EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DIREITO CURSO DE DIREITO EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO COMBATE ÀS DISCRIMINAÇÕES RACIAIS NO BRASIL E NA FRANÇA: ESTUDO COMPARADO DA EFETIVAÇÃO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS Fortaleza - CE 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DIREITO

CURSO DE DIREITO

EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO

COMBATE ÀS DISCRIMINAÇÕES RACIAIS NO BRASIL E NA FRANÇA: ESTUDO

COMPARADO DA EFETIVAÇÃO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

Fortaleza - CE

2012

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EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO

COMBATE ÀS DISCRIMINAÇÕES RACIAIS NO BRASIL E NA FRANÇA: ESTUDO

COMPARADO DA EFETIVAÇÃO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

Trabalho de graduação apresentado na Faculdade

de Direito da UFC como requisito parcial para

obtenção do grau de bacharel em Direito.

Orientadora: Profa. Dra. Tarin Cristino Frota

Mont´Alverne

Fortaleza - CE

Junho, 2012

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EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO

COMBATE ÀS DISCRIMINAÇÕES RACIAIS NO BRASIL E NA FRANÇA: ESTUDO

COMPARADO DA EFETIVAÇÃO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

Trabalho de graduação submetido à aprovação da Coordenação da Faculdade de

Direito da UFC como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito.

Orientadora: Profa.. Tarin Cristino Frota Mont´Alverne.

Aprovado em ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________

Profa. Dra. Tarin Cristino Frota Mont´Alverne (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará-UFC

___________________________________________

Prof. Dr. Machidovel Trigueiro Filho

Universidade Federal do Ceará-UFC

___________________________________________

Prof. Dr. Regnoberto Marques de Melo Júnior

Universidade Federal do Ceará-UFC

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A meus muito amados Pais, por todos aqueles

nortes por eles enfincados em minha

personalidade, que fazem de mim quem sou.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ab initio à professora doutora Tarin Cristino Frota Mont’Alverne por

ter-me orientado na elaboração deste trabalho. Preciosos foram seus auspícios cardiais -

sempre com paciência maternal -, sem os quais, de longe, não se teria chegado à conclusão de

tal tarefa. Ademais, seu exemplo na carreira acadêmica me é um incentivo, tão grande e

sincera que por ela é a minha admiração.

Congratulo, também de forma especial, o professor doutor Machidovel Trigueiro

Filho, que esteve presente em todas as etapas de minha vida acadêmica, sempre me

estimulando, sendo uma bússola no navegar de minha graduação: quer quando fui por duas

vezes seu aluno; quer quando tentei dar minha modesta contribuição por dois anos como

monitor de sua disciplina, ocasiões em que muito aprendi e que muito me foram caras.

Ao professor doutor Regnoberto Marques de Melo Júnior manifesto minha

profunda gratidão não só por ter sido um dos melhores e mais esforçados mestres que tive na

Faculdade; mas também pela lição de caráter, espiritualidade e serenidade que dele se absorve

pela simples convivência, pois nesses quesitos sua metodologia de ensino é o exemplo.

A minha fortaleza maior: meus pais. Sou a eles infinitamente grato, por serem

exemplos de seriedade, dignidade, amor, fé e companheirismo. Meu amor por eles não se

pode medir. Obrigado, papai e mamãe, por tudo que já me fizeram e por serem tão bons para

mim!

A minha irmã Rejane, com quem cresci, aprendendo e ensinando, sabedora,

portanto, dos segredos mais ábditos de minha alma; e a meu irmão Gabriel, minha escolta,

companheiro fiel com quem reparto minha vida; agradeço a ambos pelo amor singelo, por

serem meus sempre melhores amigos. Obrigado por colorirem meus dias com suas alegres

presenças.

A meu avô Mauro, e a Heloísa, pessoas de bem, agradeço pela presença leve e

agradável, pela dedicação conosco, pelas deliciosas refeições, pela confiança que em mim

depositam, e pelos ensinamentos cristãos, que guardo com muito amor.

A meus avós Margarida e Thomaz, que construíram, sob o solo da união, da

honestidade e da fé, grande descendência, da qual tenho muito orgulho de fazer parte. Espero

poder sempre honrar a responsabilidade de a esse tronco pertencer.

À memória de minha avó Mazé, de cuja presença tive a felicidade de desfrutar

intensamente, sendo com ela a maior parte das doces lembranças que guardo de minha

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infância. Tenho certeza de que você está vibrando de alegria, vovó: para os exemplares

guardados daquelas nossas brincadeiras de escrever livrinhos aqui vai mais um.

A minha família, cuja presença me ajuda a não ceder à erosividade da vida. Dirijo,

pois, minha real gratidão, além dos já aqui anotados, aos meus tios, e primos, especialmente

aos que se fazem mais íntimos.

A minha namorada, Emily, minha força, minha motivação, meu amparo, agradeço

por todos esses anos de convivência baseada no amor e na confiança.

A meus amigos do Colégio Christus, especialmente, Daniel Frota, Gustavo

Vasconcelos, Bruno Rebouças, Leonardo Fernandes, David Coutinho, Lucas Teixeira,

Demontier Morais, cuja amizade a força do tempo não arrastou, mantendo-se inseparáveis

amigos, companheiros, conselheiros.

A meus amigos de Faculdade, notadamente, Thiago Praxedes, Otávio de Santana

Neto, Cássio Albuquerque, Fabrício Araújo, Jacks Ferreira Filho, Ticiana Doth, Elaine

Cristina, Renata Queiroz, Emanoel Carvalho e Airton Jorge, com quem vivenciei esses anos,

aprendendo, amadurecendo, errando, vencendo, sempre juntos.

Nessa toada, também registro minha sincera gratidão a todos do Escritório

Jurídico Alexandre Rodrigues Albuquerque, especialmente os doutores Miguel Hissa,

Rodrigo Macedo e Rui Farias, pois muito me foi precioso o tempo em que ali estagiei.

Agradeço a oportunidade, bem como a paciência e os frutíferos ensinamentos dirigidos a mim

naquela ocasião.

Reconheço também, com gratidão, as contribuições de minha professora Laurène

Duréault Câmara, pelas agradáveis tardes de sexta-feira, quando me auxilia a aperfeiçoar

meu francês, com seu espírito leve e sua simpatia ímpar.

Cumprimento, por fim, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico (CNPq), bem como a Universidade Federal do Ceará, por conceder-me bolsa de

iniciação científica.

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“Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.”

(Ricardo Reis, Fernando Pessoa)

“Não te mandei eu? Sê forte e corajoso; não

temas, nem te espantes, porque o Senhor, teu

Deus, é contigo por onde quer que andares.” (Js

1:9)

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RESUMO

Intenta distinguir histórica e sociologicamente como se mostra o racismo no Brasil e na

França. Investiga como os respectivos países o têm tentado eliminar, notadamente no campo

das ações afirmativas. Enfrenta a justificação das discriminações positivas na filosofia

contratualista. Apresenta a forma como o ordenamento jurídico de cada um dos Estados

recepciona ou não esse instituto. Busca um diálogo entre o direito francês e o direito pátrio a

fim de possivelmente importar práticas que obtenham satisfatória eficácia.

Palavras-chave: Ação afirmativa. Direito brasileiro. Direito francês. Discriminação racial.

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ABSTRACT

It attempts to distinguish historically and sociologically how the racism is shown in Brazil and

France. Investigates how the respective countries have faced the racism, especially in the field

of affirmative action. Face the justification for affirmative action in the contractualism. Shows

how the legal system of each State approved or not this institute. Search a dialogue between

French law and the Brazilian law to import practices that obtain satisfactory efficiency.

Keywords: Affirmative action. Brazilian law. French law. Racial discrimination

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RÉSUMÉ

Il tente de distinguer historiquement et sociologiquement comme le montre le racisme au

Brésil et en France. Étudie comment les pays respectifs ont dû faire face, en particulier dans le

domaine de la discrimination positive. Face à la justification de la discrimination positive

dans la philosophie contractualiste. Montre comment le système juridique de chaque Etat a

approuvé ou non de cet institut. Recherche d'un dialogue entre le droit français et le droit du

Brésil d'importer des pratiques qui éventuellement obtenir une efficacité satisfaisante.

Mots-clés: La discrimination positive. La loi brésilienne. La loi française. La discrimination

raciale

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Proporção da distribuição da população por cor em cada região do Brasil em 2003

.................................................................................................................................................. 72

Tabela 2: Proporção e número de pobres e extremamente pobres por cor no Brasil .............. 72

Tabela 3: Taxa de analfabetismo e média de anos de estudo segundo cor, 1995-2001

.................................................................................................................................................. 77

Tabela 4: Franceses que adquiriram nacionalidade francesa, por país de origem

(percentagem) .......................................................................................................................... 94

Tabela 5: Desemprego na França por nacionalidade e sexo, 1990 e 1999 ............................ 104

Tabela 6: Distribuição setorial de franceses e estrangeiros por porcentagem, 1975-1999 .... 105

Tabela 7: Proporção de funcionários com emprego não-estável de acordo com as

diferentes gerações relacionadas com a imigração ................................................................. 105

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1: Renda dos domicílios “negros” como porcentagem da renda dos domicílios

“brancos” no Brasil ................................................................................................................... 73

Gráfico 2: Evolução da renda média domiciliar para brancos e negros no Brasil e regiões

Nordeste e Sudeste ................................................................................................................... 74

Gráfico 3: Razão entre as rendas médias de brancos e negros em cada décimo da distribuição

de renda do Brasil ..................................................................................................................... 74

Gráfico 4: Razão entre as rendas médias das distribuições de brancos e negros: 2001 .......... 75

Gráfico 5: Evolução da renda média na ocupação principal para brancos e negros no Brasil 75

Gráfico 6: Evolução da escolaridade média entre brancos e negros no Brasil ........................ 76

Gráfico 7: Evolução da frequência à escola das crianças de 7 a 14 anos brancas e negras no

Brasil ......................................................................................................................................... 76

Gráfico 8: Distribuição dos adultos (25 anos e mais) segundo o nível educacional por cor no

Brasil ......................................................................................................................................... 77

Gráfico 9: Taxa de atividade segundo cor e faixa etária 2003 ................................................ 78

Gráfico 10: Taxa de desemprego por cor e sexo no Brasil, 2003 ............................................ 78

Gráfico 11: Taxa de desemprego segundo cor e sexo no Brasil. 1996 .................................... 79

Gráfico 12: Distribuição dos negros ocupados, segundo posição no Brasil, 2003 .................. 80

Gráfico 13: Distribuição dos brancos ocupados, segundo posição na

ocupação no Brasil, 2003.......................................................................................................... 80

Gráfico 14: Porcentagem de estrangeiros em relação ao total da população francesa na

França, 1851-1999 .................................................................................................................... 86

Gráfico 15: Grupos de nacionalidades em porcentagem da população estrangeira francesa,

1946-1999 ................................................................................................................................. 89

Gráfico 16: Distribuição da população francesa por tipo de localização .............................. 106

Gráfico 17: Proporção de pessoas que declararam já terem sido vítimas de discriminação em

razão da origem ...................................................................................................................... 107

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 17

1 OS FUNDAMENTOS DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NA EVOLUÇÃO DO

CONTEÚDO JUSFILOSÓFICO DA IGUALDADE ......................................................... 20

1.1 Raízes da igualdade jurídica: a igualdade na democracia grega ........................... 20

1.1.1 Platão .................................................................................................................... 21

1.1.2 Aristóteles ............................................................................................................. 22

1.2 O princípio da igualdade como centro do pensamento jusfilosófico Contratualista

e o surgimento do constitucionalismo e dos direitos fundamentais ............................. 24

1.2.1 Thomas Hobbes: a igualdade como condição para a superação do estado de

natureza ......................................................................................................................... 26

1.2.2 A razão humana como fundamento para a igualdade formal em John

Locke .............................................................................................................................. 27

1.2.3 A crítica de Jean-Jaques Rousseau à igualdade em sua concepção

formal ............................................................................................................................. 30

