questatildeo da verdade histoacuterica na representaccedilatildeo artiacutestica da realidade se situa muito aleacutem do horizonte destes escritores64 (LUKAacuteCS 2000 p17)

Para Lukaacutecs o romance de Walter Scott estabelece pela primeira vez uma

relaccedilatildeo entre passado e presente em uma perspectiva em que o presente eacute fruto do

passado Nos romances anteriores a Walter Scott esta perspectiva estaacute ausente A partir

disso Lukaacutecs estabelece algumas caracteriacutesticas ndash como por exemplo a presenccedila do

heroacutei mediano ou a representaccedilatildeo de um microcosmo que reflete a totalidade histoacuterica ndash

que formaria a estrutura do romance histoacuterico nascido a partir de Walter Scott

Entretanto Jacques Le Goff (1972) com uma percepccedilatildeo mais ampla avalia que estatildeo

presentes em muitas narrativas da Idade Meacutedia as caracteriacutesticas que Lukaacutecs (2000)

classifica como proacuteprias do romance moderno de Scott Novamente entramos no

problema terminoloacutegico do romance uma vez que Lukaacutecs (2000) natildeo vecirc essas

narrativas anteriores como romance por faltarem a elas o conflito interno entre o homem

e a sociedade Poreacutem a anaacutelise de Le Goff (1972) demonstra que do ponto de vista da

forma os elementos essenciais do gecircnero natildeo surgem ex nihilo com o gecircnero pronto

mais se desenvolvem por um longo periacuteodo ateacute que finalmente encontrem o solo

propiacutecio para se afirmar

Entretanto os romances contemporacircneos de temaacutetica histoacuterica que Linda

Hutcheon (1991) denomina de meta-ficccedilatildeo historiograacutefica apresentam novas

caracteriacutesticas inclusive substituindo os heroacuteis medianos por heroacuteis histoacutericos ldquo[] que

instalam e depois indefinem a linha de separaccedilatildeo entre a ficccedilatildeo e a histoacuteria []rdquo (1991

p150) Desse modo as caracteriacutesticas que Lukaacutecs classifica como determinantes para o

romance histoacuterico satildeo na verdade determinantes para um tipo de ficccedilatildeo histoacuterica o

romance histoacuterico do seacuteculo XIX mas natildeo resolvem toda a problemaacutetica do romance

histoacuterico ou da ficccedilatildeo histoacuterica

Outro ponto essencial da teoria lukaacutecseana sobre a relaccedilatildeo do romance moderno

com a Histoacuteria eacute o fato de o romance moderno desenvolver sua forma realista a partir

64 Na traduccedilatildeo francesa Ce qui manque au preacutetendu roman historique avant Walter Scott crsquoest justement ce qui est speacutecifiquement historique le fait que la particulariteacute des personnages derive de la speacutecificiteacute historique de leur temps [] La question de la veriteacute historique dans la reproduction artistique de la reacutealite se situe encore au-delaacute de son horizon (LUKAacuteCS 2000 p17)

53

da representaccedilatildeo da histoacuteria contemporacircnea como mateacuteria narrativa A interpretaccedilatildeo que

Lukaacutecs faz da obra de Balzac justamente revela a busca incessante do romancista

francecircs em fazer de sua obra uma ldquohistoacuteriardquo da Franccedila poacutes-revolucionaacuteria O romance

moderno ao se formalizar realista infiltra em sua mateacuteria ficcional a representaccedilatildeo de

aspectos histoacutericos ideoloacutegicos e sociais

No final do seacuteculo XX Paul Veyne65 (1982) aproxima o discurso histoacuterico do

discurso ficcional ao se opor agrave ideia de que a histoacuteria seja uma ciecircncia objetiva Para

Veyne retomando a problemaacutetica lanccedilada por Hegel a histoacuteria eacute uma narrativa de

eventos selecionados e organizados em vista de um determinado fim de acordo com a

subjetividade e idelogia de um sujeito histoacuterico Assim a objetividade do texto histoacuterico

deve-se a procedimentos de escritura a toacutepos e iacutendices do gecircnero tanto quanto a

estilizaccedilatildeo realista do texto literaacuterio O autor do discurso historiograacutefico eacute portanto um

criador de simulacros como o poeta manejando seu material a fim de que a sua verdade

seja comunicada A imagem de verdade que eacute lanccedilada pela representaccedilatildeo histoacuterica eacute

apenas uma ilusatildeo linguiacutestica e literaacuteria criada por procedimentos estiliacutesticos Agrave medida

que se fortalecia enquanto gecircnero discursivo a tradiccedilatildeo historiograacutegfica desenvolveu

determinadas regras de escritura que natildeo soacute criam a ilusatildeo de verdade mas tambeacutem

tornam o texto reconheciacutevel como historiograacutefico para o puacuteblico

Roland Barthes66 (1988) se questiona se eacute legiacutetimo opor do ponto de vista

estrutural da linguagem a narrativa ficcional agrave narrativa histoacuterica discutindo

justamenteo os iacutendices linguiacutesticos Para Barthes a anaacutelise do discurso e de suas

unidades constitutivas poderaacute ldquo[] problematizar a claacutessica oposiccedilatildeo natildeo soacute dos gecircneros

literaacuterios como tambeacutem aquela que se faz entre o texto literaacuterio e o texto histoacuterico []rdquo

(GOBBI 2004 p54) O fato histoacuterico eacute um produto de significaccedilatildeo do discurso desse

modo assemelhando-se com o fato literaacuterio A questatildeo central eacute que Barthes nega a

referencialidade ao mundo como toacutepico de anaacutelise e estabelece que por meio da anaacutelise

linguiacutestica os gecircneros histoacuteriograacutefico e romanesco aproximam-se como construccedilatildeo da

linguagem Conforme Josipovic (1971 p148 apud HUTCHEON 1991 p143) a

anaacutelise dos iacutendices linguiacutesticos utilizados pelos historiadores e pelos primeiros

romancistas modernos demonstra que ambos pareciam fingir que a sua obra natildeo era

65 A primeira publicaccedilatildeo do livro Comment on eacutecrit lhistoire essai deacutepisteacutemologie de Paul Veyne eacute de 1970 Utilizamos a traduccedilatildeo de Alda Baltar e Maria A Kneipp de 1982 66 A primeira ediccedilatildeo da obra Le bruissement de la langue de Barthes (1984) Utilizamos a traduccedilatildeo de Mario Laranjeira de 1988

54

criada mas que existia no tempo e se apresentava agrave narraccedilatildeo Esta praacutetica foi

fundamental para a afirmaccedilatildeo da mimese realista do romance moderno

Neste breve percurso em que historiamos as discussotildees sobre a relaccedilatildeo entre

literatura e histoacuteria podemos observar que as distinccedilotildees entre estes gecircneros discursivos

nunca foram claramente definidas Mesmo Aristoacuteteles e Hegel que se esforccedilaram para

separaacute-los apresentam em seus discursos elementos que os aproximam ndash Aristoacuteteles ao

tomar a temaacutetica histoacuterica como poeacutetica Hegel ao compreender que a Histoacuteria eacute criada

por um sujeito que organiza as informaccedilotildees Jaacute Ciacutecero na Antiguidade e Barthes e

Veyne na Modernidade preocupados mais com questotildees de escrita dos gecircneros do que

com o referente entendem histoacuteria e literatura como fenocircmenos do discurso literaacuterio

Por fim para Lukaacutecs (2000) o romancista moderno trabalha como um historiador

observando as tendecircncias sociais e ideoloacutegicas seja do seu tempo seja do tempo

passado e desse modo a representaccedilatildeo histoacuterica no romance eacute essencial para o

desenvolvimento e afirmaccedilatildeo da forma realista do romance moderno

Levantamos estas questotildees inicialmente porque a dificuldade em se estabelecer

os limites entre estes dois gecircneros talvez tambeacutem explique a contiacutenua eterna e muacutetua

atraccedilatildeo que eles sempre demonstraram incluindo a relaccedilatildeo de imitaccedilatildeo que os

romancistas gregos estabeleceram com os historiadores claacutessicos

Para Brandatildeo (2005) o narrador do romance grego se apresenta em conexatildeo

com algumas estrateacutegias discursivas estabelecidas pelos historiadores gregos tais como

a presenccedila de um narrador em terceira pessoa que objetiva a narraccedilatildeo e de algum modo

se oculta no narrado Aleacutem disso as foacutermulas de enquadramento presentes nos

proecircmios e eventualmente tambeacutem nos epiacutelogos criam a impressatildeo de que os romances

teriam derivados da historiografia (BRANDAtildeO 2005 p110)

Em nossa opiniatildeo os romancistas encontraram na historiografia um espelho

onde poderiam experimentar novas formulaccedilotildees narrativas e ainda assim aparentarem

por meio de estrateacutegias da historiografia verossimilhanccedila Para Salvatore DrsquoOnofrio

toda a narrativa ficcional procura ser criacutevel verossiacutemil e ldquo[] mesmo quando [a prosa]

adentrou o territoacuterio da poesia [a ficccedilatildeo] procurou salvaguardar este seu estigma inicial

ter uma aparecircncia de veracidaderdquo (DrsquoONOFRIO 1976 p12) O estudo portanto de

como a ficccedilatildeo se infiltra no discurso historiograacutefico (em sentido lato) eacute a nosso ver

fundamental para a compreensatildeo da histoacuteria do discurso ficcional em prosa O romance

histoacuterico como o entende Lukaacutecs (2000) eacute uma das formas da complexa relaccedilatildeo entre

55

ficccedilatildeo e histoacuteria mas esta estaacute na base do proacuteprio desenvolvimento ficcional E mais na

Antiguidade a infiltraccedilatildeo da ficccedilatildeo se daacute em maior medida no gecircnero biograacutefico que

aborda um tema que tambeacutem eacute um tema historiograacutefico do passado Portanto na

anaacutelise das obras biograacuteficas principalmente do romance biograacutefico poderemos

compreender importantes aspectos da evoluccedilatildeo da prosa ficcional no Ocidente

Quando os textos ficcionais se apropriam da temaacutetica histoacuterica a relaccedilatildeo da

literatura com a historiografia pode ser vista de trecircs modos (1) haacute ficccedilotildees literaacuterias que

aludem a situaccedilotildees histoacutericas geralmente com o fito de criar certo efeito do real (2) haacute

obras que apenas situam sua intriga em um determinado contexto soacutecio-histoacuterico e (3)

haacute romances que transformam em sua mateacuteria o universo histoacuterico como parte

integrante de sua estrutura fazendo da realidade histoacuterica uma realidade esteacutetica

(GOBBI 2004 p38) Procuraremos a partir desta classificaccedilatildeo determinar que tipo de

relaccedilatildeo com a histoacuteria a Ciropedia cria por meio da ficccedilatildeo

32 Ciro na histoacuteria e na ficccedilatildeo

O tema da Ciropedia eacute a vida de uma personagem histoacuterica Ciro fundador do

impeacuterio persa A vida puacuteblica da personagem seus feitos poliacuteticos e militares eacute

combinada com cenas da vida particular em especial a sua infacircncia Por exemplo

participaccedilatildeo em banquetes experiecircncias de caccedila relacionamento com outras crianccedilas

Desse modo podemos afirmar que o tema da Ciropedia enquadra na definiccedilatildeo de

gecircnero biograacutefico e portanto as relaccedilotildees entre os dados histoacutericos e a ficccedilatildeo satildeo muito

fluidas e de difiacutecil determinaccedilatildeo No entanto uma vez que Xenofonte combina

narrativas ficcionais com narrativa histoacuterica necessitamos responder as questotildees a-)

por que Xenofonte se utiliza desse material histoacuterico ao inveacutes de construir uma obra

totalmente ficcional uma vez que eacute evidente o caraacuteter ficcional e idealista da obra b-)

como ele utiliza esse material conhecido de seus leitores

Sabemos que na eacutepoca em que Xenofonte escreveu sua obra a vida de Ciro jaacute

havia sido tema de vaacuterias obras de outros escritores e que estas provavelmente lhe

serviram de fonte para a obra Segundo Sansalvador (1987 p22) eacute seguro que a figura

de Ciro tenha sido tratada nos Peacutersica dos logoacutegrafos antigos como Caratildeo de

56

Laacutempsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico ndash todas perdidas Uma obra perdida da qual

conhecemos apenas o tiacutetulo e que parece ter tido grande influecircncia na Ciropedia foi a

obra Ciro do filoacutesofo ciacutenico Antiacutestenes Nesta obra em forma de diaacutelogo socraacutetico o

filoacutesofo Antiacutestenes apresentava Ciro como modelo da exaltaccedilatildeo do esforccedilo (πόνος

ponos)

Cteacutesias de Cnido foi meacutedico do rei persa Artarxerxes II67 (404-3987 aC) e

autor de uma histoacuteria da Peacutersia Peacutersica em vinte e trecircs livros dos quais nos restaram

apenas escassos fragmentos Holzberg (2003 p629) observa que Diodoro de Siculo nos

daacute um sumaacuterio dos livros 1-6 que trata da histoacuteria do Impeacuterio Assiacuterio e Medo desde

Nino ateacute Astiacuteages enquanto Foacutecio resume os livros de 7-23 no qual Cteacutesias narra a

histoacuteria da Peacutersia de Ciro ateacute Artarxerxes II Segundo Holzberg (2003 p629) um

fragmento da obra (POxy2330) conteacutem um relato amoroso que tanto pelo estilo

quanto pelo motivo se assemelha agrave estrutura dos romances gregos Gera (1993 p201)

observa semelhanccedilas neste relato amoroso com a narrativa de Panteacuteia escrita por

Xenofonte Por fim o livro primeiro das Histoacuterias de Heroacutedoto tambeacutem traz a narrativa

a respeito da vida de Ciro Segundo Heroacutedoto a narrativa que ele nos apresenta era uma

das trecircs versotildees sobre a vida de Ciro que ele tinha conhecimento

Aleacutem disso ao ter viajado agrave Peacutersia Xenofonte deve ter entrado em contato com

inuacutemeras tradiccedilotildees orais seja diretamente referindo-se a Ciro seja referindo-se a

tradiccedilatildeo persa Em todo caso estamos limitados neste campo pois seria difiacutecil

reconhecer quais elementos da tradiccedilatildeo oral persa foi aproveitado por Xenofonte

Destas obras a uacutenica que nos chegou in extenso eacute a de Heroacutedoto o que natildeo soacute

delimita a nossa anaacutelise do uso do material histoacuterico por Xenofonte como tambeacutem

torna necessaacuteria a anaacutelise comparativa das duas obras Para nossa anaacutelise seguiremos o

modelo proposto por Maria Teresa de Freitas (1986) em Literatura e Histoacuteria em que a

autora propotildee a confrontaccedilatildeo do texto literaacuterio com documentos histoacutericos que

permitam verificar a fidelidade ou manipulaccedilatildeo destes dados pelo escritor A partir

desta anaacutelise identificaremos que tipo de manipulaccedilatildeo o texto ficcional efetuou no texto

de autoridade do discurso histoacuterico Justificamos ainda nossa anaacutelise pelo conceito de

intertextualidade pois uma vez que natildeo podemos nos certificar do material das outras

fontes sobre a vida de Ciro que Xenofonte poderia ter usado as alusotildees ao texto de

67 Esta informaccedilatildeo nos eacute dada pelo proacuteprio Xenofonte na Anaacutebase I

57

Heroacutedoto sugerem que Xenofonte nas passagens indicadas natildeo usou outra fonte mas

ficcionalizou conscientemente o material narrado por Heroacutedoto

321 O λόγος de Ciro na Histoacuteria de Heroacutedoto

Nesta seccedilatildeo apresentaremos brevemente de que forma a narrativa sobre Ciro

estaacute inserida na obra de Heroacutedoto para delimitarmos os momentos da narrativa que

faratildeo parte de nossa anaacutelise

Na obra de Heroacutedoto a narrativa de Ciro estaacute inserida na segunda parte do livro

I (1 95-216) motivada pela participaccedilatildeo da personagem Ciro no episoacutedio de Creso rei

liacutedio Segundo os professores Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria de Faacutetima Silva (2002

p22) a histoacuteria dos monarcas em Heroacutedoto apoacuteia-se no ldquo[] princiacutepio da ascensatildeo e

queda do chefe de um povo que tem por traacutes a ideia da instabilidade da fortuna e da

fragilidade da natureza humanardquo A focalizaccedilatildeo de Heroacutedoto nesta narrativa natildeo visa agrave

anaacutelise da personalidade de Ciro mas prioritariamente a tomaacute-la ldquo[] como paradigma

com funccedilotildees determinadas no conjunto da narrativardquo (FERREIRA SILVA 2002

p38) Assim compreendida pelo seu caraacuteter paradigmaacutetico esta narrativa se estrutura

pelos temas da ascensatildeo e queda do monarca fruto da sua ὕβρις (hybris) a sua

desmedia

A comparaccedilatildeo entre as narrativas de Xenofonte e de Heroacutedoto natildeo eacute uma ideia

nova jaacute tendo sido realizada por vaacuterios estudiosos (DUE 1989 p117) No entanto

nossa comparaccedilatildeo procuraraacute responder novas questotildees a respeito da ficcionalizaccedilatildeo da

histoacuteria na Ciropedia justificando por isso nosso empreendimento Outras anaacutelises

comparativas tendem a estabelecer as diferenccedilas entre as narrativas e o resultado

alcanccedilado na narrativa xenofonteana mediante estas diferenccedilas poreacutem em geral natildeo

elucidam a praacutetica intertextual de Xenofonte Aleacutem disso demonstraremos que a

ficcionalizaccedilatildeo na Ciropedia eacute construiacuteda a partir do texto de autoridade de Heroacutedoto

confundindo histoacuteria e ficccedilatildeo

A leitura das obras nos mostra que satildeo vaacuterios os momentos do ponto de vista

histoacuterico em que elas se diferenciam e que poderiam fazer parte desta anaacutelise Poreacutem

nos centraremos nas cenas em que a narrativa de Heroacutedoto ecoe na narrativa de

Xenofonte porque nestas cenas nos parece que Xenofonte natildeo se utilizou de outra

fonte na construccedilatildeo da Ciropedia mas ficcionalizou a narrativa de Heroacutedoto

58

Como observa Dioniacutesio de Halicarnaso em seu tratado Sobre a Imitaccedilatildeo (2005)

de que hoje conhecemos apenas alguns fragmentos a imitaccedilatildeo de um autor por outro

deve possuir elementos que resultem claros e perceptiacuteveis ao seu puacuteblico Genette

(1982) estabelece que a intertextualidade eacute uma relaccedilatildeo de copresenccedila entre dois ou

mais textos e das formas de intertextualidade estabelecidas pelo criacutetico francecircs a que

melhor se enquadra para nosso estudo eacute a alusatildeo ou seja ldquo[] um enunciado cuja

plena inteligecircncia supotildee a percepccedilatildeo de uma relaccedilatildeo entre ele e um outro []rdquo68

(GENETTE 1982 p8) Desse modo focalizaremos nossa anaacutelise nas seguintes

passagens por que nelas sentimos a presenccedila de Heroacutedoto a-) a origem e infacircncia de

Ciro b-) a tomada de Sardes (a cena de Creso) e c-) a morte de Ciro

322 Origem e infacircncia de Ciro

Analisaremos primeiramente as diferenccedilas com que Heroacutedoto e Xenofonte

trabalham o tema da origem e da infacircncia de Ciro Segundo Due (1989 p118) a

narrativa de Heroacutedoto apresenta vaacuterios elementos provenientes das lendas populares

Desse modo a biografia do fundador do Impeacuterio da Peacutersia estaacute repleta de pressaacutegios

sobrenaturais sonhos oacutedio e horror A descriccedilatildeo da origem e da infacircncia de Ciro69

(Histoacuterias 1107 1) se inicia a partir de um sonho de Astiacuteages rei da Meacutedia Heroacutedoto

natildeo nos descreve o conteuacutedo deste sonho poreacutem avisa que os inteacuterpretes deixaram o rei

atormentado com o seu significado Para que a previsatildeo natildeo se realizasse Astiacuteages casa

sua filha Mandane com Cambises um persa socialmente inferior No entanto apoacutes o

casamento um novo sonho atormenta o rei meda revelando que seu neto o destronaria

Quando a crianccedila nasce Astiacuteages para se precaver ordena a Haacuterpago

(Histoacuterias 1108 4) ndash um parente em quem depositava a maior confianccedila ndash que matasse

a crianccedila Haacuterpago aparentemente aceita poreacutem na realidade ele refuta a ordem do rei

ldquo[] em parte por sentimentos familiares em parte por caacutelculo poliacutetico []rdquo (DUE

1989 p119) Haacuterpago reflete dessa maneira

68 No original [] crsquoeacutest-agrave-dire drsquoun eacutenonceacute dont la pleine intelligence suppose la perception drsquoun rapport entre lui et un autre (GENETTE 1982 p8) 69 Como jaacute nos referimos a narrativa de Ciro estaacute subordinada agrave narrativa de Creso Assim a sucessatildeo de eventos natildeo eacute descrito por ordem cronoloacutegica A infacircncia e carreira militar de Ciro (Histoacuterias 1 96-297) satildeo narradas apoacutes a conquista de Sardes e sua vitoacuteria sobre Creso (Histoacuterias 1 46-91)

59

Natildeo vou cumprir as ordens de Astiacuteages respondeu Mesmo que ele estivesse transtornado e delirasse mais do que agora delira natildeo era eu que ia apoiar as suas decisotildees nem colaborar com semelhante crime Sobram-me razotildees para natildeo matar a crianccedila primeiro porque eacute do meu sangue depois porque Astiacuteages estaacute velho e natildeo tem descendente varatildeo (Histoacuterias 1109 2)70

Decide entatildeo levar a crianccedila a um pastor para que ele a expusesse em uma

montanha selvagem onde as feras a matariam No entanto ldquopor divina vontaderdquo

(Histoacuterias 1111 1) a mulher deste pastor chamada Cino acabara de dar a luz a uma

crianccedila morta Os pastores trocaram as crianccedilas e criaram Ciro como se fosse filho

deles O nascimento de Ciro tal qual nos narra Heroacutedoto eacute composto de significativos

elementos dos mitos heroicos Assim como Eacutedipo e Paacuteris por exemplo por causa de

um oraacuteculo devastador Ciro eacute extirpado do seio familiar Astiacuteages como Laio e

Priacuteamo crentes de que com sua accedilatildeo estariam fugindo da realizaccedilatildeo do oraacuteculo estatildeo

na verdade construindo a teia necessaacuteria para que a prediccedilatildeo seja realizada

Ao completar dez anos Ciro em uma brincadeira com outras crianccedilas revelou a

sua verdadeira identidade Na brincadeira o menino Ciro ldquoa quem chamavam filho do

boieiro foi escolhido reirdquo (Histoacuterias 11092) por isso ele distribuiu aos outros meninos

diversas tarefas e funccedilotildees Como uma das crianccedilas lhe desobedecera Ciro o prendeu e o

chicoteou Por causa disso foi levado ao rei A simples presenccedila dele fez com que

Astiacuteages comeccedilasse a desconfiar da verdadeira identidade do ldquofilho do boieirordquo

(Histoacuterias 11141)

Agrave medida que o rapaz falava apoderava-se de Astiacuteages a suspeita de quem ele era Os traccedilos fisionocircmicos de Ciro faziam-lhe lembrar os seus A sua resposta parecia-lhe mais proacutepria de um homem livre e a idade compatiacutevel com a data da exposiccedilatildeo (Histoacuterias 11161-2)

A suspeita de Astiacuteages leva-o a interrogar primeiramente o pastor em seguida

Haacuterpago e estes dois lhe confirmam que aquele menino eacute seu neto A desobediecircncia de

Haacuterpago enfurece o rei Astiacuteages que para castigaacute-lo serve-lhe de jantar o seu proacuteprio

filho que Haacuterpago come satisfeito O castigo tambeacutem eacute inspirado nos mitos por

exemplo de Atreu e Tiestes em que ao pai satildeo servidas as carnes do filho71 Quanto a

70 A traduccedilatildeo das Histoacuterias de Heroacutedoto utilizada neste trabalho eacute a de Joseacute Ribeira Ferreira e de Maria de Faacutetima Souza e Silva (1994) 71 Este castigo haveria de prover a consumaccedilatildeo do oraacuteculo pois Haacuterpago desejando vinganccedila instiga Ciro a rebelar-se contra o avocirc

60

Astiacuteages apoacutes nova consulta aos Magos decide entregar Ciro ao seu verdadeiro lar na

Peacutersia A partir desse momento haacute um salto temporal da narrativa e em sua proacutexima

participaccedilatildeo Ciro jaacute eacute adulto (11231-1303) Ciro eacute instigado por Haacuterpago que

desejava vingar-se de Astiacuteages a destituir este do trono e a dominar a Meacutedia Com seu

exeacutercito persa apesar da sua juventude Ciro derrota Astiacuteages e toma-o como

prisioneiro Poreacutem Ciro natildeo castiga o avocirc com crueldade mas apenas o manteacutem ao seu

lado ldquo[] ateacute a morte sem lhe fazer nenhum mal Esta eacute a histoacuteria do nascimento e

criaccedilatildeo de Ciro e da sua ascensatildeo ao poderrdquo (Histoacuterias 1130 3) Assim termina em

Heroacutedoto a primeira fase da vida de Ciro

A narrativa apresentada por Heroacutedoto conteacutem alguns elementos importantes na

comparaccedilatildeo com a Ciropedia o retrato de Astiacuteages eacute pintado como o de um deacutespota

um tirano destemperado que pela ambiccedilatildeo do poder eacute cruel com todos aqueles que estatildeo

subordinados ao seu poder poliacutetico independente de laccedilos de parentescos Esse retrato eacute

bem diferente do Astiacuteages apresentado por Xenofonte na Ciropedia cuja conduta

harmoniosa com seus parentes eacute revelada em todas as suas apariccedilotildees na narrativa Em

verdade noacutes encontramos em Xenofonte a construccedilatildeo de uma famiacutelia harmoniosa e

paciacutefica com quase nenhum traccedilo de conflito72 (DUE 1989 p120) Aleacutem disso natildeo haacute

na Ciropedia referecircncia a sonhos ou pressaacuterios que desencadeassem algum conflito

familiar Neste sentido podemos concluir que o autor da Ciropedia tomou o cuidado de

ao compor a sua obra eliminar de sua narrativa todos os vestiacutegios da narrativa de

Heroacutedoto que contrastariam com a imagem harmoniosa da famiacutelia real meda Deste

modo tanto a inferioridade social do pai de Ciro quanto seu afastamento da casa

paterna por ordem de Astiacuteages e ateacute a rebeliatildeo de Ciro contra seu avocirc satildeo manipulados

na narrativa de Xenofonte Ele tambeacutem omite todas as caracteriacutesticas da lenda e do mito

heroico ldquo[] porque seu objetivo eacute antes poliacutetico do que histoacuterico ou traacutegicordquo73

(TATUM 1989 p101)

O Ciro da Ciropedia eacute filho de Mandane com Cambises mas este natildeo eacute qualquer

persa eacute o rei da Peacutersia E a famiacutelia real descende da figura mitoloacutegica Perseu (Cirop

I21) Segundo Momigliano (1993) a preocupaccedilatildeo com a linhagem eacute uma caracteriacutestica

da aristocracia grega e estaacute presente nas narrativas gregas desde Homero Desse modo

Ciro eacute produto das aristocracias da Meacutedia e da Peacutersia A partir destas informaccedilotildees o

72 O uacutenico conflito familiar presente na Ciropedia se daacute pela participaccedilatildeo de Ciaxares tio de Ciro que invejava as capacidades intelectuais e militares do sobrinho 73 No original [] because his aim is political rather than historical or tragic (TATUM 1989 p101)

61

narrador natildeo nos informa nada a respeito de Ciro ateacute ele completar doze anos quando

sua matildee resolve fazer uma viagem agrave Meacutedia para visitar seu pai Astiacuteages o avocirc de Ciro

Eacute interessante que o narrador comeccedila a apresentaccedilatildeo de sua narrativa justamente

no momento em que Heroacutedoto faz um salto temporal em sua histoacuteria Heroacutedoto nos fala

do nascimento de Ciro e o encontramos novamente quando ele completa dez anos apoacutes

isso haacute um lapso temporal e o encontramos pela terceira vez jaacute um homem adulto e se

rebelando contra o avocirc A narrativa de Xenofonte entretanto comeccedila quando Ciro tem

doze anos ou seja Xenofonte se aproveita das arestas temporais deixadas pela narrativa

de Heroacutedoto para construir a sua proacutepria histoacuteria Podemos desse modo assumir que a

ficccedilatildeo se apodera do vaacutecuo deixado pelos dados histoacutericos Como afirma Freitas

[] a ficccedilatildeo se apodera agraves vezes da Histoacuteria com fins especificamente literaacuterios elementos romanescos se interpotildeem aos elementos histoacutericos a histoacuteria se confunde com a Histoacuteria eacute o que chamaremos aqui de invasatildeo da Histoacuteria pela ficccedilatildeo (FREITAS 1986 p43)

Todo o primeiro livro da Ciropedia eacute composto de cenas que se aproveitam

deste lapso temporal deixado por Heroacutedoto Nestas cenas da Ciropedia Ciro permanece

na Meacutedia ateacute a idade de dezesseis anos quando seu pai ordena que ele retorne agrave Peacutersia

para concluir sua educaccedilatildeo Durante este periacuteodo satildeo descritos banquetes diaacutelogos com

seu avocirc diaacutelogos com seus amigos experiecircncias de caccedila de Ciro sua primeira

participaccedilatildeo em uma campanha militar e ateacute a narrativa amorosa de um persa

apaixonado por Ciro O que percebemos eacute que satildeo narrativas da vida particular do heroacutei

da Ciropedia Desse modo como jaacute ressaltamos em conformidade com Momigliano

(1993) satildeo temas cujo acesso a dados satildeo mais complicados e portanto mais propiacutecios

a serem imaginados

Vamos analisar mais de perto a narrativa da experiecircncia de caccedila de Ciro na

Ciropedia O importante desta narrativa para nosso estudo comparativo eacute que nela haacute o

tema do reconhecimento das qualidades inatas da natureza φύσις (physis) de Ciro O

tema do reconhecimento tambeacutem aparece em Heroacutedoto e surge nas Histoacuterias por meio

de uma brincadeira Sobre o reconhecimento de Ciro em Heroacutedoto afirmam Ferreira e

Silva (2002 p40)

Se eacute romanesca dentro de uma velha tradiccedilatildeo a origem do futuro monarca persa abandonado e miraculosamente salvo o reconhecimento de Ciro dez anos depois daacute-se por um processo que se deseja racional Natildeo eacute de qualquer sinal ou objeto conservado dos primeiros anos de vida que depende mas inteiramente da aparecircncia

62

fiacutesica e das primeiras manifestaccedilotildees de determinaccedilatildeo e autoridade que eacute dotada esta jovem natureza real

Na Ciropedia (I 47-15) Ciro ao conseguir permissatildeo do avocirc para caccedilar fora

dos muros do jardim do palaacutecio parte com uma comitiva em sua primeira experiecircncia

de caccedila Os mais velhos que o acompanhavam iam lhe dando valiosos ensinamentos

mas bastava Ciro ver um cervo ldquo[] esquecendo-se de todas as coisas que ouvira

perseguia-o e nenhuma outra coisa via aleacutem do para onde o cervo fugia []rdquo74 Os

acompanhantes ralhavam pelo seu ousado e perigoso comportamento poreacutem Ciro ao

ouvir um grito ldquo[] salta sobre o cavalo como possuiacutedo pelo ecircxtase e quando viu agrave sua

frente um javali vindo ao encontro lanccedila-se diretamente e entesando a lanccedila

diretamente agrave testa e domina o javali75rdquo Ciro portanto mostra-se corajoso e habilidoso

na arte da caccedila ainda que imprudente76 sendo dominado pela sua paixatildeo desmedida

em seguida em Cirop I416-24 Ciro participa de sua primeira batalha Nela seu

comportamento na caccedila se repete confirmando o que o narrador jaacute dissera antes ldquoDe

modo que natildeo eacute faacutecil encontrar algo que acontecendo na guerra falte agrave caccedilardquo77 (Cirop

I210) Assim como desobedecera aos guardas na caccedila extasiado pela coragem

tambeacutem desobedece ao avocirc Astiacuteages primeiro indo ao campo de batalha em seguida

tomando a dianteira dos cavaleiros

Como um catildeo de boa raccedila mas inexperiente imprudentemente vai de encontro ao javali assim tambeacutem Ciro arremetia apenas tentando golpear quem ele alcanccedilasse natildeo se precavendo de nenhuma outra coisa78 (I 421)

Portanto Ciro em suas primeiras experiecircncias puacuteblicas de guerreiro ndash a de caccedila e

a de batalha ndash demonstra suas qualidades inatas para a guerra No entanto pela

juventude e inexperiecircncia lhe faltam ainda determinados ensinamentos principalmente

74 No Original πάντων ἐπιλαθόμενος ὧν ἤκουσεν ἐδίωκεν οὐδὲν ἄλλο ὁρῶν ἢ ὅπῃ ἔφευγε

(CiropI48) 75 No original [hellip] ἀνεπήδησεν ἐπὶ τὸν ἵππον ὥσπερ ἐνθουσιῶν καὶ ὡς εἶδεν ἐκ τοῦ ἀντίου

κάπρον προσφερόμενον ἀντίος ἐλαύνει καὶ διατεινάμενος εὐστόχως βάλλει εἰς τὸ

μέτωπον καὶ κατέσχε τὸν κάπρον (Cirop 148) 76 Sobre o valor educacional desta cena falaremos no capiacutetulo 4 deste trabalho 77 No original ὥστε οὐ ῥᾴδιον εὑρεῖν τί ἐν τῇ θήρᾳ ἄπεστι τῶν ἐν πολέμῳ παρόντων

(Cirop1210) 78 No original ὥσπερ δὲ κύων γενναῖος ἄπειρος ἀπρονοήτως φέρεται πρὸς κάπρον οὕτω καὶ

ὁ Κῦρος ἐφέρετο μόνον ὁρῶν τὸ παίειν τὸν ἁλισκόμενον ἄλλο δ᾽ οὐδὲν προνοῶν

(Cirop1421)

63

de autocontrole diante de suas paixotildees O Ciro de Xenofonte natildeo eacute um homem formado

em corpo de uma crianccedila o Ciro de Heroacutedoto por sua vez jaacute eacute na infacircncia o rei capaz

de tomar as mesmas medidas que no futuro de fato tomaraacute O castigo que quando

crianccedila impotildee ao colega revela o mesmo temperamento despoacutetico do avocirc o mesmo

despotismo que ele revelaraacute quando adulto79 A personagem de Xenofonte neste

sentido eacute mais complexa pois vai moldando seu modo de agir no mundo aprendendo

com as experiecircncias por que passa A infacircncia de Ciro em Xenofonte eacute uma narrativa

com traccedilos romanescos e didaacuteticos mas em nada ingecircnua que propiciaraacute a formaccedilatildeo do

Ciro adulto Quanto ao tema do reconhecimento da mesma forma que em Heroacutedoto

durante uma brincadeira Ciro eacute reconhecido como rei em Xenofonte durante uma caccedila

Ciro eacute reconhecido como heroacutei

Concluiacutemos reafirmando que Xenofonte molda a narrativa da infacircncia de Ciro a

partir das brechas deixadas pela narrativa de Heroacutedoto Segundo Freitas (1989 p43)

este tipo de procedimento dos narradores de ficccedilatildeo eacute chamado de ldquoinfraccedilatildeo do material

histoacutericordquo Aleacutem de moldar sua narrativa nas brechas da narrativa de Heroacutedoto

Xenofonte tambeacutem apaga dela o que seria incoerente com o tom idealizante de sua

narrativa Desse modo a manipulaccedilatildeo do material histoacuterico eacute organizada em virtude da

lei da necessidade e da verossimilhanccedila na representaccedilatildeo da evoluccedilatildeo do caraacuteter para

tornaacute-lo coerente com a idealizaccedilatildeo proposta por Xenofonte

Figura 1 Ciro na corte do rei Astiacuteages Nesta cena Ciro estaacute servindo vinho ao rei conforme a Ciropedia I3

Fonte Baldwin J Fifty famous stories retold by James Baldwin (2008)

79 A atitude que melhor exemplifica o despotismo de Ciro na narrativa de Heroacutedoto eacute o castigo que ele impotildee ao seu inimigo Creso a quem Ciro queria queimar vivo

64

323 A cena de Creso o encontro dos monarcas

Analisaremos nesta seccedilatildeo a Cena de Creso que corresponde ao primeiro

encontro entre os monarcas Ciro e Creso rei da Liacutedia Tanto na narrativa de Heroacutedoto

quanto na de Xenofonte o encontro acontece apoacutes a tomada da cidade de Sardes a

capital da Liacutedia descrita ldquo[] como a cidade mais opulenta da Aacutesia apoacutes a Babilocircniardquo

(Cirop 1965 p209) Deter-nos-emos nesta narrativa porque nela as noccedilotildees de Genette

(1982 p8) de intertextualidade e alusatildeo satildeo aplicadas com mais clareza

Primeiramente devemos lembrar que enquanto em Heroacutedoto eacute Ciro quem

aparece na narrativa dedicada a Creso (Histoacuterias 1731) em Xenofonte eacute Creso quem

aparece na narrativa de Ciro (Cirop VII29-14) Esta observaccedilatildeo ainda que agrave primeira

vista pareccedila demasiadamente simples ressalta o que chamamos de inversatildeo do ἔθος

(ethos) Isso significa que a mudanccedila de focalizaccedilatildeo80 de uma obra para a outra

influenciaraacute na caracterizaccedilatildeo eacutetica e psicoloacutegica das personagens e o tema da sabedoria

das personagens seraacute o eixo central dessa inversatildeo da focalizaccedilatildeo e estaraacute implicado em

toda Cena de Creso

3231 Preparativos

Antes no entanto de analisarmos o encontro dos monarcas eacute preciso recapitular

em que circunstacircncias o encontro ocorre Creso na Ciropedia eacute o maior aliado do rei

Assiacuterio em sua campanha contra a coalizatildeo medo-persa De fato Creso preenche a

funccedilatildeo de verdadeiro inimigo de Ciro na obra jaacute que nenhum outro dos seus inimigos

(nem o rei Assiacuterio nem seu filho nem o rei Armecircnio) concretiza pela figurativizaccedilatildeo81

accedilotildees no enredo que preencham a funccedilatildeo de oponente real de Ciro

Nas Histoacuterias ao contraacuterio a luta entre liacutedios e persas decorre da ambiccedilatildeo de

Creso Segundo Heroacutedoto dois anos apoacutes a morte de seu filho Aacutetis (Histoacuterias1351-

453) Creso fica alarmado ao ouvir falar da derrota de Astiacuteages por seu neto Ciro e

80 Cf Reis (2000 p159) ldquoA focalizaccedilatildeo pode ser definida como a representaccedilatildeo da informaccedilatildeo diegeacutetica que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciecircncia quer seja o de uma personagem da histoacuteria quer o do narrador heterodiegeacuteticordquo 81 Entendemos a figurativizaccedilatildeo como um componente semacircntico que por meio da ilusatildeo referencial evoca o mundo real Por meio dela as funccedilotildees da narrativa satildeo preenchidas ou concretizadas com accedilotildees que se encadeiam na constituiccedilatildeo da histoacuteria Cf Reis (2000 p158)

65

comeccedila a pensar em diminuir o poder dos persas antes que este aumente em demasia

Aleacutem disso Creso deseja vingar-se de Ciro porque Astiacuteages era seu cunhado casado

com sua irmatilde Tomado por este desejo Creso pergunta ao oraacuteculo de Delfos se deveria

ou natildeo atacar os persas O oraacuteculo responde-lhe que se Creso atacasse os persas um

grande impeacuterio seria destruiacutedo Isso motiva Creso a iniciar a batalha que culmina com a

invasatildeo pelos persas da capital da Liacutedia (Histoacuterias153) As diferenccedilas entre as duas

narrativas ateacute aqui satildeo de ordem da infraccedilatildeo dos dados histoacutericos A infraccedilatildeo segundo

Freitas (1986 p48) desloca deforma ou simplesmente negligencia os dados histoacutericos

na ficccedilatildeo Pode-se questionar se as oposiccedilotildees deste entrecho da narrativa natildeo poderiam

provir de outras fontes a que Xenofonte teria acesso como a Peacutersica de Cteacutesias ou

mesmo de alguma gesta persa No entanto a escassez de dados a respeito destas outras

fontes natildeo nos permite responder a esta questatildeo com absoluta seguranccedila

Podemos entatildeo conjeturar a hipoacutetese de que estas informaccedilotildees foram

manipuladas em funccedilatildeo tanto da coerecircncia da sequecircncia das accedilotildees da narrativa quanto

da manutenccedilatildeo da verossimilhanccedila entre as accedilotildees e o caraacuteter da personagem pois a

noccedilatildeo de justiccedila na Ciropedia eacute expressa de acordo com a foacutermula de que devemos

fazer bem aos amigos e mal aos inimigos Neste sentido o heroacutei da narrativa nunca

inicia uma guerra mas apenas se defende daqueles que o atacam Acima referimos que

nas Histoacuterias Creso inicia a guerra contra Ciro para se vingar deste porque Astiacuteages era

seu cunhado Neste caso Ciro havia cometido um ato injusto ao rebelar-se contra

Astiacuteages uma vez que este era seu avocirc Jaacute na Ciropedia se natildeo houvesse a agressatildeo de

Creso (membro da coalisatildeo Assiacuteria) a Ciro natildeo haveria a guerra contra a Liacutedia

Portanto a manipulaccedilatildeo de um dado histoacuterico por Xenofonte impeliu-o a manipular

toda uma sequecircncia da narrativa Todavia estas manipulaccedilotildees foram todas feitas com o

intuito de caracterizar a personagem com verossimilhanccedila em vista de idealizar o heroacutei

da narrativa e expressar o referido ideal de justiccedila Se Ciro iniciasse uma guerra contra

Creso a coerecircncia entre caraacuteter e accedilotildees natildeo seria obtida uma vez que romperia com a

ideia de justiccedila expressa na obra e a obra fracassaria como literatura pedagoacutegica O

caraacuteter da personagem condiz com suas accedilotildees e o veriacutedico ndash os dados histoacutericos ndash eacute

substituiacutedo pelo verossiacutemil (FREITAS 1986 p49)

Quanto agrave narrativa da tomada da cidade de Sardes Xenofonte apresenta uma

revisatildeo do texto de Heroacutedoto captando da narrativa de Heroacutedoto os elementos gerais e

suprimindo dela alguns detalhes Nos dois autores a tomada se daacute apoacutes uma primeira

66

vitoacuteria do exeacutercito persa na batalha de Pteacuteria82 que forccedila a fuga dos liacutedios agrave cidade de

Sardes Agrave testa da fuga estaacute Creso que se refugia em seu palaacutecio83

Due (1989 p123) mostra que em ambas as narrativas a tomada da cidade se daacute

escalando as muralhas da cidadela no entanto em Histoacuterias a invasatildeo ocorre por um

erro de Creso que natildeo fortificara uma parte da cidadela ldquo[] jaacute que natildeo era de temer que

alguma vez pudesse ser tomada por aquele lado []rdquo (Histoacuterias 184)84 na narrativa

xenofonteana a escalada eacute fruto de um estratagema de Ciro demonstrando com isso a

superioridade militar do liacuteder persa sobre seu inimigo Creso Pela primeira vez o eixo

da inversatildeo do ἔθος eacute revelado a sabedoria

Em seguida agrave invasatildeo Heroacutedoto conta que enquanto os persas saqueavam a rica

cidade um persa acerca-se de Creso no palaacutecio e natildeo o reconhecendo estava pronto

para mataacute-lo quando o filho de Creso que era mudo assustado deu um miraculoso

grito ldquoNatildeo mates Cresordquo (Histoacuterias 1854) O persa entatildeo aprisionou Creso Heroacutedoto

afirma ainda que Creso governou a Liacutedia por catorze anos e que suportou o saque da

cidade por catorze dias e com a sua queda pocircs-se fim a um grande Impeacuterio ndash o seu ndash

(Histoacuterias1861-2) cumprindo desse modo o vaticiacutenio do oraacuteculo de Delfos

Jaacute na Ciropedia apoacutes a tomada da cidade Creso trancado no palaacutecio convoca

Ciro para para primeira vez se encontrarem face a face No entanto Ciro envia um

grupo de guardas para vigiaacute-lo enquanto manteacutem a ordem na cidade impedindo que

seus soldados saqueiem Sardes Apoacutes controlar seus soldados85 Ciro parte ao encontro

de Creso

Concordamos com Tatum (1989 p152-153) de que haacute no gesto de Creso em

convocar Ciro um empreendimento calculado e ardiloso Mesmo derrotado Creso toma

uma atitude imperiosa convocando seu inimigo para ir ao seu encontro Poreacutem na

situaccedilatildeo de vencedor em que se encontra seria inverossiacutemil se Ciro obedecesse

prontamente ao seu inimigo derrotado por isso Ciro responde a Creso enviando

82 Histoacuterias 176 Cirop 71 83 Essa fuga de Creso para Heroacutedoto ocorre por um erro de julgamento do rei que pensou que jamais seria atacado em sua capital por Ciro jaacute Xenofonte mostra que na fuga de Creso estaacute representada a rendiccedilatildeo do monarca da Liacutedia rendiccedilatildeo que proporcionaraacute o encontro entre os dois 84 O feito em verdade eacute de Meles um mardo pois eacute ele que descobre este furo na proteccedilatildeo da cidadela Segundo Maria de Faacutetima (1994 nota 138 p114) a inexpugnabilidade da cidade de Sardes eacute lugar comum nas fontes 85 O tema do saque da cidade da Liacutedia estaacute presente em ambas as narrativas No entanto parece-nos que o saque em Heroacutedoto eacute um problema econocircmico Creso aconselha a Ciro de que a cidade agora eacute de Ciro e os soldados estatildeo saqueando as riquezas de Ciro Na Ciropedia o saque eacute um problema moral pois com esta conduta os piores soldados teratildeo iguais ou mais recompensas do que os melhores soldados contrariando a noccedilatildeo de justiccedila expressa na obra

67

soldados para vigiaacute-lo Aleacutem disso Ciro demora-se em assuntos aparentemente

menores como o saque agrave cidade Ciro coloca Creso em segundo plano abaixo de

qualquer outro assunto

Se Ciro tivesse ido ao comando de Creso ele o teria encontrado em um terreno familiar provavelmente em um cenaacuterio magniacutefico que deveria enfatizar de modo nada sutil a riqueza e a nobreza de seu anfitriatildeo Ciro deveria ser o convocador natildeo o convocado De fato ele demonstra seu controle sobre Creso colocando-o sob a guarda de soldados ordinaacuterios e deixa claro que haacute assuntos mais importantes para cuidar do que Creso da Liacutedia O primeiro round foi dado em favor de Ciro86 (TATUM 1989 p153 traduccedilatildeo nossa)

A anaacutelise de Tatum revela a sutileza com que Xenofonte constroacutei este embate de

egos entre os dois monarcas demonstrando a qualidade esteacutetica da cena Aleacutem disso

em nossa opiniatildeo mais uma vez Ciro mostra-se mesmo nos menores detalhes superior

moral e intelectualmente a Creso

3232 Creso prisioneiro de Ciro

O primeiro encontro de Creso e Ciro se daacute portanto nestas circunstacircncias A

interpretaccedilatildeo de Lefegravevre (2010 p403) nos parece acertada quando este afirma que o

diaacutelogo travado entre Ciro e Creso na Ciropedia condensa temas importantes de dois

diaacutelogos essenciais da narrativa de Heroacutedoto sobre Creso o diaacutelogo de Ciro e Creso e o

diaacutelogo de Creso e Soacutelon87 (Histoacuterias129-33) Eacute pela anaacutelise dos temas destes

diaacutelogos que podemos sentir a copresenccedila do texto de Heroacutedoto na narrativa de

Xenofonte Procuraremos demonstrar nesta seccedilatildeo de que forma isso ocorre

Em Histoacuterias apoacutes capturar Creso Ciro ergue uma pira sobre a qual coloca seu

inimigo com mais sete jovens liacutedios ldquo[] ou por ter em mente sacrificaacute-los como

primiacutecias a algum deus ou por desejar cumprir um voto ou ainda por ter ouvido dizer

86 No original If Cyrus had come at Croesus bidding he would have encountered him on home ground presumably in a magnificent setting which would have emphasized in none too subtle ways the wealth and nobility of his host Cyrus would have been the one summoned rather than the summoner Instead he demonstrates his control over Croesus by putting him under guard with ordinary soldiers and he makes it clear that there are more important matters to attend to than Croesus of Lydia The first round has gone in Cyrusrsquos favor (TATUM 1989 p153) 87 Lefegravevre (2010) comenta que a improbabilidade de que o encontro entre Creso e Soacutelon tenha ocorrido realmente natildeo impediu seu impacto na literatura posterior sendo recontado por diversos autores Diodoro Plutarco Dioacutegenes Laeacutercio e Luciano por exemplo Ferreira e Silva (2002 p6) confirmam o anacronismo deste encontro pois na altura em que Heroacutedoto diz que o encontro ocorreu Soacutelon jaacute devia ter morrido

68

que Creso era piedoso []rdquo (Histoacuterias1862) Creso diante da morte iminente lembra-

se das palavras que Soacutelon lhe dissera a respeito da felicidade εὐδαιμονία

(eudaimonia) ldquoningueacutem eacute feliz enquanto viverrdquo (Histoacuterias 1863) Com tais palavras

em mente Creso pronuncia o nome de Soacutelon por trecircs vezes Ciro curioso com aquela

lamentaccedilatildeo por meio de inteacuterpretes perguntou a Creso a quem ele invocava A partir

deste mote Creso narra a Ciro o encontro que tivera com o filoacutesofo ateniense

Segundo Heroacutedoto Sardes estava no auge da riqueza e por isso afluiacuteam para a

cidade muitos saacutebios (Histoacuterias 1291) Soacutelon que desejava conhecer as terras dos

povos baacuterbaros foi hospedado por Creso que apoacutes demonstrar-lhe as suas riquezas lhe

indagou ldquo[] se jaacute viste algueacutem que fosse mais feliz88 dos homensrdquo Creso esperava

que Soacutelon respondesse que o proacuteprio Creso era o mais feliz dos homens mas Soacutelon

respondeu que dos homens o mais feliz era Telo de Atenas cuja vida fora proacutespera e

tivera dois filhos belos e bons καλοκαγάθοι (kalokagathoi) Contrastam os filhos de

Telo belos e bons com os dois filhos do proacuteprio Creso jaacute que um Aacutetis estava

destinado a morrer ferido por uma ponta de ferro enquanto o outro nascera surdo e

mudo Aleacutem disso Telo morrera de forma gloriosa auxiliando os atenienses em guerra

contra os eleusinos provocando a fuga destes Por causa da sua bela morte os

atenienses sepultaram-no com ldquoexeacutequias e tributaram-lhe grandes honrasrdquo (Histoacuterias

1305) Creso incitado pela fala de Soacutelon perguntou-lhe entatildeo quem seria o segundo

homem mais feliz e Soacutelon desta vez respondeu que eram Cleacuteobis e Biacuteton dois jovens da

raccedila argiva dotados de grande forccedila fiacutesica Quando os argivos celebravam uma festa em

honra a Hera a matildee dos jovens que era esperada no templo natildeo podia dirigir-se ateacute laacute

por falta de bois que puxassem o carro Eles entatildeo atrelaram o carro agraves costas e

carregaram a matildee por ldquoquarenta e cinco estaacutediosrdquo e ldquo[] sob os olhares de toda a

assembleia sobreveio-lhes o melhor termo de vida e neles mostrou a divindade ser

melhor para o homem morrer do que viver []rdquo (Histoacuterias1313) A matildee jubilosa pelo

feito dos filhos pediu a Hera que lhes desse o que de melhor um homem pudesse obter

A deusa entatildeo lhes deu o sono eterno e ldquo[] eles foram consagrados em Delfos como

homens excelentes que eram []rdquo (Histoacuterias 1315)

Creso por fim perguntou a Soacutelon se ele achava que a sua felicidade nada valia

e Soacutelon em um longo discurso responde-lhe que o homem antes da morte natildeo pode ser

considerado feliz ὄλβος (olbos) mas deve-se dizer afortunado εὐτυχής (eutuches)

88 O termo usado nesta passagem eacute ὀλβιώτατος (olbioacutetatos)

69

pois a vida eacute repleta de vicissitudes sob o impeacuterio da inveja dos deuses Soacutelon diferencia

do bem-estar passageiro o bem-estar definitivo que eacute eternizado por meio da memoacuteria

dos homens (FERREIRA SILVA 2002 p8) Eacute necessaacuterio que a vida termine para que

se possa julgar se algueacutem eacute feliz ou natildeo e tornar-se digno de memoacuteria

As advertecircncias de Soacutelon natildeo satildeo suficientes para que Creso se afaste do

caminho da desmedida ὕβρις (hybris) Creso ainda acreditando que era o homem mais

feliz de todos eacute atingido por um terriacutevel castigo enviado pela divindade Primeiramente

morre seu filho Aacutetis cumprindo-se dessa forma o oraacuteculo em seguida apoacutes dois anos

de luto Creso entra em guerra contra os Persas sendo derrotado Jaacute nos referimos

anteriormente sobre o oraacuteculo de Delfos que Creso interpreta de forma errocircnea

Acreditamos que a maacute interpretaccedilatildeo que Creso faz do oraacuteculo resulte da auto-avaliaccedilatildeo

que ele faz da sua proacutepria vida Em verdade Creso acreditava-se o homem mais feliz

portanto para ele soacute poderia ser o impeacuterio persa que deveria ruir jamais o seu

Apoacutes Creso narrar a Ciro o encontro que tivera com o filoacutesofo Ciro arrepende-

se pois ldquo[] pensou que ele tambeacutem um homem estava a entregar vivo agraves chamas

outro homem cuja prosperidade natildeo fora inferior agrave sua []rdquo (Histoacuterias 1866) Ciro

conteacutem sua ὕβρις temendo uma futura vinganccedila divina

Contudo embora os soldados tentassem apagar o fogo da pira natildeo conseguiam

Creso suplica a Apolo e recebe do deus a ajuda em forma de chuva que apaga todo o

fogo Ciro reconhece deste modo que Creso era querido pelos deuses e lhe pergunta

por que ele decidira combater contra os persas Creso culpa o deus dos helenos ldquo[]

que me induziu a entrar em guerra []rdquo (Histoacuterias1874) Vendo em Creso um homem

saacutebio Ciro faz dele seu conselheiro a quem pede ajuda em importantes decisotildees como

por exemplo a respeito do saque da cidade de Sardes Creso no final da narrativa envia

alguns liacutedios ao oraacuteculo de Delfos para questionar por que os deuses o enganaram

quanto a entrar em guerra contra os persas A resposta da piacutetia lembrava a Creso

primeiro que ele estava marcado pelos crimes de seus antepassados e que os deuses

resguardaram-no por anos do castigo que as Moiras89 preparavam a ele segundo

lembrava-lhe que o culpado de seu infortuacutenio era ele mesmo uma vez que natildeo

compreendera o que lhe fora dito pelo oraacuteculo (Histoacuterias 1911-6) Esta eacute

89 Na mitologia grega as Moiras (Μοῖραι) eram as trecircs irmatildes que determinavam o destino tanto dos homens quanto dos deuses Pertenciam agrave primeira geraccedilatildeo divina Cf Grimal (1993)

70

resumidamente a narrativa de Creso nos detalhes que mais interessam para a nossa

anaacutelise

A questatildeo do oraacuteculo de Delfos e suas ambiguidades permeiam toda a obra de

Heroacutedoto Na narrativa de Xenofonte no entanto como bem observa Due (1989

p125) o papel consagrado aos oraacuteculos eacute diminuiacutedo Deste modo o destino dos

homens eacute fruto mais de suas escolhas e accedilotildees do que do pesado jugo das Moiras dando

assim mais relevo ao papel do Homem na formaccedilatildeo da sua proacutepria histoacuteria

Na Ciropedia toda a cena da pira eacute omitida Natildeo haacute nenhuma referecircncia a ela e

pelo contraacuterio Ciro natildeo precisa das palavras de Creso para ser clemente pois aprendera

de seu pai que a obediecircncia conquistada era muito melhor do que a imposta (Cirop

16) Tatum (1989 p146) observa com felicidade que todas as relaccedilotildees humanas na

Ciropedia de uma forma ou de outra constituem um complemento da educaccedilatildeo de

Ciro apresentada no Livro I Assim a vida de Creso em nenhum momento corre perigo

nas matildeos de Ciro A confrontaccedilatildeo desta cena com a experiecircncia de Ciro com outro

inimigo na Ciropedia o rei Armecircnio parece-nos elucidar o procedimento do heroacutei da

narrativa Com este rei (Cf Livro III) Ciro natildeo se mostrara tatildeo benevolente e julgando-o

culpado de traiccedilatildeo estaacute pronto para condenaacute-lo agrave morte Entretanto o filho do rei um

antigo amigo de Ciro chamado Tigranes discursa em defesa do pai discurso este que

Ciro resume nestes termos

Entatildeo parece a ti disse Ciro que eacute suficiente tal derrota para corrigir os homens tendo reconhecido que os outros satildeo melhores do que eles mesmos 90 (Cirop III120 traduccedilatildeo nossa)

A partir disso Tigranes convence Ciro de que transformar os inimigos em

aliados eacute muito melhor do que mantecirc-los escravizados pois os derrotados sempre

esperaratildeo uma oportunidade para se vingar Ao contraacuterio os que forem perdoados teratildeo

uma vida completamente dedicada agravequele que os salvou Em nossa opiniatildeo haacute na

postura benevolente de Ciro para com seus inimigos um claro contraste com o Ciro em

Heroacutedoto mas principalmente com o Astiacuteages das Histoacuterias Retomemos por um

momento a narrativa da infacircncia de Ciro Astiacuteages castiga Haacuterpago pela desobediecircncia

e este desejando vingar-se instiga Ciro a destronar o avocirc O castigo do inimigo

portanto eacute um tema importante nas duas narrativas A narrativa apresentada em

Heroacutedoto de certo modo figurativiza a reflexatildeo de Tigranes Acreditamos portanto que 90 No original ἔπειτα δοκεῖ σοι ἔφη ὁ Κῦρος καί ἡ τοιαύτη ἧττα σωφρονίζειν ἱκανὴ εἷναι

ἀνθρώπους τὸ γνῶναι ἑαυτῶν αλλους βελτίονας ὄντας

71

a alusatildeo agrave narrativa de Heroacutedoto se estabeleccedila nesta passagem pois eacute significativo como

o tema do castigo complementa-se da forma como eacute discutido e figurativizado em

ambas as obras

Quando Ciro na Ciropedia encontra-se com Creso ele jaacute assimilara esses

ensinamentos e natildeo necessitava do tema da pira para lembraacute-lo de que ele eacute soacute um ser

humano Ao contraacuterio quando eles se encontram pela primeira vez Creso ο sauacuteda desta

forma ldquoSauacutedo-te senhor [δεσπότης] pois a Fortuna [τυχή] a partir de hoje concede

a ti estar nesta posiccedilatildeo e a mim de saudar-te por elardquo91 (Cirop 72 9 traduccedilatildeo nossa)

O uso da palavra δεσπότης (despoteacutes) por Creso natildeo eacute meramente casual pois

como observa Lefegravevre (2010 p404) eacute com esta mesma palavra que Creso se dirige a

Ciro nas Histoacuterias (190 2) Aleacutem disso eacute tambeacutem o modo como os suacuteditos se dirigem

ao rei Assiacuterio na Ciropedia Doravante acreditamos que Creso novamente tenta tomar o

controle da situaccedilatildeo como tentara quando convocara Ciro a ir ao seu encontro Creso

quando sauacuteda Ciro como senhor estaacute implicitamente apelando para a vaidade de Ciro

convidando-o a assumir o papel de soberano enquanto ele Creso estaria

implicitamente no papel de seu escravo (δοῦλος doulos) (TATUM 1989 p153)

A artimanha de Creso ganha maior relevo quando refletimos tambeacutem sobre o

termo τύχη (tyche) (Cirop 72 10) A τύχη eacute destino no sentido de acaso fortuna

Desse modo Creso estaacute afirmando que foi a fortuna quem o colocou na situaccedilatildeo de

submissatildeo a Ciro A frase retoma a ideia proposta na narrativa herodoteana jaacute que a

τύχη para Heroacutedoto ldquo[] tem um papel decisivo no agir de cada pessoa []rdquo

(FERREIRA SILVA 2008 p8) No entanto se eacute ao acaso que se deve a derrota de

Creso a vitoacuteria de Ciro torna-se assunto de mera sorte resultado dos desejos divinos e

natildeo da capacidade de Ciro A resposta de Ciro entretanto neutraliza tanto o apelo agrave sua

vaidade quanto a implicaccedilatildeo de que foi o acaso a causadora de sua vitoacuteria ldquoEu tambeacutem

te sauacutedo Creso visto que ambos somos seres humanos []rdquo92 (Cirop 72 10 traduccedilatildeo

nossa)

Esta fala de Ciro tambeacutem eacute uma alusatildeo agrave narrativa de Heroacutedoto Ciro apoacutes a

cena da Pira em Heroacutedoto chega a esta conclusatildeo e eacute por esta conclusatildeo que decide

perdoar Creso Ambos satildeo seres humanos passiacuteveis portanto da infelicidade se natildeo

91 No original Χαῖρε ὦ δέςποτα ἔφη τοῦτο γὰρ ἡ τύχη καὶ ἔχειν τὸ ἀπὸ τοῦδε δίδωσι σοὶ καὶ

ἐμοὶ προσαγορεύειν 92 No original Καὶ σύ γε ἔφη ὦ Κροῖσε ἐπείπερ ἄνθρωποί γε ἔσμεν ἀμφότεροι

72

respeitarem os homens e os deuses Na Ciropedia natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Soacutelon

entatildeo eacute Ciro quem executa o papel de Soacutelon como detentor da sabedoria Ciro

astutamente responde neutralizando tanto o apelo para a sua vaidade quanto a ideia de

que a sorte foi responsaacutevel pela sua vitoacuteria ao mesmo tempo que se estabelece em niacutevel

de superioridade intelectual a Creso Demonstraremos no proacuteximo capiacutetulo deste

trabalho o importante papel da educaccedilatildeo na tessitura da Ciropedia Poreacutem podemos

por ora dizer que se houvesse a aceitaccedilatildeo de que foi a τύχη quem decidiu a vitoacuteria no

embate o papel da educaccedilatildeo e da formaccedilatildeo se tornaria irrelevante no conteuacutedo da obra

A diferenccedila entre Ciro e Creso natildeo seria mais a especiacutefica paideia de Ciro poreacutem um

capricho dos deuses e da fortuna Por esta razatildeo acreditamos que interpretar a fala de

Ciro como a neutralizaccedilatildeo da τύχη eacute fundamental pois o discurso de Ciro restitui o

valor do homem e de sua paideia na construccedilatildeo do seu futuro

Na sequecircncia da cena apoacutes esta ardilosa saudaccedilatildeo Creso narra sua vida a Ciro

Nesta narrativa de Creso a Ciro haacute vaacuterias alusotildees agrave narrativa construiacuteda por Heroacutedoto

Podemos dizer que de certa forma a narraccedilatildeo de Creso sumariza com breves

referecircncias toda a narrativa de Heroacutedoto retomando por exemplo os temas dos dois

filhos de Creso ou dos vaacuterios questionamentos feitos ao oraacuteculo de Delfos (Cirop 72

19) Lefegravevre (2010 p406) argumenta que as alusotildees contidas neste trecho soacute podem ser

compreendias se o leitor tiver o conhecimento da obra de Heroacutedoto Desse modo

quando Creso narra que um de seus filhos eacute mudo e o outro morreu na flor da vida eacute

evidente que ele se refere a Aacutetis assassinado por Adrasto e ao filho mudo que em

Heroacutedoto recupera a voz para salvar o pai Em Xenofonte no entanto o filho mudo

permanece neste estado

O uacuteltimo tema encontrado nesta cena da Ciropedia tambeacutem encontrado em

Heroacutedoto diz respeito agrave discussatildeo sobre a felicidade Quando resumimos a narrativa de

Heroacutedoto procuramos sublinhar a importacircncia deste tema para a construccedilatildeo da narrativa

sobre Creso Natildeo nos parece portanto de modo algum casual a presenccedila deste tema na

Cena de Creso da Ciropedia onde jaacute encontramos vaacuterias alusotildees agrave narrativa

herodoteana

O tema da felicidade surge na Ciropedia quando Creso assume a culpa por se

encontrar submisso a Ciro Para Creso seu erro comeccedilou ao procurar testar os oraacuteculos

questionando a veracidade de suas profecias Aleacutem disso tambeacutem assume que natildeo

73

soube seguir o preceito do oraacuteculo de Delfos93 que lhe indicava que o melhor caminho

para se desfrutar da felicidade eacute conhecer-se a si mesmo Para Creso conhecer-se a si

mesmo era uma tarefa faacutecil pois ele se presumia ldquotalhado para a grandezardquo (Cirop 72

24) Por causa dessa avaliaccedilatildeo diz Creso

Quando todos os reis em assembleacuteia me elegeram para ser o chefe na guerra eu aceitei o comando pois me achava capaz de ser grande enganando a mim mesmo com efeito porque me julgava capaz de fazer guerra contra ti que primeiramente eacute descendente dos deuses em seguida nascido atraveacutes de reis e por fim exercitado na virtude desde a infacircncia94 (Cirop 72 24 traduccedilatildeo nossa)

Nesta fala de Creso eacute retomado o proacuteprio discurso do narrador no proecircmio da

obra onde ele estabelece que sua pesquisa sobre Ciro tematizaraacute a γένεαν

descendecircncia a φύσιν a natureza e a παιδεία a educaccedilatildeo Isso significa que o

projeto a que o narrador se dedica atinge seu apogeu com o reconhecimento de Creso

Creso reconhece as qualidades de Ciro e que seu erro foi julgar-se no mesmo niacutevel do

rei persa No entanto tendo passado da felicidade agrave infelicidade no periacuteodo de um dia

como uma personagem traacutegica Creso pode afirmar que hoje ele reconhece a si mesmo

ou seja reconhece sua inferioridade em relaccedilatildeo a Ciro O tema da felicidade portanto

estaacute intimamente ligado ao tema da sabedoria eacute feliz aquele que conhece a si mesmo

poreacutem conhecer a si mesmo eacute a mais difiacutecil das tarefas

Por fim analisaremos o uacuteltimo segmento da narrativa concernente a Creso

Nesta passagem ainda seraacute desenvolvido o tema da felicidade Apoacutes decidir tornar

Creso seu conselheiro Ciro devolve a Creso toda a sua famiacutelia e lhe restitui a vida

luxuosa de antes No entanto retira-lhe os direitos poliacutetico e militares Creso agradece a

Ciro o tipo de vida que este estaacute lhe proporcionando pois passaraacute a viver do modo que

julga ser o mais feliz A explicaccedilatildeo de Creso eacute que a vida que a partir de agora ele

passaraacute a ter seraacute equivalente ao tipo de vida que sua esposa vivia ldquo[] pois ela de um

lado partilhava igualmente comigo de todos os bens luxos prazeres e de outro lado

natildeo dizia respeito a ela as preocupaccedilotildees de como ter estas coisas nem de guerra e de 93 Segundo Creso o ensinamento do oraacuteculo foi ldquoconheccedilendo-te a ti mesmo Creso e atravesseraacutes feliz a vidardquo (Cirop VII220 traduccedilatildeo nossa) No original Σαυτόν γιγνώσκων εὐδαίμων Κροίσε

περάσεις (Cirop VII220) 94 No original ὡς εἵλοντό με πάντες οἱ κύκλῳ βασιλεῖς προστάτην τοῦ πολέμου ὑπεδεξάμην

τὴν στρατηγίαν ὡς ἱκανὸς ὢν μέγιστος γενέσθαι ἀγνοῶν ἄρα ἐμαυτόν ὅτι σοὶ ἀντιπολε

μεῖν ἱκανὸς ᾤμην εἶναι πρῶτον μὲν ἐκ θεῶν γεγονότι ἔπειτα δὲ διὰ βασιλέων πεφυκότι

ἔπειτα δ ἐκ παιδὸς ἀρετὴν ἀςκοῦντι (Cirop 72 24)

74

batalhardquo 95 (Cirop VII228 traduccedilatildeo nossa) Estaacute impliacutecita nesta cena mais uma alusatildeo

agrave narrativa de Heroacutedoto Nas Histoacuterias Creso aconselha a Ciro que perdoe aos liacutedios

revoltosos

Mas perdoa aos liacutedios e para eles natildeo se sublevarem nem te darem cuidado impotildee-lhes restriccedilotildees proiacutebe-os de usarem armas de guerra obriga-os a vestir tuacutenicas por baixo dos mantos e a calccedilar coturnos e ordena-lhes que ensinem os filhos a tocar ciacutetara a dedilharem instrumentos de cordas e a fazerem negoacutecios E natildeo tarda meu senhor que vejas passar de homens a mulheres e assim desaparece o risco de se revoltarem [] (Histoacuterias 1155 4)

Ou seja Creso em Heroacutedoto define uma vida de oacutecio luxo e sem preocupaccedilotildees

como uma vida efeminada ndash ldquopassar de homens a mulheresrdquo (Histoacuterias 1155 4)

Entretanto a vida que Ciro permitiraacute que Creso tenha seraacute tambeacutem uma vida de oacutecio e

luxo mas sem preocupaccedilotildees militares e poliacuteticas Assim a vida que Creso nas

Histoacuterias julga efeminada e refuta na Ciropedia ele a julga como a mais feliz Aleacutem

disso mais uma vez observamos a inversatildeo do ethos em Heroacutedoto eacute Creso quem

aconselha a Ciro tomar tal decisatildeo em Xenofonte Ciro toma esta decisatildeo sem ajuda de

seu inimigo

A referecircncia agraves Memoraacuteveis (2121-34) nos ajudaraacute a compreender um pouco

mais estas implicaccedilotildees e por meio desta referecircncia percebemos que a afirmaccedilatildeo de

Creso eacute absurda para Xenofonte

Neste trecho referido das Memoraacuteveis a personagem Soacutecrates narra uma

narrativa que ouviu de Proacutedico em uma de suas leituras puacuteblicas Segundo a narrativa

Heacuteracles estava na idade em que os jovens devem escolher entre a virtude e o viacutecio

Apareceram-lhe entatildeo duas mulheres de extraordinaacuteria estatura uma agindo como

pessoa de condiccedilatildeo livre (ἐλευθέριον eleutherion) e de ar nobre (εὐπρεπῆ euprepe)

a outra corpulenta (πολυσαρκίαν polusarkian) e mole (ἁπαλότητα hapaloteta) A

segunda aproximou-se de Heacuteracles e lhe disse que se a seguisse ela o conduziria a um

caminho prazeroso e faacutecil livre de penas sem ocupar-se de guerras e de negoacutecios

aproveitando-se do trabalho alheio Chamava-se Felicidade poreacutem seus inimigos a

chamavam de Perversidade96 (Memoraacuteveis 1987 p65) A outra mulher aproximou-se

95 No original ἐκείνη γὰρ τῶν μὲν ἀγαθῶν καὶ τῶν μαλακῶν καὶ εὐφροσυνῶν πασῶν ἐμοὶ τὸ

ἴσον μετεῖχε φροντίδων δὲ ὅπως ταῦτα ἔσται καὶ πολέμου καὶ μάχης οὐ μετῆν αὐτῇ (Cirop VII228) 96 Κακία (Kakiacutea)

75

em seguida e tambeacutem lhe fez um discurso natildeo procurando enganaacute-lo com promessas de

prazeres mas prometendo um futuro glorioso e belo desde que agrave base de sacrifiacutecios e

diligecircncias Esta se chamava Virtude (Αρετή Arete) A Perversidade disse-lhe em

resposta

Compreendes Heracles que esta mulher descreve a ti um aacuterduo e longo caminho para a felicidade Eu de outro lado te conduzirei por um caminho curto e cocircmodo em direccedilatildeo a felicidade97 (Memoraacuteveis LII129 traduccedilatildeo nossa)

A resposta proferida pela Virtude mostra a Heacuteracles o quanto as conquistas (do

corpo e da alma) provindas do trabalho e da virtude satildeo melhores do que as provindas

pelo caminho faacutecil do oacutecio A verdadeira felicidade portanto eacute fruto da Virtude ainda

que a felicidade provinda da Virtude esteja acompanhada de trabalhos e penas A

felicidade provinda pela vida faacutecil eacute apenas aparente Creso portanto escolhe o

caminho da Perversidade no sentido de que ele estaacute preferindo uma vida de oacutecio A

afirmaccedilatildeo de Tatum (1989 p151) nos parece acertada ldquoHaacute uma bizarra implicaccedilatildeo

sobre o presente status de Creso Comparando sua antiga relaccedilatildeo com sua mulher com a

sua nova relaccedilatildeo com Ciro Creso inconscientemente compara-se a uma mulher []98rdquo

Figura 2 Creso a ponto de ser incendiado a mando de Ciro Acircnfora grega

Fonte httpeswikipediaorgwikiArchivoKroisos_stake_Louvre_G197jpg

97 No original Ἐννοεῖς ὦ Ἡράκλεις ὡς χαλεπὴν καὶ μακρὰν ὁδὸν ἐπὶ τὰς εὐφροσύνας ἡ

γυνή σοι αὕτη διηγεῖται ἐγὼ δὲ ῥᾳδίαν καὶ βραχεῖαν ὁδὸν ἐπὶ τὴν εὐδαιμονίαν ἄξω σε

(Memoraacuteveis LII129 traduccedilatildeo nossa) 98 No original There is a bizarre implication here about Croesusrsquo present status By comparing his former relationship whit his wife to Cyrusrsquos relationship with him now Croesus unknowingly likes himself to a woman (TATUM 1989 p151)

76

3233 A intertextualidade e a reescrita da histoacuteria

A partir desta nossa anaacutelise da Cena de Creso podemos concluir que a narrativa

da Ciropedia alude em muitos momentos agrave narrativa de Heroacutedoto A alusatildeo eacute uma

forma impliacutecita de intertextualidade mas que se revela por exemplo na repeticcedilatildeo de

temas jaacute antes abordados pelo texto modelo Uma vez que a alusatildeo eacute uma forma

impliacutecita de intertextualidade podemos presumir que Xenofonte esperava o preacutevio

conhecimento da narrativa de Heroacutedoto Aleacutem disso uma vez que natildeo estamos em

condiccedilotildees de confrontar a narrativa de Xenofonte com todas as obras que poderiam ter

sido suas fontes podemos afirmar que nas passagens em que identificamos a

intertextualidade o material histoacuterico autorizado por Heroacutedoto foi manipulado natildeo por

conhecimento de outra fonte mas por um processo de ficcionalizaccedilatildeo Nestas

condiccedilotildees a ficccedilatildeo infringe a histoacuteria Segundo Freitas (1986 p50)

[] ao constatar que as informaccedilotildees histoacutericas oscilam sem cessar entre o real e o fictiacutecio por razotildees esteacuteticas ideoloacutegicas ou pragmaacuteticas percebe-se que na verdade a Histoacuteria eacute adaptada agraves intenccedilotildees especificamente literaacuterias do escritor ela perde seu estatuto de referencial autocircnomo e se torna elemento constitutivo do universo interno do romance de ficccedilatildeo

Quais seriam entatildeo as intenccedilotildees de Xenofonte ao efetuar a adaptaccedilatildeo do

material histoacuterico Procuramos demonstrar em nossa anaacutelise que as adaptaccedilotildees do texto

de Heroacutedoto procuravam sempre sublinhar a sabedoria de Ciro em contraste com seu

oponente Creso Desse modo denominamos a inversatildeo do ἔθος o caraacuteter de Ciro

como eixo principal das modificaccedilotildees da Ciropedia A anaacutelise do texto de Heroacutedoto

revela que Creso apoacutes sua derrota para Ciro compreende os ensinamentos de Soacutelon e

torna-se de algum modo um homem saacutebio Ciro contudo mostra-se detentor deste

mesmo conhecimento porque em nossa opiniatildeo na Ciropedia a sabedoria estaacute

intimamente ligada agrave formaccedilatildeo da personagem Ciro assume o papel de Soacutelon de saacutebio

capaz de aplicar algum ensinamento a Creso

Desse modo Xenofonte procura a partir de estrateacutegias de ficcionalizaccedilatildeo

idealizar Ciro e com isso estruturar verossimilmente a representaccedilatildeo das accedilotildees e do

caraacuteter da personagem de Ciro

77

324 A Morte de Ciro

Trataremos da cena a respeito da morte de Ciro Segundo Sancisi-Weerdenburg

(2010 p441) Heroacutedoto natildeo eacute a autoridade mais confiaacutevel sobre este assunto e a

estudiosa acredita que Xenofonte estruturou sua narrativa a partir da tradiccedilatildeo oral

iraniana Acreditamos que uma vez que temos escassas informaccedilotildees a respeito das

fontes sobre a vida de Ciro eacute muito complicado afirmar qual fonte eacute mais ou menos

confiaacutevel Mais complicado ainda eacute afirmar qual das fontes Xenofonte julgou ser a

correta Infelizmente a uacutenica destas fontes que nos chegou foi a obra de Heroacutedoto e eacute

apenas por meio da comparaccedilatildeo com ela que podemos verificar se Xenofonte manteacutem-

se fiel ou manipula o material histoacuterico Aleacutem disso haacute ainda nesta cena algumas

alusotildees a narrativa de Heroacutedoto

Em Heroacutedoto Ciro morre no campo de batalha durante a tentativa de subjugar

os massaacutegetas (Histoacuterias 1201-214) A tentativa de Ciro eacute por Heroacutedoto descrita

como negativa motivada ldquo[] em primeiro lugar [pelas] circunstacircncias do seu

nascimento que o levavam a considerar-se mais do que um simples mortal depois o

sucesso que sempre obtinha em campanha []rdquo (Histoacuterias12042) Aleacutem disso os

massaacutegetas jamais cometeram agressatildeo contra os persas (Histoacuterias1206) Portanto

Heroacutedoto descreve a atitude de Ciro como desmedida ὑβριστής (hybristes) e prepara

a atenccedilatildeo do leitor para a queda do monarca persa

A primeira aproximaccedilatildeo de Ciro em busca de seu objetivo foi uma proposta de

casamento com a rainha Toacutemiris mas esta percebendo o real desejo de Ciro o proibiu

de se aproximar de seu paiacutes Ciro entatildeo inicia a expediccedilatildeo e atravessa o rio Araxes

lanccedilando uma ponte sobre o rio Para Sancisi-Weerdenburg (2010 p445) o tema do

atravessamento do rio eacute um leitmotiv das Histoacuterias para o desencadeamento da queda

do monarca99

Due (1989 p131) observa que a descriccedilatildeo da batalha entre os persas e os

massaacutegetas eacute repleta de elementos sobrenaturais oraacuteculos e avisos Ciro como Creso o

fizera anteriormente interpreta de forma equivocada um oraacuteculo acreditando que Dario

estava tramando contra ele A maacute interpretaccedilatildeo eacute fruto de sua ὕβρις (hybris) a

99 Cf a travessia de Dario no Istros de Xerxes no Helesponto e de Cambises em sua invasatildeo da Etioacutepia Aleacutem disso estes povos invadidos satildeo tambeacutem descritos por Heroacutedoto como inocentes de qualquer ofensa ao povo persa Desse modo Heroacutedoto estabelece como injusta a guerra iniciada por estes persas assim como julgava injusta a guerra promovida por Creso contra Ciro

78

arrogacircncia de se crer invenciacutevel O sonho na verdade predizia a sua morte e que ldquo[]

seu poder passaria para as matildeos de Dario []rdquo (Histoacuterias 12101)

A batalha em que Ciro morre eacute descrita por Heroacutedoto como a mais violenta entre

dois povos baacuterbaros na qual mais pessoas pereceram O reinado de Ciro durou vinte e

nove anos e apoacutes descrever o ultraje que o corpo morto de Ciro sofreu nas matildeos da

rainha Toacutemiris (Histoacuterias1214) Heroacutedoto termina sua narrativa estabelecendo que

dentre as muitas versotildees a respeito da morte de Ciro ldquo[] esta eacute a mais criacutevel []rdquo

(Histoacuterias 1214 5) Heroacutedoto deve ter rejeitado as outras versotildees porque elas

deveriam conter elementos de glorificaccedilatildeo a Ciro e o encocircmio destoaria da estrutura

traacutegica criada pelo autor para os monarcas baacuterbaros

Jaacute afirmamos anteriormente que a narrativa de Ciro em Heroacutedoto visava a ser

paradigmaacutetica ldquocom funccedilotildees determinadas no conjunto da narrativardquo (FERREIRA

SILVA 2002 p38) Deste modo a narrativa da vida de Ciro preenche o padratildeo

estrutural definido por Immerwahr (1981 apud FERREIRA SILVA 2002) Segundo

Immerwahr o padratildeo das narrativas de Heroacutedoto assume a seguinte estrutura a-) as

origens do monarca (como nasceu e como chegou ao poder) b-) primoacuterdios do reinado

ateacute atingir o apogeu c-) curva descendente que culmina com a queda do monarca

Pudemos observar em nossa anaacutelise como este modelo se aplica facilmente a narrativa

sobre a vida de Ciro Primeiramente sua origem eacute marcada pelos signos da lenda o

afastamento da casa materna por causa de um oraacuteculo e o subsequente reconhecimento

de sua verdadeira identidade Em seguida a carreira militar vitoriosa primeiro

destronando seu avocirc Astiacuteages depois derrotando Creso e dominando a Liacutedia e a

Babilocircnia Por fim sua queda porque acreditou ser mais do que um simples mortal Eacute

interessante como Heroacutedoto ata esta estrutura com perfeiccedilatildeo pois remonta a arrogacircncia

de Ciro que eacute a causa da sua queda agrave sua origem e agrave sua carreira militar de sucesso

(Histoacuterias12042)

Em Xenofonte (CiropVIII7) encontramos uma narrativa completamente

diferente Ciro morre idoso contente e de um modo paciacutefico em casa rodeado pelos

seus amigos e parentes No final de sua vida Ciro retorna agrave Peacutersia ldquo[] pela seacutetima vez

em seu reinado []rdquo100 (Cirop VIII71) onde tem um sonho no qual uma pessoa de

estatura extraordinaacuteria lhe revelou que iria morrer Assim que ele acorda faz rituais aos

100 No original [] τὸ ἕβδομον ἑπί τῆς αὐτοῦ ἀρχῆς []

79

deuses e orando agradece-os por terem revelado por meio de sinais ldquo[] as coisas que

eu deveria e as coisas que natildeo deveria fazer []rdquo101 (Cirop VIII73) Em seguida diz

Muito agradeccedilo a voacutes pois reconhecia a vossa atenccedilatildeo e jamais na prosperidade me considerei acima dos homens Peccedilo que voacutes deis agora a felicidade a meus filhos minha esposa meus amigos e minha paacutetria e a mim decirc uma morte tatildeo digna quanto a vida que me destes102

O discurso de Ciro retoma o tema da felicidade eudaimonia discutido no

encontro com Creso Ademais Ciro agradece aos deuses por nunca terem deixado que

ele se tornasse na prosperidade hubristes e se julgasse mais do que qualquer homem

De sorte que Ciro em Xenofonte agradece por natildeo ter tido o mesmo fim que a

personagem Ciro teve em Heroacutedoto

Acreditamos que esta alusatildeo natildeo eacute meramente casual nem mesmo ingecircnua Pelo

contraacuterio em nossa opiniatildeo as alusotildees revelam que Xenofonte estava dialogando

diretamente com a obra de Heroacutedoto aleacutem de servirem de pequenas pistas para que o

leitor possa observar a manipulaccedilatildeo do material de Heroacutedoto Como notamos a partir

da anaacutelise da Cena de Creso as alusotildees em geral referem-se a temas importantes na

obra de Heroacutedoto e que satildeo retrabalhados na Ciropedia Assim natildeo eacute soacute o tema da

felicidade e ο da arrogacircncia que aparecem na narrativa da morte de Ciro mas tambeacutem o

tema do sonho

O tema do sonho frequente em Heroacutedoto tem pouca participaccedilatildeo na estrutura

narrativa da Ciropedia poreacutem assim como em Histoacuterias (1210) os deuses enviam um

sonho a Ciro em que revelam a sua morte A mensagem dos sonhos no entanto diverge

completamente pois o sonho narrado em Heroacutedoto eacute ambiacuteguo e enigmaacutetico Ou seja a

divindade alerta Ciro mas o Ciro de Heroacutedoto eacute incapaz de interpretar corretamente a

mensagem dos deuses Jaacute o sonho enviado a Ciro na Ciropedia eacute claro e direto O sonho

em Heroacutedoto revela o destino traacutegico dos homens que natildeo conseguem compreender os

deuses O sonho em Xenofonte revela que Ciro eacute agraciado pelos deuses pela sua

conduta correta durante a vida

101 No original [] ἅ τrsquo ἐχρῆν ποιεῖν καὶ ἃ οὐκ ἐχρῆν [] 102 No original πολλὴ δ ὑμῖν χάρις ὅτι κἀγὼ ἐγίγνωσκον τὴν ὑμετέραν ἐπιμέλειαν καὶ

οὐδεπώποτε ἐπὶ ταῖς εὐτυχίαις ὑπὲρ ἄνθρωπον ἐφρόνησα αἰτοῦμαι δ ὑμᾶς δοῦναι καὶ νῦν

παισὶ μὲν καὶ γυναικὶ καὶ φίλοις καὶ πατρίδι εὐδαιμονίαν ἐμοὶ δὲ οἷόνπερ αἰῶνα δεδώκατε

τοιαύτην καὶ τελευτὴν δοῦναι

80

Por fim apoacutes dois dias Ciro convocou103 seus dois filhos alguns amigos e

convidados e lhes fez um discurso vindo a falecer em seguida O discurso de Ciro eacute

bem elaborado e retoma os principais temas discutidos na obra Ciro retoma seu passado

e seus feitos observando que a felicidade eudaimonia sempre o acompanhou Ele foi

haacutebil para ajudar os amigos e para prejudicar os inimigos tornou seu paiacutes conhecido e

admirado mas ateacute o momento da sua morte tivera medo de que algo terriacutevel lhe

acontecesse buscando escapar do perigo da hubris Em seguida Ciro estabelece a

divisatildeo de sua heranccedila entre seus dois filhos Cambises e Tanaoxares Apoacutes isso faz

uma reflexatildeo a respeito da imortalidade da alma que deve viver apoacutes a destruiccedilatildeo do

corpo104 Antes de morrer ele ainda daacute algumas instruccedilotildees a respeito do seu funeral

Nossa anaacutelise sobre a narrativa da morte de Ciro demonstrou que a versatildeo de

Xenofonte eacute bem diferente da versatildeo de Heroacutedoto Pode-se justificar tal diferenccedila pelo

conhecimento que Xenofonte tinha das tradiccedilotildees persas conforme Sancisi-

Weerdenburg (2010) Mesmo assim observamos que alguns dos temas caros a

Heroacutedoto satildeo retomados e retrabalhados na cena da Ciropedia O Ciro de Xenofonte

encontrou o caminho da felicidade e ldquo[] foi bem sucedido onde Creso Ciro e todos os

reis persas falharam em Heroacutedoto []rdquo (DUE 1989 p135) isto eacute ele natildeo se deixou

dominar pela arrogacircncia compreendendo que era apenas um ser humano A nosso ver

seja manipulando elementos da tradiccedilatildeo oral seja por pura imaginaccedilatildeo Xenofonte

compocircs um final que pudesse condizer de forma verossiacutemil com o todo de sua obra

para que seu leitor admirasse e imitasse seu heroacutei

33 O Ciro eacutepico e o Ciro traacutegico

Procuraremos a partir de nossas reflexotildees responder as questotildees formuladas no

iniacutecio deste capiacutetulo a-) por que Xenofonte se utiliza de um material histoacuterico ao inveacutes

de construir uma obra totalmente ficcional uma vez que eacute evidente o caraacuteter ficcional e

idealista da obra b-) como ele utiliza esse material conhecido de seus leitores 103 Sancisi-Weerdenburg (2010 p447-448) observa que segundo o resumo de Foacutecio na narrativa de Cteacutesias Ciro tambeacutem termina a vida discursando para os filhos No entanto ele tambeacutem morre por causa de uma batalha estando por isso em meio termo em relaccedilatildeo agraves narrativas de Heroacutedoto e de Xenofonte 104 Segundo Sansalvador (1987 p32) a teoria da imortalidade da alma eacute uma influecircncia das ideias socraacuteticas O tema foi abordado e desenvolvido por Platatildeo no diaacutelogo Feacutedon ou Da Alma (1999)

81

Comeccedilaremos pela segunda questatildeo que de certa forma acreditamos jaacute ter respondido

no decorrer da anaacutelise das narrativas Retomaremos portanto as principais conclusotildees

obtidas em nossa anaacutelise

A partir de nossa anaacutelise pudemos comprovar que Xenofonte construiu sua

narrativa contrastando-a e dialogando diretamente com a narrativa de Heroacutedoto As

Histoacuterias funcionavam como um discurso de autoridade para Xenofonte e na sua versatildeo

da narrativa era necessaacuterio suprimir tudo que contrastasse com essa visatildeo Desse modo

Xenofonte manipula o material estabelecido pela narrativa de Heroacutedoto e essa

manipulaccedilatildeo do discurso estabelecido pela histoacuteria se daacute tanto pela invasatildeo da ficccedilatildeo na

Histoacuteria quanto pela infraccedilatildeo

Como exemplo de invasatildeo temos a cena da narrativa da infacircncia de Ciro pois

Xenofonte cria toda uma seacuterie de episoacutedios e personagens aproveitando o lapso

temporal da narrativa de Heroacutedoto Ou seja Xenofonte se aproveita das arestas

temporais que natildeo foram preenchidas pelo discurso de autoridade do historiador A

ficccedilatildeo portanto se integra agrave Histoacuteria e com ela se confunde dando-lhe uma nova forma

e um novo sentido Os episoacutedios fictiacutecios se constroem a partir de referecircncias histoacutericas

ligando-se a elas que datildeo agrave ficccedilatildeo um efeito de verdade Desse modo comportamentos

culturais (accedilotildees das personagens no banquete) e personagens histoacutericos (Astiacuteages e

Mandane) caracterizam os episoacutedios como verossiacutemeis O discurso narrativo ficcional

neste caso cria situaccedilotildees ldquo[] que funcionam como instrumentos de representaccedilatildeo

soacutecio-cultural atendendo ao objetivo de retratar um povo e uma sociedade numa

determinada eacutepocardquo (FREITAS 1986 p39)

Satildeo exemplos de infraccedilatildeo tanto a narrativa concernente a Creso quanto a

narrativa da morte de Ciro Os elementos dados como histoacutericos nestas cenas ldquo[] satildeo

deformados deslocados ou simplesmente negligenciados pela ficccedilatildeordquo (FREITAS

1986 p48) Na Cena de Creso Xenofonte trabalhou o material dado por Heroacutedoto

condensando em um uacutenico diaacutelogo os principais temas abordados por Heroacutedoto em sua

narraccedilatildeo sobre a vida de Creso Neste caso podemos dizer que houve deformaccedilatildeo do

material histoacuterico Quanto agrave narrativa da morte de Ciro Xenofonte simplesmente

negligencia a narrativa de Heroacutedoto construindo uma narrativa completamente oposta

agravequela de Heroacutedoto Para Due (1989 p22) a liberdade com que Xenofonte trabalha os

dados histoacutericos se deve agrave distacircncia do tempo e do espaccedilo que o tema da narrativa de

Ciro representava ao puacuteblico grego

82

O resultado da manipulaccedilatildeo eacute uma sorte de narrativa idealista O Ciro de

Heroacutedoto eacute uma personagem traacutegica que conforme Northop Frye (1973) estaacute ldquo[]

situada no topo da roda da fortuna a meio caminho entre a sociedade humana no solo

e algo maior no ceacuteurdquo (FRYE 1973 p204) A epifania da lei que conduz o mundo

herodoteano arremessa Ciro para a queda traacutegica em coerecircncia com seu nascimento

traacutegico e esta lei do mundo eacute governada pelo destino (Μοῖρα Moira)

O Ciro da Ciropedia eacute em essecircncia eacutepico o heroacutei cuja experiecircncia interior

produz accedilotildees no acircmbito puacuteblico Conforme Hegel (apud LUKAacuteCS 1999 p98) aquilo

que o homem eacute no mais profundo de sua interioridade soacute se revela pela accedilatildeo e eacute

portanto a accedilatildeo que caracteriza a essecircncia do eacutepico Diferentemente das personanges da

epopeia contudo a personagem de Xenofonte natildeo surge acabada na narraccedilatildeo em um

passado remoto e absolutamente fechado mas evolui e se constroacutei no decorrer da

narrativa Aleacutem disso eacute um heroacutei ideal que representa os valores eacuteticos e morais da

aristocracia Xenofonte portanto manipulou o material histoacuterico para criar o efeito de

verossimilhanccedila entre as accedilotildees ideais e o caraacuteter ideal de sua personagem

Resta-nos por fim responder a primeira questatildeo formulada no iniacutecio do

capiacutetulo se Xenofonte desejava criar uma personagem idealizada e ficcionalizou a vida

de uma personagem histoacuterica por que ele natildeo escreveu uma obra completamente

ficcional No iniacutecio deste capiacutetulo referimos que segundo a Retoacuterica Antiga a

finalidade do discurso histoacuterico eacute o uacutetil enquanto que a finalidade do discurso ficcional

eacute o prazeroso o agradaacutevel Desse modo a ficccedilatildeo eacute o reino do ψεῦδός (pseudos) da

mentira e do divertimento natildeo da utilidade

Xenofonte queria compor uma obra idealizada e buscava que seus leitores natildeo soacute

se deleitassem com sua narrativa mas tambeacutem tirassem dela alguma liccedilatildeo aprendessem

com ela Jaacute referimos que a Ciropedia efetua a siacutentese de elementos ficcionais e

histoacutericos e que o gecircnero biograacutefico no seacuteculo IV aC dilui as fronteiras entre Histoacuteria e

Ficccedilatildeo O gecircnero biograacutefico eacute em essecircncia pedagoacutegico (CARINO 1999) por isso o

tema da biografia natildeo pode ser qualquer indiviacuteduo mas um indiviacuteduo que mereccedila ser

imitado um indiviacuteduo ilustre A ficccedilatildeo neste sentido idealiza a personagem

reescrevendo os dados histoacutericos Ao mesmo tempo os dados histoacutericos e as estrateacutegias

discursivas da histoacuteria garantem ao texto biograacutefico como ao romanesco o efeito de

real A utilizaccedilatildeo de um tema histoacuterico bem como de estruturas linguiacutesticas e formais

83

da historiografia atribuem ao texto literaacuterio natildeo soacute um cunho realista (FREITAS 1986

p14) como tambeacutem verdadeiro

Os gecircneros natildeo podem ser apenas analisados por questotildees de estrutura mas

tambeacutem devem discutir questotildees como audiecircncia performance circulaccedilatildeo de textos e a

autoconsciecircncia criacutetica do papel que o gecircnero estabelece (GOLDHILL 2008 p186-

187) Neste sentido natildeo devemos esquecer a preocupaccedilatildeo didaacutetica da Ciropedia e se

Xenofonte construiacutesse uma personagem completamente ficcional a sua audiecircncia

experimentaria outra experiecircncia esteacutetica da qual se desvincularia a utilidade e a obra

falharia como literatura pedagoacutegica

Poderemos traccedilar um quadro paralelo com o desenvolvimento do romance

burguecircs nos seacuteculos XVII e XVIII Segundo Ian Watt (1997) as primeiras narrativas

ficcionais ressentiam-se de natildeo serem enquadradas no cacircnone seacuterio A ficccedilatildeo neste

contexto ficava relegada a um puacuteblico inculto Desse modo os primeiros romancistas

como Defoe em Robson Crusoe105(2004) se utilizavam do recurso dos proacutelogos com

os quais procuravam estabelecer para o leitor que suas narrativas eram diaacuterios

biografias manuscritos perdidos encontrados por um determinado editor que agora as

tornavam puacuteblicas Esse processo segundo Watt (1990) estaacute ligado agrave busca em conferir

ao romance um realismo formal106 A narrativa de ficccedilatildeo portanto adquiria um estatuto

de verdade pois se estabelecia como produto da confissatildeo de um indiviacuteduo real

Provavelmente os primeiros ficcionistas da Antiguidade ressentiram-se da

mesma necessidade dos primeiros romancistas modernos que sua obra de ficccedilatildeo fosse

aceita como literatura seacuteria Desse modo procuraram suprir essa necessidade visando

estrateacutegias discursivas que criassem no texto de ficccedilatildeo efeitos de real e entre estas

estrateacutegias estava a ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria

Para concluir gostariacuteamos por fim de refletir a respeito dos resultados dessa

manipulaccedilatildeo dos dados histoacutericos por Xenofonte O objetivo de Xenofonte ao

reescrever a histoacuteria estaacute ligado ao caraacuteter didaacutetico de sua narrativa O caraacuteter didaacutetico

dessa ficcionalizaccedilatildeo prevecirc no entanto menos recontar o passado tal qual ele ldquode fato

aconteceurdquo do que se dirigir como exemplum para seus leitores presentes e futuros

Desse modo Xenofonte aproxima-se do passado rompendo a distacircncia eacutepica com o

105 Defoe (apud WATT 1997 p155) em defesa do Robinson Crusoeacute daqueles que consideravam essa obra mera ficccedilatildeo disse ldquo[] afirmo que a histoacuteria embora alegoacuterica eacute tambeacutem histoacutericardquo 106 Cf Linda Hutcheon (1991 p143) ldquoAs obras de Defoe diziam ser veriacutedicas e chegaram a convencer alguns leitores de que eram mesmo factuais poreacutem a maioria dos leitores atuais (e muitos dos leitores da eacutepoca) tiveram o prazer da dupla conscientizaccedilatildeo da natureza fictiacutecia e de uma base no ldquorealrdquo ndash assim como ocorre com os leitores da metaficccedilatildeo historiograacutefica contemporacircneardquo

84

caraacuteter inacabado do presente Os exemplos que analisamos neste capiacutetulo demonstram

a tentativa de Xenofonte de recriar esse passado para construir um todo concreto e ideal

Natildeo eacute o passado o ponto de partida de Xenofonte mas a contemporaneidade que ldquo[]

dita os pontos de vista e as orientaccedilotildees para certos valores []rdquo (BAKHTIN 1998

p418) e neste sentido o passado eacute modernizado Desse modo podemos falar da

Ciropedia como um romance a partir da definiccedilatildeo de Bakhtin107 pois em sua mateacuteria

narrativa o passado fechado eacute destruiacutedo reconduzindo-o a uma nova interpretaccedilatildeo sob

o olhar ideoloacutegico do presente

107 Cf o capiacutetulo 2 seccedilatildeo 241

85

4 Ciropedia um Romance de Formaccedilatildeo na Antiguidade

O mestre [] eacute o prolongamento do amor paterno eacute o complemento da ternura das matildees o guia zeloso dos primeiros passos na senda escabrosa que vai agraves conquistas do saber e da moralidade [] Devemos ao pai a existecircncia do corpo o mestre cria-nos o espiacuterito (sorites de sensaccedilatildeo) e o espiacuterito eacute a forccedila que impele o impulso que triunfa o triunfo que nobilita o enobrecimento que glorifica e a gloacuteria eacute o ideal da vida o louro do guerreiro o carvalho do artista a palma do crente

Raul Pompeacuteia 1976 p26

Procuramos no capiacutetulo anterior estabelecer o estatuto ficcional108 da Ciropedia

pela ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria Demonstramos em nossa anaacutelise que Xenofonte cria sua

obra manipulando os dados presentes no discurso de autoridade de Heroacutedoto pela

invasatildeo e pela infraccedilatildeo do material histoacuterico Aleacutem disso tambeacutem procuramos

demonstrar que a Ciropedia se afasta do projeto historiograacutefico estabelecido por

Heroacutedoto e desenvolvido por Tuciacutedides e se aproxima do gecircnero biograacutefico109 ao

combinar os feitos poliacuteticos e militares com a narrativa ficcional da vida particular do

heroacutei da Ciropedia Todavia ao observarmos o modo de imitaccedilatildeo executado na

Ciropedia demonstramos que ela se afasta do modelo das biografias de narraccedilatildeo

simples e se aproxima do gecircnero de imitaccedilatildeo mista da eacutepica Desse modo podemos

afirmar que a Ciropedia eacute uma narrativa eacutepica (mista) de ficccedilatildeo em prosa ou seja seu

estatuto eacute tal qual o do romance

Estabelecido tal estatuto analisaremos as estruturas da Ciropedia que a tornam a

mais antiga ancestral do Romance de Formaccedilatildeo (Bildungsroman)

Criacuteticos como Lesky (1986) Bakhtin (2010) e Tatum (1989) afirmam que a

Ciropedia eacute uma das obras ancestrais do Romance de Formaccedilatildeo poreacutem em seus estudos

108 Assinalar o caraacuteter ficcional de uma obra natildeo eacute necessariamente diminuir o valor esteacutetico de uma obra historiograacutefica nem enfatizar o valor esteacutetico de uma obra ficcional Eacute antes estabelecer o caraacuteter ontoloacutegico do proacuteprio escrito ficcional qualquer que seja ele no qual as oraccedilotildees projetam ldquo[] contextos objectuais e atraveacutes destes seres e mundos puramente intencionais que natildeo se referem a natildeo ser de modo indireto a seres tambeacutem intencionaisrdquo (CAcircNDIDO 2002 p17) 109 A palavra biografia eacute composta pelos termos βίος (vida) γράφειν (escrever) e foi usado pela primeira vez por Plutarco na Vida de Alexandre (1992) Segundo Momigliano (1993 p10) as formas biograacuteficas do seacuteculo IV aC satildeo denominadas pelos antigos de encocircmio revelando por isso a origem epidiacutetica do gecircnero biograacutefico Como afirmamos no capiacutetulo 1 no decorrer deste trabalho utilizaremos a designaccedilatildeo biografia de forma ampla seguindo desse modo Momigliano (1993) abrangendo por isso as obras encomiaacutesticas do seacuteculo IV aC

86

natildeo haacute uma anaacutelise que de fato justifique tal afirmaccedilatildeo Procuraremos neste capiacutetulo

portanto efetivar esta anaacutelise de forma a justificar tal classificaccedilatildeo com a qual tambeacutem

concordamos

41 Bildungsroman e suas origens

Se o romance de formaccedilatildeo por um lado eacute um gecircnero cujo paradigma se

inscreve na obra de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796)

de outro eacute fruto de um intenso e longo jogo de influecircncias e transformaccedilotildees Como

observa Todorov (1988 p34) a origem de um gecircnero repousa sempre em outros

gecircneros discursivos Tais processos dialoacutegicos nem sempre satildeo claros e evidentes ao

pesquisador da poeacutetica histoacuterica devido ao fato de que muitas obras que tiveram um

papel importante na histoacuteria da literatura natildeo sobreviveram ao tempo No entanto ldquo[]

o gecircnero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica []rdquo (BAKHTIN

2010 p121) que satildeo aqueles elementos estruturais primitivos do gecircnero que se

renovam em cada nova obra literaacuteria e que renovando-se permanecem

A anaacutelise destes elementos pode nos oferecer valiosas informaccedilotildees a respeito da

histoacuteria do gecircnero Tal anaacutelise no entanto necessita do conhecimento preacutevio de quais

elementos constituem determinantes para a caracterizaccedilatildeo de gecircnero e que formam

portanto a archaica do Bildungsroman Segundo Maas (1999 p64)

[] a abordagem genealoacutegica permite que se investigue ao lado das semelhanccedilas formais a proacutepria histoacuteria do gecircnero [] Historiar a obra significa captaacute-la na dinacircmica dos processos de sintetizaccedilatildeo empreacutestimo transformaccedilatildeo e exclusatildeo que ocorrem entre as vaacuterias obras singulares que constituem um determinado universo literaacuterio

Ou seja a partir da repeticcedilatildeo em obras singulares de elementos estruturais eacute

possiacutevel estabelecer um diaacutelogo entre as formas estruturais do gecircnero Tal abordagem

deve levar em conta a existecircncia de determinadas obras que se configuram como

paradigmaacuteticas (MAAS 2000 p65) isto eacute caracterizam os elementos miacutenimos de

comparaccedilatildeo A obra paradigmaacutetica do romance de formaccedilatildeo eacute Os anos de

87

aprendizagem de Wilhelm Meister de Goethe e por meio da comparaccedilatildeo com as

estruturas do Meister poderemos determinar se esta ou aquela obra se insere no gecircnero

O conceito de Bildungsroman aparece pela primeira vez em 1810 quando o

professor Karl Morgenstern o emprega durante uma conferecircncia na Universidade de

Dorpat Segundo Maas

A definiccedilatildeo inaugural do Bildungsroman por Morgenstern entende sob o termo aquela forma de romance que ldquorepresenta a formaccedilatildeo do protagonista em seu iniacutecio e trajetoacuteria ateacute alcanccedilar um determinado grau de perfectibilidaderdquo Uma tal representaccedilatildeo deveraacute promover tambeacutem ldquoa formaccedilatildeo do leitor de uma maneira mais ampla do que qualquer outro tipo de romancerdquo (MAAS 2000 p19)

O romance de Goethe Os Anos de aprendizado de Wilhelm Meister publicado

nos anos de 1795-1796 jaacute era por Morgenstern considerado o paradigma modelo dessa

subespeacutecie do gecircnero do romance condiccedilatildeo esta ainda mantida e por isso ldquo[] a

classificaccedilatildeo de obras uacutenicas sob o gecircnero do Bildungsroman deve ainda considerar o

cacircnone miacutenimo constituiacutedo por Os Anos de aprendizado de Wilhem Meisterrdquo (MAAS

2000 p24)

As condiccedilotildees para o surgimento do conceito e por que natildeo do proacuteprio romance

de Goethe ligam-se agrave Revoluccedilatildeo Francesa e ao novo ideal de homem por ela

propagada o burguecircs agrave nova concepccedilatildeo da infacircncia e da crianccedila e agrave crenccedila de que uma

sociedade educadora pode moldar o caraacuteter do individuo A educaccedilatildeo do indiviacuteduo

preconizada no Meister estaacute ligada agrave formaccedilatildeo por um estado regulador sendo a escola

para todos fruto de um dos siacutembolos da Revoluccedilatildeo Francesa a igualdade Goethe ilustra

dessa forma a tensatildeo existente entre o burguecircs cuja aspiraccedilatildeo por uma formaccedilatildeo

universal ultrapassa os limites impostos pela sociedade burguesa e o nobre cuja

formaccedilatildeo universal ultrapassa os ldquo[] limites estreitos da educaccedilatildeo para o trabalho e

para a perpetuaccedilatildeo do capital herdado []rdquo (MAAS 2000 p20) a que estava destinado

o burguecircs

No gecircnero romance Goethe encontrou o solo propiacutecio para tornar feacutertil sua obra

uma vez que o advento do romance moderno coincide com a erupccedilatildeo da vida privada

portanto apta a tratar das ambiccedilotildees natildeo do heroacutei eacutepico mas do heroacutei comum da

oposiccedilatildeo do subjetivismo do indiviacuteduo com o mundo exterior

Para Maas (2000) as questotildees histoacutericas e discursivas que cercam tanto a

criaccedilatildeo do Meister de Goethe quanto da cunhagem do termo Bildungsroman tornam-na

88

uacutenica e nesse sentido natildeo lhe parece possiacutevel reconhecer um gecircnero chamado

ldquoRomance de Formaccedilatildeordquo para aleacutem daquelas condiccedilotildees histoacutericas de sua origem Ou

em outras palavras o Romance de Formaccedilatildeo seria um gecircnero de uma obra soacute Aleacutem

disso segundo Lukaacutecs (2000) a divisatildeo do romance em gecircneros eacute implicada muito mais

por questotildees ideoloacutegicas do que por problemas de estrutura ou caracterizaccedilatildeo

As tentativas portanto segundo Maas de transportar para aleacutem deste contexto o

termo Bildungsroman satildeo insiacutepidas pois a grande quantidade de obras que criacuteticos

arrolam sob este roacutetulo sugere a hipoacutetese de um Bildungsromam ldquo[] antes discursivo

do que propriamente literaacuterio []rdquo (p24) ou seja tendo como elemento unificador mais

um ideal de formaccedilatildeo do que elementos estruturais e literaacuterios do romance

O Bildungsromam mostra-se entatildeo como uma forma literaacuteria definiacutevel apenas a partir da grande Bildungs-Frage da grande questatildeo da formaccedilatildeo considerada natildeo apenas em relaccedilatildeo ao momento especiacutefico de sua gecircnese mas por meio das diferentes eacutepocas histoacutericas [] a formaccedilatildeo no sentido amplo como a considera Jacobs ultrapassa os limites histoacutericos da gecircnese do conceito Bildungsroman (MAAS 2000 p63)

No entanto Bakhtin (2010 p223) demonstra que a histoacuteria do romance e de

suas formas variantes pode ser baseada em princiacutepios estruturais como a imagem do

heroacutei da narrativa e o grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico O que distingue no seu

entender o romance de formaccedilatildeo dos outros tipos de romance ndash romance de provas

romance de viagem romance biograacutefico ndash eacute justamente a construccedilatildeo do heroacutei Isso natildeo

significa que negamos a historicidade do termo Bildungsroman e sua problemaacutetica

discursiva mas que este subgecircnero romanesco enquanto forma desenvolve-se

reformulando-se ateacute finalmente desenvolver suas amplas capacidades na obra de

Goethe

Segundo Bakhtin (2010 p235) nos outros tipos de romance o heroacutei eacute imutaacutevel

e nem mesmo todas as aventuras pelas quais ele passa satildeo capazes de fazecirc-lo evoluir O

homem eacute estaacutetico mesmo se movimentando em espaccedilo amplo Assim o romance de

formaccedilatildeo uma variante especiacutefica do romance difere-se das outras formas pela imagem

dinacircmica do heroacutei Conforme Bakhtin (2010 p237)

As mudanccedilas por que passa o heroacutei adquirem importacircncia para o enredo romanesco que seraacute por conseguinte repensado e reestruturado O tempo se introduz no interior do homem impregna-lhe toda a imagem modificando a importacircncia substancial do seu

89

destino e da sua vida Pode-se chamar este tipo de romance numa acepccedilatildeo muito ampla de romance de formaccedilatildeo do homem

A partir desta distinccedilatildeo Bakhtin (2010 p235-236) aceita com tranquilidade a

grande variedade que se costuma relacionar a esta variante do gecircnero

Ciropedia de Xenofonte (Antiguidade) Parzival de Wolfram com Eschenbach (Idade Meacutedia) Gargantua e Pantragruel de Rabelais Simplicissimus de Grimmelshausen (Renascimento) Telecircmaco de Fenecirclon (Neoclassicismo) Emiacutelio de Rousseau (na medida em que este tratado pedagoacutegico comporta muitos elementos romanescos) Agathon de Wieland Tobias Knaut de Wetzel Correntes de vida por linhas ascendentes de Hippel Wilhelm Meister de Goethe (os dois romances) Titatilde de Jean Paul (e alguns outros romances seus) David Copperfield de Dickens O pastor da fome de Raabe Henrique o Verde de Gottfried Keller Pedro o afortunado de Pontoppidan Infacircncia adolescecircncia e juventude de Tolstoi Uma Histoacuteria comum de Gontcharov Jean-Christophe de Romam Rolland Os Budenbrook e A Montanha Magica de Tomas Mann etc

Tanto obras anteriores agrave de Goethe quanto posteriores formam a histoacuteria dessa

nova acepccedilatildeo do homem na literatura um homem que se forma enquanto lemos a sua

narrativa Natildeo escapa a Bakhtin contudo a homogeneidade destas obras e esta

homogeneidade eacute fruto dos diferentes modos de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico no

interior do enredo e principalmente no interior do homem Segundo o teoacuterico russo

ldquo[] a formaccedilatildeo (transformaccedilatildeo) do homem varia poreacutem muito conforme o grau de

assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico realrdquo (BAKHTIN 2010 p238) A partir disso ele

dividiraacute o romance de formaccedilatildeo em cinco distintos grupos de acordo com o grau de

assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico Retomaremos esta divisatildeo feita por Bakhtin na seccedilatildeo

44 deste capiacutetulo Podemos por ora concluir que para Bakhtin se de um lado o que

une tatildeo diversas obras sob o roacutetulo de Romance de Formaccedilatildeo eacute a transformaccedilatildeo da

personagem principal de outro lado o que as separa eacute o grau de transformaccedilatildeo dessa

personagem variando de acordo com o grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico

Juumlrgen Jacobs (1989) estabelece uma definiccedilatildeo para Bildungsroman que

segundo Maas (1999) flexibiliza o conceito de modo que ele possa abranger uma

grande diversidade de obras

Fica clara portanto a opccedilatildeo pelas caracteriacutesticas predominantemente conteuacutedisticas em detrimento das formais Estas em vez de traccedilos diferenciadores satildeo apenas suporte decorrente do elenco temaacuteticoconteudiacutestico natildeo produzindo portanto um corpus definidor (MAAS 2000 p63)

90

Concordamos com a pesquisadora quanto agrave grande abrangecircncia que o conceito

de Jakobs adquire principalmente quando pensadas para o romance moderno

Entretanto os eixos temaacuteticos revelam-se intimamente interessantes para o estudo das

obras anteriores ao Wilhelm Meister porque por meio da anaacutelise deles podemos

reconhecer os elementos da archaica do gecircnero e que por seu caraacuteter temaacutetico

promovem a evoluccedilatildeo da personagem na narrativa Parece-nos muito relevante

encontrar em uma obra tatildeo distante temporalmente como a Ciropedia a presenccedila de

certos elementos que ainda hoje surgem como determinantes na composiccedilatildeo de certo

tipo variante do gecircnero do romance seja na sua manutenccedilatildeo seja na sua paroacutedia como

eacute o caso de O Tambor (1959) de Guumlnter Grass As caracteriacutesticas segundo Jacobs (apud

MAAS 2000 p62) satildeo

bull a consciecircncia do protagonista de que ele percorre um processo de aprendizado

(concepccedilatildeo teleoloacutegica da educaccedilatildeo)

bull o percurso do protagonista estaacute determinado por enganos e avaliaccedilotildees

equivocadas que devem ser corrigidas no transcorrer do romance

bull o protagonista tem como experiecircncias tiacutepicas a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave casa

paterna a atuaccedilatildeo de mentores e de instituiccedilotildees educacionais o encontro com a

esfera da arte experiecircncias intelectuais eroacuteticas [sic] aprendizado de uma

profissatildeo e o contato com a vida puacuteblica

Observamos que estes eixos temaacuteticos propostos por Jacobs referem-se todos ao

percurso do heroacutei em formaccedilatildeo da narrativa Isso significa que a partir da anaacutelise destes

eixos reconheceremos justamente a evoluccedilatildeo da personagem que segundo Bakhtin

(2010) eacute determinante na configuraccedilatildeo do gecircnero Os eixos temaacuteticos configuram-se

como figurativizaccedilotildees da estrutura interna da narrativa A personagem no Romance de

Formaccedilatildeo natildeo pode ser estaacutetica mas evolutiva Desse modo a anaacutelise dos temas revela

uma estrutura formal natildeo apenas conteudiacutestica

Portanto na sequecircncia desse capiacutetulo procuraremos demonstrar de que modo

essas caracteriacutesticas satildeo construiacutedas na tessitura narrativa da Ciropedia de Xenofonte

Nem todas as experiecircncias tiacutepicas a que se refere Jacobs todavia surgem no romance110

110 Lembramos que o uso do termo romance quando nos referimos agrave Ciropedia deve-se levar em conta as ressalvas as ressalvas feitas sobre o uso anacrocircnico do gecircnero no capiacutetulo 2241

91

de Xenofonte jaacute que o modelo de formaccedilatildeo por que Ciro passa difere ideologicamente

por questotildees histoacutericas e culturais daquelas encontradas no romance moderno burguecircs

de forma geral Restringiremos entatildeo nossa exposiccedilatildeo agraves experiecircncias tiacutepicas da

separaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave casa paterna a atuaccedilatildeo de mentores e de instituiccedilotildees

educacionais aleacutem da consciecircncia teleoloacutegica da educaccedilatildeo por parte da proacutepria

personagem E mostraremos como elas satildeo representadas na Ciropedia de Xenofonte e

como elas atuam de forma significativa no processo final de formaccedilatildeo de Ciro Por fim

analisaremos o grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico na Ciropedia de Xenofonte

42 A paideacuteia como tema da narrativa o proecircmio (Cirop I11-6)

Antes de entrar na anaacutelise propriamente dita dos elementos que constituem a

archaica do Bildungsroman na tessitura da Ciropedia gostariacuteamos de analisar o

proecircmio da Ciropedia porque os proecircmios se configuram como um discurso

autoexplicativo metaliteraacuterio e acreditamos que a sua anaacutelise nos proveraacute de

informaccedilotildees interessantes tanto a respeito da estrutura quanto a respeito do tema da

narrativa

Os proecircmios nas obras dos historiadores trazem elementos de autoridade e

autoria para a sua narraccedilatildeo (BRANDAtildeO 2005 p164) Nestes entrechos pode-se

apreender ldquo[] um projeto historiograacutefico singular configuraccedilotildees do saber conjecturas

intelectuais e poliacuteticas []rdquo (HARTOG 2001 p10) O leitor pode entrever nos

proacutelogos as intenccedilotildees objetivos e meacutetodo do historiador que ao contraacuterio do orador

natildeo tem necessidade de agradar a um puacuteblico poreacutem precisa demonstrar a utilidade de

sua obra Eacute importante ressaltar que esses procedimentos assim como os tiacutetulos das

obras dos historiadores foram imitados pelos romancistas gregos provavelmente

devido ao seu caraacuteter de autoridade (BRANDAtildeO 2005 p110 HAumlGG 1991 p111)

Xenofonte a rigor natildeo apresenta proacutelogos em suas obras historiograacuteficas e isso

jaacute eacute uma inovaccedilatildeo da sua escrita Nas Helecircnicas o comeccedilo eacute abrupto com a frase

ldquoDepois dissordquo111 indicando que Xenofonte se propotildee continuar a obra de Tuciacutedides

exatamente do ponto onde esta se interrompe e na conclusatildeo de sua proacutepria obra

111 Helecircnicas 1 11 Μετὰ δὲ ταῦτα

92

convida a quem assim desejar que continue a sua histoacuteria112 Para Hartog essa ausecircncia

aproximada de outros traccedilos da peculiar escrita da histoacuteria de Xenofonte revela a

mudanccedila de postura tiacutepica de um momento de perturbaccedilatildeo (HARTOG 2001 p11)

Na Ciropedia ao contraacuterio do que ocorre nas Helecircnicas Xenofonte inicia sua

obra com um proecircmio natildeo tatildeo denso e vasto quanto o proecircmio de Tuciacutedides mas no

qual estabelece as causas e motivos de sua obra Por que tal mudanccedila de atitude Nas

Helecircnicas o objeto de exposiccedilatildeo do ateniense eacute a proacutepria histoacuteria contemporacircnea de

Atenas e na esteira de Tuciacutedides para quem a uacutenica histoacuteria possiacutevel eacute a histoacuteria do seu

proacuteprio tempo Xenofonte estabelece-se como seu continuador No entanto que modelo

Xenofonte poderia tomar para imitar na Ciropedia uma vez que o tema de sua

narrativa natildeo eacute a histoacuteria dos povos mas eacute a biografia de Ciro

O modelo historiograacutefico anterior a Xenofonte eacute o modelo das histoacuterias dos

povos e a histoacuteria do indiviacuteduo surge agrave medida que ele interfere participando

ativamente do mundo poliacutetico A vida de Ciro narrada por Heroacutedoto interessa ao

historiador natildeo tanto pela vida do monarca em si mas porque ela representa tanto as

ideias de Heroacutedoto sobre o divino quanto as causas que deram iniacutecio ao verdadeiro

tema da sua obra as Guerras Meacutedicas Eacute neste sentido que Momigilano (1993) fala de

traccedilos biograacuteficos na historiografia as narrativas da vida de Ciro de Creso e de outros

encontrados nas Histoacuterias de Heroacutedoto soacute tecircm sentido dentro da percepccedilatildeo da histoacuteria

de seus povos Assim tambeacutem a vida de Alcibiacuteades narrada por Tuciacutedides soacute se

motiva em conjunccedilatildeo com a proacutepria Guerra do Peloponeso O tema dessas narrativas

histoacutericas natildeo satildeo os homens que a vivenciaram mas no caso de Heroacutedoto as Guerras

Meacutedicas e no caso de Tuciacutedides a Guerra do Peloponeso

Jaacute afirmamos anteriormente que do ponto de vista temaacutetico a Ciropedia se

enquadra no gecircnero biograacutefico pois apresenta a anaacutelise do caraacuteter de uma personagem

por meio da narraccedilatildeo de eventos particulares e puacuteblicos (MOMIGLIANO 1993 p16) e

que do ponto de vista do modo de imitaccedilatildeo a obra eacute diversa das outras biografias de

seu tempo Isso significa que a obra desenvolve um modo de imitaccedilatildeo proacuteprio ndash

comparado agraves biografias encomiaacutesticas ndash e natildeo encontra na tradiccedilatildeo dos bioacutegrafos

paralelo a ser imitado Aleacutem disso ao enquadrar sua narrativa a um proacutelogo

historiograacutefico Xenofonte almeja o efeito de verdade para a sua narrativa ficcional

Poreacutem esse proacutelogo apresenta sensiacuteveis diferenccedilas comparadas aos proacutelogos dos

112 Helecircnicas 7 527 Tὰ δὲ μετὰ ταῦτα ἴσως ἄλλῳ μελήσει Que igualmente outro se ocupe do que aconteceu a partir disso (Traduccedilatildeo nossa)

93

historiadores Primeiramente como jaacute afirmamos113 o narrador divide seu material em

trecircs temas principais a genealogia γένεαν a natureza φύσιν e a educaccedilatildeo παιδέια

Conforme Menandro Reacutetor (1996) em seu segundo tratado sobre o gecircnero epidiacutetico

γένεαν φύσιν e παιδέια satildeo toacutepoi do gecircnero epidiacutetico Ao trazer para o discurso

narrativo da historiografia um tema do encocircmio Xenofonte deixava de visar em sua

narrativa agrave rigorosa verdade pois do epidiacutetico a verdade factual natildeo fazia parte do

conjunto de procedimentos de escritura O proacutelogo portanto eacute um artifiacutecio literaacuterio a

fim de dar veracidade agrave narrativa

Outra diferenccedila entre o proacutelogo de Xenofonte e dos historiadores claacutessicos eacute a

forma de apresentaccedilatildeo do narrador O proecircmio da Ciropedia inicia-se na primeira

pessoa do plural114 e no decorrer de toda narrativa o narrador jamais se nomeia Cria-se

assim uma estrateacutegia de distanciamento entre narrador e autor e de certo modo entre o

narrador e o narrado O narrador natildeo se identifica com o proacuteprio autor de forma clara

como o fazem Tuciacutedides e Heroacutedoto que se nomeiam jaacute nas primeiras linhas de suas

respectivas obras O anonimato do narrador cria o efeito de factualidade da narrativa

como se os fatos surgissem por si mesmos sem o intermeacutedio de uma investigaccedilatildeo

subjetiva Jacyntho Lins Brandatildeo (2005) argumenta que a voz de Xenofonte natildeo seria

anocircnima em virtude da identificaccedilatildeo que o leitor faria entre esses pronomes com a

informaccedilatildeo paratextual que deveria encabeccedilar os textos divulgados (o tiacutetulo da obra e o

nome do autor) Acreditamos em sintonia com Dellebecque (1957) que eacute difiacutecil

determinar quando estas informaccedilotildees paratextuais foram acrescidas ao texto conhecido

por noacutes e se isso era uma teacutecnica estabelecida por Xenofonte ou foi acrescentada por

comentadores posteriores Aleacutem disso vale lembrar que a Anaacutebase foi primeiramente

publicada com o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa e nas Helecircnicas Xenofonte

refere-se agrave obra de Temistoacutegenes como se de fato a obra natildeo fosse sua Percebemos

desse modo que o jogo entre autor narrador e narrado desdobra-se em problemaacutetica nas

narrativas de Xenofonte e esta confusatildeo entre escritor e narrador na Ciropedia parece

determinante como processo de imitaccedilatildeo do futuro romance

113 Cf a subseccedilatildeo 2242 114 Por exemplo ἡmicroῖν (heacutemin a noacutes) ἐδοκοῦmicroεν (edokouacutemen julgaacutevamos) ἐνενοοῦmicroεν (enenoouacutemen pensamos) ᾐσθήmicroεθα (eistheacutemetha percebemos) ἐνεθυmicroούmicroεθα (enethumouacutemetha refletimos) ἐνενοήσαmicroεν (enenoeacutesamen pensaacutevamos) ἴσmicroεν (iacutesmen vimos) θαυmicroάζεσθαι (thaumaacutedzesthai ficamos admirados) ἐσκεψάmicroεθα (eskepsaacutemetha observamos) ἐπυθόmicroεθα (eputhoacutemeta) δοκοῦmicroεν (dokouacutemen julgamos)

