Emília Merlini Giuliani - O bem jurídico supraindividual como critério de limitação da...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS EMÍLIA MERLINI GIULIANI O BEM JURÍDICO SUPRAINDIVIDUAL COMO CRITÉRIO DE LIMITAÇÃO DA INTERVENÇÃO PENAL Porto Alegre 2013

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS CRIMINAIS

    EMLIA MERLINI GIULIANI

    O BEM JURDICO SUPRAINDIVIDUAL COMO CRITRIO DE LIMITAO

    DA INTERVENO PENAL

    Porto Alegre

    2013

  • EMLIA MERLINI GIULIANI

    O BEM JURDICO SUPRAINDIVIDUAL COMO CRITRIO DE LIMITAO

    DA INTERVENO PENAL

    Dissertao de Mestrado apresentada junto ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Criminais (Mestrado e Doutorado) da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS, como requisito parcial para a obteno do Ttulo de Mestre em Cincias Criminais. rea de Concentrao: Sistema Penal e Violncia Linha de Pesquisa: Sistemas Jurdico-Penais Contemporneos

    Orientador: Prof. Dr. Fabio Roberto DAvila

    Porto Alegre

  • 2013

    G537b Giuliani, Emlia Merlini

    O bem jurdico supraindividual como critrio de limitao da

    interveno penal / Emlia Merlini Giuliani. Porto Alegre, 2013. 116 f.

    Diss. (Mestrado) Faculdade de Direito, PUCRS. Orientador: Prof. Dr. Fabio Roberto DAvila.

    1. Direito Penal. 2. Interveno (Direito). 3. Ofensa (Direito).

    4. Bem Jurdico. I. DAvila, Fabio Roberto. II. Ttulo.

    CDD 341.5

    Ficha Catalogrfica elaborada por Loiva Duarte Novak CRB10/2079

  • EMLIA MERLINI GIULIANI

    O BEM JURDICO SUPRAINDIVIDUAL COMO CRITRIO DE LIMITAO

    DA INTERVENO PENAL

    Dissertao de Mestrado apresentada junto ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Criminais (Mestrado e Doutorado) da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS, como requisito parcial para a obteno do Ttulo de Mestre em Cincias Criminais.

    Aprovada em 19 de dezembro de 2012.

    BANCA EXAMINADORA:

    _______________________________________ Orientador: Prof. Dr. Fabio Roberto DAvila

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS Brasil

    _________________________________________ Examinador: Prof. Dr. Jayme Weingartner Neto

    Fundao Escola Superior do Ministrio Pblico FMP - Brasil

    __________________________________________ Examinador: Prof. Dr. Paulo Vincius Sporleder de Souza

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS Brasil

    Porto Alegre 2013

  • RESUMO

    A presente dissertao de mestrado, vinculada linha de pesquisa Sistemas

    Jurdico-penais Contemporneos do Programa de Ps-Graduao em

    Cincias Criminais da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul,

    foca-se na possibilidade de manuteno da funo crtica pelo bem jurdico

    supraindividual. Uma investigao nesses termos releva uma vez que a teoria

    do bem jurdico pretende limitar a interveno penal, determinando que todo

    delito esteja alicerado sobre uma ofensa a um bem jurdico-penal. De modo

    que a funo limitadora do direito penal s pode ser desempenhada se e

    quando o bem objeto da tutela possua dignidade penal e seja capaz de sofrer e

    expressar uma ofensa. Considerando que o bem jurdico supraindividual possui

    contornos menos visveis e um contedo mais abstrato, assim como que tm

    sido postulados cada vez mais bens dessa ndole como base de novas

    incriminaes, procura-se examinar os fundamentos de sua legitimidade, as

    suas caractersticas prprias e a sua capacidade de concretizao, no intuito

    de constatar se a aplicao da regra da ofensividade possvel. Por isso, a

    pesquisa iniciou pela busca da fonte de legitimidade do bem jurdico

    supraindividual, passando pelas marcas que devem estar presentes para que

    um bem possa se firmar como eixo do delito e chegando na identificao

    daquelas caractersticas que lhes so peculiares. Aps, procurou-se determinar

    de que forma a ofensa do bem jurdico supraindividual pode ser atestada, por

    meio de uma anlise centrada na regra da ofensividade. Ao final, concluiu-se

    que, munido de certas caractersticas, o bem jurdico supraindividual pode

    exercer uma funo crtica do direito penal, na medida em que seja

    concretizvel.