1.2.4 Immanuel Kant e a igualdade como condição para a liberdade ........................ 33

1.3 A crise do Estado liberal e a insuficiência da igualdade formal ............................. 37

1.3.1 Karl Marx e os fundamentos da desigualdade baseados na divisão social do

trabalho .......................................................................................................................... 39

1.4 Igualdade no Neocontratualismo e a Teoria da Justiça de John Rawls: os pilares

filosóficos das ações afirmativas ...................................................................................... 42

1.4.1. A igualdade real frente ao Estado contemporâneo ............................................ 45

2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS E CONCEITUAIS PERTINENTES AO OBJETO EM

ESTUDO ................................................................................................................................. 48

2.1 Preconceito .................................................................................................................. 48

2.2 Discriminação .............................................................................................................. 49

2.3 Racismo ........................................................................................................................ 52

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2.4 Ações Afirmativas ....................................................................................................... 54

3 A PROBLEMÁTICA RACIAL NO BRASIL E AS CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS DA

ESCRAVIDÃO E DA ABOLIÇÃO ..................................................................................... 59

3.1 A colonização brasileira e a trajetória do negro ....................................................... 59

3.2 A exclusão social do negro após a escravidão: a incorporação da teoria do racismo

“científico” ......................................................................................................................... 63

3.3 A difusão por Gilberto Freyre da “democracia racial” e a ocultação da realidade

social ................................................................................................................................... 66

3.4 Diagnóstico da realidade do negro no Brasil do século XXI: desigualdade,

discriminação e injustiça social ....................................................................................... 71

4 “A FRANÇA NÃO PODE RECEBER TODA A MISÉRIA DO MUNDO:”

INTOLERÂNCIA E XENOFOBIA NA FRANÇA E SUAS CONSEQUÊNCIAS

SOCIAIS ................................................................................................................................. 82

4.1 Contextualização histórica da imigração na França ............................................... 84

4.2 A Imigração como problema francês e o “novo racismo” ...................................... 94

4.3 Repercussões sociais da dificuldade de integração .................................................. 99

5 O COMBATE ÀS DISCRIMINAÇÕES RACIAIS NO BRASIL E NA FRANÇA:

UMA ANÁLISE ACERCA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NOS RESPECTIVOS

ORDENAMENTOS JURÍDICOS ..................................................................................... 108

5.1 A recepção das ações afirmativas pelo direito brasileiro ...................................... 108

5.1.1 O texto constitucional brasileiro e a positivação da igualdade material .......... 109

5.1.2 As ações afirmativas na legislação infraconstitucional ................................... 112

5.1.3 A doutrina brasileira e o posicionamento acerca das ações afirmativas .......... 114

5.1.4 A jurisprudência brasileira ................................................................................. 117

5.1.4.1 O contencioso da Universidade Estadual do Rio de Janeiro ....................... 117

5.1.4.2 O contencioso da Universidade Federal do Paraná .................................... 120

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5.1.4.3 O contencioso da Universidade de Brasília e o julgamento da ADPF 186 . 122

5.2 O combate à discriminação racial no direito francês ............................................. 126

5.2.1 A bases do direito público francês: entre universalismo e

diferencialismo ............................................................................................................ 126

5.2.2 O diferencialismo-corretor .................................................................................. 132

5.2.3 Proteção contra a discriminação no Direito Internacional e no Direito da União

Europeia ...................................................................................................................... 133

5.2.4 Proteção individual contra discriminação no direito interno francês ............. 135

5.2.5. As discriminações positivas no direito francês ................................................ 138

5.2.5.1 A divergência doutrinária ............................................................................ 138

5.2.5.2 Ausência de consenso na definição .............................................................. 139

5.2.5.3 A escolha de uma definição restritiva .......................................................... 142

5.2.5.4 As discriminações positivas “à la française” em concreto ......................... 144

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS .............................................................................. 149

REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 153

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INTRODUÇÃO

No desselar da presente faina, cabe-se elucidar a causa da eleição da liça posta a

desate: em prazenteiro colóquio com amigo negro francês, cujo tema passeava pelo entorno

das diferenças culturais havidas nas pátrias respectivas, confessou-me este seu desejo

adolescente de morar no Brasil, pois ali, segundo seu juízo, como existiam muitos negros,

como ele, não haveria preconceito de cor, vivendo todos em uma “democracia racial”. Sem

querer frustrar meu interlocutor, e, ao mesmo tempo, conduzido por meu sentimento ufanista,

não refutei sua afirmação.

Em outra ocasião, desta feita ouvindo as impressões de amigos brasileiros recém-

chegados da França, foi-me narrada a perplexidade a qual lhes ocorrera por terem se deparado

várias vezes naquele país com casais “inter-raciais” (é dizer, uma mulher notadamente branca

com um homem negro, ou o contrário), fato, segundo eles, “de ocorrência rara no Brasil,

principalmente no Ceará,” ressaltando que, por isso, consideravam ser aquela uma civilização

evoluída, registradora de mínimas desavenças de gênese racistas e discriminatórias.

A história e a cultura dos dois países estão, em verdade, imbricadas. Nos bistrôs e

cafés parisienses, a música brasileira é onipresente. Os franceses adoram o samba, o carnaval,

a literatura e o cinema brasileiros. O escritor Paulo Coelho é mais celebridade nas ruas de

Paris que no Rio de Janeiro. E a recíproca se mostra real: atualmente, os brasileiros fazem

negócios com os Estados Unidos, mas cultuam a gastronomia, a moda, a arte e os prazeres da

vida franceses.

Contudo, não somente dos mesmos prazeres as sociedades desses países

compartilham; mas também, de uma intempérie erosiva que desata sedimentos da dignidade

de seus cidadãos: a discriminação racial.

É de boa verdade que o Brasil, de sêmen escravista, oriundo de uma colonização

de exploração, possui hoje uma sociedade desigual, a qual herdou, de fato, alguns valores de

discriminação em razão da cor. No entanto, diferentemente do que chegou a ocorrer à época

do nazismo, não há aparentemente nesse projeto uma intenção de extermínio físico dos

discriminados. Desse modo, pode-se dizer que, no Brasil, o principal tipo de anulação dos

negros é de cunho moral e se dá por uma incapacidade, por parte dos discriminadores, de

perceber igualitariamente a população negra. Isso – embora não implique em puro e simples

“extermínio” – já é suficiente para lançar essa população numa situação de miséria

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deplorável, sobre a qual recai toda a crueldade da exclusão e da violência (em certos casos

extrema) a ela relacionada.

Noutra banda, o Velho Mundo é palco atualmente de uma outra forma de

discriminação: a xenofobia. As vítimas principais dessa discriminação negativa,

especialmente no caso francês, são os jovens das periferias, filhos de imigrantes africanos, a

maioria de religião muçulmana. O tema do tratamento discriminatório na França é de decisiva

importância política, tendo sido bastante debatido em épocas eleitorais nos últimos anos.

Nessa senda, sabe-se, ainda, que as ações afirmativas, oriundas de experiências

norte-americanas, são medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo estado,

espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente

acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como de compensar

perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais,

étnicos, religiosos, de gênero, visando, portanto, combater os efeitos acumulados em virtude

das discriminações ocorridas no passado.

Dessa arte, à visa do que se expôs, surgem algumas interrogativas para as que se

buscarão soluções no presente debruço: seriam ou não a sociedade brasileira e a francesa

realmente compostas por ideário racista? Em caso de resposta afirmativa, qual o contexto

histórico o deu cabo? As possíveis discriminações que têm lugar no hexágono europeu seriam

equivalentes as aqui ocorrentes? Haveria uma maior intensidade negativa no racismo

brasileiro ou na xenofobia europeia? Há medidas conduzidas pelos respectivos Estados ou

sociedade civil - ações afirmativas ou outras - no sentido de minorar, remediar ou evitar tais

condutas?

Decidiu-se, assim, em virtude dos limites dimensionais, dividir esta inquirição em

cinco capítulos. No capítulo exordial, faz-se apenas un tour d´horizon acerca do princípio da

igualdade no intelecto dos contratualistas, desde Aristóteles até Rawls. Tal tracejo tem por fito

enquadrar as medidas de ações afirmativas nas dimensões da equidade, podendo melhor

compreender a essência do instituto.

Em seguida, no segundo capítulo, almeja-se alumiar alguns conceitos de cujo

domínio o estudo em voga não prescinde, tais como discriminação, preconceito, ação

afirmativa e racismo.

No terceiro capítulo, esboçam-se apanhados da realidade brasileira, os quais

procuram fundamentar histórico, sociológico, cultural e antropologicamente o racismo

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adejante no País, com o telo de compreender a essência da realidade racial contemporânea no

Brasil.

Enfrenta-se, no quarto capítulo, a conjuntura da realidade do imigrante árabe

residente na França do século XXI, bem como de seus descendentes. Intenta-se examinar o

histórico da sua chegada ao País, as dificuldades de adaptação muçulmana, a questão da

xenofobia de que são vítimas, bem como analisar as repercussões sociais dessa dificuldade de

aceitação e de enquadramento em relação aos nacionais.

Em derradeiro, no quinto capítulo, fazem-se considerações acerca da recepção (ou

não) das ações afirmativas nos respectivos ordenamentos jurídicos, bem como da opinião

doutrinária dos publicistas, e bem assim, se traça um paralelo entre aquelas adotadas em

ambos os países, a fim de, por meio desse intercâmbio, avaliar o nível de evolução do sistema

jurídico brasileiro em relação ao francês, além de analisar a possibilidade de importação de

alguma medida bem sucedida aplicada sob solo gaulês.

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1 OS FUNDAMENTOS DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NA EVOLUÇÃO DO

CONTEÚDO JUSFILOSÓFICO DA IGUALDADE

"I shall now state in a provisional form the two

principles of justice that I believe would be

chosen in the original position. ... The first

statement of the two principles reads as follows.

First: each person is to have an equal right to the

most extensive basic liberty compatible with a

similar liberty for others.

Second: social and economic inequalities are to

be arranged so that they are both (a) reasonably

expected to be to everyone's advantage, and (b)

attached to positions and offices open to all.”

(John Rawls)

Impele-se, em exordial, ao versar do tema das discriminações raciais, que se

retrate, ainda que de ligeiro feitio, a evolução do conteúdo jusfilosófico da igualdade, em

especial os entrelaces das ideias contratualistas, uma vez que estas arrastaram até os dias de

hoje, além de importantes noções jurídicas, como constitucionalismo, direitos fundamentais e

soberania, a essência conceitual de equidade.

Tal deslize facultará mensurar que a evolução do conceito de igualdade converge

para legitimar a adoção de discriminações positivas e outras medidas da Administração

Pública no sentido de garantir a efetivação da isonomia na sociedade.

1.1 Raízes da igualdade jurídica: a igualdade na democracia grega

Altercavam-se já na Antiguidade Clássica os filósofos acerca dos entornos da

igualdade humana. Em boa verdade, a ideia de igualdade subjaz fortemente a evolução da

cultura ocidental. Evidenciavam-se seus traços primitivos carregados do elemento mítico-

religioso, na busca de algo que fosse comum a todos os seres humanos, coisa que lhes

equiparasse. Alguns encontraram esse componente na natureza (água, fogo, terra, ar, éter);

outros, na razão humana; havia ainda os que concluíram que os seres que habitam a phisys

derivam sua origem de um elemento comum e indivisível: o átomo.

Tal era o apreço pela busca da igualdade entre os homens na Grécia Antiga que

naquilo que se chamava democracia direta estruturava-se a polis. Assim, uma vez admitida a

igualdade como elemento edificativo da cidadania, coube aos atenienses formular princípios

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jurídicos e políticos por meio dos quais a democracia poderia manifestar-se plenamente. Foi

aí que instituíram os princípios da isonomia, segundo o qual todos seriam iguais perante a lei;

e o da isegoria, o qual inferia ter todo cidadão o mesmo direito que os de mais de manifestar-

se em público, sobretudo nas assembleias.

Desse modo, sendo a polis regulada com base no equilíbrio das instituições e na

igualdade entre todos os cidadãos, que podiam participar diretamente da elaboração das leis e

do governo, em função exclusivamente do discurso persuasivo, acreditaram os atenienses ter

encontrado um regime político no qual a justiça pudesse exprimir-se a partir da deliberação

livre e racional dos cidadãos.