94

Esta ilusatildeo de objetividade e realismo caracteriacutestica do discurso historiograacutefico

estilizou-se no discurso dos romancistas sejam eles modernos ou claacutessicos Xenofonte

ao que nos parece foi o primeiro escritor da Greacutecia a recuperar a objetividade do

discurso histoacuterico a fim de narrar uma narrativa ficcional

Do ponto de vista da estrutura o proecircmio de uma obra histoacuterica segundo

Luciano de Samoacutestata115 deve esclarecer o leitor e facilitar-lhe a compreensatildeo do relato

que se seguiraacute As formas de inauguraccedilatildeo do discurso histoacuterico segundo Barthes

(1988) satildeo duas

a-) abertura performativa igual ao canto dos poetas invocativo

b-) prefaacutecio ato que caracteriza a enunciaccedilatildeo ao confrontar os dois tempos

marcando com signos expliacutecitos de enunciaccedilatildeo o discurso histoacuterico

No primeiro caso temos as obras de Heroacutedoto e de Tuciacutedides enquanto que no

segundo caso temos a narrativa de Xenofonte O narrador no proecircmio da Ciropedia

nos chama a atenccedilatildeo para o resultado de suas reflexotildees a respeito da arte de governar os

homens eram incapazes de serem governados pois tanto nos regimes democraacuteticos

quanto nos monaacuterquicos e oligaacuterquicos eles sempre estavam a reclamar outro regime

Entretanto

Contudo desde que observamos que existiu Ciro o persa aquele que conservou numerosos homens obedientes a ele numerosas cidades numerosos povos a partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de que o governar os homens natildeo eacute das tarefas nem impossiacuteveis nem aacuterduas se algueacutem agir com habilidade Ao menos sabemos que a Ciro eram obedientes de bom grado uns estando distantes uma marcha de numerosos dias enquanto que outros de meses e outros ainda que jamais o viram e mesmo os outros que bem sabiam que natildeo o veriam e todavia desejavam lhe obedecer116 (Cirop 11 3 grifo nosso)

Mas no que consiste este ldquoagir habilmente para issordquo A traduccedilatildeo para liacutengua

portuguesa do Brasil de Jaime Bruna parafraseia esta expressatildeo pela forma ldquoteacutecnicardquo

115 Em Como se deve escrever a Histoacuteria (LUCIANO 2009) traduccedilatildeo de Jacyntho Lins Brandatildeo 116 No original ἐπειδὴ δὲ ἐνενοήσαμεν ὅτι Κῦρος ἐγένετο Πέρσης ὃς παμπόλλους μὲν

ἀνθρώπους ἐκτήσατο πειθομένους αὑτῷ παμπόλλας δὲ πόλεις πάμπολλα δὲ ἔθνη ἐκ

τούτου δὴ ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν μὴ οὔτε τῶν ἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ

ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τις ἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ Κύρῳ γοῦν ἴσμεν ἐθελήσαντας

πείθεσθαι τοὺς μὲν ἀπέχοντας παμπόλλων ἡμερῶν ὁδόν τοὺς δὲ καὶ μηνῶν τοὺς δὲ οὐδ᾽

ἑωρακότας πώποτ᾽ αὐτόν τοὺς δὲ καὶ εὖ εἰδότας ὅτι οὐδ᾽ ἂν ἴδοιεν καὶ ὅμως ἤθελον αὐτῷ

ὑπακούειν (Cirop 113)

95

(XENOFONTE 1965 p14) e tal opccedilatildeo reflete certa interpretaccedilatildeo que repousa na

histoacuteria de leituras da obra segundo a qual este texto eacute um manual de teacutecnicas sobre a

arte de governar Decorre desta interpretaccedilatildeo muito da criacutetica que sofreu a Ciropedia

nos uacuteltimos tempos de uma obra tediosa Parece-nos que ao compreender o texto desta

maneira os criacuteticos simplificam todo o conteuacutedo da obra pois ela na verdade mais do

que um manual eacute antes de tudo e acima de tudo uma narrativa As reflexotildees sobre as

qualidades humanas e o discurso didaacutetico em geral estatildeo figurativizadas e inseridas na

narrativa de um uacutenico homem Ciro A narrativa portanto nos conduz e nos

conduzindo por meio dos atos das personagens nos ensina

Haacute neste proecircmio o que Barthes chama de descronologizaccedilatildeo do fio histoacuterico

pois o narrador mostra-se sabedor daquilo que ainda natildeo foi contado Os signos do

enunciador tornam-se evidentes construindo sua proacutepria imagem como um detentor de

um saber que se transmite como uma verdade que natildeo pode ser desmentida Como sabe

alguma coisa o narrador estaacute apto e autorizado a instruir por meio de uma narrativa dos

feitos ldquomemoraacuteveisrdquo substituindo desse modo a Musa homeacuterica pela pesquisa e pelo

conhecimento Contudo quais seriam esses feitos memoraacuteveis Hartog (2001 p101)

nos diz que

Xenofonte natildeo cessou de refletir sobre a questatildeo do comando buscar compreender diz ele por que o espartano Telecircucias era a tal ponto admirado pelos seus soldados eacute ldquoa tarefa mais digna de um homemrdquo (Hel 51 4) Satildeo essas qualidades que fazem do espartano Agesilau um modelo a ser imitado Enfim a ficccedilatildeo poliacutetica da Ciropedia responde agrave seguinte questatildeo que espeacutecie de homem era Ciro para fazer-se obedecer por um tatildeo grande nuacutemero de pessoas

Portanto as causas do ldquoagir com habilidaderdquo constituem o tema de narraccedilatildeo de

Xenofonte neste sentido o agir natildeo eacute um dado meramente inato do liacuteder poreacutem fruto

de um processo no qual estatildeo relacionados trecircs fenocircmenos que seratildeo segundo ele

objetos de sua narrativa

Em vista desse homem que foi merecedor de nossa admiraccedilatildeo noacutes examinamos de qual famiacutelia era qual natureza possuiacutea e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo a tal ponto que o conduziram a governar os homens Portanto o quanto noacutes averiguamos e o quanto julgamos ter compreendido sobre ele tentaremos expor117 (Cirop 11 6)

117 No original [6] ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδρα ἐσκεψάμεθα τίς ποτ᾽ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶς παιδείᾳ τοσοῦτον

96

A partir dessa triparticcedilatildeo118 o narrador iniciaraacute a diegese propriamente dita Eacute

interessante notar a distinccedilatildeo ldquoentre qualidades herdadas ou inatas e qualidades

adquiridas atraveacutes da educaccedilatildeo e do ambienterdquo119 (DUE 1989 p148 traduccedilatildeo nossa)

que Xenofonte postula Quanto aos ascendentes ou genealogia (γενεάν) o narrador

nos diz que Ciro eacute pelo lado paterno filho de Cambises rei persa descendente de

Perseu heroacutei mitoloacutegico e pelo lado materno neto do rei dos Medos Quanto aos seus

dotes naturais (φύσιν) ele era ldquo[] de aparecircncia muito bela com alma muitiacutessima

bondosa amantiacutessimo dos estudos e das honras de tal modo que suportava todas as

fadigas resistia a todos os perigos pelo amor aos elogios 120rdquo (Cirop 12 1)

Vemos que o espaccedilo dedicado agrave descriccedilatildeo dos ascendentes e dos dotes naturais eacute

pequeno e breve natildeo passando de um raacutepido paraacutegrafo Natildeo devemos contudo

subestimar o importante papel desses dados biograacuteficos tanto para o desenvolvimento

da narrativa quanto para o proacuteprio pensar grego Observa-se por exemplo em Homero

que as personagens ao se apresentarem sempre se distinguem pela sua genealogia e a

descendecircncia divina garante a elas o respeito dos homens comuns (VERNANT 1992)

aleacutem de um destino heroico e glorioso

Quanto agrave descriccedilatildeo da natureza das personagens Heroacutedoto por exemplo na

narrativa que dedica a Ciro mostra que jaacute na infacircncia o futuro imperador Persa

demonstrava as qualidades de governante sendo elas portanto da sua proacutepria natureza

natildeo ensinadas ou adquiridas pela educaccedilatildeo jaacute que Ciro foi educado entre os pastores

Aleacutem disso Xenofonte no decorrer da narrativa iraacute contrapor justamente

personagens cuja ascendecircncia e dotes naturais satildeo os mesmos dos de Ciro mas que ao

contraacuterio deste fracassaram de algum modo na sua carreira Ciaxares121 por exemplo

eacute tio de Ciro ou seja sua ascendecircncia tambeacutem real contudo quando Ciaxares e seu

διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι (Cirop116) 118 Essa a triparticcedilatildeo que propotildee Xenofonte ndash genealogia natureza e educaccedilatildeo ndash encontra-se ainda na obra biograacutefica de Plutarco do seacuteculo I dC Momigliano em The Development of greek biography (1993) acrescenta que aliado a estas trecircs caracteriacutesticas o fato de Xenofonte tratar da vida de Ciro em ordem cronoloacutegica do nascimento ateacute sua morte torna-a a mais inovadora obra para a biografia grega 119 No original between inherited or innate qualities and quailities acquired through education and environment 120 No original [hellip] εἶδος μὲν κάλλιστος ψυχὴν δὲ φιλανθρωπότατος καὶ φιλομαθέστατος

καὶ φιλοτιμότατος ὥστε πάντα μὲν πόνον ἀνατλῆναι πάντα δὲ κίνδυνον ὑπομεῖναι τοῦ

ἐπαινεῖσθαι ἕνεκα (Cirop121) 121 Parece haver unanimidade entre criacuteticos de que Ciaxares eacute uma personagem inventada por Xenofonte Cf James Tatum The Envy of Uncle Ciaxaes In Xenophonrsquos Imperial Fiction 1989 p115-133

97

sobrinho vatildeo agrave guerra liderando o exeacutercito persa e medo Ciro mostra-se muito mais

preparado em tomar as decisotildees corretas e por isso eacute honrado e seguido pelos soldados

de bom grado (ἐθελήσαντας ethelesantas) inclusive pelos proacuteprios soldados de

Ciaxares Isso provoca fortes ciuacutemes em seu tio e a resoluccedilatildeo desse impasse se daraacute

apenas quando Ciaxares reconhecer a superioridade de Ciro e aceitar de bom grado uma

alianccedila entre eles122

Do mesmo modo a figura de Creso rei da Liacutedia eacute sintomaacutetica tal qual Ciro ele

representa a ambiccedilatildeo por honras e elogios e se destaca como um bom liacuteder para os seus

suacuteditos liacutedios Poreacutem na guerra empreendida contra Ciro Creso sai derrotado pois ao

contraacuterio de Ciro eacute atingido pelo excesso de suas paixotildees Enquanto Ciro compreende

que o autocontrole eacute essencial para evitar uma maacute interpretaccedilatildeo da realidade e promover

um bom julgamento de suas proacuteprias accedilotildees Creso dominado pelo desejo fracassa

Em ambos os casos o que diferencia Ciro das personages de Ciaxares e Creso eacute

a sua paideia a formaccedilatildeo e o exerciacutecio contiacutenuo dos ensinamentos obtidos quando

crianccedila Desse modo a educaccedilatildeo torna-se o elemento determinante desta triparticcedilatildeo

para que o heroacutei avance e venccedila em sua trajetoacuteria

Passaremos a analisar os elementos da archaica do romance de formaccedilatildeo na

tessitura narrativa da Ciropedia A nossa tese eacute a de que estes elementos da archaica

satildeo figurativizados de modo a proporcionar uma educaccedilatildeo exemplar a Ciro Assim

analisaremos os seguintes elementos estruturais a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave casa paterna

a atuaccedilatildeo de mentores e de instituiccedilotildees educacionais aleacutem da consciecircncia teleoloacutegica da

educaccedilatildeo por parte da proacutepria personagem Procuraremos averiguar como estes

elementos satildeo representados na Ciropedia e como atuam de forma significativa no

processo final de formaccedilatildeo de Ciro

43 As archaica do Romance de Formaccedilatildeo

431 A Instituiccedilatildeo educacional a paideia persa e a consciecircncia

teleoloacutegica

122 A alianccedila entre tio e sobrinho seraacute concretizada por meio de um casamento Ciro casa-se com sua prima filha de Ciaxares e com isso fortalece a alianccedila O casamento se daacute no final da narrativa e natildeo eacute objeto de muita atenccedilatildeo por parte do narrador

98

Muito se pode dizer como de fato muito jaacute foi dito a respeito da educaccedilatildeo persa

relatada no Livro I 2 da Ciropedia poreacutem o que mais realccedila aos olhos eacute sua

semelhanccedila com o modelo de educaccedilatildeo espartana O filoespartanismo natildeo eacute uma

peculiaridade inerente apenas a Xenofonte jaacute que ele natildeo foi o uacutenico ateniense a exaltar

Esparta O espiacuterito filoespartano estaacute presente tambeacutem nas obras de Isoacutecrates de Platatildeo

e de Aristoacuteteles atenienses ilustres que criticaram a experiecircncia democraacutetica de Atenas

(MOURA 2000 p15) O que mais nos surpreende nesta atitude dos pensadores

atenienses eacute que mesmo a Guerra do Peloponeso fruto da rivalidade histoacuterica entre

Atenas e Esparta natildeo impediu que estes pensadores admirassem o grande rival do povo

ateniense

Segundo Moura (2000 p37) essa situaccedilatildeo ideoloacutegica do seacuteculo IV aC tatildeo

diacutespare do comportamento dos aristocratas do seacuteculo VI aC liga-se ao fato de que

ldquo[] a questatildeo do nascimento primordial para a argumentaccedilatildeo dos primeiros [os

aristocratas do seacuteculo VI aC] era para os uacuteltimos [os intelectuais do seacuteculo IV aC]

em termos de regime poliacutetico ideal apenas um entre outros muitos fatoresrdquo

Aleacutem disso os valores que estes intelectuais pregavam como virtude sabedoria

justiccedila disciplina temperanccedila satildeo valores que se orientam natildeo para uma ideologia

aristocraacutetica mas para uma ideologia oligaacuterquica123 Para Aristoacuteteles a diferenccedila

primordial entre democracia e oligarquia finca-se na questatildeo da pobreza e da riqueza

pois ldquo[] onde quer que os homens governem segundo a sua riqueza sejam eles poucos

ou muitos haacute oligarquia e onde os pobres governam haacute uma democracia []rdquo

(ARISTOacuteTELES 1999 1279 b14-15) Isso significa que onde quer que os governos

oligarcas se estabeleccedilam as suas instituiccedilotildees pouco difeririam das democraacuteticas

(Assembleias Conselhos Magistraturas) ldquo[] diferenciando-se apenas em relaccedilatildeo agrave

maior ou menor participaccedilatildeo dos cidadatildeos nas instituiccedilotildees puacuteblicasrdquo (MOURA 2000

p43)

Os oligarcas de modo geral tinham como ideal o oacutecio conceito este vinculado agrave

ideia de tempo livre poreacutem produtivo na qual os homens deveriam exercer praacuteticas

para seu engrandecimento moral e fiacutesico como a filosofia dedicaccedilatildeo aos negoacutecios

puacuteblicos agrave retoacuterica agrave caccedila agrave cavalaria participaccedilatildeo em banquetes etc Atraveacutes destas

praacuteticas ldquo[] alcanccedilar-se-ia a distinccedilatildeo sobre os demais membros da sociedade jaacute que

123 No Agesilau 14 Xenofonte define democracia oligarquia monarquia e tirania como os governos existentes na Greacutecia de seu tempo

99

cada uma delas continha regras esteacuteticas e comportamentais especiacuteficasrdquo (MOURA

2000 p40)

Em vista disso faacutecil eacute compreender o papel de Esparta no pensamento grego do

seacuteculo IV aC O modelo espartano de governo apresentava vaacuterias caracteriacutesticas que o

aproximavam dos ideais das elites oligaacuterquicas gregas como a organizaccedilatildeo do governo

as suas leis e o seu modo de vida Assim como afirma Johnstone (apud MOURA 2000

p53)

[] muito da argumentaccedilatildeo das elites do seacuteculo quarto vai se afastar um pouco da retoacuterica do nascimento e passar a ter como base a necessidade de se afirmarem enquanto atores sociais possuidores de uma forma de vida estilizada cujas praacuteticas e comportamentos sociais deviam ser capazes de manifestar sua superioridade sobre o resto da populaccedilatildeo

Xenofonte portanto encontra nesse modelo de organizaccedilatildeo espartana subsiacutedios

para a afirmaccedilatildeo de seus ideais oligaacuterquicos Neste sentido a aproximaccedilatildeo efetuada

entre a instituiccedilatildeo persa e a instituiccedilatildeo espartana na Ciropedia cuja fidelidade agrave histoacuteria

eacute secundada pela fidelidade ao didatismo parece natural ldquoOs espartanos tinham na

visatildeo de Xenofonte todo o desprendimento das coisas materiais que os ricos deveriam

terrdquo (MOURA 2000 p65) Na visatildeo de Xenofonte os espartanos ao menos os ricos

aproveitavam seu tempo engrandecendo-se a partir de praacuteticas estilizadoras A

separaccedilatildeo entre ricos e pobres fica evidente na Ciropedia quando o narrador diz

Mas certamente os que podem sustentar os filhos sem que eles trabalhem enviam os que natildeo podem natildeo enviam Aos que foram educados junto aos mestres puacuteblicos eacute permitido por lei passar a juventude na classe dos efebos mas aos que natildeo foram educados dessa maneira natildeo eacute permitido124 (Cirop 12 15)

Portanto Xenofonte aproveitou-se dos elementos estilizadores da educaccedilatildeo

espartana para criar a imagem da formaccedilatildeo ideal representada na narrativa como persa

Desse modo justifica-se o que parecia agrave primeira vista injustificaacutevel a filiaccedilatildeo de um

ateniense ao partidarismo espartano

124 No original ἀλλ᾽ οἱ μὲν δυνάμενοι τρέφειν τοὺς παῖδας ἀργοῦντας πέμπουσιν οἱ δὲ μὴ

δυνάμενοι οὐ πέμπουσιν οἳ δ᾽ ἂν παιδευθῶσι παρὰ τοῖς δημοσίοις διδασκάλοις ἔξεστιν

αὐτοῖς ἐν τοῖς ἐφήβοις νεανισκεύεσθαι τοῖς δὲ μὴ διαπαιδευθεῖσιν οὕτως οὐκ ἔξεστιν

100

Como entatildeo funcionam as engrenagens da educaccedilatildeo espartana e como

Xenofonte fundiu na tessitura de sua narrativa a educaccedilatildeo espartana com a educaccedilatildeo

persa

NrsquoA Repuacuteblica dos Lacedemocircnios obra na qual Xenofonte demonstra o

funcionamento da constituiccedilatildeo espartana ele nos diz

Faz tempo que eu observo que Esparta foi muito poderosa e ceacutelebre na Heacutelade [] No entanto depois que me fixei nas ocupaccedilotildees dos espartiatas125 jaacute natildeo fico surpreso A Licurgo que deu a eles as leis com as quais por meio da observacircncia conseguiram sua prosperidade a ele admiro e considero saacutebio no mais alto grau126 (Const LacLI1-2 traduccedilatildeo nossa)

A partir da constataccedilatildeo de que foi Licurgo o responsaacutevel pela grandeza de

Esparta Xenofonte passa a expor as leis instituiacutedas por ele e a explicar o funcionamento

da educaccedilatildeo na cidade de Esparta

Outra obra que nos traz informaccedilotildees valiosas a respeito da constituiccedilatildeo espartana

eacute a vida de Licurgo narrada por Plutarco Segundo Xenofonte e Plutarco Licurgo deu

aos παιδόνομοι (paidonomoi) a autoridade de reunir os meninos e corrigi-los

energicamente Os παιδόνομοι satildeo magistrados importantes e a escolha de homens

importantes agrave cabeccedila da instituiccedilatildeo educacional revela uma verdadeira preocupaccedilatildeo com

a educaccedilatildeo pois esta natildeo poderia ficar a cargo de qualquer cidadatildeo

Entretanto eacute preciso ressaltar que esta educaccedilatildeo era estritamente formadora de

cidadatildeos-soldados ou seja a educaccedilatildeo proposta eacute um caminho que culminaraacute na

retribuiccedilatildeo dos homens agrave cidade que lhes deu a formaccedilatildeo devida Desse modo diz

Xenofonte Licurgo pensava que a procriaccedilatildeo era a primeira funccedilatildeo das mulheres e por

isso elas tinham que exercitar o corpo pois estava convencido ldquo[] de que dos casais

125 Os ldquoespartiatasrdquo satildeo os espartanos com plenos direitos civis e poliacuteticos em oposiccedilatildeo aos ldquoperiecosrdquo que tinham apenas direitos civis e natildeo poliacuteticos e os ldquohilotasrdquo os escravos que careciam de ambos Assim a educaccedilatildeo ndash essa educaccedilatildeo estatal ndash eacute um privileacutegio de poucos 126 No original ἀλλ᾽ ἐγὼ ἐννοήσας ποτὲ ὡς ἡ Σπάρτη τῶν ὀλιγανθρωποτάτων πόλεων οὖσα

δυνατωτάτη τε καὶ ὀνομαστοτάτη ἐν τῇ Ἑλλάδι ἐφάνη ἐθαύμασα ὅτῳ ποτὲ τρόπῳ τοῦτ᾽

ἐγένετο ἐπεὶ μέντοι κατενόησα τὰ ἐπιτηδεύματα τῶν Σπαρτιατῶν οὐκέτι ἐθαύμαζον

Λυκοῦργον μέντοι τὸν θέντα αὐτοῖς τοὺς νόμους οἷς πειθόμενοι ηὐδαιμόνησαν τοῦτον καὶ

θαυμάζω καὶ εἰς τὰ ἔσχατα [μάλα] σοφὸν ἡγοῦμαι (Const LacLI1-2)

101

vigorosos tambeacutem nascem os filhos mais robustosrdquo127 (Const Lac LI4 traduccedilatildeo

nossa)128

A educaccedilatildeo espartana portanto eacute um assunto de Estado129 e a participaccedilatildeo de

todos os seus membros civis eacute vital O Estado eacute seu iniacutecio e seu fim ao contrario do que

ocorria em Atenas onde cada chefe de famiacutelia poderia educar seus filhos agrave maneira que

bem desejasse em Esparta os meninos eram supervisionados e impelidos agrave obediecircncia

Segundo o grande estudioso da cultura claacutessica o alematildeo Werner Jaeger (1995 p1162)

tornar a educaccedilatildeo assunto do Estado eacute a principal contribuiccedilatildeo de Esparta para a

Histoacuteria da Humanidade

O mesmo tipo de educaccedilatildeo ao menos na narraccedilatildeo de Xenofonte ocorre na

Peacutersia130 desde a infacircncia as crianccedilas satildeo entregues agrave tutela do Estado e devem ali

permanecer cumprindo tarefas sob o jugo do aprendizado da justiccedila (δικαιοσύνην

dikaosynen) e da moderaccedilatildeo (σωφροσύνην sophrosynen) em cada uma das classes

As classes satildeo dividas em quatro a das crianccedilas (παῖδες paides) a dos moccedilos

(ἐφήβος ephebos) a dos adultos (τελεῖοι ἄνδρες teleioi andres) e a dos anciatildeos

(γεραίτεροι geraiteroi) Eacute obrigatoacuteria a participaccedilatildeo de todas as crianccedilas e moccedilos e

eles se reuacutenem em uma praccedila chamada Liberdade (ἐλευθέρα ἀγορὰ eleuthera agora)

onde praticam exerciacutecios fiacutesicos e recebem ensinamentos a respeito de noccedilotildees de justiccedila

e moral Quanto aos adultos e anciatildeos apenas aqueles em condiccedilotildees de se apresentar eacute

que participam natildeo sendo a apresentaccedilatildeo obrigatoacuteria salvo em dias determinados Cada

classe tem como tutores os melhores da classe subsequente dessa forma o meacuterito de

cada um eacute retribuiacutedo pela participaccedilatildeo como tutor da classe inferior Assim eacute

127 No original νομίζων ἐξ ἀμφοτέρων ἰσχυρῶν καὶ τὰ ἔκγονα ἐρρωμενέστερα γίγνεσθαι (Const Lac LI4) 128 Rousseau criticaraacute no seu Emiacutelio a educaccedilatildeo espartana justamente nesse ponto formava apenas cidadatildeos natildeo homens ldquoO homem civil eacute apenas uma unidade fracionaacuteria que se liga ao denominador e cujo valor estaacute em relaccedilatildeo com o todo que eacute o corpo social As boas instituiccedilotildees sociais satildeo as que melhor sabem desnaturar o homem retirar-lhes sua existecircncia absoluta para dar-lhes uma relativa e transferir o eu para a unidade comum de sorte que cada particular natildeo se julgue mais como tal e sim como parte da unidade e soacute seja perceptiacutevel no todo [] Uma mulher Espartana tinha cinco filhos no exeacutercito e esperava notiacutecias da batalha Chega um hilota ela lhe pede notiacutecias tremendo ldquoVossos cinco filhos foram mortos ndash Vil escravo terei perguntado isso ndash Noacutes ganhamos a batalhardquo A matildee corre ateacute o templo e daacute graccedilas aos deuses Eis a cidadatilde (ROUSSEAU 1992 p11-12) 129 A Educaccedilatildeo Espartana como a Educaccedilatildeo na Antiguidade em geral muito difere da nossa concepccedilatildeo moderna de Educaccedilatildeo esta se baseia nas conquistas da Revoluccedilatildeo Francesa como demonstra Carlota Boto em A Escola do Homem Novo (1996) 130 Eacute importante salientar que Xenofonte lutou como mercenaacuterio na guerra civil persa ao lado de Ciro o jovem contra seu irmatildeo Artaxerxes Nesta viagem tomou contato com a cultura persa poreacutem as informaccedilotildees sobre a educaccedilatildeo persa satildeo muito escassas para podermos avaliar o quanto haacute de verdadeiro na elaboraccedilatildeo dessa educaccedilatildeo persa

102

estabelecida uma visatildeo teleoloacutegica da educaccedilatildeo de um processo meritoacuterio cujo fim

enquanto aponta para o desenvolvimento das capacidades dos educandos consagra o

melhor para a retribuiccedilatildeo dessas qualidades ao Estado A noccedilatildeo de processo segundo

Maas (1999 p27) eacute evocado pelo termo Bildung raiz formadora do conceito de

Bildungsroman essa noccedilatildeo

[] eacute essencial para a compreensatildeo do romance de formaccedilatildeo a noccedilatildeo de processo Processo neste contexto eacute a sucessatildeo de etapas teleologicamente encadeadas que compotildeem o aperfeiccediloamento do indiviacuteduo em direccedilatildeo agrave harmonia e ao conhecimento de si e do mundo Formaccedilatildeo (Bildung) passa entatildeo a dialogar com educaccedilatildeo (Erziehung) (MAAS 2000 p27)

A compreensatildeo teleoloacutegica angaria ao educando a percepccedilatildeo de que as etapas

pelas quais ele passa natildeo satildeo meramente casuais mas determinadas pela virtude de seu

aperfeiccediloamento seja em alguma habilidade especiacutefica seja na sua formaccedilatildeo espiritual

Aleacutem disso no romance de formaccedilatildeo esta compreensatildeo teleoloacutegica natildeo deve apenas ser

do Estado que regula e exige do indiviacuteduo o cumprimento de uma conduta determinada

desde a infacircncia poreacutem uma concepccedilatildeo do proacuteprio indiviacuteduo que compreende esse

processo natildeo apenas na instituiccedilatildeo oficial mas na proacutepria vida Ciro por exemplo na

sua infacircncia em uma cena que seraacute analisada a seguir com mais atenccedilatildeo revela seu

projeto iacutentimo de auto-aperfeiccediloamento ao escolher permanecer por um tempo na

Meacutedia junto ao avocirc Ele se justifica deste modo agrave matildee

Porque em casa entre os da minha idade sou e tenho a reputaccedilatildeo de ser o melhor em lanccedilar dardos e flechas e aqui eu sei que no cavalgar sou inferior aos da minha idade E veja bem matildee que isto muito me aborrece Se me deixares aqui e eu aprender a cavalgar quando de um lado eu estiver na Peacutersia penso que para ti vencerei nos exerciacutecios de infantaria aqueles que satildeo os melhores de outro quando vier agrave Meacutedia aqui me esforccedilarei sendo o melhor do que os bons cavaleiros do avocirc para ser aliado dele na cavalaria131 (Cirop 13 15)

131 No original ὅτι οἴκοι μὲν τῶν ἡλίκων καὶ εἰμὶ καὶ δοκῶ κράτιστος εἶναι ὦ μῆτερ καὶ

ἀκοντίζων καὶ τοξεύων ἐνταῦθα δὲ οἶδ᾽ ὅτι ἱππεύων ἥττων εἰμὶ τῶν ἡλίκων καὶ τοῦτο εὖ

ἴσθι ὦ μῆτερ ἔφη ὅτι ἐμὲ πάνυ ἀνιᾷ ἢν δέ με καταλίπῃς ἐνθάδε καὶ μάθω ἱππεύειν ὅταν

μὲν ἐν Πέρσαις ὦ οἶμαί σοι ἐκείνους τοὺς ἀγαθοὺς τὰ πεζικὰ ῥᾳδίως νικήσειν ὅταν δ᾽ εἰς

Μήδους ἔλθω ἐνθάδε πειράσομαι τῷ πάππῳ ἀγαθῶν ἱππέων κράτιστος ὢν ἱππεὺς

συμμαχεῖν αὐτῷ (Cirop 1315)

103

Ou seja o breve intercacircmbio cultural de Ciro lhe ilumina os limites da sua

proacutepria cultura e lhe instiga a aprender o que o outro tem de melhor para ele mesmo

ser em seu paiacutes o melhor βέλτιστος (beltistos) A cultura helecircnica desde Homero

revelou-se sempre como uma cultura que premia o melhor e o peso dessa tradiccedilatildeo ecoa

por toda a literatura grega A epopeia em essecircncia toma como material de seu canto

(ἔπος epos) o feito glorioso (κλέος kleos) que deve manter-se na memoacuteria coletiva O

heroacutei deve ser o melhor de todos na batalha e sua honra (τιμή time) deve ser invejada e

respeitada por todos e qualquer sinal do menor desrespeito a sua reputaccedilatildeo eacute motivo

para uma contenda Nesse sentido a ira de Aquiles eacute o melhor exemplo de honra ferida

do guerreiro e nesse jogo em que soacute existem o tudo e o nada o heroacutei teme natildeo ser

lembrado em cantos apoacutes a sua morte132

Ser o melhor eacute uma busca que acaba apenas com a morte pois como ressalta

Soacutefocles no final do Eacutedipo Rei ldquo[] devemos considerar o dia derradeiro do mortal e

natildeo o julgar feliz antes que transponha o termo da existecircncia sem ter sofrido dor

algumardquo 133 ([1964] p89) daiacute a ontoloacutegica melancolia do heroacutei morrer jovem e belo

no campo de batalha com coragem e virtude para ser lembrado pela eternidade Os

atenienses do seacuteculo V aC davam tanto valor agrave competiccedilatildeo agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica aos

olhos de todos e agraves obrigaccedilotildees reciacuteprocas quanto qualquer heroacutei homeacuterico como denota

Peter Jones (1997 p139) Ciro de certo modo ainda que os meios para se tornar tema

do eacutepos sejam diferentes dos da eacutepica arcaica segue essa tradiccedilatildeo de heroacuteis na pena de

Xenofonte jaacute que natildeo eacute outro o objetivo dele senatildeo ser o melhor de todos e conseguir

por isso uma fama imorredoura

Retomemos o tema da educaccedilatildeo persa cada classe tem obrigaccedilotildees e funccedilotildees

proacuteprias Observando estas obrigaccedilotildees dos meninos apreendemos uma forma peculiar

de se encarar a infacircncia

[6] Os meninos frequentando a escola passam o tempo aprendendo a justiccedila e dizem que vatildeo agrave busca de aprender isso do mesmo modo que entre noacutes os meninos dizem que vatildeo agrave busca de aprender as letras Os chefes deles passam a maior parte do dia julgando-os pois ocorrem entre os meninos como entre os adultos acusaccedilotildees muacutetuas de furto roubo violecircncia traiccedilotildees e injuacuterias e outras coisas parecidas [7] Se reconhecem neles que satildeo injustos punem Castigam tambeacutem se acaso descobrirem que eles estatildeo acusando injustamente Julgam

132 Cf o artigo de Jean Pierre Vernant (1979) A bela morte e o cadaacutever ultrajado 133 Traduccedilatildeo de Jaime Bruna In Teatro Grego Eacutesquilo Soacutefocles Euriacutepedes e Aristoacutefanes Satildeo Paulo Cultrix sd

104

ainda a falta que por causa dela os homens se odeiam bem mais mas processam menos a ingratidatildeo Pois se observam que algueacutem podendo expressar gratidatildeo natildeo expressa punem-no com severidade Crecircem pois que os ingratos satildeo mais negligentes com os deuses com os familiares com a paacutetria e com os amigos Entretanto nada parece estar mais junto da ingratidatildeo do que a impudecircncia pois esta parece ser de todas as vergonhas a guia134 (Cirop 12 6-7)

Por essa descriccedilatildeo do narrador determinados viacutecios podem ser encarados como

tambeacutem inatos ao ser humano jaacute que nas proacuteprias crianccedilas accedilotildees deste tipo satildeo

percebidas e por essa razatildeo eacute que elas devem aprender desde cedo o significado da

justiccedila As crianccedilas aprendem tambeacutem a moderaccedilatildeo (σοφροσύνη sophrosyne) e a

respeitar as autoridades Ο exemplo dos mais velhos eacute fundamental no aprendizado

desses ensinamentos pois eacute ldquo[] para aprender a ser moderado que observem os mais

velhos ao longo de todo o dia vivendo com moderaccedilatildeordquo135 (Cirop 128)

A partir da classe dos moccedilos a educaccedilatildeo se torna cada vez mais voltada para a

praacutetica dos soldados aleacutem de frequentes exerciacutecios fiacutesicos tambeacutem a participaccedilatildeo

efetiva na guarda da cidade Ademais sempre que possiacutevel o rei quando vai agrave caccedila

leva junto consigo os melhores efebos pois ldquo[] esse exerciacutecio parece ser a eles o mais

justo para guerra []rdquo136 pois acostuma o homem agraves diversas dificuldades e ldquo[] natildeo eacute

faacutecil encontrar algo que acontecendo na guerra falte agrave caccedilardquo137 (Cirop 12 10)

A caccedila era uma das praacuteticas sociais mais caracteriacutesticas das elites gregas e por

meio dela os aristocratas treinavam e mediam a coragem a astuacutecia e a virilidade Em

Sobre a caccedila manual teacutecnico escrito por Xenofonte nota-se claramente que esta praacutetica

134 No original [6] οἱ μὲν δὴ παῖδες εἰς τὰ διδασκαλεῖα φοιτῶντες διάγουσι μανθάνοντες

δικαιοσύνην καὶ λέγουσιν ὅτι ἐπὶ τοῦτο ἔρχονται ὥσπερ παρ᾽ ἡμῖν ὅτι γράμματα

μαθησόμενοι οἱ δ᾽ ἄρχοντες αὐτῶν διατελοῦσι τὸ πλεῖστον τῆς ἡμέρας δικάζοντες αὐτοῖς

γίγνεται γὰρ δὴ καὶ παισὶ πρὸς ἀλλήλους ὥσπερ ἀνδράσιν ἐγκλήματα καὶ κλοπῆς καὶ

ἁρπαγῆς καὶ βίας καὶ ἀπάτης καὶ κακολογίας καὶ ἄλλων οἵων δὴ εἰκός [7] οὓς δ᾽ ἂν γνῶσι

τούτων τι ἀδικοῦντας τιμωροῦνται κολάζουσι δὲ καὶ ὃν ἂν ἀδίκως ἐγκαλοῦντα εὑρίσκωσι

δικάζουσι δὲ καὶ ἐγκλήματος οὗ ἕνεκα ἄνθρωποι μισοῦσι μὲν ἀλλήλους μάλιστα

δικάζονται δὲ ἥκιστα ἀχαριστίας καὶ ὃν ἂν γνῶσι δυνάμενον μὲν χάριν ἀποδιδόναι μὴ

ἀποδιδόντα δέ κολάζουσι καὶ τοῦτον ἰσχυρῶς οἴονται γὰρ τοὺς ἀχαρίστους καὶ περὶ θεοὺς

ἂν μάλιστα ἀμελῶς ἔχειν καὶ περὶ γονέας καὶ πατρίδα καὶ φίλους ἕπεσθαι δὲ δοκεῖ

μάλιστα τῇ ἀχαριστίᾳ ἡ ἀναισχυντία καὶ γὰρ αὕτη μεγίστη δοκεῖ εἶναι ἐπὶ πάντα τὰ

αἰσχρὰ ἡγεμών (Cirop 126-7) 135 No original μέγα δὲ συμβάλλεται εἰς τὸ μανθάνειν σωφρονεῖν αὐτοὺς ὅτι καὶ τοὺς

πρεσβυτέρους ὁρῶσιν ἀνὰ πᾶσαν ἡμέραν σωφρόνως διάγοντας (Cirop 128) 136 No original ὅτι ἀληθεστάτη αὐτοῖς δοκεῖ εἶναι αὕτη ἡ μελέτη τῶν πρὸς τὸν πόλεμον

(Cirop 1210) 137 No original ὥστε οὐ ῥᾴδιον εὑρεῖν τί ἐν τῇ θήρᾳ ἄπεστι τῶν ἐν πολέμῳ παρόντων

(Cirop1210)

105

era uma atividade apenas dos homens ricos pois para ser um bom caccedilador eram

necessaacuterios determinados gastos financeiros ter bons catildees de caccedila escravos que

ajudassem na captura dos animais ser portador de material necessaacuterio para empreender

a captura e conhecer o comportamento dos animais a serem caccedilados (MOURA 2000

p68) A praacutetica da caccedila na Ciropedia ganha um relevo especial na formaccedilatildeo do

soldado pois ela ensina ao jovem caccedilando os animais como ele deve agir contra os

inimigos quando houver guerra Assim Cambises pai de Ciro o estimula para a

batalha

Por que razatildeo entatildeo filho tu aprendestes a atirar com o arco Por que razatildeo a lanccedilar dardos Por que razatildeo a enganar javalis selvagens com redes e fossos E por que razatildeo aos cervos com armadilhas e cordas E por que razatildeo aos leotildees ursos e leopardos voacutes natildeo combatiacuteeis colocando-se em igualdade mas sempre procuraacuteveis lutar contra eles provido de alguma vantagem Ou natildeo reconheces que todas essas coisas satildeo maldades ardis enganos e subterfuacutegios138 (Cirop 16 28) [39] Mas se tu filho transferires aos inimigos nenhuma outra coisa aleacutem dos truques que muito planejaste contra os animais pequenos natildeo achas que avanccedilas sobre os inimigos muito adiantado em vantagens Pois tu contra as aves te levantavas no inverno rigoroso e marchavas de noite e antes que os paacutessaros se movessem as cordas para eles eram preparadas por ti e tornavas o chatildeo movido semelhante ao natildeo tocado os paacutessaros eram ensinados por ti para te servirem com utilidade e para enganar os paacutessaros da mesma espeacutecie Tu armavas emboscada para vecirc-las sem ser visto por elas e estavas preparado para puxar antes que os paacutessaros fugissem [40] Por outro lado contra a lebre que vive na escuridatildeo e evita o dia criava catildees que a descobriam pelo faro Assim quando era encontrada fugia rapidamente mas tinhas catildees preparados para capturaacute-las correndo Se entatildeo fugia tambeacutem destes procurando saber quais lugares as lebres fugindo alcanccedilaram nesses estendia redes de caccedila difiacuteceis de ver e na fuga veemente ela mesma caindo sobre a rede ficava amarrada E para natildeo fugirem daiacute tu colocavas guardas para o que estava ocorrendo os que de perto estavam tinham condiccedilotildees de sobrevir rapidamente e tu mesmo atraacutes com clamor natildeo ficavas atraacutes da lebre e bradando aterrorizava-a de tal modo que era capturada enlouquecida e para os que estavam defronte explicava

138 No original τίνος μὴν ἕνεκα ἔφη ἐμανθάνετε τοξεύειν τίνος δ᾽ ἕνεκα ἀκοντίζειν τίνος δ᾽

ἕνεκα δολοῦν ὗς ἀγρίους καὶ πλέγμασι καὶ ὀρύγμασι τί δ᾽ ἐλάφους ποδάγραις καὶ

ἁρπεδόναις τί δὲ λέουσι καὶ ἄρκτοις καὶ παρδάλεσιν οὐκ εἰς τὸ ἴσον καθιστάμενοι

ἐμάχεσθε ἀλλὰ μετὰ πλεονεξίας τινὸς αἰεὶ ἐπειρᾶσθε ἀγωνίζεσθαι πρὸς αὐτά ἢ οὐ πάντα

γιγνώσκεις ταῦτα ὅτι κακουργίαι τέ εἰσι καὶ ἀπάται καὶ δολώσεις καὶ πλεονεξίαι (Cirop 16 28)

106

para fazer silecircncio e permanecerem ocultos na emboscada (Cirop 16 39-40)139

Na Lacedemocircnia segundo Xenofonte em A Repuacuteblica dos lacedemocircnios o

jovem era obrigado a participar dessa praacutetica tendo como objetivo maior o preparo do

bom cidadatildeo (Cirop 64)

Por fim ficam os efebos nessa classe por dez anos e passam entatildeo para a classe

dos adultos na qual permanecem por vinte e cinco anos Os cargos oficiais satildeo

preenchidos por essa classe que cuida das exigecircncias do bem comum aleacutem eacute claro de

formar o exeacutercito do paiacutes Depois de permanecerem vinte e cinco anos na classe dos

adultos eles vatildeo para a classe dos anciatildeos Estes permanecem no paiacutes julgando os

casos de direito puacuteblico e privado aleacutem das faltas denunciadas contra os cidadatildeos

Ressoa ainda as palavras de Plutarco a respeito da educaccedilatildeo espartana instituiacuteda por

Licurgo ldquo[] a educaccedilatildeo era um aprendizado da obediecircnciardquo (PLUTARCO 1991

p113)

Ciro portanto passa por todo esse processo enquanto cidadatildeo persa ldquo[] e

mostrava-se superando a todos os da sua idade tanto no aprender com rapidez as coisas

que fossem necessaacuterias quanto no cumprir cada tarefa com nobreza e virilidaderdquo

(Cirop 13 1)140 A elite persa tem como praacuteticas portanto as mesmas da elite

espartana surgindo ldquo[] como sendo compostas de homens de costumes moderados

exiacutemios praticantes da arte da cavalaria oacutetimos combatentes de infantaria instruiacutedos e

139 No original [39] εἰ δὲ σύ γε ἔφη ὦ παῖ μηδὲν ἄλλο ἢ μετενέγκοις ἐπ᾽ ἀνθρώπους τὰς μηχανὰς ἃς καὶ πάνυ ἐπὶ τοῖς μικροῖς θηρίοις ἐμηχανῶ οὐκ οἴει ἄν ἔφη πρόσω πάνυ ἐλάσαι τῆς πρὸς τοὺς πολεμίους πλεονεξίας σὺ γὰρ ἐπὶ μὲν τὰς ὄρνιθας ἐν τῷ ἰσχυροτάτῳ χειμῶνι ἀνιστάμενος ἐπορεύου νυκτός καὶ πρὶν κινεῖσθαι τὰς ὄρνιθας ἐπεποίηντό σοι αἱ πάγαι αὐταῖς καὶ τὸ κεκινημένον χωρίον ἐξείκαστο τῷ ἀκινήτῳ ὄρνιθες δ᾽ ἐπεπαίδευντό σοι ὥστε σοὶ μὲν τὰ συμφέροντα ὑπηρετεῖν τὰς δὲ ὁμοφύλους ὄρνιθας ἐξαπατᾶν αὐτὸς δὲ ἐνήδρευες ὥστε ὁρᾶν μὲν αὐτάς μὴ ὁρᾶσθαι δὲ ὑπ᾽ αὐτῶν ἠσκήκεις δὲ φθάνων ἕλκειν ἢ τὰ πτηνὰ φεύγειν [40] πρὸς δ᾽ αὖ τὸν λαγῶ ὅτι μὲν ἐν σκότει νέμεται τὴν δ᾽ ἡμέραν ἀποδιδράσκει κύνας ἔτρεφες αἳ τῇ ὀσμῇ αὐτὸν ἀνηύρισκον ὅτι δὲ ταχὺ ἔφευγεν ἐπεὶ εὑρεθείη ἄλλας κύνας εἶχες ἐπιτετηδευμένας πρὸς τὸ κατὰ πόδας αἱρεῖν εἰ δὲ καὶ ταύτας ἀποφύγοι τοὺς πόρους αὐτῶν ἐκμανθάνων καὶ πρὸς οἷα χωρία φεύγοντες ἀφικνοῦνται οἱ λαγῷ ἐν τούτοις δίκτυα δυσόρατα ἐνεπετάννυες ἄν καὶ τῷ σφόδρα φεύγειν αὐτὸς ἑαυτὸν ἐμπεσὼν συνέδει τοῦ δὲ μηδ᾽ ἐντεῦθεν διαφεύγειν σκοποὺς τοῦ γιγνομένου καθίστης οἳ ἐγγύθεν ταχὺ ἔμελλον ἐπιγενήσεσθαι καὶ αὐτὸς μὲν σὺ ὄπισθεν κραυγῇ οὐδὲν ὑστεριζούσῃ τοῦ λαγῶ βοῶν ἐξέπληττες αὐτὸν ὥστε ἄφρονα ἁλίσκεσθαι τοὺς δ᾽ ἔμπροσθεν σιγᾶν διδάξας ἐνεδρεύοντας λανθάνειν ἐποίεις 140 No original [] καὶ πάντων τῶν ἡλίκων διαφέρων ἐφαίνετο καὶ εἰς τὸ ταχὺ μανθάνειν ἃ δέοι καὶ εἰς τὸ καλῶς καὶ ἀνδρείως ἕκαστα ποιεῖν (Cirop 131)

107

letrados obedientes e disciplinados e exiacutemios praticantes da caccedila de animais ferozesrdquo

(MOURA 2000 p100)

Para Jaeger (1995 p1148) nessa forma de Xenofonte ver os povos baacuterbaros

repousa a influecircncia das palavras de Soacutecrates pois do mesmo modo que entre os gregos

havia muitos corruptos entre os estrangeiros havia verdadeiros ἄνδρες καλoὶ

κἀγαθoὶ (andres kaloi kagathoi) homens excelentes Como nos lembra Collingwood

em A Ideia da Histoacuteria (1981 p45) uma das caracteriacutesticas essenciais do Helenismo eacute

compreender os ldquobaacuterbarosrdquo como detentores de uma cultura vaacutelida Se para os gregos do

periacuteodo claacutessico os estrangeiros interessavam como paralelo ao que era grego natildeo

interessando por si mesmos mas enquanto participantes dos feitos dos proacuteprios gregos

para os gregos do periacuteodo Heleniacutestico os estrangeiros baacuterbaros ganham autonomia e

passam a interessar naquilo que possuiacuteam de melhor Xenofonte desse modo prenuncia

uma visatildeo cultural mais ampla tiacutepica dos seacuteculos seguintes

Ciro portanto percorre etapas educativas na instituiccedilatildeo de ensino persa

formando-se de acordo com as leis do paiacutes O narrador expressa a admiraccedilatildeo de todos

pela excelente conduta de Ciro nas praacuteticas formadoras A noccedilatildeo de formaccedilatildeo expressa

na Ciropedia eacute uma noccedilatildeo teleoloacutegica que pressupotildee um percurso diretivo que seraacute

cumprido em sua totalidade apenas pelos melhores cidadatildeos jaacute na vida adulta As

praacuteticas educacionais natildeo se resumem no entanto apenas agraves crianccedilas mas a todos os

homens-cidadatildeos que devem permanecer em constante aprendizado visando a sua

perfectibilidade

A educaccedilatildeo em uma instituiccedilatildeo educacional todavia natildeo eacute de fato um tema

essencial ao Romance de Formaccedilatildeo pois em algumas narrativas o percurso do heroacutei

estaacute completamente dissociado desta instituiccedilatildeo Entretanto na Ciropedia em virtude

do seu caraacuteter idealizante a educaccedilatildeo formal apresenta-se como um momento decisivo

e positivo na formaccedilatildeo do caraacuteter positivo do indiviacuteduo No Romance de Formaccedilatildeo

moderno a educaccedilatildeo formal eacute contestada como uma etapa da vida em que o indiviacuteduo e

suas potencialidades satildeo oprimidos pelos valores morais e eacuteticos das classes

dominantes Neste sentido a educaccedilatildeo formal eacute um aspecto negativo da vida do

indiviacuteduo e em alguns romances ndash O Tambor de Guumlnter Grass (1956) por exemplo ndash o

heroacutei se afasta totalmente de qualquer instituiccedilatildeo educacional enquanto que em outros

romances ndash Retrato do artista quanto jovem de James Joyce (1916) por exemplo ndash os

108

aspectos negativos da educaccedilatildeo riacutegida permitem ao heroacutei descobrir as potencialidades

interiores negando os proacuteprios valores que a educaccedilatildeo formal transmite

432 Enganos e desmedidas a participaccedilatildeo dos mentores

Um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do romance de formaccedilatildeo eacute a presenccedila de

mentores ou seja de homens responsaacuteveis pela educaccedilatildeo de um jovem Segundo Maas

(2000 p29) a presenccedila da figura masculina do mentor constitui-se desde o Emilio de

Rousseau uma tradiccedilatildeo nas obras pedagoacutegicas No entanto podemos observar que a

narrativa de Xenofonte jaacute apresenta personagens cujo saber e autoridade permitem

representar a funccedilatildeo de preceptores Na Literatura Grega entretanto a presenccedila de

mentores natildeo eacute uma novidade da Ciropedia pois este tipo de personagem remonta aos

poemas homeacutericos

Na Iliacuteada narra-se que Aquiles foi primeiramente educado por Quiratildeo o

Centauro mais justo141 depois por Fecircnix um nobre da corte de seu pai Quiratildeo infundiu

em Aquiles os preceitos de honra para se tornar um heroacutei enquanto Fecircnix lhe ensinou

ldquocomo dizer bons discursos e grandes accedilotildees pocircr em praacuteticardquo142

Outro exemplo se encontra na Odisseia Logo no canto I apoacutes o conciacutelio dos

deuses no qual se decide que Zeus iraacute ajudar Odisseu em seu retorno a Iacutetaca Atena

metamorfoseada no estrangeiro Mentor descendente de Anquiacutealo surge diante de

Telecircmaco que

Pesaroso se achava no meio dos moccedilos soberbos Vendo no espiacuterito a imagem do pai valoroso se acaso Logo viesse a expulsar de seu proacuteprio palaacutecio os intrusos E conquistar nome excelso qual dono dos proacuteprios haveres (Odisseia 1 v114-117)

Telecircmaco recebe o estrangeiro com todas as honras agasalhando-o e servindo-

lhe um banquete farto Depois de saciaacute-lo a imagem nefanda dos pretendentes se

banqueteando estimula Telecircmaco a declarar sua anguacutestia pela ausecircncia paterna e pelo

desrespeito demonstrado pelos pretendentes que enquanto esperavam uma decisatildeo de

141 IlXI830-32 142 IlIX444 A Traduccedilatildeo eacute de Carlos Alberto Nunes (1962)

109

Peneacutelope ndash se ela aceitaraacute ou natildeo novas nuacutepcias ndash se fartavam com os rebanhos da casa

de Odisseu A deusa Atena aconselha-o a convocar uma assembleia com os

pretendentes e lhes expor o projeto de sair agrave procura de notiacutecias do pai primeiro ateacute

Pilo interrogar Nestor e em seguida ateacute Esparta para falar com Menelau (v 284-285)

Nesta cena o importante para a formaccedilatildeo de Telecircmaco eacute que apoacutes o conselho dado por

Atena ela lhe instiga a coragem de Telecircmaco citando o exemplo de Orestes que

retornara agrave terra para matar o tio Egisto e a proacutepria matildee Clitemnestra vingando assim a

morte de Agamecircmnon Suas palavras satildeo

Logo que tudo hajas feito e a bom termo de acocircrdo levado no iacutentimo da alma reflete e no peito tambeacutem valoroso como consigas matar claramente ou por modo encoberto os pretendentes no proacuteprio palaacutecio que bem natildeo te fica como crianccedila brincar para tal jaacute passaste da idade Ou natildeo soubeste da fama que Orestes divino entre os homens veio a alcanccedilar por haver dado a morte ao Tiestiacuteada Egisto que com traiccediloeira artimanha matara seu pai muito ilustre Tu tambeacutem caro Crescido te vejo e com bela aparecircncia Secirc corajoso porque tambeacutem possam vindoiros louvar-te (Odisseia 1 v293-302)

Sob o espectro exemplar de Orestes as accedilotildees de Telecircmaco seratildeo consideradas e

avaliadas Atena instiga a Telecircmaco agrave emulaccedilatildeo com Orestes e eacute por meio da orientaccedilatildeo

de Atena que ele pode agir e seguir o caminho do seu amadurecimento

No final do seacuteculo XVII Feacutenelon escreve As Aventuras de Telecircmaco (1699)

onde realccedila a relaccedilatildeo de Mentor e Telecircmaco sendo a proacutepria relaccedilatildeo o centro da

narrativa Graccedilas a Feacutenelon e sua influecircncia no ideal Iluminista a palavra ldquomentorrdquo

passou a designar a relaccedilatildeo entre um adulto mais experiente e um jovem cuja

orientaccedilatildeo o mentor provecirc

Eacute importante ter em mente que sem o auxiacutelio de Atena o caminho de Telecircmaco

seria outro Segundo Peter Jones

Telecircmaco precisa tambeacutem de encorajamento para assumir esse papel (ἐποτρύνω portanto) e explica o porquecirc o dever de Telecircmaco eacute a vinganccedila mas ele se distanciou em demasiado desse sentido de dever agrave medida que tem apenas uma imagem obscura e indistinta de seu pai Atena precisa implantar na mente de Telecircmaco uma imagem clara e

110

inambiacutegua da ἀρετή (ldquoexcelecircnciardquo) de seu pai se quiser criar nele o desejo de agir143 (JONES 1988)

Eacute com essa percepccedilatildeo que o papel dos mentores tem importacircncia definitiva no

Romance de Formaccedilatildeo o destino do heroacutei sem a participaccedilatildeo dos mentores seria

outro bem afastado da perfectibilidade A funccedilatildeo de mentor natildeo eacute necessariamente

representada por preceptores professores ou algum tipo de profissional da educaccedilatildeo

mas pode ser preenchida por qualquer personagem da narrativa desde que o contato do

heroacutei com esta personagem torne-se um elemento importante da mudanccedila teoacuterica e

praacutetica na trajetoacuteria do heroacutei constituindo-se assim um elemento importante da proacutepria

mateacuteria narrativa

NrsquoOs anos de aprendizado de Wilhem Meister de Goethe por exemplo no

capiacutetulo 17 do Livro II Meister encontra-se com um desconhecido que reconheceu

Meister como ldquo[] o neto do velho Meister aquele que possuiacutea uma valiosa coleccedilatildeo

artiacutesticardquo (GOETHE 1994 p80) Esse desconhecido revela-se o apreciador de arte que

ajudou a um velho rico a comprar a coleccedilatildeo do avocirc de Wilhelm A partir do tema dos

quadros do velho Meister os dois conversam sobre questotildees de arte nas quais Meister

revela um comportamento extremamente subjetivista reconhecendo nas obras os

valores artiacutesticos natildeo por questotildees esteacuteticas ou pela teacutecnica apenas agrave medida que a obra

revela seus proacuteprios anseios interiores O desconhecido-mentor entatildeo lhe diz

Estes sentimentos estatildeo certamente muito distantes das consideraccedilotildees que costuma levar em conta um amante das artes ao apreciar a obra dos grandes mestres mas eacute bem provaacutevel que se o gabinete ainda estivesse em poder de sua famiacutelia aos poucos se revelaria os sentidos daquelas obras e o senhor acabaria por ver nelas algo mais do que a si mesmo e sua inclinaccedilatildeo (GOETHE 1994 p82)

Meister entatildeo concorda que muita falta faz aquela coleccedilatildeo poreacutem se ldquo[] teve

de acontecer para despertar em mim uma paixatildeo um talento que exerceriam em minha

vida uma influecircncia muito maior que o teriam feito aquelas imagens inanimadas

resigno-me de bom grato e acato o destinordquo (GOETHE 1994 p82-83) O

desconhecido lhe reprova o uso da palavra destino com tanta veemecircncia e indagado

por Meister se ele natildeo acredita em destino responde-lhe

143 A traduccedilatildeo do artigo The Kleos of Telemachus Odyssey 195 de Peter Von Jones eacute de Leonardo Teixeira de Oliveira 2007 Encontra-se disponiacutevel no site da internet httpwwwclassicasufprbrprojetosbolsapermanencia2006artigosPeter_Jones-KleosDeTelemacopdf O texto original de Jones data de 1988 e foi publicado na revista American Journal of Philology vol 109 p496-506

111

Natildeo se trata aqui do que creio nem eacute este o lugar para lhe explicar como procuro tornar de certo modo concebiacuteveis coisas que fogem agrave compreensatildeo de todos noacutes a questatildeo aqui eacute saber como o melhor modo de representaccedilatildeo para noacutes A trama desse mundo eacute tecida pela necessidade e pelo acaso a razatildeo do homem se situa entre os dois e sabe dominaacute-los ela trata o necessaacuterio como a base de sua existecircncia sabe desviar conduzir e aproveitar o acaso e soacute enquanto se manteacutem firme e inquebrantaacutevel eacute que o homem merece ser chamado de um deus na Terra Infeliz aquele que desde a sua juventude habitua-se a querer encontrar no necessaacuterio alguma coisa de arbitraacuterio a querer atribuir ao acaso uma espeacutecie de razatildeo tornando-se mesmo uma legiatildeo segui-lo Que seria isso senatildeo renunciar agrave proacutepria razatildeo e dar ampla margem a suas inclinaccedilotildees [] Soacute me anima o homem que sabe o que eacute uacutetil a ele e aos outros e trabalha para limitar o arbitraacuterio Cada um tem a felicidade em suas matildeos assim como o artista tem a mateacuteria bruta com a qual ele haacute de modelar uma figura Mas ocorre com essa arte como com todas soacute a capacidade nos eacute inata faz-se necessaacuterio pois aprendecirc-la e exercitaacute-la cuidadosamente (GOETHE 1994 p83)

O desconhecido natildeo convencera Meister de todo no entanto quando suas

frustraccedilotildees surgirem no decorrer da narrativa as palavras daquele desconhecido-mentor

tornar-se-atildeo claras e evidentes Meister estava crente de que seu destino era o mundo

das artes em especial o teatro poreacutem frustra-se convivendo com uma trupe e com o

fracaso da sua representaccedilatildeo do Hamlet de Shakespeare No desfecho de sua trajetoacuteria

que permanece neste livro em aberto e soacute seraacute resolvido no terceiro livro da seacuterie Os

anos de peregrinaccedilatildeo de Wilhelm Meister de 1829 Meister caminha da dedicaccedilatildeo ao

teatro para a Medicina e termina seus anos de aprendizado integrado ao avanccedilo

econocircmico e social da burguesia o projeto idealista da formaccedilatildeo universal se perde

portanto em funccedilatildeo de uma formaccedilatildeo praacutetica especializada

O tal desconhecido se revelaraacute como participante de uma sociedade humanista

chamada Sociedade da Torre ldquo[] que preconiza o desenvolvimento das qualidades e

talentos inatos no indiviacuteduo orientado para a vida em sociedaderdquo (MAAS 2000 p30)

e que acompanhava agrave distacircncia o desenvolvimento de Meister O diaacutelogo entre os dois

faz parte do projeto de educaccedilatildeo da Sociedade que enquanto conceitua o mundo pela

sua verdade natildeo impede que o educando sofra com o seu proacuteprio erro de avaliaccedilatildeo

para que ele tambeacutem se converta por fim agrave verdade professada pela Sociedade da

Torre No final drsquoOs anos de aprendizagem Meister descobre que muitas personagens

que no decorrer da narrativa surgiram e tiveram alguma influecircncia sobre ele eram na

verdade membros desta sociedade e estavam cuidando de sua formaccedilatildeo

112

O papel do mentor caracteriacutestica essencial ao romance de formaccedilatildeo eacute portanto

fundamental na formaccedilatildeo do indiviacuteduo no que tange a sua caminhada agrave

perfectibilidade jaacute que eles direcionam a personagem Na Ciropedia a experiecircncia de

Ciro com mentores segue esse mesmo caminho rumo agrave perfectibilidade e se daraacute em

dois estaacutegios no primeiro estaacutegio quando crianccedila em sua visita agrave Meacutedia e no segundo

estaacutegio antes de partir para a guerra contra os Assiacuterios agrave frente do exeacutercito persa

Vamos entatildeo discutir a participaccedilatildeo dos mentores na Ciropedia

4321 Afastamento da casa paterna Visita agrave Meacutedia

A primeira cena que analisaremos a respeito da participaccedilatildeo de mentores na

Ciropedia estaacute ligada a outra experiecircncia tiacutepica dos romances de formaccedilatildeo segundo

Jacobs (1989) o afastamento da casa paterna Quando Ciro tinha doze anos foi com a

sua matildee visitar o avocirc Astiacuteages o rei da Meacutedia a pedido deste Nesta viagem na qual

haveraacute o primeiro contato de Ciro com uma cultura diferente todas as qualidades que o

narrador descreveu em Ciro seratildeo exemplificadas (Cirop 131-1427)144 A narrativa eacute

composta de diferentes cenas principalmente banquetes com diaacutelogos raacutepidos nos

quais Ciro interage com diversas personagens e ldquo[] dessa forma temos por assim

dizer uma visatildeo completa do ambiente social de Cirordquo145 (DUE 1989 p151 traduccedilatildeo

nossa)

Quando sua matildee resolve retornar Ciro decide permanecer na casa do avocirc pois

ali poderia se instruir em conhecimentos diferentes dos de seus pares persas A

separaccedilatildeo da casa paterna aqui revela-se mais como a separaccedilatildeo da cultura paterna do

que propriamente um afastamento da custoacutedia do pai uma vez que o avocirc substitui social

e psicologicamente a figura paterna

Ciro na Meacutedia desenvolveraacute habilidades tanto teacutecnicas principalmente na arte

da equitaccedilatildeo e da caccedila quanto sociais e apreenderaacute a conviver com as pessoas de modo

mais harmocircnico controlando suas paixotildees Eacute instrutivo que no primeiro jantar com o

144 Na primeira descriccedilatildeo que Xenofonte faz de Ciro ele enfatiza suas qualidades inatas Segundo o narrador Ciro era por natureza φιλανθρωπότατος (amante da bondade) φιλομαθέστατος (amante do aprender) e φιλοτιμότατος (amante das honras) Em seguida estabelece que as qualidades que o sistema educacional persa enfatiza satildeo a διχαιοσύνε (justiccedila) χάρις (gratidatildeo) σωφροσύνε (temperanccedila) πείθεσται (obediecircncia) 145 No Original in this way we get so to speak a full picture of Cyrusrsquo social environment (DUE 1989 p151)

113

seu avocirc quando ainda estava a matildee presente Ciro uma crianccedila presunccedilosa faz um

sem-fim de comentaacuterios a respeito da cultura meda principalmente a respeito do luxo

das roupas e da alimentaccedilatildeo meda os quais muito divertem mas tambeacutem constrangem

os participantes do banquete

Nesses comentaacuterios ele se distingue como persa dos medos pela sophrosyne

moderaccedilatildeo que segundo Due (1989 p170) natildeo eacute um termo particularmente

caracteriacutestico do seacuteculo IV aC mas uma das mais tiacutepicas virtudes gregas No diaacutelogo

em questatildeo Ciro relaciona a temperanccedila com os atos de beber e comer poreacutem a palavra

carrega semanticamente o sentido de abstinecircncia de prazeres ἡδονῶν (edonon) de

modo geral Os medos na visatildeo de Ciro corrompem-se com a mesa farta de comidas e

bebidas e a principal consequecircncia disso eacute no seu entender uma espeacutecie de

carnavalizaccedilatildeo das posiccedilotildees sociais

Por Zeus pois via vos cambaleando o corpo e o juiacutezo Primeiramente o que natildeo permites a noacutes as crianccedilas fazer voacutes mesmos o faziam Todos gritavam ao mesmo tempo e nada entendiacuteeis uns dos outros cantaacuteveis de modo muito risiacutevel e natildeo ouvindo com atenccedilatildeo o que cantaacuteveis julgaacuteveis cantar nobremente cada um deles falava de sua proacutepria forccedila em seguida se levantassem para danccedilar natildeo soacute natildeo danccedilavam no ritmo mas nem conseguiam endireitar-se Tu esqueceste-te totalmente de que tu eras o rei e os outros de que tu eras o governante pois nesse momento eu ao menos pela primeira vez entendi que isso com efeito era a igualdade de expressatildeo o que voacutes praticaacuteveis entatildeo Ao menos jamais voacutes vos calaacuteveis146 (Cirop 13 10)

A loquacidade de Ciro que por causa desses comentaacuterios ldquonatildeo revelava

temeridade mas inocecircncia e ternura de sorte que se desejava ainda mais ouvi-lo do que

estar presente em silecircnciordquo (Cirop 14 3) aos poucos agrave medida que ele crescia apaga-

se de seu comportamento puacuteblico Assim

[4] Conforme o tempo fazia-o progredir no tamanho para a hora de tornar-se adolescente com isso servia-se das palavras mais raramente e da voz mais suavemente pois ficava cheio de vergonha a ponto de

146 No original ὅτι νὴ Δί᾽ ὑμᾶς ἑώρων καὶ ταῖς γνώμαις καὶ τοῖς σώμασι σφαλλομένους

πρῶτον μὲν γὰρ ἃ οὐκ ἐᾶτε ἡμᾶς τοὺς παῖδας ποιεῖν ταῦτα αὐτοὶ ἐποιεῖτε πάντες μὲν γὰρ

ἅμα ἐκεκράγειτε ἐμανθάνετε δὲ οὐδὲν ἀλλήλων ᾔδετε δὲ καὶ μάλα γελοίως οὐκ

ἀκροώμενοι δὲ τοῦ ᾁδοντος ὠμνύετε ἄριστα ᾁδειν λέγων δὲ ἕκαστος ὑμῶν τὴν ἑαυτοῦ

ῥώμην ἔπειτ᾽ εἰ ἀνασταίητε ὀρχησόμενοι μὴ ὅπως ὀρχεῖσθαι ἐν ῥυθμῷ ἀλλ᾽ οὐδ᾽

ὀρθοῦσθαι ἐδύνασθε ἐπελέλησθε δὲ παντάπασι σύ τε ὅτι βασιλεὺς ἦσθα οἵ τε ἄλλοι ὅτι σὺ

ἄρχων τότε γὰρ δὴ ἔγωγε καὶ πρῶτον κατέμαθον ὅτι τοῦτ᾽ ἄρ᾽ ἦν ἡ ἰσηγορία ὃ ὑμεῖς τότ᾽

ἐποιεῖτε οὐδέποτε γοῦν ἐσιωπᾶτε (Cirop 1310)

114

corar quando se encontrava com os mais velhos e natildeo mais como um cachorrinho jogava-se sobre todos conduzindo-se com semelhante fogosidade Assim de um lado era mais circunspecto de outro nas reuniotildees era inteiramente gracioso147 (Cirop 144)

Esse comportamento estouvado vai dando lugar a um comportamento mais

circunspeto que chega mesmo a preocupar o proacuteprio Ciro

Mas natildeo por Zeus eu natildeo sei que homem eu me tornei pois natildeo sou capaz de falar e olhar o meu avocirc como podia antes Se progredir desse modo temo tornar-me completamente indeciso e insensato e quando era crianccedila eu parecia ser extraordinariamente haacutebil no falar148 (Cirop 1412)

Ciro revela a autoconsciecircncia de seu comportamento quando eacute instigado pelos

colegas a pedir em favor deles que Astiacuteages permita que eles saiam para caccedilar Uma

vez que Ciro jaacute mais maduro percebe os limites que se impotildeem entre os homens nas

relaccedilotildees sociais e natildeo mais pode ser o ldquofalastratildeordquo da infacircncia sente a necessidade de

maquinar um meio de convencer o avocirc149

O nosso interesse por ora eacute verificar a evoluccedilatildeo do comportamento de Ciro se

em um primeiro momento ele eacute loquaz falando abertamente o que pensa e sente a

partir da evoluccedilatildeo de seu caraacuteter ele passa a buscar estrateacutegias discursivas mais

complexas para conseguir a persuasatildeo de seu interlocutor O resultado desta

transformaccedilatildeo eacute um orador eficiente e capaz de conduzir as massas como nenhum outro

liacuteder

Haacute aleacutem disso outras experiecircncias fundamentais que vatildeo caracterizando Ciro

na juventude como imaturo e demedido e que serviratildeo justamente de exemplo para o

proacuteprio Ciro aprender a controlar-se

147 No original ὡς δὲ προῆγεν αὐτὸν ὁ χρόνος σὺν τῷ μεγέθει εἰς ὥραν τοῦ πρόσηβον

γενέσθαι ἐν τούτῳ δὴ τοῖς μὲν λόγοις μανοτέροις ἐχρῆτο καὶ τῇ φωνῇ ἡσυχαιτέρᾳ αἰδοῦς

δ᾽ ἐνεπίμπλατο ὥστε καὶ ἐρυθραίνεσθαι ὁπότε συντυγχάνοι τοῖς πρεσβυτέροις καὶ τὸ

σκυλακῶδες τὸ πᾶσιν ὁμοίως προσπίπτειν οὐκέθ᾽ ὁμοίως προπετὲς εἶχεν οὕτω δὴ

ἡσυχαίτερος μὲν ἦν ἐν δὲ ταῖς συνουσίαις πάμπαν ἐπίχαρις (Cirop 144) 148 No original ἀλλὰ μὰ τὸν Δία ἔφη ἐγὼ μὲν οὐκ οἶδ᾽ ὅστις ἄνθρωπος γεγένημαι οὐδὲ γὰρ

οἷός τ᾽ εἰμὶ λέγειν ἔγωγε οὐδ᾽ ἀναβλέπειν πρὸς τὸν πάππον ἐκ τοῦ ἴσου ἔτι δύναμαι ἢν δὲ

τοσοῦτον ἐπιδιδῶ δέδοικα ἔφη μὴ παντάπασι βλάξ τις καὶ ἠλίθιος γένωμαι παιδάριον δ᾽

ὢν δεινότατος λαλεῖν ἐδόκουν εἶναι (Cirop 1412) 149 Gera (1993 p32-33) ao analisar essa passagem Cirop 14 13-14 diz que o recurso estiliacutestico oratoacuterio usado por Ciro assemelha-se ao recurso utilizado por Soacutecrates tanto nas Memoraacuteveis quanto no Econocircmico iniciar com frases hipoteacuteticas para depois a partir da analogia falar diretamente

115

A primeira destas experiecircncias acontece na primeira caccedila fora dos limites do

palaacutecio do avocirc em campo aberto Acompanhado de seu tio Ciaxares Ciro eacute levado pela

excitaccedilatildeo da caccedila e desrespeitando as ordens do tio se arrisca demasiadamente para

caccedilar um javali Ainda que tenha matado o javali seu tio jaacute naquele momento ldquo[]

certamente o repreendia vendo a grande imprudecircncia Ciro apesar de ser repreendido

pedia tudo quanto ele obtivera e a permissatildeo de levar essas coisas para dar ao avocircrdquo150

(Cirop 14 9) Obtendo a permissatildeo do tio leva o javali ao avocirc crente de que isso o

faraacute feliz poreacutem o velho responde

Filho eu recebo com prazer tudo quanto tu me daacutes mas de fato natildeo preciso de nada destas coisas para tu te arriscares151 (Cirop 14 10)

Esta admoestaccedilatildeo ressoa em outro comentaacuterio

Que coisa agradaacutevel seria se por causa de um pedaccedilo de carne eu viesse a perder o filho da minha filha152 (Cirop 14 13)

A segunda experiecircncia (Cirop 14 16-28) se daacute quando Ciro ainda entre os

medos toma parte em sua primeira batalha O priacutencipe Assiacuterio desejou para comemorar

suas bodas caccedilar na fronteira entre a Assiacuteria e a Meacutedia Levando numerosa infantaria e

cavalaria ambicionou saquear a terra dos medos causando com isso uma batalha entre

as naccedilotildees Quando Astiacuteages e Ciaxares partiram para a batalha Ciro escondido partiu

junto A participaccedilatildeo de Ciro nessa batalha seraacute fundamental pois ele planejaraacute o modo

de agir dos soldados medos revelando portanto sua natureza belicosa Poreacutem

Como um catildeo de boa raccedila mas inexperiente imprudentemente vai de encontro ao javali assim tambeacutem Ciro arremetia apenas tentando golpear quem ele alcanccedilasse natildeo se precavendo de nenhuma outra coisa Os inimigos quando viram os seus sofrendo avanccedilaram as tropas a fim de que interrompessem a perseguiccedilatildeo ao verem que eles estavam se lanccedilando adiante153 (Cirop 14 21)

150 No original [9] ἐνταῦθα μέντοι ἤδη καὶ ὁ θεῖος αὐτῷ ἐλοιδορεῖτο τὴν θρασύτητα ὁρῶν ὁ

δ᾽ αὐτοῦ λοιδορουμένου ὅμως ἐδεῖτο ὅσα αὐτὸς ἔλαβε ταῦτα ἐᾶσαι εἰσκομίσαντα δοῦναι

τῷ πάππῳ (Cirop 149) 151 No original ἀλλ᾽ ὦ παῖ δέχομαι μὲν ἔγωγε ἡδέως ὅσα σὺ δίδως οὐ μέντοι δέομαί γε

τούτων οὐδενός ὥστε σε κινδυνεύειν (Cirop 1410) 152 No original χαρίεν γάρ ἔφη εἰ ἕνεκα κρεαδίων τῇ θυγατρὶ τὸν παῖδα

ἀποβουκολήσαιμι(Cirop 1413) 153 No original ὥσπερ δὲ κύων γενναῖος ἄπειρος ἀπρονοήτως φέρεται πρὸς κάπρον οὕτω

καὶ ὁ Κῦρος ἐφέρετο μόνον ὁρῶν τὸ παίειν τὸν ἁλισκόμενον ἄλλο δ᾽ οὐδὲν προνοῶν οἱ δὲ

πολέμιοι ὡς ἑώρων πονοῦντας τοὺς σφετέρους προυκίνησαν τὸ στῖφος ὡς παυσομένους

τοῦ διωγμοῦ ἐπεὶ σφᾶς ἴδοιεν προορμήσαντας (Cirop 1421)

116

Em vista disso Astiacuteages apoacutes o fim da batalha natildeo sabia o que dizer a Ciro

ldquo[] pois de um lado reconhecia que ele era o responsaacutevel pelo feito mas de outro

percebia que ele fora arrebatado pela coragem154rdquo (Cirop 14 24) Aleacutem disso Ciro eacute

visto rodeando com seu cavalo os mortos da batalha contemplando-os Com muito

custo arrancaram-no de laacute e ao ver o semblante do avocirc Ciro escondeu-se atraacutes dos que

o conduziam (Cirop 14 24)

O silecircncio de Astiacuteages e a sua admoestaccedilatildeo apoacutes a caccedila satildeo instrutivos para Ciro

que revendo suas accedilotildees pode refletir o quanto desagradou ao avocirc pelas accedilotildees

intempestivas que colocaram sua proacutepria vida em risco Desse modo como mentor de

Ciro nestas passagens Astiacuteages provoca uma mudanccedila vital em sua personalidade sem

a qual talvez Ciro teria um fim diverso provavelmente o mesmo fim de Creso e dos

reis baacuterbaros representados por Heroacutedoto

Essas passagens portanto mostram que haacute uma evoluccedilatildeo na construccedilatildeo da

personagem e que Ciro natildeo nasce pronto como modelo de liacuteder que viraacute a ser no final da

obra A importacircncia dessa passagem na tessitura narrativa eacute que Ciro a partir disso natildeo

mais se arriscaraacute nem arriscaraacute os seus aliados gratuitamente no campo de batalha

Conter a impetuosidade do menino eacute fundamental para sua trajetoacuteria posterior e este

abrandamento de sua paixatildeo soacute eacute conseguido por meio das admoestaccedilotildees do seu avocirc-

mentor Astiacuteages

4322 Cambises mentor de Ciro (Cirop 16)

O segundo mentor de Ciro na Ciropedia eacute seu pai Cambises O diaacutelogo entre

Ciro e Cambises se daacute no fim do primeiro livro quando o pai escolta o filho ateacute a

Media para este comandar o exeacutercito persa Antes o narrador nos informa que de

volta agrave Peacutersia Ciro continuou sua educaccedilatildeo na instituiccedilatildeo estatal frequentando as

classes determinadas e cumprindo as tarefas estabelecidas

[1] Ciro entatildeo tendo voltado a Peacutersia dizem um ano ainda permaneceu na classe dos meninos A princiacutepio os meninos zombavam dele pois voltara habituado agrave vida de prazeres na Meacutedia Quando entatildeo o viram comendo e bebendo agradavelmente como eles e se alguma vez na festa havia banquete perceberam que ele

154 No original [] αἴτιον μὲν ὄντα εἰδὼς τοῦ ἔργου μαινόμενον δὲ γιγνώσκων τῇ τόλμῃ (Cirop 1424)

117

oferecia mais da sua proacutepria porccedilatildeo do que pedia mais e aleacutem dessas coisas viram que ele era superior a eles mesmos a partir de entatildeo os da sua idade voltaram a respeitaacute-lo Depois que concluiu essa educaccedilatildeo imediatamente foi para a classe dos efebos e tambeacutem nessa parecia ser superior ocupando-se das coisas que eram necessaacuterias suportar e reverenciando os mais velhos e obedecendo aos chefes155 (Cirop 15 1)

Haacute um salto temporal na narrativa O rei dos Assiacuterios tomado de ambiccedilatildeo

forma uma alianccedila com os povos vizinhos contra os medos e persas acusados de se

fortalecerem para dominar a regiatildeo Astiacuteages jaacute era falecido e Ciaxares que se tornara

rei dos medos pediu auxiacutelio a Ciro

Antes de iniciar a guerra o narrador nos apresenta duas cenas cuja leitura mostra

a amplitude do papel de seu pai como mentor Na primeira cena Ciro reuacutene seu exeacutercito

e discursa aos seus soldados discurso no qual busca criar a confianccedila de seus

subordinados pelo seguinte argumento

[] jaacute que na verdade temos consciecircncia de que noacutes desde a infacircncia tendo comeccedilado sendo atletas das obras boas e belas nos lanccedilaremos contra os inimigos os quais eu sei com clareza satildeo amadores para combater contra noacutes Pois esses ainda natildeo satildeo combatentes muito fortes se de um lado lanccedilam flechas e dardos e cavalgam com conhecimento de outro quando for necessaacuterio sofrer fadigas nisso eles seratildeo inferiores pois satildeo pessoas sem praacutetica em relaccedilatildeo aos trabalhos fatigantes Quando for necessaacuterio natildeo dormir seratildeo vencidos pelo sono pois eles satildeo inexperientes com relaccedilatildeo a isso nem os que acaso satildeo haacutebeis nisso pois esses satildeo ignorantes no como eacute necessaacuterio agir com os aliados e com os inimigos e eacute evidente que esses tiveram seus principais conhecimentos inabilmente (Cirop 15 11)

A confianccedila que Ciro projeta em seu exeacutercito adveacutem justamente da consciecircncia

de que sua educaccedilatildeo cuja finalidade era a formaccedilatildeo de soldados seria determinante

para distinguir os vencedores dos perdedores E podemos dizer o fato de os inimigos

natildeo serem educados na moderaccedilatildeo os tornaria fracos diante das fadigas da guerra agraves

quais os persas jaacute estavam acostumados educados nela a vida toda 155 No original ἀλλ᾽ ἐπείπερ σύνισμεν ἡμῖν αὐτοῖς ἀπὸ παίδων ἀρξάμενοι ἀσκηταὶ ὄντες τῶν

καλῶν κἀγαθῶν ἔργων ἴωμεν ἐπὶ τοὺς πολεμίους οὓς ἐγὼ σαφῶς ἐπίσταμαι ἰδιώτας

ὄντας ὡς πρὸς ἡμᾶς ἀγωνίζεσθαι οὐ γάρ πω οὗτοι ἱκανοί εἰσιν ἀγωνισταί οἳ ἂν τοξεύωσι

καὶ ἀκοντίζωσι καὶ ἱππεύωσιν ἐπιστημόνως ἢν δέ που πονῆσαι δέῃ τούτῳ λείπωνται ἀλλ᾽

οὗτοι ἰδιῶταί εἰσι κατὰ τοὺς πόνους οὐδέ γε οἵτινες ἀγρυπνῆσαι δέον ἡττῶνται τούτου

ἀλλὰ καὶ οὗτοι ἰδιῶται κατὰ τὸν ὕπνον οὐδέ γε οἱ ταῦτα μὲν ἱκανοί ἀπαίδευτοι δὲ ὡς χρὴ

καὶ συμμάχοις καὶ πολεμίοις χρῆσθαι ἀλλὰ καὶ οὗτοι δῆλον ὡς τῶν μεγίστων

παιδευμάτων ἀπείρως ἔχουσιν (Cirop 1511)

118

Em seguida Ciro parte para junto do pai momento em que se daacute o referido

diaacutelogo entre filho e pai no qual Cambises instrui corrige e guia Ciro Segundo Gera

(1993 p50) os meacutetodos utilizados por Cambises satildeo similares aos de Soacutecrates nas

Memoraacuteveis poreacutem a autora filia essa longa conversa com o gecircnero de instruccedilatildeo moral

dos ὐποθέκαι (ypothekai) escritos que inicialmente em verso apresentam um locutor

que exorta e aconselha Segundo a autora haacute nesse gecircnero a tradiccedilatildeo de que um homem

mais velho dirija-se a um mais novo como por exemplo Hesiacuteodo dirigindo-se ao seu

irmatildeo Perses nrsquoOs Trabalhos e os Dias Inicialmente apenas com um locutor o gecircnero

foi inovado ao que parece por Hiacutepias que adaptando-o agrave prosa deu voz agrave segunda

figura desse impliacutecito diaacutelogo o jovem As informaccedilotildees a respeito desse gecircnero satildeo

escassas o certo eacute que nesta cena da Ciropedia o narrador se apaga quase totalmente

mimetizando os locutores do diaacutelogo Ciro e Cambises Em sua participaccedilatildeo o narrador

enquadra o diaacutelogo que seguiraacute e ordena as falas com construccedilotildees do tipo ldquoCiro disserdquo

ldquoCambises disserdquo organizando as locuccedilotildees da personagem e dramatizando a cena

Os temas do diaacutelogo giram em torno das qualidades referidas anteriormente a

temperanccedila a obediecircncia a piedade entre outras uma vez que Cambises retoma

avaliando por meio de perguntas todos os ensinamentos do filho Seria dispendioso

analisar todo o diaacutelogo entre pai e filho porque Ciro se mostra conhecedor de muitos

dos conceitos discutidos O importante na participaccedilatildeo dos mentores natildeo eacute averiguar

aquilo que a personagem sabe mas justamente demonstrar que suas avaliaccedilotildees satildeo

equivocadas Portanto analisaremos apenas as passagens em que Cambises corrige

Ciro

Em Cirop 168 a primeira correccedilatildeo de Cambises justamente retoma o

discurso que Ciro proferira em Cirop 157-14 Quando Ciro reafirma a superioridade

dos persas sobre os inimigos seu discurso se fixa novamente sobre o tema da

moderaccedilatildeo na visatildeo do priacutencipe persa enquanto os inimigos acreditavam que o

governante deve se distinguir dos governados na indolecircncia e no oacutecio os persas

acreditavam que a distinccedilatildeo devia surgir pela providecircncia e amor ao trabalho Sua

comparaccedilatildeo natildeo poupa os proacuteprios medos cuja cultura considerada luxuosa fora

criticada por Ciro no primeiro banquete diante do avocirc Cambises lembra a Ciro poreacutem

que nem sempre a luta dos homens eacute contra outros homens mas sim ldquo[] contra coisas

em si mesmas [πρὸς αὐτὰ τὰ πράγματα] das quais natildeo eacute faacutecil ser superior com

119

desembaraccedilo156rdquo (Cirop 16 9) e que o bom general deve prover todas as coisas

necessaacuterias aos seus soldados Ciro afirma que Ciaxares traraacute provisotildees necessaacuterias para

o exeacutercito poreacutem quando seu pai lhe pergunta se ele sabe o real tamanho das riquezas

de Ciaxares e Ciro nega seu pai lhe pergunta ldquoApesar de tudo confias em coisas

desconhecidasrdquo157 (Cirop 16 9)

Com esse mote Cambises estabeleceraacute que para um bom general eacute necessaacuterio

prever tambeacutem as necessidades futuras e que confiando no incerto o homem pego

desprevenido pelo acaso natildeo teraacute como agir Seguir-se-aacute entatildeo o diaacutelogo com Cambises

e Ciro retomando os pontos essenciais que um general natildeo deve negligenciar as

provisotildees a sauacutede e o fiacutesico dos soldados as estrateacutegias militares a preparaccedilatildeo dos

soldados como incutir ardor na tropa e como conquistar a obediecircncia dos soldados

Para cada um destes pontos as estrateacutegias discursivas satildeo quase sempre as

mesmas Pode-se descrever uma determinada estrutura de argumentaccedilatildeo primeiro

Cambises pergunta a respeito de um desses pontos entatildeo Ciro daacute uma resposta que

Cambises imediatamente revisa marcando os limites do ponto de vista de Ciro Ciro

entatildeo se convence pede ajuda e Cambises daacute conselhos praacuteticos para conseguir realizar

o objetivo Ou seja Cambises como pai mas tambeacutem como mentor evita que Ciro vaacute agrave

batalha com conceitos preestabelecidos e errocircneos O diaacutelogo faz Ciro evoluir passo a

passo agrave medida que aprende a tornar-se um bom general Para exemplificar essa postura

tomaremos o tema da obediecircncia

Apoacutes Cambises admoestaacute-lo a nunca confiar no incerto pois o verdadeiro

comandante planeja tudo antes de seus soldados Ciro revela que o melhor meio de

conseguir a obediecircncia dos homens ldquo[] eacute louvar e honrar o obediente e ao

desobediente desprezar e punir158rdquo (Cirop 16 20) Cambises entatildeo lhe responde

Esse filho eacute o caminho para a obediecircncia forccedilada para uma muito melhor do que essa a obediecircncia voluntaacuteria haacute um caminho muito mais curto Pois os homens obedecem com grande prazer aqueles que consideram mais sensatos nos seus interesses do que eles mesmos159 (Cirop 16 21)

156 No original [hellip] ἀλλὰ πρὸς αὐτὰ τὰ πράγματα ὧν οὐ ῥᾴδιον εὐπόρως περιγενέσθαι (Cirop 169) 157 No original ὅμως δὲ τούτοις πιστεύεις τοῖς ἀδήλοις (Cirop 169) 158 No original [hellip] τὸ τὸν πειθόμενον ἐπαινεῖν τε καὶ τιμᾶν τὸν δὲ ἀπειθοῦντα ἀτιμάζειν τε

καὶ κολάζειν (Cirop 1620) 159 No original [21] καὶ ἐπὶ μέν γε τὸ ἀνάγκῃ ἕπεσθαι αὕτη ὦ παῖ ἡ ὁδός ἐστιν ἐπὶ δὲ τὸ

κρεῖττον τούτου πολύ τὸ ἑκόντας πείθεσθαι ἄλλη ἐστὶ συντομωτέρα ὃν γὰρ ἂν

120

Esse ensinamento marcaraacute toda a conduta militar de Ciro na narrativa e a

clemecircncia dele para com os inimigos se basearaacute neste toacutepico busca de aliados

obedientes pois a puniccedilatildeo garante uma obediecircncia aparente poreacutem no punido sempre

irrompem iacutempetos de vinganccedila Em Heroacutedoto no livro 1 Haacuterpago que natildeo cumpriu a

ordem de Astiacuteages de matar Ciro eacute punido pelo rei medo banqueteando-se com as

carnes do proacuteprio filho Haacuterpago que continuou a viver na corte submisso ao rei quando

observou que Ciro crescera aliou-se a ele para depor Astiacuteages do trono Ciro na

Ciropedia entretanto perdoaraacute seus inimigos e com isso conquistaraacute valiosos aliados

como Tigranes Araspas Goacutebrias Gaacutedatas e Abradatas

Apoacutes estabelecer qual o melhor meio de conseguir obediecircncia Cambises passa a

expressar a verdade de seu ensinamento por meio de siacutemiles o doente obedece com

ardor ao meacutedico o navegante ao piloto aquele que natildeo sabe o caminho confia em quem

sabe Ciro entatildeo pede que o pai lhe ensine a ter a reputaccedilatildeo de saacutebio nas coisas

necessaacuterias para que os homens obedeccedilam a ele jaacute que os homens obedecem melhor

agravequele em quem confiam Cambises lhe responde

Natildeo haacute filho caminho mais curto a respeito das coisas em que desejas parecer ser sensato do que tornar-se de fato sensato a respeito desses assuntos Observando a fundo cada uma das coisas reconheceraacutes que eu digo a verdade Se quiseres natildeo sendo bom agricultor parecer ser bom ou cavaleiro ou meacutedico ou flautista ou qualquer outra coisa imagine quatildeo numerosas coisas a ti seria necessaacuterio maquinar por causa da aparecircncia E se tu persuadires a muitos a te louvares para que obtenhas fama e adquiras bons equipamentos de cada um destes ofiacutecios em um instante seria o embusteiro mas pouco depois quando precisasse oferecer uma prova tu te verias desmascarado e ainda um charlatatildeo160 (Cirop 1622)

Desse modo o que seria de Ciro nas campanhas que se seguiratildeo na narrativa

sem esses conselhos paternos Natildeo seria por certo modelo de virtude de lideranccedila tanto

aos leitores quanto aos proacuteprios personagens que se submetem agraves suas ordens de boa

ἡγήσωνται περὶ τοῦ συμφέροντος ἑαυτοῖς φρονιμώτερον ἑαυτῶν εἶναι τούτῳ οἱ ἄνθρωποι

ὑπερηδέως πείθονται (Cirop 1621) 160 No original Οὐκ ἔστιν ἔφη ὦ παῖ συντομωτέρα ὁδὸς ltἐπὶ τόgt περὶ ὧν βούλει δοκεῖν

φρόνιμος εἶναι ἢ τὸ γενέσθαι περὶ τούτων φρόνιμον καθ ἓν δ ἕκαστον σκοπῶν γνώσῃ ὅτι

ἐγὼ ἀληθῆ λέγω ἢν γὰρ βούλῃ μὴ ὢν ἀγαθὸς γεωργὸς δοκεῖν εἶναι ἀγαθός ἢ ἱππεὺς ἢ

ἰατρὸς ἢ αὐλητὴς ἢ ἄλλ ὁτιοῦν ἐννόει πόσα σε δέοι ἂν μηχανᾶσθαι τοῦ δοκεῖν ἕνεκα καὶ

εἰ δὴ πείσαις ἐπαινεῖν τέ σε πολλούς ὅπως δόξαν λάβοις καὶ κατασκευὰς καλὰς ἐφ

ἑκάστῳ αὐτῶν κτήσαιο ἄρτι τε ἐξηπατηκὼς εἴης ἂν καὶ ὀλίγῳ ὕστερον ὅπου πεῖραν δοίης

ἐξεληλεγμένος ἂν προσέτι καὶ ἀλαζὼν φαίνοιο

121

vontade Sem Cambises como bem observou Tatum (1989 p78) Ciro cometeria os

mesmos erros dos outros deacutespotas Assim o papel de Cambises como mentor eacute

essencial na formaccedilatildeo de Ciro e no seu sucesso como governante Para Tatum (1989)

esta cena ainda fala de como

Harmonia entre pai e filho eacute fundamental para o projeto de um padratildeo eacutetico que participa de toda accedilatildeo de Ciro na Ciropedia O encontro amplamente demonstra porque Cambises merece tal obediecircncia161 (1989 p87 traduccedilatildeo nossa)

Cambises para tornar seu discurso criacutevel utiliza-se de recursos oratoacuterios

precisos O mais significativo eacute a utilizaccedilatildeo de siacutemiles nos quais compara a arte de

governar a alguma outra profissatildeo em especial agrave de agricultor agrave de meacutedico agrave de piloto

agrave do atleta etc Poreacutem uma interessante analogia de Cambises refere-se agrave muacutesica Em

Cirop 1638 ele diz

[38] Eacute necessaacuterio por isso que tu sejas um amante do aprender todas as coisas natildeo para te servires soacute das coisas que aprendestes mas tambeacutem para seres tu um inventor de artifiacutecios contra os inimigos Como os muacutesicos que natildeo se servem apenas das coisas que aprenderam mas tambeacutem procuram criar outras novas E de um lado nas artes musicais as peccedilas novas e exuberantes satildeo muito honradas de outro as novas maquinaccedilotildees satildeo muito mais honradas na guerra pois com essas pode-se melhor enganar os inimigos162 (Cirop 1638)

Ampliando o sentido de muacutesica agrave poeacutetica de um modo geral ao artista eacute

necessaacuterio tanto o conhecimento das obras que lhe precederam quanto agrave inovaccedilatildeo de

sua proacutepria escrita Interpretando esse comentaacuterio como uma passagem metaliteraacuteria

parece-nos que Xenofonte conscientemente imagina sua obra como nova nova no

sentido de conhecer o que foi produzido anteriormente e inovadora a partir do jogo de

influecircncias Como viemos tentando demonstrar nesse estudo acreditamos na novidade

estrutural instituiacuteda pela obra de Xenofonte e este comentaacuterio de Cambises parece

confirmar a consciecircncia de Xenofonte sobre o papel do artista

161 No Original Harmony between father and son is basic to the design of the ethical pattern that informs every action of Cyrus in the Cyropaedia The encounter amply demonstrates why Cambyses merits such obedience (TATUM 1989 p87) 162 No original [38] δεῖ δή ἔφη φιλομαθῆ σε τούτων ἁπάντων ὄντα οὐχ οἷς ἂν μάθῃς τούτοις

μόνοις χρῆσθαι ἀλλὰ καὶ αὐτὸν ποιητὴν εἶναι τῶν πρὸς τοὺς πολεμίους μηχανημάτων

ὥσπερ καὶ οἱ μουσικοὶ οὐχ οἷς ἂν μάθωσι τούτοις μόνον χρῶνται ἀλλὰ καὶ ἄλλα νέα

πειρῶνται ποιεῖν καὶ σφόδρα μὲν καὶ ἐν τοῖς μουσικοῖς τὰ νέα καὶ ἀνθηρὰ εὐδοκιμεῖ πολὺ

δὲ καὶ ἐν τοῖς πολεμικοῖς μᾶλλον τὰ καινὰ μηχανήματα εὐδοκιμεῖ ταῦτα γὰρ μᾶλλον καὶ

ἐξαπατᾶν δύναται τοὺς ὑπεναντίους (Cirop 1638)

122

Cambises eacute o que Detienne ([sd]) chama de ldquomestre da verdaderdquo Natildeo eacute o

adivinho o poeta e o rei da justiccedila do mundo arcaico que possuiacuteam o dom de espalhar a

verdade pois eram agraciados pelas Musas Eacute o ldquomestre da verdaderdquo de conhecimentos

praacuteticos que promove a educaccedilatildeo ao transportar o educando para o caminho da

perfeiccedilatildeo Ciro no final da narrativa torna-se tambeacutem um mestre da verdade pois

podendo olhar seu passado de sucessos torna-se possuidor de um conhecimento que

deve passar aos seus filhos no leito de morte (Cirop VIII7) justamente como seu pai

fizera na sua juventude (Cirop I6)

Cambises apareceraacute novamente no final da obra (Cirop VIII5) quando Ciro

apoacutes a captura da Babilocircnia e do fim da guerra com os Assiacuterios retorna agrave Peacutersia levando

presentes para seu pai e sua matildee Cambises preparando a Ciro uma festa de boas vindas

estritamente formal convoca uma assembleia para qual discursa o quanto essa

assembleia deve a Ciro de quantas riquezas graccedilas a ele agora podem desfrutar e

quanto ele ldquotornou-vos oacute Persas gloriosos a todos os homens e honrados em toda a

Aacutesiardquo163 (Cirop LVIII523 traduccedilatildeo nossa) No entanto mesmo apoacutes grandes

demonstraccedilotildees de admiraccedilatildeo Cambises natildeo deixa de aconselhar tanto a assembleia

quanto o proacuteprio filho

Se tu Ciro excitado pelas daacutedivas presentes por cobiccedila tentares governar os persas do mesmo modo que os outros povos ou voacutes cidadatildeos invejando seu poder tentares derrubaacute-lo do poder sabei bem que sereis obstaacuteculos uns aos outros a muitos bens [25] Portanto para que isso natildeo aconteccedila e sim boas coisas eu julgo bom que voacutes sacrifiqueis em comum e com os deuses tomados como testemunhas faccedilam um trato de que tu Ciro se algueacutem fazer expediccedilatildeo contra o territoacuterio persa ou tentar destruir as leis dos persas viraacutes em socorro com toda a forccedila e voacutes oacute Persas se algueacutem ou empreender derrubar Ciro do poder ou se algum dos que estatildeo em seu poder se rebelar vireis em socorro de voacutes mesmos e de Ciro conforme aquilo que ele solicitar [26] Enquanto eu viver a soberania na Peacutersia seraacute minha quando eu morrer eacute evidente que seraacute de Ciro enquanto ele viver (CiropVIII524-26)164

163 No original εὐκλεεῖς μὲν ὑμᾶς ὧ Πέρσαι ἐν πᾶσιν ἀνθρώποις ἐποίησεν ἐντίμους δrsquo ἐν τῇ

Ἀσίᾳ πάσῃ (Cirop LVIII523) 164 Traduccedilatildeo nossa No original εἰ δὲ ἢ σύ ὦ Κῦρε ἐπαρθεὶς ταῖς παρούσαις τύχαις

ἐπιχειρήσεις καὶ Περσῶν ἄρχειν ἐπὶ πλεονεξίᾳ ὥσπερ τῶν ἄλλων ἢ ὑμεῖς ὦ πολῖται

φθονήσαντες τούτῳ τῆς δυνάμεως καταλύειν πειράσεσθε τοῦτον τῆς ἀρχῆς εὖ ἴστε ὅτι

ἐμποδὼν ἀλλήλοις πολλῶν καὶ ἀγαθῶν ἔσεσθε [25] ὡς οὖν μὴ ταῦτα γίγνηται ἀλλὰ

τἀγαθά ἐμοὶ δοκεῖ ἔφη θύσαντας ὑμᾶς κοινῇ καὶ θεοὺς πιμαρτυραμένους συνθέσθαι σὲ

μέν ὦ Κῦρε ἤν τις ἐπιστρατεύηται χώρᾳ Περσίδι ἢ Περσῶν νόμους διασπᾶν πειρᾶται

βοηθήσειν παντὶ σθένει ὑμᾶς δέ ὦ Πέρσαι ἤν τις ἢ ἀρχῆς Κῦρον ἐπιχειρῇ καταπαύειν ἢ

ἀφίστασθαί τις τῶν ὑποχειρίων βοηθήσειν καὶ ὑμῖν αὐτοῖς καὶ Κύρῳ καθ ὅ τι ἂν οὗτος

123

A questatildeo que se oferece nessa passagem eacute complexa e exige algum comentaacuterio

Primeiramente fica evidenciado que haacute dois poderes estabelecidos o de Cambises na

Peacutersia e o de Ciro no resto do Impeacuterio Contudo o poder de Ciro estaacute submetido ao de

Cambises ao qual Ciro como filho deve ainda obedecer Para Tatum (1989 p77-78)

Cambises em seu discurso estaacute determinado a estabelecer que ele natildeo Ciro eacute o rei dos

persas e Ciro por maior que seja o seu nome eacute ainda seu filho Aleacutem disso ldquoCiro eacute

ainda o filho de seu pai ainda capaz de ser ensinado por elerdquo165 (TATUM 1989 p80

traduccedilatildeo nossa) A educaccedilatildeo de Ciro e sua identidade como pessoa dependem desse

laccedilo cuja cena mostra que eacute extremamente forte (TATUM 1989 p80) Ademais esse

retorno de Cambises revela a eacutetica paternalista que sublinha a obra e o proacuteprio conceito

de educaccedilatildeo por ela expressa Dessa forma Cambises que aparecera antes da guerra

contra os assiacuterios ao retornar apoacutes essa guerra enquadra a narrativa militar de Ciro que

compreende os livros II a VIII Essa estrutura eacute chamada por Tatum (1989) de ring

composition a narrativa termina onde ela comeccedila

Evidencia-se portanto o papel do pai Cambises como mentor de Ciro Ele

com seus ensinamentos impede que Ciro seja acometido pela hybris e torne-se

desmedido e desvairado com seu poder Due (1989) diz que os ensinamentos paternos

no livro I seratildeo retomados durante todo o resto da obra sendo figurativizados e que

esse diaacutelogo eacute uma espeacutecie de siacutentese de todo o romance os problemas ali colocados

seratildeo os problemas resolvidos por Ciro Tatum (1989 p68) acrescenta que natildeo soacute Ciro

eacute o monarca ideal como tambeacutem as personagens que o rodeiam satildeo suacuteditos ideais

porque colocam problemas a ele que soacute um monarca ideal poderia resolver

A questatildeo da plena educaccedilatildeo que a relaccedilatildeo de Ciro com outros personagens

garante tanto a Ciro quanto ao leitor eacute interessante poreacutem afasta-se do objetivo desse

capiacutetulo No entanto como Tatum (1989 p68) observa eacute necessaacuterio lembrar que o

estatuto das personagens secundaacuterias na Ciropedia eacute duplo de um lado satildeo

personagens proacuteprias bem caracterizadas produtos da imaginaccedilatildeo de Xenofonte e de

outro estruturas que formam a educaccedilatildeo ideal de Ciro

ἐπαγγέλλῃ καὶ ἕως μὲν ἂν ἐγὼ ζῶ ἐμὴ γίγνεται ἡ ἐν Πέρσαις βασιλεία ὅταν δ ἐγὼ

τελευτήσω δῆλον ὅτι Κύρου ἐὰν ζῇ 165 No original Cyrus is still his fatherrsquos child still capable of being taught by him (TATUM 1989 p80)

124

Analisamos os elementos estruturais que compotildeem a archaica do romance de

formaccedilatildeo ou seja aqueles elementos constitutivos e determinantes na caracterizaccedilatildeo do

gecircnero Percebemos a partir da anaacutelise que a combinaccedilatildeo destes elementos efetua a

evoluccedilatildeo da personagem principal da narrativa O Ciro do iniacutecio da narrativa eacute diverso

do Ciro do fim da narrativa e essa diferenccedila se deve agrave formaccedilatildeo de Ciro que por meio

da instituiccedilatildeo e da participaccedilatildeo de mentores torna-se no fim da obra aleacutem do liacuteder

ideal um mestre da verdade capaz de ensinar pela autoridade da sua vida Portanto a

personagem natildeo eacute estaacutetica mas evolutiva

Segundo Due (1989 p162) descriccedilotildees de crianccedilas na Literatura Grega natildeo satildeo

muito frequentes e isso justifica os esforccedilos de Xenofonte em descrever o

desenvolvimento de Ciro de forma realista Assim observa-se que a personalidade de

Ciro sofre uma determinada evoluccedilatildeo que sinalizaraacute o aperfeiccediloamento de suas

qualidades tanto as inatas quanto as desenvolvidas nas instituiccedilotildees educacionais Sem

este aperfeiccediloamento o destino do heroacutei correria por cursos outros que satildeo

exemplificados pelo destino traacutegico de outras personagens Concluiacutemos portanto que

do ponto de vista da construccedilatildeo da personagem ela natildeo eacute estaacutetica como as personagens

dos outros tipos de romance inclusive o biograacutefico poreacutem se enquadra na definiccedilatildeo de

Bakhtin (2010 p235) para o romance de formaccedilatildeo

Figura 3 Ciro comandando o exeacutercito persa Fonte httposaquemenidasblogspotcom200912ciro-ii-o-grande-559-530-ac-parte-iiihtml

125

44 O grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico

Outra caracteriacutestica segundo Bakhtin (2010 p223) que diferencia o romance

de formaccedilatildeo dos outros tipos de romance eacute o tipo de relaccedilatildeo da ficccedilatildeo com o tempo

histoacuterico real pois eacute esta caracteriacutestica que garante a modificaccedilatildeo da imagem do homem

nos diversos tipos de romances Segundo o teoacuterico russo na maior parte dos romances a

imagem do heroacutei eacute preestabelecida e imutaacutevel

Na maioria das variantes do gecircnero romanesco o enredo a composiccedilatildeo e toda a estrutura do romance postulam a imutabilidade a firmeza da imagem do heroacutei a unidade estaacutetica que ele representa (BAKHTIN2010 p236)

No entanto na modalidade romance de formaccedilatildeo o heroacutei eacute dinacircmico e variaacutevel

e as mudanccedilas pelas quais ele passa adquirem um novo estatuto na estrutura do enredo

do romance ldquo[] que seraacute por conseguinte repensado e reestruturado O tempo se

introduz no interior do homem impregna-lhe toda a imagem modificando a

importacircncia substancial de seu destino e de sua vidardquo (BAKHTIN 2010 p237)

O grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico entretanto varia e esta variaccedilatildeo

delimita o enfoque de formaccedilatildeo do homem com isso Bakhtin organiza o romance de

formaccedilatildeo em cinco tipos

a-) no primeiro tipo o romance ciacuteclico de tipo puro ldquo[] o tempo se presta a

uma representaccedilatildeo do desenrolar da vida humana []rdquo (BAKHTIN 2010 p238) e as

modificaccedilotildees internas do homem correspondem ao proacuteprio envelhecimento natural

b-) o segundo tipo de temporalidade ciacuteclica consiste na representaccedilatildeo de um

desenvolvimento tiacutepico no qual o mundo e a vida satildeo assimilados a uma experiecircncia

pela qual ldquo[] todo os homens devem passar para retirar delas o mesmo resultado[]rdquo

(BAKHTIN 2010 p238)

c-) o terceiro tipo eacute representado pelo tempo biograacutefico no qual estaacute ausente o

elemento ciacuteclico Desse modo o heroacutei atravessa fases individuais e sua transformaccedilatildeo

ldquo[] eacute o resultado de um conjunto de circunstacircncias de acontecimentos de atividades

de empreendimentos que modificam a vida []rdquo (BAKHTIN 2010 p239)

d-) a Ciropedia de Xenofonte corresponde ao quarto tipo de romance de

formaccedilatildeo ldquo[] o romance didaacutetico-pedagoacutegico que se fundamenta numa ideia

126

pedagoacutegica determinada concebida com maior ou menor amplitude []rdquo (BAKHTIN

2010 p239)

e-) no quinto tipo ldquo[] a evoluccedilatildeo do homem eacute indissoluacutevel da evoluccedilatildeo

histoacuterica []rdquo (BAKHTIN 2010 p239) por isso evolui ao mesmo tempo que o mundo

Note-se que ao tratar do quarto tipo de romance de formaccedilatildeo Bakhtin natildeo

analisa o tempo em si e sua assimilaccedilatildeo por esses romances-pedagoacutegicos Poreacutem na

sequecircncia do seu artigo Bakhtin enquadra estes quatro primeiros tipos como romances

cujo tempo histoacuterico eacute fechado Segundo Bakhtin (2010 p239)

O que este mundo concreto e estaacutevel [dos romances dos quatro primeiros tipos] esperava do homem em sua atualidade era que este se adaptasse conhecesse as leis da vida e se submetesse a elas Era o homem que se formava e natildeo o mundo o mundo pelo contraacuterio servia de ponto de referecircncia para o homem em desenvolvimento [] A proacutepria noccedilatildeo de mundo servindo de experiecircncia de escola era muito produtiva no romance de educaccedilatildeo

Jaacute o romance de formaccedilatildeo do quinto tipo o tipo realista o heroacutei se situa entre

duas eacutepocas e com o tempo histoacuterico em evoluccedilatildeo as leis da vida natildeo satildeo determinadas

e estaacuteticas mas vatildeo se formando paralelamente agrave formaccedilatildeo do indiviacuteduo Poreacutem ldquoEacute

evidente que o romance de formaccedilatildeo de quinto tipo natildeo pode ser compreendido

independentemente dos quatro outros tipos de romance de formaccedilatildeo []rdquo (BAKHTIN

2010 p241)

O tempo narrativo do romance de formaccedilatildeo realista portanto eacute um momento de

transiccedilatildeo do tempo histoacuterico situado entre duas eacutepocas a que passou e a que vai

nascendo com seus valores e ideais Para Koselleck (2006 p14) o conceito de tempo

histoacuterico nasce com a modernidade principalmente apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa jaacute que

as diversas revoluccedilotildees que a Revoluccedilatildeo Francesa desencadeou irromperam uma nova

percepccedilatildeo temporal Neste novo tempo raacutepido e incerto o tempo histoacuterico seria uma

dimensatildeo dinacircmica em que passado presente e futuro natildeo se separariam mas se

fundiriam ou nas palavras de Koselleck (2006 p15) ldquoA maneira pela qual em um

determinado tempo presente a dimensatildeo temporal do passado entra em relaccedilatildeo de

reciprocidade com a dimensatildeo temporal do futurordquo

Esta visatildeo de Koselleck natildeo estaacute dissociada da visatildeo de Bakhtin Ao analisar o

romance de Goethe Bakhtin chama a atenccedilatildeo para o fato de que para Goethe o

contemporacircneo ldquo[] tanto na natureza como na vida humana se manifesta como uma

diacronia essencial ou como remanescentes ou reliacutequias de diversos graus de evoluccedilatildeo

127

e das formaccedilotildees do passado ou entatildeo como germes de um futuro []rdquo (BAKHTIN

2010 p247) O tempo histoacuterico aberto portanto soacute eacute possiacutevel na Era Moderna em

virtude da capacidade de ver o tempo no espaccedilo pois eacute no espaccedilo que o homem deixa as

marcas de sua atividade criadora (BAKHTIN 2010 p243) Por isso para Bakhtin essa

relaccedilatildeo de cronotopo eacute uma das caracteriacutesticas fundamentais do romance moderno dito

realista pois justamente por este caraacuteter aberto do tempo histoacuterico eacute que o indiviacuteduo se

opotildee contra a ordem estabelecida pela sociedade ndash o heroacutei do romance duvida do mundo

(PAZ 1972 p226)

Devemos pois ao analisar o tempo histoacuterico na Ciropedia lembrar que natildeo

estamos nos referindo a este tempo histoacuterico moderno mas a um tempo histoacuterico mais

amplo e social em que qualquer indiviacuteduo sempre se situa caracteriacutestico dos outros

quatro tipos de romance de formaccedilatildeo

A respeito da Ciropedia de Xenofonte tomando os comentaacuterios de Bakhtin

como guia podemos constatar que primeiramente as outras modalidades de tempo se

entrecruzam na Ciropedia em segundo lugar a representaccedilatildeo do passado ndash como

mateacuteria da narraccedilatildeo ndash em discurso propicia a perfeita harmonizaccedilatildeo entre o homem e o

mundo pois este eacute um mundo jaacute fechado e estaacutetico e natildeo em formaccedilatildeo

Parece-nos ao menos que duas modalidades de tempo descritas por Bakhtin satildeo

possiacuteveis de serem encontradas na Ciropedia A obra eacute a narraccedilatildeo da biografia de Ciro

que se tornaraacute o fundador desse grande impeacuterio desde o seu nascimento ateacute a sua morte

Momigliano (1993 p54-55 traduccedilatildeo nossa) afirma que

A maior contribuiccedilatildeo de Xenofonte para a biografia [eacute] a Ciropedia A Ciropedia eacute de fato a mais acabada biografia que noacutes temos na literatura grega claacutessica Eacute a apresentaccedilatildeo da vida de um homem do comeccedilo ao fim e elogia o lugar da sua educaccedilatildeo e do caraacuteter moral166

Ora narrando uma determinada vida uma vida especiacutefica desde seu nascimento

ateacute a sua morte Xenofonte faz com que sua personagem atravesse fases individuais e

especiacuteficas e sua transformaccedilatildeo ldquo[] eacute o resultado de um conjunto de circunstacircncias de

acontecimentos de atividades de empreendimentos que modificam a vida []rdquo

(BAKHTIN 2010 p239) Vemos os acontecimentos de Ciro como acontecimentos

uacutenicos que por serem uacutenicos faratildeo a diferenccedila na formaccedilatildeo final da personagem Como

166 No original Xenophonrsquos greatest contribuition to biography the Cyropaedia The Cyropaedia is indeed the most accomplished biography we have in classical Greek literature It is a presentation of the life of a man from beginning to end and gives pride of place to his education and moral character (MOMIGLIANO 1993 p54-55)

128

ressaltamos no iniacutecio a participaccedilatildeo de mentores ndash o avocirc e o pai ndash completaratildeo a

educaccedilatildeo inicial de Ciro no entanto essa participaccedilatildeo de mentores natildeo eacute um

acontecimento comum a todos mas uacutenico dependente de seu estatuto real filho e neto

de reis

Portanto podemos dizer que a obra Ciropedia ao unir um determinado conceito

pedagoacutegico agrave forma biograacutefica compotildee-se de um tempo biograacutefico no qual as fases

individuais satildeo essenciais na formaccedilatildeo

No entanto natildeo podemos deixar de notar que a formaccedilatildeo a que Ciro eacute submetido

ndash as transformaccedilotildees pelas quais ele passa ndash segue um modelo ciacuteclico de tempo

caracteriacutestico do segundo grupo apresentado por Bakhtin pois compreende as fases

naturais do homem representando um desenvolvimento tiacutepico e idiacutelico A passagem do

menino desobediente e imprudente que confia demais em si a adulto comedido e

responsaacutevel para no fim tornar-se um velho saacutebio um ldquomestre da verdaderdquo parece-nos

condizer com um tipo de temporalidade ciacuteclica cuja natureza ideal da passagem do

tempo no interior do homem forma tambeacutem um homem ideal

As experiecircncias individuais ndash ao menos as bem sucedidas ndash devem conduzir

necessariamente a um tipo de formaccedilatildeo universal posto que natural ao homem em si

mesmo cujo significado expressivo encontra-se em uma visatildeo de mundo moralista e

paternalista na qual a obediecircncia e a auto-censura das paixotildees sophrosyne ton pathon

adquirem importacircncia na realizaccedilatildeo ldquotriunfalistardquo e harmocircnica do homem com o mundo

Unindo agrave modalidade biograacutefica a modalidade ciacuteclica Xenofonte a partir de uma

experiecircncia de vida particular espera conseguir a educaccedilatildeo de seus leitores convicto do

modelo ideal de educaccedilatildeo que ele cria pois este se conduz na trilha da evoluccedilatildeo natural

do homem ao menos na hipoacutetese de uma evoluccedilatildeo ideal A experiecircncia individual

torna-se entatildeo experiecircncia universal possiacutevel

Ao mesmo tempo a harmonia entre homem e sociedade e a visatildeo triunfalista de

um modelo determinado soacute satildeo possiacuteveis em um mundo fechado jaacute formulado Ainda

que por se tratar de uma narrativa de temaacutetica histoacuterica o mundo ali retratado esteja em

um ponto determinado de tensatildeo ao qual sucederaacute a formaccedilatildeo do impeacuterio persa

portanto politicamente em formaccedilatildeo os ideais desse mundo se mantecircm ainda os

mesmos A educaccedilatildeo de Ciro eacute o aprendizado de leis especiacuteficas que aqueles homens jaacute

vividos formularam e seu sucesso na carreira tanto militar quanto governamental se

deve agrave maacutexima compreensatildeo dessas leis e natildeo agrave formulaccedilatildeo de novas leis ou agrave criaccedilatildeo

129

de um homem novo se assim podemos dizer O Ciro adulto estaacute adaptado em um

mundo que lhe serviu de referecircncia em sua formaccedilatildeo

Pode-se objetar que alguns dos ensinamentos satildeo peculiares ao Xenofonte-autor

e que eles satildeo dirigidos a um puacuteblico-leitor grego o que portanto lhes daria um

estatuto de novas formulaccedilotildees sobre o mundo No entanto ainda que essas verdades

sejam apreendidas e formuladas por Xenofonte e de algum modo inovadoras dentro

das ideias gregas e respondendo a questotildees do seu proacuteprio tempo dirigidas a um

puacuteblico contemporacircneo esta relaccedilatildeo estaacute em um niacutevel extradiegeacutetico e natildeo afeta a

questatildeo do tempo histoacuterico na mateacuteria narrativa O importante eacute que dentro da narrativa

em niacutevel intradiegeacutetico satildeo os mentores ou a instituiccedilatildeo educacional que passam a Ciro

os conhecimentos sobre o mundo em que Ciro se ampara adaptando-se a um

conhecimento jaacute formulado Eacute neste sentido que falamos de mundo fechado pois natildeo

podemos esquecer que Xenofonte ao criar a Ciropedia tinha em vista mais a sua

proacutepria eacutepoca do que a necessidade de contar ou recontar uma histoacuteria fiel aos fatos

Inclusive para Bakhtin (2002 p418) a essecircncia romanesca da Ciropedia manifesta-se

nessa modificaccedilatildeo do passado motivada por um interesse presente

A reflexatildeo a partir do grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico real parece nos

levar a uma profunda concepccedilatildeo da realidade enfocada no material narrativo e talvez

seja a base ideal para o estudo da mimese do gecircnero romanesco em suas formas

primevas A maneira peculiar de Xenofonte conduzir a narrativa biograacutefica deve-se em

muitos pontos ao manejo dessa categoria narrativa com andamentos pausas e elipses

que retardam ou avanccedilam a narrativa de um modo realista no sentido de uma mimese

verossiacutemil e criacutevel do tempo Com isso diferencia-se sua narrativa sensivelmente da

narrativa historiograacutefica cujo enfoque natildeo era a vida de um homem mas a vida de um

povo determinado e que enformava em especial Heroacutedoto uma espeacutecie de tempo

ciacuteclico

O romancista Tolstoi retomando a distinccedilatildeo aristoteacutelica entre poesia e histoacuteria

diz no prefaacutecio de Guerra e Paz

O historiador e o artista ao relatarem uma eacutepoca tecircm finalidades completamente diferentes [] A diferenccedila torna-se mais sensiacutevel e essencial quando se trata de descrever acontecimentos O historiador considera os resultados de um acontecimento o artista o proacuteprio acontecimento (1960 vol I pXI)

130

Na Ciropedia a ficccedilatildeo adentra o mundo histoacuterico enfocando acontecimentos da

vida privada em meio ao tumulto da guerra puacuteblica Aleacutem disso as batalhas em si

mesmas se satildeo importantes no todo da narrativa natildeo apresentam um enfoque especial

na narraccedilatildeo ao contraacuterio eacute justamente a preparaccedilatildeo para as batalhas os sentimentos

dos homens e os discursos antes das batalhas que marcam a obra de uma maneira

singular ldquoA Ciropedia natildeo eacute uma histoacuteria sobre coisas que aconteceram mas uma

narrativa sobre coisas que poderiam ter acontecido167rdquo (TATUM 1989 p69) O foco

natildeo estaacute no que aconteceu mas no modo como aconteceu A prova disso eacute que jaacute no

proacutelogo Xenofonte resume todas as conquistas de Ciro ou seja ao adentrarmos a

narrativa propriamente dita jaacute sabemos qual seraacute o fim dela Assim os banquetes e as

festas entre os soldados a camaradagem os casos particulares de inveja amor etc

entremeiam a obra e a enriquecem criando o efeito de pausa e retardamento da accedilatildeo

Aleacutem disso haacute pequenas narrativas secundaacuterias que se conectam com a narrativa

principal de Ciro nas quais se expressa o poder dos viacutecios desmedidos nos homens

uma vez que essas personagens satildeo os contrapontos exatos da figura de Ciro

desprovidos de uma educaccedilatildeo ideal satildeo dadas ao erro e revelam a sorte daqueles que

natildeo dominam suas paixotildees

Todos estes elementos ficcionais modernizam no sentido expresso por Bakhtin

a narrativa pois mais do que a fidelidade agrave histoacuteria Xenofonte estaacute preocupado com a

fidelidade ao ficcional didaacutetico e romanesco respondendo com isso a questotildees do seu

proacuteprio tempo Estes elementos dilatam a narrativa e enriquecem os fatos histoacutericos

dando a eles uma dimensatildeo mais humana que se presentifica para o leitor

45 Xenofonte educador

A moralidade expressa na Ciropedia de Xenofonte repercute a voz de Hesiacuteodo

em Os Trabalhos e Os Dias168 (1991 v295-297)

167 No Original The Cyropaedia is not a story about things that happened but an account of things that could happen 168 Traduccedilatildeo de Mary Lafer (1991)

131

e eacute bom tambeacutem quem ao bom conselheiro obedece mas quem natildeo pensa por si nem ouve o outro eacute atingido no acircnimo este pois eacute homem inuacutetil

A partir da figurativizaccedilatildeo de uma determinada vida a de Ciro o Velho

Xenofonte quer instruir seus leitores Natildeo podemos pois menosprezar o fato de que a

poesia na Greacutecia claacutessica tinha como funccedilatildeo a formaccedilatildeo de seus leitores O papel do

poeta-educador da Greacutecia nos revela uma percepccedilatildeo miacutestica da atividade literaacuteria que

ao lado dos sacerdotes era inspirado pelas musas para cantar a verdade e mesmo com a

secularizaccedilatildeo da linguagem no seacuteculo da filosofia a visatildeo do prosador como educador

parece ter se mantido Horaacutecio na sua Arte Poeacutetica nos fala que uma das funccedilotildees da

literatura eacute ensinar e se hoje perdemos essa percepccedilatildeo chegando mesmo a dizer que o

ato de leitura pode ser alienatoacuterio natildeo devemos esquecer-nos disso quando tratamos de

um texto da Antiguidade

Xenofonte afastado dos tempos das musas e dos cantos heroicos tem ainda em

seu acircmago o projeto de educador Se de um lado a Ciropedia ficccedilatildeo em prosa revela

como o homem ideal deve agir e liderar seu povo de outro a narrativa da vida de Ciro

garante ao autor o estatuto de saacutebio pois ela eacute a figurativizaccedilatildeo de suas proacuteprias ideias

As maacuteximas proferidas admoestam natildeo soacute as personagens mas tambeacutem os

interlocutores a respeitarem o homem e os deuses e a nunca extrapolar os limites da sua

liberdade A hyacutebris a desmedida que embeleza os palcos traacutegicos deve ser suprimida

para a felicidade da vida humana real A educaccedilatildeo proposta eacute uma educaccedilatildeo moralista

uma educaccedilatildeo da justiccedila e da obediecircncia Uma educaccedilatildeo que leva o homem agrave boa

compreensatildeo dos limites do humano

Procuramos demonstrar neste capiacutetulo que a preocupaccedilatildeo didaacutetica com que

Xenofonte reveste a narrativa ficcional cria estruturas narrativas que ainda hoje satildeo

determinantes para a acepccedilatildeo do romance de formaccedilatildeo ao menos em um sentido ldquoda

formardquo do Romance de Formaccedilatildeo Assim analisamos o que Jacobs (1989 apud MAAS

2000) denomina de experiecircncias tiacutepicas do heroacutei nos romances de formaccedilatildeo como o

afastamento da casa paterna a presenccedila de mentores a passagem por instituiccedilotildees

educacionais os erros de avaliaccedilatildeo da personagem principal e a visatildeo teleoloacutegica de

educaccedilatildeo Estes elementos estruturais natildeo aparecem de forma estaacutetica mas se

combinam em cenas bem organizadas e conduzem a evoluccedilatildeo da personagem principal

no decorrer da narrativa O heroacutei da Ciropedia portanto eacute uma ldquounidade dinacircmicardquo

132

(BAKHTIN 2010 p237) e se enquadra no tipo de personagem do romance de

formaccedilatildeo

Aleacutem disso buscamos refletir a respeito do grau de assimilaccedilatildeo do tempo

histoacuterico e demonstramos que a modalidade temporal da Ciropedia combina o tempo

biograacutefico com o tempo ciacuteclico idiacutelico Desse modo as aventuras pelas quais o heroacutei

passa satildeo uacutenicas e singulares poreacutem o tipo de desenvolvimento que a personagem

efetua na narrativa eacute um desenvolvimento tiacutepico do homem concebido como a

passagem natural do tempo na formaccedilatildeo do homem Tambeacutem averiguamos que as

informaccedilotildees culturais natildeo visam agrave fidelidade agrave histoacuteria mas a um projeto didaacutetico e que

por isso elas satildeo fictiacutecias Desse modo a Ciropedia moderniza o passado em virtude da

preocupaccedilatildeo com o presente O processo de modernizaccedilatildeo do passado se efetua pela

ficcionalizaccedilatildeo do material histoacuterico que eacute problematizado a partir da atualidade natildeo

da fidelidade agrave histoacuteria Por estas caracteriacutesticas nos parece acertada a classificaccedilatildeo da

Ciropedia como uma das formas embrionaacuterias do ldquoRomance de Formaccedilatildeordquo