    Palavras-chave: Interveno penal. Bem jurdico supraindividual.

    Concretizao. Ofensividade. Funo crtica.

  • ABSTRACT

    This dissertation, developed within the research line entitled Sistemas Jurdico-

    penais Contemporneos of the Postgraduate Program in Criminal Sciences of

    the Pontifical Catholic University of Rio Grande do Sul, focuses on the

    possibility of the concept of collective legal good maintaining a critical function.

    Such an investigation is relevant since the theory of legal goods seeks to limit

    the criminal intervention, determining that every crime be structured on the

    harming of a legal good. So that the limiting function of the criminal law can only

    be performed if and when the object of protection has criminal dignity and is

    able to suffer and express this violation. Whereas the collective legal good has

    less visible outlines and a more abstract content, and considering that they

    have increasingly been promoted as basis for new crimes, the foundation of its

    legitimacy, as well as its characteristics and capability of concretion is also

    examined in order to determine whether the application of the offensiveness

    rule is possible. The research thus began seeking to find the source of

    legitimacy of the collective legal good, examining the qualities that must be

    present in order for it to establish itself as the foundation of a crime and

    culminating in the identification of his own peculiar characteristics. Afterwards,

    we sought to determine in what way the collective legal good can be harmed, by

    means of an analysis centered on the rule of offensiveness. In the end, it was

    concluded that, as long as equipped with certain characteristics, the collective

    legal good can carry out a critical function of criminal law, on the condition that it

    is capable of concretion.

    Keywords: Criminal Intervention. Legal good. Concretion. Offensiveness.

    Critical function.

  • SUMRIO

    INTRODUO..................................................................................................... 12

    1. BALIZAS DO BEM JURDICO SUPRA-INDIVIDUAL..................................... 19

    1.1 O AMPARO CONSTITUCIONAL COMO FONTE DE LEGITIMIDADE DO

    BEM JURDICO SUPRAINDIVIDUAL..................................................................

    25

    1.2 ASPECTOS RELEVANTES SINGULARIZAO DO BEM JURDICO

    SUPRAINDIVIDUAL E A QUESTO DOS BENS JURDICOS

    APARENTEMENTE SUPRAINDIVIDUAIS..........................................................

    55

    2 TENTATIVA DE CONCRETIZAO DO BEM JURDICO

    SUPRAINDIVIDUAL A PARTIR DA NOO DE OFENSIVIDADE....................

    83

    2.1 ALGUMAS LINHAS SOBRE A OFENSIVIDADE: ESCLARECIMENTOS

    NECESSRIOS PARA A DEVIDA COMPREENSO DA TEORIA DO BEM

    JURDICO.............................................................................................................

    83

    2.2 A OFENSA DO BEM JURDICO SUPRAINDIVIDUAL................................... 94

    CONSIDERAES FINAIS................................................................................. 105

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................................... 109

  • INTRODUO

    A presente pesquisa tem por objeto analisar se a teoria do bem jurdico

    capaz de manter a sua funo crtica ao direito penal no mbito do bem jurdico

    supraindividual.

    A delimitao do problema centrou-se na busca por parmetros mais

    claros para designar os contornos do bem jurdico supraindividual, na inteno

    de verificar se a teoria do bem jurdico de fato apta a se manter crtica ao

    direito penal. Ao estudar a problemtica proposta, passamos a nos questionar:

    seriam os bens jurdicos desta natureza, de fato, legtimos enquanto ncoras

    de uma incriminao que pese sobre sua ofensa? Ou somente naquela medida

    em que toquem diretamente o indivduo, este sim a figurar como nica fonte de

    legitimidade da interveno penal? E, uma vez que havamos estabelecido

    desde o incio que a ofensa ao bem jurdico deve sempre estar presente para

    que um crime seja legtimo, como possvel obter a concretizao necessria

    para verificarmos a sua capacidade de sofrer tal afronta?