De fato, com a consolidação da democracia ateniense, assistiu-se à primeira

concepção normativa sobre a justiça como igualdade formulada no mundo ocidental. Tal

concepção será especialmente trabalhada por Platão e Aristóteles, mas em suas linhas gerais

nasceu da prática política ateniense.

A democracia ateniense possui algumas características que a tornam diferente das

democracias modernas, ainda que estas se inspirem nela para se constituírem. Em

primeiro lugar, nem todos são cidadãos. Mulheres, crianças, estrangeiros e escravos

estão excluídos da cidadania, que existe apenas para os homens livres adultos

naturais e Atenas. Em segundo lugar é uma democracia direta ou participativa, e não

um a democracia representativa, como as modernas. Em outras palavras, nela os

cidadãos participam diretamente das discussões e da tomada de decisão pelo voto.

Dois princípios fundamentais definem a cidadania: a isonomia, isto é, o direito de

todo cidadão de exprimir em público (na Boulé ou na Ekklesía) sua opinião, vê-la

discutida e considerada no momento da decisão coletiva. Assim, a democracia

ateniense não aceita que, na política, alguns possam mais do que outros, e não aceita

que alguns julguem saber mais do que outros e por isso ter direito de, sozinhos,

exercer o poder... na política, todos são iguais, todos tem os mesmos direitos e

deveres, todos são competentes.1

1.1.1 Platão

Ao debate da igualdade no Estado reservou espaço considerável de suas

meditações Platão. Imbuído de seu método idealista de compreensão da realidade, projetou o

estabelecimento de um “Estado Ideal”, no qual os indivíduos deveriam ser organizados em

classes sociais em função de seu mérito, é dizer,

Até a idade de 07 anos, todas as crianças, de todas as classes e de ambos os sexos

recebem a mesma educação: ginástica, dança. Jogos para aprendizado dos

rudimentos da matemática, poesia épica para conhecimento dos heróis [...]. Aos 7

anos, as crianças passam por uma seleção: as menos dotadas ficam com suas

famílias na classe econômica, enquanto as mais dotadas prosseguirão. Agora,

iniciam os estudos das artes marciais e o treino militar (com novos conhecimentos

matemáticos, necessários à arte da guerra) que irão até os 20 anos, quando os

1 CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995, p. 111.

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rapazes e as moças passarão por novos exames e nova seleção. Os menos dotados

ficarão na classe dos guardiões, enquanto os mais dotados iniciarão os estudos para a

administração do Estado. Estudam, agora, as matemáticas: aritmética, geométrica,

estereométrica, astronomia e musica, isto é, acústica e harmonia. É o aprendizado

das ciências éticas, puramente intelectuais, de formação do raciocínio discursivo e

do pensamento hipotético-dedutivo. Aos 30 anos, uma nova seleção é feita. Os que

se mostrarem menos aptos ocuparão funções subalternas da administração pública e

do comando militar; os mais aptos iniciarão o estudo principal, submetidos a nova

prova; se aprovados, iniciam os estudos da ética, física e da política(...) aos 50 anos,

passam pelo exame final. Se aprovados tornam-se magistrados e dirigentes políticos.

Os aprovados, como podemos ver, são os filósofos.2

É possível perceber, no âmbito da incipiente teoria normativa da justiça elaborada

por Platão, a destacada importância conferida por ele à “igualdade”. Esta se mostra

particularmente ousada, na medida em que equipara aos homens as mulheres, no oferecimento

por parte do Estado de condições equânimes para que todos possam galgar os mais altos

postos da hierarquia política, independente de suas condições de origem ou nascimento,

realizando uma situação de equidade.

1.1.2 Aristóteles

Saliência houve, outrossim, o tracejado da noção de igualdade e justiça nas

anotações de Aristóteles. Ainda que tenha sua formação sido arquitetada na Academia

Platônica, de seu Mestre divergia substancialmente, refutando especialmente a filosofia

idealista. “Foi ideologicamente mais conservador, dando maior ênfase às condições reais do

homem e de suas instituições”3.

Para Aristóteles, a polis é uma necessidade, capaz de promover o bem, tendo por

fim a virtude e a felicidade. O homem é um animal político, pois é levado à vida política pela

própria natureza. A sociedade cuida da vida do homem, como o organismo cuida das partes

vitais. É a partir dessa premissa que a polis passa a regular a vida dos indivíduos, através da

lei, segundo os critérios de justiça.

É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem é

naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e que aquele que,

por instinto, e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa de fazer parte de

uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem. Tal indivíduo merece, como disse

Homero, a censura cruel de ser um sem família, sem leis, sem lar. Porque ele é ávido

de combates, e, como as aves de rapina, incapaz de se submeter a qualquer

obediência.4

2 Ibid., p.223-224.

3 Ibid., p. 255.

4 ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Editora Escola, 2003, p. 15.

Page 23: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

23

O mundo é concebido pelo Estagirita de forma finalista, em que cada coisa tem

uma atividade determinada por seu fim. O bem é a plenitude da essência, aquilo a que todas as

coisas tendem. O bem, portanto, é a finalidade de uma coisa (ou de uma ciência, ou arte).

Assim, a finalidade da medicina é a saúde, e a da estratégia é a vitória.

Dentre todos os bens, contudo, há um que é supremo, que deve ser buscado como

fim último da polis. Esse bem é a felicidade, entendida não como um estado, mas como um

processo, uma atividade através da qual o ser humano desenvolve da melhor maneira possível

suas aptidões. Os meios para se atingir a felicidade são as virtudes (formas de excelência),

discutidas na obra Ética a Nicômaco. As virtudes são disposições de caráter cuja finalidade é

a realização da perfeição do homem, enquanto ser racional. A virtude consiste em um meio

termo entre dois extremos, entre dois atos viciosos: um caracterizado pelo excesso e outro

pela falta, pela carência.

Aristóteles divide as virtudes em dianoéticas (ou intelectuais), às quais se chega

pelo ensinamento, e éticas (ou morais), às quais se chega pelo exercício, pelo hábito. As

virtudes éticas, enquanto virtudes do saber prático, não se destinam ao conhecer, como as

dianoéticas, mas à ação. Para sua aquisição o conhecimento tem pouca ou nenhuma

importância. Das virtudes dianoéticas, a de maior importância é a phrónesis (prudência),

capacidade de deliberar sobre o que é bom ou mal, correto ou incorreto. Das virtudes éticas, a

mais importante é a justiça.

Essa forma de justiça é, portanto, uma virtude completa, porém não em absoluto e

sim em relação ao próximo. Por isso a justiça é muitas vezes considerada a maior

das virtudes, e nem Vésper, nem a estrela d´alva são tão admiráveis; e

proverbialmente, na justiça estão compreendidas todas as virtudes. [...] somente a

justiça, entre todas as virtudes, é o bem do outro, visto que se relaciona com o nosso

próximo, fazendo o que é vantajoso a um outro, seja um governante, seja um

associado.5

Para o filósofo grego, o aspecto legitimador da Política pela justiça se encontra na

igualdade, sendo esta alcançada por sua célebre máxima, a saber, “tratando igualmente os

iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam”.

A justiça política aristotélica constitui-se portanto na busca dessa legitimidade, a

qual só se logrará na medida em que o Estado consiga criar os iguais na medida em que iguala

os desiguais; bem como definir que o tratamento desigual conferido aos desiguais possa ser

admitido como justo.

A justiça dividir-se-ia em duas: a justiça distributiva e a justiça corretiva. A

justiça distributiva (díkaion dianemtikón) realiza-se no momento em que se faz mister uma 5 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. São Paulo. Editora Nova Cultural, 1991, p. 82.

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24

atribuição a membros da comunidade de bens pecuniários, de honras, de cargos,

responsabilidades e impostos. A injustiça nesse sentido é o desigual, e corresponde ao

recebimento de uma quantia menor de benefícios ou maior de encargos que seria realmente

devido a cada súdito. Baseia-se numa igualdade geométrica, pois confere diferentes valores e

direitos às pessoas tratando-as de maneira diversificada, o que foi, assim, essencial para a

existência da polis grega. Neste tipo de igualdade os homens se distinguem,

proporcionalmente, uns dos outros pelo valor de cada um. Já a justiça corretiva, ou

retificadora, (díkaion diorthotikón) destina-se a ser aplicada a agentes particulares, baseada na

igualdade aritmética. Vinculava-se à ideia de igualdade perfeita ou absoluta.

Isso tudo faz que a Antiguidade e a Idade Média, por influência de Aristóteles,

tomem a palavra "igualdade", primariamente, como igualdade geométrica (se bem

que sem excluir, dentro da igualdade geométrica, uma igualdade aritmética, pois

entre os integrantes do demos em especial entre os aristoi, ou seja, os melhores, é

possível concebê-la, assim como entre os escravos também é possível concebermos

uma igualdade aritmética). Então, a polis é concebida como a harmonia de

desiguais.6

1.2 O princípio da igualdade como centro do pensamento jusfilosófico contratualista e o

surgimento do constitucionalismo e dos direitos fundamentais

O sentimento filosófico que abrasou a Europa a partir do século XVIII foi

combustor de consequências políticas, sociais e econômicas, as quais derivaram da

consolidação e crise de um sistema econômico (capitalismo, tanto em sua fase mercantilista

quanto industrial); um modelo político (transição do Estado absolutista para o Estado

Liberal); e uma classe social que ascendia: a burguesia.

A perspectiva histórica dessas mudanças são fruto da Revolução Francesa, a qual

pretendia fixar uma autonomia pessoal refratária às expansões do Poder.

Mais do que um evento histórico com seu próprio enredo, a Revolução Francesa

desempenhou um papel simbólico arrebatador no imaginário dos povos da Europa e

do mundo que vivia sob sua influência, no final do século XVIII. Coube a ela – e

não à Revolução Inglesa ou à Americana – dar o sentido moderno do termo

“revolução”, significando um novo curso para a história e dividindo-a em antes e

depois. 7

De fato, quando culminou, na noite de 14 de julho de 1789, a tomada da Bastilha,

símbolo do poder real e depósito das armas, por pobres e deserdados, inconformados com a

6 GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do

pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 48. 7 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e

a construção de um novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 25.

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25

recusa dos nobres em reduzir seus privilégios para diminuir a miséria e a fome que

imperavam no terceiro estado francês, estes não mais se conformariam com a opressão, pois

já se haviam dado conta de que a miséria não é o destino, mas a consequência da exploração e

dos privilégios das classes dominantes.8

Olhada à distância, depurada do aparente fracasso e de sua circularidade, foi a

Revolução Francesa, com seu caráter universal, que incendiou o mundo e mudou a

face do Estado – convertido de absolutista em liberal – e da sociedade não mais

feudal e aristocrática, mas burguesa. Mais que isso: em meio aos acontecimentos, o

povo torna-se tardiamente, agente de sua própria história. Não ainda como

protagonista, já que a hora era da burguesia.9

O sujeito adquiriu importância no meio social, diferentemente do que ocorria na

Antiguidade e na Idade Média, quando predominavam os valores coletivos. Passa-se a

primeiro olhar para o sujeito com suas particularidades e anseios para depois se pensar na

sociedade, que nada mais é do que a junção dos interesses de cada indivíduo. O privado

supera o público e o indivíduo prevalece sobre o corpo social. “No Estado Moderno, em

substituição do cidadão das pátrias, se ergue o cidadão do universo, o homem da polis

global”.10

Assim como apregoava Sieyès, a soberania cabe àqueles 20 milhões de franceses,

os quais, livres do privilégio e das classes, são a nação francesa.11

O indivíduo, titular de direitos inatos, exercê-los-ia na Sociedade, que aparece como

ordem positiva frente ao Estado, ou seja, frente ao negativum dessa liberdade, que,

por isso mesmo, surde na teoria jusnaturalista rodeado de limitações, indispensáveis

à garantia do círculo em que se projeta, soberana e inviolável, a majestade do

indivíduo.12

A revolução conduziu o Estado limitado pelo iura et privilegia, até a construção

de um novo conceito de cidadania; a liberdade e igualdade dos sujeitos passa a ser protegida

contra quaisquer intromissões dos outros.