133

5 Imagem e evoluccedilatildeo do heroacutei da Ciropedia

Neste capiacutetulo discutiremos sobre a evoluccedilatildeo da personagem Ciro na Ciropedia

e sua imagem dinacircmica conforme expressatildeo bakhtiniana (BAKHTIN 2010)

Compreendemos que por meio da anaacutelise das maacuteximas encontradas na tessitura

narrativa da obra de Xenofonte poderemos abalizar a tese jaacute defendida nos capiacutetulos

anteriores de que Ciro natildeo eacute uma personagem estaacutetica mas dinacircmica e evolutiva

Avaliaremos a forma como essas maacuteximas aparecem atentando-nos para o enunciador

o destinataacuterio e o contexto de enunciaccedilatildeo e como elas propiciam a formaccedilatildeo

propriamente dita dessa personagem O heroacutei evolutivo eacute uma das principais

caracteriacutesticas do romance de formaccedilatildeo ldquo[pois as] mudanccedilas por que passa o heroacutei

adquirem importacircncia para o enredo romanesco que seraacute por conseguinte repensado e

reestruturado []rdquo (BAKHTIN 2010 p237)

Segundo Bakhtin (2010) na configuraccedilatildeo da personagem a construccedilatildeo do

caraacuteter pode obedecer a duas tendecircncias a claacutessica e a romacircntica Fundamental para a

tendecircncia claacutessica eacute o valor artiacutestico do destino e neste caso a vida eacute somente a

realizaccedilatildeo daquilo que desde o iniacutecio jaacute fora determinado o curso de sua vida os

acontecimentos e a sua morte e mesmo a sua vida interior satildeo percebidos como

necessaacuterios e predeterminados pelo destino Em face da visatildeo de mundo da personagem

claacutessica o autor eacute dogmaacutetico e sua posiccedilatildeo eacutetica natildeo eacute contestada Na caracterizaccedilatildeo da

personagem romacircntica o caraacuteter da personagem eacute dotado de arbiacutetrio e inicitativa

axioloacutegica Os valores do destino natildeo podem servir para a caracterizaccedilatildeo da personagem

de modo definitivo e fundamental eacute a ideia pois ela determina a individualidade da

personagem ndash a personagem age segundo sua ideia Por isso a distacircncia entre autor e

personagem na caracterizaccedilatildeo da personagem romacircntica eacute menos estaacutevel do que a

distacircncia na personagem claacutessica O enfraquecimento desta posiccedilatildeo promove a

desintegraccedilatildeo da personagem Haacute portanto maior identificaccedilatildeo entre heroacutei e autor nas

personagens claacutessicas e o heroacutei torna-se um veiacuteculo de expressatildeo das proacuteprias ideias do

autor (BAKHTIN 2010 p158-167)

Na biografia e na variante romanesca da biografia a personagem eacute importante

como portadora de uma vida historicamente significativa ndash a biografia responde o que a

personagem fez ou o que ela viveu Poreacutem eacute na anaacutelise do caraacuteter que compreendemos

134

a personagem como um todo significantemente enformada pelos desiacutegnios do seu

criador a ponto de respondermos a pergunta ldquoquem erardquo a personagem (BAKHTIN

2010 p159)

Nas maacuteximas que povoam a narrativa da Ciropedia Xenofonte manifesta o

caraacuteter da personagem as suas preferecircncias de comportamento social seus anseios e

objetivos eacutetico-morais Neste sentido a maacutexima torna-se um objeto de caracterizaccedilatildeo

importante na construccedilatildeo da personagem No entanto por se tratar de uma personagem

claacutessica na acepccedilatildeo do termo de Bakhtin as maacuteximas manifestam tambeacutem o caraacuteter do

proacuteprio Xenofonte Natildeo eacute no entanto nosso anseio neste capiacutetulo analisar as maacuteximas

como uma possiacutevel descriccedilatildeo do pensamento de Xenofonte mas analisar as maacuteximas

como elas representam de fato a evoluccedilatildeo da personagem Ciro na narrativa

Analisaremos portanto as maacuteximas quanto ao seu contexto de enunciaccedilatildeo e

quanto ao enunciador e destinaacuterio procurando observar de que modo elas propiciam a

formaccedilatildeo da personagem uma vez que elas transmitem o caraacuteter da personagem

Faremos inicialmente alguma discussatildeo a respeito da estrutura formal da maacutexima a

fim de que nossa anaacutelise seja abalizada por observaccedilotildees linguiacutesticas

51 A maacutexima estrutura e conteuacutedo

O levantamento das maacuteximas formuladas na Ciropedia regulou-se observando

alguns pontos essenciais Em primeiro lugar vale ressaltar que por toda a obra impera

um tipo de discurso pedagoacutegico no qual satildeo articulados ensinamentos principalmente

de caraacuteter praacutetico tanto a respeito da arte militar e das coisas puacuteblicas quanto a respeito

da vida particular do homem Entretanto este tipo de discurso pedagoacutegico natildeo eacute em

essecircncia representado por maacuteximas e se utiliza de outros expedientes retoacutericos A

seleccedilatildeo portanto considerou o ponto de vista formal e soacute foram selecionados aqueles

discursos que estavam estruturados como verdadeiras maacuteximas Devemos primeiro

portanto estabelecer a maacutexima do ponto de vista formal (a relaccedilatildeo de sua estrutura e de

seu conteuacutedo) para podermos justificar a nossa anaacutelise

Os mais antigos poetas gregos incluiacuteam uma grande quantidade de expressotildees

que emitiam instruccedilotildees gerais em sua poesia estas expressotildees a partir do seacuteculo V aC

135

foram coletadas e chamadas de γνωμολογίαι (gnomologiai) coletacircneas de maacuteximas

que eram lidas nas escolas e usadas pelos retores Segundo Lardinois (1997 p214) na

poesia arcaica os poetas referiam-se a estes ldquoproveacuterbiosrdquo por meio de expressotildees como

ἔπος (epos) λόγος (logos) ou αἶνος (ainos) No curso do quinto e quarto seacuteculos

alguns novos termos para expressotildees proverbiais foram introduzidos na linguagem

grega παροίμια (paroimia) ὑποθήκη (hupotheke) ἀπόφθεγμα (apophthegma)

γνώμη (gnome)

A maacutexima (γνώμη em grego sententia em latim) segundo a Arte Retoacuterica (L

II XXI) de Aristoacuteteles (2005) eacute um meio pelo qual se expressa uma determinada

maneira de ver o mundo mas que natildeo se refere ao particular (τῶν καθrsquo ἕκαστων ton

kathrsquo ekaston) mas ao universal (ἀλλά καθόλου alla katholou) Este universal natildeo eacute

o universal em toda a sua extensatildeo mas o universal que tem por objeto as accedilotildees com os

quais ela se relaciona

Do ponto de vista de sua estrutura frasal a maacutexima eacute um entimema169

(ἐνθύμημα enthymema) abreviado Haacute na estrutura do entimema trecircs partes a

premissa (πρότασις protasis) a deduccedilatildeo (συλλογισμός syllogismos) e a conclusatildeo

(συμπέρασμα sumperasma) A maacutexima em geral corresponde apenas agrave conclusatildeo

do entimema estando ausente da sua forma tanto a premissa quanto a deduccedilatildeo poreacutem

a maacutexima soacute se viabiliza se a deduccedilatildeo for intuiacuteda na recepccedilatildeo da maacutexima (DUFEUR

1967 p37) Desse modo a maacutexima deve ser um discurso conciso no qual devem estar

ausentes as causas e os porquecircs do seu caraacuteter universal pois a explicaccedilatildeo tornaria a

maacutexima em entimema

Ainda segundo Aristoacuteteles as maacuteximas garantem tanto o prazer (χαρίς kharis)

aos ouvintes do discurso quanto o caraacuteter moral (ἠθικός ethikos) do orador O prazer

da maacutexima decorre do fato de que ldquo[] as pessoas ficam satisfeitas quando elas ouvem

coisas em termos gerais os quais elas compreenderam antes em um caso particularrdquo170

(ARISTOacuteTELES 2005 p210) Jaacute a eacutetica do orador relaciona-se ao fato de a emissatildeo

de maacuteximas conforme Aristoacuteteles ser adequada agraves pessoas mais velhas

169 O entimema eacute uma forma de silogismo ou argumentaccedilatildeo em que uma das premissas ou um dos argumentos fica subentendido Devido agrave sua concisatildeo o entimema facilita a expressatildeo do pensamento e pode incluir uma demonstraccedilatildeo ou uma refutaccedilatildeo 170 No original [] χαίρουσι δὲ καθόλου λεγομένων ἃ κατά μέρος προυπολαμβάνοντες

τυγχάνουσιν

136

(πρεσβυτέροις presbyterois) e experimentes (ἔμπειροῖς empeirois) ldquoDe maneira

que fazer uso de maacuteximas quando natildeo se atingiu tal idade eacute tatildeo pouco oportuno como

andar a contar histoacuterias Do mesmo modo fazecirc-lo sobre temas de que natildeo se tem

experiecircncia eacute uma parvoiacutece e uma falta de educaccedilatildeo171rdquo (ARISTOacuteTELES 2005

p211)

Roland Barthes (1974) em seu ensaio ldquoLa Rochefoucauld Reflexotildees ou

Sentenccedilas e Maacuteximasrdquo reflete a respeito da produccedilatildeo das maacuteximas que para ele

devem ser analisadas segundo o conteuacutedo semacircntico e os padrotildees estruturais A maacutexima

eacute um discurso moralizante condensado resumido a respeito da natureza humana Para

Barthes (1994) a maacutexima se estabelece dentro de uma estruturaccedilatildeo bastante controlada

que nada tem a ver com um discurso libertaacuterio uma vez que pressupotildee um conteuacutedo

padronizado e moral do comportamento humano No entanto haacute na maacutexima em virtude

de sua estrutura concisa um caraacuteter de espetaacuteculo que a aproxima da poesia172 e este

promove o prazer no espectador um prazer muito proacuteximo da contemplaccedilatildeo Para

Barthes a estrutura da maacutexima eacute visiacutevel pois a essecircncia da maacutexima eacute seu caraacuteter de

espetaacuteculo Desse modo haacute na maacutexima uma estrutura que sendo visiacutevel torna a

maacutexima facilmente reconheciacutevel Barthes posteriormente em seu ensaio analisa como

as maacuteximas produzidas por La Rochefoucauld satildeo construiacutedas por meio de uma

linguagem esteacutetica se utilizando de recursos tiacutepicos do discurso poeacutetico Portanto a

maacutexima eacute um estilo de discurso ligado agrave percepccedilatildeo do mundo que ajuiacuteza sobre o

comportamento humano e sob o qual transparece os valores eacuteticos e morais de uma

sociedade Seu caraacuteter conciso contribui para a expressividade da mensagem e a sua

expressividade garante seu caraacuteter mnemocircnico

Tanto Aristoacuteteles quanto Barthes apontam para o caraacuteter esteacutetico da maacutexima ou

seja as emoccedilotildees desenvolvidas e impulsionadas por meio da maacutexima no auditoacuterio-

leitor que recebe este tipo de discurso Aristoacuteteles no entanto retoma ainda o caraacuteter

didaacutetico do discurso proferido pela maacutexima e como seu efeito persuasivo depende do

caraacuteter tambeacutem do orador ndash o ensinamento seraacute recebido como verdade se o orador for

aceito como experiente em tal assunto As maacuteximas portanto natildeo soacute emitem um

preceito moral decorrente de se pretender ldquonorma reconhecida do conhecimento do

171 No original ὥστε τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ τὸ

μυθολογεῖν περὶ δὲ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτον σημεῖον δὲ ἱκανόν (ARISTOTE 1967 1395a5)1395a5 172 ldquo[] como se sabe existe uma afinidade especial entre o verso e a maacutexima a comunicaccedilatildeo aforiacutestica e a comunicaccedilatildeo divinatoacuteriardquo (Barthes 1974 p12)

137

mundordquo (LAUSBERG 1966 p235) mas por emitir um preceito moral em uma forma

geral e declarar as preferecircncias do orador revelam o proacuteprio caraacuteter do orador Desse

modo ldquotodas as maacuteximas satildeo honestasrdquo (DUFEUR 1967 p38)

Linguisticamente as maacuteximas satildeo formadas em portuguecircs de tempos verbais

mais ou menos precisos o presente do indicativo ou tempos do subjuntivo Jaacute na

liacutengua grega estas maacuteximas vecircm expressas no chamado ldquoaoristo gnocircmicordquo que

traduzimos em geral pelo presente Agraves vezes tambeacutem encontramos frases que se

iniciam com expressotildees como por exemplo ἀναγκαῖον ἐστιν (ananksion estin) ldquoeacute

necessaacuteriordquo ou δίχαίον ἐστιν (dikhaion estin) ldquoeacute justordquo ou de χρή (khre) ldquoeacute

necessaacuteriordquo seguido de infinitivos e que tambeacutem se constituem como maacuteximas no

texto grego O importante eacute que tanto em grego quanto em portuguecircs os tempos

verbais nas maacuteximas apresentam um caraacuteter temporal que natildeo se mede em uma linha

cronoloacutegica mas que se estende no tempo como uma verdade eterna e atemporal

Conforme Aristoacuteteles as maacuteximas referem-se sempre a atos ndash que satildeo expressos

em discurso ndash e dessa relaccedilatildeo iacutentima manteacutem seu caraacuteter universal Eacute portanto um

discurso que se refere a outro discurso e que por resumiacute-lo manteacutem um caraacuteter

metadiscursivo A estrutura da maacutexima por exemplo estaacute presente no gecircnero da faacutebula

No livro A tradiccedilatildeo da Faacutebula ndash de Esopo a La Fontaine de Maria Celeste C Dezotti

(2003) a autora discute os elementos estruturais da faacutebula a faacutebula eacute um ato de fala

que concretizado numa narrativa apresenta uma atitude de ensinamento (recomendar

mostrar censurar aconselhar etc) de um enunciador para um leitor Analisando as

faacutebulas de Esopo observa-se que estruturalmente ela eacute formada por duas instacircncias

textuais a instacircncia narrativa e a instacircncia epimiacutetica a primeira eacute o discurso narrativo

propriamente dito ou seja personagens ndash em geral animais antropomorfizados ndash

concretizam accedilotildees enquanto que a segunda constitui na interaccedilatildeo de dois outros

discursos um interpretativo ou moral que vai mostrar ao leitor uma maacutexima que

interpreta a narrativa e um metalinguiacutestico que vai informar a accedilatildeo que o enunciador da

faacutebula estaacute realizando (por exemplo os discursos ldquoA faacutebula dizrdquo ou ldquoA faacutebula mostrardquo)

Este uacuteltimo nem sempre estaacute presente tambeacutem o discurso interpretativo agraves vezes estaacute

ausente na estrutura da faacutebula ficando portanto ao cargo do leitor a interpretaccedilatildeo da

narrativa da faacutebula Outra instacircncia da faacutebula encontrada sobretudo nas faacutebulas de

Fedro eacute o promiacutetio este se difere do epimiacutetio pela posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave narrativa pois

138

enquanto o epimiacutetio vem expresso apoacutes a narrativa o promiacutetio vem expresso antes da

narrativa

A faacutebula ldquoO Cavalo e o Asnordquo de Esopo (2003) nos serviraacute de exemplo Na

primeira parte da faacutebula narra-se a histoacuteria de um asno que pede ao cavalo que o ajude

a carregar o pesado fardo que lhe competia O cavalo nega a ajuda e o asno

extremamente cansado acaba morrendo Por fim o dono dos animais pega toda a carga

que o asno carregava e daacute para o cavalo carregar ldquoA faacutebula mostra que se os grandes

forem companheiros dos pequenos ambos viveratildeo satildeos e salvosrdquo (DEZOTTI 2003)

Observemos que a maacutexima apresenta-se intimamente vinculada agrave narrativa e que esta

figurativiza em um acontecimento particular a verdade expressa na maacutexima geral vaacutelida

para outras circunstacircncias A narraccedilatildeo na faacutebula funciona como a deduccedilatildeo do

entimema pois ela prepara o espiacuterito do leitor para a verdade da maacutexima A maacutexima

portanto sendo uma reflexatildeo sobre o comportamento geral dos homens sempre se

refere a accedilotildees particulares

Haacute portanto um viacutenculo inerente entre o conteuacutedo da maacutexima e o conteuacutedo da

narrativa As maacuteximas de La Rochefoucauld por exemplo analisadas por Barthes

(1994) natildeo estatildeo vinculadas a esta estrutura fabular pois natildeo apresentam uma narrativa

que figurativize a maacutexima geral No entanto mesmo dissociada de qualquer contexto

textual a maacutexima sempre se refere a outro discurso que eacute presumido pelo ouvinte da

maacutexima Este outro discurso que recupera pela linguagem os atos valida a maacutexima daacute

agrave maacutexima o exemplo singular da verdade geral que ela expressa

As maacuteximas portanto apresentam-se como estruturas metalinguiacutesticas que

desenvolvem seu sentido a partir de uma referecircncia seja narrativa seja argumentativa

Natildeo podemos portanto ao tratar das maacuteximas da Ciropedia deixar de pensar nessa

relaccedilatildeo das maacuteximas com os atos ndash expressos pela linguagem ndash praticados pelas

personagens Assim acreditamos que dentro da narrativa constroacutei-se uma espeacutecie de

estrutura fabular na qual tais maacuteximas repercutem ou ecoam outras passagens da

narrativa pois com elas as maacuteximas estatildeo necessariamente e intimamente ligadas

Isso nos leva a um segundo ponto de nossa anaacutelise que diz respeito ao conteuacutedo

das maacuteximas levantadas na Ciropedia Por se tratar de um enredo que podemos chamar

de beacutelico cujo tema principal eacute a arte do liacuteder ideal podemos distinguir dois tipos de

maacuteximas de acordo com o conteuacutedo proferido por elas as maacuteximas de guerra e as

maacuteximas gerais As maacuteximas gerais dizem respeito ao comportamento humano em

qualquer circunstacircncia natildeo se limitando ao contexto da guerra ainda que natildeo o exclua

139

de sua anaacutelise por isso muitas vezes nas maacuteximas de guerra temos sintagmas como

ldquoestando em guerrardquo ldquona guerrardquo que delimitam o terreno em que a maacutexima eacute vaacutelida

Aleacutem disso devemos averiguar se as maacuteximas proferidas correspondem a accedilotildees

expressas na narrativa a fim de que as maacuteximas sejam recebidas como um

conhecimento verdadeiro Portanto deve-se ter em mente que as maacuteximas na Ciropedia

correspondem a accedilotildees representadas por toda a narrativa mas nem sempre ela estaacute

relacionada de modo claro Neste sentido devemos averiguar o contexto da locuccedilatildeo da

maacutexima interpretando o discurso da maacutexima como uma espeacutecie de epimiacutetio do discurso

da faacutebula cujo sentido soacute se pode abranger tendo em mente o contexto referencial

O terceiro ponto de nossa anaacutelise eacute contemplar o locutor e o destinataacuterio das

maacuteximas proferidas Como nosso intuito eacute a anaacutelise da personagem Ciro e demonstrar

como ela mostra-se evolutiva eacute importante observar quando Ciro passa a se utilizar de

maacuteximas quais maacuteximas ele profere e quais satildeo os seus destinataacuterios Desse modo

reagrupamos as maacuteximas de guerra e as maacuteximas gerais em outros trecircs grupos maacuteximas

proferidas por Ciro maacuteximas proferidas pelo narrador e maacuteximas proferidas por

outra personagem

52 O heroacutei-saacutebio

Observemos a seguir o quadro de ocorrecircncias das maacuteximas encontradas na

Ciropedia de Xenofonte neste quadro procuramos dividir as maacuteximas tanto pelo seu

conteuacutedo (maacuteximas de guerra e maacuteximas gerais) quanto pelos locutores que

proferem as maacuteximas (o narrador Ciro ou alguma personagem secundaacuteria)

Maacuteximas de guerra Maacuteximas gerais

Narrador 7 11

Ciro 22 22

Personagem secundaacuteria 7 25

Quadro 1 Maacuteximas da Ciropedia

140

Ciro ao todo formula 44 maacuteximas enquanto o narrador formula 18 e todas as

outras personagens em conjunto formulam 32 maacuteximas Entretanto as personagens

secundaacuterias satildeo as que mais formulam maacuteximas gerais totalizando 25 Os nuacutemeros

apresentados no quadro demonstram natildeo soacute a sapiecircncia com que Ciro eacute representado na

Ciropedia mas tambeacutem demonstra o importante papel que as personagens secundaacuterias

tecircm na narrativa de Xenofonte Conforme James Tatum (1989 p68) todas as

personagens tecircm alguma funccedilatildeo pedagoacutegica na obra pois elas apresentam situaccedilotildees-

modelos para que ele liacuteder-modelo as resolva Xenofonte segundo Tatum (1989)

inventa e adapta personagens que satildeo invocadas para servir como suacuteditos ideais de um

priacutencipe que ele mesmo inventou para exemplificar um liacuteder ideal Os encontros com

esses personagens ficcionais satildeo a educaccedilatildeo de Ciro

No entanto nem sempre as maacuteximas proferidas configuram-se como elemento

de saber verdadeiro (ao menos para o enredo da Ciropedia) Algumas vezes as maacuteximas

formuladas satildeo contestadas e negadas pela proacutepria narrativa que apresenta um desfecho

que contradiz a maacutexima formulada em geral essas maacuteximas contestadas satildeo proferidas

pelas personagens secundaacuterias Nesse contexto haacute uma reformulaccedilatildeo de uma verdade

que Ciro e principalmente a narrativa demonstram ser falsa ndash uma das funccedilotildees das

maacuteximas segundo Aristoacuteteles (2005) eacute contestar o senso comum apresentar uma nova

forma de ver aquilo que a tradiccedilatildeo popular consagrara Como nosso interesse de anaacutelise

eacute a personagem de Ciro comentaremos das personagens secundaacuterias apenas aquelas

maacuteximas que de algum modo ou revelam a sapiecircncia de Ciro ou proferidas por outras

personagens satildeo importantes na formaccedilatildeo e evoluccedilatildeo da personagem Ciro Antes

analisaremos o contexto em que Ciro profere as maacuteximas tanto as maacuteximas de guerra

quanto as maacuteximas gerais

521 Quem fala quem ouve o contexto das maacuteximas na Ciropedia

O contexto em que as maacuteximas estatildeo inseridas na narrativa eacute principalmente o

contexto dos preparativos das batalhas Analisando as ocorrecircncias percebemos que a

maior parte das maacuteximas de guerra proferidas por Ciro se localiza imediatamente antes

da narraccedilatildeo das principais campanhas seja em discurso para seus soldados seja em

debates com seus principais aliados Tambeacutem as maacuteximas gerais se entremeiam nestes

141

contextos Vamos analisar algumas destas ocorrecircncias para observar os efeitos que as

maacuteximas resultam no discurso de Ciro interpretando uma ocorrecircncia assumimos que

ela apresenta o caraacuteter geral das ocorrecircncias Seria muito fastidioso a anaacutelise total das

maacuteximas proferidas Procuraremos no entanto efetuar a anaacutelise mais completa

possiacutevel refletindo sobre o contexto os aspectos formais e conteudistas das maacuteximas

Selecionamos dois contextos de enunciaccedilatildeo das maacuteximas o diaacutelogo com outras

personagens e o discurso para os soldados

a-) diaacutelogo com as outras personagens

No Livro 52 haacute um jantar em que Ciro se reuacutene com Goacutebrias um varatildeo assiacuterio

que de boa vontade se rendera a ele Goacutebrias (Cirop 46 1-11) era um dos nobres da

Assiacuteria e era muito amigo do antigo rei um homem bom e justo No entanto apoacutes a

morte do rei o poder passou para as matildeos de seu filho um homem vaidoso e injusto

que matara o filho de Goacutebrias durante um exerciacutecio de caccedila segundo Goacutebrias o atual

rei natildeo suportou ver-se ultrapassado nas habilidades de caccedila pelo filho de Goacutebrias que

abatera duas feras enquanto ele natildeo conseguira matar nenhuma e natildeo contendo sua

raiva e inveja cravou uma lanccedila no peito do jovem que iria se casar com a filha do rei

O assassino jamais mostrou arrependimento pelo que fizera enquanto que ldquoO pai dele

em verdade teve compaixatildeo por mim e era visiacutevel que se atormentava por meu

infortuacuteniordquo173 (Cirop 465) Eacute interessante o fato de ele acrescentar ldquoEu de fato se

ele estivesse vivo jamais viria para junto de ti para causar mal a ele pois recebi dele

muitas demonstraccedilotildees de amizaderdquo174 (Cirop 466) Mas agora com o poder nas matildeos

do filho ele nunca poderia ser amigo e aliado dele entatildeo lhe vinha como suplicante

pedir-lhe para ser seu vingador e tambeacutem adotar Ciro como filho Goacutebrias se mostra

extremamente uacutetil a Ciro principalmente na campanha contra a Assiacuteria e na tomada da

Babilocircnia onde Goacutebrias vinga seu filho matando o rei Assiacuterio (Livro VII)

No referido jantar do Livro 52 apoacutes apreciar a simplicidade dos costumes dos

persas Goacutebrias narra a Ciro a histoacuteria de Gadatas outro assiacuterio que fora castigado pela

inveja do Rei Assiacuterio Entretanto quando Ciro pergunta a Goacutebrias se era possiacutevel que

Gadatas se aliasse a eles Goacutebrias apesar de afirmar diz a Ciro que eacute muito difiacutecil

173 No original Ὅ γε μὴν πατήρ αὐτοῦ καὶ συνῴκρισέ με καὶ δῆλος ἦν συναχθόμενός μοι τῇ

συμφορᾷ (Cirop 465) 174 No original Ἐγώ οὖν εἰ μὲν ἔζη ἐκεῖνος οὐκ ἄν ποτε ἦλθον πρός σὲ ἐπὶ τῷ ἐκείνου κακῷ˙

πολλὰ γὰρ φίλια καὶ ἔπαθον δὴ ὑπrsquo ἐκείνου καὶ ὑπηρέτησα ἐκείνῳ (Cirop 466)

142

encontrar Gadatas pois para se chegar a ele ldquoera necessaacuterio passar ao lado da

Babilocircniardquo175 (Cirop 5229) e haveria o risco de enfrentar um exeacutercito muito maior do

que o de Ciro (Cirop 5229) Por isso Goacutebrias aconselha a Ciro que seja cauteloso na

marcha Ciro no entanto afirma que ao contraacuterio do que pensa Goacutebrias o melhor eacute ir

rumo agrave Babilocircnia pois ldquoali estaacute o melhor dos inimigosrdquo176 (Cirop 5231) A partir

disso Ciro procura convencer Goacutebrias da verdade de suas palavras para ele se as

numerosas tropas inimigas natildeo virem os soldados de Ciro crendo que natildeo aparecem por

terem medo deles tornar-se-atildeo extremamente corajosos e temiacuteveis no entanto se os

persas avanccedilarem ainda encontrariam os inimigos sofrendo dos males da uacuteltima

batalha Ciro resume a sua reflexatildeo com uma maacutexima177

Εὖ δrsquo ἴσθι ἔφη ὧ Γωβύα ἵνα καὶ τοῦτrsquo εἰδῇς οἱ πολλοὶ

ἄνθρωποι ὅταν μὲν θαρρῶσιν ἀνυπόστατον τὸ φρόνημα

παρέχονται˙ ὅταν δὲ δείσωσιν ὅσῳ ἄν πλείους ὦσι τοσούτῳ

μείζω καί ἐκπεπληγμένον μᾶλλον τὸν φόβον κέκτηνται

Sabes bem Goacutebrias jaacute que deveis saber disso que os homens numerosos quando satildeo tomados de coragem mostram uma arrogacircncia irresistiacutevel poreacutem quando satildeo tomados de pavor quatildeo numerosos sejam tanto maior e mais perturbado o medo que sentem (Cirop 5233)

Apoacutes proferir esta maacutexima Ciro desenvolve uma argumentaccedilatildeo em que procura

explicar a verdade desta maacutexima primeiro argumenta que em uma multidatildeo eacute difiacutecil

dissuadir o medo por meio de palavras em seguida demonstra a Goacutebrias que em todas

as batalhas decorridas natildeo foi o nuacutemero de soldados que decidiu as batalhas mas a

competecircncia dos exeacutercitos e desse modo natildeo haveria razatildeo a temer

Inicialmente analisemos a maacutexima com relaccedilatildeo ao seu contexto de locuccedilatildeo ou

seja o discurso de Ciro a Goacutebrias Goacutebrias havia levantado um problema a Ciro (como

atravessar a Babilocircnia e chegar a Gadatas) e o aconselhara a ser cauteloso na marcha

em virtude do tamanho do exeacutercito inimigo Ciro no entanto argumenta o contraacuterio e

procura convencer seu ouvinte ele inicia seu discurso a partir de uma reflexatildeo de um

discurso argumentativo em que revela sua concepccedilatildeo estrateacutegica na qual o poder estaacute

175 No original παρrsquo αὐτήν τὴν Βαβυλῶνα δεῖ παριέναι (Cirop 5229) 176 No original ἐκεῖ τῶν πολεμίων ἐστὶ τό κράτιστον (Cirop 5231) 177 Na transcriccedilatildeo que efetuaremos das maacuteximas colocaremos em itaacutelico o bloco discursivo que representa o conceito da maacutexima segundo a terminologia de Barthes (1994)

143

intimamente relacionado ao ato de ver (εἰδεῖν eidein)178 Conforme Harman (2008

p81 traduccedilatildeo nossa) na visatildeo de Ciro

Poder natildeo eacute soacute baseado no real (o exeacutercito eacute grande ou pequeno) mas no como ele eacute realmente visto precedentemente um pequeno exeacutercito foi visto de um modo que lhe deu poder enquanto que agora um grande exeacutercito se ele for visto pareceraacute (e tambeacutem seraacute) fraco Na correccedilatildeo e reformulaccedilatildeo do problema da disponibilidade visual do exeacutercito parece que a abertura para a observaccedilatildeo deve ser rigorosamente policiada a resposta do contemplador natildeo eacute estaacutetica mas assunto para uma contiacutenua reinterpretaccedilatildeo179

Na anaacutelise de Harman observamos que a imagem de poder natildeo estaacute conforme a

Ciropedia nos eventos em si mas eacute construiacuteda e representada de acordo com a intenccedilatildeo

de Ciro As relaccedilotildees de poder satildeo produzidas em um complexo e nuanccedilado encontro

entre espectador e espetaacuteculo (HARMAN 2008 p91) A interpretaccedilatildeo de Harman nos

parece acertada e a maacutexima proferida por Ciro parece nos indicar justamente a

consciecircncia da expectativa que Ciro tem da reaccedilatildeo do inimigo diante do seu exeacutercito e

como Ciro procura controlar a reaccedilatildeo do inimigo A maacutexima portanto natildeo estaacute isolada

no discurso mas estaacute intimamente relacionada com a reflexatildeo inicial ela a resume e a

torna manifesta de um comportamento geral Aleacutem disso pelo seu caraacuteter geral e

atemporal o uso desta estrateacutegia discursiva por Ciro eacute fundamental para o

convencimento de Goacutebrias Na sequecircncia do discurso Ciro procura justificar a maacutexima

natildeo por meio de uma narrativa hipoteacutetica poreacutem mediante o passado imediato

relembrando os sucessos de sua armada Os atos ndash as vitoacuterias nas batalhas ndash tornam

manifesta a verdade da maacutexima porque a experiecircncia torna-se um elemento de

validaccedilatildeo da maacutexima O problema levantado por Goacutebrias eacute portanto resolvido e eles

partem em marcha de acordo com os desiacutegnios de Ciro A narrativa demonstraraacute que

Ciro tinha razatildeo em seu discurso Estamos portanto diante de uma maacutexima que

aprendida pelo passado revela os acontecimentos futuros

Analisemos agora a maacutexima xenofonteana anteriormente citada do ponto de

vista estrutural e semacircntico O primeiro bloco semacircntico (Sabes bem Goacutebrias jaacute que

deveis saber disso) constitui o que Lardinois chama de tying phrase um discurso 178 Para uma anaacutelise das relaccedilotildees de visatildeo e poder na Ciropedia cf Harman R Viewing Power and interpretation in Xenophonrsquos Cyropaedia 2008 p69-91 179 No original Power is not only based in the actual (is the army large or small) but on how actual is seen previously a small army was seen in a way which gave it Power whereas now a big army If it is seen will seem (and therefore also be) weak In the restatement and reformulation of the problem of the armyrsquos visual availability it appears that openness to observation must be rigorously policed the response of the viewer is not static but subject to continual reinterpretation (HARMAN 2008 p81)

144

introdutoacuterio da maacutexima que ldquosinaliza o status do discurso seguinte como uma

explicaccedilatildeo para aquilo que o precederdquo180 (LARDINOIS 1997 p219 traduccedilatildeo nossa)

Em geral na liacutengua grega nos tying phrase haacute a recorrecircncia dos verbos φημί (phemi

dizer) ou οἴδα (oida saber) que datildeo ao orador muita responsabilidade para o que ele

diz Estes verbos satildeo tipicamente usados por um falante superior a um inferior ou por

aquele que quer clamar tal superioridade (LARDINOIS 1997 p220) Na maacutexima

proferida por Ciro o uso do verbo οἴδα reclama a seu locutor que ele jaacute compartilhe do

saber expresso na maacutexima A frase ἵνα καὶ τοῦτrsquo εἰδῇς (jaacute que deveis saber disso) que

muitos tradutores preferem excluir sob a justificativa de que se trata de uma

redundacircncia181 eacute na verdade uma peccedila importante no jogo discursivo incitado por

Ciro uma vez que conduz Goacutebrias a aceitar passivamente a verdade que seraacute expressa

na maacutexima O uso do verbo oida no subjuntivo passado na forma de eideis implica que

Goacutebrias deveria ser conhecedor desta verdade e neste momento da conversaccedilatildeo

reconhececirc-la negar seu conhecimento de algum modo eacute se colocar abaixo de Ciro

Ademais esse acordo taacutecito entre Ciro e Goacutebrias estabelecido pelo jogo

semacircntico do uso do verbo oida nos parece indicar que esta maacutexima eacute assumida como

um conhecimento que faz parte de uma tradiccedilatildeo popular formulada para aleacutem deste

contexto em que ela eacute proferida

O segundo bloco semacircntico (os homens numerosos quando satildeo tomados de

coragem mostram uma arrogacircncia irresistiacutevel poreacutem quando satildeo tomados de pavor quatildeo

numerosos sejam tanto maior e mais perturbado o medo que sentem) eacute a maacutexima

propriamente dita ou o conceito que transforma a maacutexima em espetaacuteculo (BARTHES

1974 p16) O conceito eacute sempre submetido a uma relaccedilatildeo pelos termos principais nele

expressos o estado mais elementar desta relaccedilatildeo eacute a comparaccedilatildeo (a maacutexima confronta

dois objetos propondo uma relaccedilatildeo quantitativa entre ambos) aleacutem da comparaccedilatildeo haacute

o estado de equivalecircncia (esta conexatildeo natildeo eacute definida em termos de quantidade mas de

essecircncia procura-se compreender qual a verdadeira identidade do termo analisado) o

terceiro tipo de estado de relaccedilatildeo do conceito eacute a relaccedilatildeo de identidade deceptiva

(neste caso haacute um projeto de dessacralizar o conceito procurando estabelecer que o

conceito natildeo passa de)

180 No original signal the status of the succeeding discourse as an explanation of what preceded it (LARDINOIS 1997 p219) 181 Cf nota 1 da paacutegina 97 da traduccedilatildeo de Marcel Bizos (1967)

145

Segundo o meacutetodo de anaacutelise de Barthes (1974) podemos compreender melhor

estas relaccedilotildees analisando os tempos fortes e tempos fracos que constituem a sintaxe

da maacutexima Os tempos fortes satildeo as substacircncias ou essecircncias das maacuteximas em geral

substantivo Seu caraacuteter indica o conceito que a maacutexima procura definir e os termos

com os quais a maacutexima define o conceito Jaacute os tempos fracos satildeo os termos

instrumentais ou relacionais que estabelecem as relaccedilotildees sintaacuteticas da maacutexima

A maacutexima que estamos analisando apresenta cinco tempos fortes muitos

homens (πολλοὶ ἄνθρωποι polloi anthropoi) tomados de coragem (θαρρῶσιν

tharrosin) arrogacircncia (φρόνημα fronema) tomados de pavor (δείσωσιν deisosin)

medo (φόβον fobon) e dois tempos fracos quando poreacutem quando (ὅταν μὲν

ὅταν δὲ) Os tempos fracos conduzem nosso modo de ler o texto estabelecendo a

sintaxe do conceito no caso formulando uma antiacutetese (quando poreacutem quando) jaacute

os tempos fortes satildeo os termos que determinam a substacircncia da maacutexima no caso e

revelam que tipo de relaccedilatildeo semacircntica se estabelece no conceito Temos nesta maacutexima a

relaccedilatildeo de comparaccedilatildeo o primeiro termo polloi anthropoi eacute o sujeito da maacutexima o

termo que a maacutexima procura definir Eacute este termo que serve de referecircncia para os outros

termos fortes tharrosin fronema deisosin fobon (ser tomado de coragem e arrogacircncia

ser tomado de pavor e medo) Estes quatro termos satildeo confrontados e o resultado de tal

confronto expressa a definiccedilatildeo do primeiro termo Assim estes termos constituem os

verdadeiros esteios da relaccedilatildeo de antiacutetese desse modo o primeiro termo eacute o sujeito da

maacutexima enquanto que os outros termos do tempo forte satildeo seus predicados que o

qualificam

Aleacutem disso a maacutexima eacute construiacuteda de modo preciso com a ideia de oposiccedilatildeo

sendo repetida pelas estruturas linguiacutesticas marcando a antiacutetese formulada pela

maacutexima Aleacutem da oposiccedilatildeo dos tempos fracos haacute a oposiccedilatildeo morfossintaacutetica

representada a-) pelos verbos na terceira pessoal do plural do subjuntivo (tharrosin

deisosin) b-) pelos verbos na terceira pessoa do plural do indicativo (parekhontai

kektentai) c-) os complementos verbais e seus adjuntos no acusativo estas repeticcedilotildees

reforccedilam a antiacutetese e criam o efeito de espetaacuteculo da maacutexima Construiacuteda desse modo

a maacutexima estetiza o discurso do orador e torna-o mais convincente

Ao observarmos as outras ocorrecircncias na Ciropedia em que Ciro profere

maacuteximas em diaacutelogos com outras personagens percebemos que elas satildeo formuladas

com o objetivo de Ciro convencer seus aliados sobre determinado ponto Eis alguns

146

exemplos no Livro 3319 Ciro dialoga com Ciaxares a respeito da necessidade de

iniciar o combate contra os Assiacuterios imediatamente e entatildeo formula a maacutexima

Conforme meu pai sempre dizia tu dizes e os outros todos estatildeo de acordo que as

batalhas satildeo decididas mais pelos espiacuteritos do que pela forccedila dos corpos 182ldquo no Livro

3350 apoacutes o persa Crisantas afirmar a necessidade de Ciro exortar seus soldados Ciro

o rebate afirmando que ldquoNenhuma exortaccedilatildeo por mais bela que seja produziraacute em um

dia ouvintes corajosos que jaacute natildeo sejam corajososrdquo 183 O interessante desta maacutexima eacute

que ela eacute proferida logo apoacutes o narrador nos apresentar pela primeira e uacutenica vez um

discurso do rei Assiacuterio com o qual ele tenta incutir coragem em seus soldados Os

rumores dos discursos do rei chegaram aos soldados persas e o pedido de Crisantas

demonstra o temor que os rumores causavam nas tropas Ciro que ao longo de toda

obra discursa aos seus soldados buscando incentivaacute-los e exortaacute-los neste momento

relembra a Crisantas que os belos discursos natildeo decidiratildeo a batalha mas o fato de os

persas estarem preparados para a batalha pois foram educados em um sistema que

previa a formaccedilatildeo de soldados exemplares no Livro 539 Ciro dialoga com Goacutebrias a

respeito de Gadatas e da necessidade de tornar este assiacuterio seu aliado pois ldquoNa guerra

nenhuma coisa melhor se pode fazer aos amigos do que fingir ser seu inimigo nem

mais mal aos seus inimigos do que fingir ser seu amigordquo184 no Livro 5511 Ciro se

utiliza de uma maacutexima procurando dissuadir as criacuteticas de seu tio Ciaxares que

enciumado das conquistas de Ciro acreditava que este desejava usurpar-lhe a soberania

da Meacutedia Ciro contesta os temores de Ciaxares e critica o modo com que ele estava

tratando seus subalternos medos e lhe lembra que ldquoFatalmente quem aterroriza a

muitos muitos inimigos produz quem a todos se mostrar violento ao mesmo tempo

todos se lanccedilam em concoacuterdia contra elerdquo185 na sequecircncia no Livro 5541 jaacute desfeita a

sua animosidade Ciaxares convoca Ciro para jantar poreacutem este o admoesta a convocar

tambeacutem os principais aliados pois ldquoQuando imaginam que satildeo negligenciados

enquanto os bons soldados tornam-se muito mais covardes os maus soldados tornam-

182 No original ltὡςgt καί ὁ πατὴρ αἰεὶ λέγει καὶ σύ φῄς καί οἱ ἄλλοι δὲ πάντες μολογοῦσιν ὡς

αἱ μάχαι κρίνονται μᾶλλον ταῖς ψυχαῖς ἤ ταῖς τῶν σωμάτων ῥώμαις (Cirop 3319) 183 No original οὐδεμία γάρ οὕτως ἐστί καλή παραίνεσις ἤτις τοὺς μὴ ὄντας ἀγαθοὺς

αὐθημερὸν ἀκούσαντας ἀγαθοὺς ποιήσει(Cirop 3350) 184 No original οὔτε γὰρ ἃν φίλους τις ποιήσειεν ἅλλως πως πλείω ἀγαθά ἐν πολέμῳ ἤ

ηολέμιος δοκῶν εἶναι οὕτrsquo ἄν ἐχθρούς πλείω τις βλάψειεν ἄλλως πως ἢ φίλος δοκῶν εἶναι (Cirop 539) 185 No original Ἀνάγκη γάρ διὰ τό πολλούς μέν φοβεῖν πολλοὺς ἐχθροὺς ποιεῖσθαι διὰ δὲ

τό πᾶσιν ἄμα χαλεπαίνειν πᾶσιν αὐτοῖς ὁμόνοιαν ἐμβάλλειν (Cirop 5511)

147

se muito mais insolentesrdquo186 no Livro 7118 Ciro em diaacutelogo com Abradatas procura

incentivaacute-lo agrave batalha afirmando que se vencerem a batalha todos diratildeo doravante que

ldquoNada eacute mais proveitoso do que a coragemrdquo187 no Livro 7211 na cena em que Ciro se

encontra com Creso que analisamos no Capiacutetulo 3 de nossa Dissertaccedilatildeo Ciro discute

com Creso os aspectos negativos da praacutetica do saque pois no saque ldquoEu sei bem que os

mais covardes levariam vantagemrdquo 188 Esta eacute a uacutenica passagem da Ciropedia em que

Ciro dialoga com algum inimigo

Essas satildeo algumas maacuteximas que Ciro formula em diaacutelogo com outras

personagens da trama Em todas essas ocorrecircncias Ciro se utiliza das maacuteximas para

convencer seus interlocutores da verdade de suas palavras estabelecendo desse modo

um niacutetido contraste entre a sua sabedoria e a de seus interlocutores O uso da maacutexima

reflete a posiccedilatildeo de superioridade de Ciro com relaccedilatildeo aos seus interlocutores uma vez

que a sequecircncia da narrativa demonstra que Ciro estava com a razatildeo Como afirma Ciro

a Ciaxares ldquoQuando eacute preciso persuadir aquele que consegue o maior nuacutemero de

concordantes para noacutes justamente deve ser distinguido como o melhor orador e o mais

eficazrdquo189 (Cirop 5546) e Ciro para ser o melhor na arte de persuadir se utiliza das

maacuteximas com recorrecircncia

b-) discurso para os soldados

Passemos agora a analisar um segundo caso quando Ciro dirige-se a seus

soldados em longos discursos A primeira diferenccedila entre estas ocorrecircncias e as

anteriores e que legitima a separaccedilatildeo que fizemos em nossa anaacutelise eacute a posiccedilatildeo do

interlocutor no discurso No caso do diaacutelogo com outras personagens noacutes temos um

diaacutelogo em que as duas instacircncias (locutorinterlocutor) estatildeo claramente definidas e

posicionadas participantes ativos do diaacutelogo Aleacutem disso e por isso abre-se a

perspectiva de um contato dialoacutegico real no qual as outras personagens podem

discordar das formulaccedilotildees de Ciro A proacutepria aceitaccedilatildeo por parte das personagens

secundaacuterias das formulaccedilotildees de Ciro o que em geral ocorre eacute em si tambeacutem um

186 No original ἀμελεῖσθαι δὲ δοκοῦντες στρατιῶται οἱ μὲν ἀγαθοὶ πολὺ ἀθυμότεροι

γίγνονται οἱ δὲ πονηροὶ πολὺ ὑβριστότεροι (Cirop 5541) 187 No original μηδὲν εἶναι κερδαλεώτερον ἀρετῆς (Cirop 7118) 188 No original εὖ οἶδ ὅτι οἱ πονηρότατοι πλεονεκτήσειαν ἄν (Cirop 7211) 189 No original ὅταν πεῖσαι δέῃ ὁ πλείστους ὁμογνώμονας ἡμῖν ποιήσας οὗτος δικαίως ἂν

λεκτικώτατός τε καὶ πρακτικώτατος κρίνοιτο ἂν εἶναι (Cirop 5546)

148

aspecto dialoacutegico da essecircncia do diaacutelogo jaacute que a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo satildeo as

respostas miacutenimas a um discurso

Nos discursos proferidos por Ciro aos seus soldados em nossa opiniatildeo o caraacuteter

dialoacutegico desaparece Os soldados natildeo emitem opiniatildeo a respeito das determinaccedilotildees de

seu liacuteder e as suas ideias natildeo entram em um real campo de contato dialoacutegico com o

discurso de Ciro Ciro como liacuteder estaacute em um pavimento superior ao de seus soldados

pavimento que lhe permite que o discurso seja contemplado e seguido e natildeo

desautorizado ou contestado A maacutexima portanto deve ter outra funccedilatildeo que a funccedilatildeo

persuasiva que encontramos nas ocorrecircncias anteriores

Analisemos o discurso proferido por Ciro no Livro 7572-86 Haacute neste

discurso a maior concentraccedilatildeo de maacuteximas na Ciropedia que se configuram tanto

como maacuteximas de guerra como maacuteximas gerais Esse discurso eacute proferido apoacutes a

tomada da Babilocircnia ou seja eacute o fim da carreira militar de Ciro descrita na Ciropedia

O Livro 8 eacute inteiramente dedicado agrave construccedilatildeo do Impeacuterio Persa e a narrativa portanto

comeccedila a tratar de uma nova temaacutetica Isso justifica o fato de este discurso ser a uacuteltima

vez em que Ciro profere maacuteximas de guerra Suas preocupaccedilotildees a partir deste

momento passaratildeo a ser o modo como conduzir o seu governo e natildeo mais como

conduzir soldados No entanto jaacute neste discurso algumas das preocupaccedilotildees futuras satildeo

realccediladas

Ciro inicia o discurso agradecendo aos deuses pelas daacutedivas conseguidas pelo

exeacutercito persa ndash terras extensas e feacuterteis (γῆν πολλὴν καὶ ἀγαθήν gen pollen kai

agathen) casas (οἰκίας oikias) etc Em seguida profere a primeira maacutexima que se

refere ao γέρας (geras) as recompensas ou espoacutelios de guerra Ciro diz a seus soldados

que

[] νόμος γὰρ ἐν πᾶσιν ἀνθρώποις ἀίδίος ἐστιν ὅταν

πολεμούντων πόλις ἁλῳ τῶν ἑλόντων εἷναι καὶ τά σώματα

τῶν ἐν τῇ πόλει καὶ τὰ χρήματα [] (Cirop 7572)

[] pois eacute lei eterna para todos os homens quando uma cidade eacute tomada estando em guerra dos conquistadores satildeo tanto o corpo como os bens dos cidadatildeos []

A maacutexima vincula-se ao comentaacuterio anterior de Ciro no iniacutecio do discurso mas

e mais importante eacute de algum modo um convite para que os persas participem do novo

projeto de Ciro a construccedilatildeo de seu Impeacuterio Os conquistadores tecircm agora a

149

responsabilidade de ajudar Ciro na construccedilatildeo de seu Impeacuterio uma vez que os corpos e

os bens dos cidadatildeos submetidos pela guerra satildeo seus espoacutelios ou seja suas riquezas

A maacutexima eacute construiacuteda por dois blocos semacircnticos o primeiro (νόμος γὰρ ἐν πᾶσιν

ἀνθρώποις ἀίδίος ἐστιν) se configura segundo a terminologia de Lardinois (1997)

como identity of the owner que deve ser entendida como a identidade do criador da

maacutexima Esse tipo de discurso fornece agrave maacutexima a sua legitimidade pois a partir dele

natildeo se compreenderaacute a maacutexima como produto de seu locutor imediato fruto de um

conhecimento particular e subjetivo do mundo mas como um conhecimento tradicional

e eterno cuja formulaccedilatildeo eacute muito anterior ao momento de sua enunciaccedilatildeo no discurso

O locutor seraacute apenas um veiacuteculo para expressar a maacutexima jaacute antes formulada e

possivelmente conhecida

O segundo bloco semacircntico (ὅταν πολεμούντων πόλις ἁλῳ τῶν ἐλόντων

εἷναι καὶ τά σώματα τῶν ἐν τῇ πόλει καὶ τὰ χρήματα) eacute o conceito da maacutexima

formado por cinco tempos fortes πόλις-πολεμούντων (polis-polemounton) ἐλόντων

(elonton) πόλει (polei) σώματα (somata) χρήματα (khremata) no qual os quatro

uacuteltimos termos estabelecem uma relaccedilatildeo de equivalecircncia formando o predicado do

primeiro termo sujeito da maacutexima A polis (cidade) sujeito da maacutexima torna-se no

contexto da guerra um objeto que passa das matildeos dos vencidos para as dos

conquistadores Neste caso kremata (bens) e somata (corpos) que constituem as

propriedades do cidadatildeo-livre tornam-se tambeacutem objetos dos conquistadores

destituindo assim o cidadatildeo da sua condiccedilatildeo de homem livre Jaacute o termo polemounton

estando em guerra estabelece o contexto em que a maacutexima eacute vaacutelida limitando-a

portanto ao contexto da guerra

Na sequecircncia de seu discurso Ciro reflete o quanto eacute mais faacutecil conquistar do

que manter as coisas conquistadas Nesta reflexatildeo Ciro retoma o valor do trabalho

(ponos) da moderaccedilatildeo (sophrosune) da temperanccedila (enkhrateia) valores que desde a

infacircncia a educaccedilatildeo persa incutira nele e por toda a narrativa demonstraram ser vitais

na vitoacuteria persa sobre os inimigos Ciro entatildeo formula a segunda maacutexima do discurso

(Livro 7575) ldquoPois natildeo basta que os homens sejam bons no iniacutecio para permanecer

bons se natildeo se ocupar com isso ateacute o fimrdquo190 Esta maacutexima apresenta apenas o conceito

sem discursos introdutoacuterios ou de validaccedilatildeo da maacutexima isso porque a maacutexima estaacute 190 No original Οὐ γὰρ τοι τὸ ἀγαθοὺς ἄνδρας γενέσθαι τοῦτο ἀρκεῖ ὥστε καὶ διατελεῖν ἤν μή

τις ἀυτοῦ τέλους ἐπιμελῆται (Cirop 7575)

150

relacionada com todo o conjunto de reflexatildeo anterior e posterior agrave formulaccedilatildeo da

maacutexima a reflexatildeo valida a maacutexima e tambeacutem a explica Esta eacute uma maacutexima

deceptiva na qual os predicados dessacralizam a imagem do sujeito da maacutexima

(ἀγαθοὺς ἄνδρας agathous andras) Nesta maacutexima mais do que os tempos fortes ndash

διατελεῖν (diatelein) ἐπιμελῆται (epimeletai) ndash satildeo os tempos fracos (Οὐhellip ἀρκεῖ

ἤν μή τέλους) que determinam a sua dessacralizaccedilatildeo pois estes termos impotildeem

concessotildees agrave realizaccedilatildeo do sujeito da maacutexima que eacute ser homens corajosos Ser corajoso

natildeo eacute uma essecircncia inata e imoacutevel no homem poreacutem o resultado de um exerciacutecio que

deve ser continuamente aplicado

Como acima afirmamos a maacutexima relaciona-se com alguma reflexatildeo tanto

anterior a sua formulaccedilatildeo quanto posterior Desse modo na sequecircncia do discurso Ciro

utiliza-se de comparaccedilotildees para justificar a maacutexima acima assim como as artes (τέχναι

tekhnai) quando negligenciadas tornam-se sem valor (μείονος ἄξιαι γίγνονται

meionos aksiai gignontai) e os corpos em boa forma (τὰ σώματά γε τὰ εὖ ἔχοντα

ta somata ge ta eu ekhonta) quando se entregam agrave preguiccedila (ῥᾳδιουργίαν

raidiourgian) tornam-se novamente em mau estado (πονήρως πάλιν poneros palin)

as virtudes tambeacutem se convertem em viacutecios (πονηρίαν ponerian) quando se abandona

a sua praacutetica (ἀνῇ τὴν ἄσκησιν anei tem askesin) A partir destas comparaccedilotildees Ciro

revela qual o seu verdadeiro temor expresso em duas maacuteximas uma subsequente a

outra primeiramente Ciro formula que ldquoPois considero de um lado um grande

trabalho conquistar o poder mas de outro lado ainda maior conservaacute-lo depois de

conquistadordquo191 (Livro 7576) Nesta maacutexima comparativa o conceito eacute introduzido

pelo bloco semacircntico γὰρ οἶμαι (gar oimai) que estabelece Ciro natildeo soacute como o

locutor da maacutexima como tambeacutem seu formulador Deste modo este bloco semacircntico se

configura tanto como um tying phrase quanto um identity of the owner

Jaacute a segunda maacutexima natildeo apresenta nenhum tipo de discurso introdutoacuterio

iniciando-se diretamente no conceito da maacutexima ldquoPois frequentemente de um lado a

conquista ocorreu provocada soacute pela coragem mas de outro preservar as conquistas

191 No original μέγα μὲν γὰρ οἶμαι ἔργον καὶ τὸ ἀρχὴν καταπρᾶξαι πολὺ δ ἔτι μεῖζον τὸ

λαβόντα διασώσασθαι (Cirop 7576)

151

natildeo se alcanccedila sem moderaccedilatildeo nem sem temperanccedila nem sem grande diligecircncia192rdquo

(Livro 7576) Desse modo esta maacutexima ao contraacuterio da anterior se estabelece como

um conhecimento para aleacutem da narrativa legitimando natildeo soacute toda a reflexatildeo mas

tambeacutem a maacutexima anterior O conceito desta maacutexima comparativa eacute expresso pela

oposiccedilatildeo entre as virtudes de um lado a coragem (tolma) e de outro a moderaccedilatildeo

(sophrosune) temperanccedila (enkrateia) e diligecircncia (epimeleia) retomando a oposiccedilatildeo jaacute

expressa na reflexatildeo anterior A reflexatildeo portanto se fecha na maacutexima o conceito

condensa o todo e se torna um espetaacuteculo expressivo

Estas trecircs virtudes aliadas a outras que desde o iniacutecio da Ciropedia satildeo

constantemente afirmadas como essenciais seratildeo retomadas a partir deste passo no

discurso de Ciro A preocupaccedilatildeo de Ciro ao incutir em seus soldados a ambiccedilatildeo de bem

governar seus suacuteditos eacute a de que seus soldados natildeo desprezem a praacutetica destas virtudes

pois foi esta praacutetica que garantiu a eles a supremacia frente aos inimigos

No Livro 81 que narra os primeiros afazeres de Ciro como liacuteder de seu Impeacuterio

o narrador nos conta como Ciro procurava persuadir seus suacuteditos a seguirem a praacutetica da

piedade da justiccedila da obediecircncia da moderaccedilatildeo e da temperanccedila as principais virtudes

da educaccedilatildeo persa Enquanto no Livro 88 o narrador no epiacutelogo da obra afirma que a

decadecircncia do Impeacuterio Persa se deve ao abandono da praacutetica destas virtudes O discurso

de Ciro portanto indica alguns movimentos subsequentes da narrativa e esta eacute uma

particularidade interessante das maacuteximas analisadas da Ciropedia elas ao mesmo

tempo em que se relacionam com a narrativa anterior agrave sua locuccedilatildeo ndash pois satildeo os atos e

as experiecircncias que datildeo ensinamentos para que Ciro expresse e formule suas maacuteximas ndash

revelam os projetos futuros de Ciro e a sequecircncia da narrativa

Retornemos agrave anaacutelise do discurso de Ciro Preocupado portanto em garantir

que os soldados natildeo desprezem a praacutetica das virtudes Ciro os lembra de que agora que

satildeo conquistadores devem exercitar-se em dobro pois ldquoSabendo bem que quando

algueacutem tem numerosas coisas entatildeo haveraacute maior nuacutemero de invejosos de

conspiradores e de inimigosrdquo193 (Livro 7577) Para Ciro necessariamente todos os

homens sofrem pelos mesmos motivos (frio fome cansaccedilo etc) igualando os suacuteditos

192 No original τὸ μὲν γὰρ λαβεῖν πολλάκις τῷ τόλμαν μόνον παρασχομένῳ ἐγένετο τὸ δὲ

λαβόντα κατέχειν οὐκέτι τοῦτο ἄνευ σωφροσύνης οὐδ ἄνευ ἐγκρατείας οὐδ ἄνευ πολλῆς

ἐπιμελείας γίγνεται (Cirop 7576) 193 No original εὖ εἰδότας ὅτι ὅταν πλεῖστά τις ἔχῃ τότε πλεῖστοι καὶ φθονοῦσι καὶ

ἐπιβουλεύουσι καὶ πολέμιοι γίγνονται (Cirop 7577)

152

com os comandantes por isso eacute necessaacuterio que os comandantes se mostrem sempre

melhores (βελτίονας) que os seus suacuteditos e isto soacute ocorreraacute pela praacutetica das virtudes

Esse pensamento vem expresso na maacutexima ldquoMas sem duacutevida natildeo eacute conveniente ao

governante ser inferior aos governados194rdquo (Livro VII583) Aleacutem disso todo o

cuidado para natildeo se deixar dominar pelos suacuteditos vem expresso na maacutexima geral

Conquistar belas coisas natildeo eacute tatildeo difiacutecil como a dor de ser privado das coisas

conquistadas195 (Livro 7582)

Ciro reconhece todavia o quatildeo custoso eacute para seus homens depois de terem

suportado tantas fadigas durante a guerra continuar suportando-as depois de

vencedores da guerra por isso ele afirma que ldquo[] as boas coisas encantam tanto mais

quanto mais labores tiver sofrido para chegar a elas As fadigas satildeo os temperos das

boas coisasrdquo196 (Livro 7580) Esta maacutexima geral eacute interessante pois apresenta duas

maacuteximas interligadas formada por dois blocos poreacutem o segundo bloco ndash As fadigas satildeo

os temperos das boas coisas ndash tem maior alcance retoacuterico do ponto de vista da

expressividade pois ela condensa em sua forma a proacutepria maacutexima anterior Aleacutem disso

eacute uma maacutexima que funciona como validaccedilatildeo da outra maacutexima

No final do discurso de Ciro ele ainda profere mais duas maacuteximas gerais ambas

relacionadas agrave praacutetica da virtude principal tema de seu discurso a primeira maacutexima

determina que ldquo[] natildeo haacute outra proteccedilatildeo melhor do que ser belo e nobrerdquo197 (Livro

7584) enquanto a segunda maacutexima ldquoAo que estaacute separado da virtude nada conveacutem a

natildeo ser comportar-se bemrdquo 198 (Livro 7584)

Analisando este discurso procuramos compreender o uso das maacuteximas no

discurso proferido para os soldados Anteriormente referimos que no discurso ao

contraacuterio do que ocorre no diaacutelogo os interlocutores estatildeo em um niacutevel abaixo do

orador no caso Ciro e este portanto natildeo necessita de maacutexima para convencecirc-los a

fazer as suas vontades jaacute que sua posiccedilatildeo social imporia a obediecircncia Natildeo haacute a

necessidade de convencimento de persuasatildeo Aleacutem disso naturalmente seriacuteamos

194 No original Ἀλλrsquo οὐ δήπου τὸν ἄρχοντα τῶν ἀρχομένων πονηρότερον προσήκει εἴναι (Cirop 7583) 195 No original οὐ γὰρ τὸ μὴ λαβεῖν τἀγαθὰ οὔτω χαλεπόν ὥσπερ τό λαβόντα στερηθῆναι

λυπηρόν (Cirop 7582) 196 No original ὅτι τοσούτῳ τἀγαθὰ μᾶλλον εὐφραίνει ὅσῳ ἂν μᾶλλον προπονήσας τις ἐπ

αὐτὰ ἴῃ οἱ γὰρ πόνοι ὄψον τοῖς ἀγαθοῖς (Cirop 7580) 197 No original ὅτι οὐκ ἔστιν ἄλλη φυλακὴ τοιαύτη οἴα αὐτόν τινα καλὸν κάγαθὸν ὑπάρχειν (Cirop 7584) 198 No original τῷ δ ἀρετῆς ἐρήμῳ οὐδὲ ἄλλο καλῶς ἔχειν οὐδὲν προσήκει (Cirop 7584)

153

levados a interpretar estas maacuteximas como discurso exortativo a fim de que os soldados

se encorajem Entretanto o discurso exortativo aparece sob outras formas de locuccedilatildeo

que natildeo necessariamente a maacutexima Por isso natildeo podemos pensar apenas no caraacuteter

exortativo das maacuteximas como uma funccedilatildeo predominante das maacuteximas no discurso de

Ciro

Podemos entatildeo interpretar estas maacuteximas de dois modos primeiramente nelas

Ciro revela tanto suas intenccedilotildees e objetivos quanto principalmente suas preferecircncias

de comportamento O caraacuteter eacutetico da maacutexima estabelece portanto um modelo de

comportamento para os soldados comportamento este que os soldados devem seguir

caso queiram ser agradaacuteveis ao proacuteprio Ciro Desse modo os discursos de Ciro para

seus soldados tambeacutem satildeo uma oacutetima oportunidade para que o narrador possa

caracterizar Ciro uma vez que as maacuteximas revelam as preferecircncias de comportamento

Por outro lado devemos lembrar que segundo Aristoacuteteles as maacuteximas

produzem prazer aos ouvintes A relaccedilatildeo que Ciro estabelece com seus ouvintes eacute uma

relaccedilatildeo de cumplicidade como se estes estivessem em um mesmo niacutevel discursivo O

prazer do ouvinte surge agrave medida que ele se sente feliz em reconhecer na maacutexima um

conhecimento que ele mesmo jaacute intuiacutera estabelecendo portanto um forte traccedilo de

cumplicidade entre comandante e suacuteditos Cumplicidade entre o comandante e seus

suacuteditos eacute uma das mais caracteriacutesticas peculiaridades do governo ideal de Ciro e que

mais o diferencia dos tiranos orientais da tradiccedilatildeo da literatura grega

53 O percurso de Ciro a formaccedilatildeo do διδάσκαλος199

A personagem no romance de formaccedilatildeo eacute uma grandeza moacutevel evolutiva A

formaccedilatildeo deve neste sentido revelar uma determinada mudanccedila na postura da

personagem e esta mudanccedila torna-se o ponto principal do conteuacutedo do romance o

proacuteprio material do romancista No capiacutetulo anterior demonstramos alguns aspectos

desta mudanccedila ou evoluccedilatildeo da personagem Ciro poreacutem nossa anaacutelise se limitou a

observar as estruturas que constituiacuteam a archaica do romance de formaccedilatildeo Nesta

199 διδάσκαλος (didaskalos) eacute aquele que ensina o mestre

154

subseccedilatildeo demonstraremos por fim que a locuccedilatildeo de maacuteximas eacute uma caracteriacutestica

importante no processo de formaccedilatildeo da personagem na Ciropedia As maacuteximas satildeo

recursos descritivos com os quais Xenofonte apresenta a profundidade da sua

personagem Haacute de fato o uso do discurso indireto em algumas passagens poreacutem eacute

quase sempre por meio do discurso direto que conhecemos Ciro e que Ciro se deixa

conhecer

Observemos a seguir os quadros

Maacuteximas de guerras proferidas por Ciro LIVRO I - LIVRO II - LIVRO III 1 LIVRO IV - LIVRO V 9 LIVRO VI 4 LIVRO VII 8 LIVRO VII -

Quadro 2 Relaccedilatildeo por maacuteximas de guerra

Maacuteximas gerais proferidas por Ciro LIVRO I 3 LIVRO II 2 LIVRO III 1 LIVRO IV 1 LIVRO V 4 LIVRO VI 1 LIVRO VII 7 LIVRO VII 3

Quadro 3 Relaccedilatildeo por livro de maacuteximas gerais

A respeito do contexto das locuccedilotildees das maacuteximas podemos acrescentar que Ciro

natildeo formula nenhuma maacutexima de guerra nos dois primeiros livros da Ciropedia Suas

primeiras locuccedilotildees estatildeo expressas no Livro 33 em um diaacutelogo com Ciaxares poreacutem eacute

a partir dos Livros 55 que Ciro passa a se utilizar de maacuteximas com mais frequecircncia

Antes disso Ciro participara da expediccedilatildeo agrave Armecircnia e agrave Caldeacuteia (Livro 3) da

expediccedilatildeo da Assiacuteria (Livro 4) aleacutem de batalhas esparsas na Meacutedia (Livro 1) e na

Babilocircnia (Livro 5) Isso significa que a experiecircncia da guerra eacute fundamental para que

Ciro formule e se expresse por meio de maacuteximas O maior efeito retoacuterico do discurso

gnocircmico estaacute na relaccedilatildeo deste discurso com os atos e como afirma Aristoacuteteles soacute fica

155

bem ao homem experiente se expressar com maacuteximas Deste modo a personagem sofre

uma evoluccedilatildeo na qual a elocuccedilatildeo das maacuteximas eacute uma caracteriacutestica determinante na

figurativizaccedilatildeo desta evoluccedilatildeo

Com relaccedilatildeo agraves maacuteximas gerais Ciro as formula de forma esporaacutedica desde o

primeiro livro (Livro 16) todavia uma das maacuteximas proferidas por Ciro neste livro eacute

reformulada pelo seu pai Cambises200 Como afirmamos no capiacutetulo anterior ao longo

do Livro 1 Ciro passa por experiecircncias (tanto no acircmbito da guerra quanto no acircmbito

particular) em que demonstra erros de avaliaccedilatildeo e de conduta Estes erros seratildeo

corrigidos por seus mentores o avocirc Astiacuteages e o pai Cambises Do mesmo modo

quando Ciro afirma a seu pai ldquoE com efeito refletindo sobre essas coisas parece-me

observar que o que mais incita a obediecircncia eacute louvar e honrar o obediente e ao

desobediente desprezar e punir []rdquo201 (Cirop 1620) Essa maacutexima natildeo se concretiza

como uma verdade jaacute que seu pai iraacute em seguida refutaacute-la Esta maacutexima apresenta

valores de um verdadeiro tirano um deacutespota exatamente o contraacuterio do que Ciro se

revelaraacute no restante da narrativa mostrando assim novamente que os ensinamentos do

pai surtiram efeito Ciro portanto natildeo permanece inalterado com as circunstacircncias seu

espiacuterito se modifica e se aperfeiccediloa Ciro eacute representado como μαθητής (mathetes)

um disciacutepulo sempre pronto a aprender para melhor agir no futuro Haacute portanto

equiacutevocos de avaliaccedilatildeo por parte de Ciro poreacutem a sua reeducaccedilatildeo eacute fundamental na

continuidade da narrativa Assim como as maacuteximas de guerra as maacuteximas gerais

tornam-se mais comuns a partir do Livro V Observamos portanto que haacute na

Ciropedia a relaccedilatildeo entre experiecircncias e elocuccedilatildeo das maacuteximas e que elas constituem

desse modo uma importante faceta na construccedilatildeo da personagem Ciro

Agrave medida que a narrativa avanccedila e Ciro mostra-se um liacuteder natildeo soacute competente

e vencedor mas caracterizado como ideal a personagem passa a se expressar por

maacuteximas com mais regularidade Ciro entatildeo torna-se um διδάσκαλος o mestre que

passa a ensinar seus conhecimentos

200 No Capiacutetulo 4322 de nossa Dissertaccedilatildeo analisamos o papel de Cambises como mentor de Ciro e de como ele reavalia as afirmaccedilotildees de Ciro 201 No original οι δοκῶ τὸ προτρέπον πείθεσθαι μάλιστα ὂν τὸ τὸν πειθόμενον ἐπαινεῖν τε

καὶ τιμᾶν τὸν δὲ ἀπειθοῦντα ἀτιμάζειν τε καὶ κολάζειν (Cirop 1620)

156

Um exemplo desta passagem do aluno para o mestre ocorre na narrativa de

Panteacuteia e Abradatas202 Ciro ordena que Araspas seja o guarda de Panteacuteia No Livro

512-18 quando Araspas encontra-se com Ciro e lhe conta sobre a beleza de Panteacuteia

inicia-se a discussatildeo entre os dois a respeito do amor Ciro afirma que teme se apaixonar

pela bela dama de Susa pois a paixatildeo lhe impediria de cumprir as suas obrigaccedilotildees

Araspas retruca a Ciro e inicia a reflexatildeo na qual ele afirma que ldquoO amor de outro

lado estaacute subordinado agrave vontaderdquo203 (Cirop 5117) e para comprovar a verdade de

suas palavras ele a exemplifica dizendo que se o amor natildeo dependesse da vontade o

pai desejaria a filha o irmatildeo desejaria a irmatilde poreacutem o amor eacute um sentimento diferente

da fome da sede do sentir frio no inverno ou sentir calor no veratildeo pois nenhuma lei eacute

capaz de evitar que o homem tenha estes sentimentos enquanto a lei impede o incesto

Ciro para dissuadir seu soldado lhe diz ldquo[] pois enquanto que o fogo queima quem

estaacute proacuteximo os belos excitam tambeacutem quem os contempla de longe a ponto de arder

de paixatildeordquo204 (Cirop 5116)

A maacutexima eacute formada pela comparaccedilatildeo entre fogo (πῦρ pur) e belos (καλοὶ

kaloi) e pela semacircntica dos verbos queimar (ἁπτω hapto) e excitar (ὑφάπτω

huphapto) formados pelo mesmo radical ἅπτ-205 pois o verbo uphaptousin eacute composto

pela preposiccedilatildeo ὑπό + ἀπτω (hupo + apto) Na primeira frase (ὡς τό μὲν πῦρ τοὺς

ἁπτομένους καίει) o sentido do verbo hapto que estaacute no particiacutepio meacutedio acusativo

plural eacute ldquoascenderrdquo ou seja uma accedilatildeo concreta na segunda frase (οἱ δὲ καλοὶ καὶ

τούς ἄπωθεν θεωμένους ὑφάπτουσιν) o sentido do verbo huphapto que estaacute na

terceira pessoa do plural eacute ldquoexcitarrdquo ou seja accedilatildeo abstrata que reafirma o alcance do

amor que queima mesmo os que estatildeo longe Araspas no entanto despreza o conselho

de Ciro e afirma que mesmo que nunca parasse de contemplaacute-la natildeo haveria perigo de

ser subjugado pelo amor a tal ponto que faltasse com seus deveres Todavia o narrador

nos conta que agrave medida que Araspas contemplava Panteacuteia ele se apaixonava cada vez

202 A narrativa de Panteacuteia e Abradatas eacute uma narrativa secundaacuteria cujo tema principal eacute o amor do casal que luta contra alguns obstaacuteculos para se manter fieacutel Esta narrativa serviu de referecircncia para os romancistas gregos 203 No original Τὸ δrsquo ἐρᾶν ἐθελούσιόν ἐστιν (Cirop 5117) 204 No original ὡς τό μὲν πῦρ τοὺς ἁπτομένους καίει οἱ δὲ καλοὶ καὶ τούς ἄπωθεν θεωμένους

ὑφάπτουσιν ὥστε αἴθεσται τῷ ἔρωτι (Cirop 5116) 205 O verbo ὑφάπτουσιν eacute composto pela preposiccedilatildeo ὑπό + ἀπτω

157

mais por ela O narrador e a narrativa portanto confirmam que a avaliaccedilatildeo correta

sobre o amor era a de Ciro e natildeo a de Araspas

Portanto do mesmo modo que no iniacutecio da narrativa da Ciropedia a maacutexima de

Ciro eacute reformulada pelos ensinamentos de seu pai na cena entre Ciro e Araspas eacute Ciro

quem reformula a maacutexima proferida por Araspas Ciro portanto assume o papel que

antes era o do seu pai tornando-se tambeacutem uma espeacutecie de mentor Este aspecto

caracteriacutestico de Ciro fica ainda mais evidente durante a uacuteltima cena da narrativa (Livro

87) quando diante de seus familiares Ciro pronuncia um longo discurso dirigindo-se a

seus dois filhos no qual revisita todos os principais ensinamentos discorridos pela obra

Ciro ao estabelecer Cambises o primogecircnito como herdeiro do Impeacuterio Persa

daacute a Tanaoxares as satrapias da Meacutedia da Armecircnia e da Caldeacuteia regiotildees que antes da

construccedilatildeo do impeacuterio jaacute eram ou aliadas dos persas ou submetidas a eles Apoacutes

determinar sua sucessatildeo Ciro procura acalmar a vaidade de Tanaoxares demonstrando

que de um lado se ele eacute apenas um saacutetrapa de outro os trabalhos e os infortuacutenios do

seu irmatildeo imperador seratildeo muito maiores Depois afirma a Cambises que ldquoOs amigos

fieacuteis satildeo para os reis os cetros mais verdadeiros e mais confiaacuteveisrdquo206 (Livro 8713)

Poreacutem afirma que os homens natildeo satildeo leais por natureza mas que cada um deve criar as

suas lealdades Eacute interessante este comentaacuterio por demostrar demonstrar que todos

aqueles que na narrativa foram servos fieacuteis e leais a Ciro tiveram suas lealdades

conquistadas por ele A partir destes comentaacuterios Ciro ainda faz mais algumas reflexotildees

a respeito da lealdade dos homens afirmando que nenhum homem eacute mais leal a outro

homem do que o irmatildeo e termina esse tema de seu discurso com outra maacutexima Quem

zela pelo irmatildeo de si mesmo cuida207 (Livro 8715) Ciro continua seu discurso

versando sobre outros temas ndash sobre a imortalidade da alma sobre o devido respeito aos

deuses e sobre o desejo de ser cremado apoacutes a morte no final Ciro profere sua uacuteltima

maacutexima pouco antes de se despedir dos filhos Beneficiando aos amigos sereis capazes

de castigar os inimigos208 (L 8728)

Ciro termina a narrativa como um saacutebio mestre da verdade que depois de

experienciar uma vida repleta de sucessos pode ldquoespalhar a verdaderdquo conforme a

expressatildeo de Detienne ([sd])

206 No original οἱ πιστοὶ φίλοι σκῆπτρον βασιλεῦσιν ἀληθέστατον καiacute ἀσφαλέστατον (Livro VIII713) 207 No original Ἑαυτοῦ τοι κήδεται ὁ προνοῶν ἀδελφῳ (Livro VIII715) 208 No original τοὺς φίλους εὐεργετοῦντες καὶ τοὺς ἐχθροὺς δυνήσεσθε κολάζειν (L VIII828)

158

Concluiacutemos este capiacutetulo reafirmando que as maacuteximas na tessitura narrativa da

Ciropedia apresentam-se como uma instacircncia discursiva importante na caracterizaccedilatildeo

da personagem Ciro Ciro evolui de aprendiz para mestre e esta transformaccedilatildeo eacute

figurativizada na narrativa por meio da locuccedilatildeo de maacuteximas A anaacutelise do contexto de

locuccedilatildeo das maacuteximas demonstrou que os conhecimentos apreendidos pelas diversas

experiecircncias por que Ciro passa lhe permitem natildeo soacute reproduzir maacuteximas mas tambeacutem

as produzir As experiecircncias tanto na guerra quanto nas relaccedilotildees com as outras

personagens desenvolvem o comportamento do heroacutei da Ciropedia e este experiente

passa a ensinar os que o rodeiam por meio de maacuteximas As maacuteximas de Ciro que no

iniacutecio eram reformuladas pelos seus mentores no final da Ciropedia passam a ser

palavras de guia para seus filhos instituindo Ciro como um saacutebio mentor

Figura 4 Cilindro de Ciro cilindro de argila descoberto em 1879 e considerado a primeira declaraccedilatildeo dos direitos humanos da humanidade Fonte Foto de Marco Prins e J Lendering visualisada em httpwwwliviusorgct-czcyrus_Icyrus_cylinderhtml

159

6 Consideraccedilotildees finais

O final de um percurso revela em geral mais do que se esperava em seu iniacutecio

Apesar disso eacute inevitaacutevel a satisfaccedilatildeo de descobrir que algumas de nossas intuiccedilotildees

primevas revelaram-se verdadeiras e coerentes Este trabalho de anaacutelise da Ciropedia se

deve muito agraves intuiccedilotildees iniciais que no longo trajeto de formaccedilatildeo da Dissertaccedilatildeo

sempre clarearam a nossa visatildeo mesmo nos momentos de maiores dificuldades e

incertezas

Iniciamos nosso trabalho repletos de duacutevidas a respeito de como enfrentar os

problemas terminoloacutegicos a respeito do gecircnero do romance De que modo poderiacuteamos

usar uma terminologia moderna para tratar de uma obra literaacuteria produzida na

Antiguidade Quais as inevitaacuteveis consequecircncias de tal uso E principalmente o que

significa no acircmbito da literatura grega claacutessica uma obra ficcional em prosa Nossa

preocupaccedilatildeo era tornar plausiacutevel a argumentaccedilatildeo de que a Ciropedia efetua importantes

inovaccedilotildees na prosa ficcional da Antiguidade e por conseguinte na prosa ficcional

moderna podendo ser considerada uma das primeiras manifestaccedilotildees romanescas da

literatura Ocidental

A questatildeo eacute problemaacutetica uma vez que o romance (prosa ficcional) comeccedilou a

fazer parte do cacircnone literaacuterio apenas a partir dos seacuteculos XVIII e XIX e o termo

romance surgiu apenas no seacuteculo XII Assim os teoacutericos identificaram o romance como

uma manifestaccedilatildeo literaacuteria proacutepria dos tempos modernos sem precedentes na

Antiguidade O romance portanto eacute uma forma que natildeo se estrutura a partir do cacircnone

claacutessico e que por isso apresenta uma forma aberta sempre renovadora Aleacutem desse

caraacuteter sempre inovador tambeacutem identificava um tipo de mateacuteria em que a personagem

problemaacutetica se opunha agrave sociedade opressora proacutepria da sociedade burguesa

revolucionaacuteria Nestas circunstacircncias uma obra como a Ciropedia que apresenta em

sua forma o caraacuteter idealizado do heroacutei e a sua trajetoacuteria harmocircnica com a sociedade

dificilmente poderia ser classificada como um romance antes do romance A ausecircncia

do caraacuteter problemaacutetico entretanto da mateacuteria narrativa natildeo significa que do ponto de

vista da forma as correspondecircncias natildeo se acentuam com mais clareza

A teoria do romance de Bakhtin nos ajudou a identificar um ponto preciso nesta

discussatildeo Para o teoacuterico russo a problemaacutetica do indiviacuteduo com a sociedade eacute um tema

160

de grande produtividade no romance poreacutem natildeo eacute o uacutenico Assim o romance deve ser

compreendido principalmente a partir de questotildees estruturais como por exemplo a

representaccedilatildeo da personagem ou do cronotopo etc No entanto sem negar a

potencialidade do romance moderno Bakhtin natildeo nega tambeacutem que a base do

desenvolvimento da forma romanesca estaacute presente em algumas formas discursivas da

Antiguidade e da Idade Meacutedia Seria inoportuno neste momento retomar todas as

valiosas contribuiccedilotildees de Bakhtin para a teoria do romance Para nosso trabalho as duas

principais contribuiccedilotildees foram os conceitos de moderniazaccedilatildeo da histoacuteria e de

archaica

Quanto agrave modernizaccedilatildeo da histoacuteria em seu estudo Epos e Romance Bakhtin

(2002) afirma que a forma romanesca surge da desintegraccedilatildeo da distacircncia eacutepica entre

presente e passado Enquanto na epopeia o passado miacutetico surge como um fenocircmeno

fechado e destituiacutedo de autoria o passado no romance surge a partir de questotildees

colocadas pelo presente do autor Neste sentido um tema da histoacuteria natildeo eacute representado

pela fidelidade agrave histoacuteria em ordenar e descrever o passado tal qual ele aconteceu mas

eacute representado em vista de responder a questotildees do presente Desse modo o passado eacute

ficcionalizado e o factual e o veriacutedico abrem espaccedilo para a infiltraccedilatildeo do verossimil

Demonstramos no terceiro capiacutetulo de nossa Dissertaccedilatildeo que Xenofonte

ficcionaliza os dados histoacutericos a respeito da vida de Ciro Nossa anaacutelise privilegiou a

comparaccedilatildeo da narrativa apresentada por Xenofonte com a narrativa que Heroacutedoto faz a

respeito de Ciro em seu livro Histoacuterias Uma vez que natildeo podemos nos certificar de

outras possiacuteveis fontes com que Xenofonte pudesse ter trabalhado pudemos comprovar

a partir do conceito de intertextualidade que Xenofonte construiu sua narrativa

contrastando-a e dialogando diretamente com a narrativa de Heroacutedoto As Histoacuterias

funcionavam como um discurso de autoridade para Xenofonte e nesta nova versatildeo da

narrativa sobre Ciro era necessaacuterio suprimir o que contrastasse com a visatildeo idealizada e

encomiaacutestica narrada por Xenofonte que manipula portanto o material estabelecido

pela narrativa de Heroacutedoto

O resultado de tal manipulaccedilatildeo eacute uma narrativa idealizada em que o tema do

governo ideal caro agrave sua eacutepoca histoacuterica eacute constantemente levantado e respondido O

caraacuteter didaacutetico dessa ficcionalizaccedilatildeo visa menos recontar o passado a partir de

estrateacutegicas de validaccedilatildeo da narrativa ldquocomo de fato aconteceurdquo do que se dirigir como

exemplum para os leitores gregos do presente Desse modo em sua narrativa

Xenofonte-autor aproxima-se do passado inacabado rompendo a distacircncia eacutepica com

161

caraacuteter inacabado do presente Os exemplos que analisamos neste capiacutetulo demonstram

a tentativa de Xenofonte de recriar esse passado para construir um todo concreto e ideal

Natildeo eacute o passado o ponto de partida de Xenofonte mas a contemporaneidade que ldquodita

os pontos de vista e as orientaccedilotildees para certos valoresrdquo (BAKHTIN 1998 p418) e

neste sentido o passado eacute modernizado A Ciropedia portanto pode ser lida como um

romance

A partir disso entramos em uma segunda fase da nossa Dissertaccedilatildeo em que

procuramos demonstrar a relaccedilatildeo da Ciropedia com o romance de formaccedilatildeo moderno

uma vez que muitos criacuteticos classificavam-na como uma das primeiras manifestaccedilotildees

deste subgecircnero literaacuterio Contudo em nossa opiniatildeo natildeo havia uma anaacutelise eficaz que

justificasse tal classificaccedilatildeo Procuramos portanto em nossa anaacutelise privilegiar os

aspectos estruturais do gecircnero e neste sentido o conceito de archaica empregado por

Bakhtin (2010) foi fundamental A archaica eacute a estrutura de um gecircnero que estaacute sempre

presente e ainda que constantemente renovando-se permanece como caracteriacutestico da

forma

Procuramos identificar quais as estruturas miacutenimas que caracterizam o gecircnero do

Romance de formaccedilatildeo moderno e em seguida verificar se estas estruturas estavam

tambeacutem presentes na Ciropedia Analisamos cenas da narrativa como o afastamento da

casa materna a presenccedila de mentores a passagem por instituiccedilotildees educacionais os

erros de avaliaccedilatildeo da personagem principal e a visatildeo teleoloacutegica de educaccedilatildeo que

constituem experiecircncias tiacutepicas pelas quais o heroacutei passa no romance de formaccedilatildeo

(JACOBS 1989 apud MAAS 2000) Estes elementos estruturais natildeo aparecem de

forma estaacutetica mas se combinam em cenas bem organizadas e conduzem a evoluccedilatildeo da

personagem principal no decorrer da narrativa

Aleacutem disso verificamos que o heroacutei da Ciropedia como uma personagem tiacutepica

do romance de formaccedilatildeo natildeo eacute uma personagem estaacutetica mas eacute de algum modo

dinacircmica ou seja evoluiacute no decorrer da narrativa Esta evoluccedilatildeo fica patente quando

observamos a locuccedilatildeo das maacuteximas na obra uma vez que Ciro que no iniacutecio natildeo

formula maacuteximas passa a formular e a instruir os que o rodeiam tornando-se desse

modo um mestre da verdade passando de um inexperiente mathetes para um saacutebio

didaskalos Assim o heroacutei da Ciropedia portanto eacute uma ldquounidade dinacircmicardquo

(BAKHTIN 2010 p237) e se enquadra no tipo de personagem do romance de

formaccedilatildeo

162

Concluiacutemos nossa Dissertaccedilatildeo afirmando que a Ciropedia natildeo deve ser lida

como uma obra historiograacutefica e sim como uma obra de ficccedilatildeo em prosa Xenofonte

assim inovou na Literatura Grega rompendo com a tradiccedilatildeo da prosa claacutessica e

iniciando um novo caminho um caminho em que a prosa se assume ficcional

163

7 Traduccedilatildeo

A traduccedilatildeo aqui apresentada eacute uma traduccedilatildeo de serviccedilo ou escolar Isso significa

que nossa intenccedilatildeo ao propor tal empreitada natildeo eacute recriar em liacutengua vernaacutecula por

criteacuterios estiliacutesticos o texto grego mas sim apenas nos aproximar do texto original de

Xenofonte Julgamos necessaacuterio tal aproximaccedilatildeo uma vez que as traduccedilotildees para nossa

liacutengua ainda que competentes natildeo nos satisfaziam completamente quando comparadas

ao texto original Neste sentido procuramos manter sempre que possiacutevel os

componentes sintaacuteticos e semacircnticos ainda que tornassem o texto mais ldquotruncadordquo

Talvez um projeto de traduccedilatildeo integral da Ciropedia repensando o texto grego pelos

equivalentes vernaculares seja desenvolvido por noacutes uma vez que a empreitada eacute muito

atrativa Poreacutem isto satildeo cousas futuras

Como se trata de um trabalho de Mestrado natildeo houve tempo para que fosse feita

uma traduccedilatildeo integral dos oito livros da Ciropedia Por esse motivo pudemos traduzir

apenas o seu Livro I Entretanto neste livro se encontram todos os elementos discutidos

nesta Dissertaccedilatildeo ndash tanto a ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria quanto as estruturas da archaica

e por isso a sua traduccedilatildeo adequou-se aos objetivos desta Dissertaccedilatildeo

Utilizamos o texto grego estabelecido por E C Marchant editado pela

Clarendon (1910) comparando com o texto extabelecido por Marcel Bizos editado pela

Belles Lettres (1972)

CIROPEDIA LIVRO I

I [1] Ocorreu a noacutes certa vez o pensamento de quantas democracias foram dissolvidas

por aqueles que desejavam mais viver como cidadatildeos de algum outro regime do que na democracia e por sua vez de quantas monarquias quantas oligarquias foram aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam a tirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido e totalmente outros tanto quanto fosse o tempo que governaram satildeo admirados por terem se tornando homens saacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem disso que muitos em suas proacuteprias casas tanto quem tem numerosos servos como quem tem muito poucos nem mesmo os senhores de pouquiacutessimos servos conseguiam que a obediecircncia fosse observada

[2] Ainda sobre essas coisas pensaacutevamos que governantes eram tambeacutem os boieiros e os eguariccedilos e todos os que satildeo chamados pastores os quais podem com razatildeo ser considerados governantes dos animais que comandam Com efeito pareciacuteamos testemunhar todos esses rebanhos obedecendo aos pastores com mais boa vontade do que os homens aos governantes Pois os rebanhos marcham por onde quer que os pastores os conduzam pastam nas terras para

164

onde eles os levam e mantecircm-se afastados dos lugares que eles lhes vedam E quanto aos lucros produzidos por eles permitem que os pastores deles se utilizem da forma que desejarem Aleacutem disso jamais ouvimos que algum rebanho tenha conspirado contra os pastores nem por natildeo obedecer nem por natildeo lhes confiar o uso dos lucros mas os rebanhos satildeo mais bravios com os estranhos do que com quem os governa e tira proveito deles Os homens ao contraacuterio contra ningueacutem satildeo mais rebeldes do que contra aqueles em que percebem o desejo de governaacute-los

[3] Desde que entatildeo refletiacuteamos a respeito dessas coisas concluiacutemos que eacute da natureza humana que seja mais faacutecil governar todos os outros animais do que os homens Contudo quando observamos que existiu Ciro o persa que conservou numerosos homens obedientes a ele numerosas cidades numerosos povos a partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de que o governar os homens natildeo eacute das tarefas nem impossiacuteveis nem aacuterduas se algueacutem agir com habilidade Ao menos sabemos que a Ciro eram obedientes de bom grado uns estando distantes uma marcha de numerosos dias outros de meses e outros ainda que jamais o viram e mesmo aqueles que bem sabiam que natildeo o veriam todavia desejavam lhe obedecer

[4] Por isso distinguiu-se tanto dos outros reis seja dos que receberam os governos dos pais seja dos que o conquistaram por si mesmos tanto que o rei Cita embora numerosos fossem os citas natildeo conseguiria governar nenhum outro povo e se consideraria satisfeito se continuasse governante dos proacuteprios citas tambeacutem o rei Traacutecio em relaccedilatildeo aos traacutecios o rei Iliacuterio em relaccedilatildeo aos iliacuterios e ouvimos o mesmo dos outros povos Os da Europa aleacutem disso ainda hoje se dizem autocircnomos e independentes uns dos outros

Ciro encontrando os povos da Aacutesia do mesmo modo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito de persas e governou os medos com o bom grado destes e os hircanos tambeacutem com o bom grado destes mas subjugou os siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutedios os caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendia e a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e os magaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeo se saberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendo por mar os cipriotas e os egiacutepcios

[5] E de fato governou esses povos sem que falassem a mesma liacutengua que ele e nem uns com os outros e apesar de tudo pocircde estender-se sobre tatildeo vasta regiatildeo pelo temor que inspirava a ponto de causar medo em todos e ningueacutem se rebelar contra ele Pocircde tambeacutem incutir tal desejo de que todos fossem agradaacuteveis a ele que sempre consideravam justo ser guiados pelo seu juiacutezo Submeteu ainda povos tatildeo numerosos que percorrecirc-los eacute trabalhoso por onde quer que se comece a marchar a partir do palaacutecio real seja em direccedilatildeo da aurora seja em direccedilatildeo do poente seja em direccedilatildeo do norte ou do sul [6] Em vista deste homem ser digno de nossa admiraccedilatildeo refletimos qual era a sua origem qual natureza possuiacutea e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo que a tal ponto o conduziram a governar os homens Portanto quanto averiguamos e quanto julgamos ter compreendido sobre Ciro tentaremos narrar detalhadamente

II [1] Ciro dizem era filho de Cambises rei dos persas esse Cambises dos Persidas

descendia e os Persidas receberam esse nome graccedilas a Perseu Eacute consenso que a matildee foi Mandane e esta Mandane era filha de Astiacuteages rei dos Medos Ainda hoje louva-se e canta-se pelos baacuterbaros que Ciro era por natureza de aparecircncia beliacutessima com alma boniacutessima amantiacutessimo dos estudos e das honras de tal modo que suportava todas as fadigas e resistia a todos os perigos pelo amor agraves honras [2] Guarda-se a recordaccedilatildeo de que tinha essa natureza de corpo e de alma

165

Certamente foi educado nas leis dos persas Estas leis parecem comeccedilar dando a atenccedilatildeo ao bem puacuteblico natildeo onde comeccedilam a maioria dos estados Pois a maioria das cidades permite educar os filhos tal como se deseje e aos proacuteprios adultos levar a vida conforme desejem Em seguida ordenam a eles natildeo roubar nem furtar nem invadir os domiciacutelios nem bater em quem natildeo merece nem cometer adulteacuterio nem desobedecer a um magistrado e outras coisas desse tipo se algueacutem transgride alguma dessas leis impotildeem puniccedilatildeo a eles

[3] As leis persas entretanto agindo preventivamene cuidam para que desde o iniacutecio os cidadatildeos natildeo sejam capazes de desejar alguma maldade ou accedilatildeo vergonhosa E cuidam dessa maneira haacute para eles uma praccedila chamada Liberdade onde foram construiacutedos o palaacutecio real e as outras magistraturas Desse lugar os mercadores com seus produtos gritarias e vulgaridades foram expulsos a fim de que a desordem natildeo se misture com a dececircncia daqueles que se educando [4] A proacutepria praccedila que estaacute ao redor das magistraturas divide-se em quatro partes Uma delas eacute para os meninos uma para os efebos uma para os adultos e uma para os que jaacute passaram da idade do serviccedilo militar

Segundo a lei cada um se apresenta agrave sua seccedilatildeo os meninos e os adultos ao nascer do dia os de idade avanccedilada quando convier a cada um exceto em determinados dias quando eacute preciso que estejam presentes com os outros Os efebos tambeacutem dormem ao redor das magistraturas com os armamentos de infantaria exceto os casados Estes por um lado natildeo satildeo requesitados caso natildeo seja ordenado com antecedecircncia que estejam presentes mas natildeo eacute bom que estejam ausentes com frequecircncia

[5] Satildeo doze os chefes agrave frente de cada uma dessas seccedilotildees pois em doze satildeo divididas as tribos da Peacutersia Para o comando dos meninos satildeo escolhidos dentre os mais velhos aqueles que parecem capazes de tornar os meninos melhores Agrave frente dos efebos por outro lado aqueles entre os adultos que por sua vez pareccedilam capazes de tornar os efebos melhores No comando dos adultos aqueles que forem considerados capazes de proporcionar a eles o melhor cumprindo as ordens e as determinaccedilotildees do poder supremo Satildeo tambeacutem escolhidos os chefes para os mais velhos que tomam medidas necessaacuterias para que esses cumpram as coisas estabelecidas O que a cada idade eacute ordenado fazer contaremos detalhadamente a fim de que se torne mais evidente como eles cuidam para que os cidadatildeos sejam melhores

[6] Os meninos frequentando a escola passam o tempo aprendendo a justiccedila e dizem que vatildeo agrave busca de aprender isso do mesmo modo que entre noacutes dizem que vatildeo agrave busca de aprender as letras Os chefes deles passam a maior parte do dia julgando-os pois ocorrem entre os meninos como entre os adultos acusaccedilotildees muacutetuas de furto roubo violecircncia traiccedilotildees e injuacuterias e outras coisas parecidas [7] Se reconhecem neles que satildeo injustos punem Castigam tambeacutem se acaso descobrirem que eles estatildeo acusando injustamente Julgam ainda a falta que por causa dela os homens se odeiam bem mais mas processam menos a ingratidatildeo Pois se observam que algueacutem podendo expressar gratidatildeo natildeo expressa punem-no com severidade Crecircem pois que os ingratos satildeo mais negligentes com os deuses com os familiares com a paacutetria e com os amigos Entretanto nada parece estar mais junto da ingratidatildeo do que a impudecircncia pois esta parece ser de todas as vergonhas a guia [8] Ensinam ainda aos meninos a temperanccedila e contribui muito para aprender a ser moderado que observem os mais velhos ao longo de todo o dia vivendo com moderaccedilatildeo Ensinam tambeacutem a eles a obedecer aos chefes e muito contribui para isso que eles observem os mais velhos obedecendo aos chefes com rigor Ensinam aleacutem disso a moderaccedilatildeo no beber e no comer e muito contribui para isso que eles observem os mais velhos natildeo saindo para comer antes que os chefes os liberem e tambeacutem que os meninos natildeo se alimentem junto das matildees mas dos mestres quando as autoridades

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determinem Trazem de casa patildeo de trigo tempero e agriatildeo e para beber se algueacutem tem sede uma grande taccedila para tirar aacutegua do rio Ademais aprendem a atirar com arco e flecha e a lanccedilar dardos Os meninos fazem isso ateacute os dezessete anos de idade apoacutes isso eles passam para a classe dos efebos

[9] Os efebos por sua vez passam o tempo dessa maneira ao saiacuterem da classe dos meninos por dez anos dormem em torno das magistraturas como predissemos para proteger tanto a cidade quanto a prudecircncia pois essa idade parece ter necessidade de mais diligecircncia Durante o dia se colocam a disposiccedilatildeo das autoridades no caso de alguma necessidade em favor da comunidade E quando eacute preciso todos permanecem ao redor das magistraturas Quando o rei sai agrave caccedila leva metade dos guardas e faz isso muitas vezes no mecircs Os que vatildeo necessitam de arcos e flechas e junto com a aljava na bainha a espada ou um machado aleacutem de um escudo e duas lanccedilas uma para arremessar e a outra caso seja necessaacuterio para atacar com as matildeos [10] Em vista disso organizam em nome do Estado a caccedila e o rei como eacute chefe deles na guerra tambeacutem o eacute na caccedila e cuida para que os outros cacem porque esse exerciacutecio parece ser o mais propiacutecio para guerra pois habitua a levantar cedo e a suportar o frio e o calor exercita nas caminhadas e nas corridas e eacute necessaacuterio lanccedilar flechas e dardos numa fera quando ela surge de imprevisto E frequentemente eacute preciso excitar a alma quando algueacutem se coloca diante de uma fera robusta pois sem duacutevida alguma eacute preciso atacar quando ela se aproxima e se proteger quando ela ataca De modo que natildeo eacute faacutecil encontrar algo que acontecendo na guerra falte agrave caccedila

[11] Saem agrave caccedila levando uma refeiccedilatildeo que de um lado como eacute natural eacute mais abundante do que a dos meninos mas de outro eacute semelhante agrave deles Quando estatildeo caccedilando natildeo almoccedilam se tem alguma necessidade de permanecer mais tempo por causa de uma fera ou por qualquer outro motivo desejam demorar-se na caccedila entatildeo eles jantam a comida do almoccedilo e no dia seguinte caccedilam ateacute a ceia e calculam esses dois dias como um porque consomem o alimento de um uacutenico dia Fazem isso em razatildeo do habituar-se para que se tiver alguma necessidade na guerra poderatildeo fazecirc-lo E os dessa idade tecircm como alimento aquilo que caccedilarem se natildeo mastruccedilo Se algueacutem pensa que eles comem sem prazer quando tecircm com o patildeo apenas o mastruccedilo ou bebem sem prazer quando bebem aacutegua deve se lembrar como eacute prazeroso comer patildeo de cevada e patildeo de trigo quando se tem fome e como eacute prazeroso beber aacutegua quando se tem sede

[12] Por sua vez as seccedilotildees que permanecem passam o tempo exercitando-se nas outras coisas que aprenderam quando eram crianccedilas sobretudo no lanccedilar flechas e dardos e mantecircm-se em disputa uns com os outros Haacute tambeacutem competiccedilotildees puacuteblicas entre eles e se oferecem precircmios Se existir em algum dos grupos numerosos homens haacutebeis corajosos e obedientes os cidadatildeos louvam e honram natildeo soacute o arconte atual mas tambeacutem aquele que os ensinou quando eram crianccedilas As autoridades se servem daqueles efebos que permanecem e se houver alguma necessidade ou de montar-guarda ou de procurar criminosos ou correr atraacutes de ladrotildees entre outras coisas tanto quanto for trabalho de forccedila e agilidade Os efebos portanto se ocupam com essas coisas Depois que completam dez anos chegam agrave classe dos adultos

[13] A partir do momento que chegam nesta classe passam vinte e cinco anos dessa maneira primeiramente como os efebos se colocam agrave disposiccedilatildeo das autoridades se houver necessidade em prol da comunidade tanto quanto for trabalho de reflexatildeo e vigor Se haacute necessidade de servir como soldado em algum lugar os que foram educados dessa maneira fazem expediccedilotildees natildeo mais levando arco e flecha nem lanccedilas mas armas ditas de combate corpo-a-corpo couraccedila ao redor do peito e escudo na matildeo esquerda tal como os persas satildeo

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representados e na destra uma adaga ou espada curta E todos os magistrados satildeo escolhidos dentre eles exceto os professores das crianccedilas Depois de completarem vinte e cinco anos eles poderatildeo vir a ter algo mais que cinquenta anos de idade partem nesse momento para a classe dos que sendo mais velhos satildeo assim chamados

[14] Esses mais velhos por sua vez natildeo mais fazem expediccedilotildees no exterior e permanecendo na paacutetria julgam todas as coisas da comunidade e dos particulares E eles tambeacutem julgam as sentenccedilas de morte e elegem todos os magistrados E se algueacutem dos efebos ou dos homens adultos negligencia alguma das leis e cada um dos chefes ou qualquer outro que quiser denuncia-o os mais velhos tendo escutado a acusaccedilatildeo condenam e o julgado passa o resto da vida separado

[15] A fim de que toda a constituiccedilatildeo dos persas seja mostrada com mais evidecircncia recapitulo um pouco pois agora graccedilas ao que foi dito anteriormente poderaacute ser mostrado rapidamente Os persas dizem satildeo em torno de cento e vinte mil e nenhum deles estaacute excluiacutedo por lei das honras e dos cargos mas eacute permitido a todos os persas enviar seus filhos para as escolas puacuteblicas de justiccedila Mas certamente os que podem sustentar os filhos sem que eles trabalhem enviam os que natildeo podem natildeo enviam Aos que foram educados junto aos mestres puacuteblicos eacute permitido por lei passar a juventude na classe dos efebos mas aos que natildeo foram educados dessa maneira natildeo eacute permitido Aos que por sua vez permanecem na classe dos efebos cumprindo as leis a eles eacute permitido entrar na classe dos adultos e participar dos cargos e das honras e os que natildeo passam na classe dos efebos natildeo entram na classe dos adultos Os que resistem irrepreensiacuteveis na classe dos adultos esses chegam agrave classe dos mais velhos Desse modo entatildeo a classe dos mais velhos constitui-se por aqueles que atingiram todas as classes com honra essa eacute a constituiccedilatildeo que consideram que obedecendo se tornaratildeo os melhores

[16] Ainda hoje persistem testemunhos do modo de vida moderado dos persas e do exercitar-se habitualmente pois ainda hoje eacute vergonhoso para os persas escarrar e assuar o nariz e mostrar-se repleto de flatos e tambeacutem eacute vergonhoso aparecer em puacuteblico indo a algum lugar urinar ou para alguma outra coisa Natildeo poderiam fazer isso se natildeo dispusessem de um regime moderado e natildeo digerissem os liacutequidos exercitando-se de tal modo que sejam expelidos por qualquer outro lugar

Isso eacute o que podemos dizer a respeito dos persas em geral Narraremos agora as accedilotildees de Ciro que a narrativa comeccedilou por causa disso iniciando a partir da infacircncia

III [1] Ciro com efeito ateacute os doze anos ou pouco mais foi educado nessa paideia e

mostrava-se superando a todos os da sua idade tanto no aprender com rapidez as coisas que fossem necessaacuterias quanto no cumprir cada tarefa com nobreza e virilidade

Nesse tempo Astiacuteages mandou chamar sua filha e o filho dela pois desejava vecirc-lo jaacute que ouvira que ele era excelente A proacutepria Mandane parte ateacute o pai levando o filho Ciro [2] Logo que chegou Ciro reconheceu Astiacuteages como sendo seu avocirc e de imediato como era uma crianccedila amorosa por natureza beijava-o como algueacutem beijaria a antigos convivas e a antigos amigos E notou que ele estava enfeitado de acordo com o costume medo com contornos nos olhos pintado com arrebiques e de cabeleiras posticcedilas Todas essas coisas satildeo medas as tuacutenicas puacuterpuras os casacos os colares ao redor do pescoccedilo braceletes em torno dos punhos Aleacutem disso ainda hoje os persas em suas casas usam roupas muitas mais simples e tecircm um regime mais frugal

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Notando entatildeo a maquiagem do avocirc fixou os olhos nele e disse ldquoMatildee como eacute belo o meu avocircrdquo Tendo a matildee perguntado a ele qual dos dois o pai ou o avocirc parecia ser a ele o mais

belo Ciro respondeu ldquoMatildee entre os persas meu pai eacute muito mais belo seguramente dos quantos medos que

eu vi tanto nas estradas quanto na corte meu avocirc eacute o mais belordquo [3] O avocirc retribuindo-o vestiu-o com uma bela estola e honrou-o e enfeitou-o com

braceletes e colares e se ia sair agrave cavalo levava-o consigo sobre um cavalo de freios dourados como ele proacuteprio costumava ir Ciro como era uma crianccedila que amava as belezas e as honrarias se alegrou com a estola e se regozijou extremamente aprendendo a cavalgar pois na Peacutersia por ser difiacutecil criar cavalos e cavalgar no paiacutes que eacute montanhoso era muito raro ver um cavalo

[4] Astiacuteages jantando com a filha e Ciro querendo que a crianccedila comesse com o maacuteximo de prazer para que sentisse menos saudades de casa conduziu em torno dele guloseimas toda a sorte de molhos e alimentos Dizem que entatildeo Ciro disse

ldquoAvocirc quantas inquietaccedilotildees tecircm na ceia se eacute necessaacuterio a ti estender as matildeos sobre todas essas travessas e degustar do tipo de alimentosrdquo

ldquoMas quecirc ndash disse Astiacuteages ndash pois natildeo parece a ti ser muito mais gostosa esta ceia do que a que tem na Peacutersiardquo E Ciro visando responder a isso disse

ldquoNatildeo avocirc pois o caminho para saciar-se eacute para noacutes muito mais simples e muito mais direto do que para voacutes pois enquanto o patildeo e a carne nos conduzem a isso voacutes indo na mesma direccedilatildeo vos lanccedilais e perdendo-se em muitos giros para cima e para baixo chegais arduamente aonde noacutes desde haacute muito chegamosrdquo

[5] ldquoMas crianccedila erramos em torno disso e natildeo ficamos aflitos Tu contudo provando reconheceraacutes que eacute prazerosordquo

ldquoMas vejo-te oacute avocirc experimentando horror por estas comidasrdquo ldquoFilho por qual sinal tu dizes issordquo ldquoPorque vejo quando tocas no patildeo que tu natildeo limpas a matildeo em nada mas quando ao

contraacuterio toca em algum desses alimentos imediatamente limpa a matildeo nos guardanapos de modo que estava muito aborrecido por ter as matildeos cheias delesrdquo

[6] Depois disso Astiacuteages disse ldquoSe entatildeo pensas assim filho regala-te com a carne para que voltes robusto para casardquo Ao mesmo tempo em que dizia isso serviu a ele inuacutemeras carnes de animais selvagens e domeacutesticos Ciro assim que viu a numerosa carne disse ldquoDe fato avocirc tu me daacutes toda essa carne para que eu faccedila com elas o que eu quiserrdquo

[7] ldquoSim filho por Zeusrdquo Ciro pegando a carne distribuiu aos serviccedilais ao redor do avocirc dizendo a cada um ldquoIsso eacute para ti pois me ensinas de boa vontade a cavalgar para ti pois me daacutes a lanccedila e agora eu a tenho para ti pois serves meu avocirc nobremente e a ti pois honras minha matildeerdquo Dizia assim enquanto distribuiacutea as carnes que pegava

[8] ldquoA Sacas disse Astiacuteages o escanccedilatildeo a quem eu tenho muitiacutessima estima nada daacutesrdquo Sacas com efeito calhava de ser belo e de ter a funccedilatildeo de conduzir a Astiacuteages os que tivessem necessidade e de impedir quem ele julgasse que natildeo fosse oportuno ser conduzido E Ciro perguntou com petulacircncia como uma crianccedila que natildeo eacute tiacutemida ldquoPor que avocirc honra-o desse modordquo

Astiacuteages divertindo-se disse ldquoNatildeo vecircs quatildeo belo e honradamente ele verte o vinhordquo Os escanccedilotildees desses reis vertem o vinho com graccedila e servem com limpeza servem segurando a taccedila com trecircs dedos e entregam assim para que quem receber possa melhor apanhar a taccedila para beber

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[9] ldquoAvocirc ordena entatildeo a Sacas que me decircs a taccedila para que eu tambeacutem te servindo belamente o que beber conquiste-te se eu puderrdquo Ele ordenou-o a dar Ciro tomando a taccedila de tal modo enxaguou-a bem como vira Sacas fazer e de tal modo fixando o rosto com gravidade apresentou-se nobremente e deu a taccedila ao avocirc provocando na matildee e no avocirc muitas risadas E o proacuteprio Ciro pondo-se a rir atirou-se sobre o avocirc e enquanto o beijava disse

ldquoOacute Sacas estaacutes perdido Demitir-te-ei do cargo pois verterei o vinho melhor do que vocecirc e natildeo beberei o vinho delerdquo Com efeito os escanccedilotildees dos reis cada vez que lhes entregam a taccedila tiram um pouco dela para si com uma concha e vertendo o vinho na matildeo esquerda experimentam-no para que se algueacutem verteu veneno natildeo obtenha sucesso

[10] Depois disso Astiacuteages gracejando disse ldquoPorque Ciro imitando Sacas nas outras coisas natildeo sorveu o vinhordquo

ldquoPorque por Zeus temia que tivessem misturado veneno na cratera Pois quando tu recebeste os amigos nas festas de aniversaacuterio claramente observei que ele vos servia venenordquo

ldquoE de que maneira tu notavas issordquo ldquoPor Zeus pois via vos cambaleando o corpo e o juiacutezo Primeiramente o que natildeo

permites a noacutes as crianccedilas fazer voacutes mesmos o faziam Todos gritavam ao mesmo tempo e nada entendiacuteeis uns dos outros cantaacuteveis de modo muito risiacutevel e natildeo ouvindo com atenccedilatildeo o que cantaacuteveis julgaacuteveis cantar nobremente cada um deles falava de sua proacutepria forccedila em seguida se levantassem para danccedilar natildeo soacute natildeo danccedilavam no ritmo mas nem conseguiam endireitar-se Tu esqueceste-te totalmente de que tu eras o rei e os outros de que tu eras o governante pois nesse momento eu ao menos pela primeira vez entendi que isso com efeito era a igualdade de expressatildeo o que voacutes praticaacuteveis entatildeo Ao menos jamais voacutes vos calaacuteveisrdquo

[11] E Astiacuteages disse ldquoE o seu pai menino quando bebe natildeo se embriagardquo ldquoNatildeo por Zeusrdquo ldquoMas como ele fazrdquo ldquoEle sacia a sua sede e nenhum outro mal sofre pois penso avocirc natildeo eacute Sacas quem lhe

serve o vinhordquo A matildee entatildeo disse ldquoMas por que tu filho fazes guerra a Sacas desse modordquo ldquoPorque por Zeus disse Ciro odeio-o pois muitas vezes quando eu desejava correr

para junto do meu avocirc esse miseraacutevel me impedia Mas imploro avocirc daacute-me trecircs dias para chefiaacute-lordquo

ldquoE de que modo o comandariardquo disse Astiacuteages ldquoEstender-me-ia de peacute como ele na porta da entrada e cada vez que ele quisesse entrar

para o almoccedilo diria que ainda natildeo era possiacutevel encontrar-se com o almoccedilo pois ele estaria ocupado com algumas pessoas Em seguida quando ele chegasse para o jantar diria que o jantar estava a banhar-se e se estivesse com pressa para comer diria que a fome estava junto com as mulheres a fim de fazecirc-lo esperar como ele me faz esperar impedindo-me de estar junto a tirdquo

[12] Com tal alegria mostrava-se entre eles no jantar Durante o dia se percebesse que o avocirc ou o irmatildeo da sua matildee tivessem necessidade de algo era difiacutecil que outro fosse o primeiro a fazecirc-lo pois Ciro se alegrava extremamente agradando-os naquilo que pudesse

[13] Assim que Mandane se preparava para voltar para junto do marido Astiacuteages pedia a ela que deixasse Ciro Ela respondeu que sem duacutevida queria agradar em tudo ao pai em todo caso era difiacutecil pensar em deixar o menino contra a sua vontade Astiacuteages entatildeo disse a Ciro [14] ldquoMenino se permaneceres comigo primeiramente Sacas natildeo se colocaraacute agrave tua frente na porta de entrada para junto de mim mas cada vez que quiseres entrar estaraacutes comigo E serei grato a ti quanto mais frequente entrares para estares comigo Depois tu te serviraacutes dos meus

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cavalos e de todos os outros que quiseres e quando partires tu partiraacutes levando aqueles que tu quiseres Em seguida no jantar conforme tu desejes seguiraacutes o caminho que pareccedila a ti conduzir a moderaccedilatildeo Depois dou a ti as feras que agora estatildeo no parque e reunirei outras de todas as espeacutecies as quais assim que aprenderes a cavalgar perseguiraacutes e abateraacutes dardejando e flechando como homens grandes e fornecerei a ti crianccedilas como companheiros de jogos e qualquer outra coisa que desejares dizendo a mim natildeo seraacutes privadordquo

[15] Depois que Astiacuteages disse essas coisas a matildee perguntou a Ciro qual dos dois ele queria ficar ou ir embora Ele natildeo hesitou mas respondeu prontamente que queria ficar Tendo sido perguntado novamente pela matildee o porquecirc dizem que ele respondeu ldquoPorque em casa entre os da minha idade sou e tenho a reputaccedilatildeo de ser o melhor em lanccedilar dardos e flechas e aqui eu sei que no cavalgar sou inferior aos da minha idade E veja bem matildee que isto muito me aborrece Se me deixares aqui e eu aprender a cavalgar quando de um lado eu estiver na Peacutersia penso que para ti vencerei nos exerciacutecios de infantaria aqueles que satildeo os melhores de outro quando vier agrave Meacutedia aqui me esforccedilarei sendo o melhor do que os bons cavaleiros do avocirc para ser aliado dele na cavalariardquo

A matildee disse entatildeo [16] ldquoMas filho como aprenderaacutes a justiccedila aqui estando teus preceptores laacuterdquo

ldquoMas matildee eu certamente sei isso com precisatildeordquo ldquoComo tu sabesrdquo disse Mandane ldquoPor que o mestre jaacute me colocou para julgar os outros jaacute me tendo como preciso na

justiccedila E com efeito apenas uma vez tendo eu julgado de modo incorreto recebi golpes como castigo [17] O processo foi esse um menino grande possuindo uma tuacutenica pequena despojou um menino pequeno que possuiacutea uma tuacutenica grande e de um lado vestiu aquele com a sua e de outro vestiu a si mesmo com a daquele Eu portanto julgando-os entendi ser melhor para ambos que cada um ficasse com a tuacutenica que lhe melhor ajustava Acerca disso o mestre me bateu tendo dito que quando eu for ser o juiz do que se ajusta melhor entatildeo eacute conveniente agir de tal modo todavia quando for necessaacuterio julgar de qual dos dois eacute a tuacutenica disse que eacute preciso refletir de quem eacute a posse de acordo com as leis daquele que tomou agrave forccedila ou daquele que tem a posse por ter comprado ou fabricado para si Pois o que eacute conforme a lei eacute justo e o que age com violecircncia natildeo estaacute conforme agraves leis Ele sempre exortava ao juiz determinar o voto conforme agrave lei Eu assim mostro a ti matildee que sobre a justiccedila jaacute estudei com muito rigor Se com efeito eu tiver a necessidade de algo o avocirc me ensinaraacute isso em acreacutescimordquo

[18] ldquoMas filho natildeo satildeo as mesmas coisas aqui e na Peacutersia que satildeo acordadas como justas Pois seu avocirc de um lado faz-se deacutespota de todos na Meacutedia de outro na Peacutersia considera-se justiccedila possuir a igualdade E o teu pai eacute o primeiro a fazer o que foi ordenado pela cidade e a aceitar o que foi ordenado pois a medida dele eacute a lei natildeo a paixatildeo De modo que portanto natildeo morras tu sendo chicoteado quando em casa estiveres depois de chegares tendo apreendido da parte do avocirc a tirania na qual haacute a crenccedila de que eacute necessaacuterio possuir mais do que todos e eacute por isso contraacuterio a realezardquo

ldquoMas disse Ciro teu pai eacute o mais haacutebil em ensinar a possuir menos do que mais ou natildeo vecircs que ele ensinou a todos os medos a ter menos do que ele Assim fiques tranquila matildee pois nem teu pai nem nenhum outro me enviaraacute de volta me ensinando a ter mais do que os outrosrdquo

IV [1] De um lado Ciro tagarelava muitas coisas desse tipo de outro por fim partiu a

matildee Ciro entatildeo permaneceu e foi educado por ele E rapidamente misturou-se com os da sua

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idade de modo que se sentia em casa e rapidamente conquistou os pais deles agradando-os e dando mostras que se alegrava com os filhos deles assim se tivessem alguma necessidade do rei eles ordenavam aos filhos que procurassem Ciro para negociar com ele e Ciro naquilo que as crianccedilas precisassem dele por amor agrave bondade e agraves honras fazia de tudo para obter

[2] Astiacuteages para aquilo que Ciro pedisse a ele em nada podia resistir para lhe ser agradaacutevel Pois tendo ele adoecido jamais Ciro afastava-se do avocirc nem cessava de chorar mas era evidente a todos que temia muito que o avocirc morresse E durante a noite se Astiacuteages precisasse de alguma coisa Ciro era o primeiro a perceber e o mais diligente de todos para servir naquilo que imaginava lhe ser agradaacutevel desse modo conquistou completamente Astiacuteages [3] Era igualmente falastratildeo tanto graccedilas agrave educaccedilatildeo jaacute que era obrigado pelo mestre a narrar o que fazia e a receber da parte dos outros quando julgava quanto graccedilas a ser um amante do aprender e sempre perguntava aos presentes como calhavam das coisas se conduzirem e tanto quanto era indagado pelos outros por ser perspicaz respondia rapidamente De modo que nele todas estas coisas resultaram o haacutebito de falar muito Mas do mesmo modo que no corpo quantos sendo jovens ganham altura e todavia neles o manifesto frescor da juventude denuncia-lhes a pouca idade assim tambeacutem por causa da loquacidade de Ciro ele natildeo revelava imprudecircncia mas inocecircncia e ternura de sorte que se desejava ainda mais ouvi-lo do que se estivesse presente em silecircncio

[4] Conforme o tempo fazia-o progredir no tamanho para a hora de tornar-se adolescente com isso servia-se das palavras mais raramente e da voz mais suavemente pois ficava cheio de vergonha a ponto de corar quando se encontrava com os mais velhos e natildeo mais como um cachorrinho jogava-se sobre todos conduzindo-se com semelhante fogosidade Assim de um lado era mais circunspecto de outro nas reuniotildees era inteiramente gracioso

E pois agrave medida que os da sua idade rivalizavam frequentemente uns com os outros Ciro se sabia que era mais forte do que eles natildeo provocava os companheiros nisso do mesmo modo que se bem sabia-se inferior tomava a iniciativa dizendo fazer melhor do que eles e imediatamente dava o exemplo atirando-se sobre os cavalos e do alto lutava com o arco ou com a lanccedila e natildeo sendo ainda muito haacutebil no cavalgar ele quando vencido era o que mais ria de si mesmo [5] Como natildeo fugia de ser vencido e natildeo fazer aquilo em que era inferior poreacutem passava o tempo praticando para no futuro fazer melhor rapidamente natildeo soacute conseguiu a igualdade na equitaccedilatildeo entre os da sua idade como tambeacutem rapidamente os sobrepujou graccedilas ao amor ao trabalho bem raacutepido tambeacutem fez perecer os animais que estavam no parque perseguindo-os atirando e matando e em consequecircncia disso Astiacuteages natildeo mais tinha como reunir animais no para ele E Ciro tendo percebido que o avocirc querendo natildeo podia fornecer animais vivos disse a ele ldquoAvocirc porque eacute necessaacuterio a ti ter o estorvo de procurar animais Mas se me enviares agrave caccedila com o tio tudo quanto animal que eu ver consideraacute-los-ei criados para mimrdquo [6] Ainda que desejasse com veemecircncia ir agrave caccedila natildeo podia insistir como quando crianccedila mas aproximava-se com a maior timidez possiacutevel E quando antes censurava a Sacas por que natildeo o deixava ir para junto do avocirc ele agora era o seu proacuteprio Sacas pois natildeo se aproximava se visse que natildeo era oportuno e pedia a Sacas que quando fosse oportuno lhe fizesse um sinal Assim Sacas jaacute o amava excessivamente e os outros todos tambeacutem

[7] Quando entatildeo Astiacuteages percebeu que ele desejava com veemecircncia caccedilar fora enviou-o com o tio e como guardas enviou junto os mais velhos sobre cavalos a fim de que o protegessem de terrenos difiacuteceis e se algum animal selvagem aparecesse Ciro indagava com ardor para os que estavam lhe seguindo de quais os animais que era necessaacuterio natildeo se aproximar e de quais era necessaacuterio perseguir com coragem Eles diziam que ursos javalis

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leotildees e leopardos jaacute mataram a muitos que se aproximaram mas os cervos as gazelas os carneiros selvagens e os asnos selvagens eram inofensivos Diziam ainda que era necessaacuterio se proteger natildeo menos do que das feras dos terrenos difiacuteceis pois muitos jaacute se precipitaram do alto a baixo com os proacuteprios cavalos [8] E Ciro aprendia tudo isso com ardor

Poreacutem assim que viu que um cervo saltara esquecendo-se de todas as coisas que acabara de ouvir perseguia-o sem nada ver aleacutem do lugar para onde o cervo fugia E de alguma maneira o cavalo saltando com ele cai de joelhos e por pouco natildeo o lanccedilou por cima do pescoccedilo Entretanto Ciro resistiu com alguma dificuldade e o cavalo levantou-se de sorte que chegou na planiacutecie e tendo desferido o dardo abateu o cervo uma peccedila bela e grande Ciro regozijou-se excessivamente os guardas no entanto tendo avanccedilado a cavalo repreenderam-no dizendo quanto perigo passara e falaram que denunciar-no-iam Ciro entatildeo ficou em peacute tendo descido e ouvido essas coisas afligiu-se Mas quando percebeu um grito salta sobre o cavalo como possuiacutedo pelo ecircxtase e quando o viu agrave sua frente um javali vindo ao encontro lanccedila-se diretamente e entesando a lanccedila diretamente agrave testa e domina o javali

[9] Jaacute naquele momento o tio certamente repreendia-o vendo a grande imprudecircncia Ciro apesar de ser repreendido pedia tudo quanto ele obtivera e a permissatildeo de levar essas coisas para dar ao avocirc O tio entatildeo dizem disse

ldquoMas se ele vir o que tu perseguiste natildeo soacute a ti censuraraacutes como tambeacutem a mim por ter te permitidordquo

ldquoSe ele quiser respondeu Ciro que ele accediloite-me depois que eu decirc a ele E tu mesmo tio no que quiser castigue-me por causa disso no entanto faccedila-me esse favorrdquo

E Ciaxares concluindo disse ldquoFaccedila como quiseres pois agora tu pareces ser mesmo o nosso reirdquo

[10] Desse modo Ciro tendo levado as presas deu-as ao avocirc dizendo que as tinha caccedilado para ele Natildeo exibiu os dardos mas colocou os que estavam ensanguentados onde pensava que o avocirc veria Astiacuteages em seguida disse

ldquoFilho eu recebo com prazer tudo quanto tu me daacutes mas de fato natildeo preciso de nada destas coisas para tu te arriscaresrdquo

ldquoSe entatildeo tu natildeo precisas disse Ciro avocirc decirc-as para mim para que eu entregue aos da minha idaderdquo

ldquoBem Filho tomando estas coisas entregues para quem tu quiseres e tanto quanto das outras coisas tu desejesrdquo

[11] Ciro tendo pegado e levado as carnes as destribuiu enquanto dizia ldquoRapazes como com efeito falaacutevamos com frivolidade quando caccedilaacutevamos animais no parque Para mim ao menos parece ser igual como se algueacutem caccedilasse um animal acorrentado Primeiramente pois estavam em um lugar pequeno depois eram fracos e sarnentos e alguns deles eram coxos e outros mutilados Os animais selvagens nas montanhas e prados por sua vez quatildeo belos quatildeo grandes quatildeo esplecircndidos se mostravam E de um lado os cervos como os paacutessaros saltam para o ceacuteu e de outro os javalis como dizem dos homens corajosos atacam indo ao encontro e por causa da largura natildeo era possiacutevel erraacute-los Ao menos para mim parece que esses mortos satildeo mais belos do que aqueles animais vivos e encerrados Mas seraacute que os vossos pais permitiriam que voacutes saiacutessem agrave caccedilardquo

ldquoFacilmente disseram se Astiacuteages ordenasserdquo [12] E Ciro disse ldquoQuem intercederia a Astiacuteages por voacutesrdquo ldquoQuem disseram eacute mais capaz de convencecirc-lo do que turdquo