    Destes questionamentos foram se originando muitos outros, cujos

    esclarecimentos tomaram, aos poucos, a forma de degraus em direo

    resposta do problema inicial, qual seja se o conceito de bem jurdico

    supraindividual , enquanto parte da teoria do bem jurdico, vivel como critrio

    crtico do direito penal. Isso porque se a teoria do bem jurdico no puder se

    fazer valer quanto aos bens jurdicos supraindividuais, ento perde sua fora

    enquanto teoria que se pretende crtica do direito penal, j que de nada adianta

    oferecer critrios que no possam ser aplicados justamente quando se fazem

    mais necessrios limitao do poder punitivo estatal.

    Nesse passo, podemos dizer que a funo crtica da teoria do bem

    jurdico manifesta-se na medida em que, ao dizer quais as condies mnimas

    exigidas para que a interveno penal se institua, aponta, correlativamente,

    aquilo que no passvel de tutela por este instrumento jurdico, traando,

    ento, uma clara fronteira entre a criminalizao legtima e a ilegtima. Nas

    palavras de von Hirsch, a sua funo crtica apresenta a possibilidade de

    declarar a inexistncia de um bem jurdico merecedor de proteo frente a

  • pressupostos de penalizao de condutas meramente imorais.1 Por isso

    mesmo, alis, que Schnemann chega a afirmar que o princpio da proteo

    de bens jurdicos nos oferece um verdadeiro prottipo do crime.2

    A escolha da temtica se deu em vista da especial ateno que ela

    adquiriu dentro do espao de discusso jurdico-penal nas ltimas dcadas.

    Para melhor elucidar esta razo, traaremos a seguir um sucinto panorama

    sobre a teoria central deste estudo.

    O conceito de bem jurdico, desde o seu surgimento, foi alado a uma

    posio de destaque dentro da dogmtica penal, precisamente por terem lhe

    sido atribudas funes cruciais no que diz respeito determinao daquilo que

    pode ou no ser punido, no intuito de lhe fazer apto a fornecer aos diversos

    ilcitos-tpicos contornos substanciais. Inspirada em teorias iluministas, a

    categoria foi, de incio, concebida com um vis liberal, com o escopo de impor

    limites minimamente claros ingerncia penal das liberdades individuais.

    Durante o perodo que entremeou as duas Grandes Guerras, a noo de

    bem jurdico foi, contudo, esvaziada atravs de uma concepo metodolgica,

    em que a categoria foi convertida em mero instrumento de interpretao dos

    tipos penais. Ao entardecer do sculo passado, a teoria do bem jurdico foi

    retomada pela doutrina de diversos pases, sobretudo em razo da

    necessidade de edificar o direito penal sobre bases materiais capazes de

    cumprir uma funo limitadora da interveno.

    Ao longo do ltimo sculo a sociedade testemunhou mudanas de

    drstico tom. As duas Guerras Mundiais aniquilaram no s milhes de vidas,

    mas tambm a prpria f cega no progresso, desvelando a incerteza como

    caracterstica inerente ao mundo em que vivemos. Os pilares da modernidade

    foram sendo derrocados, revelando uma poca qual sequer sabemos dar

    nome. A humanidade denuncia-se, ento, numa era planetria: os riscos agora

    1 Traduo livre do seguinte trecho: [...] la inexistencia de un bien jurdico merecedor de

    proteccin frente a supuestos de penalizacin de conductas meramente inmorales [] ( HIRSCH, Andrew von. El concepto de bien jurdico y el . In: HEFENDEHL, Roland (ed.). La teora del bien jurdico: Fundamento de legitimacin del Derecho penal o juego de abalorios dogmtico? Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2007. P. 37-52, p. 37). 2 SCHNEMANN, Bernd. O princpio da proteo de bens jurdicos como ponto de fuga dos

    limites constitucionais e da interpretao dos tipos. In: GRECO, Lus; TRTIMA, Fernanda Lara. O bem jurdico como limitao do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 25-56, p 55.

  • so percebidos e sentidos globalmente e a criminalidade no hesita em

    constantemente ultrapassar barreiras nacionais e fsicas.