A lei passa a ser o fundamento, a garantia e o limite.

8 Ver: BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 9ª ed. São

Paulo: Atlas, 2011. BITTAR, Eduardo C. B.. Curso de Ética Jurídica. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

FURTADO, Emmanuel Teófilo. Preconceito no trabalho e a discriminação por idade. São Paulo: Ltr, 2004.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

MIGNET, Par F. A. Historie de la révolution française depuis 1789 jusqu´em 1814. Troisième et seule

édition. Bruxelles. BLANC, Louis. Histoire de la révolution française. Paris: Libraire Internationale A.

Lacroix, Verboeckhoven éditeurs. 9 Ibid., p. 25.

10 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 34.

11 Ver: MAÍZ, Ramón. Nation and representation: E. J. Siéyès and the Theory of the State of the French

Revolution. Universidad Santiago de Compostela, Workpaper n. 18, Barcelona 1990. 12

BONAVIDES, Paulo, Do Estado Liberal ao Estado social, 2009, p. 40.

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26

A segurança e a liberdade são valores finais que a lei permite alcançar na medida

em que impede o arbítrio. É dentro desse contexto, portanto, que são formuladas as ideias de

legalidade e de igualdade no período oitocentista.

E é na filosofia que se enraíza a tendência liberal clássica, privilegiando o privado

em detrimento do público, elevando a patamar máximo da discussão acadêmica o princípio da

propriedade privada, por meio de uma concepção que foi uníssona aos pensadores da época,

que chegavam a conclusões diversas, muitas vezes até antagônicas, partindo contudo da

mesma premissa conceitual: o contratualismo.

Introduziram-se, ainda que restritas ao âmbito jurídico formal, categorias com

pretensões universalizantes, como “povo” e “nação”. Fica patente a noção de justiça política

em torno da igualdade. Tais formulações filosóficas redundaram na moderna concepção de

direitos fundamentais, núcleo do chamado constitucionalismo.13

1.2.1 Thomas Hobbes: a igualdade como condição para a superação do estado de natureza

O contratualismo aparece claramente com ascendência fincada nas propostas de

Thomas Hobbes, especialmente em sua obra Leviatã (1651). Malgrado seja idealista da

necessidade do sistema absolutista, teve o mérito de fixar conceitos elementares, tais como

propriedade privada, contrato social e estado de natureza, que pautaram toda a filosofia

contratualista até meados do século XIX.

Durante as agonias derradeiras do sistema medievo, a Europa entra em crise

política, monetária, militar, administrativa, legislativa e jurisdicional, e a burguesia percebeu

nessa crise o maior entrave para o seu pleno desenvolvimento. À ausência de uma autoridade

política e militar que se fizesse respeitar em um âmbito territorial mais extenso, somaram-se

as dificuldades impostas pelo poder de cada senhor feudal.

Como cediço, em decorrência dessa desordem, o pensamento hobbesiano parte de

uma visão pessimista sobre a natureza humana, concebendo esta como egoísta, voltada para a

satisfação pessoal e ao apego absoluto da liberdade individual em detrimento das

consequências que essa postura possa redundar para os demais. A desordem, a anarquia e a

guerra de todos contra todos se mostram como características do estado de natureza,

designando-se por essa expressão a situação de desordem que se verifica sempre que os

13

Ver: SUANZES-CARPENGA, Joaquín. La dimension Historique du Constitutionalism. Historia

Constitucional, n. 7, 2006.

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27

homens não têm suas ações reprimidas pela razão. O homem vive a permanente guerra de

todos contra todos.

Por outro lado, Hobbes prega a igualdade de todos no estado de natureza. De fato,

para o filósofo inglês, em nenhum outro contexto histórico os homens experimentaram uma

situação de igualdade tão radical como no estado de natureza. Tanto que, nem mesmo a força

física ou a inteligência seriam suficientes para levar a um desequilíbrio.

A natureza e os homens são tão iguais nas faculdades do corpo e da mente que,

embora às vezes se encontre um homem manifestamente mais forte, no físico, ou de

mente mais ágil do que outro, no final das contas, a diferença entre um homem e

outro não é tão considerável a ponto de que possa, a partir disso, reivindicar para si

um benefício ao qual o outro não possa pretender tanto quanto ele.14

Assim, para escapar desse estado de permanente insegurança, Hobbes recorre a

uma figura elementar, simbólica, da nova classe em ascensão: o contrato; através do qual os

homens buscam renunciar à liberdade absoluta de que dispõem no estado de natureza, em prol

de sua própria segurança. A liberdade seria a condição de existência do Estado e forma de

superação do estado de natureza.

E é por força desse ato [contrato] puramente racional que se estabelece a vida em

sociedade, cuja preservação entretanto depende da existência de um poder visível,

que mantenha os homens dentro dos limites consentidos e os obrigam, por temor ao

castigo, a realizar seus compromissos é a observância das leis da natureza

anteriormente referidas. Esse poder visível é o Estado.15

Nesses termos, Hobbes representa um novo estágio no âmbito da filosofia política

ocidental, gerando as primogênitas ideias de igualdade formal moderna, e fixando os

conceitos fundamentais que balizarão a evolução do contratualismo.

1.2.2 A razão humana como fundamento para a igualdade formal em John Locke

A reação às ideias de Hobbes germinaria da própria Inglaterra com os trabalhos de

John Locke, envolvidos em muito pelo contexto histórico setecentista da Revolução Gloriosa.

A sociedade feudal e a prestidigitação dos Landlord´s já eram pretérito.

O poder econômico da burguesia já se havia consolidado.

Se à época de Hobbes o que interessava aos burgueses era maior liberdade de

comércio, estando dispostos para isso ocupar uma posição secundária em relação ao poder

político; a conquista do Poder político e a transformação do Estado para que se tivessem

14

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Clarete, 2002, p. 96. 15

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 14.

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28

condições efetivas de garantir o direito de propriedade e o cumprimento dos contratos é

doravante o que os cativa.16

A obra mais relevante de Locke – Segundo Tratado sobre o Governo Civil – foi

publicada um ano após a vitória da Revolução Gloriosa, mostrando de certa forma uma

justificação ex post facto do movimento que depôs Jaime II e levou ao trono Guilherme de

Orange.

Assim como em Hobbes, a reflexão de Locke partiu também de um estado de

natureza. No entanto, diferentemente de seu precursor, concebe esse estado de natureza, não

como um momento hipotético do homem pré-social e pré-político, mas como um estado de

fato, pelo qual já passaram ou ainda viveriam algumas sociedades, é dizer, era uma situação

real hipoteticamente determinada pela qual passara, ainda que em épocas diversas, a maior

parte da humanidade e na qual se encontravam ainda alguns povos, como as tribos norte-

americanas.

No estado de natureza lockeano, não havia uma guerra permanente, o homem não

se tornava lobo; pelo contrário. Sob influência de estudos empiristas realizados na Nova-

Inglaterra, não consegue constatar permanente belicosidade entre os “selvagens”. Nesse

sentido, a única constatação possível, com base em um raciocínio comparativo, era a de que

os nativos encontrar-se-iam em um estagio tecnologicamente inferior em relação, por

exemplo, aos europeus. Mas disso não se conclui necessariamente a sua predisposição ao

autoaniquilamento.

E nisto temos a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra, que,

muito embora certas pessoas tenham confundido [Hobbes], estão distantes um do

outro como um estado de paz, de boa vontade, assistência mútua e preservação está

de um estado de inimizade, malícia, violência e destruição mútua.17

Não era só isso. A observação empírica dos nativos da América deixava claro que,

além de não se encontrarem em permanente estado de guerra, em seu estado de natureza eles

viviam livremente, sem opressão ou tirania. E não obstante não fossem dados a grandes

ambições, nada parecia existir no sentido de impedir-lhes a posse de bens úteis e necessários à

sua sobrevivência e deleite. E se era certo que se encontravam atrasados em relação aos

“civilizados”, também parecia que dispunham de engenho, criatividade e tudo o mais que

costumamos caracterizar pelo uso diligente da própria inteligência. Em suma, era indiscutível

que eles eram racionais. Daí porque respeitavam a vida, a liberdade e os bens dos demais,

porque tais disposições se encontravam em conformidade com a natureza e com a razão. A

16

Ver: WILLIAMS, Hugh. Fifty things you need to know about British History. London: Collins, 2008. 17

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 223.

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29

igualdade e independência dos homens seriam assim um direito natural apoiado e garantido

pela faculdade universal da razão.

Diferentemente de Hobbes, a igualdade é concebida no pensamento de Locke

com base em uma questão de direito (natural), e não de fato (ausência de um poder supremo

que limite a vontade individual). E para concluir – no que mais tarde lhe faria eco Rousseau -,

constata que os homens nasciam “naturalmente bons” na medida em que nasciam racionais.

O estado de natureza tem uma lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga; e

a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que tão-só a consultem, sendo

todos iguais e independentes, que nenhum deles de prejudicar a outrem na vida, na

saúde, na liberdade ou nas posses (...) e sendo todos providos de faculdades iguais,

compartilhando uma comunidade de natureza, não há possiblidade de supor-se

qualquer subordinação entre os homens. 18

Locke, portanto, deriva a igualdade como um direito natural, peremptoriamente

negado por Hobbes.

O conceito de contrato social de Locke é também substancialmente distinto

daquele proposto por Hobbes. Neste, o contrato se expressa na forma de um “pacto de

submissão”, tendo como função principal tornar o poder do soberano livre de qualquer

limitação, justificado em nome da segurança e da igualdade; naquele, busca-se por meio do

contrato a limitação do soberano, a contenção de sua ação e de toda a intervenção

administrativa do Estado aos limites da lei fixada pelo Parlamento (princípio da legalidade).

No contato lockeano, a principal obrigação política é assumida entre os

indivíduos, e não entre estes e o Soberano, temos então a introdução de um princípio

normativo que promete satisfazer a percepção de uma ampliação igualitária no campo

político, o voto (ainda que censitário).

Recorrendo à velha formulação platônica, já retomada e reformulada pelo

Estagirita e pelo próprio Hobbes do equilíbrio entre classes, poderes sociais, Locke propõe

uma nova estrutura institucional para o Estado, na qual os poderes estatais ou as competências

do poder político devem ser autônomas e independentes entre si. Sua concepção será mais

adiante recuperada por Montesquieu, que popularizará a ideia de “separação dos poderes”19

.

18

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil, 1991, p. 218. 19

As propostas de separação de poderes idealizadas por Locke e por Montesquieu são deveras distintas. Aquela

se subjaz em legislativo, o qual seria o poder supremo e que inclusive, além da atribuição de legislar também

teria a de julgar; executivo, o qual executaria as leis; e federativo, que exerce uma espécie de relações

internacionais, para evitar a ocorrência de conflitos, resolvê-los de forma pacífica. Locke entende que os poderes

executivo e federativo deveriam ser exercidos pela mesma pessoa. Já na tripartição de poderes proposta por

Montesquieu, seriam três os poderes do Estado: o poder Legislativo (fazer as leis); o poder Executivo das coisas

que dependem do direito das gentes (paz, guerra, segurança, prevenção de invasões etc.), que é o poder

Executivo do Estado; o poder Executivo das coisas que dependem do direito civil (pune os crimes, julga

conflitos entre indivíduos etc.), ou seja, o poder de julgar.

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30

Em razão de sua doutrina do contrato social como limitação do poder do soberano

como fundamento da separação dos poderes e da eleição de um conjunto de “direitos

fundamentais” em torno da tutela da vida, liberdade e propriedade, constituiu-se na mais

representativa justificação daquilo que viria a ser conhecido pouco tempo depois por

“constitucionalismo”.

No entanto, ao aprofundar os elementos inicialmente desenvolvidos por Hobbes

em torno de uma concepção meramente formal da igualdade, transformou em dogma o

princípio da autonomia privada e da propriedade privada, equiparando juridicamente os

materialmente desiguais, criando as condições necessárias para a expansão generalizada do

trabalho assalariado que conduziu à revolução industrial. E com o avanço da industrialização,

a desigualdade material conheceu uma dimensão até então inédita, com o processo de

acumulação de capital criando um enorme fosso entre proprietários e não-proprietários dos

meios de produção.