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ldquoMas natildeo por Zeus eu natildeo sei que homem eu me tornei pois natildeo sou capaz de falar e olhar o meu avocirc como podia antes Se progredir desse modo temo tornar-me completamente indeciso e insensato e quando era crianccedila eu parecia ser extraordinariamente haacutebil no falarrdquo

Os meninos disseram ldquoTu dizes uma coisa penosa se em nosso favor natildeo podes fazer nada seraacute necessaacuterio a noacutes que peccedilamos para algum outro aquilo que respeita a tirdquo

[13] Ouvido essas coisas Ciro ficou mordido e em silecircncio partiu e tendo encorajado a si mesmo a ousar apresentou-se Tramara uma maneira mais inofensiva de falar com o avocirc e obter dele o que ele e os outros todos desejavam Comeccedilou portanto dessa maneira

ldquoDiga-me avocirc se algum dos servos fugisse e tu o apanhasses o que farias com elerdquo ldquoQue outra coisa do que tendo aprisionado obrigaacute-lo a trabalharrdquo ldquoSe ele viesse ao contraacuterio espontaneamente como agiriasrdquo ldquoComo senatildeo depois de accediloitaacute-lo para que natildeo faccedila isso no futuro servir-me-ia dele

como desde o iniacuteciordquo ldquoTalvez entatildeo seja hora de ti te preparares para accediloitar-me pois estou planejando fugir

em segredo de ti levando meus colegas para a caccedilardquo ldquoFez bem em declarar pois te proiacutebo de te moveres daqui de dentro Que coisa

agradaacutevel seria se por causa de um pedaccedilo de carne eu viesse a perder o filho da minha filhardquo [14] Apoacutes ouvir isso Ciro obedeceu enquanto esperava aflito e chateado e permanecia

em silecircncio Astiacuteages em todo caso visto que reconhecia que ele estava aborrecido querendo agradaacute-lo levou-o para caccedila e reunindo muitos soldados da infantaria cavaleiros e crianccedilas saiacuteram juntos para um terreno bom de cavalgar e fizeram uma grande caccedila E regiamente estando presente ele mesmo proibiu que ningueacutem lanccedilasse antes que Ciro estivesse saciado das caccedilas Mas Ciro natildeo consentia com a proibiccedilatildeo e disse

ldquoMas avocirc se queres que eu cace com prazer permitas a todos os que estatildeo comigo que persigam e lutem com o melhor que cada um puderrdquo [15] Entatildeo Astiacuteages permitiu e pondo-se em peacute observava os competidores cheios de emulaccedilatildeo perseguindo e golpeando os animais E alegrava-se com Ciro que natildeo podia ficar em silecircncio por causa da felicidade mas como um jovem catildeo de boa raccedila bradava cada vez que se aproximava de um animal e exortava cada um chamando pelo nome Encantou-se tambeacutem vendo que ele tanto ria dos outros como tambeacutem os louvava sem notar nele o menor sinal de inveja Por fim levando muitos animais Astiacuteages foi embora E doravante de tal modo alegrou-se nessa caccedila que sempre que fosse possiacutevel saiacutea com Ciro e levava consigo muitos outros tambeacutem meninos por causa de Ciro Assim Ciro passava a maior parte do tempo sendo a causa de coisas boas e felizes para todos mas nunca de coisas ruins

[16] Quando Ciro tinha por volta dos quinze ou dezesseis anos de idade o filho do rei dos Assiacuterios estando para casar por esta eacutepoca desejou caccedilar Ouvindo que nas fronteiras da Assiacuteria com a da Meacutedia havia muitos animais natildeo caccedilados por causa da guerra para ali mesmo desejava ir A fim de caccedilar com seguranccedila tomou consigo muitos cavaleiros e peltastas prontos para expulsar para ele os animais da densa vegetaccedilatildeo para os campos cultivaacuteveis e adequados para cavalgar Chegado onde estavam as suas guarniccedilotildees e o forte ali fez a ceia desejando caccedilar na manhatilde seguinte [17] Assim que o entardecer chegou a tropa de revezamento cavaleiros e infantaria vieram da cidade para a proacutexima guarda Parecia-lhe portanto que numerosa armada estava agrave disposiccedilatildeo pois eram duas guarniccedilotildees juntas e tinha agrave sua disposiccedilatildeo numerosos cavaleiros e infantes Decidiu por isso que seria melhor saquear a terra dos medos e pensava que esse trabalho se mostraria mais ilustre do que a caccedila pois haveria grande abundacircncia de viacutetimas Desse modo tendo levantando cedo conduziu as tropas deixou

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atraacutes na fronteira os infantes em bloco e entatildeo avanccedilou com a cavalaria contra as guarniccedilotildees dos medos e mantendo junto consigo numerosos nobres ali permaneceu para que as guarniccedilotildees medas natildeo viessem em socorro contra os que atacaram Enviou as tropas apropriadas para atacar de um lado a outro e exortava que eles cercassem quem encontrassem e o conduzissem consigo Eles entatildeo faziam isso

[18] Astiacuteages ao ser informado que os inimigos estavam no paiacutes saiu em socorro para a fronteira com soldados ao seu redor e o proacuteprio filho como ele com os cavaleiros que ao seu redor e a todos os outros ordenou que fossem em socorro Quando viu os muitos homens dos assiacuterios em formaccedilatildeo de combate e os cavaleiros em repouso tambeacutem os medos ficaram em formaccedilatildeo Ciro vendo os outros saindo em socorro com todas as forccedilas reunidas saiu ele tambeacutem e pela primeira vez entatildeo veste as armas temendo que isso jamais ocorresse tanto desejava se armar dos peacutes agrave cabeccedila Era muito bonita e ajustava-se convenientemente nele pois o avocirc mandara fazer agrave medida do corpo Desse modo armado conduziu-se com o cavalo Astiacuteages espantado perguntou-lhe quem tinha ordenado que ele viesse no entanto disse a ele que permanecesse junto de si [19] Ciro ao ver muitos cavaleiros do lado oposto perguntou

ldquoSeraacute que avocirc esses satildeo os inimigos os que estatildeo assentados imoacuteveis sobre os cavalosrdquo

ldquoInimigos certamenterdquo ldquoSeraacute que tambeacutem aqueles os que estatildeo avanccedilandordquo ldquoAqueles tambeacutem certamenterdquo ldquoAvocirc por Zeus Mas mostrando-se penosos e sobre reles cavalinhos saqueiam nossa

riqueza Sendo assim eacute necessaacuterio que alguns dos nossos avancem sobre elesrdquo ldquoMas natildeo vecircs filho quatildeo grande eacute a massa compacta dos cavaleiros postados em ordem

de batalha Se os nossos os atacarem aqueles interceptaratildeo os nossos por traacutes e o grosso das nossas forccedilas natildeo estaacute presente aindardquo

ldquoPoreacutem se tu resistires e te recuperares os que vecircm em socorro eles teratildeo medo e natildeo se mexeratildeo enquanto que os saqueadores imediatamente largaratildeo o butim quando virem alguns sendo perseguidos por noacutesrdquo

[20] Dito essas coisas pareceu a Astiacuteages que Ciro falara sensatamente E enquanto estava maravilhado com a sua sabedoria e vigilacircncia ordenou ao filho que tomasse um esquadratildeo de cavaleiros e atacasse sobre os que levavam o saque

ldquoEu ao contraacuterio disse Astiacuteages sobre estes se se moverem sobre ti avanccedilarei de modo que seratildeo obrigados a se preocuparem conoscordquo

Desse modo Ciaxares tomando cavalos e homens vigorosos avanccedilou Ciro quando os viu partirem lanccedila-se e ele rapidamente conduziu-se agrave frente e Ciaxares certamente seguia de perto e os outros natildeo se deixaram ficar para traacutes Quando viram eles se aproximando os saqueadores imediatamente tendo largado as coisas fugiram [21] Os que estavam ao redor de Ciro interceptavam e sendo Ciro o primeiro imediatamente golpeavam aqueles que surpreendiam e quantos passavam adiante deles fugindo eles corriam atraacutes e natildeo afrouxavam mas capturavam alguns deles Como um catildeo de boa raccedila mas inexperiente imprudentemente vai de encontro ao javali assim tambeacutem Ciro arremetia apenas tentando golpear quem ele alcanccedilasse natildeo se precavendo de nenhuma outra coisa Os inimigos quando viram os seus sofrendo avanccedilaram as tropas a fim de que interrompessem a perseguiccedilatildeo ao verem que eles estavam se lanccedilando adiante [22] Ciro por nada cedia mas sob o efeito do prazer invocou o tio e continuava a persegui-los e com forccedila impocircs a fuga aos inimigos Ciaxares de fato seguia de perto talvez com vergonha do pai e os outros tambeacutem estando eles ardorosos em tal

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circunstacircncia seguiam na perseguiccedilatildeo mesmo os que natildeo eram muito corajosos em face dos inimigos Astiacuteages quando viu de um lado os que estavam perseguindo imprudentemente e de outro os inimigos em bloco marchando ao encontro e em posiccedilatildeo apropriada temeu pelo filho e por Ciro que eles sofressem algo ao se precipitarem em desordem aos que estavam bem dispostos e conduziu-se de imediato contra os inimigos [23] Os inimigos por sua vez ao verem os medos avanccedilando uns entesaram as lanccedilas e enquanto outros ergueram os arcos de modo que quando chegassem ao alcance de tiro eles parassem como a maioria tem o haacutebito de fazer Pois ateacute agora quando chegam o mais proacuteximo possiacutevel avanccedilando uns contra os outros frequentemente atiram de longe ateacute o anoitecer

Quando poreacutem viram os seus em fuga correndo em sua proacutepria direccedilatildeo e os que estavam com Ciro conduzindo-se muito proacuteximos contra eles e Astiacuteages com os cavalos chegando ao limite dos tiros de arco os inimigos recuaram e fugiram com eles perseguindo de perto com todo vigor Capturam muitos e os que eram alcanccedilados os medos golpeavam cavalos e homens e os caiacutedos eles matavam E natildeo se detiveram antes que tivessem chegado agrave face da infantaria dos Assiacuterios Ali certamente temendo que uma emboscada maior estivesse escondida se detiveram

[24] Depois disso Astiacuteages retirou-se bastante feliz com a vitoacuteria em combate da cavalaria mas natildeo sabendo o que dizer a Ciro pois de um lado reconhecia que ele era o responsaacutevel pelo feito mas de outro percebia que ele fora arrebatado pela coragem E no momento em que partiam para casa Ciro isolado de todos nenhuma outra coisa fazia do que cavalgando ao redor dos mortos os contemplava Os designados para isso com muito custo arrancaram-no e o conduziram a Astiacuteages Ciro deixou seus condutores bem agrave frente pois via o semblante irado do avocirc por causa da contemplaccedilatildeo dele

[25] Essas coisas na Meacutedia ocorreram e todos tinham Ciro na boca seja nas narrativas seja nas canccedilotildees e Astiacuteages que jaacute antes o estimava nesse momento passara a ficar estupefato por causa dele Cambises o pai de Ciro alegrava-se ao ser informado dessas coisas poreacutem quando ouviu que Ciro punha as matildeos sobre os trabalhos de homens chamou-o de volta para que se formasse nos costumes persas Ciro entatildeo disse que queria partir para que o pai natildeo se afligisse com alguma coisa e a cidade o censurasse A Astiacuteages parecia que era imperioso enviaacute-lo de volta

Nesse momento entatildeo enviou-o tendo dado a ele os cavalos que ele desejava levar e equipado com muitas outras coisas porque o amava mas tambeacutem por ter grandes esperanccedilas de que nele houvesse um homem capaz de ajudar os amigos e de afligir aos inimigos E estando Ciro partindo todos meninos jovens adultos e os mais velhos escoltavam-no a cavalo e o proacuteprio Astiacuteages tambeacutem e dizem que nenhum daqueles voltou sem estar chorando

[26] E dizem ainda que o proacuteprio Ciro afastava-se com muitas laacutegrimas E dizem ainda que ele distribuiu muitos presentes aos da sua idade daqueles que Astiacuteages lhe havia dado Por fim levava uma tuacutenica meda da qual despojando-se deu a algueacutem dando mostras de que o prezava muitiacutessimo Os que pegavam e aceitavam os presentes dizem devolveram a Astiacuteages e Astiacuteages aceitando enviou-os de volta a Ciro que enviou novamente aos medos e disse ldquoSe tu queres avocirc que eu retorne a ti sem ficar constrangido se eu entregar algo a algueacutem permite que ele a mantenhardquo Astiacuteages apoacutes ouvir isso fez como Ciro mandara

[27] Por ventura eacute necessaacuterio recordar a histoacuteria de um jovenzinho dizem que Ciro partia se afastando dos outros Os parentes despediam-se o beijando na boca segundo o costume persa Ainda hoje os persas fazem isso um homem dos medos sendo muito belo e

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nobre e que ficara pasmado por muito tempo graccedilas a beleza de Ciro quando viu os parentes beijando-o ficou para traacutes quando os outros se foram foi-se para junto de Ciro e disse

ldquoDos parentes Ciro soacute a mim natildeo reconhecesrdquo ldquoPor quecirc Acaso tu eacutes meu parenterdquo ldquoCertamente disserdquo ldquoEntatildeo eacute por isso que me olhavas fixamente Pois parece que muitas vezes te reconheci

fazendo issordquo ldquoPois de ti sempre querendo aproximar-me pelos deuses ficava envergonhadordquo ldquoMas natildeo era preciso disse Ciro sendo parenterdquo Em seguida aproximando-se beijou-

o [28] E o Medo tendo recebido o beijo perguntou ldquoDe fato na Peacutersia eacute lei beijar os parentesrdquo ldquoCertamente disse quando se vecircem depois de certo tempo ou se afastam para um lugar

longe uns dos outrosrdquo ldquoTalvez seja a hora disse o medo de me beijares novamente pois como vecircs jaacute estou

partindordquo Assim Ciro beijando-o novamente afastou-se e partiu Ainda natildeo completava um

grande caminho entre eles o Medo chega novamente com o cavalo suando E Ciro tendo o visto disse

ldquoMas acaso esquecestes alguma coisa que querias dizerrdquo ldquoNatildeo por Zeus Mas venho depois de certo tempordquo ldquoPor Zeus parente por pouco tempo certamenterdquo ldquoComo pouco Natildeo sabes Ciro que justamente o tempo em que pisco os olhos parece-

me ser muito maior pois durante esse tempo natildeo te vejordquo Naquele momento riu Ciro depois de ter chorado antes e disse a ele que partisse com

confianccedila pois estaria presente entre eles em pouco tempo de modo que seria permitido olhaacute-lo e se quisesse sem piscar

V [1] Ciro entatildeo tendo voltado a Peacutersia dizem um ano ainda permaneceu na classe dos

meninos A princiacutepio os meninos zombavam dele pois voltara habituado agrave vida de prazeres na Meacutedia Quando entatildeo o viram comendo e bebendo agradavelmente como eles e se alguma vez na festa havia banquete perceberam que ele oferecia mais da sua proacutepria porccedilatildeo do que pedia mais e aleacutem dessas coisas viram que ele era superior a eles mesmos a partir de entatildeo os da sua idade voltaram a respeitaacute-lo Depois que concluiu essa educaccedilatildeo imediatamente foi para a classe dos efebos e tambeacutem nessa parecia ser superior ocupando-se das coisas que eram necessaacuterias suportar e reverenciando os mais velhos e obedecendo aos chefes

[2] Com o tempo avanccedilando Astiacuteages morreu na Meacutedia e Ciaxares filho de Astiacuteages e irmatildeo da matildee de Ciro recebeu o reinado dos medos O rei dos Assiacuterios apoacutes conquistar toda a Siacuteria naccedilatildeo numerosa conseguiu a submissatildeo do rei das Araacutebias e jaacute tendo como suacuteditos os Ircanos e cercando os Bactriatildeos considerou que se tornasse os medos mais fracos faacutecil seria comandar todas as naccedilotildees ao redor Pois a Meacutedia parecia ser das naccedilotildees proacuteximas a mais forte [3] Desse modo enviou embaixadores a todos os povos submetidos a ele a Creso rei da Liacutedia ao da Capadoacutecia a ambas as Frigias a Paflagocircnia e a Iacutendia a Caacuteria e a Ciliacutecia acusando medos e persas dizendo que essas eram naccedilotildees grandes e fortes e que por isso associaram-se e permitiam fazer casamentos entre si e se ningueacutem se prevenindo contra eles os tornasse mais fracos estariam em perigo pois se lanccedilariam sobre cada uma das naccedilotildees para conquistaacute-las

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Fizeram entatildeo alianccedila com ele uns por essas palavras convencidos outros persuadidos por presentes e coisas preciosas pois muitas coisas desse tipo pertenciam a ele

[4] Ciaxares o filho de Astiacuteages quando percebeu a conspiraccedilatildeo e a preparaccedilatildeo dos que se associaram contra ele ele imediatamente preparou-se tanto quanto podia e aos persas enviou embaixadores visando o conselho e visando Cambises esposo de sua irmatilde e rei dos Persas Enviou tambeacutem a Ciro pedindo a ele que procurasse vir comandando os homens se o conselho persa enviasse alguns soldados Pois Ciro completado dez anos na classe dos efebos jaacute estava na classe dos adultos [5] Ciro assim aceitara e os anciotildees deliberando elegem-no comandante para a expediccedilatildeo dos medos Permitiram a ele escolher duzentos dos homoacutetimos e por sua vez a cada um dos homoacutetimos permitiram escolher quatro tambeacutem esses dentre os homoacutetimos esses entatildeo chegam a mil Ordenaram a cada um desses mil por sua vez a escolher dentro dos demos da Peacutersia dez peltastas dez fundibulaacuterios e dez arqueiros e desse modo chegaram a dez mil arqueiros dez mil peltastas e dez mil fundibulaacuterios aleacutem daqueles mil que estavam agrave disposiccedilatildeo anteriormente Esse era o exeacutercito que foi dado a Ciro

[6] Assim que ele foi eleito primeiramente sacrificou aos deuses tendo obtido bons auspiacutecios em seguida escolheu os duzentos e quando cada um deles escolheu os quatro os reuniu e entatildeo pela primeira vez discursou nestes termos a eles [7] ldquoHomens amigos eu os escolhi natildeo por vos ter julgado bons agora pela primeira vez mas por que desde a infacircncia observo que voacutes executaacuteveis com ardor aquilo que a cidade considerava bom e aquilo que a cidade considerava vil afastaacuteveis disso inteiramente Em razatildeo de quais motivos eu de bom grado apresentei-me a esse posto e invoquei-vos desejo revelar a voacutes [8] Pois eu refleti que os nossos ancestrais em nada eram inferiores a noacutes sem duacutevida exercitando-se aqueles cumpriam as obras que justamente consideravam virtuosas O quecirc em todo caso adquiriram sendo assim tanto para a comunidade dos persas quanto para eles mesmos eu natildeo posso mais ver [9] Entretanto eu imagino que nenhuma virtude eacute praticada pelos homens para que os que satildeo bons natildeo tenham nenhuma vantagem sobre os maus Mas os que se absteacutem dos prazeres imediatos agem assim natildeo para nunca mais se alegrarem mas por meio dessa temperanccedila preparam-se assim para se alegrarem no futuro muitas vezes mais Aqueles que desejam com ardor tornar-se haacutebil no falar praticam a declamaccedilatildeo natildeo para ficarem falando bem sem jamais parar mas confiando que com o bem falar persuadindo os homens obteratildeo muitos e grandes bens os que por sua vez se esforccedilam nas artes da guerra natildeo se exercitam nisso para ficar combatendo sem parar mas esses julgando que ao se tornarem bons nas artes beacutelicas atribuiratildeo muita riqueza muita felicidade e grandes honras a eles mesmos e tambeacutem a cidade [10] Se algueacutem tendo se exercitado em algo e antes de saborear algum fruto dessa praacutetica observa que se tornou incapaz na velhice ao menos parece-me sofrer igual a algueacutem que tendo desejado tornar-se um bom agricultor bem semeando e bem plantando quando era necessaacuterio colher os frutos permite que o fruto caia de novo sobre a terra e natildeo o recolhe E se algum atleta suportado muitas fadigas e tendo se tornado digno de vencer permanecesse sem disputar o precircmio esse me parece merecer com justiccedila a acusaccedilatildeo de insensato [11] Mas noacutes homens natildeo sofreremos isso jaacute que na verdade temos consciecircncia de que noacutes desde a infacircncia tendo comeccedilado sendo atletas das obras boas e belas nos lanccedilaremos contra os inimigos os quais eu sei com clareza satildeo amadores para combater contra noacutes Pois esses ainda natildeo satildeo combatentes muito fortes se de um lado lanccedilam flechas e dardos e cavalgam com conhecimento de outro quando for necessaacuterio sofrer fadigas nisso seratildeo inferiores pois esses satildeo pessoas sem praacutetica em relaccedilatildeo aos trabalhos fatigantes Quando for necessaacuterio natildeo dormir seratildeo vencidos pelo sono pois eles satildeo inexperientes com relaccedilatildeo a isso nem os que acaso satildeo haacutebeis nisso pois esses satildeo

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ignorantes no como eacute necessaacuterio agir com os aliados e com os inimigos e eacute evidente que esses tiveram seus principais conhecimentos inabilmente [12] Voacutes sem duacutevida podereis vos servir da noite tanto quanto os outros do dia e julgais que as fadigas conduzem a uma vida com prazeres e assim podereis vos servir da fome tanto quanto do manjar fino e suportais mais facilmente que os leotildees soacute beberem aacutegua e voacutes adquiris na sua alma o bem mais valioso e belicoso de todos voacutes vos alegrais em ser louvado mais do que a todos os outros juntos Aos amantes do louvor eacute imperioso enfrentar todo tipo de pena todo tipo de perigo com prazer [13] Se eu digo essas coisas a respeito de voacutes pensando outras a mim mesmo enganaria pois se alguma dessas virtudes de vossa parte falhar sobre mim recairaacute essa negligecircncia Poreacutem creio na vossa experiecircncia na afeiccedilatildeo que voacutes tendes por mim e tambeacutem na ignoracircncia dos inimigos e que essas boas esperanccedilas natildeo me enganaratildeo Mas marchemos confiantes visto que estaacute longe de noacutes a reputaccedilatildeo de cobiccedilarmos injustamente as coisas alheias Pois agora os inimigos avanccedilam tendo comeccedilado a guerra enquanto que os nossos amigos nos chamam em socorro E o que na verdade eacute mais justo que defender-se ou mais belo do que socorrer aos amigos [14] Poreacutem creio ainda em outra coisa para voacutes vos encorajardes pois natildeo farei a partida negligenciando os deuses pois estando a muito comigo prestais a atenccedilatildeo que nas grandes como tambeacutem nas pequenas empresas sempre comeccedilo pelos deusesrdquo Finalmente Ciro disse ldquoO que ainda eacute necessaacuterio dizer Voacutes tendo escolhido os homens e os tomado para dirigir e se encarregado das outras coisas dirijais-vos agrave Meacutedia Eu irei depois de estar primeiramente junto a meu pai a fim de que as coisas dos inimigos eu aprenda o mais raacutepido possiacutevel e tanto quanto for possiacutevel nos preparemos naquilo que for necessaacuterio para que combatamos o mais nobremente possiacutevel com a ajuda dos deusesrdquo

Eles entatildeo agiram dessa forma

VI [1] Ciro tendo ido para casa e feito as oraccedilotildees agrave Estia ancestral e a Zeus ancestral e

tambeacutem aos outros deuses partiu para a expediccedilatildeo com o proacuteprio pai escoltando-o Quando estavam fora de casa dizem que raios e trovotildees ocorreram favoraacuteveis a ele Depois desses fenocircmenos marcharam natildeo fazendo nenhuma outra consulta porque nenhum sinal do deus grandiacutessimo passaria oculto [2] Durante o caminho o pai comeccedilou essa conversa com Ciro

ldquoFilho que os deuses enviam a ti favores e benefiacutecios eacute evidente nos pressaacutegios e sinais celestes tu mesmo o reconheces Pois eu de propoacutesito te instruiacute nessas coisas para que por causa de outros inteacuterpretes natildeo possas reconhecer os desiacutegnios dos deuses mas tu mesmo vendo as coisas visiacuteveis e ouvindo as audiacuteveis reconheccedilas sem estar agrave custa dos adivinhos nem se quiserem te enganar dizendo coisas diversas das que foram reveladas pelos deuses nem por sua vez se alguma vez estiveres com efeito sem adivinho ficaraacutes sem saber o que fazer para se servir dos sinais divinos mas reconhecendo por meio da arte da adivinhaccedilatildeo os conselhos dos deuses poderaacutes obedecer-lhesrdquo

[3] ldquoDe fato pai e para que os deuses se mostrem favoraacuteveis e desejem aconselhar-nos na medida em que possa cumpro diligentemente conforme seu conselho Pois me lembro de ter ouvido uma vez de ti que seria com razatildeo o meio mais eficiente para obter dos deuses como tambeacutem dos homens natildeo soacute chamaacute-los quando estivesse em dificuldade mas quando adquirisse as melhores coisas aiacute entatildeo eacute muito melhor lembrar-se dos deuses E disse tambeacutem que eacute necessaacuterio do mesmo modo ocupar-se dos amigosrdquo

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[4] ldquoNatildeo eacute verdade filho que graccedilas agravequelas diligecircncias vais agora rogar aos deuses com mais prazer e esperas muito mais obter as coisas que precisa pois te pareces ter consciecircncia de que jamais os negligenciourdquo

ldquoCom certeza pai muito mais pois me encontro com tal disposiccedilatildeo para com os deuses como se fossem amigos meusrdquo

[5] ldquoPois lembra-te daquilo que uma vez foi considerado por noacutes Que do mesmo modo que os homens agem melhor sabendo o que os deuses lhe deram do que ignorando os trabalhadores realizam mais obras do que os ociosos e os diligentes vivem mais seguros do que os descuidados assim tambeacutem eacute mostrando-se tal qual eacute preciso parecia a noacutes ser necessaacuterio pedir graccedilas dos deusesrdquo

[6] ldquoSim por Zeus certamente lembro-me de ter ouvido essas coisas de ti pois foi-me forccediloso ser convencido pelo argumento Eu sei tambeacutem que tu dizias sempre que natildeo era permitido solicitar aos deuses vencer nos combates a cavalo natildeo sabendo montar nem aos que natildeo satildeo haacutebeis no arco pedir para superar no arco os que satildeo haacutebeis nem a quem natildeo sabe pilotar pedir para preservar-se satildeo e salvo pilotando o navio nem a quem natildeo semeia o trigo pedir que lhes nasccedila uma boa safra nem a quem natildeo se protege na guerra pedir salvaccedilatildeo pois todas essas coisas satildeo contraacuterias agraves leis dos deuses E aos que rogam coisas iliacutecitas eacute natural tu dizias natildeo ter ecircxito junto aos deuses do mesmo modo que natildeo obteacutem nada dos homens quem faz pedidos contraacuterios agraves leisrdquo

[7] ldquoPoreacutem filho tu te esquecestes daquelas coisas que uma vez eu e tu meditamos que seria obra nobre e suficiente para um homem se pudesse trabalhar para que ele mesmo se tornasse honestamente bom e belo e ele e a famiacutelia tivessem provisotildees suficientes Mas sendo isso uma grande obra do mesmo modo ser capaz de governar os outros homens para que tivessem abundacircncia de todas as provisotildees e para que todos fossem como eacute necessaacuterio isso revelou ser naquela vez para noacutes sem duacutevida alguma algo admiraacutevelrdquo

[8] ldquoSim por Zeus pai recordo-me que tu dizias isso sem duacutevida me parecia igualmente ser uma enorme obra o governar belamente e tambeacutem agora parece-me isso mesmo quando medito observando o governar em si mesmo Quando em todo caso observando os outros homens compreendi de que natureza satildeo aqueles que passam a vida governando e qual a natureza dos que seratildeo nossos adversaacuterios parece-me ser muito vergonhoso ter medo deles e natildeo desejar nos lanccedilar contra os inimigos Aqueles eu noto comeccedilando por esses nossos amigos acreditam que eacute necessaacuterio que os governantes se distingam dos governados no comer copiosamente no ter mais ouro em casa no dormir por mais tempo e no viver em tudo com mais oacutecio do que os governados Eu por outro lado penso que o governante deve se distinguir dos governados natildeo no ser indolente com as necessidades mas na providecircncia e no amor ao trabalhordquo

[9] ldquoMas filho haacute em alguns casos que natildeo lutamos contra homens mas contra coisas em si mesmas das quais natildeo eacute faacutecil ser superior com desembaraccedilo Assim por exemplo tu sabes sem duacutevida que se o exeacutercito natildeo tiver as provisotildees o teu comando seraacute anuladordquo

ldquoNa verdade pai isso Ciaxares disse que forneceraacute a todos os que se lanccedilam daqui tatildeo numerosos quantos foremrdquo

ldquoE tu filho partiraacutes crendo nessas riquezas de Ciaxaresrdquo ldquoSimrdquo ldquoTu sabes entatildeo de qual tamanho eacute a riqueza delerdquo ldquoNatildeo por Zeus natildeo seirdquo

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ldquoApesar de tudo confias em coisas desconhecidas Natildeo reconheces que teraacutes necessidade de muitas coisas e agora mesmo a Ciaxares eacute necessaacuterio gastar em muitas outras coisasrdquo

ldquoReconheccedilordquo ldquoSe entatildeo o recurso dele for insuficiente ou voluntariamente ele te enganar como se

manteraacute o teu exeacutercitordquo ldquoEacute evidente que natildeo muito bem Entretanto pai se tu reconheces algum recurso que

possa ser produzido por mim enquanto ainda estamos entre amigos digardquo [10] ldquoPerguntais filho qual recurso poderia ser produzido por ti De quem eacute mais

provaacutevel receber os recursos do que de quem tem poder Tu partes daqui levando tanto uma poderosa infantaria e eu bem sei que em troca dela natildeo aceitarias outra muito mais numerosa aleacutem disso seraacute teu aliado a cavalaria dos medos justamente aquela que eacute a melhor Qual povo portanto dos vizinhos natildeo julgaraacute bom ser agradaacutevel a ti ou desejando servir-vos ou temendo algum sofrimento Isso eacute necessaacuterio a ti em comum com Ciaxares observar para que jamais estejas em falta das coisas que eacute preciso estar a disposiccedilatildeo e por causa do costume maquinar fontes de renda Lembra-te disso mais do que tudo jamais esperes para procurar os recursos ateacute que a necessidade te obrigue mas quanto maior abundacircncia tiveres entatildeo maquines antes da carecircncia pois obteraacutes mais da parte de quem pedires natildeo parecendo estar sem recursos E aleacutem disso obteraacutes mais respeito dos outros e se quiser fazer bem ou mal a algueacutem com a tropa os soldados serviratildeo a ti melhor enquanto mantiver as coisas necessaacuterias e sabes bem os discursos mais persuasivos diraacutes nesse momento quando melhor puderes demonstrar que eacutes capaz de fazer o bem e o malrdquo

[11] ldquoMas pai ainda por cima me parece que tu dizes tudo isso com nobreza pois das coisas que agora os soldados dizem que iratildeo receber nenhum deles seraacute agradecido a mim por elas Pois sabem sob quais condiccedilotildees Ciaxares os leva consigo como aliados o que algueacutem receber aleacutem do combinado consideraratildeo isso um precircmio e naturalmente seratildeo agradecidos a quem as deu Tendo um exeacutercito com o qual eacute possiacutevel de um lado retribuir favores fazendo bem aos amigos e de outro tendo inimigos tentar puni-los e em seguida negligencias o fornecimento pensas que isso eacute menos vergonhoso do que se algueacutem tendo um campo e tendo trabalhadores com os quais cultivasse o campo e em seguida permitisse que o campo esteja ocioso e improdutivo Quanto a mim jamais negligenciarei de procurar meios de subsistecircncia aos soldados nem nas terras amigas nem nas inimigas e nessas condiccedilotildees fiques tranquilordquo

[12] ldquoPois filho das outras coisas que um dia parecia nos forccediloso natildeo negligenciar lembra-te delasrdquo

ldquoCom efeito pai lembro-me bem de quando fui para junto de ti em busca de dinheiro para pagar aquele que declarava me instruir em ser general Tu enquanto me davas o dinheiro perguntavas coisas como estas lsquoDigas filho seraacute que entre as funccedilotildees de general algo de economia domeacutestica mencionou a ti o homem a quem levas o soldo Certamente os soldados precisam natildeo menos das provisotildees do que os servos em casarsquo Depois que eu dizendo a ti a verdade que nem a menor coisa a respeito disso ele mencionou perguntastes novamente se algo sobre a sauacutede e a forccedila fiacutesica tinha dito para mim para que o general se ocupe dessas necessidades tanto quanto da estrateacutegia [13] Como tambeacutem a isso disse que natildeo perguntaste-me ainda se alguns artifiacutecios tinha me ensinado que seriam os melhores aliados dos trabalhos beacutelicos Eu neguei tambeacutem a isso e tu me interrogaste novamente se ele me ensinara algo que pudesse incutir ardor na tropa dizendo que em todo o trabalho o ardor faz toda a diferenccedila sobre a ausecircncia de acircnimo Quando a isso neguei meneando a cabeccedila para traacutes tu perguntaste-me se

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tinha feito alguma discussatildeo instruindo-me sobre o fazer-se obedecer pelo exeacutercito como algueacutem poderia tramar isso perfeitamente [14] Quando tambeacutem a isso mostrava-me absolutamente ignoto finalmente indagaste-me o que entatildeo me ensinara dizendo ensinar estrateacutegia Eu entatildeo respondi que ldquoa taacuteticardquo e tu pondo-se a rir retomando cada um dos pontos expocircs qual seria a utilidade da taacutetica para o exeacutercito sem as provisotildees sem a sauacutede sem ocupar-se em obter para si as teacutecnicas beacutelicas e sem a obediecircncia Agrave medida que tu tornastes evidente a mim que a taacutetica era uma pequena parte da estrateacutegia eu perguntei se alguma dessas coisas tu serias capaz de me ensinar Partindo me exortastes a conversar com os homens ditos estrategistas e a inquiri-los em como alcanccedilar a cada um desses pontos [15] Depois disso eu me encontrava com aqueles que ouvia serem os mais inteligentes sobre esses assuntos E quanto agraves provisotildees estou convencido que satildeo suficientes as disposiccedilotildees de que Ciaxares estaacute em condiccedilotildees de fornecer para noacutes quanto agrave sauacutede ouvindo e vendo que as cidades desejando ter boa sauacutede escolhem os meacutedicos e os generais por causa dos soldados tambeacutem levam meacutedicos assim eu tambeacutem quando este posto alcancei imediatamente apoacutes ocupei-me disso e penso pai que tenho comigo os homens mais competentes na arte meacutedicardquo

Em funccedilatildeo disso o pai falou [16] ldquoMas filho esses a quem tu te referes satildeo como quem repara mantos rasgados de fato os meacutedicos tratam das pessoas quando elas adoecem A ti a atenccedilatildeo com a sauacutede deve ser mais altiva do que isso pois que as tropas de modo algum devem ficar doentes e esse haacute de ser o teu deverrdquo

ldquoPai seguindo qual caminho serei capaz de fazer issordquo ldquoSem duacutevida se tiveres a intenccedilatildeo de permanecer em um mesmo local durante um

tempo primeiramente eacute necessaacuterio natildeo negligenciar a higiene do acampamento se te preocupares com isso natildeo falharaacutes aleacutem disso os homens natildeo param de falar sobre regiotildees insalubres e sobre regiotildees salubres Testemunhas evidentes de cada um deles se oferecem nos corpos e tambeacutem na cor da pele Depois natildeo seraacute proteccedilatildeo suficiente examinar soacute a regiatildeo mas lembra-te de como se esforccedilar para cuidar de ti mesmo para que estejas satildeordquo

[17] E Ciro disse ldquoPrimeiramente por Zeus me esforccedilo para jamais me empanturrar pois eacute desagradaacutevel em seguida faccedilo a digestatildeo dos alimentos pois desse modo parece-me que mantenho melhor a sauacutede e adquiro forccedilardquo

ldquoDesse modo com efeito filho eacute necessaacuterio cuidar dos outrosrdquo ldquoMas de fato haveraacute tempo livre para os soldados se exercitaremrdquo ldquoPor Zeus disse o pai natildeo apenas eacute certo mas tambeacutem eacute necessaacuterio pois ao exeacutercito eacute

preciso se tiveres a intenccedilatildeo de que eles cumpram os deveres que jamais cessem ou de praticar o mal aos inimigos ou o bem aos seus e agrave medida que eacute difiacutecil alimentar um homem ocioso muito mais difiacutecil ainda filho uma casa toda mas mais difiacutecil de tudo eacute alimentar um exeacutercito inativo Pois as bocas no exeacutercito satildeo numerosas e partindo com o miacutenimo as coisas que recebem se se servem prodigamente seraacute necessaacuterio que jamais o exeacutercito fique ociosordquo

[18] ldquoParece-me que tu dizes pai que como em nada eacute uacutetil um agricultor ocioso assim tambeacutem em nada eacute uacutetil um general ociosordquo

ldquoMas o general trabalhador eu assumo que se nenhum deus lhe prejudicar ao mesmo tempo em que determina aos soldados como manter o maacuteximo das provisotildees tambeacutem determina a manter melhor o preparo fiacutesicordquo

ldquoPor certo quanto agrave praacutetica de cada uma das atividades guerreiras parece-me que pai prescrevendo disputas a cada uma delas e oferecendo precircmios faraacutes que cada um esteja exercitado nelas muitiacutessimo bem para que quando tiver necessidade se servir de homens preparadosrdquo

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ldquoDizes muito bem filho pois tendo feito isso saibas bem que sempre tu os veraacutes exercitados de modo conveniente como coros ordenadosrdquo

[19] ldquoMas com efeito para incutir o entusiasmo nos soldados nada me parece ser mais eficaz do que poder produzir esperanccedilas nos homensrdquo

ldquoPoreacutem filho isso eacute tal como se algueacutem chamasse os catildees na caccedila sempre com o mesmo chamado de quando vecircs a caccedila pois num primeiro momento eu sei bem que obteacutem respostas ardorosas ao chamado mas se muitas vezes os engana acabam natildeo obedecendo ao chamado nem quando realmente vecirc Assim tambeacutem ocorre com relaccedilatildeo agraves esperanccedilas se algueacutem mente frequentemente incutindo esperanccedilas em muitos bens nem quando declarar sinceras esperanccedilas o tal poderaacute persuadir Mas eacute necessaacuterio de um lado afastar-se de dizer aquilo que tu mesmo natildeo sabes seguramente filho de outro lado outros incitados dizendo essas coisas podem conseguir Eacute necessaacuterio que tu preserves o maacuteximo da confianccedila em tuas exortaccedilotildees para os grandes perigosrdquo

ldquoMas sim por Zeus a mim pareces dizer belamente pai e a mim tambeacutem desse modo eacute o mais agradaacutevel [20] Quanto ao produzir a obediecircncia dos soldados natildeo me pareccedilo ser inexperiente pai pois tu me ensinaste isso desde a infacircncia obrigando-me a obedececirc-lo Em seguida confiou-me aos professores e eles por sua vez agiram do mesmo modo quando estaacutevamos entre os efebos o comandante ocupava-se muito destas mesmas coisas E parece-me que a maioria das leis ensina principalmente essas duas coisas a governar e a ser governado E com efeito refletindo sobre essas coisas parece-me observar em tudo que o que mais incita a obediecircncia eacute louvar e honrar o obediente e ao desobediente desprezar e punirrdquo

[21] ldquoEsse filho eacute o caminho para a obediecircncia forccedilada para uma muito melhor do que essa a obediecircncia voluntaacuteria haacute um caminho muito mais curto Pois os homens obedecem com grande prazer aqueles que consideram mais sensatos nos seus interesses do que eles mesmos Poderaacutes reconhecer que isso eacute assim em muitas outras coisas inclusive os doentes que com ardor chamam aqueles que prescrevem o que lhes eacute necessaacuterio fazer e no mar com ardor os que estatildeo navegando obedecem aos pilotos e aqueles que julgam que outros sabem o caminho melhor do que eles com muita forccedila natildeo desejam abandonaacute-los Quando poreacutem crecircem que a obediecircncia resultaraacute em algum mal natildeo consentem absolutamente em ceder nem por causa de castigos nem induzidos por presentes Pois ningueacutem a troco da proacutepria desgraccedila aceita espontaneamente presentesrdquo

[22] ldquoDizes tu pai que nada eacute mais eficaz para manter a obediecircncia do que parecer ser mais inteligente do que os governadosrdquo

ldquoCom efeito digo issordquo ldquoE qual a maneira pai que algueacutem poderia produzir rapidamente sobre si mesmo tal

reputaccedilatildeordquo ldquoNatildeo haacute filho caminho mais curto a respeito das coisas em que desejas parecer ser

sensato do que tornar-se de fato sensato a respeito desses assuntos Observando a fundo cada uma das coisas reconheceraacutes que eu digo a verdade Se quiseres natildeo sendo bom agricultor parecer ser bom ou cavaleiro ou meacutedico ou flautista ou qualquer outra coisa imagine quatildeo numerosas coisas a ti seria necessaacuterio maquinar por causa da aparecircncia E se tu persuadires a muitos a te louvares para que obtenhas fama e adquiras bons equipamentos de cada um destes ofiacutecios em um instante seria o embusteiro mas pouco depois quando precisasse oferecer uma prova tu te verias desmascarado e ainda um charlatatildeordquo

[23] ldquoComo algueacutem pai poderia tornar-se sensato sobre algo que no futuro lhe seraacute uacutetilrdquo

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ldquoEacute evidente filho que tudo quanto eacute possiacutevel saber aprendendo aprender como aprendeste sobre taacutetica E tudo quanto os homens natildeo podem aprender e natildeo se pode prever pela previdecircncia humana serias mais sensato do que os outros interrogando aos deuses por meio da arte da adivinhaccedilatildeo Tambeacutem aquilo que reconheces ser o melhor a fazer ocupa-te para a realizaccedilatildeo disso pois natildeo o negligencia mas cuidar do que for necessaacuterio eacute proacuteprio do homem sensatordquo

[24] ldquoMas certamente quanto a ser estimado pelos governados que me parece ser das coisas mais importantes eacute evidente que eacute o mesmo caminho para quem deseja ser querido pelos amigos jaacute que penso que eacute necessaacuterio ser distinguido fazendo o bemrdquo

ldquoMas isso filho de fato eacute difiacutecil o sempre poder fazer o bem para aqueles que se deseja mostrar-se feliz se algo bom acontece com eles estar junto se algo de mal socorrer de boa vontade nas suas dificuldades temendo que caiacuteam em erros e velar se esforccedilando para que natildeo os cometam essas satildeo as melhores maneiras de estar junto dos amigos [25] E durante as obras da guerra se estiverem no veratildeo eacute necessaacuterio que seja manifesto que o general eacute superior com relaccedilatildeo ao sol e se estiverem no inverno ao frio se durante os trabalhos agraves penas pois tudo isso ajuda a ser estimado pelo subordinadosrdquo

ldquoDizes tu pai que eacute necessaacuterio que o governante seja mais vigoroso do que os governados em todas as coisasrdquo

ldquoPois sem duacutevida digo Em todo caso fique tranquilo quanto a isso filho Eu bem sei que embora os corpos sejam iguais as penas natildeo atingem de modo igual o general e o homem simples mas a honra suaviza algo das penas no comandante como proacuteprio saber de que aquilo que fizer natildeo passaraacute despercebidordquo

[26] ldquoPai poreacutem quando os soldados estiverem tanto com os recursos necessaacuterios quanto gozando de sauacutede e tambeacutem puderem suportar as fadigas e estejam treinados nas artes beacutelicas e aleacutem disso ambiciosos de se mostrarem nobres e estejam mais contentes em obedecer do que desobedecer natildeo te pareceria ser prudente entatildeo quem desejasse lutar contra os inimigos o mais raacutepido possiacutevelrdquo

ldquoSim por Zeus se estiveres em condiccedilotildees de obter a superioridade se natildeo eu ao menos quanto melhor acreditasse ser e melhores seguidores tivesse tanto mais seria prudente Como os bens que julgamos serem para noacutes os mais preciosos essas procurarmos nos servir com o maacuteximo de seguranccedilardquo

[27] ldquoPai qual a melhor maneira de algueacutem de poder obter a superioridade sobre os inimigosrdquo

ldquoPor Zeus isso que perguntas filho natildeo eacute assunto faacutecil nem simples Mas eu bem sei que eacute necessaacuterio a quem tiver intenccedilatildeo de fazer isso ser ardiloso e dissimulado mentiroso e embusteiro ladratildeo e tirar vantagem em tudo sobre os inimigosrdquo

E Ciro rindo disse ldquoHeracles que tipo de homem tu dizes que eacute necessaacuterio que eu me torne pairdquo

ldquoTal como serias filho o homem mais justo e mais conforme agraves leisrdquo [28] ldquoComo entatildeo voacutes nos ensinastes quando crianccedilas e jovens o contraacuterio destas

coisasrdquo ldquoSim por Zeus e agora mesmo para os amigos e os concidadatildeos Natildeo sabes que voacutes

aprendestes muitas praacuteticas fraudulentas a fim de que pudeacutesseis fazer mal aos inimigosrdquo ldquoEacute claro que natildeo pairdquo ldquoPor que razatildeo entatildeo filho tu aprendestes a atirar com o arco Por que razatildeo a lanccedilar

dardos Por que razatildeo a enganar javalis selvagens com redes e fossos E por que razatildeo aos

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cervos com armadilhas e cordas E por que razatildeo aos leotildees ursos e leopardos voacutes natildeo combatiacuteeis colocando-se em igualdade mas sempre procuraacuteveis lutar contra eles provido de alguma vantagem Ou natildeo reconheces que todas essas coisas satildeo maldades ardis enganos e subterfuacutegiosrdquo

[29] ldquoSim mas contra animais por Zeus contra os homens se eu tivesse em mente o desejo de enganar algueacutem sei que receberia muitas pancadasrdquo

ldquoDe fato creio que nem lanccedilar flechas nem dardos sobre os homens noacutes permitiriacuteamos a voacutes mas ensinaacutevamos a visar o alvo para que entatildeo natildeo machucaacutesseis aos amigos e se algum dia houvesse guerra pudesse mirar homens tambeacutem E natildeo ensinaacutevamos a enganar e a ter vantagem sobre os homens mas aos animais a fim de que com isso natildeo causaacutesseis danos aos amigos e se um dia houvesse guerra natildeo focircsseis inexperientes nestes assuntosrdquo

[30] ldquoSem duacutevida pai se eacute verdade que eacute uacutetil saber ambas as coisas fazer o bem e o mal aos homens era necessaacuterio que aprendecircssemos as duas coisas com homensrdquo

[31] ldquoMas dizem filho que outrora no tempo dos nossos ancestrais havia um homem professor de meninos que ensinava com efeito a justiccedila aos meninos assim como tu desejas a natildeo enganar e enganar a natildeo mentir e a mentir a natildeo iludir e a iludir a natildeo ter vantagens e a ter vantagens Distinguia dessas coisas o que fazer aos amigos e o que aos inimigos E aleacutem dessas coisas ensinava que era justo enganar aos amigos em vista de um bem e roubar algo dos amigos em vista de um bem [32] Ensinando essas coisas era forccediloso fazer aos meninos praticar isso uns contra os outros como dizem que os gregos ensinam a enganar no combate e exercitavam aos meninos para que pudessem fazer isso uns contra os outros Alguns de fato tornaram-se assim haacutebeis no roubar com justeza e levar vantagem poreacutem natildeo sendo igualmente haacutebeis na cupidez natildeo abstinham-se de tentar levar vantagem sobre os outros nem mesmo sobre os amigos [33] Criou-se portanto em consequecircncia dessas coisas uma lei que ainda hoje usamos de ensinar as crianccedilas de modo simples como ensinamos os proacuteprios escravos a dizer a verdade a natildeo enganar e a natildeo tirar vantagem em relaccedilatildeo a noacutes Se entatildeo fizerem contrariamente a isso castigamos para que tendo se habituado com tais costumes tornam-se os cidadatildeos mais moderados [34] Quando entatildeo tiverem a idade que tu tens hoje entatildeo pareceraacute seguro ensinar as leis para agir contra os inimigos pois natildeo mais parecia que se deixariam levar a tornarem-se cidadatildeos selvagens criados no muacutetuo respeito Como tambeacutem natildeo discorriacuteamos sobre os prazeres do amor para os muito jovens para que juntando a falta de escruacutepulos agrave forccedila de seu desejo os jovens natildeo se servissem do amor imoderadamenterdquo

[35] ldquoSim por Zeus como entatildeo comeccedilou tarde a me instruir nessas vantagens pai natildeo te abstenhas se algo tu tens a ensinar para que eu leve vantagem sobre os inimigosrdquo

ldquoMaquine com efeito para que tu surpreendas aos inimigos desordenados com a tua proacutepria tropa estando com homens bem ordenados os teus estando armados e os deles desarmados os teus despertos e os deles dormindo eles visiacuteveis a ti e tu invisiacutevel para eles e eles estando em terreno desfavoraacutevel e tu estando protegido em terreno fortificado

[36] ldquoE como algueacutem poderia pai surpreender os inimigos cometendo tais errosrdquo ldquoEacute forccediloso filho que tanto voacutes quanto os inimigos proporcionem muitos destes pois a

ambos eacute forccediloso tomar as refeiccedilotildees a ambos eacute forccediloso repousar e desde a aurora todos vatildeo fazer as necessidades quase ao mesmo tempo e eacute forccediloso servir dos caminhos tais quais sejam Todas essas coisas a ti eacute necessaacuterio perceber e o que reconheceis em voacutes sendo as mais fracas nisso sobretudo deves proteger e o que notares nos inimigos sendo as mais faacuteceis de submeter nisso deves dedicar-se sobretudordquo

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[37] ldquoEacute soacute disse Ciro nessas circunstacircncias que se obteacutem vantagem ou em alguma outra tambeacutemrdquo

ldquoCertamente em muitas outras filho Pois nessas em geral todos montam guardas sabendo que elas existem forccedilosamente Mas os que querem enganar os inimigos podem fazendo-os agir com confianccedila surpreendecirc-los desprotegidos e permitindo-se ser perseguido por eles deixaacute-los desordenados e atirando-os em fuga para um terreno difiacutecil ali mesmo atacar [38] Eacute necessaacuterio por isso que tu sejas um amante do aprender todas as coisas natildeo para te servires soacute das coisas que aprendestes mas tambeacutem para seres tu um inventor de artifiacutecios contra os inimigos Como os muacutesicos que natildeo se servem apenas das coisas que aprenderam mas tambeacutem procuram criar outras novas E de um lado nas artes musicais as peccedilas novas e exuberantes satildeo muito honradas de outro as novas maquinaccedilotildees satildeo muito mais honradas na guerra pois com essas pode-se melhor enganar os inimigos [39] Mas se tu filho transferires aos inimigos nenhuma outra coisa aleacutem dos truques que muito planejaste contra os animais pequenos natildeo achas que avanccedilas sobre os inimigos muito adiantado em vantagens Pois tu contra as aves te levantavas no inverno rigoroso e marchavas de noite e antes que os paacutessaros se movessem as cordas para eles eram preparadas por ti e tornavas o chatildeo movido semelhante ao natildeo tocado os paacutessaros eram ensinados por ti para te servirem com utilidade e para enganar os paacutessaros da mesma espeacutecie Tu armavas emboscadas para vecirc-las sem ser visto por elas e estavas preparado para puxar antes que os paacutessaros fugissem [40] Por outro lado contra a lebre que vive na escuridatildeo e evita o dia criava catildees que a descobriam pelo faro Assim quando era encontrada fugia rapidamente mas tinhas catildees preparados para capturaacute-las correndo Se entatildeo fugia tambeacutem destes procurando saber quais lugares as lebres fugindo alcanccedilaram nesses estendia redes de caccedila difiacuteceis de ver e na fuga veemente ela mesma caindo sobre a rede ficava amarrada E para natildeo fugirem daiacute tu colocavas guardas para o que estava ocorrendo os que de perto estavam tinham condiccedilotildees de sobrevir rapidamente e tu mesmo atraacutes com clamor natildeo ficavas atraacutes da lebre e bradando aterrorizava-a de tal modo que era capturada enlouquecida e aos que estavam defronte explicava para fazer silecircncio e permanecerem ocultos na emboscada [41] Como jaacute disse se puderes maquinar tais coisas contra os homens eu natildeo sei se seraacutes vencido por algum dos inimigos Se com efeito alguma vez houver necessidade de empreender um combate com ambos preparados e visiacuteveis no mesmo plano em tal circunstacircncia filho as vantagens preparadas de haacute muito tempo valem muito Eu digo que essas coisas existem a quem tem os corpos dos soldados bem exercitados as almas bem ordenadas e as taacuteticas beacutelicas bem estudadas [42] Eacute necessaacuterio saber bem tambeacutem que a tantos quantos tu exiges obediecircncia tambeacutem todos aqueles exigiratildeo de ti que decidas a respeito das coisas deles Jamais portanto fiques despreocupado mas durante a noite reflita sobre o que teus subordinados faratildeo quando chegar o dia e de dia para que a melhor noite esteja agrave disposiccedilatildeo deles [43] Como eacute necessaacuterio ordenar o exeacutercito na batalha ou como conduzir-te durante o dia ou a noite ou por estradas estreitas ou largas ou ainda nas montanhas ou nas planiacutecies ou como acampar ou como dispor guardas noturnos e diurnos ou como avanccedilar contra os inimigos ou afastar-se dos inimigos ou como conduzir para junto das cidades inimigas ou como dirigir-se ou recuar diante das muralhas ou como atravessar o vale ou os rios ou como proteger-se da cavalaria ou dos lanccediladores de dardos ou dos flecheiros ou se entatildeo a ti conduzindo o exeacutercito em coluna aparecem de suacutebito os inimigos como deves colocar-se diante deles ou se a ti agrave frente da falange conduzindo os inimigos se mostrarem de qualquer outro lado do que face a face como deves marchar contra ou como pode perceber melhor as coisas do inimigo ou como fazer os inimigos saberem o miacutenimo das tuas proacuteprias o que eu devo dizer a respeito dessas

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coisas para ti Pois tanto quanto eu sei muitas vezes ouvistes e aqueles outros que pareciam saber algo desses assuntos nenhum deles tu negligenciastes nem te tornastes ignorante Portanto diante dos acontecimentos eacute necessaacuterio se utilizar das coisas do modo que lhe pareccedila ser uacutetil [44] Aprenda de mim filho isto o mais importante eacute que contra pressaacutegios e auguacuterios jamais coloque em perigo nem a ti nem ao exeacutercito compreendendo que os homens escolhem as accedilotildees por conjecturas natildeo sabendo quais delas seratildeo para eles as melhores [45] Tu podes reconhecer isso da proacutepria histoacuteria pois de um lado outrora muitos que pareciam os mais saacutebios persuadiram estados a empreender guerra contra outras naccedilotildees pelas quais os que foram persuadidos a atacar foram derrotados e de outro lado muitos engrandeceram a muitos homens e estados e sofreram enormes males daqueles que progrediram Muitos tambeacutem que eram tratados como amigos e fazendo e recebendo apenas coisas boas preferindo trataacute-los mais como escravos do que como amigos receberam castigos desses mesmos Muitos outros que natildeo se contentavam em viver agradavelmente com o proacuteprio quinhatildeo que possuiacuteam tendo desejado ser dono de tudo por causa disso perderam tambeacutem o que tinham Muitos tendo conquistado a riqueza haacute muito desejada graccedilas a isso foram destruiacutedos [46] Assim a sabedoria humana natildeo sabe escolher o melhor mais do que algueacutem tirando a sorte agisse conforme obtivesse pela sorte Os deuses filho sendo eternos tudo sabem do que ocorreu do que estaacute ocorrendo e do que ocorreraacute a cada um E dos homens que os consultam anunciam o que eacute necessaacuterio fazer e aquilo que natildeo eacute para quem satildeo propiacutecios Se nem a todos desejam aconselhar natildeo haacute nada de maravilhoso nisso pois natildeo eacute necessaacuterio que eles se ocupem de quem natildeo queremrdquo

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8 Bibliografia

81 Ediccedilotildees e Traduccedilotildees de Xenofonte

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82 Autores Antigos

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LONGUS Pastorales (Daphnis et Chloeacute) Traduccedilatildeo de Georges Dalmeyda Paris Belles-Lettres 1971 LUCIANO Como se deve escrever a histoacuteria Traduccedilatildeo e Ensaio de Jacyntho Lins Brandatildeo Belo Horizonte Tessitura 2009 MENANDRO EL REacuteTOR Dos tratados de retoacuterica epidiacutectica Introducioacuten de Fernando Gascoacute Traducioacuten y notas de Manuel Garciacutea Garciacutea y Joaquiacuteon Gutieacuterrez Calderoacuten Madrid Gredos 1996 PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Calouste Gulbenkian 1980 ______ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Seleccedilatildeo de J A M Pessanha e Traduccedilatildeo e notas de J C de Souza J Paleikat e J C Costa Satildeo Paulo Abril 1979 PLUTARCO Teseu Rocircmulo In______ Vidas paralelas Introduccedilatildeo de Paulo Matos Peixoto e Traduccedilatildeo de Gilson Ceacutesar Cardoso Satildeo Paulo Paumape 1991 v I p17-87 ______ Alexandre In______ Vidas paralelas Introduccedilatildeo de Paulo Matos Peixoto e Traduccedilatildeo de Gilson Ceacutesar Cardoso Satildeo Paulo Paumape 1992 v IV p133-208 ______ Sobre el destierro In______ Obras Morales y de Costumbres vol viii Madrid Gredos 1996 POLIacuteBIO Histoacuteria Traduccedilatildeo de Mario da Gama Kury Brasiacutelia Ed UNB 1985 TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Livro I Traduccedilatildeo de Anna Lia de Almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Cosmos 2000

83 Outros Autores

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Page 4: EMERSON CERDAS - Unesp

4

A meus pais Claacuteudio e Filomena

5

AGRADECIMENTOS Agrave Profa Dra Maria Celeste Consolin Dezotti pela formaccedilatildeo helenista e humana pela confianccedila e apoio e sobretudo pela amizade Agrave Profa Dra Maacutercia V Zamboni Gobbi agrave Profa Dra Wilma Patriacutecia M Dinardo Maas e ao Prof Dr Claacuteudio Aquati pelas valiosiacutessimas leituras que renderam valiosiacutessimas contribuiccedilotildees e pela generosidade de seus comentaacuterios Ao Prof Dr Henrique Cairus e agrave Profa Dra Maria Aparecida de Oliveira Silva pelas contribuiccedilotildees precisas Aos Professores Fernando Edvanda Anise e em especial agrave professora Claacuteudia pela formaccedilatildeo e encaminhamento nesta via sem volta que eacute a paixatildeo pela Heacutelade Agrave minha matildee Filomena pela eterna dedicaccedilatildeo agrave famiacutelia e aos cuidados prestimosos Ao meu pai Claacuteudio que primeiro me apresentou o maacutegico mundo da leitura com seu exemplo de leitor ndash saudades eternas Aos meus irmatildeos Viviane Anderson e Eliane principalmente pela compreensatildeo da ausecircncia e em especial agrave minha irmatilde Luciene e ao Brunno pela hospedagem intelectual nos meus anos de graduaccedilatildeo Agrave Patriacutecia presente e auxiliante nos momentos mais difiacuteceis e pelo incentivo seguro e sincero agredeccedilo profundamente Agrave FAPESP cujo financiamento deste trabalho possibilitou que ele se desenvolvesse tal qual o desejado Aos amigos Ceacutesar Augusto Ceacutesar Henrique Itamar Joatildeo Daniele Ceacutesar Erasmo Priscila Marco Aureacutelio sempre presentes

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O historiador e o artista ao relatarem uma eacutepoca tecircm finalidades completamente diferentes [] A diferenccedila torna-se mais sensiacutevel e essencial quando se trata de descrever acontecimentos O historiador considera os resultados de um acontecimento o artista o proacuteprio acontecimento Leoacuten Tolstoi

A uacutenica coisa que devemos agrave histoacuteria eacute a tarefa de reescrevecirc-la Oscar Wilde

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RESUMO A Ciropedia de Xenofonte escrita no seacuteculo IV aC eacute uma obra de caraacuteter hiacutebrido em que a ficccedilatildeo e a histoacuteria se mesclam com muita liberdade Em virtude disto tem-se discutido qual seria a melhor classificaccedilatildeo de gecircnero para a obra romance biograacutefico obra historiograacutefica romance histoacuterico A presente dissertaccedilatildeo investiga em que medida a Ciropedia de Xenofonte apresenta elementos narrativos que nos permitam reconhecer nela aspectos do gecircnero do romance mais especificamente do ldquoromance de formaccedilatildeordquo (Bildungsroman) gecircnero cujo paradigma se encontra na obra de Goethe Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister (1795-1796) Primeiramente procuramos definir em que medida noacutes podemos ler a Ciropedia como uma obra de ficccedilatildeo e natildeo como uma obra historiograacutefica a partir de reflexotildees a respeito das relaccedilotildees entre Literatura e Histoacuteria e principalmente por meio de uma anaacutelise comparativa entre a narrativa da Ciropedia com a narrativa das Histoacuterias de Heroacutedoto Percebe-se que Xenofonte ficcionaliza a narrativa estabelecida por Heroacutedoto seja retomando temas seja fazendo alusotildees agrave narrativa herodoteana Em seguida partindo-se da noccedilatildeo bakhtiniana de que todo gecircnero conserva em sua estrutura elementos formais da archaica que natildeo soacute caracterizam o gecircnero de forma distintiva mas tambeacutem permitem a sua renovaccedilatildeo a cada nova manifestaccedilatildeo literaacuteria procuramos definir quais elementos essenciais presentes no Romance de Formaccedilatildeo moderno encontramos na Ciropedia Analisamos cenas em que satildeo evidentes a partipaccedilatildeo de mentores a presenccedila de uma instituiccedilatildeo pedagoacutegica a visatildeo teleoloacutegica da educaccedilatildeo Aleacutem disso uma das caracteriacutesticas essenciais do ldquoRomance de Formaccedilatildeordquo eacute a presenccedila de uma personagem dinacircmica e evolutiva que se forma e educa no decorrer da narrativa Analisamos a construccedilatildeo e evoluccedilatildeo da personagem principal da narrativa Ciro por meio da anaacutelise da locuccedilatildeo de maacuteximas A dissertaccedilatildeo apresenta a traduccedilatildeo completa do Livro I da Ciropedia Palavras-chaves Romance antigo Romance de formaccedilatildeo Histoacuteria e Literatura Historiografia Xenofonte Ciropedia

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ABSTRACT

The Xenophonrsquos Cyropaedia written in the fourth century BC it is a work of hybrid character in which fiction and history mingle with a lot of freedom Because of this it has been discussed what would be the best genre classification for the work biographical novel work of historiography historical novel This dissertation investigates the extent to which Cyropaedia Xenophons narrative has elements that allow us to recognize aspects of her romance genre specifically the ldquoNovel of Educationrdquo (Bildungsroman) genre whose paradigm is in the work Goethersquos Wilhelm Meisters Apprenticeship (1795-1796) First we looked to define to what extent we can read the Cyropaedia as a work of fiction and not as a work of historiography from reflections on the relationship between Literature and History and mainly through a comparative analysis between the narrative of Cyropaedia and the narrative of Herodotusrsquo Histories We realize that Xenophon fictionalizes the narrative established by Herodotus whether taking up subjects or alluding to the Herodotus narratives Then starting from the Bakhtins notion that every genre preserves in the structure formal elements of archaica that not only characterize the genre in the form distinctive but also allows its renewal every new literary manifestation we tried to define which essential elements present in modern novel of education we can find in Cyropaedia We analyze scenes where are evident the action of mentors the presence of an educational institution the theological view of education Moreover an important characteristic essential of the ldquoNovel of Educationrdquo is the presence of a dynamic and evolutionary character that get formation in the course of the narrative We analyzed the construction and evolution of the main character of the narrative Cyrus by the analyzing of the expression of maxims The dissertation presents a full translation of Book I of Cyropaedia Keywords Ancient novel Novel of education History and Literature Historiography Xenophon Cyropaedia

9

SUMAacuteRIO

INDIacuteCE DE FIGURAS E QUADROS 10

1 INTRODUCcedilAtildeO 11

2 INTRODUCcedilAtildeO Agrave CIROPEDIA 17

21 O AUTOR 17 211 Vida 17 212 Corpus Xenofontis 21

22 CIROPEDIA 24 221 O tiacutetulo 24 222 Siacutentese da narrativa 25 223 A Ciropedia e a ideologia poliacutetica do seacuteculo IV 29 224 A Ciropedia na tradiccedilatildeo da narrativa 33 2241 O conceito de romance e seu uso anacrocircnico 34 2242 A ficccedilatildeo em prosa na Greacutecia 37 2243 Modos de Imitaccedilatildeo da Ciropedia 42

3 REESCREVENDO O PASSADO FICCIONALIZANDO A HISTOacuteRIA 45

31 HISTOacuteRIA E LITERATURA 45 32 CIRO NA HISTOacuteRIA E NA FICCcedilAtildeO 55

321 O ΛόΓΟΣ DE CIRO NA HISTOacuteRIA DE HEROacuteDOTO 57 322 Origem e infacircncia de Ciro 58 323 A cena de Creso o encontro dos monarcas 64 3231 Preparativos 64 3232 Creso prisioneiro de Ciro 67 3233 A intertextualidade e a reescrita da histoacuteria 76 324 A Morte de Ciro 77

33 O CIRO EacutePICO E O CIRO TRAacuteGICO 80

4 CIROPEDIA UM ROMANCE DE FORMACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE 85

41 BILDUNGSROMAN E SUAS ORIGENS 86 42 A PAIDEacuteIA COMO TEMA DA NARRATIVA O PROEcircMIO (CIROP I11-6) 91 43 AS ARCHAICA DO ROMANCE DE FORMACcedilAtildeO 97

431 A Instituiccedilatildeo educacional a paideia persa e a consciecircncia teleoloacutegica 97 432 Enganos e desmedidas a participaccedilatildeo dos mentores 108 4321 Afastamento da casa paterna Visita agrave Meacutedia 112 4322 Cambises mentor de Ciro (Cirop 16) 116

44 O GRAU DE ASSIMILACcedilAtildeO DO TEMPO HISTOacuteRICO 125 45 XENOFONTE EDUCADOR 130

5 IMAGEM E EVOLUCcedilAtildeO DO HEROacuteI DA CIROPEDIA 133

51 A MAacuteXIMA ESTRUTURA E CONTEUacuteDO 134 52 O HEROacuteI-SAacuteBIO 139

521 Quem fala quem ouve o contexto das maacuteximas na Ciropedia 140

53 O PERCURSO DE CIRO A FORMACcedilAtildeO DO ΔΙΔάΣΚΑΛΟΣ 153

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 159

7 TRADUCcedilAtildeO 163

8 BIBLIOGRAFIA 187

81 EDICcedilOtildeES E TRADUCcedilOtildeES DE XENOFONTE 187

82 AUTORES ANTIGOS 187

83 OUTROS AUTORES 189

10

IacuteNDICE DE FIGURAS E QUADROS

FIGURAS Figura 1 Ciro na corte do rei Astiacuteages 63 Figura 2 Creso a ponto de ser incendiado a mando de Ciro Acircnfora grega 75 Figura 3 Ciro comandando o exeacutercito persa 124 Figura 4 Cilindro de Ciro 158 QUADROS Quadro 1 Maacuteximas da Ciropedia 139 Quadro 2 Maacuteximas de guerra proferidas por Ciro 154 Quadro 3 Maacuteximas gerais proferidas por Ciro 154

11

1 Introduccedilatildeo

Redescobrir uma obra literaacuteria que tem sido desvalorizada pela criacutetica eacute uma

tarefa aacuterdua a que o estudioso estaacute sujeito poreacutem uma tarefa intensamente gratificante

A presente Dissertaccedilatildeo de Mestrado trata da Ciropedia de Xenofonte que se na

Antiguidade e no Renascimento foi muito apreciada nos dois uacuteltimos seacuteculos tem sido

rotulada de obra tediosa graccedilas principalmente ao seu caraacuteter idealista

O nosso interesse pela Ciropedia de Xenofonte nasceu em virtude das relaccedilotildees

da obra com a origem do gecircnero do romance Pareceu-nos que a Ciropedia apresentava

importantes inovaccedilotildees no campo da narrativa ficcional do Ocidente Aleacutem disso alguns

criacuteticos como Lesky (1986) e Bakhtin (2010) a classificam como um romance de

formaccedilatildeo um dos principais subgecircneros do romance moderno Apesar disso a obra natildeo

tem recebido atenccedilatildeo dos estudiosos do romance e mesmo no acircmbito da literatura

antiga a obra natildeo tem dispertado o interesse dos pesquisadores Observe-se que em

liacutengua portuguesa natildeo haacute estudos a respeito de Xenofonte

A criacutetica norte-americana no entanto a partir do estudo de Higgins (1977)

mostrou uma nova postura em relaccedilatildeo agraves obras de Xenofonte como um todo Sobre a

Ciropedia podemos citar os importantes trabalhos de Tatum (1989) Due (1989) e Gera

(1993) Os trabalhos destes trecircs autores satildeo relevantes pois tomam a Ciropedia como

objeto de estudo literaacuterio nem histoacuterico nem filosoacutefico Por este vieacutes os trabalhos

revelaram um escritor muito superior agravequele que a criacutetica da Histoacuteria do iniacutecio do seacuteculo

XX quis apresentar Pretendemos portanto analisar a Ciropedia como uma obra

literaacuteria mais especificamente como uma narrativa ficcional Ressaltamos que a nosso

ver um estudo aprofundado desta obra pode ajudar-nos a compreender melhor as

origens do romance moderno

Xenofonte viveu e produziu suas obras na Greacutecia do seacuteculo IV periacuteodo de

profundas mudanccedilas sociais poliacuteticas e culturais que assistiu tanto agrave decadecircncia do

Seacuteculo de Ouro de Peacutericles quanto agrave pavimentaccedilatildeo de um solo feacutertil para o surgimento

do helenismo (GLOTZ 1980 p240) No helenismo os ideais ciacutevicos e coletivos do

seacuteculo V aC foram substituiacutedos por um individualismo novo cuja preocupaccedilatildeo maior

era com a vida particular do indiviacuteduo Xenofonte foi um precursor do helenismo tanto

por suas posturas na vida puacuteblica quanto pela sua produccedilatildeo literaacuteria Podemos dizer que

foi um homem de vanguarda que se distanciou das ideias do seacuteculo anterior e pelas

12

novidades que apresentou foi muito admirado pelos escritores do helenismo No

capiacutetulo 2 Introduccedilatildeo agrave Ciropedia apresentamos algumas informaccedilotildees biograacuteficas a

respeito de Xenofonte e a respeito do contexto histoacuterico em que Xenofonte viveu e

produziu suas obras Aleacutem disso mostramos a questatildeo da prosa ficcional na Greacutecia

claacutessica e como a Ciropedia se insere nesta tradiccedilatildeo

Uma das principais dificuldades que se potildee ao estudioso da Ciropedia eacute

classificar a obra quanto ao gecircnero A intensa polecircmica sobre o enquadramento geneacuterico

da Ciropedia deve-se principalmente ao fato de a obra tratar de um tema histoacuterico (a

vida de Ciro o Velho) com liberdade manipulando ficcionalmente o material histoacuterico

conhecido A partir disso a obra tem sido designada de diversas maneiras

historiografia biografia histoacuteria romanceada biografia romanceada romance

filosoacutefico romance didaacutetico tratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Neste trabalho

efetuamos uma anaacutelise literaacuteria da Ciropedia no que tange seus aspectos romanescos

procurando argumentar que por meio de tais aspectos a obra de Xenofonte pode ser

lida como um romance ou proto-romance1

Classificar a obra por um determinado vieacutes significa necessariamente rejeitar as

outras classificaccedilotildees propostas pelos criacuteticos Poreacutem natildeo significa que na tessitura

narrativa da obra os elementos discursivos daqueles outros gecircneros natildeo estejam

presentes todavia a presenccedila por exemplo de elementos historiograacuteficos natildeo eacute o fator

determinante de caracterizaccedilatildeo da obra uma vez que eles estatildeo romancizados nela ou

seja estatildeo a serviccedilo de uma proposta ficcional que difere dos objetivos do texto

historiograacutefico Constituem portanto como traccedilos estiliacutesticos que adornam a narrativa

mas que natildeo a enformam natildeo a determinam

A argumentaccedilatildeo de que a Ciropedia pode ser lida como um romance deve

entatildeo levar em conta a anacronia do uso terminoloacutegico do romance A palavra romance

data do seacuteculo XII dC e referiu-se primeiramente agraves produccedilotildees literaacuterias em liacutenguas

romacircnicas em oposiccedilatildeo agraves obras literaacuterias produzidas em liacutenguas claacutessicas neste

contexto o termo romance designava tanto narrativas em prosa quanto narrativas em

verso Apenas no seacuteculo XV o termo passa a designar narrativas de ficccedilatildeo em prosa

Neste sentido o romance tem sido teorizado como um fenocircmeno estritamente moderno

proacuteprio das sociedades burguesas Para Lukaacutecs (1999) a forma do romance estabelece

1 A falta de uma terminologia entre os antigos para definir as obras de ficccedilatildeo em prosa torna necessaacuterio o uso anacrocircnico do termo romance Ressaltamos que tal uso deve levar em conta determinadas ressalvas para que natildeo pareccedilamos ingecircnuos ao efetuar tal classificaccedilatildeo anacrocircnica

13

uma oposiccedilatildeo entre indiviacuteduo e sociedade entre os impulsos daquele frente agraves

imposiccedilotildees desta O heroacutei romanesco portanto eacute o heroacutei problemaacutetico que

contestando os valores impostos pela sociedade inicia uma querela interna ou externa

contra esta opressatildeo Estes aspectos segundo Lukaacutecs (1999) satildeo proacuteprios da sociedade

burguesa e portanto o romance eacute um fenocircmeno artiacutestico desta sociedade

A teoria do romance proposta por Bakhtin tem o meacuterito entre muitos outros de

ampliar esta visatildeo lukacseana do romance Bakhtin natildeo nega o caraacuteter moderno da

forma do romance poreacutem observa em seus trabalhos de poeacutetica histoacuterica que o discurso

romanesco eacute fruto de um desenvolvimento longo provindo mesmo da Antiguidade e

que se desenvolveu plenamente na Modernidade Isso significa que aleacutem do romance

moderno haacute outras formas romanescas antes deste romance que satildeo essenciais para a

formaccedilatildeo do gecircnero O surgimento de uma obra e a sua permanecircncia estabelecem novos

criteacuterios literaacuterios que satildeo imitados ou negados pelos novos escritores Neste sentido o

desenvolvimento discursivo do romance pode e deve ser pesquisado em outros acircmbitos

para aleacutem do romance moderno para que o compreendamos da forma mais ampla

possiacutevel Desse modo a teoria de Bakhtin cujo conceito de romance adotamos

estabelece criteacuterios de anaacutelise e conceitos fundamentais para o nosso estudo

Aleacutem disso as poeacuteticas claacutessicas natildeo se interessaram pelas narrativas de ficccedilatildeo

em prosa e o gecircnero natildeo foi reconhecido pelo cacircnone claacutessico Por causa disso natildeo haacute

na Antiguidade uma terminologia especiacutefica para as prosas ficcionais Palavras como

argumentum e πλάσμα (plaacutesma) foram usadas respectivamente por Macroacutebius e o

Imperador Juliano para se referirem ao romance idealista grego cuja produccedilatildeo data do

periacuteodo entre os seacuteculos I aC e IV dC Por isso para Whitmarsh (2008 p3) o uso

anacrocircnico do termo romance ou novel natildeo eacute soacute um roacutetulo conveniente mas tambeacutem

necessaacuterio para o trabalho do criacutetico Holzberg (2003 p11) a despeito do anacronismo

dos termos dada a semelhanccedila entre as formas antigas e modernas acredita que

devemos aceitar sem dificuldades tais anacronismos Para Holzberg (2003) o real

problema eacute discutir quais as obras da Antiguidade podem ser chamadas de romance O

conceito de gecircnero deve ser legitimado nesse contexto fixando criteacuterios precisos para a

classificaccedilatildeo dessas obras

Em geral reconhecem-se como romance na Antiguidade as narrativas idealistas

gregas Nestas narrativas o tema amoroso e o da viagem configuram-se como uma

unidade caracterizadora Um jovem casal apaixonado de compleiccedilatildeo e alma perfeitas eacute

14

separado pelas vicissitudes do acaso Na separaccedilatildeo enfrentam todo tipo de obstaacuteculos

para um possiacutevel reencontro poreacutem eles se preservam fieacuteis um ao outro ateacute que no

final vencidos todos os obstaacuteculos eles podem viver juntos e felizes Basicamente esta

estrutura estaacute presente nos romances As Etioacutepicas de Heliodoro Queacutereas e Caliacuterroe de

Caacuteriton de Afrodiacutesias Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio Daacutefnis e Cloeacute de Longo e

As Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso Acrescentam-se ainda duas obras latinas que

combinam os temas de amor e de aventura com a mordaz saacutetira da sociedade Satyricon

de Petrocircnio e O Asno de ouro de Apuleio Por causa deste caraacuteter homogecircneo na

estrutura interna e pela sua finalidade luacutedica Holzberg (2003) define estas obras como

novels proper ou seja romances de fato

Para Holzberg (2003) a relaccedilatildeo da Ciropedia com os novels proper eacute legitimada

pela presenccedila de uma narrativa secundaacuteria a narrativa de Panteacuteia e Abradatas De fato

interligada agrave narrativa principal esta narrativa secundaacuteria apresenta os principais

elementos do tema amoroso do romance idealista grego o amor puro dos protagonistas

que satildeo personagens completamente ficcionais a separaccedilatildeo dos namorados a fidelidade

constantemente posta agrave prova e por fim o reencontro dos apaixonados Esta narrativa

foi muito famosa na Antiguidade e segundo alguns teorizadores do romance antigo

serviu de modelo para o romance idealista grego

No entanto uma vez que a estrutura da Ciropedia natildeo se resume agrave estrutura de

narrativas amorosas erotikoi logoi mas abrange outras haacute dificuldade por parte dos

criacuteticos (por exemplo BRANDAtildeO 2005 GUAL 1988) em aceitaacute-la como um

romance propriamente dito Devemos portanto observar para aleacutem da estrutura da

narrativa amorosa outros elementos da Ciropedia que se configuram como ficcionais e

romanescos e por meio da anaacutelise destes eacute que poderemos compreender a obra de fato

Ao lado dos novels proper Holzberg (2003) chama a atenccedilatildeo para os novels

fringe romances perifeacutericos obras de ficccedilatildeo em prosa que apresentam natildeo soacute uma

variedade temaacutetica muito mais ampla do que a dos novels proper mas tambeacutem uma

aproximaccedilatildeo com outros gecircneros discursivos (historiografia filosofia etc) Esta

aproximaccedilatildeo dificulta a demarcaccedilatildeo de limites precisos nessas obras em que a ficccedilatildeo se

relaciona com algum objetivo didaacutetico ou informativo e assim Holzberg (2003) atribui

a este grupo as mais variadas obras a-) biografia ficcional Ciropedia de Xenofonte

Vida e Andanccedilas de Alexandre da Macedocircnia de Pseudo-Caliacutestenes Vida de Esopo

(anocircnimo) Vida de Apolocircnio de Tiana de Filoacutestrato Atos dos apoacutestolos apoacutecrifos b-)

15

autobiografia ficcional Pseudo-Clemente c-) Cartas ficcionais Cartas de Eacutesquines

Cartas de Quioacuten Cartas de Euriacutepides Cartas de Hipoacutecrates Cartas de Platatildeo Cartas

de Soacutecrates e dos socraacuteticos e Cartas de Temiacutestocles

Aleacutem da diferenccedila temaacutetica os novels proper narram a histoacuteria de personagens

completamente inventadas ao contraacuterio dos novels fringe que ficcionalizam um dado

material histoacuterico A mais antiga dos novels fringe eacute a Ciropedia de Xenofonte escrita

por volta de 360 aC

Portanto no capiacutetulo 3 Reescrevendo o passado ficcionalizando a histoacuteria

observaremos as relaccedilotildees entre a ficccedilatildeo e a histoacuteria uma vez que o narrador se utiliza de

dados histoacutericos na construccedilatildeo da ficccedilatildeo na Ciropedia e demonstraremos como a

histoacuteria eacute manipulada incrementada e embelezada com ficccedilatildeo Nosso objetivo neste

capiacutetulo eacute a partir da anaacutelise argumentar que a Ciropedia natildeo eacute uma narrativa

historiograacutefica nos moldes do projeto estabelecido por Heroacutedoto e desenvolvido por

Tuciacutedides mas uma narrativa ficcional de tema histoacuterico Isso significa que a ficccedilatildeo se

mescla ao texto histoacuterico e com ele se confunde por meio desta estrateacutegia narrativa o

leitor eacute persuadido da verdade dos fatos narrados pela obra ficcional natildeo da verdade

enquanto fato veriacutedico mas como construccedilatildeo verossiacutemil

O capiacutetulo 4 Ciropedia um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade e o

capiacutetulo 5 Imagem e evoluccedilatildeo do heroacutei da Ciropedia constituem um bloco temaacutetico

em nossa Dissertaccedilatildeo Ambos por meios diferentes tratam da trajetoacuteria e do caraacuteter da

personagem principal da narrativa o heroacutei da Ciropedia e em ambos demonstraremos

que Ciro natildeo eacute uma personagem estaacutetica formada desde o iniacutecio da narrativa mas uma

personagem dinacircmica que evolui no decorrer da narrativa A personagem dinacircmica eacute

segundo Bakhtin (2010) a principal caracteriacutestica do romance de formaccedilatildeo o que o

distingue dos outros tipos de romance

No capiacutetulo 4 Ciropedia um romance de formaccedilatildeo na Antiguidade o nosso

foco eacute a possiacutevel classificaccedilatildeo da obra xenofonteana como romance de formaccedilatildeo

gecircnero moderno cujo paradigma eacute a obra Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister

de Goethe escrita no seacuteculo XVIII Para efetuarmos nossa anaacutelise recorreremos aos

estudos a respeito do romance de formaccedilatildeo para identificar as estruturas que ainda hoje

caracterizam o gecircnero Segundo Bakhtin (2010) todo gecircnero conserva na dinacircmica de

sua produccedilatildeo e reproduccedilatildeo determinadas estruturas que lhe satildeo caracterizadoras e satildeo

denominadas de archaica A permanecircncia destas estruturas natildeo eacute um fenocircmeno estaacutetico

poreacutem um fenocircmeno dinacircmico que se renova a cada nova manifestaccedilatildeo artiacutestica e

16

renovando-se permanecem como traccedilos distintivos do gecircnero Eacute por meio deste caraacuteter

de permanecircncia das estruturas que os leitores reconhecem se determinada obra pertence

ou natildeo a um gecircnero Aleacutem disso reconhecendo estes elementos podemos identificar a

histoacuteria do gecircnero os principais movimentos estruturais que determinam o

desenvolvimento da forma artiacutestica Desse modo a anaacutelise da archaica eacute fundamental

em um trabalho de poeacutetica histoacuterica

No capiacutetulo 5 Imagem e evoluccedilatildeo do heroacutei da Ciropedia analisaremos o

caraacuteter evolutivo de Ciro por meio do estudo de maacuteximas As maacuteximas configuram-se

como um discurso didaacutetico de grande potencial retoacuterico e apresentam na tessitura

narrativa da Ciropedia a nosso ver um importante papel na construccedilatildeo da personagem

principal Seraacute feito um levantamento das maacuteximas formuladas no decorrer de toda a

obra e uma avaliaccedilatildeo da forma como essas maacuteximas aparecem atentando-se para o

enunciador o destinataacuterio e o contexto de enunciaccedilatildeo e como elas participam da

formaccedilatildeo de Ciro Por meio desta anaacutelise poderemos observar a evoluccedilatildeo da

personagem

Segundo Aristoacuteteles na Retoacuterica as maacuteximas apresentam um caraacuteter eacutetico uma

vez que emitem um preceito moral decorrente de se pretender uma ldquonorma reconhecida

do conhecimento do mundordquo (LAUSBERG 1966 p235) Aleacutem disso por emitirem um

preceito moral natildeo soacute revelam as preferecircncias do orador mas o proacuteprio caraacuteter dele

Aleacutem disso como efeito retoacuterico as maacuteximas contecircm em si um elemento discursivo

extremamente poeacutetico que se relaciona muito menos com o conteuacutedo da mensagem do

que com a forma de sua expressatildeo Neste sentido o uso de maacuteximas aliado a outros

expedientes retoacutericos revela tambeacutem um esforccedilo de embelezar o discurso prosaico

A Ciropedia de Xenofonte eacute uma narrativa ficcional de caraacuteter idealizante que

trata da vida de Ciro o Velho fundador do Impeacuterio persa O principal interesse de

Xenofonte eacute discutir sobre a arte de governar poreacutem ao inveacutes de fazer um tratado sobre

o tema ele faz suas reflexotildees em forma de uma narrativa biograacutefica O tema da vida de

Ciro uma personagem especiacutefica do passado eacute representado como paradigma da arte de

governar Para efetuar esta representaccedilatildeo Xenofonte desatrela-se da fidelidade agrave

histoacuteria que para os antigos soacute pode ser alcanccedilada por meio da verdade e ficcionaliza

esse passado Eacute nosso objetivo portanto analisar como Xenofonte constroacutei a sua ficccedilatildeo

reconhecer os elementos romanescos e observar o grau de inovaccedilatildeo literaacuteria apresentado

por esta narrativa xenofonteana

17

2 Introduccedilatildeo agrave Ciropedia

Εἰ καὶ σέ Ξενοφῶν Κραναοῦ Κέκροπός τε πολῖται

φεύγειν κατέγνων τοῦ φίλου χάριν Κύρου

ἀλλὰ Κόρινθος ἔδεκτο φιλόξενος ᾗ σὺ φιληδῶν

(οὕτως ἀρέσκῃ) κεῖθι καὶ μένειν ἔγνως2 Dioacutegenes Laeacutercio

Antologia Palatina 7981

21 O autor

211 Vida

Xenofonte3 nasceu por volta de 430 aC na Aacutetica no demo de Eacuterquia4 em

plena guerra do Peloponeso Descendente de uma famiacutelia abastada de proprietaacuterios

rurais era filho de Grilo5 e acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense na primeira

fase de sua vida Sua origem e educaccedilatildeo aristocraacutetica emergem de forma clara por toda

sua obra ao condenar muitas das accedilotildees dos poliacuteticos democratas6 Conforme

comentaacuterio drsquoAs Helecircnicas7 (1994) Xenofonte participou da cavalaria ateniense tanto

na Liacutedia em 410 aC8 quanto ao lado dos oligarcas do Governo dos Trinta na

turbulenta Atenas poacutes-Peloponeso9 Para Jaeger (1995 p1144) a imagem filoespartana

de Xenofonte decorrente deste periacuteodo natildeo permitiu durante deacutecadas que o escritor

ateniense tivesse um contato paciacutefico com a paacutetria

2 Traduccedilatildeo nossa Se tambeacutem a ti Xenofonte os cidadatildeos de Cranau e Ceacutecropes Acusavam de fugir por causa do amigo Ciro Corinto hospitaleira te recebeu onde encontrando o prazer (a ponto de ficar satisfeito) ali resolveste permanecer 3 As informaccedilotildees a respeito da vida de Xenofonte satildeo conhecidas principalmente pela biografia que Dioacutegenes Laeacutercio dedica a ele no livro II de sua obra Vidas dos Filoacutesofos Ilustres (II 48-59) 4 O demo de Eacuterquia fica localizado entre Himeto montanha da Aacutetica e Pentele demo ateniense a quinze quilocircmetros de Atenas 5 Filoacutestrato na obra Vida dos Sofistas refere-se a Xenofonte apenas como ldquoo filho de Grilordquo (I 12 96) 6 Hutchinson (2000) cita como exemplo a criacutetica que nas Helecircnicas Xenofonte faz agrave condenaccedilatildeo dos vitoriosos generais de Arginusas em 406 aC que estes sofreram por natildeo terem retirado os corpos dos soldados do mar em plena tempestade 7 Hel I2 8 Hutchinson 2000 p14 9 Para Luciano Cacircnfora (2003 p40) a viagem de Xenofonte agrave Peacutersia para integrar-se ao exeacutercito de Ciro o Jovem vincula-se a sua participaccedilatildeo no governo dos Trinta Isso explicaria para ele o verdadeiro motivo de Xenofonte ter desobedecido ao conselho de Soacutecrates natildeo perguntando ao oraacuteculo de Delfos se deveria ou natildeo partir para a Peacutersia como o mestre aconselhara mas perguntando a quais deuses deveria sacrificar para retornar a salvo agrave Greacutecia

18

Durante sua juventude manteve contato com o ciacuterculo socraacutetico Os

ensinamentos de Soacutecrates ainda que natildeo tenham feito dele um filoacutesofo de fato como

Platatildeo e Antiacutestenes tiveram uma profunda influecircncia em sua personalidade10 A

respeito do primeiro encontro de Xenofonte com Soacutecrates Dioacutegenes Laeacutercio (1977)

narra a seguinte anedota (L II48) Soacutecrates caminhando pelas ruas de Atenas ao

deparar-se com Xenofonte11 barrou-lhe a passagem com um bastatildeo e perguntou-lhe

onde se adquire todo tipo de mercadorias (ποῦ πιπράσκοιτο τῶν προσφερομένων

ἕκαστον) Xenofonte indicou-lhe o caminho e Soacutecrates entatildeo lhe perguntou em que

lugar os homens tornavam-se excelentes (ποῦ δὲ καλοὶ κἀγαθοὶ γίνονται

ἄνθρωποι) e diante da perplexidade do jovem convidou-o a segui-lo12

Na primavera de 401aC Xenofonte se juntou com mais dez mil mercenaacuterios

gregos ao exeacutercito persa13 de Ciro o Jovem que tentava destronar seu irmatildeo

Artaxerxes II do trono persa Na batalha de Cunaxa apesar da vitoacuteria sobre os

inimigos Ciro foi morto Os aliados persas de Ciro natildeo tendo mais o seu liacuteder

renderam-se ao exeacutercito do rei Artaxerxes e os gregos se viram desamparados no

territoacuterio baacuterbaro Neste contexto os gregos elegeram Xenofonte como um de seus

novos generais que os guiaria em retirada atraveacutes da Aacutesia Menor14 em ldquo[] uma das

mais surpreendentes experiecircncias militares da histoacuteria []rdquo (HUTCHINSON 2000

p14)

Com a chegada do exeacutercito na estrateacutegica regiatildeo do Helesponto Xenofonte

entregou o exeacutercito de mercenaacuterios gregos agraves matildeos do rei espartano Agesilau que

naquele momento lutava contra os mesmos persas Em 396 aC por causa da guerra

contra Corinto Agesilau retornou agrave paacutetria e em 394 aC a cidade de Atenas aliada dos

10 Lesky 1986 p651 11 Em sua narrativa Dioacutegenes Laeacutercio natildeo elucida o que exatamente teria chamado a atenccedilatildeo de Soacutecrates em Xenofonte Poreacutem no iniacutecio de sua biografia ele afirma que Xenofonte era tido como um homem ldquoextremamente modesto e de oacutetima aparecircnciardquo (αἰδήμων δὲ καὶ εὐειδέστατος εἰς ὑπερβολήν) (L II48) 12 Para Luciano Cacircnfora ldquoNessa anedota na qual talvez pela primeira vez no Ocidente filosofia e mercadoria satildeo colocadas como antiacutepodas tem desde logo um clima de proselitismo e conversaccedilatildeo O encontro com o mestre configura um corte com o passadordquo (2003 p61) 13 ldquoNatildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino de sua vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde dos Persasrdquo (JAEGER 1995 p1142) 14 Ao alcanccedilarem o mar os gregos teriam gritado θἁλαττα θἁλαττα thaacutelatta thaacutelatta oh mar oh mar James Joyce em seu monumental Ulysses faz uma referecircncia a esta passagem quando Buck Mulligam ao observar da torre em que mora com Stephen Dedalus exclama em grego o citado vocativo Esta cena tambeacutem serviu de referecircncia para o poema ldquoMeergrussrdquo do livro Buch Der Lieder (Livros das Canccedilotildees) de Henrich Heine

19

beoacutecios travou batalha contra os espartanos e Xenofonte lutou contra os seus

compatriotas na batalha de Queroneacuteia Por causa da sua participaccedilatildeo na batalha

Xenofonte foi exilado de Atenas15 Em compensaccedilatildeo pelos altos serviccedilos prestados a

Esparta Xenofonte recebeu em homenagem a proxenia16 e um terreno em Escilunte

perto de Oliacutempia

Em Escilunte Xenofonte dedicou-se agrave vida de proprietaacuterio de terra ao exerciacutecio

da caccedila e da equitaccedilatildeo e a escrever seus textos literaacuterios17 Permaneceu ali ateacute 371 aC

quando Tebas derrotou Esparta na batalha de Leuctra sendo obrigado a viver em

Corinto Nesta eacutepoca entretanto como Tebas era inimiga tambeacutem de Atenas Atenas e

Esparta aproximaram suas relaccedilotildees e o exiacutelio de Xenofonte foi revogado Em 362 aC

na batalha de Mantineia Grilo filho de Xenofonte serviu na cavalaria ateniense e

morreu em combate A atuaccedilatildeo valorosa de Grilo na batalha segundo Dioacutegenes

Laeacutercio rendeu a ele vaacuterios epigramas18 Xenofonte morreu com aproximadamente 70

anos entre os anos de 359-355 aC Natildeo se sabe se de fato ele retornou a Atenas ou se

morreu em Corinto mas eacute provaacutevel que tenha retornado agrave cidade natal

Como observa Jaeger (1995) Xenofonte jaacute natildeo podia sentir-se integrado na

ordem tradicional da polis ateniense Segundo Glotz (1980 p269) o que sucede de

mais grave no seacuteculo IV para o regime poliacutetico da polis eacute o fato de que em face agraves

crescentes dificuldades do regime democraacutetico o individualismos se aprofunda19

sobrepujando as ideias de patriotismo Xenofonte eacute neste sentido o tipo perfeito de

grego deste periacuteodo desatado de qualquer laccedilo que o vincule agrave terra natal Abandonou

Atenas quando o impeacuterio se desfalecia interior e exteriormente e ldquo[] tomou em suas

15 Cacircnfora (2003) acredita que o exiacutelio de Xenofonte se deu em 399aC por ele ser partidaacuterio dos oligarcas em Atenas A maior parte da criacutetica no entanto seguindo as informaccedilotildees de Dioacutegenes Laeacutercio e a interpretaccedilatildeo claacutessica de Delebecque (1957) aceita a data de 394aC para seu exiacutelio relacionando-o agrave sua participaccedilatildeo na batalha de Queroneacuteia 16 O tiacutetulo de proxenia era dado aos estrangeiros que recebiam inuacutemeros privileacutegios da cidade a προεδρία (proedria) direito a lugar de honra nas festas puacuteblicas προδικία (prodikia) direito de prioridade perante os tribunais ἀσυλία (asylia) garantias contra o direito de captura ἀτέλεια (ateleia) isenccedilatildeo de taxas ἐνκτεσις γῆς τῆς οἰκίας (enktesis ges tes oikias) direito de adquirir imoacuteveis Em troca o cidadatildeo tornava-se patrono e protetor da cidade (JARDEacute 1977 p202) 17 Lesky (1986 p652) a despeito das informaccedilotildees dos antigos ndash principalmente Plutarco em Sobre el Destierro (1996) ndash acredita que a fase de maior produtividade de Xenofonte se deu com seu retorno a Atenas eacutepoca de sua vida sobre a qual temos menos informaccedilotildees No entanto a maior parte da criacutetica seguindo Delebecque (1957) manteacutem que Xenofonte compocircs suas obras em Escilunte 18 O proacuteprio Dioacutegenes levanta a questatildeo de que os que compuseram epigramas desejavam mais tornarem-se agradaacuteveis a Xenofonte do que tornar o nome de Grilo imortal 19 Glotz (1980) observa que o individualismo crescente na vida social grega tambeacutem influencia a literatura do seacuteculo IV justificando por esta tendecircncia o aparecimento dos escritos encomiaacutesticos e das novas tendecircncias da historiografia grega

20

matildeos a direccedilatildeo de sua proacutepria vida []rdquo (JAEGER 1995 p1143) Esta sua postura

inovadora no campo social tambeacutem se revela no acircmbito literaacuterio

Xenofonte era homem de muacuteltiplos interesses dono de uma linguagem clara

que lhe valeu o epiacuteteto na Antiguidade de ldquoMusa Aacuteticardquo O aacutetico xenofonteano

apresenta algumas diferenccedilas do aacutetico claacutessico pois uma vez que esteve afastado de

Atenas por muito tempo entrou em contato com outras regiotildees e dialetos Segundo

Gautier em sua obra La langue de Xenophon (apud SANSALVADOR 1987 p46) a

liacutengua de Xenofonte apresenta elementos doacutericos jocircnicos e ateacute particularidades

poeacuteticas Estas particularidades estranhas ao aacutetico claacutessico propiciaram ao autor a

oportunidade de enriquecer a liacutengua materna apontando conforme Lesky (1986 p656)

a κοινή a liacutengua comum do periacuteodo heleniacutestico

A liacutengua e o estilo de Xenofonte foram muito admirados na Antiguidade O

Suda o chama de ldquoabelha aacuteticardquo pela doccedilura de sua linguagem a que Ciacutecero jaacute aludira

no Orator (IX 22) Os gramaacuteticos da Antiguidade apreciavam sua simplicidade

Demeacutetrio (Sobre o estilo 137 181) admirava sua concisatildeo e solenidade aleacutem do ritmo

quase meacutetrico de algumas passagens

Quanto ao estilo Xenofonte foi influenciado tanto pelos sofistas quanto pelos

retores ldquo[] poreacutem seu caraacuteter ateniense o preservou de todo excesso levando-o a

utilizar os recursos da prosa artiacutestica com a maacutexima moderaccedilatildeo []rdquo

(SANSALVADOR 1987 p46) Xenofonte foi disciacutepulo de Proacutedico e talvez tenha

frequentado os cursos de Goacutergias cujo estilo exerceu forte influecircncia na prosa da

eacutepoca20 (SANSALVADOR 1987 p47) O uso de figuras de linguagem revela a

preocupaccedilatildeo esteacutetica do escritor que procurava tornar o texto natildeo soacute informativo mas

tambeacutem agradaacutevel a seus leitores

Aleacutem disso Xenofonte foi um escritor poliacutegrafo ndash o primeiro na Greacutecia ndash ou

seja sua produccedilatildeo abarca vaacuterios gecircneros literaacuterios ndash diaacutelogo socraacutetico banquete

encocircmio tratados narrativas A Ciropedia que eacute uma obra de maturidade de

Xenofonte combina em sua estrutura narrativa elementos destes outros gecircneros

literaacuterios que se mesclam agrave narrativa e de certa forma datildeo vivacidade a ela Satildeo os

20 Para Momigliano (1984 p12) o estilo da historiografia era regulado pelas normas da prosa retoacuterica diferenciando-se deste gecircnero discursivo pela finalidade Esta influecircncia da retoacuteria na historiografia demonstra a preocupaccedilatildeo dos historiadores com o embelezamento dos seus discursos ainda que este embelezamento natildeo seja o principal objetivo do historiador Cf Joly F D (Org) Histoacuteria e retoacuterica Ensaios sobre historiografia antiga (2007)

21

discursos21 os diaacutelogos socraacuteticos22 e os episoacutedios romanescos23 que natildeo surgem de

forma desconexa mas satildeo entrelaccedilados perfeitamente com a accedilatildeo principal da narrativa

(GERA 1993 p187) A experiecircncia obtida durante a escrita destas outras obras eacute

fundamental para o manejo consciente destes elementos dentro da narrativa principal da

Ciropedia

212 Corpus Xenofontis

A cronologia das obras de Xenofonte eacute incerta e por isso os criacuteticos tendem a

classificaacute-las de acordo com o estilo No entanto a classificaccedilatildeo quanto ao estilo

tambeacutem natildeo eacute segura como afirma Ana Lia A de A Prado (1999) Para fins didaacuteticos

a classificaccedilatildeo apresentada a seguir das obras de Xenofonte segue a adotada por Lesky

(1986 p652)

a-) Obras histoacutericas

Anaacutebase24 (Κύρου ἀνάβασις) considerada por alguns a mais bela obra de

Xenofonte esta narrativa memorialista trata da fuga dos mercenaacuterios atraveacutes da Peacutersia

apoacutes expediccedilatildeo frustrada de Ciro o Jovem contra seu irmatildeo Artaxerxes II

Helecircnicas (Ἐλλήνικα) a mais historiograacutefica das obras de Xenofonte conta a

histoacuteria da Greacutecia de 411 aC ateacute 362 aC continuando a narrativa de Tuciacutedides

exatamente do ponto em que este a deixou com a sua morte

21 O sentido de discurso aqui empregado eacute o de mensagem oral proferida perante uma assistecircncia Tanto a obra de Heroacutedoto quanto a de Tuciacutedides apresentam diversos discursos que entremeiam a narrativa Em geral estes discursos aparecem antes das batalhas retardando-as para criar o cliacutemax na narrativa e sendo uma influecircncia da eacutepica homeacuterica eacute um topos do gecircnero historiograacutefico 22 Xenofonte escreveu os diaacutelogos socraacuteticos Econocircmico Banquete Memoraacuteveis e Hieratildeo Este gecircnero proporciona maior vivacidade dinamismo e expressividade da linguagem Aparecem em geral relacionados a banquetes e nota-se a frequente preocupaccedilatildeo didaacutetica nos diaacutelogos marcada pela presenccedila de um mestre e um disciacutepulo Eacute importante ressaltar que na Ciropedia os diaacutelogos versam sobre temas gerais poreacutem conforme a anaacutelise feita por Gera (1993) o estilo destes diaacutelogos eacute o mesmo do usado naquelas obras citadas 23 Nestes episoacutedios Xenofonte procura comover e deleitar seus leitores com narrativas repletas de πάθος

(pathos) As narrativas apresentam ainda forte impressatildeo didaacutetica sempre ligadas agrave narrativa principal de Ciro Gera (1993 p197) analisando estas narrativas afirma que nelas Xenofonte tem uma preocupaccedilatildeo maior com a linguagem criando textos de grande valor esteacutetico Uma destas narrativas a de Panteacuteia foi muito imitada pelos romancistas gregos tendo-se notiacutecia de um romance perdido provavelmente do seacuteculo II dC que tinha como tiacutetulo o nome das personagens Panteacuteia e Araspas Cf Brandatildeo J L A invenccedilatildeo do romance (2005 p61) 24 Todas as obras de Xenofonte referidas aqui satildeo datadas da primeira metade do seacuteculo IV aC Agrave medida que pudermos apresentar mais precisatildeo em alguma obra vamos oferecer a possiacutevel data de escrita da obra

22

Agesilau (Αγησιλαος) encocircmio25 ao rei Agesilau de Esparta obra em que

Xenofonte revela forte retoricismo principalmente quando comparada agrave descriccedilatildeo da

mesma personagem feita pelo mesmo Xenofonte nas Helecircnicas

Constituiccedilatildeo dos Lacedemocircnios (Λακεδαιμονίων Πολιτεία) descriccedilatildeo das

leis espartanas na qual Xenofonte fala das causas do apogeu e da decadecircncia da cidade

de Esparta

Os recursos ou sobre as rendas (Πόροι ἢ περί προσόδων) cuja autenticidade

hoje jaacute natildeo se contesta eacute um escrito a respeito das financcedilas de Atenas procurando

solucionar seus problemas

b-) Obras didaacuteticas

Hipaacuterquicos (Ἱππαρχικος) texto dirigido aos comandantes da cavalaria

ateniense

Sobre a equitaccedilatildeo (περὶ ἱππιχῆς) um manual sobre a praacutetica da equitaccedilatildeo e do

modo de se tratar o cavalo para ter do animal um completo domiacutenio

Cinegeacutetico (Κυνηγέτικος) livro a respeito da praacutetica da caccedila Sua

autenticidade eacute contestada principalmente por causa da linguagem que se afasta da

habitual clareza e simplicidade agradaacutevel de Xenofonte

c-) Obras socraacuteticas

Econocircmico (Οἰκονόμικος) que teve muitos admiradores na Antiguidade eacute um

diaacutelogo sobre a administraccedilatildeo do casa (οἴκος) e por causa de seu caraacuteter teacutecnico

alguns criacuteticos como Lesky (1986) preferem classificaacute-la nas obras didaacuteticas de

Xenofonte

Memoraacuteveis (Ἀπομνημονεύματα Σώκρατους) obra feita de reminiscecircncias

do velho mestre Soacutecrates colocando-o no centro de diversas discussotildees nas quais

muitos dos temas de interesse de Xenofonte satildeo retomados

Apologia de Soacutecrates (Ἀπολογία Σώκρατους) como a obra homocircnima de

Platatildeo trata do julgamento de Soacutecrates

25 A retoacuterica antiga distinguia trecircs gecircneros de discurso em prosa judiciaacuterio deliberativo e o encocircmio ou epidiacutetico O epidiacutetico trata do elogio ou criacutetica a determinada pessoa puacuteblica Sua origem estaacute nas oraccedilotildees fuacutenebres Cf Reboul O Introduccedilatildeo agrave Retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 1998

23

Banquete (Συμπόσιον) diaacutelogo simposiaacutestico que trafega pelos principais

temas discutidos por Xenofonte em suas outras obras

Hieratildeo (Ἱερῶν) diaacutelogo no qual o tirano Hieratildeo e o poeta Simocircnides discutem a

respeito da tirania

Atribui-se ainda a Xenofonte por paralelismo com a Constituiccedilatildeo dos

Lacedemocircnios o texto Constituiccedilatildeo Ateniense (Ἑλλήνικα πολιτεία) poreacutem se aceita

que a obra seja espuacuteria e data do uacuteltimo quarto do seacuteculo V aC quando Xenofonte

deveria ter menos de vinte anos

Das obras de Xenofonte a mais difiacutecil de se classificar eacute a Ciropedia (Κύρου

Παιδέια) Lesky (1986) a classifica como uma obra histoacuterica pois o tema da

Ciropedia eacute a vida de Ciro o Velho imperador da Peacutersia No entanto Lesky reconhece

a dificuldade desta classificaccedilatildeo Ana Lia A de A Prado (1999) classifica-a como obra

didaacutetica em virtude do caraacuteter didaacutetico que sublinha a narrativa A obra ainda tem sido

chamada de biografia histoacuteria romanceada biografia romanceada romance filosoacutefico

romance didaacutetico tratado de educaccedilatildeo instituiccedilatildeo militar obra socraacutetica26

A influecircncia da Ciropedia na literatura posterior eacute sentida em obras como A vida

de Apolocircnia de Tiana (seacutec II) de Filoacutestrato No Renascimento a obra foi muito

traduzida e imitada inserindo-se como modelo dos romances de Feneloacuten As aventuras

de Telecircmaco (1694-1695) M de Scudery Artamene ou o grande Ciro (1649-1653) e

Wieland Agathon (1766) Wieland escreveu ainda um drama chamado de Araspas und

Panthea (1759) retomando a narrativa amorosa destas personagens da Ciropedia Esta

influecircncia de Xenofonte sobre Wieland eacute de particular interesse uma vez que o Agathon

de Wieland eacute classificado como uma das primeiras manifestaccedilotildees do Bildungsroman

alematildeo e teve grande influecircncia sobre o Wilhelm Meister de Goethe Aleacutem disso

Montaigne e Maquiavel principalmente em O Priacutencipe apreciavam as ideacuteias expressas

na Ciropedia Na literatura em liacutengua portuguesa podemos encontrar referecircncias agrave

Ciropedia em autores claacutessicos como Camotildees nrsquoOs Lusiacuteadas (1962 X 48-49) e

Claacuteudio Manoel da Costa em seu poema Vila Rica (2002 IV) Machado de Assis no

seu romance Esauacute e Jacoacute (1976) no capiacutetulo LXI intitulado Lendo Xenofonte

apresenta a personagem do Conselheiro Aires manuseando o texto grego do primeiro

capiacutetulo da Ciropedia No seacuteculo XX dois apreciadores das obras de Xenofonte satildeo 26 Cf a introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo de Marcel Bizos Belles Lettres 1972

24

Iacutetalo Calvino que lhe dedica um capiacutetulo na sua obra Por que ler os claacutessicos (1993) e

o escritor portuguecircs Aquilino Ribeiro que traduziu tanto a Ciropedia com o tiacutetulo de O

Priacutencipe Perfeito (1952) quanto a Anaacutebase com o tiacutetulo de A Retirada dos dez mil

(1957) Sobre a Anaacutebase eacute interessante a retomada desta narrativa no filme de Walter

Hill (1979) Selvagens da noite (The Warriors) em que o diretor transporta a narrativa

para um tempo futuro na cidade de Nova York dominada por gangues

22 Ciropedia

221 O tiacutetulo

ΚΥΡΟΥ ΠΑΙΔΕΙΑ27 (Cyrou paideia) eacute a forma tradicional com que nossa obra

de estudo eacute referida desde Aulo Geacutelio28 A maior parte das traduccedilotildees dessa obra procura

geralmente ou manter a transliteraccedilatildeo da liacutengua grega com o termo Ciropedia ou

traduzir o sentido dos termos por A Educaccedilatildeo de Ciro29 Alguns criacuteticos

(BREITENBACH 1966 BIZOS 1972) assinalam que este tiacutetulo conveacutem apenas ao

Livro I da narrativa jaacute que os objetivos dos outros livros seriam apresentar o ideal de

soldado e soberano a partir da figura exemplar de Ciro o Velho Para Marcel Bizos

(1972) o tiacutetulo que mais se adequaria agrave obra seria simplesmente Ciro seguindo a

tradiccedilatildeo das biografias retoacutericas do seacuteculo IV como a proacutepria obra de Xenofonte

Agesilau ou o Evaacutegoras de Isoacutecrates30

Outros autores como Higgins (1977) e Due (1989) interpretam o sentido de

educaccedilatildeo na obra de forma ampla compreendendo-a como um aprendizado atraveacutes da

vida Neste sentido o tiacutetulo seria coerente com o todo da narrativa Ana Vegas

Sansalvador (1987 p7) tem a mesma opiniatildeo e procura demonstraacute-la analisando o

27 Ciacutecero (1946 p203) em carta ao seu irmatildeo Quintus refere-se agrave obra apenas como Ciro Cyrus ille a Xenophonte non ad historiae finem scriptus 28 Cf Noches Aticas XIV 3 Neste capiacutetulo o autor trata da possiacutevel inimizade entre Xenofonte e Platatildeo atestada por outros bioacutegrafos 29 Das traduccedilotildees em portuguecircs Jaime Bruna (1965) prefere o tiacutetulo A Educaccedilatildeo de Ciro enquanto Joatildeo Feacutelix Pereira (1964) prefere Ciropedia Jaacute Aquilino Ribeiro (1952) inova ao nomear a sua traduccedilatildeo de O Priacutencipe Perfeito Adotaremos neste trabalho o tiacutetulo de Ciropedia a partir de agora 30 Tal interpretaccedilatildeo de Marcel Bizos em nossa opiniatildeo condiz apenas com o conteuacutedo da Ciropedia em comparaccedilatildeo com as narrativas biograacuteficas Demonstraremos no entanto em seu devido momento que do ponto de vista da forma narrativa a Ciropedia se distancia deste tipo de biografia

25

proecircmio da obra Para a autora em Ciropedia (I 1 6) Xenofonte estabelece os trecircs

aspectos fundamentais de sua investigaccedilatildeo ndash a linhagem (genean) as qualidades

naturais (phusin) e a educaccedilatildeo (paideia) A partir disso o narrador se compromete a

apresentar o desenvolvimento de seu heroacutei (Livro I) e seu modo de atuar entendido

como consequecircncia desse desenvolvimento (Livros II-VIII) Assim a educaccedilatildeo natildeo

seria apenas a participaccedilatildeo do jovem em instituiccedilotildees de ensino mas a caminhada pela

vida na qual os ensinamentos da juventude satildeo testados reavaliados e aprimorados

Bodil Due (1989 p15) analisando a descriccedilatildeo que Xenofonte faz da paideia31 persa

nos mostra que esta eacute um assunto puacuteblico cabendo ao Estado regulamentar os deveres

programas e funcionamento da comunidade para cada classe divididas por faixa etaacuteria

e que mesmo os mais velhos estatildeo sob a vigilacircncia contiacutenua em vista do

aperfeiccediloamento a paideia persa neste sentido prolonga-se atraveacutes da vida

222 Siacutentese da narrativa

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC O enredo trata da vida de Ciro o

Velho fundador do Impeacuterio persa desde o seu nascimento ateacute sua morte

O Livro I abre com um proecircmio (Livro I 11-6) no qual o narrador reflete

sobre as dificuldades de se governar concluindo que esta eacute uma tarefa aacuterdua mas natildeo

impossiacutevel pois descobriu em sua pesquisa que existiu certo Ciro que se fez respeitar e

amar pelos suacuteditos de seu Impeacuterio No capiacutetulo 2 narra-se a genealogia e as qualidades

naturais de Ciro e o sistema educacional persa pelo qual Ciro como cidadatildeo teria

passado Nos capiacutetulos 3 e 4 narra-se de modo romanesco a visita de Ciro agrave corte de seu

avocirc materno Astiacuteages rei da Meacutedia32 Ciro decide permanecer na Meacutedia para

aperfeiccediloar-se e tornar-se o melhor quando retornasse agrave Peacutersia Eacute interessante que Ciro

revela agrave sua matildee os limites da educaccedilatildeo persa e justifica a sua estadia na Meacutedia pelo

complemento da sua educaccedilatildeo No Capiacutetulo 4 (16-24) quando estava com quinze ou

dezesseis anos Ciro participa com extraordinaacuteria bravura de sua primeira expediccedilatildeo

beacutelica Apoacutes essa experiecircncia Ciro retorna agrave Peacutersia (I 5) prosseguindo sua formaccedilatildeo 31 A παιδεία segundo Jaeger (1995) eacute um projeto de educaccedilatildeo que visava agrave formaccedilatildeo do homem em todas as suas dimensotildees A palavra aparece apenas no seacuteculo V aC poreacutem reflete preocupaccedilotildees que jaacute encontramos em Homero 32 A Meacutedia eacute a antiga regiatildeo da Aacutesia entre o mar Hircacircnion e a Peacutersia Na versatildeo de Heroacutedoto apoacutes ser dominada por Ciro passou a fazer parte do Impeacuterio persa Jaacute na versatildeo de Xenofonte ela passa a fazer parte do Impeacuterio persa por meio de uma alianccedila quando Ciro se casa com a filha de Ciaxares

26

ciacutevica e moral de acordo com o sistema educacional descrito no capiacutetulo 2

distinguindo-se dos seus compatriotas no cumprimento dos seus deveres Apoacutes dez

anos Ciro eacute escolhido pelos anciatildeos do conselho para liderar o exeacutercito persa na

alianccedila com a Meacutedia em guerra contra a Assiacuteria (I 52-5) e faz seu primeiro discurso

como liacuteder aos principais generais (I 56-14) Por fim o uacuteltimo capiacutetulo do primeiro

livro eacute um longo diaacutelogo entre Ciro e seu pai Cambises e este enquanto acompanha seu

filho ateacute a fronteira da Peacutersia com a Meacutedia expotildee as qualidades que devem adornar um

bom chefe militar e os conhecimentos para obter a obediecircncia de seus soldados

O Livro II e o Livro III (este ateacute o capiacutetulo 3 paraacutegrafo 9) formam uma unidade

temaacutetica O capiacutetulo 1 do Livro II inicia-se com o relato dos preparativos para a

campanha Haacute um cataacutelogo dos inimigos e dos aliados (II 15-6) e as primeiras atuaccedilotildees

de Ciro como chefe militar resolvendo a falta de contingente equipando os soldados

rasos com o mesmo armamento dos soldados de elite (II 19) e organizando concursos e

recompensas para fomentar a emulaccedilatildeo e treinar seus homens (II 111-18) No capiacutetulo

2 daacute-se lugar a um simpoacutesio na tenda de Ciro na qual se reuacutenem os principais generais

do exeacutercito que narram pequenas e divertidas anedotas da vida cotidiana do exeacutercito

Apoacutes Ciro acertar com os seus subordinados a forma de divisatildeo dos espoacutelios (II 3)

inicia-se a campanha da Armecircnia (II 4 ndash III 1) antiga aliada da Meacutedia que se negava a

pagar os impostos cobrados pelos aliados e sua submissatildeo a Ciro que tem seu ponto

alto no diaacutelogo entre Ciro e Tigranes filho do rei Armecircnio que tenta salvar seu pai do

julgamento em que Ciro representa o papel de juiz No Livro 3 capiacutetulo 2 relata-se a

expediccedilatildeo agrave Caldeia em que Ciro conclui a paz entre a Armecircnia e a Caldeia

Do Livro III 39 ateacute o Livro V 136 a narrativa trata da expediccedilatildeo agrave Assiacuteria

Comeccedila com os preparativos o discurso exortativo a discussatildeo entre Ciro e Ciaxares a

respeito da taacutetica que se deve seguir (III 39-55) prossegue com a marcha contra o

inimigo e a primeira batalha que garante a vitoacuteria aos persas (III 356 - IV 118) A

despeito do temor de Ciaxares Ciro junto com alguns voluntaacuterios medos persegue os

inimigos (IV 119-24) e consegue o apoio dos hircanos ex-aliados dos assiacuterios (IV 2)

Nos capiacutetulos 3 4 e 5 do Livro IV Ciro projeta e organiza uma cavalaria persa nestes

capiacutetulos se contrastam a figura de Ciaxares incapaz e ciumento do ecircxito de Ciro e

este empreendedor e triunfante No capiacutetulo 6 (Livro IV) conta-se a histoacuteria de

Goacutebrias o desertor do rei Assiacuterio O filho de Goacutebrias fora assassinado pelo rei Assiacuterio

pois ficara com ciuacutemes da beleza do jovem A uacuteltima seccedilatildeo do livro IV (611-12) narra a

27

divisatildeo de espoacutelio e fica-se sabendo que a Ciro coube a dama de Susa a mulher mais

formosa da Aacutesia Panteacuteia

O Livro V se inicia com a narrativa da bela Panteacuteia propriamente dita Ciro

convoca Araspas para guardar Panteacuteia Os dois travam um diaacutelogo a respeito do amor e

apesar das advertecircncias de Ciro sobre os perigos de Eros Araspas se apaixona pela bela

prisioneira Entrementes continua a campanha contra a Assiacuteria com Goacutebrias dando

valiosas informaccedilotildees sobre aquele paiacutes a Ciro (V 2) que resulta em enfrentamentos de

menor importacircncia (V 3) e no aliciamento do assiacuterio Gadatas que assim como Goacutebrias

tinha motivos de sobra para odiar o rei Assiacuterio (V 38 - V 4) Em V 5 Ciaxares e Ciro

restabelecem a alianccedila apoacutes Ciro convencecirc-lo de que sua inveja eacute infundada

Do Livro VI ateacute o Livro VII 1 2 a obra se refere agrave campanha a Sardes capital

da Liacutedia Apoacutes os primeiros preparativos (VI 131-55) a narrativa retorna as

personagens de Araspas e Panteacuteia Ciro aproveitando que seu soldado apaixonara-se

pela bela prisioneira envia-o como espiatildeo dos inimigos Panteacuteia grata por Ciro ter

garantido sua dignidade diante dos ataques apaixonados de Araspas envia uma carta ao

seu marido Abradatas que trai o rei Assiacuterio indo juntar-se ao exeacutercito de Ciro

Abradatas se prepara com a armadura feita do ouro das joacuteias da esposa para ser o

melhor aliado possiacutevel para Ciro Segue-se a narraccedilatildeo de corte teacutecnico-militar com Ciro

fortalecendo seu exeacutercito com os aliados da India (VI 2) o treinamento dos soldados

(VI 24-8) a organizaccedilatildeo para a batalha (VI 223-41) a ordem de marcha (VI 31-4) e

as uacuteltimas exortaccedilotildees e instruccedilotildees de Ciro (VI 412 - VII 122) Em VI 42-11 Panteacuteia

despede-se de Abradatas que parte para a batalha na posiccedilatildeo mais perigosa de luta

O primeiro capiacutetulo do Livro VII narra a batalha de Sardes com a morte de

Abradatas pelos egiacutepcios (VII 129-32) Ciro derrota o inimigo e toma a cidade (VII

136 - VII 214) ele se encontra com o rei da Liacutedia Creso (VII 215-29) e Panteacuteia

apoacutes velar seu esposo se suicida (VII 3 4-16)

A partir de VII 4 ateacute VII 536 narra-se a marcha para a Babilocircnia e a

submissatildeo dos povos das regiotildees pelas quais Ciro atravessa a Caacuteria as Friacutegias a

Capadoacutecia e a Araacutebia A partir desse ponto Ciro torna-se soberano assentando-se no

trono da Babilocircnia (VII 537-69) granjeando o favor dos suacuteditos e tomando medidas

para manter a unidade do Impeacuterio (VII 570-86) Goacutebrias e Gadatas se vingam do rei

Assiacuterio matando-o

O Livro VIII trata da organizaccedilatildeo da corte (VIII 11-8) e prossegue com a

organizaccedilatildeo do Impeacuterio (VIII 19 - VIII 228) Em VIII 31-34 narra-se o desfile

28

triunfal com toda a magnificecircncia completando a imagem de um Ciro no cume da

gloacuteria Depois de um banquete com seus amigos de sempre (VIII 4) Ciro retorna agrave

Peacutersia e agrave Meacutedia formalizando uma uniatildeo com este paiacutes ao casar-se com a filha de

Ciaxares (VIII 5) Em VIII 6 Ciro estabelece uma instituiccedilatildeo sem precedentes a

satrapia para controlar as diversas proviacutencias do Impeacuterio O capiacutetulo 7 deste Livro VIII

apresenta Ciro jaacute anciatildeo perto de uma morte natural em sua cama e rodeado por seus

filhos discursa a eles suas uacuteltimas palavras estabelecendo a sucessatildeo de seu trono

A narrativa termina com um Epiacutelogo (VIII 8) no qual o narrador descreve a

decadecircncia do Impeacuterio apoacutes a morte de Ciro atribuindo-a agrave perda dos valores morais

por parte tanto dos suacuteditos quanto dos seus governantes valores estes que fizeram

possiacutevel a gloacuteria passada

O Epiacutelogo tem sido objeto de muita discussatildeo por parte dos criacuteticos que se

dividem em aceitaacute-lo como texto autecircntico de Xenofonte (DELEBECQUE 1957

BREITENBACH 1966 SANSALVADOR 1987) ou como espuacuterio um acreacutescimo

posterior dos comentadores (HEacuteMARDINQUER 1872 BIZOS 1972) Alguns

tradutores como Jaime Bruna (1965) considerando espuacuterio o texto natildeo o apresentam

em suas traduccedilotildees terminando a obra no capiacutetulo 7 do Livro VIII Os estudiosos alegam

que o epiacutelogo apresenta traccedilos que destoam do tom idealista do resto da obra Jaeger

(1995 p1157) no entanto observa que a estrutura do epiacutelogo eacute a mesma da estrutura

do epiacutelogo da Constituiccedilatildeo dos Lacedemocircnios e que eacute improvaacutevel que ambas as obras

tenham sofrido acreacutescimos idecircnticos posteriormente

Compartilhamos a posiccedilatildeo que aceita o epiacutelogo como autecircntico pois a base das

contradiccedilotildees eacute soacute aparente (SANSALVADOR 1987 DELEBECQUE 1957) e

respondem a um interesse do autor em contrastar o passado esplendoroso com o

momento atual por meio da expressatildeo ἕτι καὶ νῦν ldquoainda hojerdquo O Epiacutelogo se

concentra no contraste do passado glorioso com a decadecircncia atual do Impeacuterio

Delebecque (1957) estabelece que o ἕτι καὶ νῦν se refere agrave Peacutersia liderada pelo

soberano Artaxerxes II que na visatildeo de Xenofonte encarnava a decadecircncia do Impeacuterio

aludindo-se ao seu despotismo e deslealdade (VIII 8 4) e agrave revolta das proviacutencias

ocidentais do Impeacuterio que teria ocorrido entre 362-361 aC

Devemos notar por outro lado que Xenofonte dirigia-se a um puacuteblico grego

principalmente ateniense que outrora tambeacutem fora um grande e glorioso impeacuterio

poreacutem assistia naquela eacutepoca agrave decadecircncia de sua poliacutetica Talvez nosso autor como