    Nesse contexto, a comunidade jurdica passou a questionar qual seria o

    papel do direito penal na defesa da sociedade perante esses novos e concretos

    riscos, trazendo a lume a discusso sobre a proteo de novos bens jurdicos

    ou de bens cuja tutela ganhou contornos de urgncia. Passou-se a indagar

    sobre a legitimidade dos valores surgidos em meio s transformaes sociais

    para atuar na configurao de bens jurdicos, assim como sobre se o direito

    penal de fato o meio mais adequado para proceder proteo desses

    mesmos bens, ou se, ao contrrio, h outras formas mais eficazes e menos

    custosas ao indivduo, ao tecido social e ao Estado para faz-lo.

    Tais questionamentos desembocaram na reflexo sobre a possibilidade

    de bens jurdicos supraindividuais manterem uma funo crtica em relao

    incriminao, principalmente tendo em vista a configurao mais abstrata

    dessa classe de bens, algo que parece dificultar sobremaneira a verificao da

    ofensividade dos delitos que os envolvem.

    A partir da, vimos que novos desenvolvimentos dogmticos foram

    responsveis, pouco a pouco, pelo aperfeioamento da teoria do bem jurdico.

    Diante da necessidade de se delinear mais nitidamente o conceito de bem

    jurdico supraindividual, alguns autores se dedicaram tarefa de criar critrios

    que os diferenciassem devidamente dos bens jurdicos individuais, enquanto

    outros se ocuparam do problemtico ponto de ligao entre bem jurdico

    supraindividual e tcnicas de tutela, tocando a delicada questo da necessria

    ofensa em relao a essa classe de bens.

    No obstante, possvel identificar aspectos que demandam maior

    aprofundamento terico, como a possibilidade de se encontrar parmetros de

    concretizao dos bens supraindividuais passo fundamental, embora ainda

    no definitivamente dado, para determinar se o bem jurdico , de fato, capaz

    de sofrer ofensas, quesito por seu turno indispensvel para que ele possa

    exercer satisfatoriamente uma funo crtica dentro do sistema penal.

    Percebemos atualmente a existncia, em vrios pases, de um

    movimento legislativo, doutrinrio e jurisprudencial muito mais acentuado em

    defesa da tutela penal de bens jurdicos supraindividuais, que tem desaguado

    na transposio, para o campo protetivo do direito penal, de diversas reas

  • antes reguladas essencialmente pelo direito administrativo ou civil, como os

    mbitos econmico, ambiental e informtico, e, inclusive, da noo das

    geraes humanas futuras.

    A propsito, Machado observa que o direito penal da

    contemporaneidade se utiliza cada vez mais de tcnicas de tutela como tipos

    de perigo abstrato e de mera conduta. Estes crimes no raro esto, ao que se

    nota, estruturados de modo a propiciar, em tese,3 uma proteo mais efetiva de

    bens jurdicos supraindividuais, o que parece num primeiro momento se

    justificar quando se tem em mente que manter um direito penal que age

    apenas aps a leso ou efetiva colocao em perigo de bens jurdicos no

    condiz com a realidade que se nos apresenta mormente porque, argumentam

    alguns, as consequncias de se aguardar uma ofensa visvel a certos bens

    poderiam ser catastrficas.

    Alm disso, a combinao crime de perigo/bem jurdico supraindividual

    parece resultar precisamente da dificuldade que se tem em analisar na prtica

    a ofensa concreta a esses bens, que no raro vm dotados de conceitos vagos

    e imprecisos. Nesse sentido, percebe-se que a prpria compreenso daquilo

    que configura o fundamento material do crime acabou sofrendo transformaes

    na sociedade atual. Agora, mais do que antes, evidenciam-se bens jurdicos

    que transcendem o indivduo e cuja conceituao depende de um grau maior

    de abstrao, isto , de um distanciamento da realidade que lhe serve de

    substrato, o que torna ainda mais rdua a tarefa de determinar a causalidade e

    a sua ofensa. Processo este a que se denominou desmaterializao do bem

    jurdico.