A exacerbação da desigualdade no âmbito dessa nascente sociedade industrial

acabou por inspirar a reflexão crítica em relação aos excessos do liberal-individualismo no

campo da própria filosofia contratualsita, que passou a exigir a submissão do princípio da

liberdade ao princípio da igualdade (material).

Nesse itinerário, a força da filosofia contratualista deslocou-se da Grã-Bretanha

para o continente europeu, mais especificamente para a França de Jean-Jaques Rousseau.

1.2.3 A crítica de Jean-Jaques Rousseau à igualdade em sua concepção formal

Nos entornos de uma França pré-revolucionária inspirou-se Rousseau em suas

ideias, em especial sua crítica à desigualdade entre os homens, que constituiu uma importante

ferramenta para a Révolution, que eclodira dez anos após sua morte. Foi eleito como patrono

da Revolução, e muitos, dentre as massas que se dirigiram à Bastilha, levavam nas mãos

cópias do Discurso como uma espécie de passaporte para a liberdade política, a igualdade

econômica e a fraternidade entre os povos.20

20

JAYATILAKA, Lawrence. The influence of enlightenment ideals on the French Revolution. Colchester

(ENG): Essex Student Reserch, Vol. 3, p.70-78.

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31

O filósofo de Genebra criticou as concepções em torno do estado de natureza até

então elucubradas, demonstrando que o caminho percorrido pelos autores proemiais para

tanto seria incompleto.21

Os filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram a necessidade

de remontar ao estado de natureza, mas nenhum deles aí chegou. Uns vacilaram em

supor no homem desse estado a noção do justo e do injusto, sem se inquietar de

mostrar que ele devia ter essa noção, nem mesmo que ela lhe fosse útil. Outros

falaram do direito natural que cada qual tem de conservar o que lhe pertence, sem

explicar o que entendiam por pertencer. Outros, dando primeiro ao mais forte

autoridade dobre o mais fraco, fizeram logo nascer o governo, sem pensar no tempo

que se devia ter escoado antes que o sentido das palavras autoridade e governo

pudesse existir entre os homens, enfim, todos, falando sem cessar de necessidade, de

avidez, de opressão, de desejos e de orgulho, transportaram ao estado de natureza

ideias que tomaram na sociedade: falavam do homem selvagem e pintavam o

homem civil.22

Em contraste com a concepção hobbesiana, que concebe o estado de natureza

puramente hipotético, Rousseau parte, assim como Locke, de uma situação que supõe

historicamente determinável, e pela qual alguns povos ainda transitam.

Possuía, no entanto, um conhecimento mais aprofundado sobre os “selvagens”

que Locke. Demonstra fascínio pela força física, disposição e saúde desses homens

“primitivos”, os quais, segundo o relato dos naturalistas de que dispunha, apontavam para um

ser vigoroso, em contato permanente com a natureza, hábil, perfeitamente adaptável.

Toma como referência, dentre outros, os caraíbas da Venezuela. Não consegue

visualizar o “lobo” descrito por Hobbes. Ao contrário, percebe uma comunidade hábil no trato

dos recursos que a natureza lhes disponibilizou, vivendo em perfeita harmonia uns com os

outros.23

Rousseau começa aí uma comparação entre o “bom selvagem” e o homem civil,

que, como ele, vivia organizado em sociedade. Conclui o filósofo que a vida em sociedade, ao

introduzir uma série de vícios e toda uma gama de comodidades, vai despindo o homem de

sua força natural, tornando-o preguiçoso, privando-o de sua coragem e resistência, e criando

21

Conferir: REIS, Cláudio Araújo. Vontade geral e decisão coletiva em Rousseau. Revista

TransFormAção vol.33 no.2 Marília 2010. YURÉN, Teresa. Diversas miradas sobre distintas facetas de la obra

de J–J. Rousseau. Revista Signos Filosóficos vol.12 no.23 México jan./jun. 2010. VARGAS, Yves. Rousseau et

le Droit naturel. Revista TransFormAção vol.31 no.1 Marília, 2008. CARRIN, Guy J. Rousseau's "social

contract": contracting ahead of its time? Bull World Health Organ, vol.84 no.11 Genebra Nov. 2006. REIS,

Claudio Araújo. Rousseau e a arte de observar e julgar os homens. Revista Kriterion, vol.43 n. 105, Belo

Horizonte Jan./Jun 2002. 22

ROUSSEAU, J.J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo:

Martin Claret, 2002, p. 32. 23

“Eis sem dúvida as razões por que os negros e os selvagens fazem tão pouco caso dos animais ferozes que

podem encontrar nas selvas. Os caraíbas da Venezuela vivem entre outros, a esse respeito, na mais profunda

segurança e sem o menor inconveniente. Embora quase nus, diz François Corréal, não deixam de se expor com

ousadia nos bosques, armados somente de flecha e arco; mas, nunca se ouviu dizer que algum deles fosse

devorado pelas feras” Ibid., p. 38.

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32

condições para aprisioná-lo em escravidão. O estado de natureza corresponderia assim a um

estado de inocência que, uma vez perdido, jamais poderia ser reencontrado.

O mesmo acontece com o homem: tornando-se sociável e escravo, torna-se fraco,

medroso, submisso; e sua maneira de viver mole e efeminada acaba por debilitar, ao

mesmo tempo, a sua força e sua coragem. Acrescentamos que, entre a condição

selvagem e a doméstica, a diferença de homem para homem deve ser maior ainda

que a de animal pra animal: porque, tendo o animal e o homem sido tratados

igualmente pela natureza, todas as comodidades que o homem se proporciona mais

do que aos animais por ele amansados são outras tantas causa particulares que o

fazem degenerar mais sensivelmente.24

Rousseau diverge também do pensamento lockeano segundo o qual a

racionalidade e a sociabilidade seriam caracteres imanentes ao homem. Adota claramente uma

visão evolucionista, segundo a qual a racionalidade não seria inata ai homem, pois teve o

homem antes que desenvolver a linguagem. Sem o desenvolvimento de uma estrutura

linguística minimamente estruturada não há possibilidade de manifestação daquilo que se

define por racionalidade, pois esta, só pode se construir intersubjetivamente, por meio de um

mútuo entendimento dentre os homens.

Mas o que teria, segundo Rousseau, alavancado o surgimento da linguagem?

Direi, como muitos outros, que as línguas nasceram da convivência doméstica dos

pais, das mães, e dos filhos; mas, além disso não resolver as objeções, seria cometer

o erro dos que, raciocinando sobre o estado de natureza, para aí transportam as

ideias tomadas na sociedade, vêem sempre a família reunida em uma mesma

habitação e a seus membros guardando entre si uma união tão intima e tão

permanente como entre nós, onde tantos interesses comuns se reúnem; ao passo que,

nesse estado primitivo, não tendo casas, nem cabanas, nem propriedades de

nenhuma espécie, cada qual se alojava ao acaso e muitas vezes por uma só noite; os

machos e as fêmeas se uniam fortuitamente, conforme o encontro, a ocasião e do

desejo, sem que a palavra fosse interprete muito necessário das coisas que se deviam

dizer: e se abandonavam com a mesma facilidade.25

É nesse ponto que Rousseau vai buscar na necessidade a origem da língua. Seja na

coleta de alimentos, seja para aperfeiçoar a caça, o homem teve que se comunicar. E quanto

mais bem estruturada fosse a linguagem, mais eficiente se tornava a busca por sobrevivência.

Portanto, diferentemente do que apregoava Locke, no estado de natureza não

havia propriedade privada, pois no interior do gênero humano, o trabalho tem dimensão social

e coletiva, existindo, assim como a linguagem, para suprir a necessidade do todo e não da

parte. E foi nesse primeiro ato de violência – a demarcação da primeira propriedade privada –

no entendimento de Rousseau, que se passou do estado de natureza para a sociedade civil. A

24

ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. 2002, p.

40. 25

Ibid., p. 46.

Page 33: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

33

partir desse momento passou a haver desigualdade entre os homens, despertando-lhes os

sentimentos de egoísmo, avareza, e de luta permanente de todos contra todos.

O primeiro que, depois de cercar um terreno, pensou em afirmar isto é meu e

encontrou pessoas bastante ingênuas para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da

sociedade civil. Quantos delitos, quantas guerras, quantas matanças, quantas

misérias e quantos horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando

as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado aos semelhantes: ‘não deis ouvidos a

esse impostor. Se esquecerdes de que os frutos são de todos e que a terra não é de

ninguém, estareis perdidos?’26

Assim, o Estado civil ergueu-se como centro de toda a opressão política e

fortificação de toda a desigualdade humana.

O contrato social de Rousseau aparta-se do lockeano, uma vez que este resultava

de um acordo de vontade entre os homens, que são iguais na medida que são racionais;

naquele, por seu turno, não poderia haver igualdade entre latifundiário e camponês, entre

industrial e operário com base apenas na racionalidade de ambos, mas devia ter como núcleo

a “vontade geral dos signatários”.

Era o germinar da noção de igualdade material.

Destarte, ainda que a muito do que foi por ele elaborado tenha sido atribuída

qualificação de romântico, utópico ou ingênuo, sua contribuição foi decisiva para a percepção

da igualdade, não apenas formal, mas substancial.

1.2.4 Immanuel Kant e a igualdade como condição para a liberdade

Sapere Aude. Atreve-te a saber. Tal alocução fora exalada pelo “grande demolidor

de Koenigsberg”27

para designar o tema do iluminismo. Immanuel Kant representa o ponto

culminante do pensamento iluminista, e, no interior de sua filosofia, o primado da razão

encontra a sua defesa mais entusiástica. Foi ele inclusive partidário da Revolução Francesa, ao

menos quando esta ainda não se encontrava em sua fase final e mais sanguinária.

Apesar da relativa parcimônia, Kant foi considerado por seus contemporâneos, tanto

a leste quanto a oeste do Reno, um ardente defensor e partidário da Revolução.

Chegou a ter reputação de um jacobino, e Charles Thereminm, então chefe de

gabinete do Comitê de Saúde Pública e homem de confiança de Sieyès, tentou, a

pedido deste último, estabelecer um contato direto, que Kant, já muito idoso e

cauteloso para não intervir nos assuntos de um país estrangeiro, aparentemente teria

recusado.28

26

ROUSSEAU, J. J. Do Contrato Social. São Paulo: Cultix, 1995, p. 161. 27

BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social, 2009, p. 89. 28

FERRY, Luk. Kant: uma leitura das três críticas. Tradução de Karina Jannini. Rio de Janeiro: Dielf, 2009,

p. 288.

Page 34: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

34

Sua filosofia afigura-se como das mais grandiosas construções que o gênio

político do século XVIII pode herdar à posteridade. Sua obra fixa nitidamente a fronteira que

separa a Filosofia moderna dos velhos sistemas que ele superou.29

30

Em seu debruço Crítica da Razão Pura, seu objetivo primordial era o de saber

como seria possível conhecer, saber as possibilidades da razão. E em tal reflexão, perguntava-

se por qual motivo a metafísica não apresentaria o mesmo grau de razão que as matemáticas, a

lógica ou a física.

A significação de tal pergunta é o mesmo que especular sobre a plausibilidade de

a metafísica comportar formulação de juízos sintéticos a priori, uma vez que só estes são

concomitantemente universais e necessários, acrescentando novos conhecimentos.

[Kant] distingue as formas do conhecimento em a priori, ou puro e a posteriori, ou

empírico. Aqueles independem da experiência, sendo, pois, universais e necessários,

enquanto estes se limitam aos dados oferecidos pela experiência e, por isso,

contingentes. Porém, há, ainda, os juízos sintéticos e os analíticos, que se

diferenciam por adicionar ou não elementos novos à assertiva.31

Faz Kant, após tais ilações, uma proposta de mudança de método na análise do ato

cognitivo, por ele denominada de Revolução Copernicana (Kopernikanische Wende). Desse

modo, o sujeito não gira em torno dos objetos; mas, ao reverso, os objetos devem-se amoldar

ao conhecimento.