29

antes fizera Aristoacutefanes em suas comeacutedias pretendesse apresentar uma advertecircncia aos

proacuteprios atenienses mostrando-lhes que a gloacuteria do passado estava intimamente

relacionada com princiacutepios morais que a tradiccedilatildeo transmitia e que a decadecircncia decorria

do desapego destes mesmos princiacutepios

Bodil Due (1989 p16) defende a autenticidade do Epiacutelogo como produto

natural do desenvolvimento da obra reconhecendo tanto o estilo de Xenofonte por meio

de vocabulaacuterio e construccedilotildees sintaacuteticas quanto a continuaccedilatildeo do plano inicial

estabelecido por Xenofonte no proecircmio O objeto de pesquisa era o ato de governar os

homens ἄρχειν ἀνθρώπων (archeim anthropon) e os governantes fazerem-se

obedecer πείθεσθαι τοῖς ἄρχουσι (peithesthai tois archousi) Para Due a

decadecircncia moral apresentada por Xenofonte relaciona-se agrave incapacidade dos liacutederes

ldquopoacutes-Cirordquo de conseguirem a obediecircncia de seus suacuteditos pois os costumes morais e

ciacutevicos instituiacutedos por Ciro deixaram de ser respeitados

Assim compreendido o Epiacutelogo forma juntamente com o Proecircmio uma moldura

ao redor da vida de Ciro e esta passa a ser um ldquoquadrordquo que ilustra as ideias contidas

nesta moldura

223 A Ciropedia e a ideologia poliacutetica do seacuteculo IV

A biografia de um escritor estaacute sempre inserida em um contexto histoacuterico cujos

impulsos sociais determinam mais ou menos o modo do escritor ver a realidade Por

isso nesta seccedilatildeo procuraremos expor as principais correntes ideoloacutegicas do seacuteculo IV

para associarmos as preocupaccedilotildees dos homens da eacutepoca agrave experiecircncia singular da vida

de Xenofonte Eacute importante este comentaacuterio ainda que sumaacuterio pois demonstraraacute que a

arte de governar natildeo eacute um tema caro apenas a Xenofonte pois outros autores do seacuteculo

IV aC procuraram refletir sobre este tema Aleacutem disso estas referecircncias datildeo um

suporte seguro sobre o qual podemos ler a Ciropedia como uma ficccedilatildeo idealizada

De modo geral podemos dizer que a Ciropedia eacute o resultado de constantes

indagaccedilotildees de Xenofonte a respeito da arte de governar A importacircncia do elemento

pessoal para a confecccedilatildeo das obras de Xenofonte eacute notada pelo tom memorialista de

suas obras (LESKY 1986 SANSALVADOR 1987) A experiecircncia de vida eacute o motor

temaacutetico de produccedilatildeo de Xenofonte Na Ciropedia cujo tema se estende no tempo

30

histoacuterico a experiecircncia aparece tanto na ficionalizaccedilatildeo da histoacuteria quanto na

aproximaccedilatildeo que o autor faz da cultura grega com a cultura persa33

Quando participou do exeacutercito de Ciro o Jovem Xenofonte entrou

provavelmente em contato com numerosas tradiccedilotildees orais que tinham no centro a figura

de Ciro o Velho A Christensen (1936 apud SANSALVADOR 1987) ressalta a

influecircncia da eacutepica iraniana na Ciropedia em especial nas narrativas secundaacuterias Aleacutem

disso a participaccedilatildeo efetiva nesta campanha teria ensinado a Xenofonte as dificuldades

inerentes agrave arte de governar Sansalvador (1987) assinala que quando se compara a

Ciropedia com a Anaacutebase muitos dos incidentes que resultaram em malogro nesta

uacuteltima satildeo reavaliados e corrigidos naquela Para Sansalvador (1987 p38)

Natildeo eacute em vatildeo que se chegou a dizer que a Ciropedia era menos uma histoacuteria de Ciro o Velho do que o sonho do que teria feito Ciro o Jovem vencer ou que a Ciropedia eacute uma teoria das ideacuteias poliacuteticas e militares suscitada pela Anaacutebase no pensamento de Xenofonte

Natildeo podemos esquecer no entanto que Atenas vivia um periacuteodo de profundas

atribulaccedilotildees poliacuteticas e que estes contratempos marcaram decisivamente a forma de

Xenofonte compreender a poliacutetica Os uacuteltimos anos da Guerra do Peloponeso (435-404

aC) foram marcados por conflitos internos em Atenas com a constante disputa pelo

poder primeiro a subida dos Oligarcas ao poder no Governo dos Trezentos (411 aC)

em seguida o governo misto dos Cinco Mil (410 aC) ao qual Tuciacutedides se refere

como uma saacutebia mescla de oligarquia e democracia34 seguiu-se a retomada do poder

dos democratas mais radicais em 410 aC e por fim o retorno da Oligarquia com o

Governo dos Trinta (404 aC) sob o impulso do apoio espartano Apoacutes alguns meses de

terror os democratas35 retomaram o poder Poreacutem a democracia moderada que se

instaurou cometeu em seu nome tantos excessos e horrores36 que natildeo encontrou nos

principais intelectuais da eacutepoca defensor algum Neste ambiente nada mais natural que

autores como Platatildeo Isoacutecrates e Xenofonte procurassem expor suas ideias a respeito

33 Cf o Capiacutetulo 431 de nossa Dissertaccedilatildeo em que fazemos uma anaacutelise mais aprofundada a respeito desta aproximaccedilatildeo feita por Xenofonte e das implicaccedilotildees desta nova concepccedilatildeo cultural na estrutura educacional persa descrita na obra 34 Cf Tuciacutedides Histoacuteria da Guerra do Peloponeso VII97-98 Trad Mario da Gama Kury Brasiacutelia Ed UNB 1986 35 A democracia restaurada aparentemente manteve-se em vigor ateacute a invasatildeo da Macedocircnia Natildeo significa isso que o periacuteodo foi de total calmaria mas sim de revoluccedilatildeo das estruturas sociais Cf G Glotz A cidade grega Satildeo PauloRio de Janeiro Difel 1980 C Mosseacute Atenas A histoacuteria de uma democracia Brasiacutelia Ed UnB 1970 36 O mais famoso destes excessos eacute a condenaccedilatildeo de Soacutecrates Cf O Julgamento de Soacutecrates de I F Stone Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2005

31

do que seria o governo ideal e o meio de se alcanccedilaacute-lo37 se posicionando contra o

regime democraacutetico

O regime poliacutetico dos persas descrito nos primeiros livros da Ciropedia tinha

pouco a ver com a realidade histoacuterica Ao contraacuterio da esperada tirania o governo persa

na Ciropedia eacute composto como uma oligarquia moderada ou seja o poder que o

monarca exerce eacute regulamentado por leis Sua atuaccedilatildeo estaacute restrita agraves leis e agrave supervisatildeo

dos anciatildeos38 A distinccedilatildeo entre a administraccedilatildeo poliacutetica da Peacutersia e da Meacutedia aparece

em Ciropedia I 3 18 quando Mandane matildee de Ciro lhe diz

[18] ldquoMas filho natildeo satildeo as mesmas coisas aqui e na Peacutersia que satildeo acordadas como justas Pois seu avocirc de um lado faz-se deacutespota de todos na Meacutedia de outro na Peacutersia considera-se justiccedila possuir a igualdade E o teu pai eacute o primeiro a fazer o que foi ordenado pela cidade e a aceitar o que foi ordenado pois a medida dele eacute a lei natildeo a paixatildeo De modo que portanto natildeo morras tu sendo chicoteado quando em casa estiveres depois de chegares tendo apreendido da parte do avocirc a tirania na qual haacute a crenccedila de que eacute necessaacuterio possuir mais do que todos e eacute por isso contraacuterio agrave realeza39

Assim na Peacutersia o rei tem os mesmos direitos dos outros cidadatildeos pois se

considera justo ldquopossuir a igualdaderdquo (ison ekhein) e os mesmos deveres pois ldquoa

medida dele eacute a lei natildeo a paixatildeordquo ou seja as accedilotildees do governante eram limitadas pelas

leis O governante regido pela ψυχή40 (psyche) eacute movido pelas suas paixotildees41

distancia-se do caminho da justiccedila pois nesta constituiccedilatildeo eacute o proacuteprio desejo do rei

que eacute a lei

37 Tambeacutem Platatildeo apresenta nrsquoA Repuacuteblica as suas reflexotildees sobre a poliacutetica ideal assim como Isoacutecrates que no Panegiacuterico versa sobre este tema 38 Nas Memoraacuteveis IV 6 12 o Soacutecrates xenofonteano descreve esta forma de governo como a ideal 39 No original [18] ἀλλ᾽ οὐ ταὐτά ἔφη ὦ παῖ παρὰ τῷ πάππῳ καὶ ἐν Πέρσαις δίκαια

ὁμολογεῖται οὗτος μὲν γὰρ τῶν ἐν Μήδοις πάντων ἑαυτὸν δεσπότην πεποίηκεν ἐν

Πέρσαις δὲ τὸ ἴσον ἔχειν δίκαιον νομίζεται καὶ ὁ σὸς πρῶτος πατὴρ τὰ τεταγμένα μὲν ποιεῖ

τῇ πόλει τὰ τεταγμένα δὲ λαμβάνει μέτρον δὲ αὐτῷ οὐχ ἡ ψυχὴ ἀλλ᾽ ὁ νόμος ἐστίν ὅπως

οὖν μὴ ἀπολῇ μαστιγούμενος ἐπειδὰν οἴκοι ᾖς ἂν παρὰ τούτου μαθὼν ἥκῃς ἀντὶ τοῦ

βασιλικοῦ τὸ τυραννικόν ἐν ᾧ ἐστι τὸ πλέον οἴεσθαι χρῆναι πάντων ἔχειν (Cirop 1318) 40 Segundo o dicionaacuterio A Bailly o termo ψυχή pode ser traduzido por ldquoalmardquo no sentido de espiacuterito que daacute vida aos seres Poreacutem uma das acepccedilotildees eacute a de ldquoalmardquo como sede dos sentimentos das paixotildees desejos 41 Aleacutem de Astiacuteages rei da Meacutedia os outros reis principalmente os inimigos de Ciro satildeo apresentados na obra como deacutespotas neste sentido de governar segundo suas paixotildees Esta eacute a caracteriacutestica dos homens desmedidos ὑβριστής e se constitui entre as principais caracteriacutesticas com que o Oriente eacute descrito pelo Ocidente (SAID 2008)

32

A figura idealizada de Ciro na Ciropedia eacute fruto da inovadora aproximaccedilatildeo feita

por Xenofonte da virtude (ἀρετή arete) persa aos elementos da mais alta virtude grega

da καλοκαγαθία (kalokagathia) eliminando os aspectos negativos da cultura persa

Como afirma Jaeger (1995 p1148)

Embora transpareccedila constantemente em Xenofonte o orgulho nacional e a feacute na superioridade da cultura e do talento gregos ele estaacute muito longe de pensar que a verdadeira areteacute seja um dom dos deuses depositado no berccedilo de qualquer burguezinho helecircnico Na sua pintura dos melhores Persas ressalta por toda a parte o que nele despertou o seu trato com os representantes mais notaacuteveis daquela naccedilatildeo a impressatildeo de que a autecircntica kalokagathiacutea constitui sempre no mundo inteiro algo de muito raro a flor suprema da forma e da cultura humanas a qual soacute floresce de modo completo nas criaturas mais nobres de uma raccedila

O conceito de homem grego no seacuteculo IV aC amplia-se para aleacutem dos muros

da Heacutelade Isoacutecrates no Panegiacuterico 50 afirma que os povos que participam da paideia

recebem o nome de gregos com maior propriedade do que os proacuteprios gregos Tambeacutem

natildeo podia passar despercebido que ldquo[] a grandeza dos Persas reside em terem sabido

criar um escol de cultura e formaccedilatildeo humana []rdquo (JAEGER 1995 p1148) Xenofonte

ensaia uma cultura globalizada na qual o melhor de cada povo acorreria para a formaccedilatildeo

do liacuteder ideal42 As qualidades do soberano ideal traccediladas por Xenofonte trafegam tanto

pela helenofilia quanto pela areteacute persa a piedade (εὐσέβεια eusebeia) a justiccedila43

(δικαιοσύνε dikaiosyne) o respeito (αἰδώς aidos) a generosidade44 (εὐεργεσία

euergesia) a gentileza (πραότης praotes) a obediecircncia (πειθώ peitho) e a

continecircncia (ενκράτεια enkrateia)

Segundo Collingwood (1981 p45) no helenismo os gregos observaratildeo os

baacuterbaros como detentores de uma cultura vaacutelida da qual os gregos tambeacutem podem

apreender valiosos ensinamentos Para os gregos do seacuteculo V aC em especial

Heroacutedoto o baacuterbaro surgia apenas como contraste como elemento valorativo da sua

42 A ideia da intercomunicaccedilatildeo de culturas perpassa de algum modo pela proacutepria obra figurativizada na experiecircncia da infacircncia de Ciro em contato com a cultura dos medos A despeito do efeito pateacutetico do luxo desmedido dos medos Ciro aprende com eles ensinamentos valiosos que o distinguiraacute dos persas que foram educados apenas na instituiccedilatildeo educacional do Estado persa Veremos mais agrave frente que a supremacia de Ciro eacute fruto da intercomunicaccedilatildeo da cultura persa e meda 43 A justiccedila eacute a principal meta da educaccedilatildeo dos persas em contraste com a educaccedilatildeo ateniense que se centrava na aprendizagem da γραμματική τέχνή 44 A generosidade eacute apresentada na Ciropedia por meio de qualidades mais concretas φιλανθροπία

φιλομαθία φιλοτίμια

33

proacutepria cultura O baacuterbaro surgia pelo exotismo natildeo pela ἀρετή Segundo Edward Said

(2008) o orientalismo eacute um discurso estruturalmente formado e reforccedilado pelo e para o

Ocidente sobre o Oriente em que se constroacuteem uma incisiva relaccedilatildeo de poder de uma

cultura sobre a outra O Oriente nesse sentido eacute uma invenccedilatildeo do Ocidente

estigmatizado pelo exotismo e pela inferioridade como lugar de episoacutedios romanescos

seres exoacuteticos lembranccedilas e paisagens encantadas e extraordinaacuterias (SAID 2008 p27)

Concluiacutemos que Xenofonte em vista de expor as suas ideias a respeito do

governo ideal procurou associar elementos gregos e persas A idelizaccedilatildeo de Ciro

portanto eacute consequumlecircncia e causa da ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria Com isso Xenofonte

negligenciou tambeacutem a principal lei da histoacuteria a fidelidade agrave verdade Como observa

Fancan um dos primeiros teoacutericos do romance europeu no seacuteculo XVIII

Concordo que louvem agrave vontade entre outros a Ciropedia de Xenofonte por causa do proveito oriundo da sua leitura contanto que confessem tambeacutem que este autor lanccedilou por escrito natildeo quem foi Ciro mas o que Ciro deveria ser (FANCAN apud CANDIDO 1989 p98)

224 A Ciropedia na tradiccedilatildeo da narrativa

Jaacute assinalamos anteriormente a dificuldade dos criacuteticos em classificar a

Ciropedia quanto ao gecircnero A dificuldade quanto ao enquadramento geneacuterico da

Ciropedia reside principalmente no fato de a obra tratar de um tema histoacuterico (a vida

de Ciro) com liberdade manipulando ficcionalmente o material histoacuterico conhecido

Nesta subseccedilatildeo apontaremos como a Ciropedia se insere na tradiccedilatildeo narrativa do

Ocidente buscando compreender as relaccedilotildees da obra com o gecircnero do romance Neste

percurso eacute inevitaacutevel e essencial refletir a respeito das questotildees entre ficccedilatildeo e histoacuteria

Nossa preocupaccedilatildeo eacute definir a Ciropedia como uma obra ficcional em conformidade

com Due (1989) Stadtler (2010) Tatum (1989) e Gera (2003)

Neste percurso de anaacutelise procuraremos conciliar com as reflexotildees sobre o

romance propriamente dito a interpretaccedilatildeo dos antigos a respeito dos seus proacuteprios

gecircneros Aleacutem disso fazem-se necessaacuterios alguns esclarecimentos a respeito da

34

terminologia para que natildeo pareccedila uma enorme anacronia ndash e ingenuidade ndash chamar uma

obra do seacuteculo IV aC de romance

2241 O conceito de romance e seu uso anacrocircnico

Na Antiguidade natildeo havia uma terminologia especiacutefica para a prosa ficcional

Para Whitmarsh (2008 p3) a ausecircncia de um termo proacuteprio para este tipo de produccedilatildeo

literaacuterio torna o uso anacrocircnico do termo romance (em inglecircs novel) necessaacuterio para o

estudioso Todavia acreditamos que mais do que rotular a obra do passado o uso

anacrocircnico de um termo nos permite observar a preacute-histoacuteria do gecircnero no caso do

gecircnero do romance As formas literaacuterias passam por um intenso processo de formaccedilatildeo

ateacute que encontram o momento histoacuterico propiacutecio para a sua formulaccedilatildeo literaacuteria e

esteacutetica caracterizadora A eacutepica homeacuterica por exemplo eacute um momento posterior de

um longo processo de tradiccedilatildeo oral que se desenvolveu ateacute encontrar em Homero a sua

mais perfeita realizaccedilatildeo Neste sentido eacute necessaacuterio termos a consciecircncia dos limites do

uso da terminologia estabelecendo as suas devidas ressalvas

O surgimento da palavra romance no seacuteculo XII estaacute ligado agraves literaturas de

liacutenguas romacircnicas em oposiccedilatildeo agrave literatura escrita em latim (romanice loqui latine

loqui) Por conseguinte o romance opotildee-se agravequeles gecircneros discursivos que foram

produzidos pela Antiguidade e que ainda eram aceitos como verdadeira literatura Aleacutem

disso o termo implicava uma ldquomodalidade de gecircnero narrativo ficcional cuja

intencionalidade baacutesica seria o divertimentordquo (BRANDAtildeO 2005 p25) Assim o

romance designa desde o comeccedilo uma forma de discurso literaacuterio nova moderna em

oposiccedilatildeo aos gecircneros da Antiguidade Natildeo havia no entanto distinccedilatildeo entre as

narrativas em verso e em prosa distinccedilatildeo esta que comeccedila a surgir no seacuteculo XV com

os romances de cavalaria em prosa tomando o sentido moderno a partir do seacuteculo XVII

com a publicaccedilatildeo do Dom Quixote de Cervantes (GOFF 1972 p164) Diante desse

fato ldquo[] alguns estudiosos consequentemente ainda hoje refutam chamar as prosas

narrativas da Antiguidade como ldquoromancesrdquo ou ldquonovelas []rdquo45 (HOLZBERG 2003

p11)

45 No original ldquoSome scholars consequently still refuse now to talk of the prose narratives of antiquity as ldquoromancesrdquo or ldquonovelsrdquordquo

35

Holzberg entretanto a despeito do anacronismo dos termos mas mediante a

semelhanccedila entre as formas antigas e modernas acredita que devemos consentir com os

anacronismos (HOLZBERG 2003 p11) Para o criacutetico o real problema eacute discutir quais

obras da Antiguidade podem ser chamadas de romance O conceito de gecircnero deve ser

legitimado nesse contexto fixando criteacuterios para a classificaccedilatildeo destas obras

O romance como gecircnero seacuterio do cacircnone literaacuterio se afirma apenas com o

desenvolvimento da sociedade burguesa nos seacuteculos XVIII e XIX Para Georg Lukaacutecs

em seu artigo O romance como epopeia burguesa (1999 p87) embora existam obras

em muitos aspectos semelhantes aos romances na Antiguidade e na Idade Meacutedia todas

as contradiccedilotildees da sociedade burguesa encontram sua expressatildeo neste gecircnero

provocando mudanccedilas tatildeo sensiacuteveis agraves formas narrativas que ldquo[] se pode aqui falar de

uma forma artiacutestica substancialmente nova []rdquo No romance o caraacuteter poeacutetico da

epopeia eacute substituiacutedo pelo caraacuteter prosaico da modernidade O caraacuteter poeacutetico da

epopeia eacute caracterizado segundo Lukaacutecs ndash que retoma as concepccedilotildees esteacuteticas de Hegel

ndash pela totalidade extensiva da vida pois nela os desejos do heroacutei e as ambiccedilotildees da

sociedade encontram-se espontaneamente ligados (LUKAacuteCS 2009 p55) Na sociedade

moderna ao contraacuterio o caraacuteter prosaico eacute fruto da desagregaccedilatildeo do indiviacuteduo com a

sociedade e o romance deve retratar a realidade prosaica e a luta do indiviacuteduo contra

esta mesma realidade (LUKAacuteCS 1999 p91) Desse modo apesar do romance ldquo[]

apresentar todos os elementos caracteriacutesticos da forma eacutepica [] [e aspirar] os mesmos

fins a que aspira a epopeia antiga []rdquo (1999 p93) o produto romanesco eacute oposto

daquele da epopeia uma vez que as contradiccedilotildees sociais jaacute referidas impedem a

totalidade extensiva da vida a conjunccedilatildeo harmocircnica entre o homem e o mundo que eacute

caracteriacutestico da epopeia O destino do homem na epopeia estaacute em conjunccedilatildeo com o

destino da sociedade os impulsos do indiviacuteduo satildeo os mesmos da sociedade

Bakhtin (1998 p425) tambeacutem considera que ldquoUm dos principais temas

interiores do romance eacute justamente o tema da inadequaccedilatildeo de um homem ao seu destino

ou sua posiccedilatildeo []rdquo poreacutem esta desagregaccedilatildeo eacute apenas um tema fundamental e

produtivo para seu desenvolvimento moderno mas que natildeo abarca todas as

possibilidades romanescas Para o teoacuterico russo ainda que o gecircnero se afirme com a

sociedade burguesa a forma romanesca surge muito antes desenvolvendo-se em

variados processos literaacuterios e culturais ateacute encontrar no romance moderno a sua forma

mais apropriada Isso significa que o romance moderno eacute uma das formas mais

produtivas da eacutepica poreacutem natildeo a uacutenica e sua formaccedilatildeo e desenvolvimento satildeo

36

devedoras de diversas formas literaacuterias Em Epos e Romance Bakhtin (1998 p427)

afirma que a principal diferenccedila entre a epopeia e o romance estaacute na distacircncia entre o

autor e o passado enquanto a epopeia constroacutei uma distacircncia eacutepica entre o presente e o

passado que eacute absoluto e fechado o romance se formou no processo de destruiccedilatildeo da

distacircncia eacutepica representando tanto o passado quanto o presente como uma realidade

inacabada A partir desta definiccedilatildeo Bakhtin natildeo receia em chamar de romance uma

variedade muito ampla tanto histoacuterica como formal de narrativas inclusive a

Ciropedia cuja ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria eacute para Bakhtin marca essencial do caraacuteter

romanesco da obra pois destroacutei a distacircncia entre o presente do autor e o passado do

narrado O passado eacute aproximado pelo presente inacabado com suas contradiccedilotildees e

interesses que deformam aquele passado Desse modo Bakhtin amplia o conceito de

romance para aleacutem daquela especificidade lukacseana

Em A Natureza da Narrativa (1977) os estudiosos Scholes e Kellogg comentam

que escrever sobre a tradiccedilatildeo da narrativa no Ocidente eacute de certa forma escrever sobre

a genealogia do romance jaacute que tem sido este o gecircnero dominante na literatura do

Ocidente nos uacuteltimos seacuteculos No entanto eles observam que o conceito de narrativa

que se centraliza no romance ldquo[] nos aparta da literatura narrativa do passado e da

cultura do passado [] [assim como] nos separa da literatura do futuro e mesmo da

vanguarda de nossos proacuteprios dias []rdquo (SCHOLES KELLOGG 1977 p5)

Procurando portanto outra abordagem Scholes e Kellogg natildeo encaram o romance

como um produto final das formas narrativas anteriores mas como uma possibilidade

narrativa que encontrou na Idade Moderna solo propiacutecio para se firmar e afirmar

Assim a definiccedilatildeo de narrativa por eles proposta permite a generalizaccedilatildeo necessaacuteria

para abarcar as mais variadas formas de narrativa ldquoEntendemos por narrativa todas as

obras literaacuterias marcadas por duas caracteriacutesticas a presenccedila de uma estoacuteria e de um

contador de estoacuterias []rdquo (SCHOLES KELLOGG 1977 p1) Brandatildeo (2005 p33)

acrescenta ainda uma terceira categoria a do destinataacuterio ou narrataacuterio

O romance eacute antes de tudo uma narrativa ficcional em prosa uma das formas

do epos que se divide (e se modifica) em uma grande quantidade de formas literaacuterias

Ao utilizarmos portanto a terminologia romance noacutes temos em vista seu caraacuteter

formal miacutenimo das narrativas e principalmente a aproximaccedilatildeo do passado histoacuterico por

meio da ficccedilatildeo

37

2242 A ficccedilatildeo em prosa na Greacutecia

Na Antiguidade segundo Holzberg a ficccedilatildeo soacute se constroacutei como gecircnero

autocircnomo ou seja desvinculado da historiografia e da filosofia a partir do seacuteculo II

dC A dataccedilatildeo destas narrativas eacute incerta variando de criacutetico para criacutetico Muito

provavelmente estas primeiras narrativas surgiram nos seacuteculos I ou II aC e essa

produccedilatildeo desenvolveu-se ateacute o seacuteculo IV dC

Como gecircnero autocircnomo sua principal finalidade mas natildeo uacutenica eacute a expressatildeo

esteacutetica o luacutedico A narrativa em prosa que antes estava vinculada agrave histoacuteria e agrave

filosofia volta-se neste momento tambeacutem ao domiacutenio da ficccedilatildeo (BRANDAtildeO 2005

p30) Desse modo o corpus do romance grego antigo eacute representado pelas obras As

Etioacutepicas de Heliodoro Queacutereas e Caliacuterroe de Caacuteriton de Afrodiacutesias Leucipe e

Clitofonte de Aquiles Taacutecio Daacutefnis e Cloeacute de Longo e As Efesiacuteacas de Xenofonte de

Eacutefeso Essas obras satildeo denominadas de romances idealistas gregos e apresentam uma

estrutura em comum a uniatildeo do tema amoroso e do tema da viagem Acrescenta-se a

este grupo os romances latinos Satyricon de Petrocircnio e O Asno de ouro de Apuleio que

aleacutem de parodiarem os temas de amor e de aventura do romance idealista apresentam

uma mordaz saacutetira da sociedade romana Por este caraacuteter homogecircneo de sua estrutura

interna Holzberg define estas obras como proper novels (romances de fato)

Ao lado dos proper novels Holzberg chama a atenccedilatildeo para os fringe novels

romances perifeacutericos obras de ficccedilatildeo em prosa que apresentam natildeo soacute uma variedade

temaacutetica muito mais ampla do que a do proper novels mas tambeacutem uma aproximaccedilatildeo

com outros gecircneros (historiografia filosofia etc) o que torna o caraacuteter fronteiriccedilo

destas obras Nestas narrativas a ficccedilatildeo se relaciona com algum objetivo didaacutetico ou

informativo Neste conjunto Holzberg arrola as mais variadas obras a-) biografia

ficcional Ciropedia de Xenofonte Vida e Andanccedilas de Alexandre da Macedocircnia de

Pseudo-Caliacutestenes Vida de Esopo (anocircnimo) Vida de Apolocircnio de Tiana de Filoacutestrato

Atos dos apoacutestolos apoacutecrifos b-) autobiografia ficcional Pseudo-Clemente c-)

Cartas ficcionais Cartas de Eacutesquines Cartas de Quioacuten Cartas de Euriacutepides Cartas

de Hipoacutecrates Cartas de Platatildeo Cartas de Soacutecrates e dos socraacuteticos e Cartas de

Temiacutestocles

Aleacutem desta diferenccedila temaacutetica os proper novels narram a histoacuteria de

personagens completamente inventadas (nem miacuteticas nem histoacutericas) com particular

ecircnfase nos aspectos eroacuteticos ndash amor ideal dos jovens sua separaccedilatildeo e os obstaacuteculos para

38

o reencontro (WHITMARSH 2008 p3) ndash ao contraacuterio dos fringe novels que

ficcionalizam um dado material histoacuterico A mais antiga manifestaccedilatildeo de um fringe

novel eacute Ciropedia de Xenofonte escrita por volta de 360 aC

A relaccedilatildeo da Ciropedia com o romance ideal grego os proper novels pode ser

demonstrada por algumas razotildees primeiramente os mais antigos romancistas gregos

estabeleceram uma conexatildeo mais ou menos expliacutecita com Xenofonte Caacuteriton conhecia

e imitou certas partes da Ciropedia enquanto que o nome Xenofonte serviu como

pseudocircnimo para alguns dos romancistas (TATUM 1994 p15) Em segundo lugar

pela presenccedila da narrativa secundaacuteria de Panteacuteia e Abradatas na tessitura narrativa da

Ciropedia Esta narrativa secundaacuteria apresenta os principais elementos do tema amoroso

do romance idealista grego o amor puro dos protagonistas que satildeo personagens

completamente ficcionais a separaccedilatildeo dos namorados a fidelidade eacute constantemente

posta agrave prova e por fim o reencontro dos apaixonados

No entanto uma vez que a estrutura da Ciropedia natildeo se resume a estrutura dos

ἐρότικοι λόγοι (erotikoi logoi) mas abrange outras estruturas narrativas haacute

dificuldade por parte dos criacuteticos (BRANDAtildeO 2005 GUAL 1988 HOLZBERG

1993) em aceitaacute-la como um romance propriamente dito Para Jacyntho Lins Brandatildeo

haacute em Heroacutedoto e Xenofonte assim como tambeacutem nos historiadores helenistas ldquo[]

trechos claramente romanceados envoltos entretanto num enquadramento histoacuterico

[]rdquo (2005 p165) O enquadramento histoacuterico a que se refere Brandatildeo (2005)

concede ao texto uma finalidade diferente da finalidade do texto romanesco pois

determina que o objetivo da narrativa natildeo seja o prazeroso e o agradaacutevel poreacutem o uacutetil46

O uacutetil se alcanccedila apenas com a verdade Nesta perspectiva os elementos romanescos em

Xenofonte seriam traccedilos estiliacutesticos aqui e ali revisitados que embelezam o discurso

mas natildeo o determinam

Poreacutem a clara idealizaccedilatildeo da personagem Ciro revela que o autor tinha outros

propoacutesitos aleacutem do da verdade histoacuterica e sua utilidade do ponto de vista histoacuterico e

que esta em verdade natildeo determina o estatuto da obra poreacutem estaacute a serviccedilo como

estrateacutegia discursiva do propoacutesito ficcional da narrativa Discutiremos no Capiacutetulo 3 de

nossa Dissertaccedilatildeo a respeito de como a idealizaccedilatildeo com que Ciro eacute apresentado estaacute

intimamente ligada a processos de ficcionalizaccedilatildeo do material histoacuterico

46 Cf Luciano de Samoacutestata Como se deve escrever a histoacuteria Belo Horizonte Tessitura 2009

39

O Ciro pintado por Xenofonte estaacute mais proacuteximo do heroacutei de uma gesta heroica

do que de uma personagem real (GERA 1993 CHRISTENSEN 1957) isto em virtude

dos elementos idealizantes da narrativa A Ciropedia portanto apresenta tanto

caracteriacutesticas romacircnticas quanto idealistas antecipando o caraacuteter essencial da temaacutetica

do romance grego Em nossa opiniatildeo a escolha de um tema histoacuterico por parte de

Xenofonte estaacute intimamente ligada ao estatuto da ficccedilatildeo no seacuteculo V e IV aC Quando

Xenofonte escreve suas obras a ficccedilatildeo natildeo eacute tema das narrativas em prosa mas da

poesia seja dramaacutetica seja liacuterica (DrsquoONOFRIO 1976 BOWERSOCK 1994)

A ficccedilatildeo estabelece o reino do ψεῦδος (pseudos) mentira que unida a

verossimilhanccedila cria o efeito de verdade ἀληθήα (alethea) Os historiadores do

seacuteculo V procuraram dissociar-se dos gecircneros poeacuteticos depurando pelo λόγος (loacutegos)

o passado histoacuterico Desse modo o discurso em prosa eacute um discurso que se pretende

verdadeiro No entanto por exemplo nas Histoacuterias de Heroacutedoto haacute prazerosas

narrativas que deveriam em seu puacuteblico de ouvintes repercutir como belas histoacuterias

inventadas iguais as aventuras que Odisseu narrava aos feaacutecios Entretanto Heroacutedoto

reserva o maravilhoso agravequilo que natildeo pode ser comprovado pela visatildeo e pela

investigaccedilatildeo (ἱστορίη historie) A etimologia da palavra ἱστορίη relaciona-se com o

vocaacutebulo ἵστωρ (histor) aquele que viu algo a testemunha Portanto a ficccedilatildeo na

historiografia de Heroacutedoto faz parte do incerto uma mentira que se assume como natildeo

comprovaacutevel por testemunhas

Para pensar no estatuto ficcional dos gecircneros literaacuterios natildeo devemos nos

esquecer de um gecircnero que se desenvolveu no seacuteculo V e que mesmo em prosa

procurava assumir as qualidades dos textos poeacuteticos o discurso epidiacutetico Segundo

Roland Barthes (1975 p149) Goacutergias ao compor seu Elogio de Helena estabelece agrave

prosa o direito de ser natildeo apenas uacutetil mas tambeacutem agradaacutevel O gecircnero epidiacutetico (para

os romanos encomiaacutestico) marca o aparecimento de uma prosa decorativa com

finalidade esteacutetica

O desenvolvimento deste gecircnero epidiacutetico estimulou a criaccedilatildeo de um tipo de

narrativa em prosa cujo tema eacute o elogio de uma personagem histoacuterica e ilustre a

biografia47 As primeiras obras que surgiram com este tema satildeo o Evaacutegoras de

47 O termo biografia aparece pela primeira vez na Vida de Alexandre de Plutarco no seacuteculo II Segundo Momigliano (1993) as formas biograacuteficas anteriores a Plutarco satildeo denominadas pelos antigos como gecircnero epidiacutetico ou encocircmio Neste trabalho trataremos todas as obras com caraacuteter biograacutefico sejam posteriores sejam anteriores a Plutarco como biografia

40

Isoacutecrates48 e o Agesilau de Xenofonte Aleacutem de narrarem a vida de uma personagem

ilustre e real as biografias apresentam tambeacutem um caraacuteter didaacutetico pois os homens

ilustres escolhidos devem servir de modelo para os leitores (CARINO 1999) O gecircnero

biograacutefico portanto une agrave utilidade didaacutetica a preocupaccedilatildeo esteacutetica pois se origina do

gecircnero epidiacutetico Precisamos agora relacionar o gecircnero biograacutefico agrave ficccedilatildeo

O tema da biografia como o da historiografia eacute um tema da histoacuteria do

passado No entanto como satildeo gecircneros diferentes a forma e o sentido destes gecircneros

satildeo construiacutedos e se dirigem para puacuteblicos diferentes Como nos lembra Linda

Hutcheon (1991 p122) ldquo[] o sentido e a forma natildeo estatildeo nos acontecimentos mas

nos sistemas que transformam esses lsquoacontecimentosrsquo passados em lsquofatosrsquo histoacutericos

presentes []rdquo Momigliano em seu livro The development of the ancient biography

(1993 p 55) afirma que a biografia adquiriu um novo significado quando no seacuteculo IV

aC os bioacutegrafos ligados a Soacutecrates trafegavam com liberdade os limites entre verdade

e ficccedilatildeo A biografia era direcionada para capturar as potencialidades tanto quanto a

realidade da vida individual A fronteira entre ficccedilatildeo e realidade foi mais diluiacuteda na

biografia do que na historiografia e a expectativa do leitor para cada um dos gecircneros

deveria ser diferente Assim o que os leitores esperavam da biografia era diferente do

que esperavam das histoacuterias poliacuteticas Enquanto a historiografia tratava de temas

poliacuteticos e militares pois estes eram os feitos grandiosos dos homens os bioacutegrafos

tratavam da vida particular dos homens ilustres O puacuteblico da biografia queria

informaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo os casos de amor e o caraacuteter de seus heroacuteis Mas essas

informaccedilotildees satildeo menos faacuteceis de se documentar do que guerras e reformas poliacuteticas e se

os bioacutegrafos quisessem manter seu puacuteblico eles deveriam se utilizar da ficccedilatildeo

(MOMIGLIANO 1993 p57)

Tomemos o testemunho de Poliacutebio Em suas Histoacuterias 1021 Poliacutebio afirma que

escreveu sobre Filopoimen49 uma obra em trecircs livros na qual revela a natureza desta

personagem de qual descendecircncia provinha e qual a natureza da sua educaccedilatildeo aleacutem de

seus feitos mais famosos Poreacutem nesta obra isto eacute nas Histoacuterias que eacute uma obra

historiograacutefica ldquo[] eacute adequado (πρέπον prepon) subtrair (ἀφελεῖν aphelein) toda

48 No Evaacutegoras Isoacutecrates afirma que o objetivo de sua obra eacute encomiar com palavras a virtude de um homem e que nenhum autor jaacute escrevera sobre este tema Aleacutem disso nos paraacutegros 8-12 Isoacutecrates procura asseguar ao orador do encocircmio os mesmos recursos estiliacutesticos dos poetas para que dessa forma o discurso seja reconhecido pelas suas qualidades esteacuteticas 49 Filopoimen (253-183) foi general e poliacutetico grego que ocupou o cargo de estratego da Liga Aqueia em oito ocasiotildees Em 183 foi aprosionado em uma expediccedilatildeo agrave Messecircnia e obrigado a beber cicuta

41

quota sobre a sua formaccedilatildeo juvenil [] para que o que eacute caracteriacutestico de cada uma das

composiccedilotildees seja respeitado []rdquo Aleacutem desta constataccedilatildeo temaacutetica Poliacutebio ainda

acrescenta que em sua obra anterior escrita em forma encomiaacutestica (ἐγκωμιαστικός

enkomiastikos) impunha (ἀπῄτει apeitei) uma narraccedilatildeo (ἀπολογισμόν

apologismon) sumaacuteria (τὸν κεφαλαιώδη kefalaiode) e exagerada (amplificaccedilatildeo) dos

fatos (μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων metrsquo aukseseos ton prakseon) enquanto que na

obra presente que eacute uma histoacuteria (ἱστορίας historias) os elogios e as censuras

(ἐπαίνου καὶ ψόγου epainou kai psogou) satildeo distribuiacutedos imparcialmente visando agrave

verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ dzetei ton alethe)

Poliacutebio distingue conscientemente o encocircmio da histoacuteria pelo criteacuterio de verdade

dos fatos enquanto a Histoacuteria deve sempre visar agrave verdade pois eacute esta que garante a

utilidade da Histoacuteria ao encocircmio eacute permitido amplificar os fatos exageraacute-los ou

inventaacute-los desde que estes revelem o caraacuteter do homem biografado O interesse do

historiador eacute a verdade dos fatos o do encomiaacutesta eacute o caraacuteter do homem Para alcanccedilar

este objetivo o bioacutegrafo se utiliza de diversos modos de ficcionalizar este passado

Desse modo compreendemos que haacute no gecircnero biograacutefico um importante

desenvolvimento ficcional da narrativa em prosa na Greacutecia que natildeo deve ser

menosprezado pelo criacutetico literaacuterio A biografia em virtude de sua origem epidiacutetica

estava mais preocupada com valores esteacuteticos e didaacuteticos do que com a utilidade da

verdade

O tema da Ciropedia natildeo eacute a histoacuteria dos povos como as obras de Heroacutedoto e de

Tuciacutedides mas a vida de um homem ilustre Ciro Afasta-se deste modo dos temas

historiograacuteficos e se aproxima dos temas da biografia No proecircmio da Ciropedia o

narrador afirma que

[6] Em vista de esse homem ser merecedor de admiraccedilatildeo noacutes examinamos de qual famiacutelia era qual natureza possuiacutea e em que tipo de educaccedilatildeo foi instruiacutedo a tal ponto que se distinguiu no governar os homens Portanto o quanto noacutes averiguamos e o quanto julgamos ter compreendido sobre ele tentaremos discorrer 50 (Cirop 11 6)

50 Nas referecircncias agrave obra Ciropedia passaremos a fazer a abreviaccedilatildeo Cirop No original ἡμεῖς μὲν δὴ

ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδρα ἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν

τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶς παιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν

ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα

πειρασόμεθα διηγήσασθαι

42

O tema da Ciropedia portanto eacute a vida (βίος bios) de Ciro o homem (ἀνδρα

andra) que foi digno da admiraccedilatildeo do narrador O narrador divide seu material em trecircs

temas principais a genealogia γένεαν (geacutenean) a natureza φύσιν (phyacutesin) e a

educaccedilatildeo παιδεία (paideia) Segundo Menandro Reacutetor (1996) em seu segundo tratado

sobre o gecircnero epidiacutetico γένεαν φύσιν e παιδέια satildeo toacutepoi do gecircnero epidiacutetico

Portanto o narrador da Ciropedia jaacute assinala aos leitores que eles devem esperar da

narrativa natildeo dados histoacutericos precisos mas a narrativa da vida particular da

personagem e que esta revelaraacute o verdadeiro caraacuteter do heroacutei

2243 Modos de Imitaccedilatildeo da Ciropedia

A combinaccedilatildeo de ficccedilatildeo e histoacuteria entretanto natildeo eacute exclusividade desta obra

mas segundo Momigliano eacute proacutepria do gecircnero da biografia antiga e portanto deve ser

entendida como um fator de novidade na literatura do seacuteculo IV aC A nosso ver a

novidade apresentada pela Ciropedia estaacute em aliar esta temaacutetica da biografia ao modo

de imitaccedilatildeo executado na narrativa51 pois o modo de imitaccedilatildeo da Ciropedia difere do

modelo apresentado pelas biografias anteriores

Para compreendermos esta afirmaccedilatildeo pensemos nas obras Agesilau de

Xenofonte e Evaacutegoras de Isoacutecrates Estas satildeo biografias cujo modo de imitaccedilatildeo eacute

executado por uma narraccedilatildeo simples (ἁπλή διήγησις aple diegesis) ou seja o

narrador (ἀπαγγέλλον52 apangellon) fala sempre por si mesmo sem mimetizar outros

locutores no discurso direto Desse modo o narrador estaacute expliacutecito por todo o discurso

mediando e distanciando o narrado do leitor Este tipo de biografia modernamente eacute

chamado de biografia analiacutetica ldquo[] do tipo ensaiacutestico interpretativo e natildeo

forccedilosamente factualista []rdquo (REIS 2000 p48)

51 A terminologia aqui adotada eacute a que Platatildeo apresenta na Repuacuteblica (III 392 d) ldquoAcaso tudo quanto dizem os prosadores e poetas natildeo eacute uma narrativa de acontecimentos passados presentes ou futuros [] Porventura eles natildeo a executam por meio de simples narrativa [ἁπλῇ διήγήσει] atraveacutes da miacutemese [διὰ

μιμήσεως] ou por meio de ambas [διrsquo ἀμφοτέρων περαίνουσιν]rdquo Essa traduccedilatildeo eacute de Maria Helena da Rocha Pereira (1980) 52 O termo ἀπαγγέλλον particiacutepio do verbo ἀπαγγέλειν eacute usado por Aristoacuteteles na Poeacutetica 1448 a Para Brandatildeo (2005 p46-48) este termo estaacute ligado agrave funccedilatildeo do mensageiro ἄγγελος das trageacutedias Os mensageiros satildeo introduzidos em cena para narrar as accedilotildees ocorridas fora de cena Assim a funccedilatildeo do narrador eacute comunicar ldquosituaccedilotildees falas objetos distanciados do recebedor no tempo e no espaccedilordquo (BRANDAtildeO p48)

43

A Ciropedia entretanto desenvolve-se como uma narrativa mista executada ora

por meio da narraccedilatildeo (διὰ διηγήσεως dia diegeseos) ora por meio da imitaccedilatildeo (διὰ

μιμήσεως dia mimeseos) Assim ao contraacuterio do que ocorre nas outras biografias o

narrador da Ciropedia aleacutem de mediar o discurso tambeacutem mimetiza outros locutores

por meio de discurso direto O resultado deste procedimento eacute uma sorte de narrativa

ldquodramatizadardquo53 no sentido de que por meio de cenas54 o narrador desaparece

parcialmente da cena do discurso Parcialmente pois o narrador controla a organizaccedilatildeo

destas locuccedilotildees desenrolando ou condensando a cena Eacute a biografia narrativa ldquo[]

centrada na dinacircmica da histoacuteria de uma vida recorrendo de forma mais ou menos

acentuada a estrateacutegias de iacutendole narrativardquo (REIS 2000 p48)

Isso significa que pelo modo de imitaccedilatildeo a Ciropedia se assemelha ao gecircnero

eacutepico pois este gecircnero tambeacutem apresenta uma narrativa mista tanto narrada quanto

mimetizada e se afasta do gecircnero biograacutefico cujo modo de imitaccedilatildeo eacute executado por

uma narraccedilatildeo simples Por isso a obra eacute singular pois dentre as obras biograacuteficas a

Ciropedia foi a primeira a trazer essa sorte de imitaccedilatildeo mista55

O gecircnero historiograacutefico tambeacutem eacute um gecircnero misto No entanto diferencia-se

do gecircnero eacutepico e do biograacutefico porque seu discurso pretende ser a narraccedilatildeo do

verdadeiro isto eacute narrar as accedilotildees que realmente aconteceram natildeo as que poderiam

acontecer O gecircnero biograacutefico no entanto como dissemos anteriormente incrementa

os dados histoacutericos com informaccedilotildees ficcionais da vida particular do homem ilustre

Assim a Ciropedia eacute uma narrativa mista de eventos que aconteceram mas

principalmente de eventos da vida particular que poderiam ter acontecido Portanto

podemos dizer que a Ciropedia eacute uma obra eacutepica de ficccedilatildeo em prosa

Desse modo acreditamos que se revela a verdadeira inovaccedilatildeo da Ciropedia em

relaccedilatildeo ao romance tanto antigo quanto moderno Nesta perspectiva a obra torna-se

profundamente importante na tradiccedilatildeo da narrativa

Aleacutem disso o modo de imitaccedilatildeo da Ciropedia ou seja com um narrador

executando uma narrativa mista propicia a absorccedilatildeo de outros gecircneros literaacuterios dentro

53 O sentido de dramatizada aqui usado eacute o mesmo da mimese em oposiccedilatildeo agrave diegeacutese ou seja o narrador reproduz por meio do discurso direto as falas das personangens e desse modo aproximando-se do tipo de representaccedilatildeo teatral Na terminologia estabelecida por Lubbock (1939) este tipo de representaccedilatildeo da narrativa eacute chamada de showing 54 Segundo Reis (2000 p53) ldquo[] a instauraccedilatildeo da cena traduz-se antes de mais na reproduccedilatildeo do discurso das personagens [] que naturalmente implica que o narrador desapareccedila total ou parcialmente da cena do discursordquo 55 As outras biografias romanceadas ou ficcionais da Antiguidade posteriores agrave Ciropedia tambeacutem apresentam este caraacuteter de imitaccedilatildeo mista

44

da estrutura diegeacutetica Isso porque a mimetizaccedilatildeo de locutores dentro da narrativa

fornece a oportunidade para que as personagens discursem dialoguem ou mesmo

narrem narrativas secundaacuterias Desse modo o narrador conduz a narrativa introduzindo

os entrechos poreacutem logo introduzindo outras personagens cuja locuccedilatildeo seraacute

mimetizada56

Retomando e concluindo o primeiro capiacutetulo a Ciropedia eacute uma narrativa

biograacutefica e desse modo procura incrementar os dados histoacutericos com a narraccedilatildeo da

vida particular do homem ilustre que eacute objeto da biografia Luciano Cacircnfora (2004)

aponta a erupccedilatildeo da vida privada dentro da narrativa histoacuterica como a principal

inovaccedilatildeo da narrativa claacutessica para o desenvolvimento do romance grego idealista

Aleacutem disso o modo de imitaccedilatildeo da Ciropedia eacute o de uma narrativa mista pois o

narrador mimetiza na diegese a locuccedilatildeo de outras personagens ou seja o narrador daacute

voz agraves personagens A mimetizaccedilatildeo de outros locutores propicia a absorccedilatildeo de outros

gecircneros literaacuterios pois fornece a oportunidade para as personagens discursarem

dialogarem e narrarem pequenas narrativas Assim a Ciropedia tanto efetua a siacutentese de

elementos ficcionais e histoacutericos quanto absorve gecircneros literaacuterios dentro da narrativa

estabelecendo-se como uma verdadeira forma romanesca inovadora na preacute-histoacuteria do

romance

56 Brandatildeo (2005) intrepreta o sentido de mimetizar como ldquoimitaccedilatildeo de diferentes locutoresrdquo A interpretaccedilatildeo baseia-se na formulaccedilatildeo de Aristoacuteteles na Poeacutetica (1460 a) quando Aristoacuteteles elogia Homero como o melhor dos mimetai pois o proacuteprio narrador interfere pouco na narraccedilatildeo preferindo mimetizar a locuccedilatildeo de outros personagens

45

3 Reescrevendo o passado ficcionalizando a histoacuteria

Como o romance a historia seleciona simplifica organiza faz com que um seacuteculo caiba numa paacutegina e essa siacutentese

da narrativa eacute tatildeo espontacircnea quanto a da nossa memoacuteria []

Paul Veyne 1982 p11-12

Por sua forma narrativa pelos conflitos personalizados de suas personagens o romance

estaacute junto natildeo soacute da prosa diaacuteria quanto da forma narrativa privilegiada desde fins do

seacuteculo XVIII a forma da Histoacuteria Luiacutez Costa Lima 1984 p111

Neste capiacutetulo analisaremos a relaccedilatildeo de intertextualidade existente entre a

narrativa de Xenofonte e a obra Histoacuterias de Heroacutedoto uma vez que o tema da

Ciropedia a vida de Ciro jaacute fora abordado antes na obra de Heroacutedoto Aleacutem de

Heroacutedoto tambeacutem Cteacutesias de Cnido e Antiacutestenes abordaram a vida de Ciro poreacutem

apenas a obra de Heroacutedoto nos chegou in extenso Eacute portanto a nossa uacutenica fonte

histoacuterica disponiacutevel para nos informar o que era considerado dado histoacuterico sobre o

tema na eacutepoca de Xenofonte Assim consideramos que a comparaccedilatildeo entre as

narrativas tanto do conteuacutedo quanto dos aspectos formais faz-se necessaacuteria para uma

melhor compreensatildeo da obra xenofonteana

Efetuaremos nossa anaacutelise retomando conceitos de intertextualidade e

imitaccedilatildeo aleacutem de pensar na relaccedilatildeo entre histoacuteria e ficccedilatildeo Nosso objetivo eacute demonstrar

como Xenofonte cria sua ficccedilatildeo idealizada a partir dos dados histoacutericos Isso significa

que a ficccedilatildeo se mescla ao texto histoacuterico e com ele se confunde Por meio desta

estrateacutegia o leitor eacute persuadido da verdade dos fatos narrados pela obra ficcional Para

isso antes da anaacutelise comparativa propriamente dita traremos alguma discussatildeo que

vise agrave aproximaccedilatildeo entre histoacuteria e literatura para que estas duas produccedilotildees do

pensamento humano natildeo sejam vistas como dissociadas

31 Histoacuteria e Literatura

46

O passado existe no tempo e antes de ser tomado pela linguagem mas o passado

soacute se torna fato histoacuterico por meio da linguagem Assim o discurso recupera e

reconstroacutei os acontecimentos passados para lhes dar um sentido e uma forma estando o

sentido e a forma conforme Linda Hutcheon (1991 p122) natildeo nos ldquoacontecimentos

em sirdquo mas na linguagem que os recuperou Entretanto cada gecircnero (histoacuteria romance

teatro etc) apresenta as suas proacuteprias caracteriacutesticas linguiacutesticas e discursivas o que

significa que o passado seraacute representado de um modo especiacutefico de acordo com o

gecircnero que o reconstrua Eacute necessaacuterio observar como cada gecircnero recupera o passado

tanto nos aspectos formais quanto nos aspectos discursivos sabendo que o mesmo

passado tende a se reconstruir diferentemente de acordo com as caracteriacutesticas de cada

gecircnero

Todos os romancistas gregos mantecircm uma importante relaccedilatildeo com a

historiografia seja construindo a narrativa em uma eacutepoca historicamente importante

seja se utilizando de recursos linguiacutesticos e estiliacutesticos dos historiadores (MORGAN

HARRISON 2008 p220)

No entanto o romance grego soacute se desenvolve plenamente entre o primeiro

seacuteculo aC e o quarto seacuteculo dC Poreacutem em suas primeiras manifestaccedilotildees a ficccedilatildeo em

prosa ainda estava intrinsecamente relacionada com a histoacuteria ou melhor com os

acontecimentos histoacutericos A histoacuteria com efeito eacute um dos elementos base na

organizaccedilatildeo da ficccedilatildeo (REacuteMY 1972 p157) Desse modo devemos para melhor

compreender as primeiras manifestaccedilotildees da ficccedilatildeo em prosa na Greacutecia Claacutessica

observar que relaccedilatildeo mantinham com o passado os gecircneros que neste tempo preacute-

romance floresciam na Antiguidade Nos seacuteculos V e IV aC a historiografia e a

biografia concorriam como gecircneros que representavam o passado

Sobre a historiografia podemos dizer que o sentido etimoloacutegico da palavra

histoacuteria ἱστορίη (historie) tal qual Heroacutedoto o emprega pela primeira vez significa

inqueacuterito ou pesquisa e a obra do historiador dessa forma eacute a ldquoexposiccedilatildeo da pesquisardquo

(ἀπόδεξις ἰστορίης apodeksis historiacutees) (Histoacuterias I1) Por conseguinte o

historiador deve por meio da pesquisa separar dos fatos passados o que eacute verdade e o

que eacute fantasia Os temas principais da historiografia grega eram os fatos poliacuteticos e

militares dos poderosos Estados (RAHN 1971 p498) para que os grandes feitos dos

homens natildeo fossem esquecidos (ἐξίτηλα γένηται eksitela genetai) Dessa forma

tanto com Heroacutedoto quanto com Tuciacutedides o historiador ldquo[] colocava-se como

47

testemunha e como registrador de mudanccedilas [] que em sua opiniatildeo eram importantes

o bastante para serem transmitidas agrave posteridaderdquo (MOMIGLIANO 1998 p187)

Quanto agrave biografia este gecircnero surgiu como forma de elogio de um indiviacuteduo

em conexatildeo com o gecircnero retoacuterico epidiacutetico ou encocircmio O epidiacutetico (ἐπιδεικτικόν

epideiktikon) ao lado do deliberativo (συμβουλευτικόν sumbouleutikon) e do

judiciaacuterio (δικανικόν dikanikon) formava os gecircneros da retoacuterica antiga57

(ARISTOacuteTELES Retoacuterica III 13) e estes gecircneros se distinguiam entre si pela

finalidade O fim do gecircnero epidiacutetico eacute o belo e o feio (τὸ καλὸν καὶ τὸ αἰσχρόν to

kalon kai to aischron) porque nele se censura e louva (ἐπαινοῦσιν καὶ ψέγουσιν

epainousin kai psegousin)

Segundo Momigliano (1998 p188) os relatos biograacuteficos natildeo eram

reconhecidos pelos antigos como histoacuteria mas como um gecircnero retoacuterico pois a

essecircncia da biografia era o elogio ou censura de uma personalidade enquanto que a

historiografia visando agrave verdade deveria abster-se de excessos de elogios e censuras

Assim a histoacuteria visava agrave objetividade para alcanccedilar a verdade enquanto no texto

biograacutefico deixava transparecer no relato a visatildeo subjetiva do bioacutegrafo

A palavra biografia eacute composta pelos termos βίος (vida) e γράφειν (escrever) e

foi usada pela primeira vez por Plutarco (seacutec II dC) na Vida de Alexandre (12-3) As

formas biograacuteficas anteriores a Plutarco satildeo denominadas pelos antigos de encocircmio

revelando com isso a origem epidiacutetica do gecircnero biograacutefico58 (MOMIGLIANO 1993

p10)

Como afirmamos anteriormente59 a fronteira entre ficccedilatildeo e realidade (histoacuteria)

foi mais diluiacuteda na biografia do que na historiografia60 O gecircnero biograacutefico segundo

Plutarco (Alexandre 12-3) revela uma verdade diferente da verdade historiograacutefica

pois natildeo aborda a narraccedilatildeo dos grandes feitos ndash tema da historiografia ndash mas dos

pequenos e cotidianos que revelam o verdadeiro caraacuteter dos homens ilustres

57 A triparticcedilatildeo dos gecircneros retoacutericos em deliberativo judiciaacuterio ou epidiacutetico (demonstrativo) manteve-se nos tratados retoacutericos dos romanos Cf Pseudo-Ciacutecero Retoacuterica a Herecircnio 2005 p55 58 Como afirmamos no capiacutetulo 1 no decorrer deste trabalho utilizaremos a designaccedilatildeo biografia de forma ampla seguindo desse modo Momigliano (1993) abrangendo por isso as obras encomiaacutesticas do seacuteculo IV aC 59 Cf a subseccedilatildeo 2242 60 Para Francis a riacutegida distinccedilatildeo entre literatura e histoacuteria deveria ser muito estranha para os leitores antigos pois a historiografia antiga foi a primeira a empregar estrateacutegias discursivas para criar ldquoficccedilotildees verdadeirasrdquo (FRANCIS 1988 p421) Para Morgan (1993 p186-187) a condiccedilatildeo essencial para que uma obra seja reconhecida como ficcional eacute que exista um contrato ficcional estabelecido que seja aceito pelos leitores

48

Momigliano (1993 p55) afirma que eacute justamente por meio da narraccedilatildeo dos fatos

pequenos cotidianos e particulares que a ficccedilatildeo se infiltra no material histoacuterico na

biografia A biografia se utiliza de um material histoacuterico (dados comprovaacuteveis pelas

fontes) a fim de que a narrativa ficcional tenha a aparecircncia de verdade e se confunda

com a proacutepria histoacuteria Assim a narrativa ficcional da biografia deveria ser coerente

com os dados para que o caraacuteter ndash revelado por meio dos feitos pequenos e cotidianos ndash

fosse coerente com as accedilotildees do biografado ndash revelado por meio dos feitos grandiosos

comprovados pelos dados histoacutericos61 Os leitores das biografias portanto natildeo soacute

mantinham como tambeacutem esperavam esse contrato de cumplicidade ficcional com as

biografias

Seria portanto a historiografia um gecircnero que se opusesse completamente agrave

ficccedilatildeo Segundo Momigliano (1998 p188) natildeo se pode compreender o trabalho dos

historiadores do seacuteculo V aC sem se levar em conta a formalizaccedilatildeo da retoacuterica puacuteblica

pois ldquo[o] relato dos historiadores devia proporcionar algum tipo de satisfaccedilatildeo a seus

leitoresrdquo (MOMIGLIANO 1998 p190) Tuciacutedides acusava Heroacutedoto de colocar o

deleite antes da instruccedilatildeo poreacutem uma das invenccedilotildees mais caracteriacutesticas de Tuciacutedides

ldquo[] o uso de falas fictiacutecias para relatar correntes da opiniatildeo puacuteblica e restabelecer as

motivaccedilotildees dos liacutederes poliacuteticos []rdquo (MOMIGLIANO 1998 p188) seria impensaacutevel

sem a formalizaccedilatildeo da retoacuterica O influxo da retoacuterica na historiografia fecirc-la

desenvolver-se para aleacutem da ambiccedilatildeo de verdade dos proacuteprios historiadores

Por meio destas primeiras reflexotildees parece-nos que a distinccedilatildeo para os antigos

entre a histoacuteria e a literatura eacute muito tecircnue Tanto a biografia quanto a historiografia

claacutessicas mostravam aptidatildeo para estetizar o material histoacuterico seja por meio de

recursos retoacutericos e estiliacutesticos seja por meio da ficccedilatildeo O romance grego acreditamos

surge dos desenvolvimentos narrativos efetuados por estes gecircneros Assim literatura e

histoacuteria natildeo devem ser vistas como poacutelos opostos e incomunicaacuteveis Para Bowersock

(1994 p14-15) o principal erro da teoria dos gecircneros eacute acreditar que os gecircneros satildeo

formas estanques e isoladas culturalmente poreacutem noacutes devemos lembrar que o contato

entre os gecircneros eacute mais constante do que se costuma afirmar

61 Na Poeacutetica 1454 Aristoacuteteles afirma que ldquo[t]anto na representaccedilatildeo dos caracteres como no entrecho das accedilotildees importa procurar sempre a verossimilhanccedila e a necessidade por isso as palavras e os atos de uma personagem de certo caraacuteter devem justificar-se por sua verossimilhanccedila e necessidade tal como nos mitos os sucessos de accedilatildeo para accedilatildeordquo (ARISTOacuteTELES 1966 p20)

49

Passemos agora a retomar algumas importantes reflexotildees feitas por Aristoacuteteles

Ciacutecero Hegel Barthes Veyne e Lukaacutecs a respeito das relaccedilotildees entre Literatura e

Histoacuteria procurando nelas observar limites mais frouxos entre os dois modos de

representaccedilatildeo

Aristoacuteteles na Poeacutetica 1451a-b estabelece que a distinccedilatildeo entre histoacuteria e poesia

se manifesta natildeo tanto pelo seu caraacuteter formal (o meio de imitaccedilatildeo) mas pelo conteuacutedo

(objeto de imitaccedilatildeo) Desse modo natildeo eacute o uso da prosa ou do verso que torna um texto

respectivamente histoacuterico ou poeacutetico A distinccedilatildeo para Aristoacuteteles estaacute no fato de que a

histoacuteria narra acontecimentos que realmente sucederam enquanto a poesia narra

acontecimentos que poderiam acontecer O discurso literaacuterio eacute a representaccedilatildeo ldquodo

possiacutevel segundo a verossimilhanccedila e a necessidaderdquo (ARISTOacuteTELES 1996 p79) Jaacute

o discurso histoacuterico se apropria dos fatos reais passados e particulares por isso ldquo[] a

poesia eacute algo de mais filosoacutefico e mais seacuterio do que a histoacuteria pois refere aquela

principalmente o universal e esta o particularrdquo (ARISTOacuteTELES 1996 p78)

Ao historiador cabe separar dos fatos passados a verdade excluir deles a

fantasia e ordenaacute-los O poeta na concepccedilatildeo aristoteacutelica de arte como imitaccedilatildeo do real

eacute criador de uma imagem-representaccedilatildeo da realidade e de um ldquomitordquo (enredo)

verossiacutemil posto que organizado pela necessidade e verossimilhanccedila A construccedilatildeo

verossiacutemil amplia-se como relaccedilatildeo causal implicando a sucessatildeo de cenas de modo

homogecircneo criando desta forma certo efeito do real Como criador de representaccedilatildeo

ldquosua atuaccedilatildeo natildeo tem limites fixosrdquo (GOBBI 2004 p40) abrangendo todo campo do

possiacutevel Isso significa que eacute parte do material poeacutetico todo conteuacutedo discursivo

inclusive o material histoacuterico Na Poeacutetica 1451b Aristoacuteteles acrescenta

[] ainda que lhe aconteccedila fazer uso de sucessos reais nem por isso deixa de ser poeta pois nada impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam por natureza verossiacutemeis e possiacuteveis e por isso mesmo venha o poeta a ser o autor delas (ARISTOacuteTELES 1966 p79)

A ficccedilatildeo portanto ainda que tome por representaccedilatildeo a temaacutetica histoacuterica logo

o verdadeiro natildeo perde por isso o estatuto ficcional e natildeo se confunde com o discurso

historiograacutefico O criteacuterio de verdade natildeo eacute ao que parece para Aristoacuteteles um conceito

absoluto para a distinccedilatildeo entre os gecircneros mas confunde-se tambeacutem com outros

conceitos da poeacutetica principalmente o da verossimilhanccedila

50

Como jaacute assinalamos os tratados retoacutericos estabeleciam que a diferenccedila

essencial entre os gecircneros histoacutericos e poeacuteticos foca-se na sua finalidade pois enquanto

o fim da historiografia eacute o uacutetil que soacute se pode alcanccedilar por meio do verdadeiro o fim

do discurso poeacutetico eacute o prazeroso o luacutedico62 No entanto o discurso historiograacutefico se

regulava desde o seacuteculo V aC pelas orientaccedilotildees retoacutericas e segundo Momigliano

(1984) a partir do seacuteculo IV aC os historiadores aproximaram ainda mais do

agradaacutevel a utilidade ao utilizarem para o enriquecimento de suas narrativas de teacutecnica

de ldquosuperdramatizaccedilotildees pateacuteticasrdquo (MOMIGLIANO 1998 p191)

Ciacutecero compreende a histoacuteria como um gecircnero retoacuterico (opus oratorium) e que

portanto estaacute regulado pelas leis da retoacuterica (BOWERSOCK 1993 p13) Em Ad

Familiares (apud HARTOG 2001) Ciacutecero afirma que para tornar a histoacuteria mais

prazerosa eacute necessaacuterio que o escritor a enriqueccedila com a linguagem e o discurso mesmo

que com isso negligencie as leis da histoacuteria Diz ele

Nada com efeito eacute mais conveniente ao deleite do leitor que a variedade das circunstacircncias e as vicissitudes da Fortuna [] De fato a organizaccedilatildeo dos anais prende-nos mediocremente da mesma forma que a enumeraccedilatildeo dos fatos enquanto frequentemente as desventuras perigosas e variadas de um homem eminente geram admiraccedilatildeo atenccedilatildeo alegria pena esperanccedila medo e se terminam com uma morte insigne o espiacuterito entatildeo se eleva pelo agradabiliacutessimo prazer da leitura (CIacuteCERO 5 12 apud HARTOG 2001 p157)

A partir destas reflexotildees levanta-se a questatildeo ateacute que ponto na Antiguidade eacute

possiacutevel separar da literatura o discurso da histoacuteria Pois se para Aristoacuteteles o uso de

um tema histoacuterico por parte do poeta natildeo o confunde com o historiador para Ciacutecero e

outros retores o discurso historiograacutefico deve se orientar pelas leis retoacutericas nem que

com isso o historiador viole a principal lei da histoacuteria fidelidade agrave verdade Os limites

entre os gecircneros natildeo satildeo portanto estanques e facilmente delimitados poreacutem

claramente interrelacionaacuteveis e este cruzamento de formas constitui a essecircncia da

proacutepria poeacutetica

A historiografia e a oratoacuteria estatildeo no limite do que Hegel considera arte pois

estes gecircneros visam a objetos extra-literaacuterios e essa ausecircncia de gratuidade eacute o que as

distingue da poesia No entanto Hegel aproxima a historiografia da poesia ao admitir a

62 Sobre a distinccedilatildeo cf Como se deve escrever a Histoacuteria (2009) de Luciano

51

subjetividade da escrita da histoacuteria a histoacuteria natildeo eacute soacute a exatidatildeo dos fatos mas

necessita de um sujeito que introduza uma determinada ordem nos eventos que os

agrupe e os interprete construindo assim a imagem do objeto (GOBBI 2004 p42)

No entanto Hegel as distingue em termos de criaccedilatildeo uma vez que o historiador

soacute pode ser o organizador natildeo o inventor dos fatos enquanto ao poeta tudo eacute permitido

inclusive reconstruir a histoacuteria A arte ndash que eacute para Hegel substancialidade pura ndash pode

corrigir a histoacuteria ndash que eacute substancialidade e acidentalidade ndash transformando a verdade

externa conforme a verdade interna (GOBBI 2004 p43) Desse modo Hegel abre a

perspectiva de que o poeta retomando o fio dos fatos histoacutericos os modifique e os

corrija desde que sua finalidade natildeo seja a verdade do histoacuterico mas uma verdade de

representaccedilatildeo verossiacutemil tal qual afirmava Aristoacuteteles

Quando no seacuteculo XIX a ciecircncia da Histoacuteria foi fundada procurou-se sob o

influxo do positivismo estabelecer um maior rigor na investigaccedilatildeo das fontes e dos

documentos e desse modo opor-se ldquoagrave livre invenccedilatildeo romanescardquo (FREITAS 1986

p2) Assim os historiadores modernos sob o impulso da obra historiograacutefica de Ranke

(1795-1886) considerado o pai da historiografia cientiacutefica elegeram dos antigos aquele

historiador que melhor representasse esta praacutexis do historiador Tuciacutedides63 No entanto

alguns estudiosos modernos procuraram revisitar estas ideias positivistas para tornar a

ciecircncia da histoacuteria mais proacutexima da arte uma vez que ldquo[] o historiador tendo que

formar concepccedilotildees a partir de indiacutecios potildee muito de si mesmo em seu discursordquo

(FREITAS 1986 p2)

O huacutengaro Geog Lukaacutecs um dos mais importantes teorizadores do romance no

seacuteculo XX foi pioneiro na teorizaccedilatildeo do ldquoromance histoacutericordquo Em sua obra Le roman

historique (2000) afirma que o romance histoacuterico nasce no iniacutecio do seacuteculo XIX com a

obra de Walter Scott Antes jaacute encontraacutevamos romances com temas histoacutericos (seacutec

XVII e XVIII) que podem ser considerados como antecedentes do romance histoacuterico

Contudo estas obras satildeo histoacutericas apenas pela escolha de temas e costumes pois neste

passado representado natildeo somente a psicologia das personagens mas tambeacutem os meios

sociais pintados satildeo inteiramente aqueles do tempo do proacuteprio escritor Nestas obras

importa apenas o caraacuteter curioso e exoacutetico do ambiente pintado e natildeo a reproduccedilatildeo

histoacuterica fiel de uma era historicamente concreta Conforme Lukaacutecs

63 ldquo[Tuciacutedides] introduziu poreacutem uma nota de austeridade que se tornou parte do caraacuteter (senatildeo da praacutexis) dos historiadores []rdquo (MOMIGLIANO 1998 p187)

52

O que falta ao pretendido romance histoacuterico anterior a Walter Scott eacute justamente aquilo que eacute especificamente histoacuterico o fato de que a particularidade das personagens deriva da especificidade histoacuterica do tempo deles [] A questatildeo da verdade histoacuterica na representaccedilatildeo artiacutestica da realidade se situa muito aleacutem do horizonte destes escritores64 (LUKAacuteCS 2000 p17)

Para Lukaacutecs o romance de Walter Scott estabelece pela primeira vez uma

relaccedilatildeo entre passado e presente em uma perspectiva em que o presente eacute fruto do

passado Nos romances anteriores a Walter Scott esta perspectiva estaacute ausente A partir

disso Lukaacutecs estabelece algumas caracteriacutesticas ndash como por exemplo a presenccedila do

heroacutei mediano ou a representaccedilatildeo de um microcosmo que reflete a totalidade histoacuterica ndash

que formaria a estrutura do romance histoacuterico nascido a partir de Walter Scott

Entretanto Jacques Le Goff (1972) com uma percepccedilatildeo mais ampla avalia que estatildeo

presentes em muitas narrativas da Idade Meacutedia as caracteriacutesticas que Lukaacutecs (2000)

classifica como proacuteprias do romance moderno de Scott Novamente entramos no

problema terminoloacutegico do romance uma vez que Lukaacutecs (2000) natildeo vecirc essas

narrativas anteriores como romance por faltarem a elas o conflito interno entre o homem

e a sociedade Poreacutem a anaacutelise de Le Goff (1972) demonstra que do ponto de vista da

forma os elementos essenciais do gecircnero natildeo surgem ex nihilo com o gecircnero pronto

mais se desenvolvem por um longo periacuteodo ateacute que finalmente encontrem o solo

propiacutecio para se afirmar

Entretanto os romances contemporacircneos de temaacutetica histoacuterica que Linda

Hutcheon (1991) denomina de meta-ficccedilatildeo historiograacutefica apresentam novas

caracteriacutesticas inclusive substituindo os heroacuteis medianos por heroacuteis histoacutericos ldquo[] que

instalam e depois indefinem a linha de separaccedilatildeo entre a ficccedilatildeo e a histoacuteria []rdquo (1991

p150) Desse modo as caracteriacutesticas que Lukaacutecs classifica como determinantes para o

romance histoacuterico satildeo na verdade determinantes para um tipo de ficccedilatildeo histoacuterica o

romance histoacuterico do seacuteculo XIX mas natildeo resolvem toda a problemaacutetica do romance

histoacuterico ou da ficccedilatildeo histoacuterica

Outro ponto essencial da teoria lukaacutecseana sobre a relaccedilatildeo do romance moderno

com a Histoacuteria eacute o fato de o romance moderno desenvolver sua forma realista a partir

64 Na traduccedilatildeo francesa Ce qui manque au preacutetendu roman historique avant Walter Scott crsquoest justement ce qui est speacutecifiquement historique le fait que la particulariteacute des personnages derive de la speacutecificiteacute historique de leur temps [] La question de la veriteacute historique dans la reproduction artistique de la reacutealite se situe encore au-delaacute de son horizon (LUKAacuteCS 2000 p17)

53

da representaccedilatildeo da histoacuteria contemporacircnea como mateacuteria narrativa A interpretaccedilatildeo que

Lukaacutecs faz da obra de Balzac justamente revela a busca incessante do romancista

francecircs em fazer de sua obra uma ldquohistoacuteriardquo da Franccedila poacutes-revolucionaacuteria O romance

moderno ao se formalizar realista infiltra em sua mateacuteria ficcional a representaccedilatildeo de

aspectos histoacutericos ideoloacutegicos e sociais

No final do seacuteculo XX Paul Veyne65 (1982) aproxima o discurso histoacuterico do

discurso ficcional ao se opor agrave ideia de que a histoacuteria seja uma ciecircncia objetiva Para

Veyne retomando a problemaacutetica lanccedilada por Hegel a histoacuteria eacute uma narrativa de

eventos selecionados e organizados em vista de um determinado fim de acordo com a

subjetividade e idelogia de um sujeito histoacuterico Assim a objetividade do texto histoacuterico

deve-se a procedimentos de escritura a toacutepos e iacutendices do gecircnero tanto quanto a

estilizaccedilatildeo realista do texto literaacuterio O autor do discurso historiograacutefico eacute portanto um

criador de simulacros como o poeta manejando seu material a fim de que a sua verdade

seja comunicada A imagem de verdade que eacute lanccedilada pela representaccedilatildeo histoacuterica eacute

apenas uma ilusatildeo linguiacutestica e literaacuteria criada por procedimentos estiliacutesticos Agrave medida

que se fortalecia enquanto gecircnero discursivo a tradiccedilatildeo historiograacutegfica desenvolveu

determinadas regras de escritura que natildeo soacute criam a ilusatildeo de verdade mas tambeacutem

tornam o texto reconheciacutevel como historiograacutefico para o puacuteblico

Roland Barthes66 (1988) se questiona se eacute legiacutetimo opor do ponto de vista

estrutural da linguagem a narrativa ficcional agrave narrativa histoacuterica discutindo

justamenteo os iacutendices linguiacutesticos Para Barthes a anaacutelise do discurso e de suas

unidades constitutivas poderaacute ldquo[] problematizar a claacutessica oposiccedilatildeo natildeo soacute dos gecircneros

literaacuterios como tambeacutem aquela que se faz entre o texto literaacuterio e o texto histoacuterico []rdquo

(GOBBI 2004 p54) O fato histoacuterico eacute um produto de significaccedilatildeo do discurso desse

modo assemelhando-se com o fato literaacuterio A questatildeo central eacute que Barthes nega a

referencialidade ao mundo como toacutepico de anaacutelise e estabelece que por meio da anaacutelise

linguiacutestica os gecircneros histoacuteriograacutefico e romanesco aproximam-se como construccedilatildeo da

linguagem Conforme Josipovic (1971 p148 apud HUTCHEON 1991 p143) a

anaacutelise dos iacutendices linguiacutesticos utilizados pelos historiadores e pelos primeiros

romancistas modernos demonstra que ambos pareciam fingir que a sua obra natildeo era

65 A primeira publicaccedilatildeo do livro Comment on eacutecrit lhistoire essai deacutepisteacutemologie de Paul Veyne eacute de 1970 Utilizamos a traduccedilatildeo de Alda Baltar e Maria A Kneipp de 1982 66 A primeira ediccedilatildeo da obra Le bruissement de la langue de Barthes (1984) Utilizamos a traduccedilatildeo de Mario Laranjeira de 1988

54

criada mas que existia no tempo e se apresentava agrave narraccedilatildeo Esta praacutetica foi

fundamental para a afirmaccedilatildeo da mimese realista do romance moderno

Neste breve percurso em que historiamos as discussotildees sobre a relaccedilatildeo entre

literatura e histoacuteria podemos observar que as distinccedilotildees entre estes gecircneros discursivos

nunca foram claramente definidas Mesmo Aristoacuteteles e Hegel que se esforccedilaram para

separaacute-los apresentam em seus discursos elementos que os aproximam ndash Aristoacuteteles ao

tomar a temaacutetica histoacuterica como poeacutetica Hegel ao compreender que a Histoacuteria eacute criada

por um sujeito que organiza as informaccedilotildees Jaacute Ciacutecero na Antiguidade e Barthes e

Veyne na Modernidade preocupados mais com questotildees de escrita dos gecircneros do que

com o referente entendem histoacuteria e literatura como fenocircmenos do discurso literaacuterio

Por fim para Lukaacutecs (2000) o romancista moderno trabalha como um historiador

observando as tendecircncias sociais e ideoloacutegicas seja do seu tempo seja do tempo

passado e desse modo a representaccedilatildeo histoacuterica no romance eacute essencial para o

desenvolvimento e afirmaccedilatildeo da forma realista do romance moderno

Levantamos estas questotildees inicialmente porque a dificuldade em se estabelecer

os limites entre estes dois gecircneros talvez tambeacutem explique a contiacutenua eterna e muacutetua

atraccedilatildeo que eles sempre demonstraram incluindo a relaccedilatildeo de imitaccedilatildeo que os

romancistas gregos estabeleceram com os historiadores claacutessicos

Para Brandatildeo (2005) o narrador do romance grego se apresenta em conexatildeo

com algumas estrateacutegias discursivas estabelecidas pelos historiadores gregos tais como

a presenccedila de um narrador em terceira pessoa que objetiva a narraccedilatildeo e de algum modo

se oculta no narrado Aleacutem disso as foacutermulas de enquadramento presentes nos

proecircmios e eventualmente tambeacutem nos epiacutelogos criam a impressatildeo de que os romances

teriam derivados da historiografia (BRANDAtildeO 2005 p110)

Em nossa opiniatildeo os romancistas encontraram na historiografia um espelho

onde poderiam experimentar novas formulaccedilotildees narrativas e ainda assim aparentarem

por meio de estrateacutegias da historiografia verossimilhanccedila Para Salvatore DrsquoOnofrio

toda a narrativa ficcional procura ser criacutevel verossiacutemil e ldquo[] mesmo quando [a prosa]

adentrou o territoacuterio da poesia [a ficccedilatildeo] procurou salvaguardar este seu estigma inicial

ter uma aparecircncia de veracidaderdquo (DrsquoONOFRIO 1976 p12) O estudo portanto de

como a ficccedilatildeo se infiltra no discurso historiograacutefico (em sentido lato) eacute a nosso ver

fundamental para a compreensatildeo da histoacuteria do discurso ficcional em prosa O romance

histoacuterico como o entende Lukaacutecs (2000) eacute uma das formas da complexa relaccedilatildeo entre

55

ficccedilatildeo e histoacuteria mas esta estaacute na base do proacuteprio desenvolvimento ficcional E mais na

Antiguidade a infiltraccedilatildeo da ficccedilatildeo se daacute em maior medida no gecircnero biograacutefico que

aborda um tema que tambeacutem eacute um tema historiograacutefico do passado Portanto na

anaacutelise das obras biograacuteficas principalmente do romance biograacutefico poderemos

compreender importantes aspectos da evoluccedilatildeo da prosa ficcional no Ocidente

Quando os textos ficcionais se apropriam da temaacutetica histoacuterica a relaccedilatildeo da

literatura com a historiografia pode ser vista de trecircs modos (1) haacute ficccedilotildees literaacuterias que

aludem a situaccedilotildees histoacutericas geralmente com o fito de criar certo efeito do real (2) haacute

obras que apenas situam sua intriga em um determinado contexto soacutecio-histoacuterico e (3)

haacute romances que transformam em sua mateacuteria o universo histoacuterico como parte

integrante de sua estrutura fazendo da realidade histoacuterica uma realidade esteacutetica

(GOBBI 2004 p38) Procuraremos a partir desta classificaccedilatildeo determinar que tipo de

relaccedilatildeo com a histoacuteria a Ciropedia cria por meio da ficccedilatildeo

32 Ciro na histoacuteria e na ficccedilatildeo

O tema da Ciropedia eacute a vida de uma personagem histoacuterica Ciro fundador do

impeacuterio persa A vida puacuteblica da personagem seus feitos poliacuteticos e militares eacute

combinada com cenas da vida particular em especial a sua infacircncia Por exemplo

participaccedilatildeo em banquetes experiecircncias de caccedila relacionamento com outras crianccedilas

Desse modo podemos afirmar que o tema da Ciropedia enquadra na definiccedilatildeo de

gecircnero biograacutefico e portanto as relaccedilotildees entre os dados histoacutericos e a ficccedilatildeo satildeo muito

fluidas e de difiacutecil determinaccedilatildeo No entanto uma vez que Xenofonte combina

narrativas ficcionais com narrativa histoacuterica necessitamos responder as questotildees a-)

por que Xenofonte se utiliza desse material histoacuterico ao inveacutes de construir uma obra

totalmente ficcional uma vez que eacute evidente o caraacuteter ficcional e idealista da obra b-)

como ele utiliza esse material conhecido de seus leitores

Sabemos que na eacutepoca em que Xenofonte escreveu sua obra a vida de Ciro jaacute

havia sido tema de vaacuterias obras de outros escritores e que estas provavelmente lhe

serviram de fonte para a obra Segundo Sansalvador (1987 p22) eacute seguro que a figura

de Ciro tenha sido tratada nos Peacutersica dos logoacutegrafos antigos como Caratildeo de

56

Laacutempsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico ndash todas perdidas Uma obra perdida da qual

conhecemos apenas o tiacutetulo e que parece ter tido grande influecircncia na Ciropedia foi a

obra Ciro do filoacutesofo ciacutenico Antiacutestenes Nesta obra em forma de diaacutelogo socraacutetico o

filoacutesofo Antiacutestenes apresentava Ciro como modelo da exaltaccedilatildeo do esforccedilo (πόνος

ponos)

Cteacutesias de Cnido foi meacutedico do rei persa Artarxerxes II67 (404-3987 aC) e

autor de uma histoacuteria da Peacutersia Peacutersica em vinte e trecircs livros dos quais nos restaram

apenas escassos fragmentos Holzberg (2003 p629) observa que Diodoro de Siculo nos

daacute um sumaacuterio dos livros 1-6 que trata da histoacuteria do Impeacuterio Assiacuterio e Medo desde

Nino ateacute Astiacuteages enquanto Foacutecio resume os livros de 7-23 no qual Cteacutesias narra a

histoacuteria da Peacutersia de Ciro ateacute Artarxerxes II Segundo Holzberg (2003 p629) um

fragmento da obra (POxy2330) conteacutem um relato amoroso que tanto pelo estilo

quanto pelo motivo se assemelha agrave estrutura dos romances gregos Gera (1993 p201)

observa semelhanccedilas neste relato amoroso com a narrativa de Panteacuteia escrita por

Xenofonte Por fim o livro primeiro das Histoacuterias de Heroacutedoto tambeacutem traz a narrativa

a respeito da vida de Ciro Segundo Heroacutedoto a narrativa que ele nos apresenta era uma

das trecircs versotildees sobre a vida de Ciro que ele tinha conhecimento

Aleacutem disso ao ter viajado agrave Peacutersia Xenofonte deve ter entrado em contato com

inuacutemeras tradiccedilotildees orais seja diretamente referindo-se a Ciro seja referindo-se a

tradiccedilatildeo persa Em todo caso estamos limitados neste campo pois seria difiacutecil

reconhecer quais elementos da tradiccedilatildeo oral persa foi aproveitado por Xenofonte

Destas obras a uacutenica que nos chegou in extenso eacute a de Heroacutedoto o que natildeo soacute

delimita a nossa anaacutelise do uso do material histoacuterico por Xenofonte como tambeacutem

torna necessaacuteria a anaacutelise comparativa das duas obras Para nossa anaacutelise seguiremos o

modelo proposto por Maria Teresa de Freitas (1986) em Literatura e Histoacuteria em que a

autora propotildee a confrontaccedilatildeo do texto literaacuterio com documentos histoacutericos que

permitam verificar a fidelidade ou manipulaccedilatildeo destes dados pelo escritor A partir

desta anaacutelise identificaremos que tipo de manipulaccedilatildeo o texto ficcional efetuou no texto

de autoridade do discurso histoacuterico Justificamos ainda nossa anaacutelise pelo conceito de

intertextualidade pois uma vez que natildeo podemos nos certificar do material das outras

fontes sobre a vida de Ciro que Xenofonte poderia ter usado as alusotildees ao texto de

67 Esta informaccedilatildeo nos eacute dada pelo proacuteprio Xenofonte na Anaacutebase I

57

Heroacutedoto sugerem que Xenofonte nas passagens indicadas natildeo usou outra fonte mas

ficcionalizou conscientemente o material narrado por Heroacutedoto

321 O λόγος de Ciro na Histoacuteria de Heroacutedoto

Nesta seccedilatildeo apresentaremos brevemente de que forma a narrativa sobre Ciro

estaacute inserida na obra de Heroacutedoto para delimitarmos os momentos da narrativa que

faratildeo parte de nossa anaacutelise

Na obra de Heroacutedoto a narrativa de Ciro estaacute inserida na segunda parte do livro

I (1 95-216) motivada pela participaccedilatildeo da personagem Ciro no episoacutedio de Creso rei

liacutedio Segundo os professores Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria de Faacutetima Silva (2002

p22) a histoacuteria dos monarcas em Heroacutedoto apoacuteia-se no ldquo[] princiacutepio da ascensatildeo e

queda do chefe de um povo que tem por traacutes a ideia da instabilidade da fortuna e da

fragilidade da natureza humanardquo A focalizaccedilatildeo de Heroacutedoto nesta narrativa natildeo visa agrave

anaacutelise da personalidade de Ciro mas prioritariamente a tomaacute-la ldquo[] como paradigma

com funccedilotildees determinadas no conjunto da narrativardquo (FERREIRA SILVA 2002

p38) Assim compreendida pelo seu caraacuteter paradigmaacutetico esta narrativa se estrutura

pelos temas da ascensatildeo e queda do monarca fruto da sua ὕβρις (hybris) a sua

desmedia

A comparaccedilatildeo entre as narrativas de Xenofonte e de Heroacutedoto natildeo eacute uma ideia

nova jaacute tendo sido realizada por vaacuterios estudiosos (DUE 1989 p117) No entanto

nossa comparaccedilatildeo procuraraacute responder novas questotildees a respeito da ficcionalizaccedilatildeo da

histoacuteria na Ciropedia justificando por isso nosso empreendimento Outras anaacutelises

comparativas tendem a estabelecer as diferenccedilas entre as narrativas e o resultado

alcanccedilado na narrativa xenofonteana mediante estas diferenccedilas poreacutem em geral natildeo

elucidam a praacutetica intertextual de Xenofonte Aleacutem disso demonstraremos que a

ficcionalizaccedilatildeo na Ciropedia eacute construiacuteda a partir do texto de autoridade de Heroacutedoto

confundindo histoacuteria e ficccedilatildeo

A leitura das obras nos mostra que satildeo vaacuterios os momentos do ponto de vista

histoacuterico em que elas se diferenciam e que poderiam fazer parte desta anaacutelise Poreacutem

nos centraremos nas cenas em que a narrativa de Heroacutedoto ecoe na narrativa de

Xenofonte porque nestas cenas nos parece que Xenofonte natildeo se utilizou de outra

fonte na construccedilatildeo da Ciropedia mas ficcionalizou a narrativa de Heroacutedoto

58

Como observa Dioniacutesio de Halicarnaso em seu tratado Sobre a Imitaccedilatildeo (2005)

de que hoje conhecemos apenas alguns fragmentos a imitaccedilatildeo de um autor por outro

deve possuir elementos que resultem claros e perceptiacuteveis ao seu puacuteblico Genette

(1982) estabelece que a intertextualidade eacute uma relaccedilatildeo de copresenccedila entre dois ou

mais textos e das formas de intertextualidade estabelecidas pelo criacutetico francecircs a que

melhor se enquadra para nosso estudo eacute a alusatildeo ou seja ldquo[] um enunciado cuja

plena inteligecircncia supotildee a percepccedilatildeo de uma relaccedilatildeo entre ele e um outro []rdquo68

(GENETTE 1982 p8) Desse modo focalizaremos nossa anaacutelise nas seguintes

passagens por que nelas sentimos a presenccedila de Heroacutedoto a-) a origem e infacircncia de

Ciro b-) a tomada de Sardes (a cena de Creso) e c-) a morte de Ciro

322 Origem e infacircncia de Ciro

Analisaremos primeiramente as diferenccedilas com que Heroacutedoto e Xenofonte

trabalham o tema da origem e da infacircncia de Ciro Segundo Due (1989 p118) a

narrativa de Heroacutedoto apresenta vaacuterios elementos provenientes das lendas populares

Desse modo a biografia do fundador do Impeacuterio da Peacutersia estaacute repleta de pressaacutegios

sobrenaturais sonhos oacutedio e horror A descriccedilatildeo da origem e da infacircncia de Ciro69

(Histoacuterias 1107 1) se inicia a partir de um sonho de Astiacuteages rei da Meacutedia Heroacutedoto

natildeo nos descreve o conteuacutedo deste sonho poreacutem avisa que os inteacuterpretes deixaram o rei

atormentado com o seu significado Para que a previsatildeo natildeo se realizasse Astiacuteages casa

sua filha Mandane com Cambises um persa socialmente inferior No entanto apoacutes o

casamento um novo sonho atormenta o rei meda revelando que seu neto o destronaria

Quando a crianccedila nasce Astiacuteages para se precaver ordena a Haacuterpago

(Histoacuterias 1108 4) ndash um parente em quem depositava a maior confianccedila ndash que matasse

a crianccedila Haacuterpago aparentemente aceita poreacutem na realidade ele refuta a ordem do rei

ldquo[] em parte por sentimentos familiares em parte por caacutelculo poliacutetico []rdquo (DUE

1989 p119) Haacuterpago reflete dessa maneira

68 No original [] crsquoeacutest-agrave-dire drsquoun eacutenonceacute dont la pleine intelligence suppose la perception drsquoun rapport entre lui et un autre (GENETTE 1982 p8) 69 Como jaacute nos referimos a narrativa de Ciro estaacute subordinada agrave narrativa de Creso Assim a sucessatildeo de eventos natildeo eacute descrito por ordem cronoloacutegica A infacircncia e carreira militar de Ciro (Histoacuterias 1 96-297) satildeo narradas apoacutes a conquista de Sardes e sua vitoacuteria sobre Creso (Histoacuterias 1 46-91)

59

Natildeo vou cumprir as ordens de Astiacuteages respondeu Mesmo que ele estivesse transtornado e delirasse mais do que agora delira natildeo era eu que ia apoiar as suas decisotildees nem colaborar com semelhante crime Sobram-me razotildees para natildeo matar a crianccedila primeiro porque eacute do meu sangue depois porque Astiacuteages estaacute velho e natildeo tem descendente varatildeo (Histoacuterias 1109 2)70

Decide entatildeo levar a crianccedila a um pastor para que ele a expusesse em uma

montanha selvagem onde as feras a matariam No entanto ldquopor divina vontaderdquo

(Histoacuterias 1111 1) a mulher deste pastor chamada Cino acabara de dar a luz a uma

crianccedila morta Os pastores trocaram as crianccedilas e criaram Ciro como se fosse filho

deles O nascimento de Ciro tal qual nos narra Heroacutedoto eacute composto de significativos

elementos dos mitos heroicos Assim como Eacutedipo e Paacuteris por exemplo por causa de

um oraacuteculo devastador Ciro eacute extirpado do seio familiar Astiacuteages como Laio e

Priacuteamo crentes de que com sua accedilatildeo estariam fugindo da realizaccedilatildeo do oraacuteculo estatildeo

na verdade construindo a teia necessaacuteria para que a prediccedilatildeo seja realizada

Ao completar dez anos Ciro em uma brincadeira com outras crianccedilas revelou a

sua verdadeira identidade Na brincadeira o menino Ciro ldquoa quem chamavam filho do

boieiro foi escolhido reirdquo (Histoacuterias 11092) por isso ele distribuiu aos outros meninos

diversas tarefas e funccedilotildees Como uma das crianccedilas lhe desobedecera Ciro o prendeu e o

chicoteou Por causa disso foi levado ao rei A simples presenccedila dele fez com que

Astiacuteages comeccedilasse a desconfiar da verdadeira identidade do ldquofilho do boieirordquo

(Histoacuterias 11141)

Agrave medida que o rapaz falava apoderava-se de Astiacuteages a suspeita de quem ele era Os traccedilos fisionocircmicos de Ciro faziam-lhe lembrar os seus A sua resposta parecia-lhe mais proacutepria de um homem livre e a idade compatiacutevel com a data da exposiccedilatildeo (Histoacuterias 11161-2)

A suspeita de Astiacuteages leva-o a interrogar primeiramente o pastor em seguida

Haacuterpago e estes dois lhe confirmam que aquele menino eacute seu neto A desobediecircncia de

Haacuterpago enfurece o rei Astiacuteages que para castigaacute-lo serve-lhe de jantar o seu proacuteprio

filho que Haacuterpago come satisfeito O castigo tambeacutem eacute inspirado nos mitos por

exemplo de Atreu e Tiestes em que ao pai satildeo servidas as carnes do filho71 Quanto a

70 A traduccedilatildeo das Histoacuterias de Heroacutedoto utilizada neste trabalho eacute a de Joseacute Ribeira Ferreira e de Maria de Faacutetima Souza e Silva (1994) 71 Este castigo haveria de prover a consumaccedilatildeo do oraacuteculo pois Haacuterpago desejando vinganccedila instiga Ciro a rebelar-se contra o avocirc

60

Astiacuteages apoacutes nova consulta aos Magos decide entregar Ciro ao seu verdadeiro lar na

Peacutersia A partir desse momento haacute um salto temporal da narrativa e em sua proacutexima

participaccedilatildeo Ciro jaacute eacute adulto (11231-1303) Ciro eacute instigado por Haacuterpago que

desejava vingar-se de Astiacuteages a destituir este do trono e a dominar a Meacutedia Com seu

exeacutercito persa apesar da sua juventude Ciro derrota Astiacuteages e toma-o como

prisioneiro Poreacutem Ciro natildeo castiga o avocirc com crueldade mas apenas o manteacutem ao seu

lado ldquo[] ateacute a morte sem lhe fazer nenhum mal Esta eacute a histoacuteria do nascimento e

criaccedilatildeo de Ciro e da sua ascensatildeo ao poderrdquo (Histoacuterias 1130 3) Assim termina em

Heroacutedoto a primeira fase da vida de Ciro

A narrativa apresentada por Heroacutedoto conteacutem alguns elementos importantes na

comparaccedilatildeo com a Ciropedia o retrato de Astiacuteages eacute pintado como o de um deacutespota

um tirano destemperado que pela ambiccedilatildeo do poder eacute cruel com todos aqueles que estatildeo

subordinados ao seu poder poliacutetico independente de laccedilos de parentescos Esse retrato eacute

bem diferente do Astiacuteages apresentado por Xenofonte na Ciropedia cuja conduta

harmoniosa com seus parentes eacute revelada em todas as suas apariccedilotildees na narrativa Em

verdade noacutes encontramos em Xenofonte a construccedilatildeo de uma famiacutelia harmoniosa e

paciacutefica com quase nenhum traccedilo de conflito72 (DUE 1989 p120) Aleacutem disso natildeo haacute

na Ciropedia referecircncia a sonhos ou pressaacuterios que desencadeassem algum conflito

familiar Neste sentido podemos concluir que o autor da Ciropedia tomou o cuidado de

ao compor a sua obra eliminar de sua narrativa todos os vestiacutegios da narrativa de

Heroacutedoto que contrastariam com a imagem harmoniosa da famiacutelia real meda Deste

modo tanto a inferioridade social do pai de Ciro quanto seu afastamento da casa

paterna por ordem de Astiacuteages e ateacute a rebeliatildeo de Ciro contra seu avocirc satildeo manipulados

na narrativa de Xenofonte Ele tambeacutem omite todas as caracteriacutesticas da lenda e do mito

heroico ldquo[] porque seu objetivo eacute antes poliacutetico do que histoacuterico ou traacutegicordquo73

(TATUM 1989 p101)

O Ciro da Ciropedia eacute filho de Mandane com Cambises mas este natildeo eacute qualquer

persa eacute o rei da Peacutersia E a famiacutelia real descende da figura mitoloacutegica Perseu (Cirop

I21) Segundo Momigliano (1993) a preocupaccedilatildeo com a linhagem eacute uma caracteriacutestica

da aristocracia grega e estaacute presente nas narrativas gregas desde Homero Desse modo

Ciro eacute produto das aristocracias da Meacutedia e da Peacutersia A partir destas informaccedilotildees o

72 O uacutenico conflito familiar presente na Ciropedia se daacute pela participaccedilatildeo de Ciaxares tio de Ciro que invejava as capacidades intelectuais e militares do sobrinho 73 No original [] because his aim is political rather than historical or tragic (TATUM 1989 p101)

61

narrador natildeo nos informa nada a respeito de Ciro ateacute ele completar doze anos quando

sua matildee resolve fazer uma viagem agrave Meacutedia para visitar seu pai Astiacuteages o avocirc de Ciro

Eacute interessante que o narrador comeccedila a apresentaccedilatildeo de sua narrativa justamente

no momento em que Heroacutedoto faz um salto temporal em sua histoacuteria Heroacutedoto nos fala

do nascimento de Ciro e o encontramos novamente quando ele completa dez anos apoacutes

isso haacute um lapso temporal e o encontramos pela terceira vez jaacute um homem adulto e se

rebelando contra o avocirc A narrativa de Xenofonte entretanto comeccedila quando Ciro tem

doze anos ou seja Xenofonte se aproveita das arestas temporais deixadas pela narrativa

de Heroacutedoto para construir a sua proacutepria histoacuteria Podemos desse modo assumir que a

ficccedilatildeo se apodera do vaacutecuo deixado pelos dados histoacutericos Como afirma Freitas

[] a ficccedilatildeo se apodera agraves vezes da Histoacuteria com fins especificamente literaacuterios elementos romanescos se interpotildeem aos elementos histoacutericos a histoacuteria se confunde com a Histoacuteria eacute o que chamaremos aqui de invasatildeo da Histoacuteria pela ficccedilatildeo (FREITAS 1986 p43)

Todo o primeiro livro da Ciropedia eacute composto de cenas que se aproveitam

deste lapso temporal deixado por Heroacutedoto Nestas cenas da Ciropedia Ciro permanece

na Meacutedia ateacute a idade de dezesseis anos quando seu pai ordena que ele retorne agrave Peacutersia

para concluir sua educaccedilatildeo Durante este periacuteodo satildeo descritos banquetes diaacutelogos com

seu avocirc diaacutelogos com seus amigos experiecircncias de caccedila de Ciro sua primeira

participaccedilatildeo em uma campanha militar e ateacute a narrativa amorosa de um persa

apaixonado por Ciro O que percebemos eacute que satildeo narrativas da vida particular do heroacutei

da Ciropedia Desse modo como jaacute ressaltamos em conformidade com Momigliano

(1993) satildeo temas cujo acesso a dados satildeo mais complicados e portanto mais propiacutecios

a serem imaginados

Vamos analisar mais de perto a narrativa da experiecircncia de caccedila de Ciro na

Ciropedia O importante desta narrativa para nosso estudo comparativo eacute que nela haacute o

tema do reconhecimento das qualidades inatas da natureza φύσις (physis) de Ciro O

tema do reconhecimento tambeacutem aparece em Heroacutedoto e surge nas Histoacuterias por meio

de uma brincadeira Sobre o reconhecimento de Ciro em Heroacutedoto afirmam Ferreira e

Silva (2002 p40)

Se eacute romanesca dentro de uma velha tradiccedilatildeo a origem do futuro monarca persa abandonado e miraculosamente salvo o reconhecimento de Ciro dez anos depois daacute-se por um processo que se deseja racional Natildeo eacute de qualquer sinal ou objeto conservado dos primeiros anos de vida que depende mas inteiramente da aparecircncia

62

fiacutesica e das primeiras manifestaccedilotildees de determinaccedilatildeo e autoridade que eacute dotada esta jovem natureza real

Na Ciropedia (I 47-15) Ciro ao conseguir permissatildeo do avocirc para caccedilar fora

dos muros do jardim do palaacutecio parte com uma comitiva em sua primeira experiecircncia

de caccedila Os mais velhos que o acompanhavam iam lhe dando valiosos ensinamentos

mas bastava Ciro ver um cervo ldquo[] esquecendo-se de todas as coisas que ouvira

perseguia-o e nenhuma outra coisa via aleacutem do para onde o cervo fugia []rdquo74 Os

acompanhantes ralhavam pelo seu ousado e perigoso comportamento poreacutem Ciro ao

ouvir um grito ldquo[] salta sobre o cavalo como possuiacutedo pelo ecircxtase e quando viu agrave sua

frente um javali vindo ao encontro lanccedila-se diretamente e entesando a lanccedila

diretamente agrave testa e domina o javali75rdquo Ciro portanto mostra-se corajoso e habilidoso

na arte da caccedila ainda que imprudente76 sendo dominado pela sua paixatildeo desmedida

em seguida em Cirop I416-24 Ciro participa de sua primeira batalha Nela seu

comportamento na caccedila se repete confirmando o que o narrador jaacute dissera antes ldquoDe

modo que natildeo eacute faacutecil encontrar algo que acontecendo na guerra falte agrave caccedilardquo77 (Cirop

I210) Assim como desobedecera aos guardas na caccedila extasiado pela coragem

tambeacutem desobedece ao avocirc Astiacuteages primeiro indo ao campo de batalha em seguida

tomando a dianteira dos cavaleiros

Como um catildeo de boa raccedila mas inexperiente imprudentemente vai de encontro ao javali assim tambeacutem Ciro arremetia apenas tentando golpear quem ele alcanccedilasse natildeo se precavendo de nenhuma outra coisa78 (I 421)

Portanto Ciro em suas primeiras experiecircncias puacuteblicas de guerreiro ndash a de caccedila e

a de batalha ndash demonstra suas qualidades inatas para a guerra No entanto pela

juventude e inexperiecircncia lhe faltam ainda determinados ensinamentos principalmente

74 No Original πάντων ἐπιλαθόμενος ὧν ἤκουσεν ἐδίωκεν οὐδὲν ἄλλο ὁρῶν ἢ ὅπῃ ἔφευγε

(CiropI48) 75 No original [hellip] ἀνεπήδησεν ἐπὶ τὸν ἵππον ὥσπερ ἐνθουσιῶν καὶ ὡς εἶδεν ἐκ τοῦ ἀντίου

κάπρον προσφερόμενον ἀντίος ἐλαύνει καὶ διατεινάμενος εὐστόχως βάλλει εἰς τὸ

μέτωπον καὶ κατέσχε τὸν κάπρον (Cirop 148) 76 Sobre o valor educacional desta cena falaremos no capiacutetulo 4 deste trabalho 77 No original ὥστε οὐ ῥᾴδιον εὑρεῖν τί ἐν τῇ θήρᾳ ἄπεστι τῶν ἐν πολέμῳ παρόντων

(Cirop1210) 78 No original ὥσπερ δὲ κύων γενναῖος ἄπειρος ἀπρονοήτως φέρεται πρὸς κάπρον οὕτω καὶ

ὁ Κῦρος ἐφέρετο μόνον ὁρῶν τὸ παίειν τὸν ἁλισκόμενον ἄλλο δ᾽ οὐδὲν προνοῶν

(Cirop1421)

63

de autocontrole diante de suas paixotildees O Ciro de Xenofonte natildeo eacute um homem formado

em corpo de uma crianccedila o Ciro de Heroacutedoto por sua vez jaacute eacute na infacircncia o rei capaz

de tomar as mesmas medidas que no futuro de fato tomaraacute O castigo que quando

crianccedila impotildee ao colega revela o mesmo temperamento despoacutetico do avocirc o mesmo

despotismo que ele revelaraacute quando adulto79 A personagem de Xenofonte neste

sentido eacute mais complexa pois vai moldando seu modo de agir no mundo aprendendo

com as experiecircncias por que passa A infacircncia de Ciro em Xenofonte eacute uma narrativa

com traccedilos romanescos e didaacuteticos mas em nada ingecircnua que propiciaraacute a formaccedilatildeo do

Ciro adulto Quanto ao tema do reconhecimento da mesma forma que em Heroacutedoto

durante uma brincadeira Ciro eacute reconhecido como rei em Xenofonte durante uma caccedila

Ciro eacute reconhecido como heroacutei

Concluiacutemos reafirmando que Xenofonte molda a narrativa da infacircncia de Ciro a

partir das brechas deixadas pela narrativa de Heroacutedoto Segundo Freitas (1989 p43)

este tipo de procedimento dos narradores de ficccedilatildeo eacute chamado de ldquoinfraccedilatildeo do material

histoacutericordquo Aleacutem de moldar sua narrativa nas brechas da narrativa de Heroacutedoto

Xenofonte tambeacutem apaga dela o que seria incoerente com o tom idealizante de sua

narrativa Desse modo a manipulaccedilatildeo do material histoacuterico eacute organizada em virtude da

lei da necessidade e da verossimilhanccedila na representaccedilatildeo da evoluccedilatildeo do caraacuteter para

tornaacute-lo coerente com a idealizaccedilatildeo proposta por Xenofonte

Figura 1 Ciro na corte do rei Astiacuteages Nesta cena Ciro estaacute servindo vinho ao rei conforme a Ciropedia I3

Fonte Baldwin J Fifty famous stories retold by James Baldwin (2008)

79 A atitude que melhor exemplifica o despotismo de Ciro na narrativa de Heroacutedoto eacute o castigo que ele impotildee ao seu inimigo Creso a quem Ciro queria queimar vivo

64

323 A cena de Creso o encontro dos monarcas

Analisaremos nesta seccedilatildeo a Cena de Creso que corresponde ao primeiro

encontro entre os monarcas Ciro e Creso rei da Liacutedia Tanto na narrativa de Heroacutedoto

quanto na de Xenofonte o encontro acontece apoacutes a tomada da cidade de Sardes a

capital da Liacutedia descrita ldquo[] como a cidade mais opulenta da Aacutesia apoacutes a Babilocircniardquo

(Cirop 1965 p209) Deter-nos-emos nesta narrativa porque nela as noccedilotildees de Genette

(1982 p8) de intertextualidade e alusatildeo satildeo aplicadas com mais clareza

Primeiramente devemos lembrar que enquanto em Heroacutedoto eacute Ciro quem

aparece na narrativa dedicada a Creso (Histoacuterias 1731) em Xenofonte eacute Creso quem

aparece na narrativa de Ciro (Cirop VII29-14) Esta observaccedilatildeo ainda que agrave primeira

vista pareccedila demasiadamente simples ressalta o que chamamos de inversatildeo do ἔθος

(ethos) Isso significa que a mudanccedila de focalizaccedilatildeo80 de uma obra para a outra

influenciaraacute na caracterizaccedilatildeo eacutetica e psicoloacutegica das personagens e o tema da sabedoria

das personagens seraacute o eixo central dessa inversatildeo da focalizaccedilatildeo e estaraacute implicado em

toda Cena de Creso

3231 Preparativos

Antes no entanto de analisarmos o encontro dos monarcas eacute preciso recapitular

em que circunstacircncias o encontro ocorre Creso na Ciropedia eacute o maior aliado do rei

Assiacuterio em sua campanha contra a coalizatildeo medo-persa De fato Creso preenche a

funccedilatildeo de verdadeiro inimigo de Ciro na obra jaacute que nenhum outro dos seus inimigos

(nem o rei Assiacuterio nem seu filho nem o rei Armecircnio) concretiza pela figurativizaccedilatildeo81

accedilotildees no enredo que preencham a funccedilatildeo de oponente real de Ciro

Nas Histoacuterias ao contraacuterio a luta entre liacutedios e persas decorre da ambiccedilatildeo de

Creso Segundo Heroacutedoto dois anos apoacutes a morte de seu filho Aacutetis (Histoacuterias1351-

453) Creso fica alarmado ao ouvir falar da derrota de Astiacuteages por seu neto Ciro e

80 Cf Reis (2000 p159) ldquoA focalizaccedilatildeo pode ser definida como a representaccedilatildeo da informaccedilatildeo diegeacutetica que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciecircncia quer seja o de uma personagem da histoacuteria quer o do narrador heterodiegeacuteticordquo 81 Entendemos a figurativizaccedilatildeo como um componente semacircntico que por meio da ilusatildeo referencial evoca o mundo real Por meio dela as funccedilotildees da narrativa satildeo preenchidas ou concretizadas com accedilotildees que se encadeiam na constituiccedilatildeo da histoacuteria Cf Reis (2000 p158)

65

comeccedila a pensar em diminuir o poder dos persas antes que este aumente em demasia

Aleacutem disso Creso deseja vingar-se de Ciro porque Astiacuteages era seu cunhado casado

com sua irmatilde Tomado por este desejo Creso pergunta ao oraacuteculo de Delfos se deveria

ou natildeo atacar os persas O oraacuteculo responde-lhe que se Creso atacasse os persas um

grande impeacuterio seria destruiacutedo Isso motiva Creso a iniciar a batalha que culmina com a

invasatildeo pelos persas da capital da Liacutedia (Histoacuterias153) As diferenccedilas entre as duas

narrativas ateacute aqui satildeo de ordem da infraccedilatildeo dos dados histoacutericos A infraccedilatildeo segundo

Freitas (1986 p48) desloca deforma ou simplesmente negligencia os dados histoacutericos

na ficccedilatildeo Pode-se questionar se as oposiccedilotildees deste entrecho da narrativa natildeo poderiam

provir de outras fontes a que Xenofonte teria acesso como a Peacutersica de Cteacutesias ou

mesmo de alguma gesta persa No entanto a escassez de dados a respeito destas outras

fontes natildeo nos permite responder a esta questatildeo com absoluta seguranccedila

Podemos entatildeo conjeturar a hipoacutetese de que estas informaccedilotildees foram

manipuladas em funccedilatildeo tanto da coerecircncia da sequecircncia das accedilotildees da narrativa quanto

da manutenccedilatildeo da verossimilhanccedila entre as accedilotildees e o caraacuteter da personagem pois a

noccedilatildeo de justiccedila na Ciropedia eacute expressa de acordo com a foacutermula de que devemos

fazer bem aos amigos e mal aos inimigos Neste sentido o heroacutei da narrativa nunca

inicia uma guerra mas apenas se defende daqueles que o atacam Acima referimos que

nas Histoacuterias Creso inicia a guerra contra Ciro para se vingar deste porque Astiacuteages era

seu cunhado Neste caso Ciro havia cometido um ato injusto ao rebelar-se contra

Astiacuteages uma vez que este era seu avocirc Jaacute na Ciropedia se natildeo houvesse a agressatildeo de

Creso (membro da coalisatildeo Assiacuteria) a Ciro natildeo haveria a guerra contra a Liacutedia

Portanto a manipulaccedilatildeo de um dado histoacuterico por Xenofonte impeliu-o a manipular

toda uma sequecircncia da narrativa Todavia estas manipulaccedilotildees foram todas feitas com o

intuito de caracterizar a personagem com verossimilhanccedila em vista de idealizar o heroacutei

da narrativa e expressar o referido ideal de justiccedila Se Ciro iniciasse uma guerra contra

Creso a coerecircncia entre caraacuteter e accedilotildees natildeo seria obtida uma vez que romperia com a

ideia de justiccedila expressa na obra e a obra fracassaria como literatura pedagoacutegica O

caraacuteter da personagem condiz com suas accedilotildees e o veriacutedico ndash os dados histoacutericos ndash eacute

substituiacutedo pelo verossiacutemil (FREITAS 1986 p49)

Quanto agrave narrativa da tomada da cidade de Sardes Xenofonte apresenta uma

revisatildeo do texto de Heroacutedoto captando da narrativa de Heroacutedoto os elementos gerais e

suprimindo dela alguns detalhes Nos dois autores a tomada se daacute apoacutes uma primeira

66

vitoacuteria do exeacutercito persa na batalha de Pteacuteria82 que forccedila a fuga dos liacutedios agrave cidade de

Sardes Agrave testa da fuga estaacute Creso que se refugia em seu palaacutecio83

Due (1989 p123) mostra que em ambas as narrativas a tomada da cidade se daacute

escalando as muralhas da cidadela no entanto em Histoacuterias a invasatildeo ocorre por um

erro de Creso que natildeo fortificara uma parte da cidadela ldquo[] jaacute que natildeo era de temer que

alguma vez pudesse ser tomada por aquele lado []rdquo (Histoacuterias 184)84 na narrativa

xenofonteana a escalada eacute fruto de um estratagema de Ciro demonstrando com isso a

superioridade militar do liacuteder persa sobre seu inimigo Creso Pela primeira vez o eixo

da inversatildeo do ἔθος eacute revelado a sabedoria

Em seguida agrave invasatildeo Heroacutedoto conta que enquanto os persas saqueavam a rica

cidade um persa acerca-se de Creso no palaacutecio e natildeo o reconhecendo estava pronto

para mataacute-lo quando o filho de Creso que era mudo assustado deu um miraculoso

grito ldquoNatildeo mates Cresordquo (Histoacuterias 1854) O persa entatildeo aprisionou Creso Heroacutedoto

afirma ainda que Creso governou a Liacutedia por catorze anos e que suportou o saque da

cidade por catorze dias e com a sua queda pocircs-se fim a um grande Impeacuterio ndash o seu ndash

(Histoacuterias1861-2) cumprindo desse modo o vaticiacutenio do oraacuteculo de Delfos

Jaacute na Ciropedia apoacutes a tomada da cidade Creso trancado no palaacutecio convoca

Ciro para para primeira vez se encontrarem face a face No entanto Ciro envia um

grupo de guardas para vigiaacute-lo enquanto manteacutem a ordem na cidade impedindo que

seus soldados saqueiem Sardes Apoacutes controlar seus soldados85 Ciro parte ao encontro

de Creso

Concordamos com Tatum (1989 p152-153) de que haacute no gesto de Creso em

convocar Ciro um empreendimento calculado e ardiloso Mesmo derrotado Creso toma

uma atitude imperiosa convocando seu inimigo para ir ao seu encontro Poreacutem na

situaccedilatildeo de vencedor em que se encontra seria inverossiacutemil se Ciro obedecesse

prontamente ao seu inimigo derrotado por isso Ciro responde a Creso enviando

82 Histoacuterias 176 Cirop 71 83 Essa fuga de Creso para Heroacutedoto ocorre por um erro de julgamento do rei que pensou que jamais seria atacado em sua capital por Ciro jaacute Xenofonte mostra que na fuga de Creso estaacute representada a rendiccedilatildeo do monarca da Liacutedia rendiccedilatildeo que proporcionaraacute o encontro entre os dois 84 O feito em verdade eacute de Meles um mardo pois eacute ele que descobre este furo na proteccedilatildeo da cidadela Segundo Maria de Faacutetima (1994 nota 138 p114) a inexpugnabilidade da cidade de Sardes eacute lugar comum nas fontes 85 O tema do saque da cidade da Liacutedia estaacute presente em ambas as narrativas No entanto parece-nos que o saque em Heroacutedoto eacute um problema econocircmico Creso aconselha a Ciro de que a cidade agora eacute de Ciro e os soldados estatildeo saqueando as riquezas de Ciro Na Ciropedia o saque eacute um problema moral pois com esta conduta os piores soldados teratildeo iguais ou mais recompensas do que os melhores soldados contrariando a noccedilatildeo de justiccedila expressa na obra

67

soldados para vigiaacute-lo Aleacutem disso Ciro demora-se em assuntos aparentemente

menores como o saque agrave cidade Ciro coloca Creso em segundo plano abaixo de

qualquer outro assunto

Se Ciro tivesse ido ao comando de Creso ele o teria encontrado em um terreno familiar provavelmente em um cenaacuterio magniacutefico que deveria enfatizar de modo nada sutil a riqueza e a nobreza de seu anfitriatildeo Ciro deveria ser o convocador natildeo o convocado De fato ele demonstra seu controle sobre Creso colocando-o sob a guarda de soldados ordinaacuterios e deixa claro que haacute assuntos mais importantes para cuidar do que Creso da Liacutedia O primeiro round foi dado em favor de Ciro86 (TATUM 1989 p153 traduccedilatildeo nossa)

A anaacutelise de Tatum revela a sutileza com que Xenofonte constroacutei este embate de

egos entre os dois monarcas demonstrando a qualidade esteacutetica da cena Aleacutem disso

em nossa opiniatildeo mais uma vez Ciro mostra-se mesmo nos menores detalhes superior

moral e intelectualmente a Creso

3232 Creso prisioneiro de Ciro

O primeiro encontro de Creso e Ciro se daacute portanto nestas circunstacircncias A

interpretaccedilatildeo de Lefegravevre (2010 p403) nos parece acertada quando este afirma que o

diaacutelogo travado entre Ciro e Creso na Ciropedia condensa temas importantes de dois

diaacutelogos essenciais da narrativa de Heroacutedoto sobre Creso o diaacutelogo de Ciro e Creso e o

diaacutelogo de Creso e Soacutelon87 (Histoacuterias129-33) Eacute pela anaacutelise dos temas destes

diaacutelogos que podemos sentir a copresenccedila do texto de Heroacutedoto na narrativa de

Xenofonte Procuraremos demonstrar nesta seccedilatildeo de que forma isso ocorre

Em Histoacuterias apoacutes capturar Creso Ciro ergue uma pira sobre a qual coloca seu

inimigo com mais sete jovens liacutedios ldquo[] ou por ter em mente sacrificaacute-los como

primiacutecias a algum deus ou por desejar cumprir um voto ou ainda por ter ouvido dizer

86 No original If Cyrus had come at Croesus bidding he would have encountered him on home ground presumably in a magnificent setting which would have emphasized in none too subtle ways the wealth and nobility of his host Cyrus would have been the one summoned rather than the summoner Instead he demonstrates his control over Croesus by putting him under guard with ordinary soldiers and he makes it clear that there are more important matters to attend to than Croesus of Lydia The first round has gone in Cyrusrsquos favor (TATUM 1989 p153) 87 Lefegravevre (2010) comenta que a improbabilidade de que o encontro entre Creso e Soacutelon tenha ocorrido realmente natildeo impediu seu impacto na literatura posterior sendo recontado por diversos autores Diodoro Plutarco Dioacutegenes Laeacutercio e Luciano por exemplo Ferreira e Silva (2002 p6) confirmam o anacronismo deste encontro pois na altura em que Heroacutedoto diz que o encontro ocorreu Soacutelon jaacute devia ter morrido

68

que Creso era piedoso []rdquo (Histoacuterias1862) Creso diante da morte iminente lembra-

se das palavras que Soacutelon lhe dissera a respeito da felicidade εὐδαιμονία

(eudaimonia) ldquoningueacutem eacute feliz enquanto viverrdquo (Histoacuterias 1863) Com tais palavras

em mente Creso pronuncia o nome de Soacutelon por trecircs vezes Ciro curioso com aquela

lamentaccedilatildeo por meio de inteacuterpretes perguntou a Creso a quem ele invocava A partir

deste mote Creso narra a Ciro o encontro que tivera com o filoacutesofo ateniense

Segundo Heroacutedoto Sardes estava no auge da riqueza e por isso afluiacuteam para a

cidade muitos saacutebios (Histoacuterias 1291) Soacutelon que desejava conhecer as terras dos

povos baacuterbaros foi hospedado por Creso que apoacutes demonstrar-lhe as suas riquezas lhe

indagou ldquo[] se jaacute viste algueacutem que fosse mais feliz88 dos homensrdquo Creso esperava

que Soacutelon respondesse que o proacuteprio Creso era o mais feliz dos homens mas Soacutelon

respondeu que dos homens o mais feliz era Telo de Atenas cuja vida fora proacutespera e

tivera dois filhos belos e bons καλοκαγάθοι (kalokagathoi) Contrastam os filhos de

Telo belos e bons com os dois filhos do proacuteprio Creso jaacute que um Aacutetis estava

destinado a morrer ferido por uma ponta de ferro enquanto o outro nascera surdo e

mudo Aleacutem disso Telo morrera de forma gloriosa auxiliando os atenienses em guerra

contra os eleusinos provocando a fuga destes Por causa da sua bela morte os

atenienses sepultaram-no com ldquoexeacutequias e tributaram-lhe grandes honrasrdquo (Histoacuterias

1305) Creso incitado pela fala de Soacutelon perguntou-lhe entatildeo quem seria o segundo

homem mais feliz e Soacutelon desta vez respondeu que eram Cleacuteobis e Biacuteton dois jovens da

raccedila argiva dotados de grande forccedila fiacutesica Quando os argivos celebravam uma festa em

honra a Hera a matildee dos jovens que era esperada no templo natildeo podia dirigir-se ateacute laacute

por falta de bois que puxassem o carro Eles entatildeo atrelaram o carro agraves costas e

carregaram a matildee por ldquoquarenta e cinco estaacutediosrdquo e ldquo[] sob os olhares de toda a

assembleia sobreveio-lhes o melhor termo de vida e neles mostrou a divindade ser

melhor para o homem morrer do que viver []rdquo (Histoacuterias1313) A matildee jubilosa pelo

feito dos filhos pediu a Hera que lhes desse o que de melhor um homem pudesse obter

A deusa entatildeo lhes deu o sono eterno e ldquo[] eles foram consagrados em Delfos como

homens excelentes que eram []rdquo (Histoacuterias 1315)

Creso por fim perguntou a Soacutelon se ele achava que a sua felicidade nada valia

e Soacutelon em um longo discurso responde-lhe que o homem antes da morte natildeo pode ser

considerado feliz ὄλβος (olbos) mas deve-se dizer afortunado εὐτυχής (eutuches)

88 O termo usado nesta passagem eacute ὀλβιώτατος (olbioacutetatos)

69

pois a vida eacute repleta de vicissitudes sob o impeacuterio da inveja dos deuses Soacutelon diferencia

do bem-estar passageiro o bem-estar definitivo que eacute eternizado por meio da memoacuteria

dos homens (FERREIRA SILVA 2002 p8) Eacute necessaacuterio que a vida termine para que

se possa julgar se algueacutem eacute feliz ou natildeo e tornar-se digno de memoacuteria

As advertecircncias de Soacutelon natildeo satildeo suficientes para que Creso se afaste do

caminho da desmedida ὕβρις (hybris) Creso ainda acreditando que era o homem mais

feliz de todos eacute atingido por um terriacutevel castigo enviado pela divindade Primeiramente

morre seu filho Aacutetis cumprindo-se dessa forma o oraacuteculo em seguida apoacutes dois anos

de luto Creso entra em guerra contra os Persas sendo derrotado Jaacute nos referimos

anteriormente sobre o oraacuteculo de Delfos que Creso interpreta de forma errocircnea

Acreditamos que a maacute interpretaccedilatildeo que Creso faz do oraacuteculo resulte da auto-avaliaccedilatildeo

que ele faz da sua proacutepria vida Em verdade Creso acreditava-se o homem mais feliz

portanto para ele soacute poderia ser o impeacuterio persa que deveria ruir jamais o seu

Apoacutes Creso narrar a Ciro o encontro que tivera com o filoacutesofo Ciro arrepende-

se pois ldquo[] pensou que ele tambeacutem um homem estava a entregar vivo agraves chamas

outro homem cuja prosperidade natildeo fora inferior agrave sua []rdquo (Histoacuterias 1866) Ciro

conteacutem sua ὕβρις temendo uma futura vinganccedila divina

Contudo embora os soldados tentassem apagar o fogo da pira natildeo conseguiam

Creso suplica a Apolo e recebe do deus a ajuda em forma de chuva que apaga todo o

fogo Ciro reconhece deste modo que Creso era querido pelos deuses e lhe pergunta

por que ele decidira combater contra os persas Creso culpa o deus dos helenos ldquo[]

que me induziu a entrar em guerra []rdquo (Histoacuterias1874) Vendo em Creso um homem

saacutebio Ciro faz dele seu conselheiro a quem pede ajuda em importantes decisotildees como

por exemplo a respeito do saque da cidade de Sardes Creso no final da narrativa envia

alguns liacutedios ao oraacuteculo de Delfos para questionar por que os deuses o enganaram

quanto a entrar em guerra contra os persas A resposta da piacutetia lembrava a Creso

primeiro que ele estava marcado pelos crimes de seus antepassados e que os deuses

resguardaram-no por anos do castigo que as Moiras89 preparavam a ele segundo

lembrava-lhe que o culpado de seu infortuacutenio era ele mesmo uma vez que natildeo

compreendera o que lhe fora dito pelo oraacuteculo (Histoacuterias 1911-6) Esta eacute

89 Na mitologia grega as Moiras (Μοῖραι) eram as trecircs irmatildes que determinavam o destino tanto dos homens quanto dos deuses Pertenciam agrave primeira geraccedilatildeo divina Cf Grimal (1993)

70

resumidamente a narrativa de Creso nos detalhes que mais interessam para a nossa

anaacutelise

A questatildeo do oraacuteculo de Delfos e suas ambiguidades permeiam toda a obra de

Heroacutedoto Na narrativa de Xenofonte no entanto como bem observa Due (1989

p125) o papel consagrado aos oraacuteculos eacute diminuiacutedo Deste modo o destino dos

homens eacute fruto mais de suas escolhas e accedilotildees do que do pesado jugo das Moiras dando

assim mais relevo ao papel do Homem na formaccedilatildeo da sua proacutepria histoacuteria

Na Ciropedia toda a cena da pira eacute omitida Natildeo haacute nenhuma referecircncia a ela e

pelo contraacuterio Ciro natildeo precisa das palavras de Creso para ser clemente pois aprendera

de seu pai que a obediecircncia conquistada era muito melhor do que a imposta (Cirop