    Contudo, DAvila nos lembra que o enfrentamento crtico primeiro dos

    novos problemas penais no deve se dar na dimenso poltico-criminal, mas

    em uma dimenso normativa revista. [...] uma cincia normativa que, ao

    aproximar-se da Constituio, ressurge como lugar, por excelncia, de

    3 Utilizamos aqui a expresso em tese porque, na verdade, jamais conseguiremos saber com

    exatido se a criminalizao de uma conduta verdadeiramente hbil para desencoraj-la, porquanto nos faltam meios para se avaliar o real efeito que a norma penal possui sobre os indivduos. claro que a norma possui um efeito simblico e isso no queremos negar, mas coisa bastante diversa utilizar tal efeito para legitimar tipos penais. Pretendemos deixar, desde j, explcito o nosso entendimento de que, no obstante o efeito dissuasrio que a norma penal possui sobre os comportamentos, ele jamais vai ser suficiente para, sozinho, justificar uma incriminao. Pelo contrrio, somente se legitimar o crime que estiver fundado sobre o desvalor de resultado presente na ofensa a bens jurdico-penais.

  • convergncia de direitos e garantias fundamentais. Razo pela qual, com

    ainda maior nfase, o trabalho de assimilao jurdica das mudanas sociais

    deve se dar de modo cuidadosamente refletido (e no, como se tem feito,

    impensadamente), atentando-se sempre aos princpios e garantias

    constitucionalmente firmados, na direo de uma construo dogmtica

    responsvel, consequente e em harmonia com a Carta constitucional.

    Verificamos, desse modo, a premente necessidade de se estabelecer

    um conceito de bem jurdico supraindividual atravs de critrios que os

    diferenciem devidamente dos bens jurdicos individuais, bem como de se

    delinear parmetros de concretizao desses bens, a fim de analisar se, desta

    forma, o bem jurdico supraindividual capaz de atuar como padro crtico das

    intervenes penais e, atravs disso, de exercer uma funo crtica tanto em

    relao lei posta, como tambm quanto elaborao de novas legislaes.

    Considerando todos estes aspectos, resolvemos dividir o estudo em dois

    grandes captulos. No primeiro deles, procuramos estabelecer a legitimidade do

    bem jurdico supraindividual enquanto objeto de tutela da norma penal, atravs

    da anlise das teorias existentes quanto fonte da qual h de brotar essa

    mesma legitimidade; isto , se sua origem se situa em um nvel constitucional

    ou se obtida por meio de concepes de cunho sociolgico. Em seguida,

    examinamos os elementos da dignidade penal e da carncia de tutela penal

    enquanto componentes imprescindveis determinao da legitimidade de todo

    e qualquer bem jurdico cuja ofensa pretenda sustentar alguma incriminao.

    Aps, abordamos aquelas caractersticas peculiares ao bem jurdico

    supraindividual, que, portanto, so responsveis por sua classificao

    enquanto tal. Neste ponto, novamente imps-se extensa anlise doutrinria a

    fim de averiguar, com um olhar crtico e interessado, qual a concepo que

    melhor se encaixa nos pressupostos por ns estabelecidos.

    O segundo captulo dedicamos investigao acerca da ofensividade,

    no desiderato de melhor deline-la enquanto parte integrante e irrenuncivel da

    teoria do bem jurdico, passando, nesta etapa, por seus fundamentos e

    natureza jurdica. Com isso, pudemos abordar a questo da ofensa dos bens

    jurdicos supraindividuais. Por fim, verificamos, a partir das constataes feitas

    at ento, de que modo se d e pode ser analisada a ofensa de alguns bens

  • jurdicos supraindividuais, a fim de testar as hipteses firmadas com base nos

    desenvolvimentos levados a cabo durante toda a pesquisa.

    Tendo em vista que a teoria do bem jurdico tem suas razes na doutrina

    alem da Rechtsgutstheorie, buscamos na literatura jurdica de tal pas

    solues para alguns dos problemas tericos e prticos que com ele

    compartilharmos, como fica claro no decorrer deste escrito. Tomamos o

    cuidado, porm, ao analisar a doutrina internacional, de coloc-la nos limites da

    realidade do Brasil, na tentativa de evitar importaes acrticas de teorias

    estrangeiras que no se coadunem com a situao em que aqui vivemos.

    Conscientes, enfim, dos limites a que est submetido este escrito, esperamos

    conseguir contribuir em algum grau com o enriquecimento deste, talvez

    interminvel, debate sobre as bases materiais do delito.