A filosofia kantiana, portanto, não tem cunho ontológico, uma vez que não

concerne à coisa em si, a saber, o ser, quer no que toca à sua existência, quer à sua essência;

mas, ao contrário, refere-se ao conhecimento humano das coisas, sendo desse modo uma

filosofia gnosiológica, pois, como retro aludido, não se ocupa dos objetos em si, mas da

forma que podemos conhecê-los a priori.

[Para Kant,] todo objeto de conhecimento é determinado a priori pela própria

maneira de nossa faculdade de conhecer [...] sem a ação da subjetividade, o

conhecimento e a ação são impensáveis e por isso querer tematizá-los sem levantar a

pergunta transcendental é cair no mais profundo dogmatismo.32

Kant faz, por conseguinte, do homem o “eixo de toda sua indagação crítica”33

.

29

BONAVIDES, Paulo, Do Estado liberal ao Estado social, 2009, p. 90-91. 30

Conferir: PEREIRA, Dersú Georg Menescal. A teoria do contrato e o pensamento político-jurídico da filosofia

kantiana. Paraná: Revista da UFPA, edição no 3, mar. 2002. ARANALDE, Michel Maya, Reflexões sobre os

sistemas categoriais de Aristóteles, Kant e Ranganthan. Revista Ciência da Informação, vol. 38, n. 1, Brasília,

Jan 2009. 31

SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo:

Celso Bastos Editor, 1999, p. 21. 32

Ibid., p. 21. 33

BONAVIDES, op. cit., p. 91.

Page 35: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

35

Já em seu ensaio Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant constrói uma

inteligência segundo a qual o princípio da moralidade será buscado, a priori, exclusivamente

nos conceitos da razão pura e não na natureza do homem, nem nas circunstancias do mundo

em que está inserido. O princípio da moralidade kantiano é pertinente a todos os que gozam

de razão, que enquanto estrutura imanente a priori, permitiria a articulação do agir de cada

um com vistas à garantia da liberdade de todos. É dizer, para Kant, a ideia de liberdade nasce

da capacidade individual (enquanto ser racional) para formalizar os conteúdos necessários

para o estabelecimento do seu agir no mundo, sendo então fixada a partir daquilo que ele

denominou por imperativo categórico.

Para Kant, toda a moral está formada por imperativos, é dizer, por ordens: “Faça

isso”, “não faça aquilo”, “evite isso”. Esses imperativos estão presentes em toda nossa vida:

constantemente estamos dando ordens a nós mesmos de acordo com o que queremos fazer. Há

objetivos condicionais, que são aqueles que estão de acordo com algum objetivo que

almejamos: se quero pegar um avião que sai cedo, devo levantar-me cedo. Mas

verdadeiramente moral seriam os objetivos que não têm objetivo algum, e que são oriundos de

nossa condição humana, e que são impostos simplesmente por nossa razão. A esse conjunto

de objetivos Kant chamou de imperativo categórico, por meio do qual formulou a máxima

“conduze-te de tal modo que o teu agir possa converter-se em lei universal”.

Nesse sentido, a universalidade necessária atribuída ao imperativo categórico,

fundamento de todas as escolhas racionalmente decididas pelo individuo, parâmetro para o

exercício consciente de sua liberdade, deve encontrar, no outro extremo, um indivíduo

também racional. Este, igualmente, pauta as suas escolhas no imperativo categórico amparado

no reino dos fins (em que nenhum indivíduo é considerado como “meio”, mas fim em si

mesmo em razão de sua especial dignidade), o que permite aos dois, atingir um plano de

igualdade superior àquele inicialmente estabelecido pela ideia puramente formal de igualdade

definida pelos primeiros contratualistas. Nesse ponto da filosofia de Kant, as noções de

igualdade e liberdade parecem convergir de tal forma que uma se coloca como condição para

a outra.

Com isso se infere que para Kant, a liberdade e a igualdade são fatos pré-jurídicos

e pré-políticos, situados inicialmente no âmbito do juízo moral.

Contudo Kant reconhece que a fundamentação moral da liberdade, lastreada no

imperativo categórico, não é suficiente per si para garantir a sociabilidade humana, sujeita às

inflexões desestabilizadoras das paixões e aos mecanismos produtores de desigualdades. Por

Page 36: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

36

isso, a sociabilidade requer a instituição de limites externos. Todavia, para que estes limites

não entrem em contradição com a liberdade moral, devem ser eles estabelecidos a partir de

leis auto-impostas, em virtude da capacidade dos seres racionais de legislarem para si

próprios.

Desse ponto em diante, Kant inicia a construção de sua doutrina do direito, não do

direito positivo, mas de um conceito universal (a priori) de direito, que tenha por objeto as

relações interpessoais que constituem a sociabilidade humana. Nesses termos, a moral

abrangeria o direito e o fundamento de ambos estaria na autonomia da vontade.

Kant retoma o tema do estado de natureza. Não o percebe todavia como oposto ao

estado de sociedade, pois acredita que no estado de natureza possa existir uma sociedade, mas

não uma sociedade civil, compreendida esta como Estado de Direito. Ou seja, a transição do

estado de natureza para a sociedade civil se dá a partir do momento em que os homens

decidem regular o âmbito externo de sua liberdade com base em leis que sejam a expressão

universal de sua vontade, pautada na defesa de suas respectivas autonomias privadas. A

função primordial do direito público seria, portanto, garantir a efetividade do direito privado.

O estado natural não é um estado fora do Direito, na concepção contratualista de

Kant. Ao contrário do que postulava a antiga doutrina jusnatualista, desde Hobbes,

esse Estado, que antecede a organização política, já conhecia e praticava o Direito.

Faltava, porém, um princípio de segurança para a liberdade, para as relações entre os

indivíduos, todos mutuamente dotados da mesma igualdade e que representavam um

vasto conglomerado de vontades particulares sobre as quais nenhuma vontade

superior se elevava. [...] Quando ocorre a passagem do status naturalis ao status

civilis, o Estado então se constitui, aparece o público como Direito estatuído,

provido de aparelhagem técnica, de órgãos que permitem ao princípio da autoridade

positivar-se socialmente. O status civilis não é um estado justo, senão um estado

jurídico. [...] o homem – asseverava Kant – não sacrificou parte de sua liberdade

externa e inata a um fim determinado, quando entrou na comunidade estatal, senão

que abandonou a liberdade feroz e anárquica, para reavê-la depois, intacta, na

dependência da lei, ou seja, num estado jurídico, visto que esta dependência deriva

de sua própria vontade legislativa.34

Ao estruturar sua compreensão acerca do fenômeno jurídico em geral e da

distinção entre público e privado, em particular, Kant se coloca dentro da mesma tradição

trilhada anteriormente por Hobbes, Locke e Rousseau, ou seja, no campo da filosofia

contratualista – e mais especificamente, alinha-se com Locke no âmbito do liberal-

individualismo.

Adere ao princípio de Rousseau acerca das origens do poder político, que é a teoria

do pacto social. Mas em Kant, o pacto deixa de ser um Faktum, realidade histórica,

como na antiga doutrina contratual do jusnaturalismo [...] para se converter, por

último, numa ideia de todo racional. Kant procede com o pacto da mesma maneira

como procedera com o Direito e procederia depois com o Estado: racionaliza-o.

34

BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social, 2009, p. 111-112.

Page 37: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

37

Transfere-o da esfera sociológica para a esfera normativa. O pacto é uma ideia

regulativa e não constitutiva, um sollen e não um sein.35

A investigação kantiana acerca do formalismo moral acabou por se colocar como

fundamento para investigações posteriores acerca da plausibilidade de mútuo entendimento

humano. Entendimento em torno das condições necessárias para um processo político

igualitário e em torno de conceitos universais de justiça, continuando sua obra a falar através

dos séculos.36

Quando a Liberdade estiver em perigo e o Direito abalado em seus últimos alicerces,

haverá sempre, na historia das ideias, a imperiosa necessidade de um retorno a Kant.

Não para extrair de suas páginas cópias servis e imprestáveis, ou justificações pueris

da exploração burguesa, senão para nutrir o espirito na riquíssima e fecunda seiva de

seu pensamento profundamente humano. Outra, por conseguinte, não poderá ser a

glória e a imortalidade desse grande filósofo.37

1.3 A crise do Estado liberal e a insuficiência da igualdade formal

Conforme asseverado surpa, o Estado liberal, inquieto em escoar quaisquer

resíduos medievais, sobretudo os que se tratavam de conceder privilégios, tinha como pedra

de toque o princípio da igualdade em sua acepção formal, é dizer, a igualdade em face da lei.

Fundamentava-se na ideologia individualista, tendo o princípio da iniciativa

privada como pedestal. Com fulcros nas formulações de Adam Smith, ergue-se o Estado

liberal, absenteísta, indiferente aos interesses das minorias, neutro.

Acreditava-se que o simples império da isonomia da lei seria apto a criar

condições para um crescimento social relativamente igualitário.

Ocorre que, com o passar dos anos, notou-se que esse Estado não era tão neutro

assim. Viu-se que, por mais que trabalhassem, as minorias étnicas, especialmente os

operários, não dispunham de condições concretas para ascenderem socialmente.

Assistiu-se às desigualdades medievais outrora denunciadas pelos liberais

retornarem ainda mais agudas.

A pretexto da defesa da concorrência, suprimiram-se as corporações de ofício, mas

ensejou, em substituição do domínio pela tradição, a hegemonia do capital. A

liberdade econômica, porque abria campo às manifestações do poder econômico,

levou à supressão da concorrência. [...] A igualdade, de outra parte, alcançava

concreção exclusivamente no nível formal. Cuidava-se de uma igualdade à moda do

porco de Owell, no bojo da qual havia – como há – os “iguais” e os “mais iguais”.

[...] Quanto à fraternidade, há toda evidência não poderia ser lograda de uma

35

Ibid., p. 111. 36

FERRY, Luk. Kant: uma leitura das três críticas. 2009, p. 335. 37

BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social, 2009, p. 118.

Page 38: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

38

sociedade na qual compareciam o egoísmo e a competição como motores da

atividade econômica.38

O ideal liberal, ainda que tenha apregoado a liberdade de iniciativa e de

competição, não atentou para a preservação das condições de competição. Falava-se em

igualdade e liberdade, mas não existiam instrumentos em face do Estado para a efetivação

prática desses valores, esquecendo que, para que se possa competir, é preciso dispor de

condições para tal.

O velho Liberalismo, na esteira de sua formulação habitual, não pôde resolver o

problema essencial de ordem econômica das vastas camadas proletárias da

sociedade, e por isso entrou irremediavelmente em crise. A liberdade política como

liberdade restrita era inoperante. Não dava nenhuma solução às contradições sociais,

mormente daqueles que se achavam à margem da vida, desapossados de quase todos

os bens.39

O decair do Estado liberal foi, por conseguinte, palco de luta de classes,

especialmente nas sociedades situadas no centro do mundo industrial.

E do borbulhar do enfrentamento ideológico entre o capitalismo e o comunismo,

acabou vaporando-se uma “terceira via”, representada pelo Estado Democrático Social de

Direito, o welfare state.

Na esfera jurídica, o Estado Democrático Social de Direito acabou sendo condutor

de importante mudança de paradigma. O centro da episteme normativa mudou-se do

individualismo protagonizado no século XIX e afigurado no Código de Napoleão, o qual

afirmou a inconteste supremacia da lei civil à constitucional. A constituição, que dantes

tratava-se apenas de mera carta política, passou também a reger o fato econômico, assumindo

o Estado o papel de agente regulador da economia.

Atuação no campo econômico, o Estado sempre desenvolveu. Apenas, no entanto,

agora o faz sob e a partir de renovadas motivações mediante dinamização de

instrumentos mais efetivos, o que confere substância a essas políticas. De resto,

ainda no tempo do Liberalismo era o Estado, seguidas vezes, no interesse do capital,

chamado a intervir na economia.40

A partir daquele século, as Constituições passaram a conter normas de natureza

especificamente econômicas, isto não quer dizer que só então tenha surgido a

Constituição econômica. Na realidade o que ocorreu foi que ela tornou-se explícita,

ao revés do que se dava até então, quando era implícita.41

38

GRAU, Eros Roberto, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1990. P. 40 a 43. 39

BONAVIDES, Paulo, Do Estado liberal ao Estado social. 2004, p. 188. 40

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). 1990, p.