16) Tatum (1989 p146) observa com felicidade que todas as relaccedilotildees humanas na

Ciropedia de uma forma ou de outra constituem um complemento da educaccedilatildeo de

Ciro apresentada no Livro I Assim a vida de Creso em nenhum momento corre perigo

nas matildeos de Ciro A confrontaccedilatildeo desta cena com a experiecircncia de Ciro com outro

inimigo na Ciropedia o rei Armecircnio parece-nos elucidar o procedimento do heroacutei da

narrativa Com este rei (Cf Livro III) Ciro natildeo se mostrara tatildeo benevolente e julgando-o

culpado de traiccedilatildeo estaacute pronto para condenaacute-lo agrave morte Entretanto o filho do rei um

antigo amigo de Ciro chamado Tigranes discursa em defesa do pai discurso este que

Ciro resume nestes termos

Entatildeo parece a ti disse Ciro que eacute suficiente tal derrota para corrigir os homens tendo reconhecido que os outros satildeo melhores do que eles mesmos 90 (Cirop III120 traduccedilatildeo nossa)

A partir disso Tigranes convence Ciro de que transformar os inimigos em

aliados eacute muito melhor do que mantecirc-los escravizados pois os derrotados sempre

esperaratildeo uma oportunidade para se vingar Ao contraacuterio os que forem perdoados teratildeo

uma vida completamente dedicada agravequele que os salvou Em nossa opiniatildeo haacute na

postura benevolente de Ciro para com seus inimigos um claro contraste com o Ciro em

Heroacutedoto mas principalmente com o Astiacuteages das Histoacuterias Retomemos por um

momento a narrativa da infacircncia de Ciro Astiacuteages castiga Haacuterpago pela desobediecircncia

e este desejando vingar-se instiga Ciro a destronar o avocirc O castigo do inimigo

portanto eacute um tema importante nas duas narrativas A narrativa apresentada em

Heroacutedoto de certo modo figurativiza a reflexatildeo de Tigranes Acreditamos portanto que 90 No original ἔπειτα δοκεῖ σοι ἔφη ὁ Κῦρος καί ἡ τοιαύτη ἧττα σωφρονίζειν ἱκανὴ εἷναι

ἀνθρώπους τὸ γνῶναι ἑαυτῶν αλλους βελτίονας ὄντας

71

a alusatildeo agrave narrativa de Heroacutedoto se estabeleccedila nesta passagem pois eacute significativo como

o tema do castigo complementa-se da forma como eacute discutido e figurativizado em

ambas as obras

Quando Ciro na Ciropedia encontra-se com Creso ele jaacute assimilara esses

ensinamentos e natildeo necessitava do tema da pira para lembraacute-lo de que ele eacute soacute um ser

humano Ao contraacuterio quando eles se encontram pela primeira vez Creso ο sauacuteda desta

forma ldquoSauacutedo-te senhor [δεσπότης] pois a Fortuna [τυχή] a partir de hoje concede

a ti estar nesta posiccedilatildeo e a mim de saudar-te por elardquo91 (Cirop 72 9 traduccedilatildeo nossa)

O uso da palavra δεσπότης (despoteacutes) por Creso natildeo eacute meramente casual pois

como observa Lefegravevre (2010 p404) eacute com esta mesma palavra que Creso se dirige a

Ciro nas Histoacuterias (190 2) Aleacutem disso eacute tambeacutem o modo como os suacuteditos se dirigem

ao rei Assiacuterio na Ciropedia Doravante acreditamos que Creso novamente tenta tomar o

controle da situaccedilatildeo como tentara quando convocara Ciro a ir ao seu encontro Creso

quando sauacuteda Ciro como senhor estaacute implicitamente apelando para a vaidade de Ciro

convidando-o a assumir o papel de soberano enquanto ele Creso estaria

implicitamente no papel de seu escravo (δοῦλος doulos) (TATUM 1989 p153)

A artimanha de Creso ganha maior relevo quando refletimos tambeacutem sobre o

termo τύχη (tyche) (Cirop 72 10) A τύχη eacute destino no sentido de acaso fortuna

Desse modo Creso estaacute afirmando que foi a fortuna quem o colocou na situaccedilatildeo de

submissatildeo a Ciro A frase retoma a ideia proposta na narrativa herodoteana jaacute que a

τύχη para Heroacutedoto ldquo[] tem um papel decisivo no agir de cada pessoa []rdquo

(FERREIRA SILVA 2008 p8) No entanto se eacute ao acaso que se deve a derrota de

Creso a vitoacuteria de Ciro torna-se assunto de mera sorte resultado dos desejos divinos e

natildeo da capacidade de Ciro A resposta de Ciro entretanto neutraliza tanto o apelo agrave sua

vaidade quanto a implicaccedilatildeo de que foi o acaso a causadora de sua vitoacuteria ldquoEu tambeacutem

te sauacutedo Creso visto que ambos somos seres humanos []rdquo92 (Cirop 72 10 traduccedilatildeo

nossa)

Esta fala de Ciro tambeacutem eacute uma alusatildeo agrave narrativa de Heroacutedoto Ciro apoacutes a

cena da Pira em Heroacutedoto chega a esta conclusatildeo e eacute por esta conclusatildeo que decide

perdoar Creso Ambos satildeo seres humanos passiacuteveis portanto da infelicidade se natildeo

91 No original Χαῖρε ὦ δέςποτα ἔφη τοῦτο γὰρ ἡ τύχη καὶ ἔχειν τὸ ἀπὸ τοῦδε δίδωσι σοὶ καὶ

ἐμοὶ προσαγορεύειν 92 No original Καὶ σύ γε ἔφη ὦ Κροῖσε ἐπείπερ ἄνθρωποί γε ἔσμεν ἀμφότεροι

72

respeitarem os homens e os deuses Na Ciropedia natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Soacutelon

entatildeo eacute Ciro quem executa o papel de Soacutelon como detentor da sabedoria Ciro

astutamente responde neutralizando tanto o apelo para a sua vaidade quanto a ideia de

que a sorte foi responsaacutevel pela sua vitoacuteria ao mesmo tempo que se estabelece em niacutevel

de superioridade intelectual a Creso Demonstraremos no proacuteximo capiacutetulo deste

trabalho o importante papel da educaccedilatildeo na tessitura da Ciropedia Poreacutem podemos

por ora dizer que se houvesse a aceitaccedilatildeo de que foi a τύχη quem decidiu a vitoacuteria no

embate o papel da educaccedilatildeo e da formaccedilatildeo se tornaria irrelevante no conteuacutedo da obra

A diferenccedila entre Ciro e Creso natildeo seria mais a especiacutefica paideia de Ciro poreacutem um

capricho dos deuses e da fortuna Por esta razatildeo acreditamos que interpretar a fala de

Ciro como a neutralizaccedilatildeo da τύχη eacute fundamental pois o discurso de Ciro restitui o

valor do homem e de sua paideia na construccedilatildeo do seu futuro

Na sequecircncia da cena apoacutes esta ardilosa saudaccedilatildeo Creso narra sua vida a Ciro

Nesta narrativa de Creso a Ciro haacute vaacuterias alusotildees agrave narrativa construiacuteda por Heroacutedoto

Podemos dizer que de certa forma a narraccedilatildeo de Creso sumariza com breves

referecircncias toda a narrativa de Heroacutedoto retomando por exemplo os temas dos dois

filhos de Creso ou dos vaacuterios questionamentos feitos ao oraacuteculo de Delfos (Cirop 72

19) Lefegravevre (2010 p406) argumenta que as alusotildees contidas neste trecho soacute podem ser

compreendias se o leitor tiver o conhecimento da obra de Heroacutedoto Desse modo

quando Creso narra que um de seus filhos eacute mudo e o outro morreu na flor da vida eacute

evidente que ele se refere a Aacutetis assassinado por Adrasto e ao filho mudo que em

Heroacutedoto recupera a voz para salvar o pai Em Xenofonte no entanto o filho mudo

permanece neste estado

O uacuteltimo tema encontrado nesta cena da Ciropedia tambeacutem encontrado em

Heroacutedoto diz respeito agrave discussatildeo sobre a felicidade Quando resumimos a narrativa de

Heroacutedoto procuramos sublinhar a importacircncia deste tema para a construccedilatildeo da narrativa

sobre Creso Natildeo nos parece portanto de modo algum casual a presenccedila deste tema na

Cena de Creso da Ciropedia onde jaacute encontramos vaacuterias alusotildees agrave narrativa

herodoteana

O tema da felicidade surge na Ciropedia quando Creso assume a culpa por se

encontrar submisso a Ciro Para Creso seu erro comeccedilou ao procurar testar os oraacuteculos

questionando a veracidade de suas profecias Aleacutem disso tambeacutem assume que natildeo

73

soube seguir o preceito do oraacuteculo de Delfos93 que lhe indicava que o melhor caminho

para se desfrutar da felicidade eacute conhecer-se a si mesmo Para Creso conhecer-se a si

mesmo era uma tarefa faacutecil pois ele se presumia ldquotalhado para a grandezardquo (Cirop 72

24) Por causa dessa avaliaccedilatildeo diz Creso

Quando todos os reis em assembleacuteia me elegeram para ser o chefe na guerra eu aceitei o comando pois me achava capaz de ser grande enganando a mim mesmo com efeito porque me julgava capaz de fazer guerra contra ti que primeiramente eacute descendente dos deuses em seguida nascido atraveacutes de reis e por fim exercitado na virtude desde a infacircncia94 (Cirop 72 24 traduccedilatildeo nossa)

Nesta fala de Creso eacute retomado o proacuteprio discurso do narrador no proecircmio da

obra onde ele estabelece que sua pesquisa sobre Ciro tematizaraacute a γένεαν

descendecircncia a φύσιν a natureza e a παιδεία a educaccedilatildeo Isso significa que o

projeto a que o narrador se dedica atinge seu apogeu com o reconhecimento de Creso

Creso reconhece as qualidades de Ciro e que seu erro foi julgar-se no mesmo niacutevel do

rei persa No entanto tendo passado da felicidade agrave infelicidade no periacuteodo de um dia

como uma personagem traacutegica Creso pode afirmar que hoje ele reconhece a si mesmo

ou seja reconhece sua inferioridade em relaccedilatildeo a Ciro O tema da felicidade portanto

estaacute intimamente ligado ao tema da sabedoria eacute feliz aquele que conhece a si mesmo

poreacutem conhecer a si mesmo eacute a mais difiacutecil das tarefas

Por fim analisaremos o uacuteltimo segmento da narrativa concernente a Creso

Nesta passagem ainda seraacute desenvolvido o tema da felicidade Apoacutes decidir tornar

Creso seu conselheiro Ciro devolve a Creso toda a sua famiacutelia e lhe restitui a vida

luxuosa de antes No entanto retira-lhe os direitos poliacutetico e militares Creso agradece a

Ciro o tipo de vida que este estaacute lhe proporcionando pois passaraacute a viver do modo que

julga ser o mais feliz A explicaccedilatildeo de Creso eacute que a vida que a partir de agora ele

passaraacute a ter seraacute equivalente ao tipo de vida que sua esposa vivia ldquo[] pois ela de um

lado partilhava igualmente comigo de todos os bens luxos prazeres e de outro lado

natildeo dizia respeito a ela as preocupaccedilotildees de como ter estas coisas nem de guerra e de 93 Segundo Creso o ensinamento do oraacuteculo foi ldquoconheccedilendo-te a ti mesmo Creso e atravesseraacutes feliz a vidardquo (Cirop VII220 traduccedilatildeo nossa) No original Σαυτόν γιγνώσκων εὐδαίμων Κροίσε

περάσεις (Cirop VII220) 94 No original ὡς εἵλοντό με πάντες οἱ κύκλῳ βασιλεῖς προστάτην τοῦ πολέμου ὑπεδεξάμην

τὴν στρατηγίαν ὡς ἱκανὸς ὢν μέγιστος γενέσθαι ἀγνοῶν ἄρα ἐμαυτόν ὅτι σοὶ ἀντιπολε

μεῖν ἱκανὸς ᾤμην εἶναι πρῶτον μὲν ἐκ θεῶν γεγονότι ἔπειτα δὲ διὰ βασιλέων πεφυκότι

ἔπειτα δ ἐκ παιδὸς ἀρετὴν ἀςκοῦντι (Cirop 72 24)

74

batalhardquo 95 (Cirop VII228 traduccedilatildeo nossa) Estaacute impliacutecita nesta cena mais uma alusatildeo

agrave narrativa de Heroacutedoto Nas Histoacuterias Creso aconselha a Ciro que perdoe aos liacutedios

revoltosos

Mas perdoa aos liacutedios e para eles natildeo se sublevarem nem te darem cuidado impotildee-lhes restriccedilotildees proiacutebe-os de usarem armas de guerra obriga-os a vestir tuacutenicas por baixo dos mantos e a calccedilar coturnos e ordena-lhes que ensinem os filhos a tocar ciacutetara a dedilharem instrumentos de cordas e a fazerem negoacutecios E natildeo tarda meu senhor que vejas passar de homens a mulheres e assim desaparece o risco de se revoltarem [] (Histoacuterias 1155 4)

Ou seja Creso em Heroacutedoto define uma vida de oacutecio luxo e sem preocupaccedilotildees

como uma vida efeminada ndash ldquopassar de homens a mulheresrdquo (Histoacuterias 1155 4)

Entretanto a vida que Ciro permitiraacute que Creso tenha seraacute tambeacutem uma vida de oacutecio e

luxo mas sem preocupaccedilotildees militares e poliacuteticas Assim a vida que Creso nas

Histoacuterias julga efeminada e refuta na Ciropedia ele a julga como a mais feliz Aleacutem

disso mais uma vez observamos a inversatildeo do ethos em Heroacutedoto eacute Creso quem

aconselha a Ciro tomar tal decisatildeo em Xenofonte Ciro toma esta decisatildeo sem ajuda de

seu inimigo

A referecircncia agraves Memoraacuteveis (2121-34) nos ajudaraacute a compreender um pouco

mais estas implicaccedilotildees e por meio desta referecircncia percebemos que a afirmaccedilatildeo de

Creso eacute absurda para Xenofonte

Neste trecho referido das Memoraacuteveis a personagem Soacutecrates narra uma

narrativa que ouviu de Proacutedico em uma de suas leituras puacuteblicas Segundo a narrativa

Heacuteracles estava na idade em que os jovens devem escolher entre a virtude e o viacutecio

Apareceram-lhe entatildeo duas mulheres de extraordinaacuteria estatura uma agindo como

pessoa de condiccedilatildeo livre (ἐλευθέριον eleutherion) e de ar nobre (εὐπρεπῆ euprepe)

a outra corpulenta (πολυσαρκίαν polusarkian) e mole (ἁπαλότητα hapaloteta) A

segunda aproximou-se de Heacuteracles e lhe disse que se a seguisse ela o conduziria a um

caminho prazeroso e faacutecil livre de penas sem ocupar-se de guerras e de negoacutecios

aproveitando-se do trabalho alheio Chamava-se Felicidade poreacutem seus inimigos a

chamavam de Perversidade96 (Memoraacuteveis 1987 p65) A outra mulher aproximou-se

95 No original ἐκείνη γὰρ τῶν μὲν ἀγαθῶν καὶ τῶν μαλακῶν καὶ εὐφροσυνῶν πασῶν ἐμοὶ τὸ

ἴσον μετεῖχε φροντίδων δὲ ὅπως ταῦτα ἔσται καὶ πολέμου καὶ μάχης οὐ μετῆν αὐτῇ (Cirop VII228) 96 Κακία (Kakiacutea)

75

em seguida e tambeacutem lhe fez um discurso natildeo procurando enganaacute-lo com promessas de

prazeres mas prometendo um futuro glorioso e belo desde que agrave base de sacrifiacutecios e

diligecircncias Esta se chamava Virtude (Αρετή Arete) A Perversidade disse-lhe em

resposta

Compreendes Heracles que esta mulher descreve a ti um aacuterduo e longo caminho para a felicidade Eu de outro lado te conduzirei por um caminho curto e cocircmodo em direccedilatildeo a felicidade97 (Memoraacuteveis LII129 traduccedilatildeo nossa)

A resposta proferida pela Virtude mostra a Heacuteracles o quanto as conquistas (do

corpo e da alma) provindas do trabalho e da virtude satildeo melhores do que as provindas

pelo caminho faacutecil do oacutecio A verdadeira felicidade portanto eacute fruto da Virtude ainda

que a felicidade provinda da Virtude esteja acompanhada de trabalhos e penas A

felicidade provinda pela vida faacutecil eacute apenas aparente Creso portanto escolhe o

caminho da Perversidade no sentido de que ele estaacute preferindo uma vida de oacutecio A

afirmaccedilatildeo de Tatum (1989 p151) nos parece acertada ldquoHaacute uma bizarra implicaccedilatildeo

sobre o presente status de Creso Comparando sua antiga relaccedilatildeo com sua mulher com a

sua nova relaccedilatildeo com Ciro Creso inconscientemente compara-se a uma mulher []98rdquo

Figura 2 Creso a ponto de ser incendiado a mando de Ciro Acircnfora grega

Fonte httpeswikipediaorgwikiArchivoKroisos_stake_Louvre_G197jpg

97 No original Ἐννοεῖς ὦ Ἡράκλεις ὡς χαλεπὴν καὶ μακρὰν ὁδὸν ἐπὶ τὰς εὐφροσύνας ἡ

γυνή σοι αὕτη διηγεῖται ἐγὼ δὲ ῥᾳδίαν καὶ βραχεῖαν ὁδὸν ἐπὶ τὴν εὐδαιμονίαν ἄξω σε

(Memoraacuteveis LII129 traduccedilatildeo nossa) 98 No original There is a bizarre implication here about Croesusrsquo present status By comparing his former relationship whit his wife to Cyrusrsquos relationship with him now Croesus unknowingly likes himself to a woman (TATUM 1989 p151)

76

3233 A intertextualidade e a reescrita da histoacuteria

A partir desta nossa anaacutelise da Cena de Creso podemos concluir que a narrativa

da Ciropedia alude em muitos momentos agrave narrativa de Heroacutedoto A alusatildeo eacute uma

forma impliacutecita de intertextualidade mas que se revela por exemplo na repeticcedilatildeo de

temas jaacute antes abordados pelo texto modelo Uma vez que a alusatildeo eacute uma forma

impliacutecita de intertextualidade podemos presumir que Xenofonte esperava o preacutevio

conhecimento da narrativa de Heroacutedoto Aleacutem disso uma vez que natildeo estamos em

condiccedilotildees de confrontar a narrativa de Xenofonte com todas as obras que poderiam ter

sido suas fontes podemos afirmar que nas passagens em que identificamos a

intertextualidade o material histoacuterico autorizado por Heroacutedoto foi manipulado natildeo por

conhecimento de outra fonte mas por um processo de ficcionalizaccedilatildeo Nestas

condiccedilotildees a ficccedilatildeo infringe a histoacuteria Segundo Freitas (1986 p50)

[] ao constatar que as informaccedilotildees histoacutericas oscilam sem cessar entre o real e o fictiacutecio por razotildees esteacuteticas ideoloacutegicas ou pragmaacuteticas percebe-se que na verdade a Histoacuteria eacute adaptada agraves intenccedilotildees especificamente literaacuterias do escritor ela perde seu estatuto de referencial autocircnomo e se torna elemento constitutivo do universo interno do romance de ficccedilatildeo

Quais seriam entatildeo as intenccedilotildees de Xenofonte ao efetuar a adaptaccedilatildeo do

material histoacuterico Procuramos demonstrar em nossa anaacutelise que as adaptaccedilotildees do texto

de Heroacutedoto procuravam sempre sublinhar a sabedoria de Ciro em contraste com seu

oponente Creso Desse modo denominamos a inversatildeo do ἔθος o caraacuteter de Ciro

como eixo principal das modificaccedilotildees da Ciropedia A anaacutelise do texto de Heroacutedoto

revela que Creso apoacutes sua derrota para Ciro compreende os ensinamentos de Soacutelon e

torna-se de algum modo um homem saacutebio Ciro contudo mostra-se detentor deste

mesmo conhecimento porque em nossa opiniatildeo na Ciropedia a sabedoria estaacute

intimamente ligada agrave formaccedilatildeo da personagem Ciro assume o papel de Soacutelon de saacutebio

capaz de aplicar algum ensinamento a Creso

Desse modo Xenofonte procura a partir de estrateacutegias de ficcionalizaccedilatildeo

idealizar Ciro e com isso estruturar verossimilmente a representaccedilatildeo das accedilotildees e do

caraacuteter da personagem de Ciro

77

324 A Morte de Ciro

Trataremos da cena a respeito da morte de Ciro Segundo Sancisi-Weerdenburg

(2010 p441) Heroacutedoto natildeo eacute a autoridade mais confiaacutevel sobre este assunto e a

estudiosa acredita que Xenofonte estruturou sua narrativa a partir da tradiccedilatildeo oral

iraniana Acreditamos que uma vez que temos escassas informaccedilotildees a respeito das

fontes sobre a vida de Ciro eacute muito complicado afirmar qual fonte eacute mais ou menos

confiaacutevel Mais complicado ainda eacute afirmar qual das fontes Xenofonte julgou ser a

correta Infelizmente a uacutenica destas fontes que nos chegou foi a obra de Heroacutedoto e eacute

apenas por meio da comparaccedilatildeo com ela que podemos verificar se Xenofonte manteacutem-

se fiel ou manipula o material histoacuterico Aleacutem disso haacute ainda nesta cena algumas

alusotildees a narrativa de Heroacutedoto

Em Heroacutedoto Ciro morre no campo de batalha durante a tentativa de subjugar

os massaacutegetas (Histoacuterias 1201-214) A tentativa de Ciro eacute por Heroacutedoto descrita

como negativa motivada ldquo[] em primeiro lugar [pelas] circunstacircncias do seu

nascimento que o levavam a considerar-se mais do que um simples mortal depois o

sucesso que sempre obtinha em campanha []rdquo (Histoacuterias12042) Aleacutem disso os

massaacutegetas jamais cometeram agressatildeo contra os persas (Histoacuterias1206) Portanto

Heroacutedoto descreve a atitude de Ciro como desmedida ὑβριστής (hybristes) e prepara

a atenccedilatildeo do leitor para a queda do monarca persa

A primeira aproximaccedilatildeo de Ciro em busca de seu objetivo foi uma proposta de

casamento com a rainha Toacutemiris mas esta percebendo o real desejo de Ciro o proibiu

de se aproximar de seu paiacutes Ciro entatildeo inicia a expediccedilatildeo e atravessa o rio Araxes

lanccedilando uma ponte sobre o rio Para Sancisi-Weerdenburg (2010 p445) o tema do

atravessamento do rio eacute um leitmotiv das Histoacuterias para o desencadeamento da queda

do monarca99

Due (1989 p131) observa que a descriccedilatildeo da batalha entre os persas e os

massaacutegetas eacute repleta de elementos sobrenaturais oraacuteculos e avisos Ciro como Creso o

fizera anteriormente interpreta de forma equivocada um oraacuteculo acreditando que Dario

estava tramando contra ele A maacute interpretaccedilatildeo eacute fruto de sua ὕβρις (hybris) a

99 Cf a travessia de Dario no Istros de Xerxes no Helesponto e de Cambises em sua invasatildeo da Etioacutepia Aleacutem disso estes povos invadidos satildeo tambeacutem descritos por Heroacutedoto como inocentes de qualquer ofensa ao povo persa Desse modo Heroacutedoto estabelece como injusta a guerra iniciada por estes persas assim como julgava injusta a guerra promovida por Creso contra Ciro

78

arrogacircncia de se crer invenciacutevel O sonho na verdade predizia a sua morte e que ldquo[]

seu poder passaria para as matildeos de Dario []rdquo (Histoacuterias 12101)

A batalha em que Ciro morre eacute descrita por Heroacutedoto como a mais violenta entre

dois povos baacuterbaros na qual mais pessoas pereceram O reinado de Ciro durou vinte e

nove anos e apoacutes descrever o ultraje que o corpo morto de Ciro sofreu nas matildeos da

rainha Toacutemiris (Histoacuterias1214) Heroacutedoto termina sua narrativa estabelecendo que

dentre as muitas versotildees a respeito da morte de Ciro ldquo[] esta eacute a mais criacutevel []rdquo

(Histoacuterias 1214 5) Heroacutedoto deve ter rejeitado as outras versotildees porque elas

deveriam conter elementos de glorificaccedilatildeo a Ciro e o encocircmio destoaria da estrutura

traacutegica criada pelo autor para os monarcas baacuterbaros

Jaacute afirmamos anteriormente que a narrativa de Ciro em Heroacutedoto visava a ser

paradigmaacutetica ldquocom funccedilotildees determinadas no conjunto da narrativardquo (FERREIRA

SILVA 2002 p38) Deste modo a narrativa da vida de Ciro preenche o padratildeo

estrutural definido por Immerwahr (1981 apud FERREIRA SILVA 2002) Segundo

Immerwahr o padratildeo das narrativas de Heroacutedoto assume a seguinte estrutura a-) as

origens do monarca (como nasceu e como chegou ao poder) b-) primoacuterdios do reinado

ateacute atingir o apogeu c-) curva descendente que culmina com a queda do monarca

Pudemos observar em nossa anaacutelise como este modelo se aplica facilmente a narrativa

sobre a vida de Ciro Primeiramente sua origem eacute marcada pelos signos da lenda o

afastamento da casa materna por causa de um oraacuteculo e o subsequente reconhecimento

de sua verdadeira identidade Em seguida a carreira militar vitoriosa primeiro

destronando seu avocirc Astiacuteages depois derrotando Creso e dominando a Liacutedia e a

Babilocircnia Por fim sua queda porque acreditou ser mais do que um simples mortal Eacute

interessante como Heroacutedoto ata esta estrutura com perfeiccedilatildeo pois remonta a arrogacircncia

de Ciro que eacute a causa da sua queda agrave sua origem e agrave sua carreira militar de sucesso

(Histoacuterias12042)

Em Xenofonte (CiropVIII7) encontramos uma narrativa completamente

diferente Ciro morre idoso contente e de um modo paciacutefico em casa rodeado pelos

seus amigos e parentes No final de sua vida Ciro retorna agrave Peacutersia ldquo[] pela seacutetima vez

em seu reinado []rdquo100 (Cirop VIII71) onde tem um sonho no qual uma pessoa de

estatura extraordinaacuteria lhe revelou que iria morrer Assim que ele acorda faz rituais aos

100 No original [] τὸ ἕβδομον ἑπί τῆς αὐτοῦ ἀρχῆς []

79

deuses e orando agradece-os por terem revelado por meio de sinais ldquo[] as coisas que

eu deveria e as coisas que natildeo deveria fazer []rdquo101 (Cirop VIII73) Em seguida diz

Muito agradeccedilo a voacutes pois reconhecia a vossa atenccedilatildeo e jamais na prosperidade me considerei acima dos homens Peccedilo que voacutes deis agora a felicidade a meus filhos minha esposa meus amigos e minha paacutetria e a mim decirc uma morte tatildeo digna quanto a vida que me destes102

O discurso de Ciro retoma o tema da felicidade eudaimonia discutido no

encontro com Creso Ademais Ciro agradece aos deuses por nunca terem deixado que

ele se tornasse na prosperidade hubristes e se julgasse mais do que qualquer homem

De sorte que Ciro em Xenofonte agradece por natildeo ter tido o mesmo fim que a

personagem Ciro teve em Heroacutedoto

Acreditamos que esta alusatildeo natildeo eacute meramente casual nem mesmo ingecircnua Pelo

contraacuterio em nossa opiniatildeo as alusotildees revelam que Xenofonte estava dialogando

diretamente com a obra de Heroacutedoto aleacutem de servirem de pequenas pistas para que o

leitor possa observar a manipulaccedilatildeo do material de Heroacutedoto Como notamos a partir

da anaacutelise da Cena de Creso as alusotildees em geral referem-se a temas importantes na

obra de Heroacutedoto e que satildeo retrabalhados na Ciropedia Assim natildeo eacute soacute o tema da

felicidade e ο da arrogacircncia que aparecem na narrativa da morte de Ciro mas tambeacutem o

tema do sonho

O tema do sonho frequente em Heroacutedoto tem pouca participaccedilatildeo na estrutura

narrativa da Ciropedia poreacutem assim como em Histoacuterias (1210) os deuses enviam um

sonho a Ciro em que revelam a sua morte A mensagem dos sonhos no entanto diverge

completamente pois o sonho narrado em Heroacutedoto eacute ambiacuteguo e enigmaacutetico Ou seja a

divindade alerta Ciro mas o Ciro de Heroacutedoto eacute incapaz de interpretar corretamente a

mensagem dos deuses Jaacute o sonho enviado a Ciro na Ciropedia eacute claro e direto O sonho

em Heroacutedoto revela o destino traacutegico dos homens que natildeo conseguem compreender os

deuses O sonho em Xenofonte revela que Ciro eacute agraciado pelos deuses pela sua

conduta correta durante a vida

101 No original [] ἅ τrsquo ἐχρῆν ποιεῖν καὶ ἃ οὐκ ἐχρῆν [] 102 No original πολλὴ δ ὑμῖν χάρις ὅτι κἀγὼ ἐγίγνωσκον τὴν ὑμετέραν ἐπιμέλειαν καὶ

οὐδεπώποτε ἐπὶ ταῖς εὐτυχίαις ὑπὲρ ἄνθρωπον ἐφρόνησα αἰτοῦμαι δ ὑμᾶς δοῦναι καὶ νῦν

παισὶ μὲν καὶ γυναικὶ καὶ φίλοις καὶ πατρίδι εὐδαιμονίαν ἐμοὶ δὲ οἷόνπερ αἰῶνα δεδώκατε

τοιαύτην καὶ τελευτὴν δοῦναι

80

Por fim apoacutes dois dias Ciro convocou103 seus dois filhos alguns amigos e

convidados e lhes fez um discurso vindo a falecer em seguida O discurso de Ciro eacute

bem elaborado e retoma os principais temas discutidos na obra Ciro retoma seu passado

e seus feitos observando que a felicidade eudaimonia sempre o acompanhou Ele foi

haacutebil para ajudar os amigos e para prejudicar os inimigos tornou seu paiacutes conhecido e

admirado mas ateacute o momento da sua morte tivera medo de que algo terriacutevel lhe

acontecesse buscando escapar do perigo da hubris Em seguida Ciro estabelece a

divisatildeo de sua heranccedila entre seus dois filhos Cambises e Tanaoxares Apoacutes isso faz

uma reflexatildeo a respeito da imortalidade da alma que deve viver apoacutes a destruiccedilatildeo do

corpo104 Antes de morrer ele ainda daacute algumas instruccedilotildees a respeito do seu funeral

Nossa anaacutelise sobre a narrativa da morte de Ciro demonstrou que a versatildeo de

Xenofonte eacute bem diferente da versatildeo de Heroacutedoto Pode-se justificar tal diferenccedila pelo

conhecimento que Xenofonte tinha das tradiccedilotildees persas conforme Sancisi-

Weerdenburg (2010) Mesmo assim observamos que alguns dos temas caros a

Heroacutedoto satildeo retomados e retrabalhados na cena da Ciropedia O Ciro de Xenofonte

encontrou o caminho da felicidade e ldquo[] foi bem sucedido onde Creso Ciro e todos os

reis persas falharam em Heroacutedoto []rdquo (DUE 1989 p135) isto eacute ele natildeo se deixou

dominar pela arrogacircncia compreendendo que era apenas um ser humano A nosso ver

seja manipulando elementos da tradiccedilatildeo oral seja por pura imaginaccedilatildeo Xenofonte

compocircs um final que pudesse condizer de forma verossiacutemil com o todo de sua obra

para que seu leitor admirasse e imitasse seu heroacutei

33 O Ciro eacutepico e o Ciro traacutegico

Procuraremos a partir de nossas reflexotildees responder as questotildees formuladas no

iniacutecio deste capiacutetulo a-) por que Xenofonte se utiliza de um material histoacuterico ao inveacutes

de construir uma obra totalmente ficcional uma vez que eacute evidente o caraacuteter ficcional e

idealista da obra b-) como ele utiliza esse material conhecido de seus leitores 103 Sancisi-Weerdenburg (2010 p447-448) observa que segundo o resumo de Foacutecio na narrativa de Cteacutesias Ciro tambeacutem termina a vida discursando para os filhos No entanto ele tambeacutem morre por causa de uma batalha estando por isso em meio termo em relaccedilatildeo agraves narrativas de Heroacutedoto e de Xenofonte 104 Segundo Sansalvador (1987 p32) a teoria da imortalidade da alma eacute uma influecircncia das ideias socraacuteticas O tema foi abordado e desenvolvido por Platatildeo no diaacutelogo Feacutedon ou Da Alma (1999)

81

Comeccedilaremos pela segunda questatildeo que de certa forma acreditamos jaacute ter respondido

no decorrer da anaacutelise das narrativas Retomaremos portanto as principais conclusotildees

obtidas em nossa anaacutelise

A partir de nossa anaacutelise pudemos comprovar que Xenofonte construiu sua

narrativa contrastando-a e dialogando diretamente com a narrativa de Heroacutedoto As

Histoacuterias funcionavam como um discurso de autoridade para Xenofonte e na sua versatildeo

da narrativa era necessaacuterio suprimir tudo que contrastasse com essa visatildeo Desse modo

Xenofonte manipula o material estabelecido pela narrativa de Heroacutedoto e essa

manipulaccedilatildeo do discurso estabelecido pela histoacuteria se daacute tanto pela invasatildeo da ficccedilatildeo na

Histoacuteria quanto pela infraccedilatildeo

Como exemplo de invasatildeo temos a cena da narrativa da infacircncia de Ciro pois

Xenofonte cria toda uma seacuterie de episoacutedios e personagens aproveitando o lapso

temporal da narrativa de Heroacutedoto Ou seja Xenofonte se aproveita das arestas

temporais que natildeo foram preenchidas pelo discurso de autoridade do historiador A

ficccedilatildeo portanto se integra agrave Histoacuteria e com ela se confunde dando-lhe uma nova forma

e um novo sentido Os episoacutedios fictiacutecios se constroem a partir de referecircncias histoacutericas

ligando-se a elas que datildeo agrave ficccedilatildeo um efeito de verdade Desse modo comportamentos

culturais (accedilotildees das personagens no banquete) e personagens histoacutericos (Astiacuteages e

Mandane) caracterizam os episoacutedios como verossiacutemeis O discurso narrativo ficcional

neste caso cria situaccedilotildees ldquo[] que funcionam como instrumentos de representaccedilatildeo

soacutecio-cultural atendendo ao objetivo de retratar um povo e uma sociedade numa

determinada eacutepocardquo (FREITAS 1986 p39)

Satildeo exemplos de infraccedilatildeo tanto a narrativa concernente a Creso quanto a

narrativa da morte de Ciro Os elementos dados como histoacutericos nestas cenas ldquo[] satildeo

deformados deslocados ou simplesmente negligenciados pela ficccedilatildeordquo (FREITAS

1986 p48) Na Cena de Creso Xenofonte trabalhou o material dado por Heroacutedoto

condensando em um uacutenico diaacutelogo os principais temas abordados por Heroacutedoto em sua

narraccedilatildeo sobre a vida de Creso Neste caso podemos dizer que houve deformaccedilatildeo do

material histoacuterico Quanto agrave narrativa da morte de Ciro Xenofonte simplesmente

negligencia a narrativa de Heroacutedoto construindo uma narrativa completamente oposta

agravequela de Heroacutedoto Para Due (1989 p22) a liberdade com que Xenofonte trabalha os

dados histoacutericos se deve agrave distacircncia do tempo e do espaccedilo que o tema da narrativa de

Ciro representava ao puacuteblico grego

82

O resultado da manipulaccedilatildeo eacute uma sorte de narrativa idealista O Ciro de

Heroacutedoto eacute uma personagem traacutegica que conforme Northop Frye (1973) estaacute ldquo[]

situada no topo da roda da fortuna a meio caminho entre a sociedade humana no solo

e algo maior no ceacuteurdquo (FRYE 1973 p204) A epifania da lei que conduz o mundo

herodoteano arremessa Ciro para a queda traacutegica em coerecircncia com seu nascimento

traacutegico e esta lei do mundo eacute governada pelo destino (Μοῖρα Moira)

O Ciro da Ciropedia eacute em essecircncia eacutepico o heroacutei cuja experiecircncia interior

produz accedilotildees no acircmbito puacuteblico Conforme Hegel (apud LUKAacuteCS 1999 p98) aquilo

que o homem eacute no mais profundo de sua interioridade soacute se revela pela accedilatildeo e eacute

portanto a accedilatildeo que caracteriza a essecircncia do eacutepico Diferentemente das personanges da

epopeia contudo a personagem de Xenofonte natildeo surge acabada na narraccedilatildeo em um

passado remoto e absolutamente fechado mas evolui e se constroacutei no decorrer da

narrativa Aleacutem disso eacute um heroacutei ideal que representa os valores eacuteticos e morais da

aristocracia Xenofonte portanto manipulou o material histoacuterico para criar o efeito de

verossimilhanccedila entre as accedilotildees ideais e o caraacuteter ideal de sua personagem

Resta-nos por fim responder a primeira questatildeo formulada no iniacutecio do

capiacutetulo se Xenofonte desejava criar uma personagem idealizada e ficcionalizou a vida

de uma personagem histoacuterica por que ele natildeo escreveu uma obra completamente

ficcional No iniacutecio deste capiacutetulo referimos que segundo a Retoacuterica Antiga a

finalidade do discurso histoacuterico eacute o uacutetil enquanto que a finalidade do discurso ficcional

eacute o prazeroso o agradaacutevel Desse modo a ficccedilatildeo eacute o reino do ψεῦδός (pseudos) da

mentira e do divertimento natildeo da utilidade

Xenofonte queria compor uma obra idealizada e buscava que seus leitores natildeo soacute

se deleitassem com sua narrativa mas tambeacutem tirassem dela alguma liccedilatildeo aprendessem

com ela Jaacute referimos que a Ciropedia efetua a siacutentese de elementos ficcionais e

histoacutericos e que o gecircnero biograacutefico no seacuteculo IV aC dilui as fronteiras entre Histoacuteria e

Ficccedilatildeo O gecircnero biograacutefico eacute em essecircncia pedagoacutegico (CARINO 1999) por isso o

tema da biografia natildeo pode ser qualquer indiviacuteduo mas um indiviacuteduo que mereccedila ser

imitado um indiviacuteduo ilustre A ficccedilatildeo neste sentido idealiza a personagem

reescrevendo os dados histoacutericos Ao mesmo tempo os dados histoacutericos e as estrateacutegias

discursivas da histoacuteria garantem ao texto biograacutefico como ao romanesco o efeito de

real A utilizaccedilatildeo de um tema histoacuterico bem como de estruturas linguiacutesticas e formais

83

da historiografia atribuem ao texto literaacuterio natildeo soacute um cunho realista (FREITAS 1986

p14) como tambeacutem verdadeiro

Os gecircneros natildeo podem ser apenas analisados por questotildees de estrutura mas

tambeacutem devem discutir questotildees como audiecircncia performance circulaccedilatildeo de textos e a

autoconsciecircncia criacutetica do papel que o gecircnero estabelece (GOLDHILL 2008 p186-

187) Neste sentido natildeo devemos esquecer a preocupaccedilatildeo didaacutetica da Ciropedia e se

Xenofonte construiacutesse uma personagem completamente ficcional a sua audiecircncia

experimentaria outra experiecircncia esteacutetica da qual se desvincularia a utilidade e a obra

falharia como literatura pedagoacutegica

Poderemos traccedilar um quadro paralelo com o desenvolvimento do romance

burguecircs nos seacuteculos XVII e XVIII Segundo Ian Watt (1997) as primeiras narrativas

ficcionais ressentiam-se de natildeo serem enquadradas no cacircnone seacuterio A ficccedilatildeo neste

contexto ficava relegada a um puacuteblico inculto Desse modo os primeiros romancistas

como Defoe em Robson Crusoe105(2004) se utilizavam do recurso dos proacutelogos com

os quais procuravam estabelecer para o leitor que suas narrativas eram diaacuterios

biografias manuscritos perdidos encontrados por um determinado editor que agora as

tornavam puacuteblicas Esse processo segundo Watt (1990) estaacute ligado agrave busca em conferir

ao romance um realismo formal106 A narrativa de ficccedilatildeo portanto adquiria um estatuto

de verdade pois se estabelecia como produto da confissatildeo de um indiviacuteduo real

Provavelmente os primeiros ficcionistas da Antiguidade ressentiram-se da

mesma necessidade dos primeiros romancistas modernos que sua obra de ficccedilatildeo fosse

aceita como literatura seacuteria Desse modo procuraram suprir essa necessidade visando

estrateacutegias discursivas que criassem no texto de ficccedilatildeo efeitos de real e entre estas

estrateacutegias estava a ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria

Para concluir gostariacuteamos por fim de refletir a respeito dos resultados dessa

manipulaccedilatildeo dos dados histoacutericos por Xenofonte O objetivo de Xenofonte ao

reescrever a histoacuteria estaacute ligado ao caraacuteter didaacutetico de sua narrativa O caraacuteter didaacutetico

dessa ficcionalizaccedilatildeo prevecirc no entanto menos recontar o passado tal qual ele ldquode fato

aconteceurdquo do que se dirigir como exemplum para seus leitores presentes e futuros

Desse modo Xenofonte aproxima-se do passado rompendo a distacircncia eacutepica com o

105 Defoe (apud WATT 1997 p155) em defesa do Robinson Crusoeacute daqueles que consideravam essa obra mera ficccedilatildeo disse ldquo[] afirmo que a histoacuteria embora alegoacuterica eacute tambeacutem histoacutericardquo 106 Cf Linda Hutcheon (1991 p143) ldquoAs obras de Defoe diziam ser veriacutedicas e chegaram a convencer alguns leitores de que eram mesmo factuais poreacutem a maioria dos leitores atuais (e muitos dos leitores da eacutepoca) tiveram o prazer da dupla conscientizaccedilatildeo da natureza fictiacutecia e de uma base no ldquorealrdquo ndash assim como ocorre com os leitores da metaficccedilatildeo historiograacutefica contemporacircneardquo

84

caraacuteter inacabado do presente Os exemplos que analisamos neste capiacutetulo demonstram

a tentativa de Xenofonte de recriar esse passado para construir um todo concreto e ideal

Natildeo eacute o passado o ponto de partida de Xenofonte mas a contemporaneidade que ldquo[]

dita os pontos de vista e as orientaccedilotildees para certos valores []rdquo (BAKHTIN 1998

p418) e neste sentido o passado eacute modernizado Desse modo podemos falar da

Ciropedia como um romance a partir da definiccedilatildeo de Bakhtin107 pois em sua mateacuteria

narrativa o passado fechado eacute destruiacutedo reconduzindo-o a uma nova interpretaccedilatildeo sob

o olhar ideoloacutegico do presente

107 Cf o capiacutetulo 2 seccedilatildeo 241

85

4 Ciropedia um Romance de Formaccedilatildeo na Antiguidade

O mestre [] eacute o prolongamento do amor paterno eacute o complemento da ternura das matildees o guia zeloso dos primeiros passos na senda escabrosa que vai agraves conquistas do saber e da moralidade [] Devemos ao pai a existecircncia do corpo o mestre cria-nos o espiacuterito (sorites de sensaccedilatildeo) e o espiacuterito eacute a forccedila que impele o impulso que triunfa o triunfo que nobilita o enobrecimento que glorifica e a gloacuteria eacute o ideal da vida o louro do guerreiro o carvalho do artista a palma do crente

Raul Pompeacuteia 1976 p26

Procuramos no capiacutetulo anterior estabelecer o estatuto ficcional108 da Ciropedia

pela ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria Demonstramos em nossa anaacutelise que Xenofonte cria sua

obra manipulando os dados presentes no discurso de autoridade de Heroacutedoto pela

invasatildeo e pela infraccedilatildeo do material histoacuterico Aleacutem disso tambeacutem procuramos

demonstrar que a Ciropedia se afasta do projeto historiograacutefico estabelecido por

Heroacutedoto e desenvolvido por Tuciacutedides e se aproxima do gecircnero biograacutefico109 ao

combinar os feitos poliacuteticos e militares com a narrativa ficcional da vida particular do

heroacutei da Ciropedia Todavia ao observarmos o modo de imitaccedilatildeo executado na

Ciropedia demonstramos que ela se afasta do modelo das biografias de narraccedilatildeo

simples e se aproxima do gecircnero de imitaccedilatildeo mista da eacutepica Desse modo podemos

afirmar que a Ciropedia eacute uma narrativa eacutepica (mista) de ficccedilatildeo em prosa ou seja seu

estatuto eacute tal qual o do romance

Estabelecido tal estatuto analisaremos as estruturas da Ciropedia que a tornam a

mais antiga ancestral do Romance de Formaccedilatildeo (Bildungsroman)

Criacuteticos como Lesky (1986) Bakhtin (2010) e Tatum (1989) afirmam que a

Ciropedia eacute uma das obras ancestrais do Romance de Formaccedilatildeo poreacutem em seus estudos

108 Assinalar o caraacuteter ficcional de uma obra natildeo eacute necessariamente diminuir o valor esteacutetico de uma obra historiograacutefica nem enfatizar o valor esteacutetico de uma obra ficcional Eacute antes estabelecer o caraacuteter ontoloacutegico do proacuteprio escrito ficcional qualquer que seja ele no qual as oraccedilotildees projetam ldquo[] contextos objectuais e atraveacutes destes seres e mundos puramente intencionais que natildeo se referem a natildeo ser de modo indireto a seres tambeacutem intencionaisrdquo (CAcircNDIDO 2002 p17) 109 A palavra biografia eacute composta pelos termos βίος (vida) γράφειν (escrever) e foi usado pela primeira vez por Plutarco na Vida de Alexandre (1992) Segundo Momigliano (1993 p10) as formas biograacuteficas do seacuteculo IV aC satildeo denominadas pelos antigos de encocircmio revelando por isso a origem epidiacutetica do gecircnero biograacutefico Como afirmamos no capiacutetulo 1 no decorrer deste trabalho utilizaremos a designaccedilatildeo biografia de forma ampla seguindo desse modo Momigliano (1993) abrangendo por isso as obras encomiaacutesticas do seacuteculo IV aC

86

natildeo haacute uma anaacutelise que de fato justifique tal afirmaccedilatildeo Procuraremos neste capiacutetulo

portanto efetivar esta anaacutelise de forma a justificar tal classificaccedilatildeo com a qual tambeacutem

concordamos

41 Bildungsroman e suas origens

Se o romance de formaccedilatildeo por um lado eacute um gecircnero cujo paradigma se

inscreve na obra de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796)

de outro eacute fruto de um intenso e longo jogo de influecircncias e transformaccedilotildees Como

observa Todorov (1988 p34) a origem de um gecircnero repousa sempre em outros

gecircneros discursivos Tais processos dialoacutegicos nem sempre satildeo claros e evidentes ao

pesquisador da poeacutetica histoacuterica devido ao fato de que muitas obras que tiveram um

papel importante na histoacuteria da literatura natildeo sobreviveram ao tempo No entanto ldquo[]

o gecircnero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica []rdquo (BAKHTIN

2010 p121) que satildeo aqueles elementos estruturais primitivos do gecircnero que se

renovam em cada nova obra literaacuteria e que renovando-se permanecem

A anaacutelise destes elementos pode nos oferecer valiosas informaccedilotildees a respeito da

histoacuteria do gecircnero Tal anaacutelise no entanto necessita do conhecimento preacutevio de quais

elementos constituem determinantes para a caracterizaccedilatildeo de gecircnero e que formam

portanto a archaica do Bildungsroman Segundo Maas (1999 p64)

[] a abordagem genealoacutegica permite que se investigue ao lado das semelhanccedilas formais a proacutepria histoacuteria do gecircnero [] Historiar a obra significa captaacute-la na dinacircmica dos processos de sintetizaccedilatildeo empreacutestimo transformaccedilatildeo e exclusatildeo que ocorrem entre as vaacuterias obras singulares que constituem um determinado universo literaacuterio

Ou seja a partir da repeticcedilatildeo em obras singulares de elementos estruturais eacute

possiacutevel estabelecer um diaacutelogo entre as formas estruturais do gecircnero Tal abordagem

deve levar em conta a existecircncia de determinadas obras que se configuram como

paradigmaacuteticas (MAAS 2000 p65) isto eacute caracterizam os elementos miacutenimos de

comparaccedilatildeo A obra paradigmaacutetica do romance de formaccedilatildeo eacute Os anos de

87

aprendizagem de Wilhelm Meister de Goethe e por meio da comparaccedilatildeo com as

estruturas do Meister poderemos determinar se esta ou aquela obra se insere no gecircnero

O conceito de Bildungsroman aparece pela primeira vez em 1810 quando o

professor Karl Morgenstern o emprega durante uma conferecircncia na Universidade de

Dorpat Segundo Maas

A definiccedilatildeo inaugural do Bildungsroman por Morgenstern entende sob o termo aquela forma de romance que ldquorepresenta a formaccedilatildeo do protagonista em seu iniacutecio e trajetoacuteria ateacute alcanccedilar um determinado grau de perfectibilidaderdquo Uma tal representaccedilatildeo deveraacute promover tambeacutem ldquoa formaccedilatildeo do leitor de uma maneira mais ampla do que qualquer outro tipo de romancerdquo (MAAS 2000 p19)

O romance de Goethe Os Anos de aprendizado de Wilhelm Meister publicado

nos anos de 1795-1796 jaacute era por Morgenstern considerado o paradigma modelo dessa

subespeacutecie do gecircnero do romance condiccedilatildeo esta ainda mantida e por isso ldquo[] a

classificaccedilatildeo de obras uacutenicas sob o gecircnero do Bildungsroman deve ainda considerar o

cacircnone miacutenimo constituiacutedo por Os Anos de aprendizado de Wilhem Meisterrdquo (MAAS

2000 p24)

As condiccedilotildees para o surgimento do conceito e por que natildeo do proacuteprio romance

de Goethe ligam-se agrave Revoluccedilatildeo Francesa e ao novo ideal de homem por ela

propagada o burguecircs agrave nova concepccedilatildeo da infacircncia e da crianccedila e agrave crenccedila de que uma

sociedade educadora pode moldar o caraacuteter do individuo A educaccedilatildeo do indiviacuteduo

preconizada no Meister estaacute ligada agrave formaccedilatildeo por um estado regulador sendo a escola

para todos fruto de um dos siacutembolos da Revoluccedilatildeo Francesa a igualdade Goethe ilustra

dessa forma a tensatildeo existente entre o burguecircs cuja aspiraccedilatildeo por uma formaccedilatildeo

universal ultrapassa os limites impostos pela sociedade burguesa e o nobre cuja

formaccedilatildeo universal ultrapassa os ldquo[] limites estreitos da educaccedilatildeo para o trabalho e

para a perpetuaccedilatildeo do capital herdado []rdquo (MAAS 2000 p20) a que estava destinado

o burguecircs

No gecircnero romance Goethe encontrou o solo propiacutecio para tornar feacutertil sua obra

uma vez que o advento do romance moderno coincide com a erupccedilatildeo da vida privada

portanto apta a tratar das ambiccedilotildees natildeo do heroacutei eacutepico mas do heroacutei comum da

oposiccedilatildeo do subjetivismo do indiviacuteduo com o mundo exterior

Para Maas (2000) as questotildees histoacutericas e discursivas que cercam tanto a

criaccedilatildeo do Meister de Goethe quanto da cunhagem do termo Bildungsroman tornam-na

88

uacutenica e nesse sentido natildeo lhe parece possiacutevel reconhecer um gecircnero chamado

ldquoRomance de Formaccedilatildeordquo para aleacutem daquelas condiccedilotildees histoacutericas de sua origem Ou

em outras palavras o Romance de Formaccedilatildeo seria um gecircnero de uma obra soacute Aleacutem

disso segundo Lukaacutecs (2000) a divisatildeo do romance em gecircneros eacute implicada muito mais

por questotildees ideoloacutegicas do que por problemas de estrutura ou caracterizaccedilatildeo

As tentativas portanto segundo Maas de transportar para aleacutem deste contexto o

termo Bildungsroman satildeo insiacutepidas pois a grande quantidade de obras que criacuteticos

arrolam sob este roacutetulo sugere a hipoacutetese de um Bildungsromam ldquo[] antes discursivo

do que propriamente literaacuterio []rdquo (p24) ou seja tendo como elemento unificador mais

um ideal de formaccedilatildeo do que elementos estruturais e literaacuterios do romance

O Bildungsromam mostra-se entatildeo como uma forma literaacuteria definiacutevel apenas a partir da grande Bildungs-Frage da grande questatildeo da formaccedilatildeo considerada natildeo apenas em relaccedilatildeo ao momento especiacutefico de sua gecircnese mas por meio das diferentes eacutepocas histoacutericas [] a formaccedilatildeo no sentido amplo como a considera Jacobs ultrapassa os limites histoacutericos da gecircnese do conceito Bildungsroman (MAAS 2000 p63)

No entanto Bakhtin (2010 p223) demonstra que a histoacuteria do romance e de

suas formas variantes pode ser baseada em princiacutepios estruturais como a imagem do

heroacutei da narrativa e o grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico O que distingue no seu

entender o romance de formaccedilatildeo dos outros tipos de romance ndash romance de provas

romance de viagem romance biograacutefico ndash eacute justamente a construccedilatildeo do heroacutei Isso natildeo

significa que negamos a historicidade do termo Bildungsroman e sua problemaacutetica

discursiva mas que este subgecircnero romanesco enquanto forma desenvolve-se

reformulando-se ateacute finalmente desenvolver suas amplas capacidades na obra de

Goethe

Segundo Bakhtin (2010 p235) nos outros tipos de romance o heroacutei eacute imutaacutevel

e nem mesmo todas as aventuras pelas quais ele passa satildeo capazes de fazecirc-lo evoluir O

homem eacute estaacutetico mesmo se movimentando em espaccedilo amplo Assim o romance de

formaccedilatildeo uma variante especiacutefica do romance difere-se das outras formas pela imagem

dinacircmica do heroacutei Conforme Bakhtin (2010 p237)

As mudanccedilas por que passa o heroacutei adquirem importacircncia para o enredo romanesco que seraacute por conseguinte repensado e reestruturado O tempo se introduz no interior do homem impregna-lhe toda a imagem modificando a importacircncia substancial do seu

89

destino e da sua vida Pode-se chamar este tipo de romance numa acepccedilatildeo muito ampla de romance de formaccedilatildeo do homem

A partir desta distinccedilatildeo Bakhtin (2010 p235-236) aceita com tranquilidade a

grande variedade que se costuma relacionar a esta variante do gecircnero

Ciropedia de Xenofonte (Antiguidade) Parzival de Wolfram com Eschenbach (Idade Meacutedia) Gargantua e Pantragruel de Rabelais Simplicissimus de Grimmelshausen (Renascimento) Telecircmaco de Fenecirclon (Neoclassicismo) Emiacutelio de Rousseau (na medida em que este tratado pedagoacutegico comporta muitos elementos romanescos) Agathon de Wieland Tobias Knaut de Wetzel Correntes de vida por linhas ascendentes de Hippel Wilhelm Meister de Goethe (os dois romances) Titatilde de Jean Paul (e alguns outros romances seus) David Copperfield de Dickens O pastor da fome de Raabe Henrique o Verde de Gottfried Keller Pedro o afortunado de Pontoppidan Infacircncia adolescecircncia e juventude de Tolstoi Uma Histoacuteria comum de Gontcharov Jean-Christophe de Romam Rolland Os Budenbrook e A Montanha Magica de Tomas Mann etc

Tanto obras anteriores agrave de Goethe quanto posteriores formam a histoacuteria dessa

nova acepccedilatildeo do homem na literatura um homem que se forma enquanto lemos a sua

narrativa Natildeo escapa a Bakhtin contudo a homogeneidade destas obras e esta

homogeneidade eacute fruto dos diferentes modos de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico no

interior do enredo e principalmente no interior do homem Segundo o teoacuterico russo

ldquo[] a formaccedilatildeo (transformaccedilatildeo) do homem varia poreacutem muito conforme o grau de

assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico realrdquo (BAKHTIN 2010 p238) A partir disso ele

dividiraacute o romance de formaccedilatildeo em cinco distintos grupos de acordo com o grau de

assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico Retomaremos esta divisatildeo feita por Bakhtin na seccedilatildeo

44 deste capiacutetulo Podemos por ora concluir que para Bakhtin se de um lado o que

une tatildeo diversas obras sob o roacutetulo de Romance de Formaccedilatildeo eacute a transformaccedilatildeo da

personagem principal de outro lado o que as separa eacute o grau de transformaccedilatildeo dessa

personagem variando de acordo com o grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico

Juumlrgen Jacobs (1989) estabelece uma definiccedilatildeo para Bildungsroman que

segundo Maas (1999) flexibiliza o conceito de modo que ele possa abranger uma

grande diversidade de obras

Fica clara portanto a opccedilatildeo pelas caracteriacutesticas predominantemente conteuacutedisticas em detrimento das formais Estas em vez de traccedilos diferenciadores satildeo apenas suporte decorrente do elenco temaacuteticoconteudiacutestico natildeo produzindo portanto um corpus definidor (MAAS 2000 p63)

90

Concordamos com a pesquisadora quanto agrave grande abrangecircncia que o conceito

de Jakobs adquire principalmente quando pensadas para o romance moderno

Entretanto os eixos temaacuteticos revelam-se intimamente interessantes para o estudo das

obras anteriores ao Wilhelm Meister porque por meio da anaacutelise deles podemos

reconhecer os elementos da archaica do gecircnero e que por seu caraacuteter temaacutetico

promovem a evoluccedilatildeo da personagem na narrativa Parece-nos muito relevante

encontrar em uma obra tatildeo distante temporalmente como a Ciropedia a presenccedila de

certos elementos que ainda hoje surgem como determinantes na composiccedilatildeo de certo

tipo variante do gecircnero do romance seja na sua manutenccedilatildeo seja na sua paroacutedia como

eacute o caso de O Tambor (1959) de Guumlnter Grass As caracteriacutesticas segundo Jacobs (apud

MAAS 2000 p62) satildeo

bull a consciecircncia do protagonista de que ele percorre um processo de aprendizado

(concepccedilatildeo teleoloacutegica da educaccedilatildeo)

bull o percurso do protagonista estaacute determinado por enganos e avaliaccedilotildees

equivocadas que devem ser corrigidas no transcorrer do romance

bull o protagonista tem como experiecircncias tiacutepicas a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave casa

paterna a atuaccedilatildeo de mentores e de instituiccedilotildees educacionais o encontro com a

esfera da arte experiecircncias intelectuais eroacuteticas [sic] aprendizado de uma

profissatildeo e o contato com a vida puacuteblica

Observamos que estes eixos temaacuteticos propostos por Jacobs referem-se todos ao

percurso do heroacutei em formaccedilatildeo da narrativa Isso significa que a partir da anaacutelise destes

eixos reconheceremos justamente a evoluccedilatildeo da personagem que segundo Bakhtin

(2010) eacute determinante na configuraccedilatildeo do gecircnero Os eixos temaacuteticos configuram-se

como figurativizaccedilotildees da estrutura interna da narrativa A personagem no Romance de

Formaccedilatildeo natildeo pode ser estaacutetica mas evolutiva Desse modo a anaacutelise dos temas revela

uma estrutura formal natildeo apenas conteudiacutestica

Portanto na sequecircncia desse capiacutetulo procuraremos demonstrar de que modo

essas caracteriacutesticas satildeo construiacutedas na tessitura narrativa da Ciropedia de Xenofonte

Nem todas as experiecircncias tiacutepicas a que se refere Jacobs todavia surgem no romance110

110 Lembramos que o uso do termo romance quando nos referimos agrave Ciropedia deve-se levar em conta as ressalvas as ressalvas feitas sobre o uso anacrocircnico do gecircnero no capiacutetulo 2241

91

de Xenofonte jaacute que o modelo de formaccedilatildeo por que Ciro passa difere ideologicamente

por questotildees histoacutericas e culturais daquelas encontradas no romance moderno burguecircs

de forma geral Restringiremos entatildeo nossa exposiccedilatildeo agraves experiecircncias tiacutepicas da

separaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave casa paterna a atuaccedilatildeo de mentores e de instituiccedilotildees

educacionais aleacutem da consciecircncia teleoloacutegica da educaccedilatildeo por parte da proacutepria

personagem E mostraremos como elas satildeo representadas na Ciropedia de Xenofonte e

como elas atuam de forma significativa no processo final de formaccedilatildeo de Ciro Por fim

analisaremos o grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico na Ciropedia de Xenofonte

42 A paideacuteia como tema da narrativa o proecircmio (Cirop I11-6)

Antes de entrar na anaacutelise propriamente dita dos elementos que constituem a

archaica do Bildungsroman na tessitura da Ciropedia gostariacuteamos de analisar o

proecircmio da Ciropedia porque os proecircmios se configuram como um discurso

autoexplicativo metaliteraacuterio e acreditamos que a sua anaacutelise nos proveraacute de

informaccedilotildees interessantes tanto a respeito da estrutura quanto a respeito do tema da

narrativa

Os proecircmios nas obras dos historiadores trazem elementos de autoridade e

autoria para a sua narraccedilatildeo (BRANDAtildeO 2005 p164) Nestes entrechos pode-se

apreender ldquo[] um projeto historiograacutefico singular configuraccedilotildees do saber conjecturas

intelectuais e poliacuteticas []rdquo (HARTOG 2001 p10) O leitor pode entrever nos

proacutelogos as intenccedilotildees objetivos e meacutetodo do historiador que ao contraacuterio do orador

natildeo tem necessidade de agradar a um puacuteblico poreacutem precisa demonstrar a utilidade de

sua obra Eacute importante ressaltar que esses procedimentos assim como os tiacutetulos das

obras dos historiadores foram imitados pelos romancistas gregos provavelmente

devido ao seu caraacuteter de autoridade (BRANDAtildeO 2005 p110 HAumlGG 1991 p111)

Xenofonte a rigor natildeo apresenta proacutelogos em suas obras historiograacuteficas e isso

jaacute eacute uma inovaccedilatildeo da sua escrita Nas Helecircnicas o comeccedilo eacute abrupto com a frase

ldquoDepois dissordquo111 indicando que Xenofonte se propotildee continuar a obra de Tuciacutedides

exatamente do ponto onde esta se interrompe e na conclusatildeo de sua proacutepria obra

111 Helecircnicas 1 11 Μετὰ δὲ ταῦτα

92

convida a quem assim desejar que continue a sua histoacuteria112 Para Hartog essa ausecircncia

aproximada de outros traccedilos da peculiar escrita da histoacuteria de Xenofonte revela a

mudanccedila de postura tiacutepica de um momento de perturbaccedilatildeo (HARTOG 2001 p11)

Na Ciropedia ao contraacuterio do que ocorre nas Helecircnicas Xenofonte inicia sua

obra com um proecircmio natildeo tatildeo denso e vasto quanto o proecircmio de Tuciacutedides mas no

qual estabelece as causas e motivos de sua obra Por que tal mudanccedila de atitude Nas

Helecircnicas o objeto de exposiccedilatildeo do ateniense eacute a proacutepria histoacuteria contemporacircnea de

Atenas e na esteira de Tuciacutedides para quem a uacutenica histoacuteria possiacutevel eacute a histoacuteria do seu

proacuteprio tempo Xenofonte estabelece-se como seu continuador No entanto que modelo

Xenofonte poderia tomar para imitar na Ciropedia uma vez que o tema de sua

narrativa natildeo eacute a histoacuteria dos povos mas eacute a biografia de Ciro

O modelo historiograacutefico anterior a Xenofonte eacute o modelo das histoacuterias dos

povos e a histoacuteria do indiviacuteduo surge agrave medida que ele interfere participando

ativamente do mundo poliacutetico A vida de Ciro narrada por Heroacutedoto interessa ao

historiador natildeo tanto pela vida do monarca em si mas porque ela representa tanto as

ideias de Heroacutedoto sobre o divino quanto as causas que deram iniacutecio ao verdadeiro

tema da sua obra as Guerras Meacutedicas Eacute neste sentido que Momigilano (1993) fala de

traccedilos biograacuteficos na historiografia as narrativas da vida de Ciro de Creso e de outros

encontrados nas Histoacuterias de Heroacutedoto soacute tecircm sentido dentro da percepccedilatildeo da histoacuteria

de seus povos Assim tambeacutem a vida de Alcibiacuteades narrada por Tuciacutedides soacute se

motiva em conjunccedilatildeo com a proacutepria Guerra do Peloponeso O tema dessas narrativas

histoacutericas natildeo satildeo os homens que a vivenciaram mas no caso de Heroacutedoto as Guerras

Meacutedicas e no caso de Tuciacutedides a Guerra do Peloponeso

Jaacute afirmamos anteriormente que do ponto de vista temaacutetico a Ciropedia se

enquadra no gecircnero biograacutefico pois apresenta a anaacutelise do caraacuteter de uma personagem

por meio da narraccedilatildeo de eventos particulares e puacuteblicos (MOMIGLIANO 1993 p16) e

que do ponto de vista do modo de imitaccedilatildeo a obra eacute diversa das outras biografias de

seu tempo Isso significa que a obra desenvolve um modo de imitaccedilatildeo proacuteprio ndash

comparado agraves biografias encomiaacutesticas ndash e natildeo encontra na tradiccedilatildeo dos bioacutegrafos

paralelo a ser imitado Aleacutem disso ao enquadrar sua narrativa a um proacutelogo

historiograacutefico Xenofonte almeja o efeito de verdade para a sua narrativa ficcional

Poreacutem esse proacutelogo apresenta sensiacuteveis diferenccedilas comparadas aos proacutelogos dos

112 Helecircnicas 7 527 Tὰ δὲ μετὰ ταῦτα ἴσως ἄλλῳ μελήσει Que igualmente outro se ocupe do que aconteceu a partir disso (Traduccedilatildeo nossa)

93

historiadores Primeiramente como jaacute afirmamos113 o narrador divide seu material em

trecircs temas principais a genealogia γένεαν a natureza φύσιν e a educaccedilatildeo παιδέια

Conforme Menandro Reacutetor (1996) em seu segundo tratado sobre o gecircnero epidiacutetico

γένεαν φύσιν e παιδέια satildeo toacutepoi do gecircnero epidiacutetico Ao trazer para o discurso

narrativo da historiografia um tema do encocircmio Xenofonte deixava de visar em sua

narrativa agrave rigorosa verdade pois do epidiacutetico a verdade factual natildeo fazia parte do

conjunto de procedimentos de escritura O proacutelogo portanto eacute um artifiacutecio literaacuterio a

fim de dar veracidade agrave narrativa

Outra diferenccedila entre o proacutelogo de Xenofonte e dos historiadores claacutessicos eacute a

forma de apresentaccedilatildeo do narrador O proecircmio da Ciropedia inicia-se na primeira

pessoa do plural114 e no decorrer de toda narrativa o narrador jamais se nomeia Cria-se

assim uma estrateacutegia de distanciamento entre narrador e autor e de certo modo entre o

narrador e o narrado O narrador natildeo se identifica com o proacuteprio autor de forma clara

como o fazem Tuciacutedides e Heroacutedoto que se nomeiam jaacute nas primeiras linhas de suas

respectivas obras O anonimato do narrador cria o efeito de factualidade da narrativa

como se os fatos surgissem por si mesmos sem o intermeacutedio de uma investigaccedilatildeo

subjetiva Jacyntho Lins Brandatildeo (2005) argumenta que a voz de Xenofonte natildeo seria

anocircnima em virtude da identificaccedilatildeo que o leitor faria entre esses pronomes com a

informaccedilatildeo paratextual que deveria encabeccedilar os textos divulgados (o tiacutetulo da obra e o

nome do autor) Acreditamos em sintonia com Dellebecque (1957) que eacute difiacutecil

determinar quando estas informaccedilotildees paratextuais foram acrescidas ao texto conhecido

por noacutes e se isso era uma teacutecnica estabelecida por Xenofonte ou foi acrescentada por

comentadores posteriores Aleacutem disso vale lembrar que a Anaacutebase foi primeiramente

publicada com o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa e nas Helecircnicas Xenofonte

refere-se agrave obra de Temistoacutegenes como se de fato a obra natildeo fosse sua Percebemos

desse modo que o jogo entre autor narrador e narrado desdobra-se em problemaacutetica nas

narrativas de Xenofonte e esta confusatildeo entre escritor e narrador na Ciropedia parece

determinante como processo de imitaccedilatildeo do futuro romance

113 Cf a subseccedilatildeo 2242 114 Por exemplo ἡmicroῖν (heacutemin a noacutes) ἐδοκοῦmicroεν (edokouacutemen julgaacutevamos) ἐνενοοῦmicroεν (enenoouacutemen pensamos) ᾐσθήmicroεθα (eistheacutemetha percebemos) ἐνεθυmicroούmicroεθα (enethumouacutemetha refletimos) ἐνενοήσαmicroεν (enenoeacutesamen pensaacutevamos) ἴσmicroεν (iacutesmen vimos) θαυmicroάζεσθαι (thaumaacutedzesthai ficamos admirados) ἐσκεψάmicroεθα (eskepsaacutemetha observamos) ἐπυθόmicroεθα (eputhoacutemeta) δοκοῦmicroεν (dokouacutemen julgamos)

94

Esta ilusatildeo de objetividade e realismo caracteriacutestica do discurso historiograacutefico

estilizou-se no discurso dos romancistas sejam eles modernos ou claacutessicos Xenofonte

ao que nos parece foi o primeiro escritor da Greacutecia a recuperar a objetividade do

discurso histoacuterico a fim de narrar uma narrativa ficcional

Do ponto de vista da estrutura o proecircmio de uma obra histoacuterica segundo

Luciano de Samoacutestata115 deve esclarecer o leitor e facilitar-lhe a compreensatildeo do relato

que se seguiraacute As formas de inauguraccedilatildeo do discurso histoacuterico segundo Barthes

(1988) satildeo duas

a-) abertura performativa igual ao canto dos poetas invocativo

b-) prefaacutecio ato que caracteriza a enunciaccedilatildeo ao confrontar os dois tempos

marcando com signos expliacutecitos de enunciaccedilatildeo o discurso histoacuterico

No primeiro caso temos as obras de Heroacutedoto e de Tuciacutedides enquanto que no

segundo caso temos a narrativa de Xenofonte O narrador no proecircmio da Ciropedia

nos chama a atenccedilatildeo para o resultado de suas reflexotildees a respeito da arte de governar os

homens eram incapazes de serem governados pois tanto nos regimes democraacuteticos

quanto nos monaacuterquicos e oligaacuterquicos eles sempre estavam a reclamar outro regime

Entretanto

Contudo desde que observamos que existiu Ciro o persa aquele que conservou numerosos homens obedientes a ele numerosas cidades numerosos povos a partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de que o governar os homens natildeo eacute das tarefas nem impossiacuteveis nem aacuterduas se algueacutem agir com habilidade Ao menos sabemos que a Ciro eram obedientes de bom grado uns estando distantes uma marcha de numerosos dias enquanto que outros de meses e outros ainda que jamais o viram e mesmo os outros que bem sabiam que natildeo o veriam e todavia desejavam lhe obedecer116 (Cirop 11 3 grifo nosso)

Mas no que consiste este ldquoagir habilmente para issordquo A traduccedilatildeo para liacutengua

portuguesa do Brasil de Jaime Bruna parafraseia esta expressatildeo pela forma ldquoteacutecnicardquo

115 Em Como se deve escrever a Histoacuteria (LUCIANO 2009) traduccedilatildeo de Jacyntho Lins Brandatildeo 116 No original ἐπειδὴ δὲ ἐνενοήσαμεν ὅτι Κῦρος ἐγένετο Πέρσης ὃς παμπόλλους μὲν

ἀνθρώπους ἐκτήσατο πειθομένους αὑτῷ παμπόλλας δὲ πόλεις πάμπολλα δὲ ἔθνη ἐκ

τούτου δὴ ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν μὴ οὔτε τῶν ἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ

ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τις ἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ Κύρῳ γοῦν ἴσμεν ἐθελήσαντας

πείθεσθαι τοὺς μὲν ἀπέχοντας παμπόλλων ἡμερῶν ὁδόν τοὺς δὲ καὶ μηνῶν τοὺς δὲ οὐδ᾽

ἑωρακότας πώποτ᾽ αὐτόν τοὺς δὲ καὶ εὖ εἰδότας ὅτι οὐδ᾽ ἂν ἴδοιεν καὶ ὅμως ἤθελον αὐτῷ

ὑπακούειν (Cirop 113)

95

(XENOFONTE 1965 p14) e tal opccedilatildeo reflete certa interpretaccedilatildeo que repousa na

histoacuteria de leituras da obra segundo a qual este texto eacute um manual de teacutecnicas sobre a

arte de governar Decorre desta interpretaccedilatildeo muito da criacutetica que sofreu a Ciropedia

nos uacuteltimos tempos de uma obra tediosa Parece-nos que ao compreender o texto desta

maneira os criacuteticos simplificam todo o conteuacutedo da obra pois ela na verdade mais do

que um manual eacute antes de tudo e acima de tudo uma narrativa As reflexotildees sobre as

qualidades humanas e o discurso didaacutetico em geral estatildeo figurativizadas e inseridas na

narrativa de um uacutenico homem Ciro A narrativa portanto nos conduz e nos

conduzindo por meio dos atos das personagens nos ensina

Haacute neste proecircmio o que Barthes chama de descronologizaccedilatildeo do fio histoacuterico

pois o narrador mostra-se sabedor daquilo que ainda natildeo foi contado Os signos do

enunciador tornam-se evidentes construindo sua proacutepria imagem como um detentor de

um saber que se transmite como uma verdade que natildeo pode ser desmentida Como sabe

alguma coisa o narrador estaacute apto e autorizado a instruir por meio de uma narrativa dos

feitos ldquomemoraacuteveisrdquo substituindo desse modo a Musa homeacuterica pela pesquisa e pelo

conhecimento Contudo quais seriam esses feitos memoraacuteveis Hartog (2001 p101)

nos diz que

Xenofonte natildeo cessou de refletir sobre a questatildeo do comando buscar compreender diz ele por que o espartano Telecircucias era a tal ponto admirado pelos seus soldados eacute ldquoa tarefa mais digna de um homemrdquo (Hel 51 4) Satildeo essas qualidades que fazem do espartano Agesilau um modelo a ser imitado Enfim a ficccedilatildeo poliacutetica da Ciropedia responde agrave seguinte questatildeo que espeacutecie de homem era Ciro para fazer-se obedecer por um tatildeo grande nuacutemero de pessoas

Portanto as causas do ldquoagir com habilidaderdquo constituem o tema de narraccedilatildeo de

Xenofonte neste sentido o agir natildeo eacute um dado meramente inato do liacuteder poreacutem fruto

de um processo no qual estatildeo relacionados trecircs fenocircmenos que seratildeo segundo ele

objetos de sua narrativa

Em vista desse homem que foi merecedor de nossa admiraccedilatildeo noacutes examinamos de qual famiacutelia era qual natureza possuiacutea e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo a tal ponto que o conduziram a governar os homens Portanto o quanto noacutes averiguamos e o quanto julgamos ter compreendido sobre ele tentaremos expor117 (Cirop 11 6)

117 No original [6] ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδρα ἐσκεψάμεθα τίς ποτ᾽ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶς παιδείᾳ τοσοῦτον

96

A partir dessa triparticcedilatildeo118 o narrador iniciaraacute a diegese propriamente dita Eacute

interessante notar a distinccedilatildeo ldquoentre qualidades herdadas ou inatas e qualidades

adquiridas atraveacutes da educaccedilatildeo e do ambienterdquo119 (DUE 1989 p148 traduccedilatildeo nossa)

que Xenofonte postula Quanto aos ascendentes ou genealogia (γενεάν) o narrador

nos diz que Ciro eacute pelo lado paterno filho de Cambises rei persa descendente de

Perseu heroacutei mitoloacutegico e pelo lado materno neto do rei dos Medos Quanto aos seus

dotes naturais (φύσιν) ele era ldquo[] de aparecircncia muito bela com alma muitiacutessima

bondosa amantiacutessimo dos estudos e das honras de tal modo que suportava todas as

fadigas resistia a todos os perigos pelo amor aos elogios 120rdquo (Cirop 12 1)

Vemos que o espaccedilo dedicado agrave descriccedilatildeo dos ascendentes e dos dotes naturais eacute

pequeno e breve natildeo passando de um raacutepido paraacutegrafo Natildeo devemos contudo

subestimar o importante papel desses dados biograacuteficos tanto para o desenvolvimento

da narrativa quanto para o proacuteprio pensar grego Observa-se por exemplo em Homero

que as personagens ao se apresentarem sempre se distinguem pela sua genealogia e a

descendecircncia divina garante a elas o respeito dos homens comuns (VERNANT 1992)

aleacutem de um destino heroico e glorioso

Quanto agrave descriccedilatildeo da natureza das personagens Heroacutedoto por exemplo na

narrativa que dedica a Ciro mostra que jaacute na infacircncia o futuro imperador Persa

demonstrava as qualidades de governante sendo elas portanto da sua proacutepria natureza

natildeo ensinadas ou adquiridas pela educaccedilatildeo jaacute que Ciro foi educado entre os pastores

Aleacutem disso Xenofonte no decorrer da narrativa iraacute contrapor justamente

personagens cuja ascendecircncia e dotes naturais satildeo os mesmos dos de Ciro mas que ao

contraacuterio deste fracassaram de algum modo na sua carreira Ciaxares121 por exemplo

eacute tio de Ciro ou seja sua ascendecircncia tambeacutem real contudo quando Ciaxares e seu

διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι (Cirop116) 118 Essa a triparticcedilatildeo que propotildee Xenofonte ndash genealogia natureza e educaccedilatildeo ndash encontra-se ainda na obra biograacutefica de Plutarco do seacuteculo I dC Momigliano em The Development of greek biography (1993) acrescenta que aliado a estas trecircs caracteriacutesticas o fato de Xenofonte tratar da vida de Ciro em ordem cronoloacutegica do nascimento ateacute sua morte torna-a a mais inovadora obra para a biografia grega 119 No original between inherited or innate qualities and quailities acquired through education and environment 120 No original [hellip] εἶδος μὲν κάλλιστος ψυχὴν δὲ φιλανθρωπότατος καὶ φιλομαθέστατος

καὶ φιλοτιμότατος ὥστε πάντα μὲν πόνον ἀνατλῆναι πάντα δὲ κίνδυνον ὑπομεῖναι τοῦ

ἐπαινεῖσθαι ἕνεκα (Cirop121) 121 Parece haver unanimidade entre criacuteticos de que Ciaxares eacute uma personagem inventada por Xenofonte Cf James Tatum The Envy of Uncle Ciaxaes In Xenophonrsquos Imperial Fiction 1989 p115-133

97

sobrinho vatildeo agrave guerra liderando o exeacutercito persa e medo Ciro mostra-se muito mais

preparado em tomar as decisotildees corretas e por isso eacute honrado e seguido pelos soldados

de bom grado (ἐθελήσαντας ethelesantas) inclusive pelos proacuteprios soldados de

Ciaxares Isso provoca fortes ciuacutemes em seu tio e a resoluccedilatildeo desse impasse se daraacute

apenas quando Ciaxares reconhecer a superioridade de Ciro e aceitar de bom grado uma

alianccedila entre eles122

Do mesmo modo a figura de Creso rei da Liacutedia eacute sintomaacutetica tal qual Ciro ele

representa a ambiccedilatildeo por honras e elogios e se destaca como um bom liacuteder para os seus

suacuteditos liacutedios Poreacutem na guerra empreendida contra Ciro Creso sai derrotado pois ao

contraacuterio de Ciro eacute atingido pelo excesso de suas paixotildees Enquanto Ciro compreende

que o autocontrole eacute essencial para evitar uma maacute interpretaccedilatildeo da realidade e promover

um bom julgamento de suas proacuteprias accedilotildees Creso dominado pelo desejo fracassa

Em ambos os casos o que diferencia Ciro das personages de Ciaxares e Creso eacute

a sua paideia a formaccedilatildeo e o exerciacutecio contiacutenuo dos ensinamentos obtidos quando

crianccedila Desse modo a educaccedilatildeo torna-se o elemento determinante desta triparticcedilatildeo

para que o heroacutei avance e venccedila em sua trajetoacuteria

Passaremos a analisar os elementos da archaica do romance de formaccedilatildeo na

tessitura narrativa da Ciropedia A nossa tese eacute a de que estes elementos da archaica

satildeo figurativizados de modo a proporcionar uma educaccedilatildeo exemplar a Ciro Assim

analisaremos os seguintes elementos estruturais a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave casa paterna

a atuaccedilatildeo de mentores e de instituiccedilotildees educacionais aleacutem da consciecircncia teleoloacutegica da

educaccedilatildeo por parte da proacutepria personagem Procuraremos averiguar como estes

elementos satildeo representados na Ciropedia e como atuam de forma significativa no

processo final de formaccedilatildeo de Ciro

43 As archaica do Romance de Formaccedilatildeo

431 A Instituiccedilatildeo educacional a paideia persa e a consciecircncia

teleoloacutegica

122 A alianccedila entre tio e sobrinho seraacute concretizada por meio de um casamento Ciro casa-se com sua prima filha de Ciaxares e com isso fortalece a alianccedila O casamento se daacute no final da narrativa e natildeo eacute objeto de muita atenccedilatildeo por parte do narrador

98

Muito se pode dizer como de fato muito jaacute foi dito a respeito da educaccedilatildeo persa

relatada no Livro I 2 da Ciropedia poreacutem o que mais realccedila aos olhos eacute sua

semelhanccedila com o modelo de educaccedilatildeo espartana O filoespartanismo natildeo eacute uma

peculiaridade inerente apenas a Xenofonte jaacute que ele natildeo foi o uacutenico ateniense a exaltar

Esparta O espiacuterito filoespartano estaacute presente tambeacutem nas obras de Isoacutecrates de Platatildeo

e de Aristoacuteteles atenienses ilustres que criticaram a experiecircncia democraacutetica de Atenas

(MOURA 2000 p15) O que mais nos surpreende nesta atitude dos pensadores

atenienses eacute que mesmo a Guerra do Peloponeso fruto da rivalidade histoacuterica entre

Atenas e Esparta natildeo impediu que estes pensadores admirassem o grande rival do povo

ateniense

Segundo Moura (2000 p37) essa situaccedilatildeo ideoloacutegica do seacuteculo IV aC tatildeo

diacutespare do comportamento dos aristocratas do seacuteculo VI aC liga-se ao fato de que

ldquo[] a questatildeo do nascimento primordial para a argumentaccedilatildeo dos primeiros [os

aristocratas do seacuteculo VI aC] era para os uacuteltimos [os intelectuais do seacuteculo IV aC]

em termos de regime poliacutetico ideal apenas um entre outros muitos fatoresrdquo

Aleacutem disso os valores que estes intelectuais pregavam como virtude sabedoria

justiccedila disciplina temperanccedila satildeo valores que se orientam natildeo para uma ideologia

aristocraacutetica mas para uma ideologia oligaacuterquica123 Para Aristoacuteteles a diferenccedila

primordial entre democracia e oligarquia finca-se na questatildeo da pobreza e da riqueza

pois ldquo[] onde quer que os homens governem segundo a sua riqueza sejam eles poucos

ou muitos haacute oligarquia e onde os pobres governam haacute uma democracia []rdquo

(ARISTOacuteTELES 1999 1279 b14-15) Isso significa que onde quer que os governos

oligarcas se estabeleccedilam as suas instituiccedilotildees pouco difeririam das democraacuteticas

(Assembleias Conselhos Magistraturas) ldquo[] diferenciando-se apenas em relaccedilatildeo agrave

maior ou menor participaccedilatildeo dos cidadatildeos nas instituiccedilotildees puacuteblicasrdquo (MOURA 2000

p43)

Os oligarcas de modo geral tinham como ideal o oacutecio conceito este vinculado agrave

ideia de tempo livre poreacutem produtivo na qual os homens deveriam exercer praacuteticas

para seu engrandecimento moral e fiacutesico como a filosofia dedicaccedilatildeo aos negoacutecios

puacuteblicos agrave retoacuterica agrave caccedila agrave cavalaria participaccedilatildeo em banquetes etc Atraveacutes destas

praacuteticas ldquo[] alcanccedilar-se-ia a distinccedilatildeo sobre os demais membros da sociedade jaacute que

123 No Agesilau 14 Xenofonte define democracia oligarquia monarquia e tirania como os governos existentes na Greacutecia de seu tempo

99

cada uma delas continha regras esteacuteticas e comportamentais especiacuteficasrdquo (MOURA

2000 p40)

Em vista disso faacutecil eacute compreender o papel de Esparta no pensamento grego do

seacuteculo IV aC O modelo espartano de governo apresentava vaacuterias caracteriacutesticas que o

aproximavam dos ideais das elites oligaacuterquicas gregas como a organizaccedilatildeo do governo

as suas leis e o seu modo de vida Assim como afirma Johnstone (apud MOURA 2000

p53)

[] muito da argumentaccedilatildeo das elites do seacuteculo quarto vai se afastar um pouco da retoacuterica do nascimento e passar a ter como base a necessidade de se afirmarem enquanto atores sociais possuidores de uma forma de vida estilizada cujas praacuteticas e comportamentos sociais deviam ser capazes de manifestar sua superioridade sobre o resto da populaccedilatildeo

Xenofonte portanto encontra nesse modelo de organizaccedilatildeo espartana subsiacutedios

para a afirmaccedilatildeo de seus ideais oligaacuterquicos Neste sentido a aproximaccedilatildeo efetuada

entre a instituiccedilatildeo persa e a instituiccedilatildeo espartana na Ciropedia cuja fidelidade agrave histoacuteria

eacute secundada pela fidelidade ao didatismo parece natural ldquoOs espartanos tinham na

visatildeo de Xenofonte todo o desprendimento das coisas materiais que os ricos deveriam

terrdquo (MOURA 2000 p65) Na visatildeo de Xenofonte os espartanos ao menos os ricos

aproveitavam seu tempo engrandecendo-se a partir de praacuteticas estilizadoras A

separaccedilatildeo entre ricos e pobres fica evidente na Ciropedia quando o narrador diz

Mas certamente os que podem sustentar os filhos sem que eles trabalhem enviam os que natildeo podem natildeo enviam Aos que foram educados junto aos mestres puacuteblicos eacute permitido por lei passar a juventude na classe dos efebos mas aos que natildeo foram educados dessa maneira natildeo eacute permitido124 (Cirop 12 15)

Portanto Xenofonte aproveitou-se dos elementos estilizadores da educaccedilatildeo

espartana para criar a imagem da formaccedilatildeo ideal representada na narrativa como persa

Desse modo justifica-se o que parecia agrave primeira vista injustificaacutevel a filiaccedilatildeo de um

ateniense ao partidarismo espartano

124 No original ἀλλ᾽ οἱ μὲν δυνάμενοι τρέφειν τοὺς παῖδας ἀργοῦντας πέμπουσιν οἱ δὲ μὴ

δυνάμενοι οὐ πέμπουσιν οἳ δ᾽ ἂν παιδευθῶσι παρὰ τοῖς δημοσίοις διδασκάλοις ἔξεστιν

αὐτοῖς ἐν τοῖς ἐφήβοις νεανισκεύεσθαι τοῖς δὲ μὴ διαπαιδευθεῖσιν οὕτως οὐκ ἔξεστιν

100

Como entatildeo funcionam as engrenagens da educaccedilatildeo espartana e como

Xenofonte fundiu na tessitura de sua narrativa a educaccedilatildeo espartana com a educaccedilatildeo

persa

NrsquoA Repuacuteblica dos Lacedemocircnios obra na qual Xenofonte demonstra o

funcionamento da constituiccedilatildeo espartana ele nos diz

Faz tempo que eu observo que Esparta foi muito poderosa e ceacutelebre na Heacutelade [] No entanto depois que me fixei nas ocupaccedilotildees dos espartiatas125 jaacute natildeo fico surpreso A Licurgo que deu a eles as leis com as quais por meio da observacircncia conseguiram sua prosperidade a ele admiro e considero saacutebio no mais alto grau126 (Const LacLI1-2 traduccedilatildeo nossa)

A partir da constataccedilatildeo de que foi Licurgo o responsaacutevel pela grandeza de

Esparta Xenofonte passa a expor as leis instituiacutedas por ele e a explicar o funcionamento

da educaccedilatildeo na cidade de Esparta

Outra obra que nos traz informaccedilotildees valiosas a respeito da constituiccedilatildeo espartana

eacute a vida de Licurgo narrada por Plutarco Segundo Xenofonte e Plutarco Licurgo deu

aos παιδόνομοι (paidonomoi) a autoridade de reunir os meninos e corrigi-los

energicamente Os παιδόνομοι satildeo magistrados importantes e a escolha de homens

importantes agrave cabeccedila da instituiccedilatildeo educacional revela uma verdadeira preocupaccedilatildeo com

a educaccedilatildeo pois esta natildeo poderia ficar a cargo de qualquer cidadatildeo

Entretanto eacute preciso ressaltar que esta educaccedilatildeo era estritamente formadora de

cidadatildeos-soldados ou seja a educaccedilatildeo proposta eacute um caminho que culminaraacute na

retribuiccedilatildeo dos homens agrave cidade que lhes deu a formaccedilatildeo devida Desse modo diz

Xenofonte Licurgo pensava que a procriaccedilatildeo era a primeira funccedilatildeo das mulheres e por

isso elas tinham que exercitar o corpo pois estava convencido ldquo[] de que dos casais

125 Os ldquoespartiatasrdquo satildeo os espartanos com plenos direitos civis e poliacuteticos em oposiccedilatildeo aos ldquoperiecosrdquo que tinham apenas direitos civis e natildeo poliacuteticos e os ldquohilotasrdquo os escravos que careciam de ambos Assim a educaccedilatildeo ndash essa educaccedilatildeo estatal ndash eacute um privileacutegio de poucos 126 No original ἀλλ᾽ ἐγὼ ἐννοήσας ποτὲ ὡς ἡ Σπάρτη τῶν ὀλιγανθρωποτάτων πόλεων οὖσα

δυνατωτάτη τε καὶ ὀνομαστοτάτη ἐν τῇ Ἑλλάδι ἐφάνη ἐθαύμασα ὅτῳ ποτὲ τρόπῳ τοῦτ᾽

ἐγένετο ἐπεὶ μέντοι κατενόησα τὰ ἐπιτηδεύματα τῶν Σπαρτιατῶν οὐκέτι ἐθαύμαζον

Λυκοῦργον μέντοι τὸν θέντα αὐτοῖς τοὺς νόμους οἷς πειθόμενοι ηὐδαιμόνησαν τοῦτον καὶ

θαυμάζω καὶ εἰς τὰ ἔσχατα [μάλα] σοφὸν ἡγοῦμαι (Const LacLI1-2)

101

vigorosos tambeacutem nascem os filhos mais robustosrdquo127 (Const Lac LI4 traduccedilatildeo

nossa)128

A educaccedilatildeo espartana portanto eacute um assunto de Estado129 e a participaccedilatildeo de

todos os seus membros civis eacute vital O Estado eacute seu iniacutecio e seu fim ao contrario do que

ocorria em Atenas onde cada chefe de famiacutelia poderia educar seus filhos agrave maneira que

bem desejasse em Esparta os meninos eram supervisionados e impelidos agrave obediecircncia

Segundo o grande estudioso da cultura claacutessica o alematildeo Werner Jaeger (1995 p1162)

tornar a educaccedilatildeo assunto do Estado eacute a principal contribuiccedilatildeo de Esparta para a

Histoacuteria da Humanidade

O mesmo tipo de educaccedilatildeo ao menos na narraccedilatildeo de Xenofonte ocorre na

Peacutersia130 desde a infacircncia as crianccedilas satildeo entregues agrave tutela do Estado e devem ali

permanecer cumprindo tarefas sob o jugo do aprendizado da justiccedila (δικαιοσύνην

dikaosynen) e da moderaccedilatildeo (σωφροσύνην sophrosynen) em cada uma das classes

As classes satildeo dividas em quatro a das crianccedilas (παῖδες paides) a dos moccedilos

(ἐφήβος ephebos) a dos adultos (τελεῖοι ἄνδρες teleioi andres) e a dos anciatildeos

(γεραίτεροι geraiteroi) Eacute obrigatoacuteria a participaccedilatildeo de todas as crianccedilas e moccedilos e

eles se reuacutenem em uma praccedila chamada Liberdade (ἐλευθέρα ἀγορὰ eleuthera agora)

onde praticam exerciacutecios fiacutesicos e recebem ensinamentos a respeito de noccedilotildees de justiccedila

e moral Quanto aos adultos e anciatildeos apenas aqueles em condiccedilotildees de se apresentar eacute

que participam natildeo sendo a apresentaccedilatildeo obrigatoacuteria salvo em dias determinados Cada

classe tem como tutores os melhores da classe subsequente dessa forma o meacuterito de

cada um eacute retribuiacutedo pela participaccedilatildeo como tutor da classe inferior Assim eacute

127 No original νομίζων ἐξ ἀμφοτέρων ἰσχυρῶν καὶ τὰ ἔκγονα ἐρρωμενέστερα γίγνεσθαι (Const Lac LI4) 128 Rousseau criticaraacute no seu Emiacutelio a educaccedilatildeo espartana justamente nesse ponto formava apenas cidadatildeos natildeo homens ldquoO homem civil eacute apenas uma unidade fracionaacuteria que se liga ao denominador e cujo valor estaacute em relaccedilatildeo com o todo que eacute o corpo social As boas instituiccedilotildees sociais satildeo as que melhor sabem desnaturar o homem retirar-lhes sua existecircncia absoluta para dar-lhes uma relativa e transferir o eu para a unidade comum de sorte que cada particular natildeo se julgue mais como tal e sim como parte da unidade e soacute seja perceptiacutevel no todo [] Uma mulher Espartana tinha cinco filhos no exeacutercito e esperava notiacutecias da batalha Chega um hilota ela lhe pede notiacutecias tremendo ldquoVossos cinco filhos foram mortos ndash Vil escravo terei perguntado isso ndash Noacutes ganhamos a batalhardquo A matildee corre ateacute o templo e daacute graccedilas aos deuses Eis a cidadatilde (ROUSSEAU 1992 p11-12) 129 A Educaccedilatildeo Espartana como a Educaccedilatildeo na Antiguidade em geral muito difere da nossa concepccedilatildeo moderna de Educaccedilatildeo esta se baseia nas conquistas da Revoluccedilatildeo Francesa como demonstra Carlota Boto em A Escola do Homem Novo (1996) 130 Eacute importante salientar que Xenofonte lutou como mercenaacuterio na guerra civil persa ao lado de Ciro o jovem contra seu irmatildeo Artaxerxes Nesta viagem tomou contato com a cultura persa poreacutem as informaccedilotildees sobre a educaccedilatildeo persa satildeo muito escassas para podermos avaliar o quanto haacute de verdadeiro na elaboraccedilatildeo dessa educaccedilatildeo persa

102

estabelecida uma visatildeo teleoloacutegica da educaccedilatildeo de um processo meritoacuterio cujo fim

enquanto aponta para o desenvolvimento das capacidades dos educandos consagra o

melhor para a retribuiccedilatildeo dessas qualidades ao Estado A noccedilatildeo de processo segundo

Maas (1999 p27) eacute evocado pelo termo Bildung raiz formadora do conceito de

Bildungsroman essa noccedilatildeo

[] eacute essencial para a compreensatildeo do romance de formaccedilatildeo a noccedilatildeo de processo Processo neste contexto eacute a sucessatildeo de etapas teleologicamente encadeadas que compotildeem o aperfeiccediloamento do indiviacuteduo em direccedilatildeo agrave harmonia e ao conhecimento de si e do mundo Formaccedilatildeo (Bildung) passa entatildeo a dialogar com educaccedilatildeo (Erziehung) (MAAS 2000 p27)

A compreensatildeo teleoloacutegica angaria ao educando a percepccedilatildeo de que as etapas

pelas quais ele passa natildeo satildeo meramente casuais mas determinadas pela virtude de seu

aperfeiccediloamento seja em alguma habilidade especiacutefica seja na sua formaccedilatildeo espiritual

Aleacutem disso no romance de formaccedilatildeo esta compreensatildeo teleoloacutegica natildeo deve apenas ser

do Estado que regula e exige do indiviacuteduo o cumprimento de uma conduta determinada

desde a infacircncia poreacutem uma concepccedilatildeo do proacuteprio indiviacuteduo que compreende esse

processo natildeo apenas na instituiccedilatildeo oficial mas na proacutepria vida Ciro por exemplo na

sua infacircncia em uma cena que seraacute analisada a seguir com mais atenccedilatildeo revela seu

projeto iacutentimo de auto-aperfeiccediloamento ao escolher permanecer por um tempo na

Meacutedia junto ao avocirc Ele se justifica deste modo agrave matildee

Porque em casa entre os da minha idade sou e tenho a reputaccedilatildeo de ser o melhor em lanccedilar dardos e flechas e aqui eu sei que no cavalgar sou inferior aos da minha idade E veja bem matildee que isto muito me aborrece Se me deixares aqui e eu aprender a cavalgar quando de um lado eu estiver na Peacutersia penso que para ti vencerei nos exerciacutecios de infantaria aqueles que satildeo os melhores de outro quando vier agrave Meacutedia aqui me esforccedilarei sendo o melhor do que os bons cavaleiros do avocirc para ser aliado dele na cavalaria131 (Cirop 13 15)

131 No original ὅτι οἴκοι μὲν τῶν ἡλίκων καὶ εἰμὶ καὶ δοκῶ κράτιστος εἶναι ὦ μῆτερ καὶ

ἀκοντίζων καὶ τοξεύων ἐνταῦθα δὲ οἶδ᾽ ὅτι ἱππεύων ἥττων εἰμὶ τῶν ἡλίκων καὶ τοῦτο εὖ

ἴσθι ὦ μῆτερ ἔφη ὅτι ἐμὲ πάνυ ἀνιᾷ ἢν δέ με καταλίπῃς ἐνθάδε καὶ μάθω ἱππεύειν ὅταν

μὲν ἐν Πέρσαις ὦ οἶμαί σοι ἐκείνους τοὺς ἀγαθοὺς τὰ πεζικὰ ῥᾳδίως νικήσειν ὅταν δ᾽ εἰς

Μήδους ἔλθω ἐνθάδε πειράσομαι τῷ πάππῳ ἀγαθῶν ἱππέων κράτιστος ὢν ἱππεὺς

συμμαχεῖν αὐτῷ (Cirop 1315)

103

Ou seja o breve intercacircmbio cultural de Ciro lhe ilumina os limites da sua

proacutepria cultura e lhe instiga a aprender o que o outro tem de melhor para ele mesmo

ser em seu paiacutes o melhor βέλτιστος (beltistos) A cultura helecircnica desde Homero

revelou-se sempre como uma cultura que premia o melhor e o peso dessa tradiccedilatildeo ecoa

por toda a literatura grega A epopeia em essecircncia toma como material de seu canto

(ἔπος epos) o feito glorioso (κλέος kleos) que deve manter-se na memoacuteria coletiva O

heroacutei deve ser o melhor de todos na batalha e sua honra (τιμή time) deve ser invejada e

respeitada por todos e qualquer sinal do menor desrespeito a sua reputaccedilatildeo eacute motivo

para uma contenda Nesse sentido a ira de Aquiles eacute o melhor exemplo de honra ferida

do guerreiro e nesse jogo em que soacute existem o tudo e o nada o heroacutei teme natildeo ser

lembrado em cantos apoacutes a sua morte132

Ser o melhor eacute uma busca que acaba apenas com a morte pois como ressalta

Soacutefocles no final do Eacutedipo Rei ldquo[] devemos considerar o dia derradeiro do mortal e

natildeo o julgar feliz antes que transponha o termo da existecircncia sem ter sofrido dor

algumardquo 133 ([1964] p89) daiacute a ontoloacutegica melancolia do heroacutei morrer jovem e belo

no campo de batalha com coragem e virtude para ser lembrado pela eternidade Os

atenienses do seacuteculo V aC davam tanto valor agrave competiccedilatildeo agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica aos

olhos de todos e agraves obrigaccedilotildees reciacuteprocas quanto qualquer heroacutei homeacuterico como denota

Peter Jones (1997 p139) Ciro de certo modo ainda que os meios para se tornar tema

do eacutepos sejam diferentes dos da eacutepica arcaica segue essa tradiccedilatildeo de heroacuteis na pena de

Xenofonte jaacute que natildeo eacute outro o objetivo dele senatildeo ser o melhor de todos e conseguir

por isso uma fama imorredoura

Retomemos o tema da educaccedilatildeo persa cada classe tem obrigaccedilotildees e funccedilotildees

proacuteprias Observando estas obrigaccedilotildees dos meninos apreendemos uma forma peculiar

de se encarar a infacircncia

[6] Os meninos frequentando a escola passam o tempo aprendendo a justiccedila e dizem que vatildeo agrave busca de aprender isso do mesmo modo que entre noacutes os meninos dizem que vatildeo agrave busca de aprender as letras Os chefes deles passam a maior parte do dia julgando-os pois ocorrem entre os meninos como entre os adultos acusaccedilotildees muacutetuas de furto roubo violecircncia traiccedilotildees e injuacuterias e outras coisas parecidas [7] Se reconhecem neles que satildeo injustos punem Castigam tambeacutem se acaso descobrirem que eles estatildeo acusando injustamente Julgam

132 Cf o artigo de Jean Pierre Vernant (1979) A bela morte e o cadaacutever ultrajado 133 Traduccedilatildeo de Jaime Bruna In Teatro Grego Eacutesquilo Soacutefocles Euriacutepedes e Aristoacutefanes Satildeo Paulo Cultrix sd

104

ainda a falta que por causa dela os homens se odeiam bem mais mas processam menos a ingratidatildeo Pois se observam que algueacutem podendo expressar gratidatildeo natildeo expressa punem-no com severidade Crecircem pois que os ingratos satildeo mais negligentes com os deuses com os familiares com a paacutetria e com os amigos Entretanto nada parece estar mais junto da ingratidatildeo do que a impudecircncia pois esta parece ser de todas as vergonhas a guia134 (Cirop 12 6-7)

Por essa descriccedilatildeo do narrador determinados viacutecios podem ser encarados como

tambeacutem inatos ao ser humano jaacute que nas proacuteprias crianccedilas accedilotildees deste tipo satildeo

percebidas e por essa razatildeo eacute que elas devem aprender desde cedo o significado da

justiccedila As crianccedilas aprendem tambeacutem a moderaccedilatildeo (σοφροσύνη sophrosyne) e a

respeitar as autoridades Ο exemplo dos mais velhos eacute fundamental no aprendizado

desses ensinamentos pois eacute ldquo[] para aprender a ser moderado que observem os mais

velhos ao longo de todo o dia vivendo com moderaccedilatildeordquo135 (Cirop 128)

A partir da classe dos moccedilos a educaccedilatildeo se torna cada vez mais voltada para a

praacutetica dos soldados aleacutem de frequentes exerciacutecios fiacutesicos tambeacutem a participaccedilatildeo

efetiva na guarda da cidade Ademais sempre que possiacutevel o rei quando vai agrave caccedila

leva junto consigo os melhores efebos pois ldquo[] esse exerciacutecio parece ser a eles o mais

justo para guerra []rdquo136 pois acostuma o homem agraves diversas dificuldades e ldquo[] natildeo eacute

faacutecil encontrar algo que acontecendo na guerra falte agrave caccedilardquo137 (Cirop 12 10)

A caccedila era uma das praacuteticas sociais mais caracteriacutesticas das elites gregas e por

meio dela os aristocratas treinavam e mediam a coragem a astuacutecia e a virilidade Em

Sobre a caccedila manual teacutecnico escrito por Xenofonte nota-se claramente que esta praacutetica

134 No original [6] οἱ μὲν δὴ παῖδες εἰς τὰ διδασκαλεῖα φοιτῶντες διάγουσι μανθάνοντες

δικαιοσύνην καὶ λέγουσιν ὅτι ἐπὶ τοῦτο ἔρχονται ὥσπερ παρ᾽ ἡμῖν ὅτι γράμματα

μαθησόμενοι οἱ δ᾽ ἄρχοντες αὐτῶν διατελοῦσι τὸ πλεῖστον τῆς ἡμέρας δικάζοντες αὐτοῖς

γίγνεται γὰρ δὴ καὶ παισὶ πρὸς ἀλλήλους ὥσπερ ἀνδράσιν ἐγκλήματα καὶ κλοπῆς καὶ

ἁρπαγῆς καὶ βίας καὶ ἀπάτης καὶ κακολογίας καὶ ἄλλων οἵων δὴ εἰκός [7] οὓς δ᾽ ἂν γνῶσι

τούτων τι ἀδικοῦντας τιμωροῦνται κολάζουσι δὲ καὶ ὃν ἂν ἀδίκως ἐγκαλοῦντα εὑρίσκωσι

δικάζουσι δὲ καὶ ἐγκλήματος οὗ ἕνεκα ἄνθρωποι μισοῦσι μὲν ἀλλήλους μάλιστα

δικάζονται δὲ ἥκιστα ἀχαριστίας καὶ ὃν ἂν γνῶσι δυνάμενον μὲν χάριν ἀποδιδόναι μὴ

ἀποδιδόντα δέ κολάζουσι καὶ τοῦτον ἰσχυρῶς οἴονται γὰρ τοὺς ἀχαρίστους καὶ περὶ θεοὺς

ἂν μάλιστα ἀμελῶς ἔχειν καὶ περὶ γονέας καὶ πατρίδα καὶ φίλους ἕπεσθαι δὲ δοκεῖ

μάλιστα τῇ ἀχαριστίᾳ ἡ ἀναισχυντία καὶ γὰρ αὕτη μεγίστη δοκεῖ εἶναι ἐπὶ πάντα τὰ

αἰσχρὰ ἡγεμών (Cirop 126-7) 135 No original μέγα δὲ συμβάλλεται εἰς τὸ μανθάνειν σωφρονεῖν αὐτοὺς ὅτι καὶ τοὺς

πρεσβυτέρους ὁρῶσιν ἀνὰ πᾶσαν ἡμέραν σωφρόνως διάγοντας (Cirop 128) 136 No original ὅτι ἀληθεστάτη αὐτοῖς δοκεῖ εἶναι αὕτη ἡ μελέτη τῶν πρὸς τὸν πόλεμον

(Cirop 1210) 137 No original ὥστε οὐ ῥᾴδιον εὑρεῖν τί ἐν τῇ θήρᾳ ἄπεστι τῶν ἐν πολέμῳ παρόντων

(Cirop1210)

105

era uma atividade apenas dos homens ricos pois para ser um bom caccedilador eram

necessaacuterios determinados gastos financeiros ter bons catildees de caccedila escravos que

ajudassem na captura dos animais ser portador de material necessaacuterio para empreender

a captura e conhecer o comportamento dos animais a serem caccedilados (MOURA 2000

p68) A praacutetica da caccedila na Ciropedia ganha um relevo especial na formaccedilatildeo do

soldado pois ela ensina ao jovem caccedilando os animais como ele deve agir contra os

inimigos quando houver guerra Assim Cambises pai de Ciro o estimula para a

batalha

Por que razatildeo entatildeo filho tu aprendestes a atirar com o arco Por que razatildeo a lanccedilar dardos Por que razatildeo a enganar javalis selvagens com redes e fossos E por que razatildeo aos cervos com armadilhas e cordas E por que razatildeo aos leotildees ursos e leopardos voacutes natildeo combatiacuteeis colocando-se em igualdade mas sempre procuraacuteveis lutar contra eles provido de alguma vantagem Ou natildeo reconheces que todas essas coisas satildeo maldades ardis enganos e subterfuacutegios138 (Cirop 16 28) [39] Mas se tu filho transferires aos inimigos nenhuma outra coisa aleacutem dos truques que muito planejaste contra os animais pequenos natildeo achas que avanccedilas sobre os inimigos muito adiantado em vantagens Pois tu contra as aves te levantavas no inverno rigoroso e marchavas de noite e antes que os paacutessaros se movessem as cordas para eles eram preparadas por ti e tornavas o chatildeo movido semelhante ao natildeo tocado os paacutessaros eram ensinados por ti para te servirem com utilidade e para enganar os paacutessaros da mesma espeacutecie Tu armavas emboscada para vecirc-las sem ser visto por elas e estavas preparado para puxar antes que os paacutessaros fugissem [40] Por outro lado contra a lebre que vive na escuridatildeo e evita o dia criava catildees que a descobriam pelo faro Assim quando era encontrada fugia rapidamente mas tinhas catildees preparados para capturaacute-las correndo Se entatildeo fugia tambeacutem destes procurando saber quais lugares as lebres fugindo alcanccedilaram nesses estendia redes de caccedila difiacuteceis de ver e na fuga veemente ela mesma caindo sobre a rede ficava amarrada E para natildeo fugirem daiacute tu colocavas guardas para o que estava ocorrendo os que de perto estavam tinham condiccedilotildees de sobrevir rapidamente e tu mesmo atraacutes com clamor natildeo ficavas atraacutes da lebre e bradando aterrorizava-a de tal modo que era capturada enlouquecida e para os que estavam defronte explicava

138 No original τίνος μὴν ἕνεκα ἔφη ἐμανθάνετε τοξεύειν τίνος δ᾽ ἕνεκα ἀκοντίζειν τίνος δ᾽

ἕνεκα δολοῦν ὗς ἀγρίους καὶ πλέγμασι καὶ ὀρύγμασι τί δ᾽ ἐλάφους ποδάγραις καὶ

ἁρπεδόναις τί δὲ λέουσι καὶ ἄρκτοις καὶ παρδάλεσιν οὐκ εἰς τὸ ἴσον καθιστάμενοι

ἐμάχεσθε ἀλλὰ μετὰ πλεονεξίας τινὸς αἰεὶ ἐπειρᾶσθε ἀγωνίζεσθαι πρὸς αὐτά ἢ οὐ πάντα

γιγνώσκεις ταῦτα ὅτι κακουργίαι τέ εἰσι καὶ ἀπάται καὶ δολώσεις καὶ πλεονεξίαι (Cirop 16 28)

106

para fazer silecircncio e permanecerem ocultos na emboscada (Cirop 16 39-40)139

Na Lacedemocircnia segundo Xenofonte em A Repuacuteblica dos lacedemocircnios o

jovem era obrigado a participar dessa praacutetica tendo como objetivo maior o preparo do

bom cidadatildeo (Cirop 64)

Por fim ficam os efebos nessa classe por dez anos e passam entatildeo para a classe

dos adultos na qual permanecem por vinte e cinco anos Os cargos oficiais satildeo

preenchidos por essa classe que cuida das exigecircncias do bem comum aleacutem eacute claro de

formar o exeacutercito do paiacutes Depois de permanecerem vinte e cinco anos na classe dos

adultos eles vatildeo para a classe dos anciatildeos Estes permanecem no paiacutes julgando os

casos de direito puacuteblico e privado aleacutem das faltas denunciadas contra os cidadatildeos

Ressoa ainda as palavras de Plutarco a respeito da educaccedilatildeo espartana instituiacuteda por

Licurgo ldquo[] a educaccedilatildeo era um aprendizado da obediecircnciardquo (PLUTARCO 1991

p113)

Ciro portanto passa por todo esse processo enquanto cidadatildeo persa ldquo[] e

mostrava-se superando a todos os da sua idade tanto no aprender com rapidez as coisas

que fossem necessaacuterias quanto no cumprir cada tarefa com nobreza e virilidaderdquo

(Cirop 13 1)140 A elite persa tem como praacuteticas portanto as mesmas da elite

espartana surgindo ldquo[] como sendo compostas de homens de costumes moderados

exiacutemios praticantes da arte da cavalaria oacutetimos combatentes de infantaria instruiacutedos e

139 No original [39] εἰ δὲ σύ γε ἔφη ὦ παῖ μηδὲν ἄλλο ἢ μετενέγκοις ἐπ᾽ ἀνθρώπους τὰς μηχανὰς ἃς καὶ πάνυ ἐπὶ τοῖς μικροῖς θηρίοις ἐμηχανῶ οὐκ οἴει ἄν ἔφη πρόσω πάνυ ἐλάσαι τῆς πρὸς τοὺς πολεμίους πλεονεξίας σὺ γὰρ ἐπὶ μὲν τὰς ὄρνιθας ἐν τῷ ἰσχυροτάτῳ χειμῶνι ἀνιστάμενος ἐπορεύου νυκτός καὶ πρὶν κινεῖσθαι τὰς ὄρνιθας ἐπεποίηντό σοι αἱ πάγαι αὐταῖς καὶ τὸ κεκινημένον χωρίον ἐξείκαστο τῷ ἀκινήτῳ ὄρνιθες δ᾽ ἐπεπαίδευντό σοι ὥστε σοὶ μὲν τὰ συμφέροντα ὑπηρετεῖν τὰς δὲ ὁμοφύλους ὄρνιθας ἐξαπατᾶν αὐτὸς δὲ ἐνήδρευες ὥστε ὁρᾶν μὲν αὐτάς μὴ ὁρᾶσθαι δὲ ὑπ᾽ αὐτῶν ἠσκήκεις δὲ φθάνων ἕλκειν ἢ τὰ πτηνὰ φεύγειν [40] πρὸς δ᾽ αὖ τὸν λαγῶ ὅτι μὲν ἐν σκότει νέμεται τὴν δ᾽ ἡμέραν ἀποδιδράσκει κύνας ἔτρεφες αἳ τῇ ὀσμῇ αὐτὸν ἀνηύρισκον ὅτι δὲ ταχὺ ἔφευγεν ἐπεὶ εὑρεθείη ἄλλας κύνας εἶχες ἐπιτετηδευμένας πρὸς τὸ κατὰ πόδας αἱρεῖν εἰ δὲ καὶ ταύτας ἀποφύγοι τοὺς πόρους αὐτῶν ἐκμανθάνων καὶ πρὸς οἷα χωρία φεύγοντες ἀφικνοῦνται οἱ λαγῷ ἐν τούτοις δίκτυα δυσόρατα ἐνεπετάννυες ἄν καὶ τῷ σφόδρα φεύγειν αὐτὸς ἑαυτὸν ἐμπεσὼν συνέδει τοῦ δὲ μηδ᾽ ἐντεῦθεν διαφεύγειν σκοποὺς τοῦ γιγνομένου καθίστης οἳ ἐγγύθεν ταχὺ ἔμελλον ἐπιγενήσεσθαι καὶ αὐτὸς μὲν σὺ ὄπισθεν κραυγῇ οὐδὲν ὑστεριζούσῃ τοῦ λαγῶ βοῶν ἐξέπληττες αὐτὸν ὥστε ἄφρονα ἁλίσκεσθαι τοὺς δ᾽ ἔμπροσθεν σιγᾶν διδάξας ἐνεδρεύοντας λανθάνειν ἐποίεις 140 No original [] καὶ πάντων τῶν ἡλίκων διαφέρων ἐφαίνετο καὶ εἰς τὸ ταχὺ μανθάνειν ἃ δέοι καὶ εἰς τὸ καλῶς καὶ ἀνδρείως ἕκαστα ποιεῖν (Cirop 131)

107

letrados obedientes e disciplinados e exiacutemios praticantes da caccedila de animais ferozesrdquo

(MOURA 2000 p100)

Para Jaeger (1995 p1148) nessa forma de Xenofonte ver os povos baacuterbaros

repousa a influecircncia das palavras de Soacutecrates pois do mesmo modo que entre os gregos

havia muitos corruptos entre os estrangeiros havia verdadeiros ἄνδρες καλoὶ

κἀγαθoὶ (andres kaloi kagathoi) homens excelentes Como nos lembra Collingwood

em A Ideia da Histoacuteria (1981 p45) uma das caracteriacutesticas essenciais do Helenismo eacute

compreender os ldquobaacuterbarosrdquo como detentores de uma cultura vaacutelida Se para os gregos do

periacuteodo claacutessico os estrangeiros interessavam como paralelo ao que era grego natildeo

interessando por si mesmos mas enquanto participantes dos feitos dos proacuteprios gregos

para os gregos do periacuteodo Heleniacutestico os estrangeiros baacuterbaros ganham autonomia e

passam a interessar naquilo que possuiacuteam de melhor Xenofonte desse modo prenuncia

uma visatildeo cultural mais ampla tiacutepica dos seacuteculos seguintes

Ciro portanto percorre etapas educativas na instituiccedilatildeo de ensino persa

formando-se de acordo com as leis do paiacutes O narrador expressa a admiraccedilatildeo de todos

pela excelente conduta de Ciro nas praacuteticas formadoras A noccedilatildeo de formaccedilatildeo expressa

na Ciropedia eacute uma noccedilatildeo teleoloacutegica que pressupotildee um percurso diretivo que seraacute

cumprido em sua totalidade apenas pelos melhores cidadatildeos jaacute na vida adulta As

praacuteticas educacionais natildeo se resumem no entanto apenas agraves crianccedilas mas a todos os

homens-cidadatildeos que devem permanecer em constante aprendizado visando a sua

perfectibilidade

A educaccedilatildeo em uma instituiccedilatildeo educacional todavia natildeo eacute de fato um tema

essencial ao Romance de Formaccedilatildeo pois em algumas narrativas o percurso do heroacutei

estaacute completamente dissociado desta instituiccedilatildeo Entretanto na Ciropedia em virtude

do seu caraacuteter idealizante a educaccedilatildeo formal apresenta-se como um momento decisivo

e positivo na formaccedilatildeo do caraacuteter positivo do indiviacuteduo No Romance de Formaccedilatildeo

moderno a educaccedilatildeo formal eacute contestada como uma etapa da vida em que o indiviacuteduo e

suas potencialidades satildeo oprimidos pelos valores morais e eacuteticos das classes

dominantes Neste sentido a educaccedilatildeo formal eacute um aspecto negativo da vida do

indiviacuteduo e em alguns romances ndash O Tambor de Guumlnter Grass (1956) por exemplo ndash o

heroacutei se afasta totalmente de qualquer instituiccedilatildeo educacional enquanto que em outros

romances ndash Retrato do artista quanto jovem de James Joyce (1916) por exemplo ndash os

108

aspectos negativos da educaccedilatildeo riacutegida permitem ao heroacutei descobrir as potencialidades

interiores negando os proacuteprios valores que a educaccedilatildeo formal transmite

432 Enganos e desmedidas a participaccedilatildeo dos mentores

Um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do romance de formaccedilatildeo eacute a presenccedila de

mentores ou seja de homens responsaacuteveis pela educaccedilatildeo de um jovem Segundo Maas

(2000 p29) a presenccedila da figura masculina do mentor constitui-se desde o Emilio de

Rousseau uma tradiccedilatildeo nas obras pedagoacutegicas No entanto podemos observar que a

narrativa de Xenofonte jaacute apresenta personagens cujo saber e autoridade permitem

representar a funccedilatildeo de preceptores Na Literatura Grega entretanto a presenccedila de

mentores natildeo eacute uma novidade da Ciropedia pois este tipo de personagem remonta aos

poemas homeacutericos

Na Iliacuteada narra-se que Aquiles foi primeiramente educado por Quiratildeo o

Centauro mais justo141 depois por Fecircnix um nobre da corte de seu pai Quiratildeo infundiu

em Aquiles os preceitos de honra para se tornar um heroacutei enquanto Fecircnix lhe ensinou

ldquocomo dizer bons discursos e grandes accedilotildees pocircr em praacuteticardquo142

Outro exemplo se encontra na Odisseia Logo no canto I apoacutes o conciacutelio dos

deuses no qual se decide que Zeus iraacute ajudar Odisseu em seu retorno a Iacutetaca Atena

metamorfoseada no estrangeiro Mentor descendente de Anquiacutealo surge diante de

Telecircmaco que

Pesaroso se achava no meio dos moccedilos soberbos Vendo no espiacuterito a imagem do pai valoroso se acaso Logo viesse a expulsar de seu proacuteprio palaacutecio os intrusos E conquistar nome excelso qual dono dos proacuteprios haveres (Odisseia 1 v114-117)

Telecircmaco recebe o estrangeiro com todas as honras agasalhando-o e servindo-

lhe um banquete farto Depois de saciaacute-lo a imagem nefanda dos pretendentes se

banqueteando estimula Telecircmaco a declarar sua anguacutestia pela ausecircncia paterna e pelo

desrespeito demonstrado pelos pretendentes que enquanto esperavam uma decisatildeo de

141 IlXI830-32 142 IlIX444 A Traduccedilatildeo eacute de Carlos Alberto Nunes (1962)

109

Peneacutelope ndash se ela aceitaraacute ou natildeo novas nuacutepcias ndash se fartavam com os rebanhos da casa

de Odisseu A deusa Atena aconselha-o a convocar uma assembleia com os

pretendentes e lhes expor o projeto de sair agrave procura de notiacutecias do pai primeiro ateacute

Pilo interrogar Nestor e em seguida ateacute Esparta para falar com Menelau (v 284-285)

Nesta cena o importante para a formaccedilatildeo de Telecircmaco eacute que apoacutes o conselho dado por

Atena ela lhe instiga a coragem de Telecircmaco citando o exemplo de Orestes que

retornara agrave terra para matar o tio Egisto e a proacutepria matildee Clitemnestra vingando assim a

morte de Agamecircmnon Suas palavras satildeo

Logo que tudo hajas feito e a bom termo de acocircrdo levado no iacutentimo da alma reflete e no peito tambeacutem valoroso como consigas matar claramente ou por modo encoberto os pretendentes no proacuteprio palaacutecio que bem natildeo te fica como crianccedila brincar para tal jaacute passaste da idade Ou natildeo soubeste da fama que Orestes divino entre os homens veio a alcanccedilar por haver dado a morte ao Tiestiacuteada Egisto que com traiccediloeira artimanha matara seu pai muito ilustre Tu tambeacutem caro Crescido te vejo e com bela aparecircncia Secirc corajoso porque tambeacutem possam vindoiros louvar-te (Odisseia 1 v293-302)

Sob o espectro exemplar de Orestes as accedilotildees de Telecircmaco seratildeo consideradas e

avaliadas Atena instiga a Telecircmaco agrave emulaccedilatildeo com Orestes e eacute por meio da orientaccedilatildeo

de Atena que ele pode agir e seguir o caminho do seu amadurecimento

No final do seacuteculo XVII Feacutenelon escreve As Aventuras de Telecircmaco (1699)

onde realccedila a relaccedilatildeo de Mentor e Telecircmaco sendo a proacutepria relaccedilatildeo o centro da

narrativa Graccedilas a Feacutenelon e sua influecircncia no ideal Iluminista a palavra ldquomentorrdquo

passou a designar a relaccedilatildeo entre um adulto mais experiente e um jovem cuja

orientaccedilatildeo o mentor provecirc

Eacute importante ter em mente que sem o auxiacutelio de Atena o caminho de Telecircmaco

seria outro Segundo Peter Jones

Telecircmaco precisa tambeacutem de encorajamento para assumir esse papel (ἐποτρύνω portanto) e explica o porquecirc o dever de Telecircmaco eacute a vinganccedila mas ele se distanciou em demasiado desse sentido de dever agrave medida que tem apenas uma imagem obscura e indistinta de seu pai Atena precisa implantar na mente de Telecircmaco uma imagem clara e

110

inambiacutegua da ἀρετή (ldquoexcelecircnciardquo) de seu pai se quiser criar nele o desejo de agir143 (JONES 1988)

Eacute com essa percepccedilatildeo que o papel dos mentores tem importacircncia definitiva no

Romance de Formaccedilatildeo o destino do heroacutei sem a participaccedilatildeo dos mentores seria

outro bem afastado da perfectibilidade A funccedilatildeo de mentor natildeo eacute necessariamente

representada por preceptores professores ou algum tipo de profissional da educaccedilatildeo

mas pode ser preenchida por qualquer personagem da narrativa desde que o contato do

heroacutei com esta personagem torne-se um elemento importante da mudanccedila teoacuterica e

praacutetica na trajetoacuteria do heroacutei constituindo-se assim um elemento importante da proacutepria

mateacuteria narrativa

NrsquoOs anos de aprendizado de Wilhem Meister de Goethe por exemplo no

capiacutetulo 17 do Livro II Meister encontra-se com um desconhecido que reconheceu

Meister como ldquo[] o neto do velho Meister aquele que possuiacutea uma valiosa coleccedilatildeo

artiacutesticardquo (GOETHE 1994 p80) Esse desconhecido revela-se o apreciador de arte que

ajudou a um velho rico a comprar a coleccedilatildeo do avocirc de Wilhelm A partir do tema dos

quadros do velho Meister os dois conversam sobre questotildees de arte nas quais Meister

revela um comportamento extremamente subjetivista reconhecendo nas obras os

valores artiacutesticos natildeo por questotildees esteacuteticas ou pela teacutecnica apenas agrave medida que a obra

revela seus proacuteprios anseios interiores O desconhecido-mentor entatildeo lhe diz

Estes sentimentos estatildeo certamente muito distantes das consideraccedilotildees que costuma levar em conta um amante das artes ao apreciar a obra dos grandes mestres mas eacute bem provaacutevel que se o gabinete ainda estivesse em poder de sua famiacutelia aos poucos se revelaria os sentidos daquelas obras e o senhor acabaria por ver nelas algo mais do que a si mesmo e sua inclinaccedilatildeo (GOETHE 1994 p82)