  • CONSIDERAES FINAIS

    Chegando ao estgio derradeiro deste trabalho, podemos dizer que,

    longe de pretender colocar um ponto final s discusses aqui abordadas,

    desejamos estabelecer novos pontos de partida, novos ngulos de viso para

    que o debate siga se aperfeioando atravs da conjugao de ideias e da

    superao de antigas concepes. Assim sendo, possvel, de maneira

    bastante objetiva e sinttica, articular da seguinte maneira as concluses s

    quais a pesquisa nos levou:

    I. Acreditamos ser hoje inegvel a legitimidade constitucional de

    diversos bens supraindividuais, que se mostram, dentro da configurao atual

    da sociedade, indispensveis sua manuteno enquanto tal, bem como ao

    livre desenvolvimento do ser humano. Bens como o meio ambiente, a

    administrao pblica e a administrao da justia, apenas para citarmos

    alguns, so imprescindveis ao asseguramento de diversos direitos

    fundamentais e ao funcionamento de instituies fundadas com vistas a esse

    mesmo propsito. No nos parece, alis, possvel sequer cogitar um Estado

    Social e Democrtico de Direito que prescinda da proteo de certas entidades

    e bens que se faam essenciais persecuo dos objetivos por ele mesmo

    firmados, garantia do livre desenvolvimento do ser humano e manuteno

    da prpria sociedade enquanto tal. A Constituio , pois, o manancial de

    legitimidade dos bens jurdicos supraindividuais, na medida em que revela

    aquilo que, por seu valor, pode ser dotado de dignidade penal.

    II. O bem jurdico supraindividual deve, necessariamente, estar numa

    relao de analogia material com a Constituio e ser transcendente ao

    ordenamento jurdico, isto , emanar de uma realidade que se encontre alm

    do direito. Mas no s. Para que exera uma funo crtica interveno

    penal, o bem jurdico supraindividual, dever, tambm, ser corporizvel,

    apresentar uma dimenso concreta que se faa sentir em meio sociedade e

    esteja merc das aes individuais, podendo, deste modo, expressar a

    ofensa no caso concreto.

    III. Portanto, os bens jurdicos e para ns de maneira ainda mais

    acentuada os supraindividuais no devem, diante da dificuldade de os definir,

    ser tomados como valores incorpreos, impassveis de expressividade no

  • mundo fenomnico, mas sim como fragmentos de realidade valorados,

    capazes de serem efetivamente ofendidos.

    IV. No que tange relao entre bem jurdico individual e

    supraindividual, entendemos que, no marco de um Estado Social e

    Democrtico de Direito, deve ser ela de verdadeira autonomia. Sufragamos,

    assim, a teoria dualista, dentro da qual o bem jurdico supraindividual assume

    feies prprias e possui valor em si como condio ao exerccio dos direitos

    fundamentais e manuteno da sociedade.

    V. O bem jurdico supraindividual, enquanto bem ao qual se reconhece

    autonomia valorativa, possui, desta forma, caractersticas que lhe so prprias,

    traos que lhe conformam e que lhe so peculiares. So eles: a no excluso

    no usufruto (Nicht-Ausschliebarkeit von der Nutzung); a no rivalidade no seu

    consumo (Nicht-Rivalitt des Konsums) e, por fim, a no distributividade (Nicht-

    Distributivitt). Noutras palavras, somente constituir bem jurdico

    verdadeiramente supraindividual aquele que ostentar as caractersticas acima

    citadas.

    VI. A partir de tal constatao, passamos a ver com maior clareza

    quando um bem jurdico postulado pela legislao se encaixa ou no em tal

    modelo padro. Ao no constituir um bem jurdico verdadeiramente

    supraindividual, ser necessrio que verifiquemos se, por trs, h de fato um

    bem jurdico digno de tutela penal. Ou seja, sempre que observarmos que o

    tipo penal se ampara em um bem jurdico apenas aparentemente

    supraindividual, ser necessrio, num segundo momento, que o analisemos de

    modo a compreender o que de fato ofendido pela conduta ali descrita e se,

    neste caso, a lei passvel de recuperao hermenutica sem que com isso se

    perca a sua legitimidade e conformidade constitucional.

    VII. Julgamos, ademais, ser de grande utilidade para a constatao

    dessa autenticidade do bem jurdico tutelado pela norma penal a sua anlise

    atravs do modo pelo qual expressa a ofensa. Neste ponto, podemos afirmar

    que, alm das caractersticas que conformam o bem jurdico supraindividual, h

    um outro sinal que lhe distingue dos chamados pseudo-bens jurdicos: o fato de

    que, quando afetado por uma conduta, sua leso ou colocao em perigo

    poder acarretar prejuzos em diferentes graus a bens individuais no

    totalmente determinveis, mas qualitativa e quantitativamente diversos.