40. 41

BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 34.

Page 39: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

39

Mesmo prevendo tais mecanismos de ingerência do Estado na esfera econômica,

as Constituições Sociais não se desapropriaram do modo de produção capitalista, porque se

apoiam essencialmente na iniciativa privada e na apropriação dos meios de produção. Pelo

contrário, esse sistema é modernizado e legitimado. São mantidos integralmente o modo de

produção, os esquemas de repartição do produto e os mercados.

Daí porque interessa ao Capitalismo uma constituição progressista. Justamente no

ser progressista é que a constituição formal não apenas ensejará a manutenção da

ordem capitalista, mas conferirá operacionalidade plena ao poder detido pelas

classes dominantes. [...] O crescimento populacional implica a ocupação dos espaços

do mundo. Mas essa ocupação é fragmentada, na medida em que a intercomunicação

entre os indivíduos é comprometida. Embora os homens estejam mais próximos uns

dos outros, não se comunicam entre si: a competição em que estão envolvidos os

aparta. [...] e assim, o que é mais importante para a integridade do Capitalismo, essa

fragmentação, além de comprometer a autenticidade da representação política,

impede a superação da “ordem capitalista”, que apenas se autotransforma, isto é, se

aperfeiçoa. 42

O fato é que, de uma igualdade formal do liberalismo passou-se para uma

tentativa de igualdade material de uma nova forma de Estado, sendo esta o “centro medular

de todos os direitos.”43

Conduzido para fora das esferas abstratas, o princípio da igualdade,

inarredavelmente atado à doutrina do Estado Social, já não pode ignorar o primado

do fator ideológico nem tampouco as demais caracterizações de natureza axiológica.

Ideologia e valores entram assim a integrar o conceito de igualdade, provocando

uma crise para a velha igualdade jurídica do antigo Estado de Direito. Ela que

nascera ideológica, levantada nos braços de um direito natural, se despolitizou num

segundo momento, ao adquirir uma neutralidade de aparência, a qual apenas

substituiu enquanto pôde substituir o antigo Estado de Direito da burguesia liberal e

capitalista do século XIX.44

1.3.1 Karl Marx e os fundamentos da desigualdade baseados na divisão social do trabalho

Não se pode prescindir, ao traçar a evolução histórica do pensamento de

igualdade, menção às notas de Karl Marx.

Não há que se falar em contratualismo em Marx, uma vez que, como se balizou

até então neste estudo, a filiação de tal corrente de pensamento aos interesses da classe social

burguesa fica patente; e a obra de Marx marcadamente tem como tarefa a crítica aos

fundamentos políticos e sociais do modo de produção econômico por ela instituído.

Afigura-se imperioso ab initio observar que Marx e Engels rejeitam de forma

peremptória a ideia segundo a qual o surgimento do Estado, aquilo que outrora fora

42

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). 1990, p. 71

e 72. 43

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 376. 44

Ibid., p. 377.

Page 40: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

40

denominado de passagem do estado de natureza para o estado civil, tenha se dado por meio de

um contrato social.

O pai do socialismo científico, por meio de uma nova perspectiva sociológica

chamada materialismo histórico,45

destaca como principal elemento de sua reflexão o homem.

Não o homem universal, nem o homem espiritual, ou o homem racional; mas o homem com

força produtiva, como ser economicamente engajado.

Cada modo de produção que se coloca ao longo da evolução histórica (escravista,

feudal, capitalista) institui um modelo de Estado, que corresponde ao seu modo peculiar de

organização das relações sociais de produção e ao grau de desenvolvimento das forças

produtivas. De tal maneira que é a forma e o grau de contradição estabelecido entre estes dois

termos, no interior de um modo de produção, que criará as condições políticas suficientes para

um salto de qualidade, uma mudança estrutural, por meio de uma revolução política e social –

que por sua vez levará a um novo modo de produção.

Dessa arte, o Estado não resultaria de um consenso primitivo entre o conjunto

universal dos indivíduos que compõe toda a sociedade, mas resulta de um acerto particularista

entre os diversos grupos e facções que compõe o novo “bloco” no poder, e do qual estão

substancialmente excluídos os grupos e classes sociais que passarão a ser economicamente

explorados no interior do novo modo de produção.

E se em alguns momentos o Estado (como nas formulações de Locke) apresenta-

se como garantidor universal da paz e da harmonia social, isso não passaria de um anomalia

transitória. Um jogo de cena de alguma liderança carismática, que joga uma classe social

contra a outra, apresenta-se como um árbitro, mas no fundo visa garantir os interesses de

apenas uma delas.

Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como,

ao mesmo tempo, nasceu no seio do conflito entre elas, é, por regra geral, o Estado

da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por

intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e adquire

novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida. Assim o Estado

antigo foi, sobretudo, o estado dos senhores de escravos para manter os escravos

subjugados; o Estado feudal foi o órgão de que se valou a nobreza para manter a

sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo é

instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado.46

45

“Materialismo, porque somos o que as condições materiais (as relações sociais de produção) nos determinam a

ser e pensar. Histórico porque a sociedade e a política não surgem de decretos divinos nem nascem da ordem

natural, mas da ação concreta dos seres humanos no tempo” BITTAR, Eduardo C. B.. Curso de Ética Jurídica.

8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 360. 46

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Global, 1984, p. 229.

Page 41: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

41

Marx e Engels subdividem a evolução da sociedade em três fases: (a) selvagem –

período em que predomina a apropriação de alguns instrumentos rudimentares destinados a

facilitar essa apropriação; (b) barbárie – período em que aparecem a criação de gado e a

agricultura por meio do trabalho humano; (c) civilização – período em que o homem continua

aprendendo a elaborar os produtos naturais, período da indústria propriamente dita e da arte.

Na teoria marxista, um estado de significativa diferenciação e assimetria

começaria a surgir na transição do estado selvagem para a barbárie. Dar-se-ia ali a primeira

divisão social do trabalho, a partir do momento em que alguns grupos aprenderam a

domesticar o gado. O surgimento de tribos pastoris teria criado uma grande diferenciação

entre estas e os demais grupos bárbaros. Passaram essas tribos a produzir víveres em maior

quantidade e variedade do que as demais, produzindo leite, lãs, peles, couros, fios e tecidos

em quantidade cada vez maior. Foi este acúmulo que permitiu pela primeira vez a criação de

um excedente destinado à troca, superando-se o ciclo da produção voltada exclusivamente

para subsistência.

O desenvolvimento de todos os ramos da produção – criação de gado agricultura,

ofícios manuais domésticos – tornou a força de trabalho do homem capaz de

produzir mais do que o necessário para a sua manutenção. Ao mesmo tempo,

aumentou a soma de trabalho diário correspondente a cada membro da gens, da

comunidade doméstica ou família isolada. Passou a ser conveniente conseguir mais

força de trabalho, o que se logrou através da guerra; os prisioneiros foram

transformados em escravos. Dadas as condições históricas gerais de então, a

primeira grande divisão social do trabalho, ao aumentar a produtividade deste, e por

conseguinte, a riqueza, ao alargar o campo da atividade produtora, tinha que trazer

consigo – necessariamente – a escravidão. Da primeira grande divisão social do

trabalho nasceu a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores e

escravos, exploradores e explorados.47

Apontam Engels e Marx severas críticas contra a suposta condição de igualdade

estabelecida pelo Direito burguês em torno do princípio jurídico da isonomia ou da igualdade

formal. Nessa toada, o marxismo denunciou claramente a insuficiência de uma concepção

puramente formal da igualdade, desmascarando sua natureza ideológica que procurava

esconder as assimetrias políticas decorrentes da desigualdade material entre os contratantes.

Demonstrou o caráter eminentemente opressivo de um contrato de trabalho instituído com

fulcro nos parâmetros do pensamento jurídico-liberal-individualista, fundado no conceito

abstrato de relação jurídica e no principio da autonomia privada. As presunções jurídicas

ignoram a condição de fato existente entre as partes contratantes, e até mesmo a natureza

peculiar de um contrato pelo qual se negocia a força de trabalho de uma pessoa humana.

47

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado, 1984, p. 216-217.

Page 42: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

42

Mostrou-se essa crítica extremamente pertinente e oportuna, constituindo-se

inclusive no ponto de partida através do qual o movimento operário e sindical passou a se

bater por uma reformulação jurídica das relações trabalhistas, exigindo intervenção do Estado

na regulamentação dessa forma de relação contratual, no contexto tecido alhures.

Não se pode negar que os fundamentos de sua crítica à economia política, baseada

em uma dada visão social do trabalho, bem como sua compreensão acerca da correlação entre

os fenômenos econômicos e os sistemas normativos permanece atual. Assim como os

fundamentos de sua concepção normativa para a instituição de um regime de justiça como

igualdade substancial.

Colocou enfim a chamada questão social no centro da reflexão política e filosófica

de forma incontornável. Seu pensamento produziu ecos em diversos compôs do

conhecimento, inclusive na filosofia do Direito contemporâneo, e sua influência é perceptível

ate mesmo entre aqueles que não se colocam no campo dos seus fiéis seguidores, mas que não

puderam ignorar o peso de suas razões.

1.4 Igualdade no Neocontratualismo e a Teoria da Justiça de John Rawls: os pilares

filosóficos das ações afirmativas

Na segunda metade do século XX, A teoria da justiça como equidade foi

apresentada por John Rawls (1971), com a publicação da obra A Theory of Justice, que

estabeleceu um novo marco em filosofia política, retomando a reflexão em torno da

plausibilidade de uma teoria normativa capaz de garantir o estabelecimento de um plano de

igualdade elementar.

Essa obra é resultado de inúmeras pesquisas publicadas como artigos autônomos

anteriormente, e tem como claro propósito criticar as concepções de justiça baseadas no

intuicionismo e sobretudo no utilitarismo.

Estabeleceu a chamada estrutura básica da sociedade como campo das referentes

discussões, colocando o problema da distribuição material da riqueza no centro da reflexão

jurídica, em especial na esfera constitucional. Nesse sentido, estabeleceu uma aproximação –

ao menos temática – como marxismo, a qual incomodou profundamente alguns de seus

críticos,48

sobretudo, na medida em que Rawls não colocou a propriedade privada dos meios

48

Pode-se ter noção dos argumentos de alguns críticos de Rawls em: MOLINA, Paula Francisca Vidal. La teoría

de la justicia social en Rawls. ¿Suficiente para enfrentar las consecuencias del capitalismo? Revista

Polis vol.8 no.23 Santiago 2009. NIELSEN, Kai. Rawls and the left: some left critiques of Rawls’ teory of

Page 43: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

43

de produção como uma liberdade elementar, essencial ou fundante. Dessa arte, relegou a sua

definição para o acordo buscado na “situação inicial” (sucessor neocontratualista do estado de

natureza), através da aplicação dos dois princípios da justiça.

Rawls assume de forma explícita e integral,49

a sua filiação junto à tradição

contratualista. Retoma-se, com sua cria, o pensamento que vinha tentando elaborar uma

filosofia política em torno de uma reflexão acerca dos elementos que propiciam um processo

de legitimação do poder estatal através de um consenso político pautado sobre um plano

jurídico-normativo. Obviamente, o contratualismo de Rawls possui evidentes elementos de

distinção em relação aos demais representantes dessa tradição.

Diferentemente de Hobbes e Kant, o contrato social não é pensado em termos de

um acontecimento histórico, pelo qual passaram ou passam todas as sociedades, mas de forma

hipotética. Trata-se de espécie de exercício mental, uma ideia norteadora através da qual se

busca verificar se as instituições estão ou não estabelecidas de forma razoável.

En la Teoría de la Justicia, se habla de un contracto muy particular – un contrato

hipotético -. Rawls se refiere, entonces, a un acuerdo que firmaríamos bajo ciertas

condiciones ideales, y en el cual se respeta nuestro carácter de seres libres y iguales.