Meister entatildeo concorda que muita falta faz aquela coleccedilatildeo poreacutem se ldquo[] teve

de acontecer para despertar em mim uma paixatildeo um talento que exerceriam em minha

vida uma influecircncia muito maior que o teriam feito aquelas imagens inanimadas

resigno-me de bom grato e acato o destinordquo (GOETHE 1994 p82-83) O

desconhecido lhe reprova o uso da palavra destino com tanta veemecircncia e indagado

por Meister se ele natildeo acredita em destino responde-lhe

143 A traduccedilatildeo do artigo The Kleos of Telemachus Odyssey 195 de Peter Von Jones eacute de Leonardo Teixeira de Oliveira 2007 Encontra-se disponiacutevel no site da internet httpwwwclassicasufprbrprojetosbolsapermanencia2006artigosPeter_Jones-KleosDeTelemacopdf O texto original de Jones data de 1988 e foi publicado na revista American Journal of Philology vol 109 p496-506

111

Natildeo se trata aqui do que creio nem eacute este o lugar para lhe explicar como procuro tornar de certo modo concebiacuteveis coisas que fogem agrave compreensatildeo de todos noacutes a questatildeo aqui eacute saber como o melhor modo de representaccedilatildeo para noacutes A trama desse mundo eacute tecida pela necessidade e pelo acaso a razatildeo do homem se situa entre os dois e sabe dominaacute-los ela trata o necessaacuterio como a base de sua existecircncia sabe desviar conduzir e aproveitar o acaso e soacute enquanto se manteacutem firme e inquebrantaacutevel eacute que o homem merece ser chamado de um deus na Terra Infeliz aquele que desde a sua juventude habitua-se a querer encontrar no necessaacuterio alguma coisa de arbitraacuterio a querer atribuir ao acaso uma espeacutecie de razatildeo tornando-se mesmo uma legiatildeo segui-lo Que seria isso senatildeo renunciar agrave proacutepria razatildeo e dar ampla margem a suas inclinaccedilotildees [] Soacute me anima o homem que sabe o que eacute uacutetil a ele e aos outros e trabalha para limitar o arbitraacuterio Cada um tem a felicidade em suas matildeos assim como o artista tem a mateacuteria bruta com a qual ele haacute de modelar uma figura Mas ocorre com essa arte como com todas soacute a capacidade nos eacute inata faz-se necessaacuterio pois aprendecirc-la e exercitaacute-la cuidadosamente (GOETHE 1994 p83)

O desconhecido natildeo convencera Meister de todo no entanto quando suas

frustraccedilotildees surgirem no decorrer da narrativa as palavras daquele desconhecido-mentor

tornar-se-atildeo claras e evidentes Meister estava crente de que seu destino era o mundo

das artes em especial o teatro poreacutem frustra-se convivendo com uma trupe e com o

fracaso da sua representaccedilatildeo do Hamlet de Shakespeare No desfecho de sua trajetoacuteria

que permanece neste livro em aberto e soacute seraacute resolvido no terceiro livro da seacuterie Os

anos de peregrinaccedilatildeo de Wilhelm Meister de 1829 Meister caminha da dedicaccedilatildeo ao

teatro para a Medicina e termina seus anos de aprendizado integrado ao avanccedilo

econocircmico e social da burguesia o projeto idealista da formaccedilatildeo universal se perde

portanto em funccedilatildeo de uma formaccedilatildeo praacutetica especializada

O tal desconhecido se revelaraacute como participante de uma sociedade humanista

chamada Sociedade da Torre ldquo[] que preconiza o desenvolvimento das qualidades e

talentos inatos no indiviacuteduo orientado para a vida em sociedaderdquo (MAAS 2000 p30)

e que acompanhava agrave distacircncia o desenvolvimento de Meister O diaacutelogo entre os dois

faz parte do projeto de educaccedilatildeo da Sociedade que enquanto conceitua o mundo pela

sua verdade natildeo impede que o educando sofra com o seu proacuteprio erro de avaliaccedilatildeo

para que ele tambeacutem se converta por fim agrave verdade professada pela Sociedade da

Torre No final drsquoOs anos de aprendizagem Meister descobre que muitas personagens

que no decorrer da narrativa surgiram e tiveram alguma influecircncia sobre ele eram na

verdade membros desta sociedade e estavam cuidando de sua formaccedilatildeo

112

O papel do mentor caracteriacutestica essencial ao romance de formaccedilatildeo eacute portanto

fundamental na formaccedilatildeo do indiviacuteduo no que tange a sua caminhada agrave

perfectibilidade jaacute que eles direcionam a personagem Na Ciropedia a experiecircncia de

Ciro com mentores segue esse mesmo caminho rumo agrave perfectibilidade e se daraacute em

dois estaacutegios no primeiro estaacutegio quando crianccedila em sua visita agrave Meacutedia e no segundo

estaacutegio antes de partir para a guerra contra os Assiacuterios agrave frente do exeacutercito persa

Vamos entatildeo discutir a participaccedilatildeo dos mentores na Ciropedia

4321 Afastamento da casa paterna Visita agrave Meacutedia

A primeira cena que analisaremos a respeito da participaccedilatildeo de mentores na

Ciropedia estaacute ligada a outra experiecircncia tiacutepica dos romances de formaccedilatildeo segundo

Jacobs (1989) o afastamento da casa paterna Quando Ciro tinha doze anos foi com a

sua matildee visitar o avocirc Astiacuteages o rei da Meacutedia a pedido deste Nesta viagem na qual

haveraacute o primeiro contato de Ciro com uma cultura diferente todas as qualidades que o

narrador descreveu em Ciro seratildeo exemplificadas (Cirop 131-1427)144 A narrativa eacute

composta de diferentes cenas principalmente banquetes com diaacutelogos raacutepidos nos

quais Ciro interage com diversas personagens e ldquo[] dessa forma temos por assim

dizer uma visatildeo completa do ambiente social de Cirordquo145 (DUE 1989 p151 traduccedilatildeo

nossa)

Quando sua matildee resolve retornar Ciro decide permanecer na casa do avocirc pois

ali poderia se instruir em conhecimentos diferentes dos de seus pares persas A

separaccedilatildeo da casa paterna aqui revela-se mais como a separaccedilatildeo da cultura paterna do

que propriamente um afastamento da custoacutedia do pai uma vez que o avocirc substitui social

e psicologicamente a figura paterna

Ciro na Meacutedia desenvolveraacute habilidades tanto teacutecnicas principalmente na arte

da equitaccedilatildeo e da caccedila quanto sociais e apreenderaacute a conviver com as pessoas de modo

mais harmocircnico controlando suas paixotildees Eacute instrutivo que no primeiro jantar com o

144 Na primeira descriccedilatildeo que Xenofonte faz de Ciro ele enfatiza suas qualidades inatas Segundo o narrador Ciro era por natureza φιλανθρωπότατος (amante da bondade) φιλομαθέστατος (amante do aprender) e φιλοτιμότατος (amante das honras) Em seguida estabelece que as qualidades que o sistema educacional persa enfatiza satildeo a διχαιοσύνε (justiccedila) χάρις (gratidatildeo) σωφροσύνε (temperanccedila) πείθεσται (obediecircncia) 145 No Original in this way we get so to speak a full picture of Cyrusrsquo social environment (DUE 1989 p151)

113

seu avocirc quando ainda estava a matildee presente Ciro uma crianccedila presunccedilosa faz um

sem-fim de comentaacuterios a respeito da cultura meda principalmente a respeito do luxo

das roupas e da alimentaccedilatildeo meda os quais muito divertem mas tambeacutem constrangem

os participantes do banquete

Nesses comentaacuterios ele se distingue como persa dos medos pela sophrosyne

moderaccedilatildeo que segundo Due (1989 p170) natildeo eacute um termo particularmente

caracteriacutestico do seacuteculo IV aC mas uma das mais tiacutepicas virtudes gregas No diaacutelogo

em questatildeo Ciro relaciona a temperanccedila com os atos de beber e comer poreacutem a palavra

carrega semanticamente o sentido de abstinecircncia de prazeres ἡδονῶν (edonon) de

modo geral Os medos na visatildeo de Ciro corrompem-se com a mesa farta de comidas e

bebidas e a principal consequecircncia disso eacute no seu entender uma espeacutecie de

carnavalizaccedilatildeo das posiccedilotildees sociais

Por Zeus pois via vos cambaleando o corpo e o juiacutezo Primeiramente o que natildeo permites a noacutes as crianccedilas fazer voacutes mesmos o faziam Todos gritavam ao mesmo tempo e nada entendiacuteeis uns dos outros cantaacuteveis de modo muito risiacutevel e natildeo ouvindo com atenccedilatildeo o que cantaacuteveis julgaacuteveis cantar nobremente cada um deles falava de sua proacutepria forccedila em seguida se levantassem para danccedilar natildeo soacute natildeo danccedilavam no ritmo mas nem conseguiam endireitar-se Tu esqueceste-te totalmente de que tu eras o rei e os outros de que tu eras o governante pois nesse momento eu ao menos pela primeira vez entendi que isso com efeito era a igualdade de expressatildeo o que voacutes praticaacuteveis entatildeo Ao menos jamais voacutes vos calaacuteveis146 (Cirop 13 10)

A loquacidade de Ciro que por causa desses comentaacuterios ldquonatildeo revelava

temeridade mas inocecircncia e ternura de sorte que se desejava ainda mais ouvi-lo do que

estar presente em silecircnciordquo (Cirop 14 3) aos poucos agrave medida que ele crescia apaga-

se de seu comportamento puacuteblico Assim

[4] Conforme o tempo fazia-o progredir no tamanho para a hora de tornar-se adolescente com isso servia-se das palavras mais raramente e da voz mais suavemente pois ficava cheio de vergonha a ponto de

146 No original ὅτι νὴ Δί᾽ ὑμᾶς ἑώρων καὶ ταῖς γνώμαις καὶ τοῖς σώμασι σφαλλομένους

πρῶτον μὲν γὰρ ἃ οὐκ ἐᾶτε ἡμᾶς τοὺς παῖδας ποιεῖν ταῦτα αὐτοὶ ἐποιεῖτε πάντες μὲν γὰρ

ἅμα ἐκεκράγειτε ἐμανθάνετε δὲ οὐδὲν ἀλλήλων ᾔδετε δὲ καὶ μάλα γελοίως οὐκ

ἀκροώμενοι δὲ τοῦ ᾁδοντος ὠμνύετε ἄριστα ᾁδειν λέγων δὲ ἕκαστος ὑμῶν τὴν ἑαυτοῦ

ῥώμην ἔπειτ᾽ εἰ ἀνασταίητε ὀρχησόμενοι μὴ ὅπως ὀρχεῖσθαι ἐν ῥυθμῷ ἀλλ᾽ οὐδ᾽

ὀρθοῦσθαι ἐδύνασθε ἐπελέλησθε δὲ παντάπασι σύ τε ὅτι βασιλεὺς ἦσθα οἵ τε ἄλλοι ὅτι σὺ

ἄρχων τότε γὰρ δὴ ἔγωγε καὶ πρῶτον κατέμαθον ὅτι τοῦτ᾽ ἄρ᾽ ἦν ἡ ἰσηγορία ὃ ὑμεῖς τότ᾽

ἐποιεῖτε οὐδέποτε γοῦν ἐσιωπᾶτε (Cirop 1310)

114

corar quando se encontrava com os mais velhos e natildeo mais como um cachorrinho jogava-se sobre todos conduzindo-se com semelhante fogosidade Assim de um lado era mais circunspecto de outro nas reuniotildees era inteiramente gracioso147 (Cirop 144)

Esse comportamento estouvado vai dando lugar a um comportamento mais

circunspeto que chega mesmo a preocupar o proacuteprio Ciro

Mas natildeo por Zeus eu natildeo sei que homem eu me tornei pois natildeo sou capaz de falar e olhar o meu avocirc como podia antes Se progredir desse modo temo tornar-me completamente indeciso e insensato e quando era crianccedila eu parecia ser extraordinariamente haacutebil no falar148 (Cirop 1412)

Ciro revela a autoconsciecircncia de seu comportamento quando eacute instigado pelos

colegas a pedir em favor deles que Astiacuteages permita que eles saiam para caccedilar Uma

vez que Ciro jaacute mais maduro percebe os limites que se impotildeem entre os homens nas

relaccedilotildees sociais e natildeo mais pode ser o ldquofalastratildeordquo da infacircncia sente a necessidade de

maquinar um meio de convencer o avocirc149

O nosso interesse por ora eacute verificar a evoluccedilatildeo do comportamento de Ciro se

em um primeiro momento ele eacute loquaz falando abertamente o que pensa e sente a

partir da evoluccedilatildeo de seu caraacuteter ele passa a buscar estrateacutegias discursivas mais

complexas para conseguir a persuasatildeo de seu interlocutor O resultado desta

transformaccedilatildeo eacute um orador eficiente e capaz de conduzir as massas como nenhum outro

liacuteder

Haacute aleacutem disso outras experiecircncias fundamentais que vatildeo caracterizando Ciro

na juventude como imaturo e demedido e que serviratildeo justamente de exemplo para o

proacuteprio Ciro aprender a controlar-se

147 No original ὡς δὲ προῆγεν αὐτὸν ὁ χρόνος σὺν τῷ μεγέθει εἰς ὥραν τοῦ πρόσηβον

γενέσθαι ἐν τούτῳ δὴ τοῖς μὲν λόγοις μανοτέροις ἐχρῆτο καὶ τῇ φωνῇ ἡσυχαιτέρᾳ αἰδοῦς

δ᾽ ἐνεπίμπλατο ὥστε καὶ ἐρυθραίνεσθαι ὁπότε συντυγχάνοι τοῖς πρεσβυτέροις καὶ τὸ

σκυλακῶδες τὸ πᾶσιν ὁμοίως προσπίπτειν οὐκέθ᾽ ὁμοίως προπετὲς εἶχεν οὕτω δὴ

ἡσυχαίτερος μὲν ἦν ἐν δὲ ταῖς συνουσίαις πάμπαν ἐπίχαρις (Cirop 144) 148 No original ἀλλὰ μὰ τὸν Δία ἔφη ἐγὼ μὲν οὐκ οἶδ᾽ ὅστις ἄνθρωπος γεγένημαι οὐδὲ γὰρ

οἷός τ᾽ εἰμὶ λέγειν ἔγωγε οὐδ᾽ ἀναβλέπειν πρὸς τὸν πάππον ἐκ τοῦ ἴσου ἔτι δύναμαι ἢν δὲ

τοσοῦτον ἐπιδιδῶ δέδοικα ἔφη μὴ παντάπασι βλάξ τις καὶ ἠλίθιος γένωμαι παιδάριον δ᾽

ὢν δεινότατος λαλεῖν ἐδόκουν εἶναι (Cirop 1412) 149 Gera (1993 p32-33) ao analisar essa passagem Cirop 14 13-14 diz que o recurso estiliacutestico oratoacuterio usado por Ciro assemelha-se ao recurso utilizado por Soacutecrates tanto nas Memoraacuteveis quanto no Econocircmico iniciar com frases hipoteacuteticas para depois a partir da analogia falar diretamente

115

A primeira destas experiecircncias acontece na primeira caccedila fora dos limites do

palaacutecio do avocirc em campo aberto Acompanhado de seu tio Ciaxares Ciro eacute levado pela

excitaccedilatildeo da caccedila e desrespeitando as ordens do tio se arrisca demasiadamente para

caccedilar um javali Ainda que tenha matado o javali seu tio jaacute naquele momento ldquo[]

certamente o repreendia vendo a grande imprudecircncia Ciro apesar de ser repreendido

pedia tudo quanto ele obtivera e a permissatildeo de levar essas coisas para dar ao avocircrdquo150

(Cirop 14 9) Obtendo a permissatildeo do tio leva o javali ao avocirc crente de que isso o

faraacute feliz poreacutem o velho responde

Filho eu recebo com prazer tudo quanto tu me daacutes mas de fato natildeo preciso de nada destas coisas para tu te arriscares151 (Cirop 14 10)

Esta admoestaccedilatildeo ressoa em outro comentaacuterio

Que coisa agradaacutevel seria se por causa de um pedaccedilo de carne eu viesse a perder o filho da minha filha152 (Cirop 14 13)

A segunda experiecircncia (Cirop 14 16-28) se daacute quando Ciro ainda entre os

medos toma parte em sua primeira batalha O priacutencipe Assiacuterio desejou para comemorar

suas bodas caccedilar na fronteira entre a Assiacuteria e a Meacutedia Levando numerosa infantaria e

cavalaria ambicionou saquear a terra dos medos causando com isso uma batalha entre

as naccedilotildees Quando Astiacuteages e Ciaxares partiram para a batalha Ciro escondido partiu

junto A participaccedilatildeo de Ciro nessa batalha seraacute fundamental pois ele planejaraacute o modo

de agir dos soldados medos revelando portanto sua natureza belicosa Poreacutem

Como um catildeo de boa raccedila mas inexperiente imprudentemente vai de encontro ao javali assim tambeacutem Ciro arremetia apenas tentando golpear quem ele alcanccedilasse natildeo se precavendo de nenhuma outra coisa Os inimigos quando viram os seus sofrendo avanccedilaram as tropas a fim de que interrompessem a perseguiccedilatildeo ao verem que eles estavam se lanccedilando adiante153 (Cirop 14 21)

150 No original [9] ἐνταῦθα μέντοι ἤδη καὶ ὁ θεῖος αὐτῷ ἐλοιδορεῖτο τὴν θρασύτητα ὁρῶν ὁ

δ᾽ αὐτοῦ λοιδορουμένου ὅμως ἐδεῖτο ὅσα αὐτὸς ἔλαβε ταῦτα ἐᾶσαι εἰσκομίσαντα δοῦναι

τῷ πάππῳ (Cirop 149) 151 No original ἀλλ᾽ ὦ παῖ δέχομαι μὲν ἔγωγε ἡδέως ὅσα σὺ δίδως οὐ μέντοι δέομαί γε

τούτων οὐδενός ὥστε σε κινδυνεύειν (Cirop 1410) 152 No original χαρίεν γάρ ἔφη εἰ ἕνεκα κρεαδίων τῇ θυγατρὶ τὸν παῖδα

ἀποβουκολήσαιμι(Cirop 1413) 153 No original ὥσπερ δὲ κύων γενναῖος ἄπειρος ἀπρονοήτως φέρεται πρὸς κάπρον οὕτω

καὶ ὁ Κῦρος ἐφέρετο μόνον ὁρῶν τὸ παίειν τὸν ἁλισκόμενον ἄλλο δ᾽ οὐδὲν προνοῶν οἱ δὲ

πολέμιοι ὡς ἑώρων πονοῦντας τοὺς σφετέρους προυκίνησαν τὸ στῖφος ὡς παυσομένους

τοῦ διωγμοῦ ἐπεὶ σφᾶς ἴδοιεν προορμήσαντας (Cirop 1421)

116

Em vista disso Astiacuteages apoacutes o fim da batalha natildeo sabia o que dizer a Ciro

ldquo[] pois de um lado reconhecia que ele era o responsaacutevel pelo feito mas de outro

percebia que ele fora arrebatado pela coragem154rdquo (Cirop 14 24) Aleacutem disso Ciro eacute

visto rodeando com seu cavalo os mortos da batalha contemplando-os Com muito

custo arrancaram-no de laacute e ao ver o semblante do avocirc Ciro escondeu-se atraacutes dos que

o conduziam (Cirop 14 24)

O silecircncio de Astiacuteages e a sua admoestaccedilatildeo apoacutes a caccedila satildeo instrutivos para Ciro

que revendo suas accedilotildees pode refletir o quanto desagradou ao avocirc pelas accedilotildees

intempestivas que colocaram sua proacutepria vida em risco Desse modo como mentor de

Ciro nestas passagens Astiacuteages provoca uma mudanccedila vital em sua personalidade sem

a qual talvez Ciro teria um fim diverso provavelmente o mesmo fim de Creso e dos

reis baacuterbaros representados por Heroacutedoto

Essas passagens portanto mostram que haacute uma evoluccedilatildeo na construccedilatildeo da

personagem e que Ciro natildeo nasce pronto como modelo de liacuteder que viraacute a ser no final da

obra A importacircncia dessa passagem na tessitura narrativa eacute que Ciro a partir disso natildeo

mais se arriscaraacute nem arriscaraacute os seus aliados gratuitamente no campo de batalha

Conter a impetuosidade do menino eacute fundamental para sua trajetoacuteria posterior e este

abrandamento de sua paixatildeo soacute eacute conseguido por meio das admoestaccedilotildees do seu avocirc-

mentor Astiacuteages

4322 Cambises mentor de Ciro (Cirop 16)

O segundo mentor de Ciro na Ciropedia eacute seu pai Cambises O diaacutelogo entre

Ciro e Cambises se daacute no fim do primeiro livro quando o pai escolta o filho ateacute a

Media para este comandar o exeacutercito persa Antes o narrador nos informa que de

volta agrave Peacutersia Ciro continuou sua educaccedilatildeo na instituiccedilatildeo estatal frequentando as

classes determinadas e cumprindo as tarefas estabelecidas

[1] Ciro entatildeo tendo voltado a Peacutersia dizem um ano ainda permaneceu na classe dos meninos A princiacutepio os meninos zombavam dele pois voltara habituado agrave vida de prazeres na Meacutedia Quando entatildeo o viram comendo e bebendo agradavelmente como eles e se alguma vez na festa havia banquete perceberam que ele

154 No original [] αἴτιον μὲν ὄντα εἰδὼς τοῦ ἔργου μαινόμενον δὲ γιγνώσκων τῇ τόλμῃ (Cirop 1424)

117

oferecia mais da sua proacutepria porccedilatildeo do que pedia mais e aleacutem dessas coisas viram que ele era superior a eles mesmos a partir de entatildeo os da sua idade voltaram a respeitaacute-lo Depois que concluiu essa educaccedilatildeo imediatamente foi para a classe dos efebos e tambeacutem nessa parecia ser superior ocupando-se das coisas que eram necessaacuterias suportar e reverenciando os mais velhos e obedecendo aos chefes155 (Cirop 15 1)

Haacute um salto temporal na narrativa O rei dos Assiacuterios tomado de ambiccedilatildeo

forma uma alianccedila com os povos vizinhos contra os medos e persas acusados de se

fortalecerem para dominar a regiatildeo Astiacuteages jaacute era falecido e Ciaxares que se tornara

rei dos medos pediu auxiacutelio a Ciro

Antes de iniciar a guerra o narrador nos apresenta duas cenas cuja leitura mostra

a amplitude do papel de seu pai como mentor Na primeira cena Ciro reuacutene seu exeacutercito

e discursa aos seus soldados discurso no qual busca criar a confianccedila de seus

subordinados pelo seguinte argumento

[] jaacute que na verdade temos consciecircncia de que noacutes desde a infacircncia tendo comeccedilado sendo atletas das obras boas e belas nos lanccedilaremos contra os inimigos os quais eu sei com clareza satildeo amadores para combater contra noacutes Pois esses ainda natildeo satildeo combatentes muito fortes se de um lado lanccedilam flechas e dardos e cavalgam com conhecimento de outro quando for necessaacuterio sofrer fadigas nisso eles seratildeo inferiores pois satildeo pessoas sem praacutetica em relaccedilatildeo aos trabalhos fatigantes Quando for necessaacuterio natildeo dormir seratildeo vencidos pelo sono pois eles satildeo inexperientes com relaccedilatildeo a isso nem os que acaso satildeo haacutebeis nisso pois esses satildeo ignorantes no como eacute necessaacuterio agir com os aliados e com os inimigos e eacute evidente que esses tiveram seus principais conhecimentos inabilmente (Cirop 15 11)

A confianccedila que Ciro projeta em seu exeacutercito adveacutem justamente da consciecircncia

de que sua educaccedilatildeo cuja finalidade era a formaccedilatildeo de soldados seria determinante

para distinguir os vencedores dos perdedores E podemos dizer o fato de os inimigos

natildeo serem educados na moderaccedilatildeo os tornaria fracos diante das fadigas da guerra agraves

quais os persas jaacute estavam acostumados educados nela a vida toda 155 No original ἀλλ᾽ ἐπείπερ σύνισμεν ἡμῖν αὐτοῖς ἀπὸ παίδων ἀρξάμενοι ἀσκηταὶ ὄντες τῶν

καλῶν κἀγαθῶν ἔργων ἴωμεν ἐπὶ τοὺς πολεμίους οὓς ἐγὼ σαφῶς ἐπίσταμαι ἰδιώτας

ὄντας ὡς πρὸς ἡμᾶς ἀγωνίζεσθαι οὐ γάρ πω οὗτοι ἱκανοί εἰσιν ἀγωνισταί οἳ ἂν τοξεύωσι

καὶ ἀκοντίζωσι καὶ ἱππεύωσιν ἐπιστημόνως ἢν δέ που πονῆσαι δέῃ τούτῳ λείπωνται ἀλλ᾽

οὗτοι ἰδιῶταί εἰσι κατὰ τοὺς πόνους οὐδέ γε οἵτινες ἀγρυπνῆσαι δέον ἡττῶνται τούτου

ἀλλὰ καὶ οὗτοι ἰδιῶται κατὰ τὸν ὕπνον οὐδέ γε οἱ ταῦτα μὲν ἱκανοί ἀπαίδευτοι δὲ ὡς χρὴ

καὶ συμμάχοις καὶ πολεμίοις χρῆσθαι ἀλλὰ καὶ οὗτοι δῆλον ὡς τῶν μεγίστων

παιδευμάτων ἀπείρως ἔχουσιν (Cirop 1511)

118

Em seguida Ciro parte para junto do pai momento em que se daacute o referido

diaacutelogo entre filho e pai no qual Cambises instrui corrige e guia Ciro Segundo Gera

(1993 p50) os meacutetodos utilizados por Cambises satildeo similares aos de Soacutecrates nas

Memoraacuteveis poreacutem a autora filia essa longa conversa com o gecircnero de instruccedilatildeo moral

dos ὐποθέκαι (ypothekai) escritos que inicialmente em verso apresentam um locutor

que exorta e aconselha Segundo a autora haacute nesse gecircnero a tradiccedilatildeo de que um homem

mais velho dirija-se a um mais novo como por exemplo Hesiacuteodo dirigindo-se ao seu

irmatildeo Perses nrsquoOs Trabalhos e os Dias Inicialmente apenas com um locutor o gecircnero

foi inovado ao que parece por Hiacutepias que adaptando-o agrave prosa deu voz agrave segunda

figura desse impliacutecito diaacutelogo o jovem As informaccedilotildees a respeito desse gecircnero satildeo

escassas o certo eacute que nesta cena da Ciropedia o narrador se apaga quase totalmente

mimetizando os locutores do diaacutelogo Ciro e Cambises Em sua participaccedilatildeo o narrador

enquadra o diaacutelogo que seguiraacute e ordena as falas com construccedilotildees do tipo ldquoCiro disserdquo

ldquoCambises disserdquo organizando as locuccedilotildees da personagem e dramatizando a cena

Os temas do diaacutelogo giram em torno das qualidades referidas anteriormente a

temperanccedila a obediecircncia a piedade entre outras uma vez que Cambises retoma

avaliando por meio de perguntas todos os ensinamentos do filho Seria dispendioso

analisar todo o diaacutelogo entre pai e filho porque Ciro se mostra conhecedor de muitos

dos conceitos discutidos O importante na participaccedilatildeo dos mentores natildeo eacute averiguar

aquilo que a personagem sabe mas justamente demonstrar que suas avaliaccedilotildees satildeo

equivocadas Portanto analisaremos apenas as passagens em que Cambises corrige

Ciro

Em Cirop 168 a primeira correccedilatildeo de Cambises justamente retoma o

discurso que Ciro proferira em Cirop 157-14 Quando Ciro reafirma a superioridade

dos persas sobre os inimigos seu discurso se fixa novamente sobre o tema da

moderaccedilatildeo na visatildeo do priacutencipe persa enquanto os inimigos acreditavam que o

governante deve se distinguir dos governados na indolecircncia e no oacutecio os persas

acreditavam que a distinccedilatildeo devia surgir pela providecircncia e amor ao trabalho Sua

comparaccedilatildeo natildeo poupa os proacuteprios medos cuja cultura considerada luxuosa fora

criticada por Ciro no primeiro banquete diante do avocirc Cambises lembra a Ciro poreacutem

que nem sempre a luta dos homens eacute contra outros homens mas sim ldquo[] contra coisas

em si mesmas [πρὸς αὐτὰ τὰ πράγματα] das quais natildeo eacute faacutecil ser superior com

119

desembaraccedilo156rdquo (Cirop 16 9) e que o bom general deve prover todas as coisas

necessaacuterias aos seus soldados Ciro afirma que Ciaxares traraacute provisotildees necessaacuterias para

o exeacutercito poreacutem quando seu pai lhe pergunta se ele sabe o real tamanho das riquezas

de Ciaxares e Ciro nega seu pai lhe pergunta ldquoApesar de tudo confias em coisas

desconhecidasrdquo157 (Cirop 16 9)

Com esse mote Cambises estabeleceraacute que para um bom general eacute necessaacuterio

prever tambeacutem as necessidades futuras e que confiando no incerto o homem pego

desprevenido pelo acaso natildeo teraacute como agir Seguir-se-aacute entatildeo o diaacutelogo com Cambises

e Ciro retomando os pontos essenciais que um general natildeo deve negligenciar as

provisotildees a sauacutede e o fiacutesico dos soldados as estrateacutegias militares a preparaccedilatildeo dos

soldados como incutir ardor na tropa e como conquistar a obediecircncia dos soldados

Para cada um destes pontos as estrateacutegias discursivas satildeo quase sempre as

mesmas Pode-se descrever uma determinada estrutura de argumentaccedilatildeo primeiro

Cambises pergunta a respeito de um desses pontos entatildeo Ciro daacute uma resposta que

Cambises imediatamente revisa marcando os limites do ponto de vista de Ciro Ciro

entatildeo se convence pede ajuda e Cambises daacute conselhos praacuteticos para conseguir realizar

o objetivo Ou seja Cambises como pai mas tambeacutem como mentor evita que Ciro vaacute agrave

batalha com conceitos preestabelecidos e errocircneos O diaacutelogo faz Ciro evoluir passo a

passo agrave medida que aprende a tornar-se um bom general Para exemplificar essa postura

tomaremos o tema da obediecircncia

Apoacutes Cambises admoestaacute-lo a nunca confiar no incerto pois o verdadeiro

comandante planeja tudo antes de seus soldados Ciro revela que o melhor meio de

conseguir a obediecircncia dos homens ldquo[] eacute louvar e honrar o obediente e ao

desobediente desprezar e punir158rdquo (Cirop 16 20) Cambises entatildeo lhe responde

Esse filho eacute o caminho para a obediecircncia forccedilada para uma muito melhor do que essa a obediecircncia voluntaacuteria haacute um caminho muito mais curto Pois os homens obedecem com grande prazer aqueles que consideram mais sensatos nos seus interesses do que eles mesmos159 (Cirop 16 21)

156 No original [hellip] ἀλλὰ πρὸς αὐτὰ τὰ πράγματα ὧν οὐ ῥᾴδιον εὐπόρως περιγενέσθαι (Cirop 169) 157 No original ὅμως δὲ τούτοις πιστεύεις τοῖς ἀδήλοις (Cirop 169) 158 No original [hellip] τὸ τὸν πειθόμενον ἐπαινεῖν τε καὶ τιμᾶν τὸν δὲ ἀπειθοῦντα ἀτιμάζειν τε

καὶ κολάζειν (Cirop 1620) 159 No original [21] καὶ ἐπὶ μέν γε τὸ ἀνάγκῃ ἕπεσθαι αὕτη ὦ παῖ ἡ ὁδός ἐστιν ἐπὶ δὲ τὸ

κρεῖττον τούτου πολύ τὸ ἑκόντας πείθεσθαι ἄλλη ἐστὶ συντομωτέρα ὃν γὰρ ἂν

120

Esse ensinamento marcaraacute toda a conduta militar de Ciro na narrativa e a

clemecircncia dele para com os inimigos se basearaacute neste toacutepico busca de aliados

obedientes pois a puniccedilatildeo garante uma obediecircncia aparente poreacutem no punido sempre

irrompem iacutempetos de vinganccedila Em Heroacutedoto no livro 1 Haacuterpago que natildeo cumpriu a

ordem de Astiacuteages de matar Ciro eacute punido pelo rei medo banqueteando-se com as

carnes do proacuteprio filho Haacuterpago que continuou a viver na corte submisso ao rei quando

observou que Ciro crescera aliou-se a ele para depor Astiacuteages do trono Ciro na

Ciropedia entretanto perdoaraacute seus inimigos e com isso conquistaraacute valiosos aliados

como Tigranes Araspas Goacutebrias Gaacutedatas e Abradatas

Apoacutes estabelecer qual o melhor meio de conseguir obediecircncia Cambises passa a

expressar a verdade de seu ensinamento por meio de siacutemiles o doente obedece com

ardor ao meacutedico o navegante ao piloto aquele que natildeo sabe o caminho confia em quem

sabe Ciro entatildeo pede que o pai lhe ensine a ter a reputaccedilatildeo de saacutebio nas coisas

necessaacuterias para que os homens obedeccedilam a ele jaacute que os homens obedecem melhor

agravequele em quem confiam Cambises lhe responde

Natildeo haacute filho caminho mais curto a respeito das coisas em que desejas parecer ser sensato do que tornar-se de fato sensato a respeito desses assuntos Observando a fundo cada uma das coisas reconheceraacutes que eu digo a verdade Se quiseres natildeo sendo bom agricultor parecer ser bom ou cavaleiro ou meacutedico ou flautista ou qualquer outra coisa imagine quatildeo numerosas coisas a ti seria necessaacuterio maquinar por causa da aparecircncia E se tu persuadires a muitos a te louvares para que obtenhas fama e adquiras bons equipamentos de cada um destes ofiacutecios em um instante seria o embusteiro mas pouco depois quando precisasse oferecer uma prova tu te verias desmascarado e ainda um charlatatildeo160 (Cirop 1622)

Desse modo o que seria de Ciro nas campanhas que se seguiratildeo na narrativa

sem esses conselhos paternos Natildeo seria por certo modelo de virtude de lideranccedila tanto

aos leitores quanto aos proacuteprios personagens que se submetem agraves suas ordens de boa

ἡγήσωνται περὶ τοῦ συμφέροντος ἑαυτοῖς φρονιμώτερον ἑαυτῶν εἶναι τούτῳ οἱ ἄνθρωποι

ὑπερηδέως πείθονται (Cirop 1621) 160 No original Οὐκ ἔστιν ἔφη ὦ παῖ συντομωτέρα ὁδὸς ltἐπὶ τόgt περὶ ὧν βούλει δοκεῖν

φρόνιμος εἶναι ἢ τὸ γενέσθαι περὶ τούτων φρόνιμον καθ ἓν δ ἕκαστον σκοπῶν γνώσῃ ὅτι

ἐγὼ ἀληθῆ λέγω ἢν γὰρ βούλῃ μὴ ὢν ἀγαθὸς γεωργὸς δοκεῖν εἶναι ἀγαθός ἢ ἱππεὺς ἢ

ἰατρὸς ἢ αὐλητὴς ἢ ἄλλ ὁτιοῦν ἐννόει πόσα σε δέοι ἂν μηχανᾶσθαι τοῦ δοκεῖν ἕνεκα καὶ

εἰ δὴ πείσαις ἐπαινεῖν τέ σε πολλούς ὅπως δόξαν λάβοις καὶ κατασκευὰς καλὰς ἐφ

ἑκάστῳ αὐτῶν κτήσαιο ἄρτι τε ἐξηπατηκὼς εἴης ἂν καὶ ὀλίγῳ ὕστερον ὅπου πεῖραν δοίης

ἐξεληλεγμένος ἂν προσέτι καὶ ἀλαζὼν φαίνοιο

121

vontade Sem Cambises como bem observou Tatum (1989 p78) Ciro cometeria os

mesmos erros dos outros deacutespotas Assim o papel de Cambises como mentor eacute

essencial na formaccedilatildeo de Ciro e no seu sucesso como governante Para Tatum (1989)

esta cena ainda fala de como

Harmonia entre pai e filho eacute fundamental para o projeto de um padratildeo eacutetico que participa de toda accedilatildeo de Ciro na Ciropedia O encontro amplamente demonstra porque Cambises merece tal obediecircncia161 (1989 p87 traduccedilatildeo nossa)

Cambises para tornar seu discurso criacutevel utiliza-se de recursos oratoacuterios

precisos O mais significativo eacute a utilizaccedilatildeo de siacutemiles nos quais compara a arte de

governar a alguma outra profissatildeo em especial agrave de agricultor agrave de meacutedico agrave de piloto

agrave do atleta etc Poreacutem uma interessante analogia de Cambises refere-se agrave muacutesica Em

Cirop 1638 ele diz

[38] Eacute necessaacuterio por isso que tu sejas um amante do aprender todas as coisas natildeo para te servires soacute das coisas que aprendestes mas tambeacutem para seres tu um inventor de artifiacutecios contra os inimigos Como os muacutesicos que natildeo se servem apenas das coisas que aprenderam mas tambeacutem procuram criar outras novas E de um lado nas artes musicais as peccedilas novas e exuberantes satildeo muito honradas de outro as novas maquinaccedilotildees satildeo muito mais honradas na guerra pois com essas pode-se melhor enganar os inimigos162 (Cirop 1638)

Ampliando o sentido de muacutesica agrave poeacutetica de um modo geral ao artista eacute

necessaacuterio tanto o conhecimento das obras que lhe precederam quanto agrave inovaccedilatildeo de

sua proacutepria escrita Interpretando esse comentaacuterio como uma passagem metaliteraacuteria

parece-nos que Xenofonte conscientemente imagina sua obra como nova nova no

sentido de conhecer o que foi produzido anteriormente e inovadora a partir do jogo de

influecircncias Como viemos tentando demonstrar nesse estudo acreditamos na novidade

estrutural instituiacuteda pela obra de Xenofonte e este comentaacuterio de Cambises parece

confirmar a consciecircncia de Xenofonte sobre o papel do artista

161 No Original Harmony between father and son is basic to the design of the ethical pattern that informs every action of Cyrus in the Cyropaedia The encounter amply demonstrates why Cambyses merits such obedience (TATUM 1989 p87) 162 No original [38] δεῖ δή ἔφη φιλομαθῆ σε τούτων ἁπάντων ὄντα οὐχ οἷς ἂν μάθῃς τούτοις

μόνοις χρῆσθαι ἀλλὰ καὶ αὐτὸν ποιητὴν εἶναι τῶν πρὸς τοὺς πολεμίους μηχανημάτων

ὥσπερ καὶ οἱ μουσικοὶ οὐχ οἷς ἂν μάθωσι τούτοις μόνον χρῶνται ἀλλὰ καὶ ἄλλα νέα

πειρῶνται ποιεῖν καὶ σφόδρα μὲν καὶ ἐν τοῖς μουσικοῖς τὰ νέα καὶ ἀνθηρὰ εὐδοκιμεῖ πολὺ

δὲ καὶ ἐν τοῖς πολεμικοῖς μᾶλλον τὰ καινὰ μηχανήματα εὐδοκιμεῖ ταῦτα γὰρ μᾶλλον καὶ

ἐξαπατᾶν δύναται τοὺς ὑπεναντίους (Cirop 1638)

122

Cambises eacute o que Detienne ([sd]) chama de ldquomestre da verdaderdquo Natildeo eacute o

adivinho o poeta e o rei da justiccedila do mundo arcaico que possuiacuteam o dom de espalhar a

verdade pois eram agraciados pelas Musas Eacute o ldquomestre da verdaderdquo de conhecimentos

praacuteticos que promove a educaccedilatildeo ao transportar o educando para o caminho da

perfeiccedilatildeo Ciro no final da narrativa torna-se tambeacutem um mestre da verdade pois

podendo olhar seu passado de sucessos torna-se possuidor de um conhecimento que

deve passar aos seus filhos no leito de morte (Cirop VIII7) justamente como seu pai

fizera na sua juventude (Cirop I6)

Cambises apareceraacute novamente no final da obra (Cirop VIII5) quando Ciro

apoacutes a captura da Babilocircnia e do fim da guerra com os Assiacuterios retorna agrave Peacutersia levando

presentes para seu pai e sua matildee Cambises preparando a Ciro uma festa de boas vindas

estritamente formal convoca uma assembleia para qual discursa o quanto essa

assembleia deve a Ciro de quantas riquezas graccedilas a ele agora podem desfrutar e

quanto ele ldquotornou-vos oacute Persas gloriosos a todos os homens e honrados em toda a

Aacutesiardquo163 (Cirop LVIII523 traduccedilatildeo nossa) No entanto mesmo apoacutes grandes

demonstraccedilotildees de admiraccedilatildeo Cambises natildeo deixa de aconselhar tanto a assembleia

quanto o proacuteprio filho

Se tu Ciro excitado pelas daacutedivas presentes por cobiccedila tentares governar os persas do mesmo modo que os outros povos ou voacutes cidadatildeos invejando seu poder tentares derrubaacute-lo do poder sabei bem que sereis obstaacuteculos uns aos outros a muitos bens [25] Portanto para que isso natildeo aconteccedila e sim boas coisas eu julgo bom que voacutes sacrifiqueis em comum e com os deuses tomados como testemunhas faccedilam um trato de que tu Ciro se algueacutem fazer expediccedilatildeo contra o territoacuterio persa ou tentar destruir as leis dos persas viraacutes em socorro com toda a forccedila e voacutes oacute Persas se algueacutem ou empreender derrubar Ciro do poder ou se algum dos que estatildeo em seu poder se rebelar vireis em socorro de voacutes mesmos e de Ciro conforme aquilo que ele solicitar [26] Enquanto eu viver a soberania na Peacutersia seraacute minha quando eu morrer eacute evidente que seraacute de Ciro enquanto ele viver (CiropVIII524-26)164

163 No original εὐκλεεῖς μὲν ὑμᾶς ὧ Πέρσαι ἐν πᾶσιν ἀνθρώποις ἐποίησεν ἐντίμους δrsquo ἐν τῇ

Ἀσίᾳ πάσῃ (Cirop LVIII523) 164 Traduccedilatildeo nossa No original εἰ δὲ ἢ σύ ὦ Κῦρε ἐπαρθεὶς ταῖς παρούσαις τύχαις

ἐπιχειρήσεις καὶ Περσῶν ἄρχειν ἐπὶ πλεονεξίᾳ ὥσπερ τῶν ἄλλων ἢ ὑμεῖς ὦ πολῖται

φθονήσαντες τούτῳ τῆς δυνάμεως καταλύειν πειράσεσθε τοῦτον τῆς ἀρχῆς εὖ ἴστε ὅτι

ἐμποδὼν ἀλλήλοις πολλῶν καὶ ἀγαθῶν ἔσεσθε [25] ὡς οὖν μὴ ταῦτα γίγνηται ἀλλὰ

τἀγαθά ἐμοὶ δοκεῖ ἔφη θύσαντας ὑμᾶς κοινῇ καὶ θεοὺς πιμαρτυραμένους συνθέσθαι σὲ

μέν ὦ Κῦρε ἤν τις ἐπιστρατεύηται χώρᾳ Περσίδι ἢ Περσῶν νόμους διασπᾶν πειρᾶται

βοηθήσειν παντὶ σθένει ὑμᾶς δέ ὦ Πέρσαι ἤν τις ἢ ἀρχῆς Κῦρον ἐπιχειρῇ καταπαύειν ἢ

ἀφίστασθαί τις τῶν ὑποχειρίων βοηθήσειν καὶ ὑμῖν αὐτοῖς καὶ Κύρῳ καθ ὅ τι ἂν οὗτος

123

A questatildeo que se oferece nessa passagem eacute complexa e exige algum comentaacuterio

Primeiramente fica evidenciado que haacute dois poderes estabelecidos o de Cambises na

Peacutersia e o de Ciro no resto do Impeacuterio Contudo o poder de Ciro estaacute submetido ao de

Cambises ao qual Ciro como filho deve ainda obedecer Para Tatum (1989 p77-78)

Cambises em seu discurso estaacute determinado a estabelecer que ele natildeo Ciro eacute o rei dos

persas e Ciro por maior que seja o seu nome eacute ainda seu filho Aleacutem disso ldquoCiro eacute

ainda o filho de seu pai ainda capaz de ser ensinado por elerdquo165 (TATUM 1989 p80

traduccedilatildeo nossa) A educaccedilatildeo de Ciro e sua identidade como pessoa dependem desse

laccedilo cuja cena mostra que eacute extremamente forte (TATUM 1989 p80) Ademais esse

retorno de Cambises revela a eacutetica paternalista que sublinha a obra e o proacuteprio conceito

de educaccedilatildeo por ela expressa Dessa forma Cambises que aparecera antes da guerra

contra os assiacuterios ao retornar apoacutes essa guerra enquadra a narrativa militar de Ciro que

compreende os livros II a VIII Essa estrutura eacute chamada por Tatum (1989) de ring

composition a narrativa termina onde ela comeccedila

Evidencia-se portanto o papel do pai Cambises como mentor de Ciro Ele

com seus ensinamentos impede que Ciro seja acometido pela hybris e torne-se

desmedido e desvairado com seu poder Due (1989) diz que os ensinamentos paternos

no livro I seratildeo retomados durante todo o resto da obra sendo figurativizados e que

esse diaacutelogo eacute uma espeacutecie de siacutentese de todo o romance os problemas ali colocados

seratildeo os problemas resolvidos por Ciro Tatum (1989 p68) acrescenta que natildeo soacute Ciro

eacute o monarca ideal como tambeacutem as personagens que o rodeiam satildeo suacuteditos ideais

porque colocam problemas a ele que soacute um monarca ideal poderia resolver

A questatildeo da plena educaccedilatildeo que a relaccedilatildeo de Ciro com outros personagens

garante tanto a Ciro quanto ao leitor eacute interessante poreacutem afasta-se do objetivo desse

capiacutetulo No entanto como Tatum (1989 p68) observa eacute necessaacuterio lembrar que o

estatuto das personagens secundaacuterias na Ciropedia eacute duplo de um lado satildeo

personagens proacuteprias bem caracterizadas produtos da imaginaccedilatildeo de Xenofonte e de

outro estruturas que formam a educaccedilatildeo ideal de Ciro

ἐπαγγέλλῃ καὶ ἕως μὲν ἂν ἐγὼ ζῶ ἐμὴ γίγνεται ἡ ἐν Πέρσαις βασιλεία ὅταν δ ἐγὼ

τελευτήσω δῆλον ὅτι Κύρου ἐὰν ζῇ 165 No original Cyrus is still his fatherrsquos child still capable of being taught by him (TATUM 1989 p80)

124

Analisamos os elementos estruturais que compotildeem a archaica do romance de

formaccedilatildeo ou seja aqueles elementos constitutivos e determinantes na caracterizaccedilatildeo do

gecircnero Percebemos a partir da anaacutelise que a combinaccedilatildeo destes elementos efetua a

evoluccedilatildeo da personagem principal da narrativa O Ciro do iniacutecio da narrativa eacute diverso

do Ciro do fim da narrativa e essa diferenccedila se deve agrave formaccedilatildeo de Ciro que por meio

da instituiccedilatildeo e da participaccedilatildeo de mentores torna-se no fim da obra aleacutem do liacuteder

ideal um mestre da verdade capaz de ensinar pela autoridade da sua vida Portanto a

personagem natildeo eacute estaacutetica mas evolutiva

Segundo Due (1989 p162) descriccedilotildees de crianccedilas na Literatura Grega natildeo satildeo

muito frequentes e isso justifica os esforccedilos de Xenofonte em descrever o

desenvolvimento de Ciro de forma realista Assim observa-se que a personalidade de

Ciro sofre uma determinada evoluccedilatildeo que sinalizaraacute o aperfeiccediloamento de suas

qualidades tanto as inatas quanto as desenvolvidas nas instituiccedilotildees educacionais Sem

este aperfeiccediloamento o destino do heroacutei correria por cursos outros que satildeo

exemplificados pelo destino traacutegico de outras personagens Concluiacutemos portanto que

do ponto de vista da construccedilatildeo da personagem ela natildeo eacute estaacutetica como as personagens

dos outros tipos de romance inclusive o biograacutefico poreacutem se enquadra na definiccedilatildeo de

Bakhtin (2010 p235) para o romance de formaccedilatildeo

Figura 3 Ciro comandando o exeacutercito persa Fonte httposaquemenidasblogspotcom200912ciro-ii-o-grande-559-530-ac-parte-iiihtml

125

44 O grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico

Outra caracteriacutestica segundo Bakhtin (2010 p223) que diferencia o romance

de formaccedilatildeo dos outros tipos de romance eacute o tipo de relaccedilatildeo da ficccedilatildeo com o tempo

histoacuterico real pois eacute esta caracteriacutestica que garante a modificaccedilatildeo da imagem do homem

nos diversos tipos de romances Segundo o teoacuterico russo na maior parte dos romances a

imagem do heroacutei eacute preestabelecida e imutaacutevel

Na maioria das variantes do gecircnero romanesco o enredo a composiccedilatildeo e toda a estrutura do romance postulam a imutabilidade a firmeza da imagem do heroacutei a unidade estaacutetica que ele representa (BAKHTIN2010 p236)

No entanto na modalidade romance de formaccedilatildeo o heroacutei eacute dinacircmico e variaacutevel

e as mudanccedilas pelas quais ele passa adquirem um novo estatuto na estrutura do enredo

do romance ldquo[] que seraacute por conseguinte repensado e reestruturado O tempo se

introduz no interior do homem impregna-lhe toda a imagem modificando a

importacircncia substancial de seu destino e de sua vidardquo (BAKHTIN 2010 p237)

O grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico entretanto varia e esta variaccedilatildeo

delimita o enfoque de formaccedilatildeo do homem com isso Bakhtin organiza o romance de

formaccedilatildeo em cinco tipos

a-) no primeiro tipo o romance ciacuteclico de tipo puro ldquo[] o tempo se presta a

uma representaccedilatildeo do desenrolar da vida humana []rdquo (BAKHTIN 2010 p238) e as

modificaccedilotildees internas do homem correspondem ao proacuteprio envelhecimento natural

b-) o segundo tipo de temporalidade ciacuteclica consiste na representaccedilatildeo de um

desenvolvimento tiacutepico no qual o mundo e a vida satildeo assimilados a uma experiecircncia

pela qual ldquo[] todo os homens devem passar para retirar delas o mesmo resultado[]rdquo

(BAKHTIN 2010 p238)

c-) o terceiro tipo eacute representado pelo tempo biograacutefico no qual estaacute ausente o

elemento ciacuteclico Desse modo o heroacutei atravessa fases individuais e sua transformaccedilatildeo

ldquo[] eacute o resultado de um conjunto de circunstacircncias de acontecimentos de atividades

de empreendimentos que modificam a vida []rdquo (BAKHTIN 2010 p239)

d-) a Ciropedia de Xenofonte corresponde ao quarto tipo de romance de

formaccedilatildeo ldquo[] o romance didaacutetico-pedagoacutegico que se fundamenta numa ideia

126

pedagoacutegica determinada concebida com maior ou menor amplitude []rdquo (BAKHTIN

2010 p239)

e-) no quinto tipo ldquo[] a evoluccedilatildeo do homem eacute indissoluacutevel da evoluccedilatildeo

histoacuterica []rdquo (BAKHTIN 2010 p239) por isso evolui ao mesmo tempo que o mundo

Note-se que ao tratar do quarto tipo de romance de formaccedilatildeo Bakhtin natildeo

analisa o tempo em si e sua assimilaccedilatildeo por esses romances-pedagoacutegicos Poreacutem na

sequecircncia do seu artigo Bakhtin enquadra estes quatro primeiros tipos como romances

cujo tempo histoacuterico eacute fechado Segundo Bakhtin (2010 p239)

O que este mundo concreto e estaacutevel [dos romances dos quatro primeiros tipos] esperava do homem em sua atualidade era que este se adaptasse conhecesse as leis da vida e se submetesse a elas Era o homem que se formava e natildeo o mundo o mundo pelo contraacuterio servia de ponto de referecircncia para o homem em desenvolvimento [] A proacutepria noccedilatildeo de mundo servindo de experiecircncia de escola era muito produtiva no romance de educaccedilatildeo

Jaacute o romance de formaccedilatildeo do quinto tipo o tipo realista o heroacutei se situa entre

duas eacutepocas e com o tempo histoacuterico em evoluccedilatildeo as leis da vida natildeo satildeo determinadas

e estaacuteticas mas vatildeo se formando paralelamente agrave formaccedilatildeo do indiviacuteduo Poreacutem ldquoEacute

evidente que o romance de formaccedilatildeo de quinto tipo natildeo pode ser compreendido

independentemente dos quatro outros tipos de romance de formaccedilatildeo []rdquo (BAKHTIN

2010 p241)

O tempo narrativo do romance de formaccedilatildeo realista portanto eacute um momento de

transiccedilatildeo do tempo histoacuterico situado entre duas eacutepocas a que passou e a que vai

nascendo com seus valores e ideais Para Koselleck (2006 p14) o conceito de tempo

histoacuterico nasce com a modernidade principalmente apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa jaacute que

as diversas revoluccedilotildees que a Revoluccedilatildeo Francesa desencadeou irromperam uma nova

percepccedilatildeo temporal Neste novo tempo raacutepido e incerto o tempo histoacuterico seria uma

dimensatildeo dinacircmica em que passado presente e futuro natildeo se separariam mas se

fundiriam ou nas palavras de Koselleck (2006 p15) ldquoA maneira pela qual em um

determinado tempo presente a dimensatildeo temporal do passado entra em relaccedilatildeo de

reciprocidade com a dimensatildeo temporal do futurordquo

Esta visatildeo de Koselleck natildeo estaacute dissociada da visatildeo de Bakhtin Ao analisar o

romance de Goethe Bakhtin chama a atenccedilatildeo para o fato de que para Goethe o

contemporacircneo ldquo[] tanto na natureza como na vida humana se manifesta como uma

diacronia essencial ou como remanescentes ou reliacutequias de diversos graus de evoluccedilatildeo

127

e das formaccedilotildees do passado ou entatildeo como germes de um futuro []rdquo (BAKHTIN

2010 p247) O tempo histoacuterico aberto portanto soacute eacute possiacutevel na Era Moderna em

virtude da capacidade de ver o tempo no espaccedilo pois eacute no espaccedilo que o homem deixa as

marcas de sua atividade criadora (BAKHTIN 2010 p243) Por isso para Bakhtin essa

relaccedilatildeo de cronotopo eacute uma das caracteriacutesticas fundamentais do romance moderno dito

realista pois justamente por este caraacuteter aberto do tempo histoacuterico eacute que o indiviacuteduo se

opotildee contra a ordem estabelecida pela sociedade ndash o heroacutei do romance duvida do mundo

(PAZ 1972 p226)

Devemos pois ao analisar o tempo histoacuterico na Ciropedia lembrar que natildeo

estamos nos referindo a este tempo histoacuterico moderno mas a um tempo histoacuterico mais

amplo e social em que qualquer indiviacuteduo sempre se situa caracteriacutestico dos outros

quatro tipos de romance de formaccedilatildeo

A respeito da Ciropedia de Xenofonte tomando os comentaacuterios de Bakhtin

como guia podemos constatar que primeiramente as outras modalidades de tempo se

entrecruzam na Ciropedia em segundo lugar a representaccedilatildeo do passado ndash como

mateacuteria da narraccedilatildeo ndash em discurso propicia a perfeita harmonizaccedilatildeo entre o homem e o

mundo pois este eacute um mundo jaacute fechado e estaacutetico e natildeo em formaccedilatildeo

Parece-nos ao menos que duas modalidades de tempo descritas por Bakhtin satildeo

possiacuteveis de serem encontradas na Ciropedia A obra eacute a narraccedilatildeo da biografia de Ciro

que se tornaraacute o fundador desse grande impeacuterio desde o seu nascimento ateacute a sua morte

Momigliano (1993 p54-55 traduccedilatildeo nossa) afirma que

A maior contribuiccedilatildeo de Xenofonte para a biografia [eacute] a Ciropedia A Ciropedia eacute de fato a mais acabada biografia que noacutes temos na literatura grega claacutessica Eacute a apresentaccedilatildeo da vida de um homem do comeccedilo ao fim e elogia o lugar da sua educaccedilatildeo e do caraacuteter moral166

Ora narrando uma determinada vida uma vida especiacutefica desde seu nascimento

ateacute a sua morte Xenofonte faz com que sua personagem atravesse fases individuais e

especiacuteficas e sua transformaccedilatildeo ldquo[] eacute o resultado de um conjunto de circunstacircncias de

acontecimentos de atividades de empreendimentos que modificam a vida []rdquo

(BAKHTIN 2010 p239) Vemos os acontecimentos de Ciro como acontecimentos

uacutenicos que por serem uacutenicos faratildeo a diferenccedila na formaccedilatildeo final da personagem Como

166 No original Xenophonrsquos greatest contribuition to biography the Cyropaedia The Cyropaedia is indeed the most accomplished biography we have in classical Greek literature It is a presentation of the life of a man from beginning to end and gives pride of place to his education and moral character (MOMIGLIANO 1993 p54-55)

128

ressaltamos no iniacutecio a participaccedilatildeo de mentores ndash o avocirc e o pai ndash completaratildeo a

educaccedilatildeo inicial de Ciro no entanto essa participaccedilatildeo de mentores natildeo eacute um

acontecimento comum a todos mas uacutenico dependente de seu estatuto real filho e neto

de reis

Portanto podemos dizer que a obra Ciropedia ao unir um determinado conceito

pedagoacutegico agrave forma biograacutefica compotildee-se de um tempo biograacutefico no qual as fases

individuais satildeo essenciais na formaccedilatildeo

No entanto natildeo podemos deixar de notar que a formaccedilatildeo a que Ciro eacute submetido

ndash as transformaccedilotildees pelas quais ele passa ndash segue um modelo ciacuteclico de tempo

caracteriacutestico do segundo grupo apresentado por Bakhtin pois compreende as fases

naturais do homem representando um desenvolvimento tiacutepico e idiacutelico A passagem do

menino desobediente e imprudente que confia demais em si a adulto comedido e

responsaacutevel para no fim tornar-se um velho saacutebio um ldquomestre da verdaderdquo parece-nos

condizer com um tipo de temporalidade ciacuteclica cuja natureza ideal da passagem do

tempo no interior do homem forma tambeacutem um homem ideal

As experiecircncias individuais ndash ao menos as bem sucedidas ndash devem conduzir

necessariamente a um tipo de formaccedilatildeo universal posto que natural ao homem em si

mesmo cujo significado expressivo encontra-se em uma visatildeo de mundo moralista e

paternalista na qual a obediecircncia e a auto-censura das paixotildees sophrosyne ton pathon

adquirem importacircncia na realizaccedilatildeo ldquotriunfalistardquo e harmocircnica do homem com o mundo

Unindo agrave modalidade biograacutefica a modalidade ciacuteclica Xenofonte a partir de uma

experiecircncia de vida particular espera conseguir a educaccedilatildeo de seus leitores convicto do

modelo ideal de educaccedilatildeo que ele cria pois este se conduz na trilha da evoluccedilatildeo natural

do homem ao menos na hipoacutetese de uma evoluccedilatildeo ideal A experiecircncia individual

torna-se entatildeo experiecircncia universal possiacutevel

Ao mesmo tempo a harmonia entre homem e sociedade e a visatildeo triunfalista de

um modelo determinado soacute satildeo possiacuteveis em um mundo fechado jaacute formulado Ainda

que por se tratar de uma narrativa de temaacutetica histoacuterica o mundo ali retratado esteja em

um ponto determinado de tensatildeo ao qual sucederaacute a formaccedilatildeo do impeacuterio persa

portanto politicamente em formaccedilatildeo os ideais desse mundo se mantecircm ainda os

mesmos A educaccedilatildeo de Ciro eacute o aprendizado de leis especiacuteficas que aqueles homens jaacute

vividos formularam e seu sucesso na carreira tanto militar quanto governamental se

deve agrave maacutexima compreensatildeo dessas leis e natildeo agrave formulaccedilatildeo de novas leis ou agrave criaccedilatildeo

129

de um homem novo se assim podemos dizer O Ciro adulto estaacute adaptado em um

mundo que lhe serviu de referecircncia em sua formaccedilatildeo

Pode-se objetar que alguns dos ensinamentos satildeo peculiares ao Xenofonte-autor

e que eles satildeo dirigidos a um puacuteblico-leitor grego o que portanto lhes daria um

estatuto de novas formulaccedilotildees sobre o mundo No entanto ainda que essas verdades

sejam apreendidas e formuladas por Xenofonte e de algum modo inovadoras dentro

das ideias gregas e respondendo a questotildees do seu proacuteprio tempo dirigidas a um

puacuteblico contemporacircneo esta relaccedilatildeo estaacute em um niacutevel extradiegeacutetico e natildeo afeta a

questatildeo do tempo histoacuterico na mateacuteria narrativa O importante eacute que dentro da narrativa

em niacutevel intradiegeacutetico satildeo os mentores ou a instituiccedilatildeo educacional que passam a Ciro

os conhecimentos sobre o mundo em que Ciro se ampara adaptando-se a um

conhecimento jaacute formulado Eacute neste sentido que falamos de mundo fechado pois natildeo

podemos esquecer que Xenofonte ao criar a Ciropedia tinha em vista mais a sua

proacutepria eacutepoca do que a necessidade de contar ou recontar uma histoacuteria fiel aos fatos

Inclusive para Bakhtin (2002 p418) a essecircncia romanesca da Ciropedia manifesta-se

nessa modificaccedilatildeo do passado motivada por um interesse presente

A reflexatildeo a partir do grau de assimilaccedilatildeo do tempo histoacuterico real parece nos

levar a uma profunda concepccedilatildeo da realidade enfocada no material narrativo e talvez

seja a base ideal para o estudo da mimese do gecircnero romanesco em suas formas

primevas A maneira peculiar de Xenofonte conduzir a narrativa biograacutefica deve-se em

muitos pontos ao manejo dessa categoria narrativa com andamentos pausas e elipses

que retardam ou avanccedilam a narrativa de um modo realista no sentido de uma mimese

verossiacutemil e criacutevel do tempo Com isso diferencia-se sua narrativa sensivelmente da

narrativa historiograacutefica cujo enfoque natildeo era a vida de um homem mas a vida de um

povo determinado e que enformava em especial Heroacutedoto uma espeacutecie de tempo

ciacuteclico

O romancista Tolstoi retomando a distinccedilatildeo aristoteacutelica entre poesia e histoacuteria

diz no prefaacutecio de Guerra e Paz

O historiador e o artista ao relatarem uma eacutepoca tecircm finalidades completamente diferentes [] A diferenccedila torna-se mais sensiacutevel e essencial quando se trata de descrever acontecimentos O historiador considera os resultados de um acontecimento o artista o proacuteprio acontecimento (1960 vol I pXI)

130

Na Ciropedia a ficccedilatildeo adentra o mundo histoacuterico enfocando acontecimentos da

vida privada em meio ao tumulto da guerra puacuteblica Aleacutem disso as batalhas em si

mesmas se satildeo importantes no todo da narrativa natildeo apresentam um enfoque especial

na narraccedilatildeo ao contraacuterio eacute justamente a preparaccedilatildeo para as batalhas os sentimentos

dos homens e os discursos antes das batalhas que marcam a obra de uma maneira

singular ldquoA Ciropedia natildeo eacute uma histoacuteria sobre coisas que aconteceram mas uma

narrativa sobre coisas que poderiam ter acontecido167rdquo (TATUM 1989 p69) O foco

natildeo estaacute no que aconteceu mas no modo como aconteceu A prova disso eacute que jaacute no

proacutelogo Xenofonte resume todas as conquistas de Ciro ou seja ao adentrarmos a

narrativa propriamente dita jaacute sabemos qual seraacute o fim dela Assim os banquetes e as

festas entre os soldados a camaradagem os casos particulares de inveja amor etc

entremeiam a obra e a enriquecem criando o efeito de pausa e retardamento da accedilatildeo

Aleacutem disso haacute pequenas narrativas secundaacuterias que se conectam com a narrativa

principal de Ciro nas quais se expressa o poder dos viacutecios desmedidos nos homens

uma vez que essas personagens satildeo os contrapontos exatos da figura de Ciro

desprovidos de uma educaccedilatildeo ideal satildeo dadas ao erro e revelam a sorte daqueles que

natildeo dominam suas paixotildees

Todos estes elementos ficcionais modernizam no sentido expresso por Bakhtin

a narrativa pois mais do que a fidelidade agrave histoacuteria Xenofonte estaacute preocupado com a

fidelidade ao ficcional didaacutetico e romanesco respondendo com isso a questotildees do seu

proacuteprio tempo Estes elementos dilatam a narrativa e enriquecem os fatos histoacutericos

dando a eles uma dimensatildeo mais humana que se presentifica para o leitor

45 Xenofonte educador

A moralidade expressa na Ciropedia de Xenofonte repercute a voz de Hesiacuteodo

em Os Trabalhos e Os Dias168 (1991 v295-297)

167 No Original The Cyropaedia is not a story about things that happened but an account of things that could happen 168 Traduccedilatildeo de Mary Lafer (1991)

131

e eacute bom tambeacutem quem ao bom conselheiro obedece mas quem natildeo pensa por si nem ouve o outro eacute atingido no acircnimo este pois eacute homem inuacutetil

A partir da figurativizaccedilatildeo de uma determinada vida a de Ciro o Velho

Xenofonte quer instruir seus leitores Natildeo podemos pois menosprezar o fato de que a

poesia na Greacutecia claacutessica tinha como funccedilatildeo a formaccedilatildeo de seus leitores O papel do

poeta-educador da Greacutecia nos revela uma percepccedilatildeo miacutestica da atividade literaacuteria que

ao lado dos sacerdotes era inspirado pelas musas para cantar a verdade e mesmo com a

secularizaccedilatildeo da linguagem no seacuteculo da filosofia a visatildeo do prosador como educador

parece ter se mantido Horaacutecio na sua Arte Poeacutetica nos fala que uma das funccedilotildees da

literatura eacute ensinar e se hoje perdemos essa percepccedilatildeo chegando mesmo a dizer que o

ato de leitura pode ser alienatoacuterio natildeo devemos esquecer-nos disso quando tratamos de

um texto da Antiguidade

Xenofonte afastado dos tempos das musas e dos cantos heroicos tem ainda em

seu acircmago o projeto de educador Se de um lado a Ciropedia ficccedilatildeo em prosa revela

como o homem ideal deve agir e liderar seu povo de outro a narrativa da vida de Ciro

garante ao autor o estatuto de saacutebio pois ela eacute a figurativizaccedilatildeo de suas proacuteprias ideias

As maacuteximas proferidas admoestam natildeo soacute as personagens mas tambeacutem os

interlocutores a respeitarem o homem e os deuses e a nunca extrapolar os limites da sua

liberdade A hyacutebris a desmedida que embeleza os palcos traacutegicos deve ser suprimida

para a felicidade da vida humana real A educaccedilatildeo proposta eacute uma educaccedilatildeo moralista

uma educaccedilatildeo da justiccedila e da obediecircncia Uma educaccedilatildeo que leva o homem agrave boa

compreensatildeo dos limites do humano

Procuramos demonstrar neste capiacutetulo que a preocupaccedilatildeo didaacutetica com que

Xenofonte reveste a narrativa ficcional cria estruturas narrativas que ainda hoje satildeo

determinantes para a acepccedilatildeo do romance de formaccedilatildeo ao menos em um sentido ldquoda

formardquo do Romance de Formaccedilatildeo Assim analisamos o que Jacobs (1989 apud MAAS

2000) denomina de experiecircncias tiacutepicas do heroacutei nos romances de formaccedilatildeo como o

afastamento da casa paterna a presenccedila de mentores a passagem por instituiccedilotildees

educacionais os erros de avaliaccedilatildeo da personagem principal e a visatildeo teleoloacutegica de

educaccedilatildeo Estes elementos estruturais natildeo aparecem de forma estaacutetica mas se

combinam em cenas bem organizadas e conduzem a evoluccedilatildeo da personagem principal

no decorrer da narrativa O heroacutei da Ciropedia portanto eacute uma ldquounidade dinacircmicardquo

132

(BAKHTIN 2010 p237) e se enquadra no tipo de personagem do romance de

formaccedilatildeo

Aleacutem disso buscamos refletir a respeito do grau de assimilaccedilatildeo do tempo

histoacuterico e demonstramos que a modalidade temporal da Ciropedia combina o tempo

biograacutefico com o tempo ciacuteclico idiacutelico Desse modo as aventuras pelas quais o heroacutei

passa satildeo uacutenicas e singulares poreacutem o tipo de desenvolvimento que a personagem

efetua na narrativa eacute um desenvolvimento tiacutepico do homem concebido como a

passagem natural do tempo na formaccedilatildeo do homem Tambeacutem averiguamos que as

informaccedilotildees culturais natildeo visam agrave fidelidade agrave histoacuteria mas a um projeto didaacutetico e que

por isso elas satildeo fictiacutecias Desse modo a Ciropedia moderniza o passado em virtude da

preocupaccedilatildeo com o presente O processo de modernizaccedilatildeo do passado se efetua pela

ficcionalizaccedilatildeo do material histoacuterico que eacute problematizado a partir da atualidade natildeo

da fidelidade agrave histoacuteria Por estas caracteriacutesticas nos parece acertada a classificaccedilatildeo da

Ciropedia como uma das formas embrionaacuterias do ldquoRomance de Formaccedilatildeordquo

133

5 Imagem e evoluccedilatildeo do heroacutei da Ciropedia

Neste capiacutetulo discutiremos sobre a evoluccedilatildeo da personagem Ciro na Ciropedia

e sua imagem dinacircmica conforme expressatildeo bakhtiniana (BAKHTIN 2010)

Compreendemos que por meio da anaacutelise das maacuteximas encontradas na tessitura

narrativa da obra de Xenofonte poderemos abalizar a tese jaacute defendida nos capiacutetulos

anteriores de que Ciro natildeo eacute uma personagem estaacutetica mas dinacircmica e evolutiva

Avaliaremos a forma como essas maacuteximas aparecem atentando-nos para o enunciador

o destinataacuterio e o contexto de enunciaccedilatildeo e como elas propiciam a formaccedilatildeo

propriamente dita dessa personagem O heroacutei evolutivo eacute uma das principais

caracteriacutesticas do romance de formaccedilatildeo ldquo[pois as] mudanccedilas por que passa o heroacutei

adquirem importacircncia para o enredo romanesco que seraacute por conseguinte repensado e

reestruturado []rdquo (BAKHTIN 2010 p237)

Segundo Bakhtin (2010) na configuraccedilatildeo da personagem a construccedilatildeo do

caraacuteter pode obedecer a duas tendecircncias a claacutessica e a romacircntica Fundamental para a

tendecircncia claacutessica eacute o valor artiacutestico do destino e neste caso a vida eacute somente a

realizaccedilatildeo daquilo que desde o iniacutecio jaacute fora determinado o curso de sua vida os

acontecimentos e a sua morte e mesmo a sua vida interior satildeo percebidos como

necessaacuterios e predeterminados pelo destino Em face da visatildeo de mundo da personagem

claacutessica o autor eacute dogmaacutetico e sua posiccedilatildeo eacutetica natildeo eacute contestada Na caracterizaccedilatildeo da

personagem romacircntica o caraacuteter da personagem eacute dotado de arbiacutetrio e inicitativa

axioloacutegica Os valores do destino natildeo podem servir para a caracterizaccedilatildeo da personagem

de modo definitivo e fundamental eacute a ideia pois ela determina a individualidade da

personagem ndash a personagem age segundo sua ideia Por isso a distacircncia entre autor e

personagem na caracterizaccedilatildeo da personagem romacircntica eacute menos estaacutevel do que a

distacircncia na personagem claacutessica O enfraquecimento desta posiccedilatildeo promove a

desintegraccedilatildeo da personagem Haacute portanto maior identificaccedilatildeo entre heroacutei e autor nas

personagens claacutessicas e o heroacutei torna-se um veiacuteculo de expressatildeo das proacuteprias ideias do

autor (BAKHTIN 2010 p158-167)

Na biografia e na variante romanesca da biografia a personagem eacute importante

como portadora de uma vida historicamente significativa ndash a biografia responde o que a

personagem fez ou o que ela viveu Poreacutem eacute na anaacutelise do caraacuteter que compreendemos

134

a personagem como um todo significantemente enformada pelos desiacutegnios do seu

criador a ponto de respondermos a pergunta ldquoquem erardquo a personagem (BAKHTIN

2010 p159)

Nas maacuteximas que povoam a narrativa da Ciropedia Xenofonte manifesta o

caraacuteter da personagem as suas preferecircncias de comportamento social seus anseios e

objetivos eacutetico-morais Neste sentido a maacutexima torna-se um objeto de caracterizaccedilatildeo

importante na construccedilatildeo da personagem No entanto por se tratar de uma personagem

claacutessica na acepccedilatildeo do termo de Bakhtin as maacuteximas manifestam tambeacutem o caraacuteter do

proacuteprio Xenofonte Natildeo eacute no entanto nosso anseio neste capiacutetulo analisar as maacuteximas

como uma possiacutevel descriccedilatildeo do pensamento de Xenofonte mas analisar as maacuteximas

como elas representam de fato a evoluccedilatildeo da personagem Ciro na narrativa

Analisaremos portanto as maacuteximas quanto ao seu contexto de enunciaccedilatildeo e

quanto ao enunciador e destinaacuterio procurando observar de que modo elas propiciam a

formaccedilatildeo da personagem uma vez que elas transmitem o caraacuteter da personagem

Faremos inicialmente alguma discussatildeo a respeito da estrutura formal da maacutexima a

fim de que nossa anaacutelise seja abalizada por observaccedilotildees linguiacutesticas

51 A maacutexima estrutura e conteuacutedo

O levantamento das maacuteximas formuladas na Ciropedia regulou-se observando

alguns pontos essenciais Em primeiro lugar vale ressaltar que por toda a obra impera

um tipo de discurso pedagoacutegico no qual satildeo articulados ensinamentos principalmente

de caraacuteter praacutetico tanto a respeito da arte militar e das coisas puacuteblicas quanto a respeito

da vida particular do homem Entretanto este tipo de discurso pedagoacutegico natildeo eacute em

essecircncia representado por maacuteximas e se utiliza de outros expedientes retoacutericos A

seleccedilatildeo portanto considerou o ponto de vista formal e soacute foram selecionados aqueles

discursos que estavam estruturados como verdadeiras maacuteximas Devemos primeiro

portanto estabelecer a maacutexima do ponto de vista formal (a relaccedilatildeo de sua estrutura e de

seu conteuacutedo) para podermos justificar a nossa anaacutelise

Os mais antigos poetas gregos incluiacuteam uma grande quantidade de expressotildees

que emitiam instruccedilotildees gerais em sua poesia estas expressotildees a partir do seacuteculo V aC

135

foram coletadas e chamadas de γνωμολογίαι (gnomologiai) coletacircneas de maacuteximas

que eram lidas nas escolas e usadas pelos retores Segundo Lardinois (1997 p214) na

poesia arcaica os poetas referiam-se a estes ldquoproveacuterbiosrdquo por meio de expressotildees como

ἔπος (epos) λόγος (logos) ou αἶνος (ainos) No curso do quinto e quarto seacuteculos

alguns novos termos para expressotildees proverbiais foram introduzidos na linguagem

grega παροίμια (paroimia) ὑποθήκη (hupotheke) ἀπόφθεγμα (apophthegma)

γνώμη (gnome)

A maacutexima (γνώμη em grego sententia em latim) segundo a Arte Retoacuterica (L

II XXI) de Aristoacuteteles (2005) eacute um meio pelo qual se expressa uma determinada

maneira de ver o mundo mas que natildeo se refere ao particular (τῶν καθrsquo ἕκαστων ton

kathrsquo ekaston) mas ao universal (ἀλλά καθόλου alla katholou) Este universal natildeo eacute

o universal em toda a sua extensatildeo mas o universal que tem por objeto as accedilotildees com os

quais ela se relaciona

Do ponto de vista de sua estrutura frasal a maacutexima eacute um entimema169

(ἐνθύμημα enthymema) abreviado Haacute na estrutura do entimema trecircs partes a

premissa (πρότασις protasis) a deduccedilatildeo (συλλογισμός syllogismos) e a conclusatildeo

(συμπέρασμα sumperasma) A maacutexima em geral corresponde apenas agrave conclusatildeo

do entimema estando ausente da sua forma tanto a premissa quanto a deduccedilatildeo poreacutem

a maacutexima soacute se viabiliza se a deduccedilatildeo for intuiacuteda na recepccedilatildeo da maacutexima (DUFEUR

1967 p37) Desse modo a maacutexima deve ser um discurso conciso no qual devem estar

ausentes as causas e os porquecircs do seu caraacuteter universal pois a explicaccedilatildeo tornaria a

maacutexima em entimema

Ainda segundo Aristoacuteteles as maacuteximas garantem tanto o prazer (χαρίς kharis)

aos ouvintes do discurso quanto o caraacuteter moral (ἠθικός ethikos) do orador O prazer

da maacutexima decorre do fato de que ldquo[] as pessoas ficam satisfeitas quando elas ouvem

coisas em termos gerais os quais elas compreenderam antes em um caso particularrdquo170

(ARISTOacuteTELES 2005 p210) Jaacute a eacutetica do orador relaciona-se ao fato de a emissatildeo

de maacuteximas conforme Aristoacuteteles ser adequada agraves pessoas mais velhas

169 O entimema eacute uma forma de silogismo ou argumentaccedilatildeo em que uma das premissas ou um dos argumentos fica subentendido Devido agrave sua concisatildeo o entimema facilita a expressatildeo do pensamento e pode incluir uma demonstraccedilatildeo ou uma refutaccedilatildeo 170 No original [] χαίρουσι δὲ καθόλου λεγομένων ἃ κατά μέρος προυπολαμβάνοντες

τυγχάνουσιν

136

(πρεσβυτέροις presbyterois) e experimentes (ἔμπειροῖς empeirois) ldquoDe maneira

que fazer uso de maacuteximas quando natildeo se atingiu tal idade eacute tatildeo pouco oportuno como

andar a contar histoacuterias Do mesmo modo fazecirc-lo sobre temas de que natildeo se tem

experiecircncia eacute uma parvoiacutece e uma falta de educaccedilatildeo171rdquo (ARISTOacuteTELES 2005

p211)

Roland Barthes (1974) em seu ensaio ldquoLa Rochefoucauld Reflexotildees ou

Sentenccedilas e Maacuteximasrdquo reflete a respeito da produccedilatildeo das maacuteximas que para ele

devem ser analisadas segundo o conteuacutedo semacircntico e os padrotildees estruturais A maacutexima

eacute um discurso moralizante condensado resumido a respeito da natureza humana Para

Barthes (1994) a maacutexima se estabelece dentro de uma estruturaccedilatildeo bastante controlada

que nada tem a ver com um discurso libertaacuterio uma vez que pressupotildee um conteuacutedo

padronizado e moral do comportamento humano No entanto haacute na maacutexima em virtude

de sua estrutura concisa um caraacuteter de espetaacuteculo que a aproxima da poesia172 e este

promove o prazer no espectador um prazer muito proacuteximo da contemplaccedilatildeo Para

Barthes a estrutura da maacutexima eacute visiacutevel pois a essecircncia da maacutexima eacute seu caraacuteter de

espetaacuteculo Desse modo haacute na maacutexima uma estrutura que sendo visiacutevel torna a

maacutexima facilmente reconheciacutevel Barthes posteriormente em seu ensaio analisa como

as maacuteximas produzidas por La Rochefoucauld satildeo construiacutedas por meio de uma

linguagem esteacutetica se utilizando de recursos tiacutepicos do discurso poeacutetico Portanto a

maacutexima eacute um estilo de discurso ligado agrave percepccedilatildeo do mundo que ajuiacuteza sobre o

comportamento humano e sob o qual transparece os valores eacuteticos e morais de uma

sociedade Seu caraacuteter conciso contribui para a expressividade da mensagem e a sua

expressividade garante seu caraacuteter mnemocircnico

Tanto Aristoacuteteles quanto Barthes apontam para o caraacuteter esteacutetico da maacutexima ou

seja as emoccedilotildees desenvolvidas e impulsionadas por meio da maacutexima no auditoacuterio-

leitor que recebe este tipo de discurso Aristoacuteteles no entanto retoma ainda o caraacuteter

didaacutetico do discurso proferido pela maacutexima e como seu efeito persuasivo depende do

caraacuteter tambeacutem do orador ndash o ensinamento seraacute recebido como verdade se o orador for

aceito como experiente em tal assunto As maacuteximas portanto natildeo soacute emitem um

preceito moral decorrente de se pretender ldquonorma reconhecida do conhecimento do

171 No original ὥστε τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ τὸ

μυθολογεῖν περὶ δὲ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτον σημεῖον δὲ ἱκανόν (ARISTOTE 1967 1395a5)1395a5 172 ldquo[] como se sabe existe uma afinidade especial entre o verso e a maacutexima a comunicaccedilatildeo aforiacutestica e a comunicaccedilatildeo divinatoacuteriardquo (Barthes 1974 p12)

137

mundordquo (LAUSBERG 1966 p235) mas por emitir um preceito moral em uma forma

geral e declarar as preferecircncias do orador revelam o proacuteprio caraacuteter do orador Desse

modo ldquotodas as maacuteximas satildeo honestasrdquo (DUFEUR 1967 p38)

Linguisticamente as maacuteximas satildeo formadas em portuguecircs de tempos verbais

mais ou menos precisos o presente do indicativo ou tempos do subjuntivo Jaacute na

liacutengua grega estas maacuteximas vecircm expressas no chamado ldquoaoristo gnocircmicordquo que

traduzimos em geral pelo presente Agraves vezes tambeacutem encontramos frases que se

iniciam com expressotildees como por exemplo ἀναγκαῖον ἐστιν (ananksion estin) ldquoeacute

necessaacuteriordquo ou δίχαίον ἐστιν (dikhaion estin) ldquoeacute justordquo ou de χρή (khre) ldquoeacute

necessaacuteriordquo seguido de infinitivos e que tambeacutem se constituem como maacuteximas no

texto grego O importante eacute que tanto em grego quanto em portuguecircs os tempos

verbais nas maacuteximas apresentam um caraacuteter temporal que natildeo se mede em uma linha

cronoloacutegica mas que se estende no tempo como uma verdade eterna e atemporal

Conforme Aristoacuteteles as maacuteximas referem-se sempre a atos ndash que satildeo expressos

em discurso ndash e dessa relaccedilatildeo iacutentima manteacutem seu caraacuteter universal Eacute portanto um

discurso que se refere a outro discurso e que por resumiacute-lo manteacutem um caraacuteter

metadiscursivo A estrutura da maacutexima por exemplo estaacute presente no gecircnero da faacutebula

No livro A tradiccedilatildeo da Faacutebula ndash de Esopo a La Fontaine de Maria Celeste C Dezotti

(2003) a autora discute os elementos estruturais da faacutebula a faacutebula eacute um ato de fala

que concretizado numa narrativa apresenta uma atitude de ensinamento (recomendar

mostrar censurar aconselhar etc) de um enunciador para um leitor Analisando as

faacutebulas de Esopo observa-se que estruturalmente ela eacute formada por duas instacircncias

textuais a instacircncia narrativa e a instacircncia epimiacutetica a primeira eacute o discurso narrativo

propriamente dito ou seja personagens ndash em geral animais antropomorfizados ndash

concretizam accedilotildees enquanto que a segunda constitui na interaccedilatildeo de dois outros

discursos um interpretativo ou moral que vai mostrar ao leitor uma maacutexima que

interpreta a narrativa e um metalinguiacutestico que vai informar a accedilatildeo que o enunciador da

faacutebula estaacute realizando (por exemplo os discursos ldquoA faacutebula dizrdquo ou ldquoA faacutebula mostrardquo)

Este uacuteltimo nem sempre estaacute presente tambeacutem o discurso interpretativo agraves vezes estaacute

ausente na estrutura da faacutebula ficando portanto ao cargo do leitor a interpretaccedilatildeo da

narrativa da faacutebula Outra instacircncia da faacutebula encontrada sobretudo nas faacutebulas de

Fedro eacute o promiacutetio este se difere do epimiacutetio pela posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave narrativa pois

138

enquanto o epimiacutetio vem expresso apoacutes a narrativa o promiacutetio vem expresso antes da

narrativa

A faacutebula ldquoO Cavalo e o Asnordquo de Esopo (2003) nos serviraacute de exemplo Na

primeira parte da faacutebula narra-se a histoacuteria de um asno que pede ao cavalo que o ajude

a carregar o pesado fardo que lhe competia O cavalo nega a ajuda e o asno

extremamente cansado acaba morrendo Por fim o dono dos animais pega toda a carga

que o asno carregava e daacute para o cavalo carregar ldquoA faacutebula mostra que se os grandes

forem companheiros dos pequenos ambos viveratildeo satildeos e salvosrdquo (DEZOTTI 2003)

Observemos que a maacutexima apresenta-se intimamente vinculada agrave narrativa e que esta

figurativiza em um acontecimento particular a verdade expressa na maacutexima geral vaacutelida

para outras circunstacircncias A narraccedilatildeo na faacutebula funciona como a deduccedilatildeo do

entimema pois ela prepara o espiacuterito do leitor para a verdade da maacutexima A maacutexima

portanto sendo uma reflexatildeo sobre o comportamento geral dos homens sempre se

refere a accedilotildees particulares

Haacute portanto um viacutenculo inerente entre o conteuacutedo da maacutexima e o conteuacutedo da

narrativa As maacuteximas de La Rochefoucauld por exemplo analisadas por Barthes

(1994) natildeo estatildeo vinculadas a esta estrutura fabular pois natildeo apresentam uma narrativa

que figurativize a maacutexima geral No entanto mesmo dissociada de qualquer contexto

textual a maacutexima sempre se refere a outro discurso que eacute presumido pelo ouvinte da

maacutexima Este outro discurso que recupera pela linguagem os atos valida a maacutexima daacute

agrave maacutexima o exemplo singular da verdade geral que ela expressa

As maacuteximas portanto apresentam-se como estruturas metalinguiacutesticas que

desenvolvem seu sentido a partir de uma referecircncia seja narrativa seja argumentativa

Natildeo podemos portanto ao tratar das maacuteximas da Ciropedia deixar de pensar nessa

relaccedilatildeo das maacuteximas com os atos ndash expressos pela linguagem ndash praticados pelas

personagens Assim acreditamos que dentro da narrativa constroacutei-se uma espeacutecie de

estrutura fabular na qual tais maacuteximas repercutem ou ecoam outras passagens da

narrativa pois com elas as maacuteximas estatildeo necessariamente e intimamente ligadas

Isso nos leva a um segundo ponto de nossa anaacutelise que diz respeito ao conteuacutedo

das maacuteximas levantadas na Ciropedia Por se tratar de um enredo que podemos chamar

de beacutelico cujo tema principal eacute a arte do liacuteder ideal podemos distinguir dois tipos de

maacuteximas de acordo com o conteuacutedo proferido por elas as maacuteximas de guerra e as

maacuteximas gerais As maacuteximas gerais dizem respeito ao comportamento humano em

qualquer circunstacircncia natildeo se limitando ao contexto da guerra ainda que natildeo o exclua

139

de sua anaacutelise por isso muitas vezes nas maacuteximas de guerra temos sintagmas como

ldquoestando em guerrardquo ldquona guerrardquo que delimitam o terreno em que a maacutexima eacute vaacutelida

Aleacutem disso devemos averiguar se as maacuteximas proferidas correspondem a accedilotildees

expressas na narrativa a fim de que as maacuteximas sejam recebidas como um

conhecimento verdadeiro Portanto deve-se ter em mente que as maacuteximas na Ciropedia

correspondem a accedilotildees representadas por toda a narrativa mas nem sempre ela estaacute

relacionada de modo claro Neste sentido devemos averiguar o contexto da locuccedilatildeo da

maacutexima interpretando o discurso da maacutexima como uma espeacutecie de epimiacutetio do discurso

da faacutebula cujo sentido soacute se pode abranger tendo em mente o contexto referencial

O terceiro ponto de nossa anaacutelise eacute contemplar o locutor e o destinataacuterio das

maacuteximas proferidas Como nosso intuito eacute a anaacutelise da personagem Ciro e demonstrar

como ela mostra-se evolutiva eacute importante observar quando Ciro passa a se utilizar de

maacuteximas quais maacuteximas ele profere e quais satildeo os seus destinataacuterios Desse modo

reagrupamos as maacuteximas de guerra e as maacuteximas gerais em outros trecircs grupos maacuteximas

proferidas por Ciro maacuteximas proferidas pelo narrador e maacuteximas proferidas por

outra personagem

52 O heroacutei-saacutebio

Observemos a seguir o quadro de ocorrecircncias das maacuteximas encontradas na

Ciropedia de Xenofonte neste quadro procuramos dividir as maacuteximas tanto pelo seu

conteuacutedo (maacuteximas de guerra e maacuteximas gerais) quanto pelos locutores que

proferem as maacuteximas (o narrador Ciro ou alguma personagem secundaacuteria)

Maacuteximas de guerra Maacuteximas gerais

Narrador 7 11

Ciro 22 22

Personagem secundaacuteria 7 25

Quadro 1 Maacuteximas da Ciropedia

140

Ciro ao todo formula 44 maacuteximas enquanto o narrador formula 18 e todas as

outras personagens em conjunto formulam 32 maacuteximas Entretanto as personagens

secundaacuterias satildeo as que mais formulam maacuteximas gerais totalizando 25 Os nuacutemeros

apresentados no quadro demonstram natildeo soacute a sapiecircncia com que Ciro eacute representado na

Ciropedia mas tambeacutem demonstra o importante papel que as personagens secundaacuterias

tecircm na narrativa de Xenofonte Conforme James Tatum (1989 p68) todas as

personagens tecircm alguma funccedilatildeo pedagoacutegica na obra pois elas apresentam situaccedilotildees-

modelos para que ele liacuteder-modelo as resolva Xenofonte segundo Tatum (1989)

inventa e adapta personagens que satildeo invocadas para servir como suacuteditos ideais de um

priacutencipe que ele mesmo inventou para exemplificar um liacuteder ideal Os encontros com

esses personagens ficcionais satildeo a educaccedilatildeo de Ciro

No entanto nem sempre as maacuteximas proferidas configuram-se como elemento

de saber verdadeiro (ao menos para o enredo da Ciropedia) Algumas vezes as maacuteximas

formuladas satildeo contestadas e negadas pela proacutepria narrativa que apresenta um desfecho

que contradiz a maacutexima formulada em geral essas maacuteximas contestadas satildeo proferidas

pelas personagens secundaacuterias Nesse contexto haacute uma reformulaccedilatildeo de uma verdade

que Ciro e principalmente a narrativa demonstram ser falsa ndash uma das funccedilotildees das

maacuteximas segundo Aristoacuteteles (2005) eacute contestar o senso comum apresentar uma nova

forma de ver aquilo que a tradiccedilatildeo popular consagrara Como nosso interesse de anaacutelise

eacute a personagem de Ciro comentaremos das personagens secundaacuterias apenas aquelas

maacuteximas que de algum modo ou revelam a sapiecircncia de Ciro ou proferidas por outras

personagens satildeo importantes na formaccedilatildeo e evoluccedilatildeo da personagem Ciro Antes

analisaremos o contexto em que Ciro profere as maacuteximas tanto as maacuteximas de guerra

quanto as maacuteximas gerais

521 Quem fala quem ouve o contexto das maacuteximas na Ciropedia

O contexto em que as maacuteximas estatildeo inseridas na narrativa eacute principalmente o

contexto dos preparativos das batalhas Analisando as ocorrecircncias percebemos que a

maior parte das maacuteximas de guerra proferidas por Ciro se localiza imediatamente antes

da narraccedilatildeo das principais campanhas seja em discurso para seus soldados seja em

debates com seus principais aliados Tambeacutem as maacuteximas gerais se entremeiam nestes

141

contextos Vamos analisar algumas destas ocorrecircncias para observar os efeitos que as

maacuteximas resultam no discurso de Ciro interpretando uma ocorrecircncia assumimos que

ela apresenta o caraacuteter geral das ocorrecircncias Seria muito fastidioso a anaacutelise total das

maacuteximas proferidas Procuraremos no entanto efetuar a anaacutelise mais completa

possiacutevel refletindo sobre o contexto os aspectos formais e conteudistas das maacuteximas

Selecionamos dois contextos de enunciaccedilatildeo das maacuteximas o diaacutelogo com outras

personagens e o discurso para os soldados

a-) diaacutelogo com as outras personagens

No Livro 52 haacute um jantar em que Ciro se reuacutene com Goacutebrias um varatildeo assiacuterio

que de boa vontade se rendera a ele Goacutebrias (Cirop 46 1-11) era um dos nobres da

Assiacuteria e era muito amigo do antigo rei um homem bom e justo No entanto apoacutes a

morte do rei o poder passou para as matildeos de seu filho um homem vaidoso e injusto

que matara o filho de Goacutebrias durante um exerciacutecio de caccedila segundo Goacutebrias o atual

rei natildeo suportou ver-se ultrapassado nas habilidades de caccedila pelo filho de Goacutebrias que

abatera duas feras enquanto ele natildeo conseguira matar nenhuma e natildeo contendo sua

raiva e inveja cravou uma lanccedila no peito do jovem que iria se casar com a filha do rei

O assassino jamais mostrou arrependimento pelo que fizera enquanto que ldquoO pai dele

em verdade teve compaixatildeo por mim e era visiacutevel que se atormentava por meu

infortuacuteniordquo173 (Cirop 465) Eacute interessante o fato de ele acrescentar ldquoEu de fato se

ele estivesse vivo jamais viria para junto de ti para causar mal a ele pois recebi dele

muitas demonstraccedilotildees de amizaderdquo174 (Cirop 466) Mas agora com o poder nas matildeos

do filho ele nunca poderia ser amigo e aliado dele entatildeo lhe vinha como suplicante

pedir-lhe para ser seu vingador e tambeacutem adotar Ciro como filho Goacutebrias se mostra

extremamente uacutetil a Ciro principalmente na campanha contra a Assiacuteria e na tomada da

Babilocircnia onde Goacutebrias vinga seu filho matando o rei Assiacuterio (Livro VII)

No referido jantar do Livro 52 apoacutes apreciar a simplicidade dos costumes dos

persas Goacutebrias narra a Ciro a histoacuteria de Gadatas outro assiacuterio que fora castigado pela

inveja do Rei Assiacuterio Entretanto quando Ciro pergunta a Goacutebrias se era possiacutevel que

Gadatas se aliasse a eles Goacutebrias apesar de afirmar diz a Ciro que eacute muito difiacutecil

173 No original Ὅ γε μὴν πατήρ αὐτοῦ καὶ συνῴκρισέ με καὶ δῆλος ἦν συναχθόμενός μοι τῇ

συμφορᾷ (Cirop 465) 174 No original Ἐγώ οὖν εἰ μὲν ἔζη ἐκεῖνος οὐκ ἄν ποτε ἦλθον πρός σὲ ἐπὶ τῷ ἐκείνου κακῷ˙

πολλὰ γὰρ φίλια καὶ ἔπαθον δὴ ὑπrsquo ἐκείνου καὶ ὑπηρέτησα ἐκείνῳ (Cirop 466)

142

encontrar Gadatas pois para se chegar a ele ldquoera necessaacuterio passar ao lado da

Babilocircniardquo175 (Cirop 5229) e haveria o risco de enfrentar um exeacutercito muito maior do

que o de Ciro (Cirop 5229) Por isso Goacutebrias aconselha a Ciro que seja cauteloso na

marcha Ciro no entanto afirma que ao contraacuterio do que pensa Goacutebrias o melhor eacute ir

rumo agrave Babilocircnia pois ldquoali estaacute o melhor dos inimigosrdquo176 (Cirop 5231) A partir

disso Ciro procura convencer Goacutebrias da verdade de suas palavras para ele se as

numerosas tropas inimigas natildeo virem os soldados de Ciro crendo que natildeo aparecem por

terem medo deles tornar-se-atildeo extremamente corajosos e temiacuteveis no entanto se os

persas avanccedilarem ainda encontrariam os inimigos sofrendo dos males da uacuteltima

batalha Ciro resume a sua reflexatildeo com uma maacutexima177

Εὖ δrsquo ἴσθι ἔφη ὧ Γωβύα ἵνα καὶ τοῦτrsquo εἰδῇς οἱ πολλοὶ

ἄνθρωποι ὅταν μὲν θαρρῶσιν ἀνυπόστατον τὸ φρόνημα

παρέχονται˙ ὅταν δὲ δείσωσιν ὅσῳ ἄν πλείους ὦσι τοσούτῳ

μείζω καί ἐκπεπληγμένον μᾶλλον τὸν φόβον κέκτηνται

Sabes bem Goacutebrias jaacute que deveis saber disso que os homens numerosos quando satildeo tomados de coragem mostram uma arrogacircncia irresistiacutevel poreacutem quando satildeo tomados de pavor quatildeo numerosos sejam tanto maior e mais perturbado o medo que sentem (Cirop 5233)

Apoacutes proferir esta maacutexima Ciro desenvolve uma argumentaccedilatildeo em que procura

explicar a verdade desta maacutexima primeiro argumenta que em uma multidatildeo eacute difiacutecil

dissuadir o medo por meio de palavras em seguida demonstra a Goacutebrias que em todas

as batalhas decorridas natildeo foi o nuacutemero de soldados que decidiu as batalhas mas a

competecircncia dos exeacutercitos e desse modo natildeo haveria razatildeo a temer

Inicialmente analisemos a maacutexima com relaccedilatildeo ao seu contexto de locuccedilatildeo ou

seja o discurso de Ciro a Goacutebrias Goacutebrias havia levantado um problema a Ciro (como

atravessar a Babilocircnia e chegar a Gadatas) e o aconselhara a ser cauteloso na marcha

em virtude do tamanho do exeacutercito inimigo Ciro no entanto argumenta o contraacuterio e

procura convencer seu ouvinte ele inicia seu discurso a partir de uma reflexatildeo de um

discurso argumentativo em que revela sua concepccedilatildeo estrateacutegica na qual o poder estaacute

175 No original παρrsquo αὐτήν τὴν Βαβυλῶνα δεῖ παριέναι (Cirop 5229) 176 No original ἐκεῖ τῶν πολεμίων ἐστὶ τό κράτιστον (Cirop 5231) 177 Na transcriccedilatildeo que efetuaremos das maacuteximas colocaremos em itaacutelico o bloco discursivo que representa o conceito da maacutexima segundo a terminologia de Barthes (1994)

143

intimamente relacionado ao ato de ver (εἰδεῖν eidein)178 Conforme Harman (2008

p81 traduccedilatildeo nossa) na visatildeo de Ciro

Poder natildeo eacute soacute baseado no real (o exeacutercito eacute grande ou pequeno) mas no como ele eacute realmente visto precedentemente um pequeno exeacutercito foi visto de um modo que lhe deu poder enquanto que agora um grande exeacutercito se ele for visto pareceraacute (e tambeacutem seraacute) fraco Na correccedilatildeo e reformulaccedilatildeo do problema da disponibilidade visual do exeacutercito parece que a abertura para a observaccedilatildeo deve ser rigorosamente policiada a resposta do contemplador natildeo eacute estaacutetica mas assunto para uma contiacutenua reinterpretaccedilatildeo179

Na anaacutelise de Harman observamos que a imagem de poder natildeo estaacute conforme a

Ciropedia nos eventos em si mas eacute construiacuteda e representada de acordo com a intenccedilatildeo

de Ciro As relaccedilotildees de poder satildeo produzidas em um complexo e nuanccedilado encontro

entre espectador e espetaacuteculo (HARMAN 2008 p91) A interpretaccedilatildeo de Harman nos

parece acertada e a maacutexima proferida por Ciro parece nos indicar justamente a

consciecircncia da expectativa que Ciro tem da reaccedilatildeo do inimigo diante do seu exeacutercito e

como Ciro procura controlar a reaccedilatildeo do inimigo A maacutexima portanto natildeo estaacute isolada

no discurso mas estaacute intimamente relacionada com a reflexatildeo inicial ela a resume e a

torna manifesta de um comportamento geral Aleacutem disso pelo seu caraacuteter geral e

atemporal o uso desta estrateacutegia discursiva por Ciro eacute fundamental para o

convencimento de Goacutebrias Na sequecircncia do discurso Ciro procura justificar a maacutexima

natildeo por meio de uma narrativa hipoteacutetica poreacutem mediante o passado imediato

relembrando os sucessos de sua armada Os atos ndash as vitoacuterias nas batalhas ndash tornam

manifesta a verdade da maacutexima porque a experiecircncia torna-se um elemento de

validaccedilatildeo da maacutexima O problema levantado por Goacutebrias eacute portanto resolvido e eles

partem em marcha de acordo com os desiacutegnios de Ciro A narrativa demonstraraacute que

Ciro tinha razatildeo em seu discurso Estamos portanto diante de uma maacutexima que

aprendida pelo passado revela os acontecimentos futuros

Analisemos agora a maacutexima xenofonteana anteriormente citada do ponto de

vista estrutural e semacircntico O primeiro bloco semacircntico (Sabes bem Goacutebrias jaacute que

deveis saber disso) constitui o que Lardinois chama de tying phrase um discurso 178 Para uma anaacutelise das relaccedilotildees de visatildeo e poder na Ciropedia cf Harman R Viewing Power and interpretation in Xenophonrsquos Cyropaedia 2008 p69-91 179 No original Power is not only based in the actual (is the army large or small) but on how actual is seen previously a small army was seen in a way which gave it Power whereas now a big army If it is seen will seem (and therefore also be) weak In the restatement and reformulation of the problem of the armyrsquos visual availability it appears that openness to observation must be rigorously policed the response of the viewer is not static but subject to continual reinterpretation (HARMAN 2008 p81)

144

introdutoacuterio da maacutexima que ldquosinaliza o status do discurso seguinte como uma

explicaccedilatildeo para aquilo que o precederdquo180 (LARDINOIS 1997 p219 traduccedilatildeo nossa)

Em geral na liacutengua grega nos tying phrase haacute a recorrecircncia dos verbos φημί (phemi

dizer) ou οἴδα (oida saber) que datildeo ao orador muita responsabilidade para o que ele

diz Estes verbos satildeo tipicamente usados por um falante superior a um inferior ou por

aquele que quer clamar tal superioridade (LARDINOIS 1997 p220) Na maacutexima

proferida por Ciro o uso do verbo οἴδα reclama a seu locutor que ele jaacute compartilhe do

saber expresso na maacutexima A frase ἵνα καὶ τοῦτrsquo εἰδῇς (jaacute que deveis saber disso) que

muitos tradutores preferem excluir sob a justificativa de que se trata de uma

redundacircncia181 eacute na verdade uma peccedila importante no jogo discursivo incitado por

Ciro uma vez que conduz Goacutebrias a aceitar passivamente a verdade que seraacute expressa

na maacutexima O uso do verbo oida no subjuntivo passado na forma de eideis implica que

Goacutebrias deveria ser conhecedor desta verdade e neste momento da conversaccedilatildeo

reconhececirc-la negar seu conhecimento de algum modo eacute se colocar abaixo de Ciro

Ademais esse acordo taacutecito entre Ciro e Goacutebrias estabelecido pelo jogo

semacircntico do uso do verbo oida nos parece indicar que esta maacutexima eacute assumida como

um conhecimento que faz parte de uma tradiccedilatildeo popular formulada para aleacutem deste

contexto em que ela eacute proferida

O segundo bloco semacircntico (os homens numerosos quando satildeo tomados de

coragem mostram uma arrogacircncia irresistiacutevel poreacutem quando satildeo tomados de pavor quatildeo

numerosos sejam tanto maior e mais perturbado o medo que sentem) eacute a maacutexima

propriamente dita ou o conceito que transforma a maacutexima em espetaacuteculo (BARTHES

1974 p16) O conceito eacute sempre submetido a uma relaccedilatildeo pelos termos principais nele

expressos o estado mais elementar desta relaccedilatildeo eacute a comparaccedilatildeo (a maacutexima confronta

dois objetos propondo uma relaccedilatildeo quantitativa entre ambos) aleacutem da comparaccedilatildeo haacute

o estado de equivalecircncia (esta conexatildeo natildeo eacute definida em termos de quantidade mas de

essecircncia procura-se compreender qual a verdadeira identidade do termo analisado) o

terceiro tipo de estado de relaccedilatildeo do conceito eacute a relaccedilatildeo de identidade deceptiva

(neste caso haacute um projeto de dessacralizar o conceito procurando estabelecer que o

conceito natildeo passa de)

180 No original signal the status of the succeeding discourse as an explanation of what preceded it (LARDINOIS 1997 p219) 181 Cf nota 1 da paacutegina 97 da traduccedilatildeo de Marcel Bizos (1967)

145

Segundo o meacutetodo de anaacutelise de Barthes (1974) podemos compreender melhor

estas relaccedilotildees analisando os tempos fortes e tempos fracos que constituem a sintaxe

da maacutexima Os tempos fortes satildeo as substacircncias ou essecircncias das maacuteximas em geral

substantivo Seu caraacuteter indica o conceito que a maacutexima procura definir e os termos

com os quais a maacutexima define o conceito Jaacute os tempos fracos satildeo os termos

instrumentais ou relacionais que estabelecem as relaccedilotildees sintaacuteticas da maacutexima

A maacutexima que estamos analisando apresenta cinco tempos fortes muitos

homens (πολλοὶ ἄνθρωποι polloi anthropoi) tomados de coragem (θαρρῶσιν

tharrosin) arrogacircncia (φρόνημα fronema) tomados de pavor (δείσωσιν deisosin)

medo (φόβον fobon) e dois tempos fracos quando poreacutem quando (ὅταν μὲν

ὅταν δὲ) Os tempos fracos conduzem nosso modo de ler o texto estabelecendo a

sintaxe do conceito no caso formulando uma antiacutetese (quando poreacutem quando) jaacute

os tempos fortes satildeo os termos que determinam a substacircncia da maacutexima no caso e

revelam que tipo de relaccedilatildeo semacircntica se estabelece no conceito Temos nesta maacutexima a

relaccedilatildeo de comparaccedilatildeo o primeiro termo polloi anthropoi eacute o sujeito da maacutexima o

termo que a maacutexima procura definir Eacute este termo que serve de referecircncia para os outros

termos fortes tharrosin fronema deisosin fobon (ser tomado de coragem e arrogacircncia

ser tomado de pavor e medo) Estes quatro termos satildeo confrontados e o resultado de tal

confronto expressa a definiccedilatildeo do primeiro termo Assim estes termos constituem os

verdadeiros esteios da relaccedilatildeo de antiacutetese desse modo o primeiro termo eacute o sujeito da

maacutexima enquanto que os outros termos do tempo forte satildeo seus predicados que o

qualificam

Aleacutem disso a maacutexima eacute construiacuteda de modo preciso com a ideia de oposiccedilatildeo

sendo repetida pelas estruturas linguiacutesticas marcando a antiacutetese formulada pela

maacutexima Aleacutem da oposiccedilatildeo dos tempos fracos haacute a oposiccedilatildeo morfossintaacutetica

representada a-) pelos verbos na terceira pessoal do plural do subjuntivo (tharrosin

deisosin) b-) pelos verbos na terceira pessoa do plural do indicativo (parekhontai

kektentai) c-) os complementos verbais e seus adjuntos no acusativo estas repeticcedilotildees

reforccedilam a antiacutetese e criam o efeito de espetaacuteculo da maacutexima Construiacuteda desse modo

a maacutexima estetiza o discurso do orador e torna-o mais convincente

Ao observarmos as outras ocorrecircncias na Ciropedia em que Ciro profere

maacuteximas em diaacutelogos com outras personagens percebemos que elas satildeo formuladas

com o objetivo de Ciro convencer seus aliados sobre determinado ponto Eis alguns

146

exemplos no Livro 3319 Ciro dialoga com Ciaxares a respeito da necessidade de

iniciar o combate contra os Assiacuterios imediatamente e entatildeo formula a maacutexima

Conforme meu pai sempre dizia tu dizes e os outros todos estatildeo de acordo que as

batalhas satildeo decididas mais pelos espiacuteritos do que pela forccedila dos corpos 182ldquo no Livro

3350 apoacutes o persa Crisantas afirmar a necessidade de Ciro exortar seus soldados Ciro

o rebate afirmando que ldquoNenhuma exortaccedilatildeo por mais bela que seja produziraacute em um

dia ouvintes corajosos que jaacute natildeo sejam corajososrdquo 183 O interessante desta maacutexima eacute

que ela eacute proferida logo apoacutes o narrador nos apresentar pela primeira e uacutenica vez um

discurso do rei Assiacuterio com o qual ele tenta incutir coragem em seus soldados Os

rumores dos discursos do rei chegaram aos soldados persas e o pedido de Crisantas

demonstra o temor que os rumores causavam nas tropas Ciro que ao longo de toda

obra discursa aos seus soldados buscando incentivaacute-los e exortaacute-los neste momento

relembra a Crisantas que os belos discursos natildeo decidiratildeo a batalha mas o fato de os

persas estarem preparados para a batalha pois foram educados em um sistema que

previa a formaccedilatildeo de soldados exemplares no Livro 539 Ciro dialoga com Goacutebrias a

respeito de Gadatas e da necessidade de tornar este assiacuterio seu aliado pois ldquoNa guerra

nenhuma coisa melhor se pode fazer aos amigos do que fingir ser seu inimigo nem

mais mal aos seus inimigos do que fingir ser seu amigordquo184 no Livro 5511 Ciro se

utiliza de uma maacutexima procurando dissuadir as criacuteticas de seu tio Ciaxares que

enciumado das conquistas de Ciro acreditava que este desejava usurpar-lhe a soberania

da Meacutedia Ciro contesta os temores de Ciaxares e critica o modo com que ele estava

tratando seus subalternos medos e lhe lembra que ldquoFatalmente quem aterroriza a

muitos muitos inimigos produz quem a todos se mostrar violento ao mesmo tempo

todos se lanccedilam em concoacuterdia contra elerdquo185 na sequecircncia no Livro 5541 jaacute desfeita a

sua animosidade Ciaxares convoca Ciro para jantar poreacutem este o admoesta a convocar

tambeacutem os principais aliados pois ldquoQuando imaginam que satildeo negligenciados

enquanto os bons soldados tornam-se muito mais covardes os maus soldados tornam-

182 No original ltὡςgt καί ὁ πατὴρ αἰεὶ λέγει καὶ σύ φῄς καί οἱ ἄλλοι δὲ πάντες μολογοῦσιν ὡς

αἱ μάχαι κρίνονται μᾶλλον ταῖς ψυχαῖς ἤ ταῖς τῶν σωμάτων ῥώμαις (Cirop 3319) 183 No original οὐδεμία γάρ οὕτως ἐστί καλή παραίνεσις ἤτις τοὺς μὴ ὄντας ἀγαθοὺς

αὐθημερὸν ἀκούσαντας ἀγαθοὺς ποιήσει(Cirop 3350) 184 No original οὔτε γὰρ ἃν φίλους τις ποιήσειεν ἅλλως πως πλείω ἀγαθά ἐν πολέμῳ ἤ

ηολέμιος δοκῶν εἶναι οὕτrsquo ἄν ἐχθρούς πλείω τις βλάψειεν ἄλλως πως ἢ φίλος δοκῶν εἶναι (Cirop 539) 185 No original Ἀνάγκη γάρ διὰ τό πολλούς μέν φοβεῖν πολλοὺς ἐχθροὺς ποιεῖσθαι διὰ δὲ

τό πᾶσιν ἄμα χαλεπαίνειν πᾶσιν αὐτοῖς ὁμόνοιαν ἐμβάλλειν (Cirop 5511)

147

se muito mais insolentesrdquo186 no Livro 7118 Ciro em diaacutelogo com Abradatas procura

incentivaacute-lo agrave batalha afirmando que se vencerem a batalha todos diratildeo doravante que

ldquoNada eacute mais proveitoso do que a coragemrdquo187 no Livro 7211 na cena em que Ciro se

encontra com Creso que analisamos no Capiacutetulo 3 de nossa Dissertaccedilatildeo Ciro discute

com Creso os aspectos negativos da praacutetica do saque pois no saque ldquoEu sei bem que os

mais covardes levariam vantagemrdquo 188 Esta eacute a uacutenica passagem da Ciropedia em que

Ciro dialoga com algum inimigo

Essas satildeo algumas maacuteximas que Ciro formula em diaacutelogo com outras

personagens da trama Em todas essas ocorrecircncias Ciro se utiliza das maacuteximas para

convencer seus interlocutores da verdade de suas palavras estabelecendo desse modo

um niacutetido contraste entre a sua sabedoria e a de seus interlocutores O uso da maacutexima

reflete a posiccedilatildeo de superioridade de Ciro com relaccedilatildeo aos seus interlocutores uma vez

que a sequecircncia da narrativa demonstra que Ciro estava com a razatildeo Como afirma Ciro

a Ciaxares ldquoQuando eacute preciso persuadir aquele que consegue o maior nuacutemero de

concordantes para noacutes justamente deve ser distinguido como o melhor orador e o mais

eficazrdquo189 (Cirop 5546) e Ciro para ser o melhor na arte de persuadir se utiliza das

maacuteximas com recorrecircncia

b-) discurso para os soldados

Passemos agora a analisar um segundo caso quando Ciro dirige-se a seus

soldados em longos discursos A primeira diferenccedila entre estas ocorrecircncias e as

anteriores e que legitima a separaccedilatildeo que fizemos em nossa anaacutelise eacute a posiccedilatildeo do

interlocutor no discurso No caso do diaacutelogo com outras personagens noacutes temos um

diaacutelogo em que as duas instacircncias (locutorinterlocutor) estatildeo claramente definidas e

posicionadas participantes ativos do diaacutelogo Aleacutem disso e por isso abre-se a

perspectiva de um contato dialoacutegico real no qual as outras personagens podem

discordar das formulaccedilotildees de Ciro A proacutepria aceitaccedilatildeo por parte das personagens

secundaacuterias das formulaccedilotildees de Ciro o que em geral ocorre eacute em si tambeacutem um

186 No original ἀμελεῖσθαι δὲ δοκοῦντες στρατιῶται οἱ μὲν ἀγαθοὶ πολὺ ἀθυμότεροι

γίγνονται οἱ δὲ πονηροὶ πολὺ ὑβριστότεροι (Cirop 5541) 187 No original μηδὲν εἶναι κερδαλεώτερον ἀρετῆς (Cirop 7118) 188 No original εὖ οἶδ ὅτι οἱ πονηρότατοι πλεονεκτήσειαν ἄν (Cirop 7211) 189 No original ὅταν πεῖσαι δέῃ ὁ πλείστους ὁμογνώμονας ἡμῖν ποιήσας οὗτος δικαίως ἂν

λεκτικώτατός τε καὶ πρακτικώτατος κρίνοιτο ἂν εἶναι (Cirop 5546)

148

aspecto dialoacutegico da essecircncia do diaacutelogo jaacute que a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo satildeo as

respostas miacutenimas a um discurso

Nos discursos proferidos por Ciro aos seus soldados em nossa opiniatildeo o caraacuteter

dialoacutegico desaparece Os soldados natildeo emitem opiniatildeo a respeito das determinaccedilotildees de

seu liacuteder e as suas ideias natildeo entram em um real campo de contato dialoacutegico com o

discurso de Ciro Ciro como liacuteder estaacute em um pavimento superior ao de seus soldados

pavimento que lhe permite que o discurso seja contemplado e seguido e natildeo

desautorizado ou contestado A maacutexima portanto deve ter outra funccedilatildeo que a funccedilatildeo

persuasiva que encontramos nas ocorrecircncias anteriores

Analisemos o discurso proferido por Ciro no Livro 7572-86 Haacute neste

discurso a maior concentraccedilatildeo de maacuteximas na Ciropedia que se configuram tanto

como maacuteximas de guerra como maacuteximas gerais Esse discurso eacute proferido apoacutes a

tomada da Babilocircnia ou seja eacute o fim da carreira militar de Ciro descrita na Ciropedia

O Livro 8 eacute inteiramente dedicado agrave construccedilatildeo do Impeacuterio Persa e a narrativa portanto

comeccedila a tratar de uma nova temaacutetica Isso justifica o fato de este discurso ser a uacuteltima

vez em que Ciro profere maacuteximas de guerra Suas preocupaccedilotildees a partir deste

momento passaratildeo a ser o modo como conduzir o seu governo e natildeo mais como

conduzir soldados No entanto jaacute neste discurso algumas das preocupaccedilotildees futuras satildeo

realccediladas

Ciro inicia o discurso agradecendo aos deuses pelas daacutedivas conseguidas pelo

exeacutercito persa ndash terras extensas e feacuterteis (γῆν πολλὴν καὶ ἀγαθήν gen pollen kai

agathen) casas (οἰκίας oikias) etc Em seguida profere a primeira maacutexima que se

refere ao γέρας (geras) as recompensas ou espoacutelios de guerra Ciro diz a seus soldados

que

[] νόμος γὰρ ἐν πᾶσιν ἀνθρώποις ἀίδίος ἐστιν ὅταν

πολεμούντων πόλις ἁλῳ τῶν ἑλόντων εἷναι καὶ τά σώματα

τῶν ἐν τῇ πόλει καὶ τὰ χρήματα [] (Cirop 7572)

[] pois eacute lei eterna para todos os homens quando uma cidade eacute tomada estando em guerra dos conquistadores satildeo tanto o corpo como os bens dos cidadatildeos []

A maacutexima vincula-se ao comentaacuterio anterior de Ciro no iniacutecio do discurso mas

e mais importante eacute de algum modo um convite para que os persas participem do novo

projeto de Ciro a construccedilatildeo de seu Impeacuterio Os conquistadores tecircm agora a

149

responsabilidade de ajudar Ciro na construccedilatildeo de seu Impeacuterio uma vez que os corpos e

os bens dos cidadatildeos submetidos pela guerra satildeo seus espoacutelios ou seja suas riquezas

A maacutexima eacute construiacuteda por dois blocos semacircnticos o primeiro (νόμος γὰρ ἐν πᾶσιν

ἀνθρώποις ἀίδίος ἐστιν) se configura segundo a terminologia de Lardinois (1997)

como identity of the owner que deve ser entendida como a identidade do criador da

maacutexima Esse tipo de discurso fornece agrave maacutexima a sua legitimidade pois a partir dele

natildeo se compreenderaacute a maacutexima como produto de seu locutor imediato fruto de um

conhecimento particular e subjetivo do mundo mas como um conhecimento tradicional

e eterno cuja formulaccedilatildeo eacute muito anterior ao momento de sua enunciaccedilatildeo no discurso

O locutor seraacute apenas um veiacuteculo para expressar a maacutexima jaacute antes formulada e

possivelmente conhecida

O segundo bloco semacircntico (ὅταν πολεμούντων πόλις ἁλῳ τῶν ἐλόντων

εἷναι καὶ τά σώματα τῶν ἐν τῇ πόλει καὶ τὰ χρήματα) eacute o conceito da maacutexima

formado por cinco tempos fortes πόλις-πολεμούντων (polis-polemounton) ἐλόντων

(elonton) πόλει (polei) σώματα (somata) χρήματα (khremata) no qual os quatro

uacuteltimos termos estabelecem uma relaccedilatildeo de equivalecircncia formando o predicado do

primeiro termo sujeito da maacutexima A polis (cidade) sujeito da maacutexima torna-se no

contexto da guerra um objeto que passa das matildeos dos vencidos para as dos

conquistadores Neste caso kremata (bens) e somata (corpos) que constituem as

propriedades do cidadatildeo-livre tornam-se tambeacutem objetos dos conquistadores

destituindo assim o cidadatildeo da sua condiccedilatildeo de homem livre Jaacute o termo polemounton

estando em guerra estabelece o contexto em que a maacutexima eacute vaacutelida limitando-a

portanto ao contexto da guerra

Na sequecircncia de seu discurso Ciro reflete o quanto eacute mais faacutecil conquistar do

que manter as coisas conquistadas Nesta reflexatildeo Ciro retoma o valor do trabalho

(ponos) da moderaccedilatildeo (sophrosune) da temperanccedila (enkhrateia) valores que desde a

infacircncia a educaccedilatildeo persa incutira nele e por toda a narrativa demonstraram ser vitais

na vitoacuteria persa sobre os inimigos Ciro entatildeo formula a segunda maacutexima do discurso

(Livro 7575) ldquoPois natildeo basta que os homens sejam bons no iniacutecio para permanecer

bons se natildeo se ocupar com isso ateacute o fimrdquo190 Esta maacutexima apresenta apenas o conceito

sem discursos introdutoacuterios ou de validaccedilatildeo da maacutexima isso porque a maacutexima estaacute 190 No original Οὐ γὰρ τοι τὸ ἀγαθοὺς ἄνδρας γενέσθαι τοῦτο ἀρκεῖ ὥστε καὶ διατελεῖν ἤν μή

τις ἀυτοῦ τέλους ἐπιμελῆται (Cirop 7575)

150

relacionada com todo o conjunto de reflexatildeo anterior e posterior agrave formulaccedilatildeo da

maacutexima a reflexatildeo valida a maacutexima e tambeacutem a explica Esta eacute uma maacutexima

deceptiva na qual os predicados dessacralizam a imagem do sujeito da maacutexima

(ἀγαθοὺς ἄνδρας agathous andras) Nesta maacutexima mais do que os tempos fortes ndash

διατελεῖν (diatelein) ἐπιμελῆται (epimeletai) ndash satildeo os tempos fracos (Οὐhellip ἀρκεῖ

ἤν μή τέλους) que determinam a sua dessacralizaccedilatildeo pois estes termos impotildeem

concessotildees agrave realizaccedilatildeo do sujeito da maacutexima que eacute ser homens corajosos Ser corajoso

natildeo eacute uma essecircncia inata e imoacutevel no homem poreacutem o resultado de um exerciacutecio que

deve ser continuamente aplicado

Como acima afirmamos a maacutexima relaciona-se com alguma reflexatildeo tanto

anterior a sua formulaccedilatildeo quanto posterior Desse modo na sequecircncia do discurso Ciro

utiliza-se de comparaccedilotildees para justificar a maacutexima acima assim como as artes (τέχναι

tekhnai) quando negligenciadas tornam-se sem valor (μείονος ἄξιαι γίγνονται

meionos aksiai gignontai) e os corpos em boa forma (τὰ σώματά γε τὰ εὖ ἔχοντα

ta somata ge ta eu ekhonta) quando se entregam agrave preguiccedila (ῥᾳδιουργίαν

raidiourgian) tornam-se novamente em mau estado (πονήρως πάλιν poneros palin)

as virtudes tambeacutem se convertem em viacutecios (πονηρίαν ponerian) quando se abandona

a sua praacutetica (ἀνῇ τὴν ἄσκησιν anei tem askesin) A partir destas comparaccedilotildees Ciro

revela qual o seu verdadeiro temor expresso em duas maacuteximas uma subsequente a

outra primeiramente Ciro formula que ldquoPois considero de um lado um grande

trabalho conquistar o poder mas de outro lado ainda maior conservaacute-lo depois de

conquistadordquo191 (Livro 7576) Nesta maacutexima comparativa o conceito eacute introduzido

pelo bloco semacircntico γὰρ οἶμαι (gar oimai) que estabelece Ciro natildeo soacute como o

locutor da maacutexima como tambeacutem seu formulador Deste modo este bloco semacircntico se

configura tanto como um tying phrase quanto um identity of the owner

Jaacute a segunda maacutexima natildeo apresenta nenhum tipo de discurso introdutoacuterio

iniciando-se diretamente no conceito da maacutexima ldquoPois frequentemente de um lado a

conquista ocorreu provocada soacute pela coragem mas de outro preservar as conquistas

191 No original μέγα μὲν γὰρ οἶμαι ἔργον καὶ τὸ ἀρχὴν καταπρᾶξαι πολὺ δ ἔτι μεῖζον τὸ

λαβόντα διασώσασθαι (Cirop 7576)

151

natildeo se alcanccedila sem moderaccedilatildeo nem sem temperanccedila nem sem grande diligecircncia192rdquo

(Livro 7576) Desse modo esta maacutexima ao contraacuterio da anterior se estabelece como

um conhecimento para aleacutem da narrativa legitimando natildeo soacute toda a reflexatildeo mas

tambeacutem a maacutexima anterior O conceito desta maacutexima comparativa eacute expresso pela

oposiccedilatildeo entre as virtudes de um lado a coragem (tolma) e de outro a moderaccedilatildeo