  • Inversamente, o comportamento que atinja um bem jurdico apenas

    aparentemente supraindividual, embora tambm possa apresentar efeitos

    difusos, normalmente ir se refletir somente em uma ou algumas classes de

    bens jurdicos individuais, estes sim previamente determinveis.

    VIII. Acreditamos, com isso, restar evidente que a ofensividade parte

    integrante da teoria do bem jurdico, representando um seu segundo degrau

    valorativo. Uma vez que o princpio da proteo de bens jurdicos encontra

    fundamento no princpio do Estado de Direito, tambm ali possvel descobrir

    uma das bases sobre as quais se firma a exigncia de ofensividade, derivada

    do princpio constitucional de garantia implcito naqueles dois primeiros.

    Igualmente possvel, por um outro caminho, chegar ao seu alicerce

    constitucional: por meio de uma anlise centrada nas regras constitucionais,

    conseguimos enxergar que a ofensividade se institui de maneira categrica

    especialmente a partir da norma da liberdade, a qual impe um respeito ao seu

    ncleo fundamental que no pode ser desconsiderado pelo Estado. Deste

    modo, ao considerarmos que toda incriminao implica uma restrio da

    liberdade individual, esta restrio dever estar justificada pela tutela de bens

    jurdicos constitucionalmente relevantes, evitando-se, assim, que a liberdade

    sofra limitaes excessivas. Podemos dizer, dessa forma, que a regra da

    ofensividade representa tambm a manifestao no direito penal do postulado

    da proibio de excesso, compartilhando com esta seu contedo de sentido.

    XIX. Entendemos, ainda, que a ofensividade ostenta natureza jurdica

    de regra, uma vez que impe ao legislador penal que atente, na formulao de

    normas restritivas do direito fundamental da liberdade, exigncia de que o

    comportamento tipificado seja ofensivo a um bem jurdico digno de tutela penal,

    sob pena de sua inconstitucionalidade. Trata-se, pois, de uma norma que

    determina uma postura a ser tomada pelo legislador sempre que este atuar na

    construo de tipos penais que impliquem a restrio da liberdade individual.

    Assim sendo, a ofensividade assume carter de regra constitutiva que incide

    sobre a produo jurdica e demarca, com isso, o contedo material da norma

    penal elaborada pelo legislador.

    X. A ofensividade, enquanto regra de assento constitucional, perfaz

    exigncia inarredvel a todo delito, estando preenchida sempre que a conduta

    objeto da proibio penal seja ofensiva a um bem jurdico-penal. Constatamos,

  • ao longo do segundo captulo que h diversas formas de ofensa, havendo

    contudo um limite, qual seja a possibilidade no-insignificante de dano ao bem

    jurdico tutelado.

    XI. Embora, nos limites deste estudo, no seja possvel estabelecer

    critrios propriamente ditos que levem concretizao do bem jurdico

    supraindividual, cremos que um primeiro passo nesse sentido j tenha sido

    dado. Podemos dizer, com uma certa margem de segurana, que uma melhor

    compreenso da estrutura do bem jurdico supraindividual auxiliar na sua

    verificao em situaes concretas. O que pode, em termos prticos, resultar

    na aplicao da ofensividade e, por sua vez, na posterior anlise sobre se o

    bem jurdico supraindividual foi efetivamente ofendido no caso concreto.

    XII. Tambm conclumos que a concretizao do bem jurdico j ao

    nvel do tipo penal indispensvel para o atendimento do princpio da

    legalidade, delimitando-se, com isso, o universo daquilo que legitimamente

    pode ser tutelado pelo direito penal. O que, cumpre frisar, no significa que o

    trabalho hermenutico perca em importncia muito pelo contrrio: um

    desenvolvimento coerente da teoria do bem jurdico ir fornecer subsdios no

    s na fase legislativa, como tambm, e talvez at principalmente, no campo

    interpretativo-aplicativo da norma penal, permitindo, com isso, a limitao do

    poder punitivo estatal.