(sophrosune) temperanccedila (enkrateia) e diligecircncia (epimeleia) retomando a oposiccedilatildeo jaacute

expressa na reflexatildeo anterior A reflexatildeo portanto se fecha na maacutexima o conceito

condensa o todo e se torna um espetaacuteculo expressivo

Estas trecircs virtudes aliadas a outras que desde o iniacutecio da Ciropedia satildeo

constantemente afirmadas como essenciais seratildeo retomadas a partir deste passo no

discurso de Ciro A preocupaccedilatildeo de Ciro ao incutir em seus soldados a ambiccedilatildeo de bem

governar seus suacuteditos eacute a de que seus soldados natildeo desprezem a praacutetica destas virtudes

pois foi esta praacutetica que garantiu a eles a supremacia frente aos inimigos

No Livro 81 que narra os primeiros afazeres de Ciro como liacuteder de seu Impeacuterio

o narrador nos conta como Ciro procurava persuadir seus suacuteditos a seguirem a praacutetica da

piedade da justiccedila da obediecircncia da moderaccedilatildeo e da temperanccedila as principais virtudes

da educaccedilatildeo persa Enquanto no Livro 88 o narrador no epiacutelogo da obra afirma que a

decadecircncia do Impeacuterio Persa se deve ao abandono da praacutetica destas virtudes O discurso

de Ciro portanto indica alguns movimentos subsequentes da narrativa e esta eacute uma

particularidade interessante das maacuteximas analisadas da Ciropedia elas ao mesmo

tempo em que se relacionam com a narrativa anterior agrave sua locuccedilatildeo ndash pois satildeo os atos e

as experiecircncias que datildeo ensinamentos para que Ciro expresse e formule suas maacuteximas ndash

revelam os projetos futuros de Ciro e a sequecircncia da narrativa

Retornemos agrave anaacutelise do discurso de Ciro Preocupado portanto em garantir

que os soldados natildeo desprezem a praacutetica das virtudes Ciro os lembra de que agora que

satildeo conquistadores devem exercitar-se em dobro pois ldquoSabendo bem que quando

algueacutem tem numerosas coisas entatildeo haveraacute maior nuacutemero de invejosos de

conspiradores e de inimigosrdquo193 (Livro 7577) Para Ciro necessariamente todos os

homens sofrem pelos mesmos motivos (frio fome cansaccedilo etc) igualando os suacuteditos

192 No original τὸ μὲν γὰρ λαβεῖν πολλάκις τῷ τόλμαν μόνον παρασχομένῳ ἐγένετο τὸ δὲ

λαβόντα κατέχειν οὐκέτι τοῦτο ἄνευ σωφροσύνης οὐδ ἄνευ ἐγκρατείας οὐδ ἄνευ πολλῆς

ἐπιμελείας γίγνεται (Cirop 7576) 193 No original εὖ εἰδότας ὅτι ὅταν πλεῖστά τις ἔχῃ τότε πλεῖστοι καὶ φθονοῦσι καὶ

ἐπιβουλεύουσι καὶ πολέμιοι γίγνονται (Cirop 7577)

152

com os comandantes por isso eacute necessaacuterio que os comandantes se mostrem sempre

melhores (βελτίονας) que os seus suacuteditos e isto soacute ocorreraacute pela praacutetica das virtudes

Esse pensamento vem expresso na maacutexima ldquoMas sem duacutevida natildeo eacute conveniente ao

governante ser inferior aos governados194rdquo (Livro VII583) Aleacutem disso todo o

cuidado para natildeo se deixar dominar pelos suacuteditos vem expresso na maacutexima geral

Conquistar belas coisas natildeo eacute tatildeo difiacutecil como a dor de ser privado das coisas

conquistadas195 (Livro 7582)

Ciro reconhece todavia o quatildeo custoso eacute para seus homens depois de terem

suportado tantas fadigas durante a guerra continuar suportando-as depois de

vencedores da guerra por isso ele afirma que ldquo[] as boas coisas encantam tanto mais

quanto mais labores tiver sofrido para chegar a elas As fadigas satildeo os temperos das

boas coisasrdquo196 (Livro 7580) Esta maacutexima geral eacute interessante pois apresenta duas

maacuteximas interligadas formada por dois blocos poreacutem o segundo bloco ndash As fadigas satildeo

os temperos das boas coisas ndash tem maior alcance retoacuterico do ponto de vista da

expressividade pois ela condensa em sua forma a proacutepria maacutexima anterior Aleacutem disso

eacute uma maacutexima que funciona como validaccedilatildeo da outra maacutexima

No final do discurso de Ciro ele ainda profere mais duas maacuteximas gerais ambas

relacionadas agrave praacutetica da virtude principal tema de seu discurso a primeira maacutexima

determina que ldquo[] natildeo haacute outra proteccedilatildeo melhor do que ser belo e nobrerdquo197 (Livro

7584) enquanto a segunda maacutexima ldquoAo que estaacute separado da virtude nada conveacutem a

natildeo ser comportar-se bemrdquo 198 (Livro 7584)

Analisando este discurso procuramos compreender o uso das maacuteximas no

discurso proferido para os soldados Anteriormente referimos que no discurso ao

contraacuterio do que ocorre no diaacutelogo os interlocutores estatildeo em um niacutevel abaixo do

orador no caso Ciro e este portanto natildeo necessita de maacutexima para convencecirc-los a

fazer as suas vontades jaacute que sua posiccedilatildeo social imporia a obediecircncia Natildeo haacute a

necessidade de convencimento de persuasatildeo Aleacutem disso naturalmente seriacuteamos

194 No original Ἀλλrsquo οὐ δήπου τὸν ἄρχοντα τῶν ἀρχομένων πονηρότερον προσήκει εἴναι (Cirop 7583) 195 No original οὐ γὰρ τὸ μὴ λαβεῖν τἀγαθὰ οὔτω χαλεπόν ὥσπερ τό λαβόντα στερηθῆναι

λυπηρόν (Cirop 7582) 196 No original ὅτι τοσούτῳ τἀγαθὰ μᾶλλον εὐφραίνει ὅσῳ ἂν μᾶλλον προπονήσας τις ἐπ

αὐτὰ ἴῃ οἱ γὰρ πόνοι ὄψον τοῖς ἀγαθοῖς (Cirop 7580) 197 No original ὅτι οὐκ ἔστιν ἄλλη φυλακὴ τοιαύτη οἴα αὐτόν τινα καλὸν κάγαθὸν ὑπάρχειν (Cirop 7584) 198 No original τῷ δ ἀρετῆς ἐρήμῳ οὐδὲ ἄλλο καλῶς ἔχειν οὐδὲν προσήκει (Cirop 7584)

153

levados a interpretar estas maacuteximas como discurso exortativo a fim de que os soldados

se encorajem Entretanto o discurso exortativo aparece sob outras formas de locuccedilatildeo

que natildeo necessariamente a maacutexima Por isso natildeo podemos pensar apenas no caraacuteter

exortativo das maacuteximas como uma funccedilatildeo predominante das maacuteximas no discurso de

Ciro

Podemos entatildeo interpretar estas maacuteximas de dois modos primeiramente nelas

Ciro revela tanto suas intenccedilotildees e objetivos quanto principalmente suas preferecircncias

de comportamento O caraacuteter eacutetico da maacutexima estabelece portanto um modelo de

comportamento para os soldados comportamento este que os soldados devem seguir

caso queiram ser agradaacuteveis ao proacuteprio Ciro Desse modo os discursos de Ciro para

seus soldados tambeacutem satildeo uma oacutetima oportunidade para que o narrador possa

caracterizar Ciro uma vez que as maacuteximas revelam as preferecircncias de comportamento

Por outro lado devemos lembrar que segundo Aristoacuteteles as maacuteximas

produzem prazer aos ouvintes A relaccedilatildeo que Ciro estabelece com seus ouvintes eacute uma

relaccedilatildeo de cumplicidade como se estes estivessem em um mesmo niacutevel discursivo O

prazer do ouvinte surge agrave medida que ele se sente feliz em reconhecer na maacutexima um

conhecimento que ele mesmo jaacute intuiacutera estabelecendo portanto um forte traccedilo de

cumplicidade entre comandante e suacuteditos Cumplicidade entre o comandante e seus

suacuteditos eacute uma das mais caracteriacutesticas peculiaridades do governo ideal de Ciro e que

mais o diferencia dos tiranos orientais da tradiccedilatildeo da literatura grega

53 O percurso de Ciro a formaccedilatildeo do διδάσκαλος199

A personagem no romance de formaccedilatildeo eacute uma grandeza moacutevel evolutiva A

formaccedilatildeo deve neste sentido revelar uma determinada mudanccedila na postura da

personagem e esta mudanccedila torna-se o ponto principal do conteuacutedo do romance o

proacuteprio material do romancista No capiacutetulo anterior demonstramos alguns aspectos

desta mudanccedila ou evoluccedilatildeo da personagem Ciro poreacutem nossa anaacutelise se limitou a

observar as estruturas que constituiacuteam a archaica do romance de formaccedilatildeo Nesta

199 διδάσκαλος (didaskalos) eacute aquele que ensina o mestre

154

subseccedilatildeo demonstraremos por fim que a locuccedilatildeo de maacuteximas eacute uma caracteriacutestica

importante no processo de formaccedilatildeo da personagem na Ciropedia As maacuteximas satildeo

recursos descritivos com os quais Xenofonte apresenta a profundidade da sua

personagem Haacute de fato o uso do discurso indireto em algumas passagens poreacutem eacute

quase sempre por meio do discurso direto que conhecemos Ciro e que Ciro se deixa

conhecer

Observemos a seguir os quadros

Maacuteximas de guerras proferidas por Ciro LIVRO I - LIVRO II - LIVRO III 1 LIVRO IV - LIVRO V 9 LIVRO VI 4 LIVRO VII 8 LIVRO VII -

Quadro 2 Relaccedilatildeo por maacuteximas de guerra

Maacuteximas gerais proferidas por Ciro LIVRO I 3 LIVRO II 2 LIVRO III 1 LIVRO IV 1 LIVRO V 4 LIVRO VI 1 LIVRO VII 7 LIVRO VII 3

Quadro 3 Relaccedilatildeo por livro de maacuteximas gerais

A respeito do contexto das locuccedilotildees das maacuteximas podemos acrescentar que Ciro

natildeo formula nenhuma maacutexima de guerra nos dois primeiros livros da Ciropedia Suas

primeiras locuccedilotildees estatildeo expressas no Livro 33 em um diaacutelogo com Ciaxares poreacutem eacute

a partir dos Livros 55 que Ciro passa a se utilizar de maacuteximas com mais frequecircncia

Antes disso Ciro participara da expediccedilatildeo agrave Armecircnia e agrave Caldeacuteia (Livro 3) da

expediccedilatildeo da Assiacuteria (Livro 4) aleacutem de batalhas esparsas na Meacutedia (Livro 1) e na

Babilocircnia (Livro 5) Isso significa que a experiecircncia da guerra eacute fundamental para que

Ciro formule e se expresse por meio de maacuteximas O maior efeito retoacuterico do discurso

gnocircmico estaacute na relaccedilatildeo deste discurso com os atos e como afirma Aristoacuteteles soacute fica

155

bem ao homem experiente se expressar com maacuteximas Deste modo a personagem sofre

uma evoluccedilatildeo na qual a elocuccedilatildeo das maacuteximas eacute uma caracteriacutestica determinante na

figurativizaccedilatildeo desta evoluccedilatildeo

Com relaccedilatildeo agraves maacuteximas gerais Ciro as formula de forma esporaacutedica desde o

primeiro livro (Livro 16) todavia uma das maacuteximas proferidas por Ciro neste livro eacute

reformulada pelo seu pai Cambises200 Como afirmamos no capiacutetulo anterior ao longo

do Livro 1 Ciro passa por experiecircncias (tanto no acircmbito da guerra quanto no acircmbito

particular) em que demonstra erros de avaliaccedilatildeo e de conduta Estes erros seratildeo

corrigidos por seus mentores o avocirc Astiacuteages e o pai Cambises Do mesmo modo

quando Ciro afirma a seu pai ldquoE com efeito refletindo sobre essas coisas parece-me

observar que o que mais incita a obediecircncia eacute louvar e honrar o obediente e ao

desobediente desprezar e punir []rdquo201 (Cirop 1620) Essa maacutexima natildeo se concretiza

como uma verdade jaacute que seu pai iraacute em seguida refutaacute-la Esta maacutexima apresenta

valores de um verdadeiro tirano um deacutespota exatamente o contraacuterio do que Ciro se

revelaraacute no restante da narrativa mostrando assim novamente que os ensinamentos do

pai surtiram efeito Ciro portanto natildeo permanece inalterado com as circunstacircncias seu

espiacuterito se modifica e se aperfeiccediloa Ciro eacute representado como μαθητής (mathetes)

um disciacutepulo sempre pronto a aprender para melhor agir no futuro Haacute portanto

equiacutevocos de avaliaccedilatildeo por parte de Ciro poreacutem a sua reeducaccedilatildeo eacute fundamental na

continuidade da narrativa Assim como as maacuteximas de guerra as maacuteximas gerais

tornam-se mais comuns a partir do Livro V Observamos portanto que haacute na

Ciropedia a relaccedilatildeo entre experiecircncias e elocuccedilatildeo das maacuteximas e que elas constituem

desse modo uma importante faceta na construccedilatildeo da personagem Ciro

Agrave medida que a narrativa avanccedila e Ciro mostra-se um liacuteder natildeo soacute competente

e vencedor mas caracterizado como ideal a personagem passa a se expressar por

maacuteximas com mais regularidade Ciro entatildeo torna-se um διδάσκαλος o mestre que

passa a ensinar seus conhecimentos

200 No Capiacutetulo 4322 de nossa Dissertaccedilatildeo analisamos o papel de Cambises como mentor de Ciro e de como ele reavalia as afirmaccedilotildees de Ciro 201 No original οι δοκῶ τὸ προτρέπον πείθεσθαι μάλιστα ὂν τὸ τὸν πειθόμενον ἐπαινεῖν τε

καὶ τιμᾶν τὸν δὲ ἀπειθοῦντα ἀτιμάζειν τε καὶ κολάζειν (Cirop 1620)

156

Um exemplo desta passagem do aluno para o mestre ocorre na narrativa de

Panteacuteia e Abradatas202 Ciro ordena que Araspas seja o guarda de Panteacuteia No Livro

512-18 quando Araspas encontra-se com Ciro e lhe conta sobre a beleza de Panteacuteia

inicia-se a discussatildeo entre os dois a respeito do amor Ciro afirma que teme se apaixonar

pela bela dama de Susa pois a paixatildeo lhe impediria de cumprir as suas obrigaccedilotildees

Araspas retruca a Ciro e inicia a reflexatildeo na qual ele afirma que ldquoO amor de outro

lado estaacute subordinado agrave vontaderdquo203 (Cirop 5117) e para comprovar a verdade de

suas palavras ele a exemplifica dizendo que se o amor natildeo dependesse da vontade o

pai desejaria a filha o irmatildeo desejaria a irmatilde poreacutem o amor eacute um sentimento diferente

da fome da sede do sentir frio no inverno ou sentir calor no veratildeo pois nenhuma lei eacute

capaz de evitar que o homem tenha estes sentimentos enquanto a lei impede o incesto

Ciro para dissuadir seu soldado lhe diz ldquo[] pois enquanto que o fogo queima quem

estaacute proacuteximo os belos excitam tambeacutem quem os contempla de longe a ponto de arder

de paixatildeordquo204 (Cirop 5116)

A maacutexima eacute formada pela comparaccedilatildeo entre fogo (πῦρ pur) e belos (καλοὶ

kaloi) e pela semacircntica dos verbos queimar (ἁπτω hapto) e excitar (ὑφάπτω

huphapto) formados pelo mesmo radical ἅπτ-205 pois o verbo uphaptousin eacute composto

pela preposiccedilatildeo ὑπό + ἀπτω (hupo + apto) Na primeira frase (ὡς τό μὲν πῦρ τοὺς

ἁπτομένους καίει) o sentido do verbo hapto que estaacute no particiacutepio meacutedio acusativo

plural eacute ldquoascenderrdquo ou seja uma accedilatildeo concreta na segunda frase (οἱ δὲ καλοὶ καὶ

τούς ἄπωθεν θεωμένους ὑφάπτουσιν) o sentido do verbo huphapto que estaacute na

terceira pessoa do plural eacute ldquoexcitarrdquo ou seja accedilatildeo abstrata que reafirma o alcance do

amor que queima mesmo os que estatildeo longe Araspas no entanto despreza o conselho

de Ciro e afirma que mesmo que nunca parasse de contemplaacute-la natildeo haveria perigo de

ser subjugado pelo amor a tal ponto que faltasse com seus deveres Todavia o narrador

nos conta que agrave medida que Araspas contemplava Panteacuteia ele se apaixonava cada vez

202 A narrativa de Panteacuteia e Abradatas eacute uma narrativa secundaacuteria cujo tema principal eacute o amor do casal que luta contra alguns obstaacuteculos para se manter fieacutel Esta narrativa serviu de referecircncia para os romancistas gregos 203 No original Τὸ δrsquo ἐρᾶν ἐθελούσιόν ἐστιν (Cirop 5117) 204 No original ὡς τό μὲν πῦρ τοὺς ἁπτομένους καίει οἱ δὲ καλοὶ καὶ τούς ἄπωθεν θεωμένους

ὑφάπτουσιν ὥστε αἴθεσται τῷ ἔρωτι (Cirop 5116) 205 O verbo ὑφάπτουσιν eacute composto pela preposiccedilatildeo ὑπό + ἀπτω

157

mais por ela O narrador e a narrativa portanto confirmam que a avaliaccedilatildeo correta

sobre o amor era a de Ciro e natildeo a de Araspas

Portanto do mesmo modo que no iniacutecio da narrativa da Ciropedia a maacutexima de

Ciro eacute reformulada pelos ensinamentos de seu pai na cena entre Ciro e Araspas eacute Ciro

quem reformula a maacutexima proferida por Araspas Ciro portanto assume o papel que

antes era o do seu pai tornando-se tambeacutem uma espeacutecie de mentor Este aspecto

caracteriacutestico de Ciro fica ainda mais evidente durante a uacuteltima cena da narrativa (Livro

87) quando diante de seus familiares Ciro pronuncia um longo discurso dirigindo-se a

seus dois filhos no qual revisita todos os principais ensinamentos discorridos pela obra

Ciro ao estabelecer Cambises o primogecircnito como herdeiro do Impeacuterio Persa

daacute a Tanaoxares as satrapias da Meacutedia da Armecircnia e da Caldeacuteia regiotildees que antes da

construccedilatildeo do impeacuterio jaacute eram ou aliadas dos persas ou submetidas a eles Apoacutes

determinar sua sucessatildeo Ciro procura acalmar a vaidade de Tanaoxares demonstrando

que de um lado se ele eacute apenas um saacutetrapa de outro os trabalhos e os infortuacutenios do

seu irmatildeo imperador seratildeo muito maiores Depois afirma a Cambises que ldquoOs amigos

fieacuteis satildeo para os reis os cetros mais verdadeiros e mais confiaacuteveisrdquo206 (Livro 8713)

Poreacutem afirma que os homens natildeo satildeo leais por natureza mas que cada um deve criar as

suas lealdades Eacute interessante este comentaacuterio por demostrar demonstrar que todos

aqueles que na narrativa foram servos fieacuteis e leais a Ciro tiveram suas lealdades

conquistadas por ele A partir destes comentaacuterios Ciro ainda faz mais algumas reflexotildees

a respeito da lealdade dos homens afirmando que nenhum homem eacute mais leal a outro

homem do que o irmatildeo e termina esse tema de seu discurso com outra maacutexima Quem

zela pelo irmatildeo de si mesmo cuida207 (Livro 8715) Ciro continua seu discurso

versando sobre outros temas ndash sobre a imortalidade da alma sobre o devido respeito aos

deuses e sobre o desejo de ser cremado apoacutes a morte no final Ciro profere sua uacuteltima

maacutexima pouco antes de se despedir dos filhos Beneficiando aos amigos sereis capazes

de castigar os inimigos208 (L 8728)

Ciro termina a narrativa como um saacutebio mestre da verdade que depois de

experienciar uma vida repleta de sucessos pode ldquoespalhar a verdaderdquo conforme a

expressatildeo de Detienne ([sd])

206 No original οἱ πιστοὶ φίλοι σκῆπτρον βασιλεῦσιν ἀληθέστατον καiacute ἀσφαλέστατον (Livro VIII713) 207 No original Ἑαυτοῦ τοι κήδεται ὁ προνοῶν ἀδελφῳ (Livro VIII715) 208 No original τοὺς φίλους εὐεργετοῦντες καὶ τοὺς ἐχθροὺς δυνήσεσθε κολάζειν (L VIII828)

158

Concluiacutemos este capiacutetulo reafirmando que as maacuteximas na tessitura narrativa da

Ciropedia apresentam-se como uma instacircncia discursiva importante na caracterizaccedilatildeo

da personagem Ciro Ciro evolui de aprendiz para mestre e esta transformaccedilatildeo eacute

figurativizada na narrativa por meio da locuccedilatildeo de maacuteximas A anaacutelise do contexto de

locuccedilatildeo das maacuteximas demonstrou que os conhecimentos apreendidos pelas diversas

experiecircncias por que Ciro passa lhe permitem natildeo soacute reproduzir maacuteximas mas tambeacutem

as produzir As experiecircncias tanto na guerra quanto nas relaccedilotildees com as outras

personagens desenvolvem o comportamento do heroacutei da Ciropedia e este experiente

passa a ensinar os que o rodeiam por meio de maacuteximas As maacuteximas de Ciro que no

iniacutecio eram reformuladas pelos seus mentores no final da Ciropedia passam a ser

palavras de guia para seus filhos instituindo Ciro como um saacutebio mentor

Figura 4 Cilindro de Ciro cilindro de argila descoberto em 1879 e considerado a primeira declaraccedilatildeo dos direitos humanos da humanidade Fonte Foto de Marco Prins e J Lendering visualisada em httpwwwliviusorgct-czcyrus_Icyrus_cylinderhtml

159

6 Consideraccedilotildees finais

O final de um percurso revela em geral mais do que se esperava em seu iniacutecio

Apesar disso eacute inevitaacutevel a satisfaccedilatildeo de descobrir que algumas de nossas intuiccedilotildees

primevas revelaram-se verdadeiras e coerentes Este trabalho de anaacutelise da Ciropedia se

deve muito agraves intuiccedilotildees iniciais que no longo trajeto de formaccedilatildeo da Dissertaccedilatildeo

sempre clarearam a nossa visatildeo mesmo nos momentos de maiores dificuldades e

incertezas

Iniciamos nosso trabalho repletos de duacutevidas a respeito de como enfrentar os

problemas terminoloacutegicos a respeito do gecircnero do romance De que modo poderiacuteamos

usar uma terminologia moderna para tratar de uma obra literaacuteria produzida na

Antiguidade Quais as inevitaacuteveis consequecircncias de tal uso E principalmente o que

significa no acircmbito da literatura grega claacutessica uma obra ficcional em prosa Nossa

preocupaccedilatildeo era tornar plausiacutevel a argumentaccedilatildeo de que a Ciropedia efetua importantes

inovaccedilotildees na prosa ficcional da Antiguidade e por conseguinte na prosa ficcional

moderna podendo ser considerada uma das primeiras manifestaccedilotildees romanescas da

literatura Ocidental

A questatildeo eacute problemaacutetica uma vez que o romance (prosa ficcional) comeccedilou a

fazer parte do cacircnone literaacuterio apenas a partir dos seacuteculos XVIII e XIX e o termo

romance surgiu apenas no seacuteculo XII Assim os teoacutericos identificaram o romance como

uma manifestaccedilatildeo literaacuteria proacutepria dos tempos modernos sem precedentes na

Antiguidade O romance portanto eacute uma forma que natildeo se estrutura a partir do cacircnone

claacutessico e que por isso apresenta uma forma aberta sempre renovadora Aleacutem desse

caraacuteter sempre inovador tambeacutem identificava um tipo de mateacuteria em que a personagem

problemaacutetica se opunha agrave sociedade opressora proacutepria da sociedade burguesa

revolucionaacuteria Nestas circunstacircncias uma obra como a Ciropedia que apresenta em

sua forma o caraacuteter idealizado do heroacutei e a sua trajetoacuteria harmocircnica com a sociedade

dificilmente poderia ser classificada como um romance antes do romance A ausecircncia

do caraacuteter problemaacutetico entretanto da mateacuteria narrativa natildeo significa que do ponto de

vista da forma as correspondecircncias natildeo se acentuam com mais clareza

A teoria do romance de Bakhtin nos ajudou a identificar um ponto preciso nesta

discussatildeo Para o teoacuterico russo a problemaacutetica do indiviacuteduo com a sociedade eacute um tema

160

de grande produtividade no romance poreacutem natildeo eacute o uacutenico Assim o romance deve ser

compreendido principalmente a partir de questotildees estruturais como por exemplo a

representaccedilatildeo da personagem ou do cronotopo etc No entanto sem negar a

potencialidade do romance moderno Bakhtin natildeo nega tambeacutem que a base do

desenvolvimento da forma romanesca estaacute presente em algumas formas discursivas da

Antiguidade e da Idade Meacutedia Seria inoportuno neste momento retomar todas as

valiosas contribuiccedilotildees de Bakhtin para a teoria do romance Para nosso trabalho as duas

principais contribuiccedilotildees foram os conceitos de moderniazaccedilatildeo da histoacuteria e de

archaica

Quanto agrave modernizaccedilatildeo da histoacuteria em seu estudo Epos e Romance Bakhtin

(2002) afirma que a forma romanesca surge da desintegraccedilatildeo da distacircncia eacutepica entre

presente e passado Enquanto na epopeia o passado miacutetico surge como um fenocircmeno

fechado e destituiacutedo de autoria o passado no romance surge a partir de questotildees

colocadas pelo presente do autor Neste sentido um tema da histoacuteria natildeo eacute representado

pela fidelidade agrave histoacuteria em ordenar e descrever o passado tal qual ele aconteceu mas

eacute representado em vista de responder a questotildees do presente Desse modo o passado eacute

ficcionalizado e o factual e o veriacutedico abrem espaccedilo para a infiltraccedilatildeo do verossimil

Demonstramos no terceiro capiacutetulo de nossa Dissertaccedilatildeo que Xenofonte

ficcionaliza os dados histoacutericos a respeito da vida de Ciro Nossa anaacutelise privilegiou a

comparaccedilatildeo da narrativa apresentada por Xenofonte com a narrativa que Heroacutedoto faz a

respeito de Ciro em seu livro Histoacuterias Uma vez que natildeo podemos nos certificar de

outras possiacuteveis fontes com que Xenofonte pudesse ter trabalhado pudemos comprovar

a partir do conceito de intertextualidade que Xenofonte construiu sua narrativa

contrastando-a e dialogando diretamente com a narrativa de Heroacutedoto As Histoacuterias

funcionavam como um discurso de autoridade para Xenofonte e nesta nova versatildeo da

narrativa sobre Ciro era necessaacuterio suprimir o que contrastasse com a visatildeo idealizada e

encomiaacutestica narrada por Xenofonte que manipula portanto o material estabelecido

pela narrativa de Heroacutedoto

O resultado de tal manipulaccedilatildeo eacute uma narrativa idealizada em que o tema do

governo ideal caro agrave sua eacutepoca histoacuterica eacute constantemente levantado e respondido O

caraacuteter didaacutetico dessa ficcionalizaccedilatildeo visa menos recontar o passado a partir de

estrateacutegicas de validaccedilatildeo da narrativa ldquocomo de fato aconteceurdquo do que se dirigir como

exemplum para os leitores gregos do presente Desse modo em sua narrativa

Xenofonte-autor aproxima-se do passado inacabado rompendo a distacircncia eacutepica com

161

caraacuteter inacabado do presente Os exemplos que analisamos neste capiacutetulo demonstram

a tentativa de Xenofonte de recriar esse passado para construir um todo concreto e ideal

Natildeo eacute o passado o ponto de partida de Xenofonte mas a contemporaneidade que ldquodita

os pontos de vista e as orientaccedilotildees para certos valoresrdquo (BAKHTIN 1998 p418) e

neste sentido o passado eacute modernizado A Ciropedia portanto pode ser lida como um

romance

A partir disso entramos em uma segunda fase da nossa Dissertaccedilatildeo em que

procuramos demonstrar a relaccedilatildeo da Ciropedia com o romance de formaccedilatildeo moderno

uma vez que muitos criacuteticos classificavam-na como uma das primeiras manifestaccedilotildees

deste subgecircnero literaacuterio Contudo em nossa opiniatildeo natildeo havia uma anaacutelise eficaz que

justificasse tal classificaccedilatildeo Procuramos portanto em nossa anaacutelise privilegiar os

aspectos estruturais do gecircnero e neste sentido o conceito de archaica empregado por

Bakhtin (2010) foi fundamental A archaica eacute a estrutura de um gecircnero que estaacute sempre

presente e ainda que constantemente renovando-se permanece como caracteriacutestico da

forma

Procuramos identificar quais as estruturas miacutenimas que caracterizam o gecircnero do

Romance de formaccedilatildeo moderno e em seguida verificar se estas estruturas estavam

tambeacutem presentes na Ciropedia Analisamos cenas da narrativa como o afastamento da

casa materna a presenccedila de mentores a passagem por instituiccedilotildees educacionais os

erros de avaliaccedilatildeo da personagem principal e a visatildeo teleoloacutegica de educaccedilatildeo que

constituem experiecircncias tiacutepicas pelas quais o heroacutei passa no romance de formaccedilatildeo

(JACOBS 1989 apud MAAS 2000) Estes elementos estruturais natildeo aparecem de

forma estaacutetica mas se combinam em cenas bem organizadas e conduzem a evoluccedilatildeo da

personagem principal no decorrer da narrativa

Aleacutem disso verificamos que o heroacutei da Ciropedia como uma personagem tiacutepica

do romance de formaccedilatildeo natildeo eacute uma personagem estaacutetica mas eacute de algum modo

dinacircmica ou seja evoluiacute no decorrer da narrativa Esta evoluccedilatildeo fica patente quando

observamos a locuccedilatildeo das maacuteximas na obra uma vez que Ciro que no iniacutecio natildeo

formula maacuteximas passa a formular e a instruir os que o rodeiam tornando-se desse

modo um mestre da verdade passando de um inexperiente mathetes para um saacutebio

didaskalos Assim o heroacutei da Ciropedia portanto eacute uma ldquounidade dinacircmicardquo

(BAKHTIN 2010 p237) e se enquadra no tipo de personagem do romance de

formaccedilatildeo

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Concluiacutemos nossa Dissertaccedilatildeo afirmando que a Ciropedia natildeo deve ser lida

como uma obra historiograacutefica e sim como uma obra de ficccedilatildeo em prosa Xenofonte

assim inovou na Literatura Grega rompendo com a tradiccedilatildeo da prosa claacutessica e

iniciando um novo caminho um caminho em que a prosa se assume ficcional

163

7 Traduccedilatildeo

A traduccedilatildeo aqui apresentada eacute uma traduccedilatildeo de serviccedilo ou escolar Isso significa

que nossa intenccedilatildeo ao propor tal empreitada natildeo eacute recriar em liacutengua vernaacutecula por

criteacuterios estiliacutesticos o texto grego mas sim apenas nos aproximar do texto original de

Xenofonte Julgamos necessaacuterio tal aproximaccedilatildeo uma vez que as traduccedilotildees para nossa

liacutengua ainda que competentes natildeo nos satisfaziam completamente quando comparadas

ao texto original Neste sentido procuramos manter sempre que possiacutevel os

componentes sintaacuteticos e semacircnticos ainda que tornassem o texto mais ldquotruncadordquo

Talvez um projeto de traduccedilatildeo integral da Ciropedia repensando o texto grego pelos

equivalentes vernaculares seja desenvolvido por noacutes uma vez que a empreitada eacute muito

atrativa Poreacutem isto satildeo cousas futuras

Como se trata de um trabalho de Mestrado natildeo houve tempo para que fosse feita

uma traduccedilatildeo integral dos oito livros da Ciropedia Por esse motivo pudemos traduzir

apenas o seu Livro I Entretanto neste livro se encontram todos os elementos discutidos

nesta Dissertaccedilatildeo ndash tanto a ficcionalizaccedilatildeo da histoacuteria quanto as estruturas da archaica

e por isso a sua traduccedilatildeo adequou-se aos objetivos desta Dissertaccedilatildeo

Utilizamos o texto grego estabelecido por E C Marchant editado pela

Clarendon (1910) comparando com o texto extabelecido por Marcel Bizos editado pela

Belles Lettres (1972)

CIROPEDIA LIVRO I

I [1] Ocorreu a noacutes certa vez o pensamento de quantas democracias foram dissolvidas

por aqueles que desejavam mais viver como cidadatildeos de algum outro regime do que na democracia e por sua vez de quantas monarquias quantas oligarquias foram aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam a tirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido e totalmente outros tanto quanto fosse o tempo que governaram satildeo admirados por terem se tornando homens saacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem disso que muitos em suas proacuteprias casas tanto quem tem numerosos servos como quem tem muito poucos nem mesmo os senhores de pouquiacutessimos servos conseguiam que a obediecircncia fosse observada

[2] Ainda sobre essas coisas pensaacutevamos que governantes eram tambeacutem os boieiros e os eguariccedilos e todos os que satildeo chamados pastores os quais podem com razatildeo ser considerados governantes dos animais que comandam Com efeito pareciacuteamos testemunhar todos esses rebanhos obedecendo aos pastores com mais boa vontade do que os homens aos governantes Pois os rebanhos marcham por onde quer que os pastores os conduzam pastam nas terras para

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onde eles os levam e mantecircm-se afastados dos lugares que eles lhes vedam E quanto aos lucros produzidos por eles permitem que os pastores deles se utilizem da forma que desejarem Aleacutem disso jamais ouvimos que algum rebanho tenha conspirado contra os pastores nem por natildeo obedecer nem por natildeo lhes confiar o uso dos lucros mas os rebanhos satildeo mais bravios com os estranhos do que com quem os governa e tira proveito deles Os homens ao contraacuterio contra ningueacutem satildeo mais rebeldes do que contra aqueles em que percebem o desejo de governaacute-los

[3] Desde que entatildeo refletiacuteamos a respeito dessas coisas concluiacutemos que eacute da natureza humana que seja mais faacutecil governar todos os outros animais do que os homens Contudo quando observamos que existiu Ciro o persa que conservou numerosos homens obedientes a ele numerosas cidades numerosos povos a partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de que o governar os homens natildeo eacute das tarefas nem impossiacuteveis nem aacuterduas se algueacutem agir com habilidade Ao menos sabemos que a Ciro eram obedientes de bom grado uns estando distantes uma marcha de numerosos dias outros de meses e outros ainda que jamais o viram e mesmo aqueles que bem sabiam que natildeo o veriam todavia desejavam lhe obedecer

[4] Por isso distinguiu-se tanto dos outros reis seja dos que receberam os governos dos pais seja dos que o conquistaram por si mesmos tanto que o rei Cita embora numerosos fossem os citas natildeo conseguiria governar nenhum outro povo e se consideraria satisfeito se continuasse governante dos proacuteprios citas tambeacutem o rei Traacutecio em relaccedilatildeo aos traacutecios o rei Iliacuterio em relaccedilatildeo aos iliacuterios e ouvimos o mesmo dos outros povos Os da Europa aleacutem disso ainda hoje se dizem autocircnomos e independentes uns dos outros

Ciro encontrando os povos da Aacutesia do mesmo modo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito de persas e governou os medos com o bom grado destes e os hircanos tambeacutem com o bom grado destes mas subjugou os siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutedios os caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendia e a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e os magaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeo se saberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendo por mar os cipriotas e os egiacutepcios

[5] E de fato governou esses povos sem que falassem a mesma liacutengua que ele e nem uns com os outros e apesar de tudo pocircde estender-se sobre tatildeo vasta regiatildeo pelo temor que inspirava a ponto de causar medo em todos e ningueacutem se rebelar contra ele Pocircde tambeacutem incutir tal desejo de que todos fossem agradaacuteveis a ele que sempre consideravam justo ser guiados pelo seu juiacutezo Submeteu ainda povos tatildeo numerosos que percorrecirc-los eacute trabalhoso por onde quer que se comece a marchar a partir do palaacutecio real seja em direccedilatildeo da aurora seja em direccedilatildeo do poente seja em direccedilatildeo do norte ou do sul [6] Em vista deste homem ser digno de nossa admiraccedilatildeo refletimos qual era a sua origem qual natureza possuiacutea e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo que a tal ponto o conduziram a governar os homens Portanto quanto averiguamos e quanto julgamos ter compreendido sobre Ciro tentaremos narrar detalhadamente

II [1] Ciro dizem era filho de Cambises rei dos persas esse Cambises dos Persidas

descendia e os Persidas receberam esse nome graccedilas a Perseu Eacute consenso que a matildee foi Mandane e esta Mandane era filha de Astiacuteages rei dos Medos Ainda hoje louva-se e canta-se pelos baacuterbaros que Ciro era por natureza de aparecircncia beliacutessima com alma boniacutessima amantiacutessimo dos estudos e das honras de tal modo que suportava todas as fadigas e resistia a todos os perigos pelo amor agraves honras [2] Guarda-se a recordaccedilatildeo de que tinha essa natureza de corpo e de alma

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Certamente foi educado nas leis dos persas Estas leis parecem comeccedilar dando a atenccedilatildeo ao bem puacuteblico natildeo onde comeccedilam a maioria dos estados Pois a maioria das cidades permite educar os filhos tal como se deseje e aos proacuteprios adultos levar a vida conforme desejem Em seguida ordenam a eles natildeo roubar nem furtar nem invadir os domiciacutelios nem bater em quem natildeo merece nem cometer adulteacuterio nem desobedecer a um magistrado e outras coisas desse tipo se algueacutem transgride alguma dessas leis impotildeem puniccedilatildeo a eles

[3] As leis persas entretanto agindo preventivamene cuidam para que desde o iniacutecio os cidadatildeos natildeo sejam capazes de desejar alguma maldade ou accedilatildeo vergonhosa E cuidam dessa maneira haacute para eles uma praccedila chamada Liberdade onde foram construiacutedos o palaacutecio real e as outras magistraturas Desse lugar os mercadores com seus produtos gritarias e vulgaridades foram expulsos a fim de que a desordem natildeo se misture com a dececircncia daqueles que se educando [4] A proacutepria praccedila que estaacute ao redor das magistraturas divide-se em quatro partes Uma delas eacute para os meninos uma para os efebos uma para os adultos e uma para os que jaacute passaram da idade do serviccedilo militar

Segundo a lei cada um se apresenta agrave sua seccedilatildeo os meninos e os adultos ao nascer do dia os de idade avanccedilada quando convier a cada um exceto em determinados dias quando eacute preciso que estejam presentes com os outros Os efebos tambeacutem dormem ao redor das magistraturas com os armamentos de infantaria exceto os casados Estes por um lado natildeo satildeo requesitados caso natildeo seja ordenado com antecedecircncia que estejam presentes mas natildeo eacute bom que estejam ausentes com frequecircncia

[5] Satildeo doze os chefes agrave frente de cada uma dessas seccedilotildees pois em doze satildeo divididas as tribos da Peacutersia Para o comando dos meninos satildeo escolhidos dentre os mais velhos aqueles que parecem capazes de tornar os meninos melhores Agrave frente dos efebos por outro lado aqueles entre os adultos que por sua vez pareccedilam capazes de tornar os efebos melhores No comando dos adultos aqueles que forem considerados capazes de proporcionar a eles o melhor cumprindo as ordens e as determinaccedilotildees do poder supremo Satildeo tambeacutem escolhidos os chefes para os mais velhos que tomam medidas necessaacuterias para que esses cumpram as coisas estabelecidas O que a cada idade eacute ordenado fazer contaremos detalhadamente a fim de que se torne mais evidente como eles cuidam para que os cidadatildeos sejam melhores

[6] Os meninos frequentando a escola passam o tempo aprendendo a justiccedila e dizem que vatildeo agrave busca de aprender isso do mesmo modo que entre noacutes dizem que vatildeo agrave busca de aprender as letras Os chefes deles passam a maior parte do dia julgando-os pois ocorrem entre os meninos como entre os adultos acusaccedilotildees muacutetuas de furto roubo violecircncia traiccedilotildees e injuacuterias e outras coisas parecidas [7] Se reconhecem neles que satildeo injustos punem Castigam tambeacutem se acaso descobrirem que eles estatildeo acusando injustamente Julgam ainda a falta que por causa dela os homens se odeiam bem mais mas processam menos a ingratidatildeo Pois se observam que algueacutem podendo expressar gratidatildeo natildeo expressa punem-no com severidade Crecircem pois que os ingratos satildeo mais negligentes com os deuses com os familiares com a paacutetria e com os amigos Entretanto nada parece estar mais junto da ingratidatildeo do que a impudecircncia pois esta parece ser de todas as vergonhas a guia [8] Ensinam ainda aos meninos a temperanccedila e contribui muito para aprender a ser moderado que observem os mais velhos ao longo de todo o dia vivendo com moderaccedilatildeo Ensinam tambeacutem a eles a obedecer aos chefes e muito contribui para isso que eles observem os mais velhos obedecendo aos chefes com rigor Ensinam aleacutem disso a moderaccedilatildeo no beber e no comer e muito contribui para isso que eles observem os mais velhos natildeo saindo para comer antes que os chefes os liberem e tambeacutem que os meninos natildeo se alimentem junto das matildees mas dos mestres quando as autoridades

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determinem Trazem de casa patildeo de trigo tempero e agriatildeo e para beber se algueacutem tem sede uma grande taccedila para tirar aacutegua do rio Ademais aprendem a atirar com arco e flecha e a lanccedilar dardos Os meninos fazem isso ateacute os dezessete anos de idade apoacutes isso eles passam para a classe dos efebos

[9] Os efebos por sua vez passam o tempo dessa maneira ao saiacuterem da classe dos meninos por dez anos dormem em torno das magistraturas como predissemos para proteger tanto a cidade quanto a prudecircncia pois essa idade parece ter necessidade de mais diligecircncia Durante o dia se colocam a disposiccedilatildeo das autoridades no caso de alguma necessidade em favor da comunidade E quando eacute preciso todos permanecem ao redor das magistraturas Quando o rei sai agrave caccedila leva metade dos guardas e faz isso muitas vezes no mecircs Os que vatildeo necessitam de arcos e flechas e junto com a aljava na bainha a espada ou um machado aleacutem de um escudo e duas lanccedilas uma para arremessar e a outra caso seja necessaacuterio para atacar com as matildeos [10] Em vista disso organizam em nome do Estado a caccedila e o rei como eacute chefe deles na guerra tambeacutem o eacute na caccedila e cuida para que os outros cacem porque esse exerciacutecio parece ser o mais propiacutecio para guerra pois habitua a levantar cedo e a suportar o frio e o calor exercita nas caminhadas e nas corridas e eacute necessaacuterio lanccedilar flechas e dardos numa fera quando ela surge de imprevisto E frequentemente eacute preciso excitar a alma quando algueacutem se coloca diante de uma fera robusta pois sem duacutevida alguma eacute preciso atacar quando ela se aproxima e se proteger quando ela ataca De modo que natildeo eacute faacutecil encontrar algo que acontecendo na guerra falte agrave caccedila

[11] Saem agrave caccedila levando uma refeiccedilatildeo que de um lado como eacute natural eacute mais abundante do que a dos meninos mas de outro eacute semelhante agrave deles Quando estatildeo caccedilando natildeo almoccedilam se tem alguma necessidade de permanecer mais tempo por causa de uma fera ou por qualquer outro motivo desejam demorar-se na caccedila entatildeo eles jantam a comida do almoccedilo e no dia seguinte caccedilam ateacute a ceia e calculam esses dois dias como um porque consomem o alimento de um uacutenico dia Fazem isso em razatildeo do habituar-se para que se tiver alguma necessidade na guerra poderatildeo fazecirc-lo E os dessa idade tecircm como alimento aquilo que caccedilarem se natildeo mastruccedilo Se algueacutem pensa que eles comem sem prazer quando tecircm com o patildeo apenas o mastruccedilo ou bebem sem prazer quando bebem aacutegua deve se lembrar como eacute prazeroso comer patildeo de cevada e patildeo de trigo quando se tem fome e como eacute prazeroso beber aacutegua quando se tem sede

[12] Por sua vez as seccedilotildees que permanecem passam o tempo exercitando-se nas outras coisas que aprenderam quando eram crianccedilas sobretudo no lanccedilar flechas e dardos e mantecircm-se em disputa uns com os outros Haacute tambeacutem competiccedilotildees puacuteblicas entre eles e se oferecem precircmios Se existir em algum dos grupos numerosos homens haacutebeis corajosos e obedientes os cidadatildeos louvam e honram natildeo soacute o arconte atual mas tambeacutem aquele que os ensinou quando eram crianccedilas As autoridades se servem daqueles efebos que permanecem e se houver alguma necessidade ou de montar-guarda ou de procurar criminosos ou correr atraacutes de ladrotildees entre outras coisas tanto quanto for trabalho de forccedila e agilidade Os efebos portanto se ocupam com essas coisas Depois que completam dez anos chegam agrave classe dos adultos

[13] A partir do momento que chegam nesta classe passam vinte e cinco anos dessa maneira primeiramente como os efebos se colocam agrave disposiccedilatildeo das autoridades se houver necessidade em prol da comunidade tanto quanto for trabalho de reflexatildeo e vigor Se haacute necessidade de servir como soldado em algum lugar os que foram educados dessa maneira fazem expediccedilotildees natildeo mais levando arco e flecha nem lanccedilas mas armas ditas de combate corpo-a-corpo couraccedila ao redor do peito e escudo na matildeo esquerda tal como os persas satildeo

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representados e na destra uma adaga ou espada curta E todos os magistrados satildeo escolhidos dentre eles exceto os professores das crianccedilas Depois de completarem vinte e cinco anos eles poderatildeo vir a ter algo mais que cinquenta anos de idade partem nesse momento para a classe dos que sendo mais velhos satildeo assim chamados

[14] Esses mais velhos por sua vez natildeo mais fazem expediccedilotildees no exterior e permanecendo na paacutetria julgam todas as coisas da comunidade e dos particulares E eles tambeacutem julgam as sentenccedilas de morte e elegem todos os magistrados E se algueacutem dos efebos ou dos homens adultos negligencia alguma das leis e cada um dos chefes ou qualquer outro que quiser denuncia-o os mais velhos tendo escutado a acusaccedilatildeo condenam e o julgado passa o resto da vida separado

[15] A fim de que toda a constituiccedilatildeo dos persas seja mostrada com mais evidecircncia recapitulo um pouco pois agora graccedilas ao que foi dito anteriormente poderaacute ser mostrado rapidamente Os persas dizem satildeo em torno de cento e vinte mil e nenhum deles estaacute excluiacutedo por lei das honras e dos cargos mas eacute permitido a todos os persas enviar seus filhos para as escolas puacuteblicas de justiccedila Mas certamente os que podem sustentar os filhos sem que eles trabalhem enviam os que natildeo podem natildeo enviam Aos que foram educados junto aos mestres puacuteblicos eacute permitido por lei passar a juventude na classe dos efebos mas aos que natildeo foram educados dessa maneira natildeo eacute permitido Aos que por sua vez permanecem na classe dos efebos cumprindo as leis a eles eacute permitido entrar na classe dos adultos e participar dos cargos e das honras e os que natildeo passam na classe dos efebos natildeo entram na classe dos adultos Os que resistem irrepreensiacuteveis na classe dos adultos esses chegam agrave classe dos mais velhos Desse modo entatildeo a classe dos mais velhos constitui-se por aqueles que atingiram todas as classes com honra essa eacute a constituiccedilatildeo que consideram que obedecendo se tornaratildeo os melhores

[16] Ainda hoje persistem testemunhos do modo de vida moderado dos persas e do exercitar-se habitualmente pois ainda hoje eacute vergonhoso para os persas escarrar e assuar o nariz e mostrar-se repleto de flatos e tambeacutem eacute vergonhoso aparecer em puacuteblico indo a algum lugar urinar ou para alguma outra coisa Natildeo poderiam fazer isso se natildeo dispusessem de um regime moderado e natildeo digerissem os liacutequidos exercitando-se de tal modo que sejam expelidos por qualquer outro lugar

Isso eacute o que podemos dizer a respeito dos persas em geral Narraremos agora as accedilotildees de Ciro que a narrativa comeccedilou por causa disso iniciando a partir da infacircncia

III [1] Ciro com efeito ateacute os doze anos ou pouco mais foi educado nessa paideia e

mostrava-se superando a todos os da sua idade tanto no aprender com rapidez as coisas que fossem necessaacuterias quanto no cumprir cada tarefa com nobreza e virilidade

Nesse tempo Astiacuteages mandou chamar sua filha e o filho dela pois desejava vecirc-lo jaacute que ouvira que ele era excelente A proacutepria Mandane parte ateacute o pai levando o filho Ciro [2] Logo que chegou Ciro reconheceu Astiacuteages como sendo seu avocirc e de imediato como era uma crianccedila amorosa por natureza beijava-o como algueacutem beijaria a antigos convivas e a antigos amigos E notou que ele estava enfeitado de acordo com o costume medo com contornos nos olhos pintado com arrebiques e de cabeleiras posticcedilas Todas essas coisas satildeo medas as tuacutenicas puacuterpuras os casacos os colares ao redor do pescoccedilo braceletes em torno dos punhos Aleacutem disso ainda hoje os persas em suas casas usam roupas muitas mais simples e tecircm um regime mais frugal

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Notando entatildeo a maquiagem do avocirc fixou os olhos nele e disse ldquoMatildee como eacute belo o meu avocircrdquo Tendo a matildee perguntado a ele qual dos dois o pai ou o avocirc parecia ser a ele o mais

belo Ciro respondeu ldquoMatildee entre os persas meu pai eacute muito mais belo seguramente dos quantos medos que

eu vi tanto nas estradas quanto na corte meu avocirc eacute o mais belordquo [3] O avocirc retribuindo-o vestiu-o com uma bela estola e honrou-o e enfeitou-o com

braceletes e colares e se ia sair agrave cavalo levava-o consigo sobre um cavalo de freios dourados como ele proacuteprio costumava ir Ciro como era uma crianccedila que amava as belezas e as honrarias se alegrou com a estola e se regozijou extremamente aprendendo a cavalgar pois na Peacutersia por ser difiacutecil criar cavalos e cavalgar no paiacutes que eacute montanhoso era muito raro ver um cavalo

[4] Astiacuteages jantando com a filha e Ciro querendo que a crianccedila comesse com o maacuteximo de prazer para que sentisse menos saudades de casa conduziu em torno dele guloseimas toda a sorte de molhos e alimentos Dizem que entatildeo Ciro disse

ldquoAvocirc quantas inquietaccedilotildees tecircm na ceia se eacute necessaacuterio a ti estender as matildeos sobre todas essas travessas e degustar do tipo de alimentosrdquo

ldquoMas quecirc ndash disse Astiacuteages ndash pois natildeo parece a ti ser muito mais gostosa esta ceia do que a que tem na Peacutersiardquo E Ciro visando responder a isso disse

ldquoNatildeo avocirc pois o caminho para saciar-se eacute para noacutes muito mais simples e muito mais direto do que para voacutes pois enquanto o patildeo e a carne nos conduzem a isso voacutes indo na mesma direccedilatildeo vos lanccedilais e perdendo-se em muitos giros para cima e para baixo chegais arduamente aonde noacutes desde haacute muito chegamosrdquo

[5] ldquoMas crianccedila erramos em torno disso e natildeo ficamos aflitos Tu contudo provando reconheceraacutes que eacute prazerosordquo

ldquoMas vejo-te oacute avocirc experimentando horror por estas comidasrdquo ldquoFilho por qual sinal tu dizes issordquo ldquoPorque vejo quando tocas no patildeo que tu natildeo limpas a matildeo em nada mas quando ao

contraacuterio toca em algum desses alimentos imediatamente limpa a matildeo nos guardanapos de modo que estava muito aborrecido por ter as matildeos cheias delesrdquo

[6] Depois disso Astiacuteages disse ldquoSe entatildeo pensas assim filho regala-te com a carne para que voltes robusto para casardquo Ao mesmo tempo em que dizia isso serviu a ele inuacutemeras carnes de animais selvagens e domeacutesticos Ciro assim que viu a numerosa carne disse ldquoDe fato avocirc tu me daacutes toda essa carne para que eu faccedila com elas o que eu quiserrdquo

[7] ldquoSim filho por Zeusrdquo Ciro pegando a carne distribuiu aos serviccedilais ao redor do avocirc dizendo a cada um ldquoIsso eacute para ti pois me ensinas de boa vontade a cavalgar para ti pois me daacutes a lanccedila e agora eu a tenho para ti pois serves meu avocirc nobremente e a ti pois honras minha matildeerdquo Dizia assim enquanto distribuiacutea as carnes que pegava

[8] ldquoA Sacas disse Astiacuteages o escanccedilatildeo a quem eu tenho muitiacutessima estima nada daacutesrdquo Sacas com efeito calhava de ser belo e de ter a funccedilatildeo de conduzir a Astiacuteages os que tivessem necessidade e de impedir quem ele julgasse que natildeo fosse oportuno ser conduzido E Ciro perguntou com petulacircncia como uma crianccedila que natildeo eacute tiacutemida ldquoPor que avocirc honra-o desse modordquo

Astiacuteages divertindo-se disse ldquoNatildeo vecircs quatildeo belo e honradamente ele verte o vinhordquo Os escanccedilotildees desses reis vertem o vinho com graccedila e servem com limpeza servem segurando a taccedila com trecircs dedos e entregam assim para que quem receber possa melhor apanhar a taccedila para beber

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[9] ldquoAvocirc ordena entatildeo a Sacas que me decircs a taccedila para que eu tambeacutem te servindo belamente o que beber conquiste-te se eu puderrdquo Ele ordenou-o a dar Ciro tomando a taccedila de tal modo enxaguou-a bem como vira Sacas fazer e de tal modo fixando o rosto com gravidade apresentou-se nobremente e deu a taccedila ao avocirc provocando na matildee e no avocirc muitas risadas E o proacuteprio Ciro pondo-se a rir atirou-se sobre o avocirc e enquanto o beijava disse

ldquoOacute Sacas estaacutes perdido Demitir-te-ei do cargo pois verterei o vinho melhor do que vocecirc e natildeo beberei o vinho delerdquo Com efeito os escanccedilotildees dos reis cada vez que lhes entregam a taccedila tiram um pouco dela para si com uma concha e vertendo o vinho na matildeo esquerda experimentam-no para que se algueacutem verteu veneno natildeo obtenha sucesso

[10] Depois disso Astiacuteages gracejando disse ldquoPorque Ciro imitando Sacas nas outras coisas natildeo sorveu o vinhordquo

ldquoPorque por Zeus temia que tivessem misturado veneno na cratera Pois quando tu recebeste os amigos nas festas de aniversaacuterio claramente observei que ele vos servia venenordquo

ldquoE de que maneira tu notavas issordquo ldquoPor Zeus pois via vos cambaleando o corpo e o juiacutezo Primeiramente o que natildeo

permites a noacutes as crianccedilas fazer voacutes mesmos o faziam Todos gritavam ao mesmo tempo e nada entendiacuteeis uns dos outros cantaacuteveis de modo muito risiacutevel e natildeo ouvindo com atenccedilatildeo o que cantaacuteveis julgaacuteveis cantar nobremente cada um deles falava de sua proacutepria forccedila em seguida se levantassem para danccedilar natildeo soacute natildeo danccedilavam no ritmo mas nem conseguiam endireitar-se Tu esqueceste-te totalmente de que tu eras o rei e os outros de que tu eras o governante pois nesse momento eu ao menos pela primeira vez entendi que isso com efeito era a igualdade de expressatildeo o que voacutes praticaacuteveis entatildeo Ao menos jamais voacutes vos calaacuteveisrdquo

[11] E Astiacuteages disse ldquoE o seu pai menino quando bebe natildeo se embriagardquo ldquoNatildeo por Zeusrdquo ldquoMas como ele fazrdquo ldquoEle sacia a sua sede e nenhum outro mal sofre pois penso avocirc natildeo eacute Sacas quem lhe

serve o vinhordquo A matildee entatildeo disse ldquoMas por que tu filho fazes guerra a Sacas desse modordquo ldquoPorque por Zeus disse Ciro odeio-o pois muitas vezes quando eu desejava correr

para junto do meu avocirc esse miseraacutevel me impedia Mas imploro avocirc daacute-me trecircs dias para chefiaacute-lordquo

ldquoE de que modo o comandariardquo disse Astiacuteages ldquoEstender-me-ia de peacute como ele na porta da entrada e cada vez que ele quisesse entrar

para o almoccedilo diria que ainda natildeo era possiacutevel encontrar-se com o almoccedilo pois ele estaria ocupado com algumas pessoas Em seguida quando ele chegasse para o jantar diria que o jantar estava a banhar-se e se estivesse com pressa para comer diria que a fome estava junto com as mulheres a fim de fazecirc-lo esperar como ele me faz esperar impedindo-me de estar junto a tirdquo

[12] Com tal alegria mostrava-se entre eles no jantar Durante o dia se percebesse que o avocirc ou o irmatildeo da sua matildee tivessem necessidade de algo era difiacutecil que outro fosse o primeiro a fazecirc-lo pois Ciro se alegrava extremamente agradando-os naquilo que pudesse

[13] Assim que Mandane se preparava para voltar para junto do marido Astiacuteages pedia a ela que deixasse Ciro Ela respondeu que sem duacutevida queria agradar em tudo ao pai em todo caso era difiacutecil pensar em deixar o menino contra a sua vontade Astiacuteages entatildeo disse a Ciro [14] ldquoMenino se permaneceres comigo primeiramente Sacas natildeo se colocaraacute agrave tua frente na porta de entrada para junto de mim mas cada vez que quiseres entrar estaraacutes comigo E serei grato a ti quanto mais frequente entrares para estares comigo Depois tu te serviraacutes dos meus

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cavalos e de todos os outros que quiseres e quando partires tu partiraacutes levando aqueles que tu quiseres Em seguida no jantar conforme tu desejes seguiraacutes o caminho que pareccedila a ti conduzir a moderaccedilatildeo Depois dou a ti as feras que agora estatildeo no parque e reunirei outras de todas as espeacutecies as quais assim que aprenderes a cavalgar perseguiraacutes e abateraacutes dardejando e flechando como homens grandes e fornecerei a ti crianccedilas como companheiros de jogos e qualquer outra coisa que desejares dizendo a mim natildeo seraacutes privadordquo

[15] Depois que Astiacuteages disse essas coisas a matildee perguntou a Ciro qual dos dois ele queria ficar ou ir embora Ele natildeo hesitou mas respondeu prontamente que queria ficar Tendo sido perguntado novamente pela matildee o porquecirc dizem que ele respondeu ldquoPorque em casa entre os da minha idade sou e tenho a reputaccedilatildeo de ser o melhor em lanccedilar dardos e flechas e aqui eu sei que no cavalgar sou inferior aos da minha idade E veja bem matildee que isto muito me aborrece Se me deixares aqui e eu aprender a cavalgar quando de um lado eu estiver na Peacutersia penso que para ti vencerei nos exerciacutecios de infantaria aqueles que satildeo os melhores de outro quando vier agrave Meacutedia aqui me esforccedilarei sendo o melhor do que os bons cavaleiros do avocirc para ser aliado dele na cavalariardquo

A matildee disse entatildeo [16] ldquoMas filho como aprenderaacutes a justiccedila aqui estando teus preceptores laacuterdquo

ldquoMas matildee eu certamente sei isso com precisatildeordquo ldquoComo tu sabesrdquo disse Mandane ldquoPor que o mestre jaacute me colocou para julgar os outros jaacute me tendo como preciso na

justiccedila E com efeito apenas uma vez tendo eu julgado de modo incorreto recebi golpes como castigo [17] O processo foi esse um menino grande possuindo uma tuacutenica pequena despojou um menino pequeno que possuiacutea uma tuacutenica grande e de um lado vestiu aquele com a sua e de outro vestiu a si mesmo com a daquele Eu portanto julgando-os entendi ser melhor para ambos que cada um ficasse com a tuacutenica que lhe melhor ajustava Acerca disso o mestre me bateu tendo dito que quando eu for ser o juiz do que se ajusta melhor entatildeo eacute conveniente agir de tal modo todavia quando for necessaacuterio julgar de qual dos dois eacute a tuacutenica disse que eacute preciso refletir de quem eacute a posse de acordo com as leis daquele que tomou agrave forccedila ou daquele que tem a posse por ter comprado ou fabricado para si Pois o que eacute conforme a lei eacute justo e o que age com violecircncia natildeo estaacute conforme agraves leis Ele sempre exortava ao juiz determinar o voto conforme agrave lei Eu assim mostro a ti matildee que sobre a justiccedila jaacute estudei com muito rigor Se com efeito eu tiver a necessidade de algo o avocirc me ensinaraacute isso em acreacutescimordquo

[18] ldquoMas filho natildeo satildeo as mesmas coisas aqui e na Peacutersia que satildeo acordadas como justas Pois seu avocirc de um lado faz-se deacutespota de todos na Meacutedia de outro na Peacutersia considera-se justiccedila possuir a igualdade E o teu pai eacute o primeiro a fazer o que foi ordenado pela cidade e a aceitar o que foi ordenado pois a medida dele eacute a lei natildeo a paixatildeo De modo que portanto natildeo morras tu sendo chicoteado quando em casa estiveres depois de chegares tendo apreendido da parte do avocirc a tirania na qual haacute a crenccedila de que eacute necessaacuterio possuir mais do que todos e eacute por isso contraacuterio a realezardquo

ldquoMas disse Ciro teu pai eacute o mais haacutebil em ensinar a possuir menos do que mais ou natildeo vecircs que ele ensinou a todos os medos a ter menos do que ele Assim fiques tranquila matildee pois nem teu pai nem nenhum outro me enviaraacute de volta me ensinando a ter mais do que os outrosrdquo

IV [1] De um lado Ciro tagarelava muitas coisas desse tipo de outro por fim partiu a

matildee Ciro entatildeo permaneceu e foi educado por ele E rapidamente misturou-se com os da sua

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idade de modo que se sentia em casa e rapidamente conquistou os pais deles agradando-os e dando mostras que se alegrava com os filhos deles assim se tivessem alguma necessidade do rei eles ordenavam aos filhos que procurassem Ciro para negociar com ele e Ciro naquilo que as crianccedilas precisassem dele por amor agrave bondade e agraves honras fazia de tudo para obter

[2] Astiacuteages para aquilo que Ciro pedisse a ele em nada podia resistir para lhe ser agradaacutevel Pois tendo ele adoecido jamais Ciro afastava-se do avocirc nem cessava de chorar mas era evidente a todos que temia muito que o avocirc morresse E durante a noite se Astiacuteages precisasse de alguma coisa Ciro era o primeiro a perceber e o mais diligente de todos para servir naquilo que imaginava lhe ser agradaacutevel desse modo conquistou completamente Astiacuteages [3] Era igualmente falastratildeo tanto graccedilas agrave educaccedilatildeo jaacute que era obrigado pelo mestre a narrar o que fazia e a receber da parte dos outros quando julgava quanto graccedilas a ser um amante do aprender e sempre perguntava aos presentes como calhavam das coisas se conduzirem e tanto quanto era indagado pelos outros por ser perspicaz respondia rapidamente De modo que nele todas estas coisas resultaram o haacutebito de falar muito Mas do mesmo modo que no corpo quantos sendo jovens ganham altura e todavia neles o manifesto frescor da juventude denuncia-lhes a pouca idade assim tambeacutem por causa da loquacidade de Ciro ele natildeo revelava imprudecircncia mas inocecircncia e ternura de sorte que se desejava ainda mais ouvi-lo do que se estivesse presente em silecircncio

[4] Conforme o tempo fazia-o progredir no tamanho para a hora de tornar-se adolescente com isso servia-se das palavras mais raramente e da voz mais suavemente pois ficava cheio de vergonha a ponto de corar quando se encontrava com os mais velhos e natildeo mais como um cachorrinho jogava-se sobre todos conduzindo-se com semelhante fogosidade Assim de um lado era mais circunspecto de outro nas reuniotildees era inteiramente gracioso

E pois agrave medida que os da sua idade rivalizavam frequentemente uns com os outros Ciro se sabia que era mais forte do que eles natildeo provocava os companheiros nisso do mesmo modo que se bem sabia-se inferior tomava a iniciativa dizendo fazer melhor do que eles e imediatamente dava o exemplo atirando-se sobre os cavalos e do alto lutava com o arco ou com a lanccedila e natildeo sendo ainda muito haacutebil no cavalgar ele quando vencido era o que mais ria de si mesmo [5] Como natildeo fugia de ser vencido e natildeo fazer aquilo em que era inferior poreacutem passava o tempo praticando para no futuro fazer melhor rapidamente natildeo soacute conseguiu a igualdade na equitaccedilatildeo entre os da sua idade como tambeacutem rapidamente os sobrepujou graccedilas ao amor ao trabalho bem raacutepido tambeacutem fez perecer os animais que estavam no parque perseguindo-os atirando e matando e em consequecircncia disso Astiacuteages natildeo mais tinha como reunir animais no para ele E Ciro tendo percebido que o avocirc querendo natildeo podia fornecer animais vivos disse a ele ldquoAvocirc porque eacute necessaacuterio a ti ter o estorvo de procurar animais Mas se me enviares agrave caccedila com o tio tudo quanto animal que eu ver consideraacute-los-ei criados para mimrdquo [6] Ainda que desejasse com veemecircncia ir agrave caccedila natildeo podia insistir como quando crianccedila mas aproximava-se com a maior timidez possiacutevel E quando antes censurava a Sacas por que natildeo o deixava ir para junto do avocirc ele agora era o seu proacuteprio Sacas pois natildeo se aproximava se visse que natildeo era oportuno e pedia a Sacas que quando fosse oportuno lhe fizesse um sinal Assim Sacas jaacute o amava excessivamente e os outros todos tambeacutem

[7] Quando entatildeo Astiacuteages percebeu que ele desejava com veemecircncia caccedilar fora enviou-o com o tio e como guardas enviou junto os mais velhos sobre cavalos a fim de que o protegessem de terrenos difiacuteceis e se algum animal selvagem aparecesse Ciro indagava com ardor para os que estavam lhe seguindo de quais os animais que era necessaacuterio natildeo se aproximar e de quais era necessaacuterio perseguir com coragem Eles diziam que ursos javalis

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leotildees e leopardos jaacute mataram a muitos que se aproximaram mas os cervos as gazelas os carneiros selvagens e os asnos selvagens eram inofensivos Diziam ainda que era necessaacuterio se proteger natildeo menos do que das feras dos terrenos difiacuteceis pois muitos jaacute se precipitaram do alto a baixo com os proacuteprios cavalos [8] E Ciro aprendia tudo isso com ardor

Poreacutem assim que viu que um cervo saltara esquecendo-se de todas as coisas que acabara de ouvir perseguia-o sem nada ver aleacutem do lugar para onde o cervo fugia E de alguma maneira o cavalo saltando com ele cai de joelhos e por pouco natildeo o lanccedilou por cima do pescoccedilo Entretanto Ciro resistiu com alguma dificuldade e o cavalo levantou-se de sorte que chegou na planiacutecie e tendo desferido o dardo abateu o cervo uma peccedila bela e grande Ciro regozijou-se excessivamente os guardas no entanto tendo avanccedilado a cavalo repreenderam-no dizendo quanto perigo passara e falaram que denunciar-no-iam Ciro entatildeo ficou em peacute tendo descido e ouvido essas coisas afligiu-se Mas quando percebeu um grito salta sobre o cavalo como possuiacutedo pelo ecircxtase e quando o viu agrave sua frente um javali vindo ao encontro lanccedila-se diretamente e entesando a lanccedila diretamente agrave testa e domina o javali

[9] Jaacute naquele momento o tio certamente repreendia-o vendo a grande imprudecircncia Ciro apesar de ser repreendido pedia tudo quanto ele obtivera e a permissatildeo de levar essas coisas para dar ao avocirc O tio entatildeo dizem disse

ldquoMas se ele vir o que tu perseguiste natildeo soacute a ti censuraraacutes como tambeacutem a mim por ter te permitidordquo

ldquoSe ele quiser respondeu Ciro que ele accediloite-me depois que eu decirc a ele E tu mesmo tio no que quiser castigue-me por causa disso no entanto faccedila-me esse favorrdquo

E Ciaxares concluindo disse ldquoFaccedila como quiseres pois agora tu pareces ser mesmo o nosso reirdquo

[10] Desse modo Ciro tendo levado as presas deu-as ao avocirc dizendo que as tinha caccedilado para ele Natildeo exibiu os dardos mas colocou os que estavam ensanguentados onde pensava que o avocirc veria Astiacuteages em seguida disse

ldquoFilho eu recebo com prazer tudo quanto tu me daacutes mas de fato natildeo preciso de nada destas coisas para tu te arriscaresrdquo

ldquoSe entatildeo tu natildeo precisas disse Ciro avocirc decirc-as para mim para que eu entregue aos da minha idaderdquo

ldquoBem Filho tomando estas coisas entregues para quem tu quiseres e tanto quanto das outras coisas tu desejesrdquo

[11] Ciro tendo pegado e levado as carnes as destribuiu enquanto dizia ldquoRapazes como com efeito falaacutevamos com frivolidade quando caccedilaacutevamos animais no parque Para mim ao menos parece ser igual como se algueacutem caccedilasse um animal acorrentado Primeiramente pois estavam em um lugar pequeno depois eram fracos e sarnentos e alguns deles eram coxos e outros mutilados Os animais selvagens nas montanhas e prados por sua vez quatildeo belos quatildeo grandes quatildeo esplecircndidos se mostravam E de um lado os cervos como os paacutessaros saltam para o ceacuteu e de outro os javalis como dizem dos homens corajosos atacam indo ao encontro e por causa da largura natildeo era possiacutevel erraacute-los Ao menos para mim parece que esses mortos satildeo mais belos do que aqueles animais vivos e encerrados Mas seraacute que os vossos pais permitiriam que voacutes saiacutessem agrave caccedilardquo

ldquoFacilmente disseram se Astiacuteages ordenasserdquo [12] E Ciro disse ldquoQuem intercederia a Astiacuteages por voacutesrdquo ldquoQuem disseram eacute mais capaz de convencecirc-lo do que turdquo

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ldquoMas natildeo por Zeus eu natildeo sei que homem eu me tornei pois natildeo sou capaz de falar e olhar o meu avocirc como podia antes Se progredir desse modo temo tornar-me completamente indeciso e insensato e quando era crianccedila eu parecia ser extraordinariamente haacutebil no falarrdquo

Os meninos disseram ldquoTu dizes uma coisa penosa se em nosso favor natildeo podes fazer nada seraacute necessaacuterio a noacutes que peccedilamos para algum outro aquilo que respeita a tirdquo

[13] Ouvido essas coisas Ciro ficou mordido e em silecircncio partiu e tendo encorajado a si mesmo a ousar apresentou-se Tramara uma maneira mais inofensiva de falar com o avocirc e obter dele o que ele e os outros todos desejavam Comeccedilou portanto dessa maneira

ldquoDiga-me avocirc se algum dos servos fugisse e tu o apanhasses o que farias com elerdquo ldquoQue outra coisa do que tendo aprisionado obrigaacute-lo a trabalharrdquo ldquoSe ele viesse ao contraacuterio espontaneamente como agiriasrdquo ldquoComo senatildeo depois de accediloitaacute-lo para que natildeo faccedila isso no futuro servir-me-ia dele

como desde o iniacuteciordquo ldquoTalvez entatildeo seja hora de ti te preparares para accediloitar-me pois estou planejando fugir

em segredo de ti levando meus colegas para a caccedilardquo ldquoFez bem em declarar pois te proiacutebo de te moveres daqui de dentro Que coisa

agradaacutevel seria se por causa de um pedaccedilo de carne eu viesse a perder o filho da minha filhardquo [14] Apoacutes ouvir isso Ciro obedeceu enquanto esperava aflito e chateado e permanecia

em silecircncio Astiacuteages em todo caso visto que reconhecia que ele estava aborrecido querendo agradaacute-lo levou-o para caccedila e reunindo muitos soldados da infantaria cavaleiros e crianccedilas saiacuteram juntos para um terreno bom de cavalgar e fizeram uma grande caccedila E regiamente estando presente ele mesmo proibiu que ningueacutem lanccedilasse antes que Ciro estivesse saciado das caccedilas Mas Ciro natildeo consentia com a proibiccedilatildeo e disse

ldquoMas avocirc se queres que eu cace com prazer permitas a todos os que estatildeo comigo que persigam e lutem com o melhor que cada um puderrdquo [15] Entatildeo Astiacuteages permitiu e pondo-se em peacute observava os competidores cheios de emulaccedilatildeo perseguindo e golpeando os animais E alegrava-se com Ciro que natildeo podia ficar em silecircncio por causa da felicidade mas como um jovem catildeo de boa raccedila bradava cada vez que se aproximava de um animal e exortava cada um chamando pelo nome Encantou-se tambeacutem vendo que ele tanto ria dos outros como tambeacutem os louvava sem notar nele o menor sinal de inveja Por fim levando muitos animais Astiacuteages foi embora E doravante de tal modo alegrou-se nessa caccedila que sempre que fosse possiacutevel saiacutea com Ciro e levava consigo muitos outros tambeacutem meninos por causa de Ciro Assim Ciro passava a maior parte do tempo sendo a causa de coisas boas e felizes para todos mas nunca de coisas ruins

[16] Quando Ciro tinha por volta dos quinze ou dezesseis anos de idade o filho do rei dos Assiacuterios estando para casar por esta eacutepoca desejou caccedilar Ouvindo que nas fronteiras da Assiacuteria com a da Meacutedia havia muitos animais natildeo caccedilados por causa da guerra para ali mesmo desejava ir A fim de caccedilar com seguranccedila tomou consigo muitos cavaleiros e peltastas prontos para expulsar para ele os animais da densa vegetaccedilatildeo para os campos cultivaacuteveis e adequados para cavalgar Chegado onde estavam as suas guarniccedilotildees e o forte ali fez a ceia desejando caccedilar na manhatilde seguinte [17] Assim que o entardecer chegou a tropa de revezamento cavaleiros e infantaria vieram da cidade para a proacutexima guarda Parecia-lhe portanto que numerosa armada estava agrave disposiccedilatildeo pois eram duas guarniccedilotildees juntas e tinha agrave sua disposiccedilatildeo numerosos cavaleiros e infantes Decidiu por isso que seria melhor saquear a terra dos medos e pensava que esse trabalho se mostraria mais ilustre do que a caccedila pois haveria grande abundacircncia de viacutetimas Desse modo tendo levantando cedo conduziu as tropas deixou

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atraacutes na fronteira os infantes em bloco e entatildeo avanccedilou com a cavalaria contra as guarniccedilotildees dos medos e mantendo junto consigo numerosos nobres ali permaneceu para que as guarniccedilotildees medas natildeo viessem em socorro contra os que atacaram Enviou as tropas apropriadas para atacar de um lado a outro e exortava que eles cercassem quem encontrassem e o conduzissem consigo Eles entatildeo faziam isso

[18] Astiacuteages ao ser informado que os inimigos estavam no paiacutes saiu em socorro para a fronteira com soldados ao seu redor e o proacuteprio filho como ele com os cavaleiros que ao seu redor e a todos os outros ordenou que fossem em socorro Quando viu os muitos homens dos assiacuterios em formaccedilatildeo de combate e os cavaleiros em repouso tambeacutem os medos ficaram em formaccedilatildeo Ciro vendo os outros saindo em socorro com todas as forccedilas reunidas saiu ele tambeacutem e pela primeira vez entatildeo veste as armas temendo que isso jamais ocorresse tanto desejava se armar dos peacutes agrave cabeccedila Era muito bonita e ajustava-se convenientemente nele pois o avocirc mandara fazer agrave medida do corpo Desse modo armado conduziu-se com o cavalo Astiacuteages espantado perguntou-lhe quem tinha ordenado que ele viesse no entanto disse a ele que permanecesse junto de si [19] Ciro ao ver muitos cavaleiros do lado oposto perguntou

ldquoSeraacute que avocirc esses satildeo os inimigos os que estatildeo assentados imoacuteveis sobre os cavalosrdquo

ldquoInimigos certamenterdquo ldquoSeraacute que tambeacutem aqueles os que estatildeo avanccedilandordquo ldquoAqueles tambeacutem certamenterdquo ldquoAvocirc por Zeus Mas mostrando-se penosos e sobre reles cavalinhos saqueiam nossa

riqueza Sendo assim eacute necessaacuterio que alguns dos nossos avancem sobre elesrdquo ldquoMas natildeo vecircs filho quatildeo grande eacute a massa compacta dos cavaleiros postados em ordem

de batalha Se os nossos os atacarem aqueles interceptaratildeo os nossos por traacutes e o grosso das nossas forccedilas natildeo estaacute presente aindardquo

ldquoPoreacutem se tu resistires e te recuperares os que vecircm em socorro eles teratildeo medo e natildeo se mexeratildeo enquanto que os saqueadores imediatamente largaratildeo o butim quando virem alguns sendo perseguidos por noacutesrdquo

[20] Dito essas coisas pareceu a Astiacuteages que Ciro falara sensatamente E enquanto estava maravilhado com a sua sabedoria e vigilacircncia ordenou ao filho que tomasse um esquadratildeo de cavaleiros e atacasse sobre os que levavam o saque

ldquoEu ao contraacuterio disse Astiacuteages sobre estes se se moverem sobre ti avanccedilarei de modo que seratildeo obrigados a se preocuparem conoscordquo

Desse modo Ciaxares tomando cavalos e homens vigorosos avanccedilou Ciro quando os viu partirem lanccedila-se e ele rapidamente conduziu-se agrave frente e Ciaxares certamente seguia de perto e os outros natildeo se deixaram ficar para traacutes Quando viram eles se aproximando os saqueadores imediatamente tendo largado as coisas fugiram [21] Os que estavam ao redor de Ciro interceptavam e sendo Ciro o primeiro imediatamente golpeavam aqueles que surpreendiam e quantos passavam adiante deles fugindo eles corriam atraacutes e natildeo afrouxavam mas capturavam alguns deles Como um catildeo de boa raccedila mas inexperiente imprudentemente vai de encontro ao javali assim tambeacutem Ciro arremetia apenas tentando golpear quem ele alcanccedilasse natildeo se precavendo de nenhuma outra coisa Os inimigos quando viram os seus sofrendo avanccedilaram as tropas a fim de que interrompessem a perseguiccedilatildeo ao verem que eles estavam se lanccedilando adiante [22] Ciro por nada cedia mas sob o efeito do prazer invocou o tio e continuava a persegui-los e com forccedila impocircs a fuga aos inimigos Ciaxares de fato seguia de perto talvez com vergonha do pai e os outros tambeacutem estando eles ardorosos em tal

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circunstacircncia seguiam na perseguiccedilatildeo mesmo os que natildeo eram muito corajosos em face dos inimigos Astiacuteages quando viu de um lado os que estavam perseguindo imprudentemente e de outro os inimigos em bloco marchando ao encontro e em posiccedilatildeo apropriada temeu pelo filho e por Ciro que eles sofressem algo ao se precipitarem em desordem aos que estavam bem dispostos e conduziu-se de imediato contra os inimigos [23] Os inimigos por sua vez ao verem os medos avanccedilando uns entesaram as lanccedilas e enquanto outros ergueram os arcos de modo que quando chegassem ao alcance de tiro eles parassem como a maioria tem o haacutebito de fazer Pois ateacute agora quando chegam o mais proacuteximo possiacutevel avanccedilando uns contra os outros frequentemente atiram de longe ateacute o anoitecer

Quando poreacutem viram os seus em fuga correndo em sua proacutepria direccedilatildeo e os que estavam com Ciro conduzindo-se muito proacuteximos contra eles e Astiacuteages com os cavalos chegando ao limite dos tiros de arco os inimigos recuaram e fugiram com eles perseguindo de perto com todo vigor Capturam muitos e os que eram alcanccedilados os medos golpeavam cavalos e homens e os caiacutedos eles matavam E natildeo se detiveram antes que tivessem chegado agrave face da infantaria dos Assiacuterios Ali certamente temendo que uma emboscada maior estivesse escondida se detiveram

[24] Depois disso Astiacuteages retirou-se bastante feliz com a vitoacuteria em combate da cavalaria mas natildeo sabendo o que dizer a Ciro pois de um lado reconhecia que ele era o responsaacutevel pelo feito mas de outro percebia que ele fora arrebatado pela coragem E no momento em que partiam para casa Ciro isolado de todos nenhuma outra coisa fazia do que cavalgando ao redor dos mortos os contemplava Os designados para isso com muito custo arrancaram-no e o conduziram a Astiacuteages Ciro deixou seus condutores bem agrave frente pois via o semblante irado do avocirc por causa da contemplaccedilatildeo dele

[25] Essas coisas na Meacutedia ocorreram e todos tinham Ciro na boca seja nas narrativas seja nas canccedilotildees e Astiacuteages que jaacute antes o estimava nesse momento passara a ficar estupefato por causa dele Cambises o pai de Ciro alegrava-se ao ser informado dessas coisas poreacutem quando ouviu que Ciro punha as matildeos sobre os trabalhos de homens chamou-o de volta para que se formasse nos costumes persas Ciro entatildeo disse que queria partir para que o pai natildeo se afligisse com alguma coisa e a cidade o censurasse A Astiacuteages parecia que era imperioso enviaacute-lo de volta

Nesse momento entatildeo enviou-o tendo dado a ele os cavalos que ele desejava levar e equipado com muitas outras coisas porque o amava mas tambeacutem por ter grandes esperanccedilas de que nele houvesse um homem capaz de ajudar os amigos e de afligir aos inimigos E estando Ciro partindo todos meninos jovens adultos e os mais velhos escoltavam-no a cavalo e o proacuteprio Astiacuteages tambeacutem e dizem que nenhum daqueles voltou sem estar chorando

[26] E dizem ainda que o proacuteprio Ciro afastava-se com muitas laacutegrimas E dizem ainda que ele distribuiu muitos presentes aos da sua idade daqueles que Astiacuteages lhe havia dado Por fim levava uma tuacutenica meda da qual despojando-se deu a algueacutem dando mostras de que o prezava muitiacutessimo Os que pegavam e aceitavam os presentes dizem devolveram a Astiacuteages e Astiacuteages aceitando enviou-os de volta a Ciro que enviou novamente aos medos e disse ldquoSe tu queres avocirc que eu retorne a ti sem ficar constrangido se eu entregar algo a algueacutem permite que ele a mantenhardquo Astiacuteages apoacutes ouvir isso fez como Ciro mandara

[27] Por ventura eacute necessaacuterio recordar a histoacuteria de um jovenzinho dizem que Ciro partia se afastando dos outros Os parentes despediam-se o beijando na boca segundo o costume persa Ainda hoje os persas fazem isso um homem dos medos sendo muito belo e

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nobre e que ficara pasmado por muito tempo graccedilas a beleza de Ciro quando viu os parentes beijando-o ficou para traacutes quando os outros se foram foi-se para junto de Ciro e disse

ldquoDos parentes Ciro soacute a mim natildeo reconhecesrdquo ldquoPor quecirc Acaso tu eacutes meu parenterdquo ldquoCertamente disserdquo ldquoEntatildeo eacute por isso que me olhavas fixamente Pois parece que muitas vezes te reconheci

fazendo issordquo ldquoPois de ti sempre querendo aproximar-me pelos deuses ficava envergonhadordquo ldquoMas natildeo era preciso disse Ciro sendo parenterdquo Em seguida aproximando-se beijou-

o [28] E o Medo tendo recebido o beijo perguntou ldquoDe fato na Peacutersia eacute lei beijar os parentesrdquo ldquoCertamente disse quando se vecircem depois de certo tempo ou se afastam para um lugar

longe uns dos outrosrdquo ldquoTalvez seja a hora disse o medo de me beijares novamente pois como vecircs jaacute estou

partindordquo Assim Ciro beijando-o novamente afastou-se e partiu Ainda natildeo completava um

grande caminho entre eles o Medo chega novamente com o cavalo suando E Ciro tendo o visto disse

ldquoMas acaso esquecestes alguma coisa que querias dizerrdquo ldquoNatildeo por Zeus Mas venho depois de certo tempordquo ldquoPor Zeus parente por pouco tempo certamenterdquo ldquoComo pouco Natildeo sabes Ciro que justamente o tempo em que pisco os olhos parece-

me ser muito maior pois durante esse tempo natildeo te vejordquo Naquele momento riu Ciro depois de ter chorado antes e disse a ele que partisse com

confianccedila pois estaria presente entre eles em pouco tempo de modo que seria permitido olhaacute-lo e se quisesse sem piscar

V [1] Ciro entatildeo tendo voltado a Peacutersia dizem um ano ainda permaneceu na classe dos

meninos A princiacutepio os meninos zombavam dele pois voltara habituado agrave vida de prazeres na Meacutedia Quando entatildeo o viram comendo e bebendo agradavelmente como eles e se alguma vez na festa havia banquete perceberam que ele oferecia mais da sua proacutepria porccedilatildeo do que pedia mais e aleacutem dessas coisas viram que ele era superior a eles mesmos a partir de entatildeo os da sua idade voltaram a respeitaacute-lo Depois que concluiu essa educaccedilatildeo imediatamente foi para a classe dos efebos e tambeacutem nessa parecia ser superior ocupando-se das coisas que eram necessaacuterias suportar e reverenciando os mais velhos e obedecendo aos chefes

[2] Com o tempo avanccedilando Astiacuteages morreu na Meacutedia e Ciaxares filho de Astiacuteages e irmatildeo da matildee de Ciro recebeu o reinado dos medos O rei dos Assiacuterios apoacutes conquistar toda a Siacuteria naccedilatildeo numerosa conseguiu a submissatildeo do rei das Araacutebias e jaacute tendo como suacuteditos os Ircanos e cercando os Bactriatildeos considerou que se tornasse os medos mais fracos faacutecil seria comandar todas as naccedilotildees ao redor Pois a Meacutedia parecia ser das naccedilotildees proacuteximas a mais forte [3] Desse modo enviou embaixadores a todos os povos submetidos a ele a Creso rei da Liacutedia ao da Capadoacutecia a ambas as Frigias a Paflagocircnia e a Iacutendia a Caacuteria e a Ciliacutecia acusando medos e persas dizendo que essas eram naccedilotildees grandes e fortes e que por isso associaram-se e permitiam fazer casamentos entre si e se ningueacutem se prevenindo contra eles os tornasse mais fracos estariam em perigo pois se lanccedilariam sobre cada uma das naccedilotildees para conquistaacute-las

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Fizeram entatildeo alianccedila com ele uns por essas palavras convencidos outros persuadidos por presentes e coisas preciosas pois muitas coisas desse tipo pertenciam a ele

[4] Ciaxares o filho de Astiacuteages quando percebeu a conspiraccedilatildeo e a preparaccedilatildeo dos que se associaram contra ele ele imediatamente preparou-se tanto quanto podia e aos persas enviou embaixadores visando o conselho e visando Cambises esposo de sua irmatilde e rei dos Persas Enviou tambeacutem a Ciro pedindo a ele que procurasse vir comandando os homens se o conselho persa enviasse alguns soldados Pois Ciro completado dez anos na classe dos efebos jaacute estava na classe dos adultos [5] Ciro assim aceitara e os anciotildees deliberando elegem-no comandante para a expediccedilatildeo dos medos Permitiram a ele escolher duzentos dos homoacutetimos e por sua vez a cada um dos homoacutetimos permitiram escolher quatro tambeacutem esses dentre os homoacutetimos esses entatildeo chegam a mil Ordenaram a cada um desses mil por sua vez a escolher dentro dos demos da Peacutersia dez peltastas dez fundibulaacuterios e dez arqueiros e desse modo chegaram a dez mil arqueiros dez mil peltastas e dez mil fundibulaacuterios aleacutem daqueles mil que estavam agrave disposiccedilatildeo anteriormente Esse era o exeacutercito que foi dado a Ciro

[6] Assim que ele foi eleito primeiramente sacrificou aos deuses tendo obtido bons auspiacutecios em seguida escolheu os duzentos e quando cada um deles escolheu os quatro os reuniu e entatildeo pela primeira vez discursou nestes termos a eles [7] ldquoHomens amigos eu os escolhi natildeo por vos ter julgado bons agora pela primeira vez mas por que desde a infacircncia observo que voacutes executaacuteveis com ardor aquilo que a cidade considerava bom e aquilo que a cidade considerava vil afastaacuteveis disso inteiramente Em razatildeo de quais motivos eu de bom grado apresentei-me a esse posto e invoquei-vos desejo revelar a voacutes [8] Pois eu refleti que os nossos ancestrais em nada eram inferiores a noacutes sem duacutevida exercitando-se aqueles cumpriam as obras que justamente consideravam virtuosas O quecirc em todo caso adquiriram sendo assim tanto para a comunidade dos persas quanto para eles mesmos eu natildeo posso mais ver [9] Entretanto eu imagino que nenhuma virtude eacute praticada pelos homens para que os que satildeo bons natildeo tenham nenhuma vantagem sobre os maus Mas os que se absteacutem dos prazeres imediatos agem assim natildeo para nunca mais se alegrarem mas por meio dessa temperanccedila preparam-se assim para se alegrarem no futuro muitas vezes mais Aqueles que desejam com ardor tornar-se haacutebil no falar praticam a declamaccedilatildeo natildeo para ficarem falando bem sem jamais parar mas confiando que com o bem falar persuadindo os homens obteratildeo muitos e grandes bens os que por sua vez se esforccedilam nas artes da guerra natildeo se exercitam nisso para ficar combatendo sem parar mas esses julgando que ao se tornarem bons nas artes beacutelicas atribuiratildeo muita riqueza muita felicidade e grandes honras a eles mesmos e tambeacutem a cidade [10] Se algueacutem tendo se exercitado em algo e antes de saborear algum fruto dessa praacutetica observa que se tornou incapaz na velhice ao menos parece-me sofrer igual a algueacutem que tendo desejado tornar-se um bom agricultor bem semeando e bem plantando quando era necessaacuterio colher os frutos permite que o fruto caia de novo sobre a terra e natildeo o recolhe E se algum atleta suportado muitas fadigas e tendo se tornado digno de vencer permanecesse sem disputar o precircmio esse me parece merecer com justiccedila a acusaccedilatildeo de insensato [11] Mas noacutes homens natildeo sofreremos isso jaacute que na verdade temos consciecircncia de que noacutes desde a infacircncia tendo comeccedilado sendo atletas das obras boas e belas nos lanccedilaremos contra os inimigos os quais eu sei com clareza satildeo amadores para combater contra noacutes Pois esses ainda natildeo satildeo combatentes muito fortes se de um lado lanccedilam flechas e dardos e cavalgam com conhecimento de outro quando for necessaacuterio sofrer fadigas nisso seratildeo inferiores pois esses satildeo pessoas sem praacutetica em relaccedilatildeo aos trabalhos fatigantes Quando for necessaacuterio natildeo dormir seratildeo vencidos pelo sono pois eles satildeo inexperientes com relaccedilatildeo a isso nem os que acaso satildeo haacutebeis nisso pois esses satildeo

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ignorantes no como eacute necessaacuterio agir com os aliados e com os inimigos e eacute evidente que esses tiveram seus principais conhecimentos inabilmente [12] Voacutes sem duacutevida podereis vos servir da noite tanto quanto os outros do dia e julgais que as fadigas conduzem a uma vida com prazeres e assim podereis vos servir da fome tanto quanto do manjar fino e suportais mais facilmente que os leotildees soacute beberem aacutegua e voacutes adquiris na sua alma o bem mais valioso e belicoso de todos voacutes vos alegrais em ser louvado mais do que a todos os outros juntos Aos amantes do louvor eacute imperioso enfrentar todo tipo de pena todo tipo de perigo com prazer [13] Se eu digo essas coisas a respeito de voacutes pensando outras a mim mesmo enganaria pois se alguma dessas virtudes de vossa parte falhar sobre mim recairaacute essa negligecircncia Poreacutem creio na vossa experiecircncia na afeiccedilatildeo que voacutes tendes por mim e tambeacutem na ignoracircncia dos inimigos e que essas boas esperanccedilas natildeo me enganaratildeo Mas marchemos confiantes visto que estaacute longe de noacutes a reputaccedilatildeo de cobiccedilarmos injustamente as coisas alheias Pois agora os inimigos avanccedilam tendo comeccedilado a guerra enquanto que os nossos amigos nos chamam em socorro E o que na verdade eacute mais justo que defender-se ou mais belo do que socorrer aos amigos [14] Poreacutem creio ainda em outra coisa para voacutes vos encorajardes pois natildeo farei a partida negligenciando os deuses pois estando a muito comigo prestais a atenccedilatildeo que nas grandes como tambeacutem nas pequenas empresas sempre comeccedilo pelos deusesrdquo Finalmente Ciro disse ldquoO que ainda eacute necessaacuterio dizer Voacutes tendo escolhido os homens e os tomado para dirigir e se encarregado das outras coisas dirijais-vos agrave Meacutedia Eu irei depois de estar primeiramente junto a meu pai a fim de que as coisas dos inimigos eu aprenda o mais raacutepido possiacutevel e tanto quanto for possiacutevel nos preparemos naquilo que for necessaacuterio para que combatamos o mais nobremente possiacutevel com a ajuda dos deusesrdquo

Eles entatildeo agiram dessa forma

VI [1] Ciro tendo ido para casa e feito as oraccedilotildees agrave Estia ancestral e a Zeus ancestral e

tambeacutem aos outros deuses partiu para a expediccedilatildeo com o proacuteprio pai escoltando-o Quando estavam fora de casa dizem que raios e trovotildees ocorreram favoraacuteveis a ele Depois desses fenocircmenos marcharam natildeo fazendo nenhuma outra consulta porque nenhum sinal do deus grandiacutessimo passaria oculto [2] Durante o caminho o pai comeccedilou essa conversa com Ciro

ldquoFilho que os deuses enviam a ti favores e benefiacutecios eacute evidente nos pressaacutegios e sinais celestes tu mesmo o reconheces Pois eu de propoacutesito te instruiacute nessas coisas para que por causa de outros inteacuterpretes natildeo possas reconhecer os desiacutegnios dos deuses mas tu mesmo vendo as coisas visiacuteveis e ouvindo as audiacuteveis reconheccedilas sem estar agrave custa dos adivinhos nem se quiserem te enganar dizendo coisas diversas das que foram reveladas pelos deuses nem por sua vez se alguma vez estiveres com efeito sem adivinho ficaraacutes sem saber o que fazer para se servir dos sinais divinos mas reconhecendo por meio da arte da adivinhaccedilatildeo os conselhos dos deuses poderaacutes obedecer-lhesrdquo

[3] ldquoDe fato pai e para que os deuses se mostrem favoraacuteveis e desejem aconselhar-nos na medida em que possa cumpro diligentemente conforme seu conselho Pois me lembro de ter ouvido uma vez de ti que seria com razatildeo o meio mais eficiente para obter dos deuses como tambeacutem dos homens natildeo soacute chamaacute-los quando estivesse em dificuldade mas quando adquirisse as melhores coisas aiacute entatildeo eacute muito melhor lembrar-se dos deuses E disse tambeacutem que eacute necessaacuterio do mesmo modo ocupar-se dos amigosrdquo

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[4] ldquoNatildeo eacute verdade filho que graccedilas agravequelas diligecircncias vais agora rogar aos deuses com mais prazer e esperas muito mais obter as coisas que precisa pois te pareces ter consciecircncia de que jamais os negligenciourdquo

ldquoCom certeza pai muito mais pois me encontro com tal disposiccedilatildeo para com os deuses como se fossem amigos meusrdquo

[5] ldquoPois lembra-te daquilo que uma vez foi considerado por noacutes Que do mesmo modo que os homens agem melhor sabendo o que os deuses lhe deram do que ignorando os trabalhadores realizam mais obras do que os ociosos e os diligentes vivem mais seguros do que os descuidados assim tambeacutem eacute mostrando-se tal qual eacute preciso parecia a noacutes ser necessaacuterio pedir graccedilas dos deusesrdquo

[6] ldquoSim por Zeus certamente lembro-me de ter ouvido essas coisas de ti pois foi-me forccediloso ser convencido pelo argumento Eu sei tambeacutem que tu dizias sempre que natildeo era permitido solicitar aos deuses vencer nos combates a cavalo natildeo sabendo montar nem aos que natildeo satildeo haacutebeis no arco pedir para superar no arco os que satildeo haacutebeis nem a quem natildeo sabe pilotar pedir para preservar-se satildeo e salvo pilotando o navio nem a quem natildeo semeia o trigo pedir que lhes nasccedila uma boa safra nem a quem natildeo se protege na guerra pedir salvaccedilatildeo pois todas essas coisas satildeo contraacuterias agraves leis dos deuses E aos que rogam coisas iliacutecitas eacute natural tu dizias natildeo ter ecircxito junto aos deuses do mesmo modo que natildeo obteacutem nada dos homens quem faz pedidos contraacuterios agraves leisrdquo

[7] ldquoPoreacutem filho tu te esquecestes daquelas coisas que uma vez eu e tu meditamos que seria obra nobre e suficiente para um homem se pudesse trabalhar para que ele mesmo se tornasse honestamente bom e belo e ele e a famiacutelia tivessem provisotildees suficientes Mas sendo isso uma grande obra do mesmo modo ser capaz de governar os outros homens para que tivessem abundacircncia de todas as provisotildees e para que todos fossem como eacute necessaacuterio isso revelou ser naquela vez para noacutes sem duacutevida alguma algo admiraacutevelrdquo

[8] ldquoSim por Zeus pai recordo-me que tu dizias isso sem duacutevida me parecia igualmente ser uma enorme obra o governar belamente e tambeacutem agora parece-me isso mesmo quando medito observando o governar em si mesmo Quando em todo caso observando os outros homens compreendi de que natureza satildeo aqueles que passam a vida governando e qual a natureza dos que seratildeo nossos adversaacuterios parece-me ser muito vergonhoso ter medo deles e natildeo desejar nos lanccedilar contra os inimigos Aqueles eu noto comeccedilando por esses nossos amigos acreditam que eacute necessaacuterio que os governantes se distingam dos governados no comer copiosamente no ter mais ouro em casa no dormir por mais tempo e no viver em tudo com mais oacutecio do que os governados Eu por outro lado penso que o governante deve se distinguir dos governados natildeo no ser indolente com as necessidades mas na providecircncia e no amor ao trabalhordquo

[9] ldquoMas filho haacute em alguns casos que natildeo lutamos contra homens mas contra coisas em si mesmas das quais natildeo eacute faacutecil ser superior com desembaraccedilo Assim por exemplo tu sabes sem duacutevida que se o exeacutercito natildeo tiver as provisotildees o teu comando seraacute anuladordquo

ldquoNa verdade pai isso Ciaxares disse que forneceraacute a todos os que se lanccedilam daqui tatildeo numerosos quantos foremrdquo

ldquoE tu filho partiraacutes crendo nessas riquezas de Ciaxaresrdquo ldquoSimrdquo ldquoTu sabes entatildeo de qual tamanho eacute a riqueza delerdquo ldquoNatildeo por Zeus natildeo seirdquo

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ldquoApesar de tudo confias em coisas desconhecidas Natildeo reconheces que teraacutes necessidade de muitas coisas e agora mesmo a Ciaxares eacute necessaacuterio gastar em muitas outras coisasrdquo

ldquoReconheccedilordquo ldquoSe entatildeo o recurso dele for insuficiente ou voluntariamente ele te enganar como se

manteraacute o teu exeacutercitordquo ldquoEacute evidente que natildeo muito bem Entretanto pai se tu reconheces algum recurso que

possa ser produzido por mim enquanto ainda estamos entre amigos digardquo [10] ldquoPerguntais filho qual recurso poderia ser produzido por ti De quem eacute mais

provaacutevel receber os recursos do que de quem tem poder Tu partes daqui levando tanto uma poderosa infantaria e eu bem sei que em troca dela natildeo aceitarias outra muito mais numerosa aleacutem disso seraacute teu aliado a cavalaria dos medos justamente aquela que eacute a melhor Qual povo portanto dos vizinhos natildeo julgaraacute bom ser agradaacutevel a ti ou desejando servir-vos ou temendo algum sofrimento Isso eacute necessaacuterio a ti em comum com Ciaxares observar para que jamais estejas em falta das coisas que eacute preciso estar a disposiccedilatildeo e por causa do costume maquinar fontes de renda Lembra-te disso mais do que tudo jamais esperes para procurar os recursos ateacute que a necessidade te obrigue mas quanto maior abundacircncia tiveres entatildeo maquines antes da carecircncia pois obteraacutes mais da parte de quem pedires natildeo parecendo estar sem recursos E aleacutem disso obteraacutes mais respeito dos outros e se quiser fazer bem ou mal a algueacutem com a tropa os soldados serviratildeo a ti melhor enquanto mantiver as coisas necessaacuterias e sabes bem os discursos mais persuasivos diraacutes nesse momento quando melhor puderes demonstrar que eacutes capaz de fazer o bem e o malrdquo

[11] ldquoMas pai ainda por cima me parece que tu dizes tudo isso com nobreza pois das coisas que agora os soldados dizem que iratildeo receber nenhum deles seraacute agradecido a mim por elas Pois sabem sob quais condiccedilotildees Ciaxares os leva consigo como aliados o que algueacutem receber aleacutem do combinado consideraratildeo isso um precircmio e naturalmente seratildeo agradecidos a quem as deu Tendo um exeacutercito com o qual eacute possiacutevel de um lado retribuir favores fazendo bem aos amigos e de outro tendo inimigos tentar puni-los e em seguida negligencias o fornecimento pensas que isso eacute menos vergonhoso do que se algueacutem tendo um campo e tendo trabalhadores com os quais cultivasse o campo e em seguida permitisse que o campo esteja ocioso e improdutivo Quanto a mim jamais negligenciarei de procurar meios de subsistecircncia aos soldados nem nas terras amigas nem nas inimigas e nessas condiccedilotildees fiques tranquilordquo

[12] ldquoPois filho das outras coisas que um dia parecia nos forccediloso natildeo negligenciar lembra-te delasrdquo

ldquoCom efeito pai lembro-me bem de quando fui para junto de ti em busca de dinheiro para pagar aquele que declarava me instruir em ser general Tu enquanto me davas o dinheiro perguntavas coisas como estas lsquoDigas filho seraacute que entre as funccedilotildees de general algo de economia domeacutestica mencionou a ti o homem a quem levas o soldo Certamente os soldados precisam natildeo menos das provisotildees do que os servos em casarsquo Depois que eu dizendo a ti a verdade que nem a menor coisa a respeito disso ele mencionou perguntastes novamente se algo sobre a sauacutede e a forccedila fiacutesica tinha dito para mim para que o general se ocupe dessas necessidades tanto quanto da estrateacutegia [13] Como tambeacutem a isso disse que natildeo perguntaste-me ainda se alguns artifiacutecios tinha me ensinado que seriam os melhores aliados dos trabalhos beacutelicos Eu neguei tambeacutem a isso e tu me interrogaste novamente se ele me ensinara algo que pudesse incutir ardor na tropa dizendo que em todo o trabalho o ardor faz toda a diferenccedila sobre a ausecircncia de acircnimo Quando a isso neguei meneando a cabeccedila para traacutes tu perguntaste-me se

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tinha feito alguma discussatildeo instruindo-me sobre o fazer-se obedecer pelo exeacutercito como algueacutem poderia tramar isso perfeitamente [14] Quando tambeacutem a isso mostrava-me absolutamente ignoto finalmente indagaste-me o que entatildeo me ensinara dizendo ensinar estrateacutegia Eu entatildeo respondi que ldquoa taacuteticardquo e tu pondo-se a rir retomando cada um dos pontos expocircs qual seria a utilidade da taacutetica para o exeacutercito sem as provisotildees sem a sauacutede sem ocupar-se em obter para si as teacutecnicas beacutelicas e sem a obediecircncia Agrave medida que tu tornastes evidente a mim que a taacutetica era uma pequena parte da estrateacutegia eu perguntei se alguma dessas coisas tu serias capaz de me ensinar Partindo me exortastes a conversar com os homens ditos estrategistas e a inquiri-los em como alcanccedilar a cada um desses pontos [15] Depois disso eu me encontrava com aqueles que ouvia serem os mais inteligentes sobre esses assuntos E quanto agraves provisotildees estou convencido que satildeo suficientes as disposiccedilotildees de que Ciaxares estaacute em condiccedilotildees de fornecer para noacutes quanto agrave sauacutede ouvindo e vendo que as cidades desejando ter boa sauacutede escolhem os meacutedicos e os generais por causa dos soldados tambeacutem levam meacutedicos assim eu tambeacutem quando este posto alcancei imediatamente apoacutes ocupei-me disso e penso pai que tenho comigo os homens mais competentes na arte meacutedicardquo

Em funccedilatildeo disso o pai falou [16] ldquoMas filho esses a quem tu te referes satildeo como quem repara mantos rasgados de fato os meacutedicos tratam das pessoas quando elas adoecem A ti a atenccedilatildeo com a sauacutede deve ser mais altiva do que isso pois que as tropas de modo algum devem ficar doentes e esse haacute de ser o teu deverrdquo

ldquoPai seguindo qual caminho serei capaz de fazer issordquo ldquoSem duacutevida se tiveres a intenccedilatildeo de permanecer em um mesmo local durante um

tempo primeiramente eacute necessaacuterio natildeo negligenciar a higiene do acampamento se te preocupares com isso natildeo falharaacutes aleacutem disso os homens natildeo param de falar sobre regiotildees insalubres e sobre regiotildees salubres Testemunhas evidentes de cada um deles se oferecem nos corpos e tambeacutem na cor da pele Depois natildeo seraacute proteccedilatildeo suficiente examinar soacute a regiatildeo mas lembra-te de como se esforccedilar para cuidar de ti mesmo para que estejas satildeordquo

[17] E Ciro disse ldquoPrimeiramente por Zeus me esforccedilo para jamais me empanturrar pois eacute desagradaacutevel em seguida faccedilo a digestatildeo dos alimentos pois desse modo parece-me que mantenho melhor a sauacutede e adquiro forccedilardquo

ldquoDesse modo com efeito filho eacute necessaacuterio cuidar dos outrosrdquo ldquoMas de fato haveraacute tempo livre para os soldados se exercitaremrdquo ldquoPor Zeus disse o pai natildeo apenas eacute certo mas tambeacutem eacute necessaacuterio pois ao exeacutercito eacute

preciso se tiveres a intenccedilatildeo de que eles cumpram os deveres que jamais cessem ou de praticar o mal aos inimigos ou o bem aos seus e agrave medida que eacute difiacutecil alimentar um homem ocioso muito mais difiacutecil ainda filho uma casa toda mas mais difiacutecil de tudo eacute alimentar um exeacutercito inativo Pois as bocas no exeacutercito satildeo numerosas e partindo com o miacutenimo as coisas que recebem se se servem prodigamente seraacute necessaacuterio que jamais o exeacutercito fique ociosordquo

[18] ldquoParece-me que tu dizes pai que como em nada eacute uacutetil um agricultor ocioso assim tambeacutem em nada eacute uacutetil um general ociosordquo

ldquoMas o general trabalhador eu assumo que se nenhum deus lhe prejudicar ao mesmo tempo em que determina aos soldados como manter o maacuteximo das provisotildees tambeacutem determina a manter melhor o preparo fiacutesicordquo

ldquoPor certo quanto agrave praacutetica de cada uma das atividades guerreiras parece-me que pai prescrevendo disputas a cada uma delas e oferecendo precircmios faraacutes que cada um esteja exercitado nelas muitiacutessimo bem para que quando tiver necessidade se servir de homens preparadosrdquo

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ldquoDizes muito bem filho pois tendo feito isso saibas bem que sempre tu os veraacutes exercitados de modo conveniente como coros ordenadosrdquo

[19] ldquoMas com efeito para incutir o entusiasmo nos soldados nada me parece ser mais eficaz do que poder produzir esperanccedilas nos homensrdquo

ldquoPoreacutem filho isso eacute tal como se algueacutem chamasse os catildees na caccedila sempre com o mesmo chamado de quando vecircs a caccedila pois num primeiro momento eu sei bem que obteacutem respostas ardorosas ao chamado mas se muitas vezes os engana acabam natildeo obedecendo ao chamado nem quando realmente vecirc Assim tambeacutem ocorre com relaccedilatildeo agraves esperanccedilas se algueacutem mente frequentemente incutindo esperanccedilas em muitos bens nem quando declarar sinceras esperanccedilas o tal poderaacute persuadir Mas eacute necessaacuterio de um lado afastar-se de dizer aquilo que tu mesmo natildeo sabes seguramente filho de outro lado outros incitados dizendo essas coisas podem conseguir Eacute necessaacuterio que tu preserves o maacuteximo da confianccedila em tuas exortaccedilotildees para os grandes perigosrdquo

ldquoMas sim por Zeus a mim pareces dizer belamente pai e a mim tambeacutem desse modo eacute o mais agradaacutevel [20] Quanto ao produzir a obediecircncia dos soldados natildeo me pareccedilo ser inexperiente pai pois tu me ensinaste isso desde a infacircncia obrigando-me a obedececirc-lo Em seguida confiou-me aos professores e eles por sua vez agiram do mesmo modo quando estaacutevamos entre os efebos o comandante ocupava-se muito destas mesmas coisas E parece-me que a maioria das leis ensina principalmente essas duas coisas a governar e a ser governado E com efeito refletindo sobre essas coisas parece-me observar em tudo que o que mais incita a obediecircncia eacute louvar e honrar o obediente e ao desobediente desprezar e punirrdquo

[21] ldquoEsse filho eacute o caminho para a obediecircncia forccedilada para uma muito melhor do que essa a obediecircncia voluntaacuteria haacute um caminho muito mais curto Pois os homens obedecem com grande prazer aqueles que consideram mais sensatos nos seus interesses do que eles mesmos Poderaacutes reconhecer que isso eacute assim em muitas outras coisas inclusive os doentes que com ardor chamam aqueles que prescrevem o que lhes eacute necessaacuterio fazer e no mar com ardor os que estatildeo navegando obedecem aos pilotos e aqueles que julgam que outros sabem o caminho melhor do que eles com muita forccedila natildeo desejam abandonaacute-los Quando poreacutem crecircem que a obediecircncia resultaraacute em algum mal natildeo consentem absolutamente em ceder nem por causa de castigos nem induzidos por presentes Pois ningueacutem a troco da proacutepria desgraccedila aceita espontaneamente presentesrdquo

[22] ldquoDizes tu pai que nada eacute mais eficaz para manter a obediecircncia do que parecer ser mais inteligente do que os governadosrdquo

ldquoCom efeito digo issordquo ldquoE qual a maneira pai que algueacutem poderia produzir rapidamente sobre si mesmo tal

reputaccedilatildeordquo ldquoNatildeo haacute filho caminho mais curto a respeito das coisas em que desejas parecer ser

sensato do que tornar-se de fato sensato a respeito desses assuntos Observando a fundo cada uma das coisas reconheceraacutes que eu digo a verdade Se quiseres natildeo sendo bom agricultor parecer ser bom ou cavaleiro ou meacutedico ou flautista ou qualquer outra coisa imagine quatildeo numerosas coisas a ti seria necessaacuterio maquinar por causa da aparecircncia E se tu persuadires a muitos a te louvares para que obtenhas fama e adquiras bons equipamentos de cada um destes ofiacutecios em um instante seria o embusteiro mas pouco depois quando precisasse oferecer uma prova tu te verias desmascarado e ainda um charlatatildeordquo

[23] ldquoComo algueacutem pai poderia tornar-se sensato sobre algo que no futuro lhe seraacute uacutetilrdquo

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ldquoEacute evidente filho que tudo quanto eacute possiacutevel saber aprendendo aprender como aprendeste sobre taacutetica E tudo quanto os homens natildeo podem aprender e natildeo se pode prever pela previdecircncia humana serias mais sensato do que os outros interrogando aos deuses por meio da arte da adivinhaccedilatildeo Tambeacutem aquilo que reconheces ser o melhor a fazer ocupa-te para a realizaccedilatildeo disso pois natildeo o negligencia mas cuidar do que for necessaacuterio eacute proacuteprio do homem sensatordquo

[24] ldquoMas certamente quanto a ser estimado pelos governados que me parece ser das coisas mais importantes eacute evidente que eacute o mesmo caminho para quem deseja ser querido pelos amigos jaacute que penso que eacute necessaacuterio ser distinguido fazendo o bemrdquo

ldquoMas isso filho de fato eacute difiacutecil o sempre poder fazer o bem para aqueles que se deseja mostrar-se feliz se algo bom acontece com eles estar junto se algo de mal socorrer de boa vontade nas suas dificuldades temendo que caiacuteam em erros e velar se esforccedilando para que natildeo os cometam essas satildeo as melhores maneiras de estar junto dos amigos [25] E durante as obras da guerra se estiverem no veratildeo eacute necessaacuterio que seja manifesto que o general eacute superior com relaccedilatildeo ao sol e se estiverem no inverno ao frio se durante os trabalhos agraves penas pois tudo isso ajuda a ser estimado pelo subordinadosrdquo

ldquoDizes tu pai que eacute necessaacuterio que o governante seja mais vigoroso do que os governados em todas as coisasrdquo

ldquoPois sem duacutevida digo Em todo caso fique tranquilo quanto a isso filho Eu bem sei que embora os corpos sejam iguais as penas natildeo atingem de modo igual o general e o homem simples mas a honra suaviza algo das penas no comandante como proacuteprio saber de que aquilo que fizer natildeo passaraacute despercebidordquo

[26] ldquoPai poreacutem quando os soldados estiverem tanto com os recursos necessaacuterios quanto gozando de sauacutede e tambeacutem puderem suportar as fadigas e estejam treinados nas artes beacutelicas e aleacutem disso ambiciosos de se mostrarem nobres e estejam mais contentes em obedecer do que desobedecer natildeo te pareceria ser prudente entatildeo quem desejasse lutar contra os inimigos o mais raacutepido possiacutevelrdquo

ldquoSim por Zeus se estiveres em condiccedilotildees de obter a superioridade se natildeo eu ao menos quanto melhor acreditasse ser e melhores seguidores tivesse tanto mais seria prudente Como os bens que julgamos serem para noacutes os mais preciosos essas procurarmos nos servir com o maacuteximo de seguranccedilardquo

[27] ldquoPai qual a melhor maneira de algueacutem de poder obter a superioridade sobre os inimigosrdquo

ldquoPor Zeus isso que perguntas filho natildeo eacute assunto faacutecil nem simples Mas eu bem sei que eacute necessaacuterio a quem tiver intenccedilatildeo de fazer isso ser ardiloso e dissimulado mentiroso e embusteiro ladratildeo e tirar vantagem em tudo sobre os inimigosrdquo

E Ciro rindo disse ldquoHeracles que tipo de homem tu dizes que eacute necessaacuterio que eu me torne pairdquo

ldquoTal como serias filho o homem mais justo e mais conforme agraves leisrdquo [28] ldquoComo entatildeo voacutes nos ensinastes quando crianccedilas e jovens o contraacuterio destas

coisasrdquo ldquoSim por Zeus e agora mesmo para os amigos e os concidadatildeos Natildeo sabes que voacutes

aprendestes muitas praacuteticas fraudulentas a fim de que pudeacutesseis fazer mal aos inimigosrdquo ldquoEacute claro que natildeo pairdquo ldquoPor que razatildeo entatildeo filho tu aprendestes a atirar com o arco Por que razatildeo a lanccedilar

dardos Por que razatildeo a enganar javalis selvagens com redes e fossos E por que razatildeo aos

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cervos com armadilhas e cordas E por que razatildeo aos leotildees ursos e leopardos voacutes natildeo combatiacuteeis colocando-se em igualdade mas sempre procuraacuteveis lutar contra eles provido de alguma vantagem Ou natildeo reconheces que todas essas coisas satildeo maldades ardis enganos e subterfuacutegiosrdquo

[29] ldquoSim mas contra animais por Zeus contra os homens se eu tivesse em mente o desejo de enganar algueacutem sei que receberia muitas pancadasrdquo

ldquoDe fato creio que nem lanccedilar flechas nem dardos sobre os homens noacutes permitiriacuteamos a voacutes mas ensinaacutevamos a visar o alvo para que entatildeo natildeo machucaacutesseis aos amigos e se algum dia houvesse guerra pudesse mirar homens tambeacutem E natildeo ensinaacutevamos a enganar e a ter vantagem sobre os homens mas aos animais a fim de que com isso natildeo causaacutesseis danos aos amigos e se um dia houvesse guerra natildeo focircsseis inexperientes nestes assuntosrdquo

[30] ldquoSem duacutevida pai se eacute verdade que eacute uacutetil saber ambas as coisas fazer o bem e o mal aos homens era necessaacuterio que aprendecircssemos as duas coisas com homensrdquo

[31] ldquoMas dizem filho que outrora no tempo dos nossos ancestrais havia um homem professor de meninos que ensinava com efeito a justiccedila aos meninos assim como tu desejas a natildeo enganar e enganar a natildeo mentir e a mentir a natildeo iludir e a iludir a natildeo ter vantagens e a ter vantagens Distinguia dessas coisas o que fazer aos amigos e o que aos inimigos E aleacutem dessas coisas ensinava que era justo enganar aos amigos em vista de um bem e roubar algo dos amigos em vista de um bem [32] Ensinando essas coisas era forccediloso fazer aos meninos praticar isso uns contra os outros como dizem que os gregos ensinam a enganar no combate e exercitavam aos meninos para que pudessem fazer isso uns contra os outros Alguns de fato tornaram-se assim haacutebeis no roubar com justeza e levar vantagem poreacutem natildeo sendo igualmente haacutebeis na cupidez natildeo abstinham-se de tentar levar vantagem sobre os outros nem mesmo sobre os amigos [33] Criou-se portanto em consequecircncia dessas coisas uma lei que ainda hoje usamos de ensinar as crianccedilas de modo simples como ensinamos os proacuteprios escravos a dizer a verdade a natildeo enganar e a natildeo tirar vantagem em relaccedilatildeo a noacutes Se entatildeo fizerem contrariamente a isso castigamos para que tendo se habituado com tais costumes tornam-se os cidadatildeos mais moderados [34] Quando entatildeo tiverem a idade que tu tens hoje entatildeo pareceraacute seguro ensinar as leis para agir contra os inimigos pois natildeo mais parecia que se deixariam levar a tornarem-se cidadatildeos selvagens criados no muacutetuo respeito Como tambeacutem natildeo discorriacuteamos sobre os prazeres do amor para os muito jovens para que juntando a falta de escruacutepulos agrave forccedila de seu desejo os jovens natildeo se servissem do amor imoderadamenterdquo

[35] ldquoSim por Zeus como entatildeo comeccedilou tarde a me instruir nessas vantagens pai natildeo te abstenhas se algo tu tens a ensinar para que eu leve vantagem sobre os inimigosrdquo

ldquoMaquine com efeito para que tu surpreendas aos inimigos desordenados com a tua proacutepria tropa estando com homens bem ordenados os teus estando armados e os deles desarmados os teus despertos e os deles dormindo eles visiacuteveis a ti e tu invisiacutevel para eles e eles estando em terreno desfavoraacutevel e tu estando protegido em terreno fortificado

[36] ldquoE como algueacutem poderia pai surpreender os inimigos cometendo tais errosrdquo ldquoEacute forccediloso filho que tanto voacutes quanto os inimigos proporcionem muitos destes pois a

ambos eacute forccediloso tomar as refeiccedilotildees a ambos eacute forccediloso repousar e desde a aurora todos vatildeo fazer as necessidades quase ao mesmo tempo e eacute forccediloso servir dos caminhos tais quais sejam Todas essas coisas a ti eacute necessaacuterio perceber e o que reconheceis em voacutes sendo as mais fracas nisso sobretudo deves proteger e o que notares nos inimigos sendo as mais faacuteceis de submeter nisso deves dedicar-se sobretudordquo

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[37] ldquoEacute soacute disse Ciro nessas circunstacircncias que se obteacutem vantagem ou em alguma outra tambeacutemrdquo

ldquoCertamente em muitas outras filho Pois nessas em geral todos montam guardas sabendo que elas existem forccedilosamente Mas os que querem enganar os inimigos podem fazendo-os agir com confianccedila surpreendecirc-los desprotegidos e permitindo-se ser perseguido por eles deixaacute-los desordenados e atirando-os em fuga para um terreno difiacutecil ali mesmo atacar [38] Eacute necessaacuterio por isso que tu sejas um amante do aprender todas as coisas natildeo para te servires soacute das coisas que aprendestes mas tambeacutem para seres tu um inventor de artifiacutecios contra os inimigos Como os muacutesicos que natildeo se servem apenas das coisas que aprenderam mas tambeacutem procuram criar outras novas E de um lado nas artes musicais as peccedilas novas e exuberantes satildeo muito honradas de outro as novas maquinaccedilotildees satildeo muito mais honradas na guerra pois com essas pode-se melhor enganar os inimigos [39] Mas se tu filho transferires aos inimigos nenhuma outra coisa aleacutem dos truques que muito planejaste contra os animais pequenos natildeo achas que avanccedilas sobre os inimigos muito adiantado em vantagens Pois tu contra as aves te levantavas no inverno rigoroso e marchavas de noite e antes que os paacutessaros se movessem as cordas para eles eram preparadas por ti e tornavas o chatildeo movido semelhante ao natildeo tocado os paacutessaros eram ensinados por ti para te servirem com utilidade e para enganar os paacutessaros da mesma espeacutecie Tu armavas emboscadas para vecirc-las sem ser visto por elas e estavas preparado para puxar antes que os paacutessaros fugissem [40] Por outro lado contra a lebre que vive na escuridatildeo e evita o dia criava catildees que a descobriam pelo faro Assim quando era encontrada fugia rapidamente mas tinhas catildees preparados para capturaacute-las correndo Se entatildeo fugia tambeacutem destes procurando saber quais lugares as lebres fugindo alcanccedilaram nesses estendia redes de caccedila difiacuteceis de ver e na fuga veemente ela mesma caindo sobre a rede ficava amarrada E para natildeo fugirem daiacute tu colocavas guardas para o que estava ocorrendo os que de perto estavam tinham condiccedilotildees de sobrevir rapidamente e tu mesmo atraacutes com clamor natildeo ficavas atraacutes da lebre e bradando aterrorizava-a de tal modo que era capturada enlouquecida e aos que estavam defronte explicava para fazer silecircncio e permanecerem ocultos na emboscada [41] Como jaacute disse se puderes maquinar tais coisas contra os homens eu natildeo sei se seraacutes vencido por algum dos inimigos Se com efeito alguma vez houver necessidade de empreender um combate com ambos preparados e visiacuteveis no mesmo plano em tal circunstacircncia filho as vantagens preparadas de haacute muito tempo valem muito Eu digo que essas coisas existem a quem tem os corpos dos soldados bem exercitados as almas bem ordenadas e as taacuteticas beacutelicas bem estudadas [42] Eacute necessaacuterio saber bem tambeacutem que a tantos quantos tu exiges obediecircncia tambeacutem todos aqueles exigiratildeo de ti que decidas a respeito das coisas deles Jamais portanto fiques despreocupado mas durante a noite reflita sobre o que teus subordinados faratildeo quando chegar o dia e de dia para que a melhor noite esteja agrave disposiccedilatildeo deles [43] Como eacute necessaacuterio ordenar o exeacutercito na batalha ou como conduzir-te durante o dia ou a noite ou por estradas estreitas ou largas ou ainda nas montanhas ou nas planiacutecies ou como acampar ou como dispor guardas noturnos e diurnos ou como avanccedilar contra os inimigos ou afastar-se dos inimigos ou como conduzir para junto das cidades inimigas ou como dirigir-se ou recuar diante das muralhas ou como atravessar o vale ou os rios ou como proteger-se da cavalaria ou dos lanccediladores de dardos ou dos flecheiros ou se entatildeo a ti conduzindo o exeacutercito em coluna aparecem de suacutebito os inimigos como deves colocar-se diante deles ou se a ti agrave frente da falange conduzindo os inimigos se mostrarem de qualquer outro lado do que face a face como deves marchar contra ou como pode perceber melhor as coisas do inimigo ou como fazer os inimigos saberem o miacutenimo das tuas proacuteprias o que eu devo dizer a respeito dessas

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coisas para ti Pois tanto quanto eu sei muitas vezes ouvistes e aqueles outros que pareciam saber algo desses assuntos nenhum deles tu negligenciastes nem te tornastes ignorante Portanto diante dos acontecimentos eacute necessaacuterio se utilizar das coisas do modo que lhe pareccedila ser uacutetil [44] Aprenda de mim filho isto o mais importante eacute que contra pressaacutegios e auguacuterios jamais coloque em perigo nem a ti nem ao exeacutercito compreendendo que os homens escolhem as accedilotildees por conjecturas natildeo sabendo quais delas seratildeo para eles as melhores [45] Tu podes reconhecer isso da proacutepria histoacuteria pois de um lado outrora muitos que pareciam os mais saacutebios persuadiram estados a empreender guerra contra outras naccedilotildees pelas quais os que foram persuadidos a atacar foram derrotados e de outro lado muitos engrandeceram a muitos homens e estados e sofreram enormes males daqueles que progrediram Muitos tambeacutem que eram tratados como amigos e fazendo e recebendo apenas coisas boas preferindo trataacute-los mais como escravos do que como amigos receberam castigos desses mesmos Muitos outros que natildeo se contentavam em viver agradavelmente com o proacuteprio quinhatildeo que possuiacuteam tendo desejado ser dono de tudo por causa disso perderam tambeacutem o que tinham Muitos tendo conquistado a riqueza haacute muito desejada graccedilas a isso foram destruiacutedos [46] Assim a sabedoria humana natildeo sabe escolher o melhor mais do que algueacutem tirando a sorte agisse conforme obtivesse pela sorte Os deuses filho sendo eternos tudo sabem do que ocorreu do que estaacute ocorrendo e do que ocorreraacute a cada um E dos homens que os consultam anunciam o que eacute necessaacuterio fazer e aquilo que natildeo eacute para quem satildeo propiacutecios Se nem a todos desejam aconselhar natildeo haacute nada de maravilhoso nisso pois natildeo eacute necessaacuterio que eles se ocupem de quem natildeo queremrdquo

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8 Bibliografia

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82 Autores Antigos

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83 Outros Autores

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