[...] En uma típica crítica aplicable tanto a Rawls como a Locke, Rousseau o

Hobbes, muchos objetan al contractualismo sostenido que no tiene sentido pensar

em contratos que en la práctica no han existido. Frente a Locke, Rousseau, o

Hobbes, este reclamo viene simplemente a desmetir la existência de algo así como

um contrato original real, presente en los comienzos de la vida civilizada: ¿quién ha

firmado dicho contrato?; ¿donde se ha quedado registrado el mismo? Frente a

Rawls, que nos habla de um contrato hipotético, el cuestionamiento sería diferente.

En tal caso, alguien podría preguntarde: ¿para qué me sirve saber qué acuerdo

hubiera firmado em ciertas condiciones ideales que se encuentran por completo

alejadas de lo que mi vida presente? [...] Ello se debe al valor de dicho recurso

teórico como médio para poner a prueba la corrección de algunas instuciones

morales: el contrato tiene sentido, fundalmentelmente, porque refleja nuestro estatus

moral igual, la idea de que, desde el punto de vista moral, la suerte de cada uno tiene

la misma importancia – la idea de que todos contamos por igual. El contrato en

cuestion, en definitiva, nos sirve para modelar la idea de que ninguna persona se

encuentra inherenemente subordinada frente a las demás. Dicho contrato hipotético,

entonces, viene a negar y no a reflejar – tal como parece ocurrir en los contratos

hobbesianos – nuestra desigual capacidade de negación. 50

justice. Revista Analyse & Kritik 2, Helf 1, Westdoutscher Verlag, p. 74-97. SILVEIRA, Denis Coutinho.

Teoria da justiça de John Jawls: entre o liberalismo e o comunitarismo.

TransFormAção vol.30 no.1 Marília 2007. 49

“O meu objetivo é apresentar uma concepção da justiça que generaliza e eleva a um nível superior a conhecida

teoria do contrato social, desenvolvida, entre outros, por Locke, Rousseau e Kant” RAWLS, John. Uma Teoria

da Justiça, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 33. 50

GARGARELLA, Roberto. Las teorías de la justicia después de Rawls: un breve manual de

filosofia política. Barcelona: Paidós, 1999, p. 31-34. Em tradução livre: “Na Teoria da Justiça, se fala de

um contrato bem particular – um contrato hipotético. Rawls refere-se, então, a um acordo que firmaríamos sob

certas condições ideais, e no qual se respeita nossa condição de seres livres e iguais. [...] Em uma crítica comum

aplicável tanto a Rawls quanto a Locke, Rousseau ou Hobbes, muitos contestam o contratualismo afirmando que

não há sentido pensar em contratos que na prática não existiram. No que diz respeito a Locke, Rousseau, ou

Hobbes, esta crítica vem simplesmente a desmentir a existência de algo como um contrato real, presente nos

primórdios da vida civilizada: quem firmara dito contrato¿ Onde se registrou o mesmo¿ Em Rawls, que nos fala

Page 44: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

44

Propõe a teoria rawlsiana a chamada “posição original”, que seria o equivalente ao

estado de natureza na concepção contratualista clássica. Assim, na posição original, os

participantes futuros fundadores de determinada sociedade seriam colocados em situação

equitativa, de forma imparcial a fim de escolher os princípios que regerão a sociedade

vindoura.

Desconheceriam, portanto, os participantes, os dotes que possuiriam ao adentrar

no mundo. Por isso, a posição original deveria ser coberta pelo que chamou de “véu da

ignorância”. Este seria imperioso para que ninguém saia beneficiado ou prejudicado pela

escolha dos princípios.

Dessa arte, o resultado de tal eleição surgiria como efeito de consenso equitativo.

Ao se colocarem abstratamente em condição na qual todos poderiam assumir qualquer

condição na futura associação política, buscar-se-ia de forma racional, fixar certos princípios

que repeliriam quaisquer privilégios, almejando bases de convivência igualitária e

harmoniosa.

Ninguém deliberaria por instituir situação que poderia acarretar a si próprio e aos

seus familiares uma situação de constrangimento e adversidade.

Ao acerto final de vontades nessa situação conjectural denominar-se-ia “equilíbrio

reflexivo”. Seria um equilíbrio na medida em que finalmente nossos princípios e opiniões

coincidiram; reflexivo, pois saberíamos com quais princípios nossos julgamentos se

conformariam com o conhecimento das premissas das quais derivam. Aí tudo estaria em

ordem.

Pondera Rawls que dois princípios regeriam as escolhas dos indivíduos na posição

original.

Esses princípios devem obedecer a uma ordenação serial, o primeiro antecedendo o

segundo. Essa ordenação significa que as violações das liberdades básicas iguais

protegidas pelo primeiro princípio não podem ser justificadas nem compensadas por

maiores vantagens econômicas e sociais. Essas liberdades têm um âmbito central de

aplicação dentro do qual elas só podem ser limitadas ou comprometidas quando

entram em conflito com outras liberdades básicas. Uma vez que podem ser limitadas

de um contrato hipotético, o questionamento seria diferente. Nesse caso, alguém poderia perguntar-se: para que

me serveria saber qual acordo haveriam firmado em certas condições ideais, que se encontram completamente à

margem de minha vida presente¿ [...] Isso se deve ao valor de dito recurso teórico como meio para por a prova a

de algumas instituições morais: o contrato tem sentido especialmente porque reflete nosso status moral igual, a

ideia de que, sob o ponto de vista moral, a sorte de cada um tem a mesma importância – a ideia de que todos

contamos igualmente. O contrato em questão, definitivamente, serve-nos para modelar a ideia de que nenhuma

pessoa se encontra inerentemente subordinada às demais. Tal contrato hipotético, portanto, vem a negar e não a

refletir – tal como parece ocorrer nos contratos hobbesianos – nossa desigual capacidade de negação.”

Page 45: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

45

quando se chocam umas com as outras, nenhuma dessas liberdades é absoluta;

entretanto, elas são ajustadas de modo a formar um único sistema, que deve ser o

mesmo para todos. 51

Assim, o pacto é estruturado tomando por base dois princípios basilares, quais

sejam, o princípio da igualdade; e o princípio da diferença. Rawls está convencido de que os

dois princípios da justiça como equidade são justos e proveitosos para os cidadãos.

A primeira apresentação dos dois princípios é a seguinte: Primeiro. Cada pessoa

deve ter um direito igual ao mais extenso sistema de liberdades básicas idêntico para

as outras. Segundo. As desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas

por forma que, simultaneamente: (a) se possa razoavelmente esperar que elas sejam

em benefício de todos; (b) decorram de posições e funções às quais todos têm

acesso.52

A aplicação de ambos os princípios confirma continuamente a realização da

justiça, como equidade e igualdade. E isso sobretudo por que se trata de uma teoria que

identifica as desigualdades naturais e procura corrigi-las.

Deve-se mesmo, numa teoria que tenha esse perfil, buscar romper a desigualdade

natural entre as pessoas, para que assim se faça justiça. Não se trata de discutir se a

distribuição natural é ou não justa, mas de discutir se a justiça das instituições é capaz de

suprir diferenças que impedem o exercício de iguais direitos; sexos diferentes, corpos

diversos, situações econômicas distintas, posições sociais diversificadas não devem receber o

mesmo tratamento.53

Assim, após a realização do pacto original, com a eleição dos dois princípios, as

partes contratantes escolhem sua Constituição, a qual institui um governo de legalidade,

baseado na igualdade e na publicidade. Desse modo, seria o dever natural de justiça que

impulsionaria os cidadãos à obediência da Constituição e das leis.

1.4.1. A igualdade real frente ao Estado contemporâneo

Intentou-se traçar, nas raias que delimitam a natureza deste trabalho, um

panorama do que foi a evolução filosófica da equidade.

Pôde-se mensurar que da fonte do contratualismo jorraram a evolução do

pensamento sócio-político daquilo que gradativamente passou a ser conhecido por

51

Rawls, John. Uma Teoria da Justiça, 1993, p. 65. 52

Ibid., p. 68. 53

BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 9ª ed. São Paulo:

Atlas, 2011, p. 451.

Page 46: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

46

constitucionalismo. E é dessa matiz que devem beber os constitucionalistas para inspirar-se

para novas e antigas questões.

Em especial nas ideias de Rawls baseia-se o espírito das afirmativas, uma vez que

sua teoria da justiça busca corrigir as desigualdades naturais, e também serve como

instrumento de avaliação para consequente aprovação ou não de normas ou ações específicas.

A igualdade material, como tracejada alhures, porém, tornou-se insuficiente,

porque o mero dever genérico de obtenção de condições gerais mínimas de dignidade não

atende à atenção que se deve atribuir às necessidade específicas de determinados grupos.

Entende Bonavides que o fracasso inicial dessas disposições relaciona-se com a

própria recepção dos direitos sociais, cuja aplicabilidade, a priori, percebia-se como mediata:

[Os direitos sociais] passaram primeiro por um ciclo de vida de baixa normatividade

ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude de sua própria natureza de direitos que

exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por

exiguidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos. De juridicidade

questionada nesta fase, foram remetidos à chamada esfera programática, em virtude

de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas

pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos de liberdade. Atravessaram,

a seguir, uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que

recentes Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da

aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.54

É nesse contexto que se propõe a igualdade real estritamente ligada ao conceito de

ação afirmativa e típica de um Estado Democrático de Direito. Foi protagonizada pelas cortes

constitucionais dos Estados Unidos da América e da Europa no segundo pós-guerra, em que

os magistrados entenderam necessária a criação de meios que instrumentalizassem,

concretizassem os direitos e garantias dos grupamentos minoritários previstos nos textos

constitucionais.

Os grupos minoritários, mesmo os grupos politicamente organizados mas não-

participantes dos esquemas dos governos em exercício, passaram a vislumbrar o

processo judicial constitucional como um processo político de conquistas ou de

reconhecimento de direitos conquistados mais ainda não-formalizados,

expressamente, nos documentos normativos. [...] No fluxo dessa mudança

comportamental dos juízes constitucionais de todo o mundo democrático do pós-

guerra é que se entronizou no sentido jurídico dos povos, a consciência de uma

necessária transformação na forma de se conceberem e aplicarem os direitos,

especialmente aqueles listados entre os fundamentais. Não bastavam as letras

formalizadoras das garantias prometidas; era imprescindível instrumentalizaram-se

as promessas garantidas por uma atuação exigível do Estado e da sociedade.55

54

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 2010, p. 564. 55

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade

jurídica. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 33, n. 131, jul-set. 1996, p. 285.

Page 47: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

47

Festejado é também o princípio da igualdade real por economistas de vanguarda, a

exemplo do indiano Amartya Sem,56

que propõe que o desenvolvimento dos países seja

medido não pelo Produto Nacional Bruto, ou por quaisquer outras unidades de medida que

levem em conta exclusivamente a riqueza do país, mas sim que deveria ser feita análise de

quão plenamente são usufruídas as liberdades substantivas dos indivíduos. Ademais, o

referido autor critica a igualdade material, a qual ficaria restrita aos códigos. Defende,

portanto, que o Estado deve promover, o máximo possível, as liberdades dos indivíduos, não

se limitando a garanti-las, mas, de fato, efetivá-las.

Traz, por fim, ideias que aqui merecem comento a filosofia de Marcelo Neves.57

Em sua obra, assevera que a igualdade material seria geradora de uma constitucionalização

simbólica, fenômeno que encobriria problemas sociais, obstruindo transformações efetivas da

sociedade, ou seja, o simples fato de estarem garantido nas constituições direitos como

educação, saúde, emprego, simplesmente serviria de máscara para que não se buscasse uma

efetivação dos tais. Em suma, Como sobreposição do sistema político no sistema jurídico, a

constitucionalização simbólica tornaria alopoiético (recebendo informações diversas de seus

próprios códigos e programas) – e não autopoiético – o sistema normativo. Um bloqueio

destrutivo (perda da operacionabilidade da Constituição enquanto orientadora de expectativas

sociais), causador de apatia das massas e reprodução da elitização do poder.

Caberá, pois, ao Estado Social Democrático de Direito o fito de garantir a

efetivação da igualdade real, protegendo as minorias com vedação ao retrocesso, e a

implementação de políticas públicas pautadas nas ações afirmativas.

56

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Mota. São Paulo: Companhia

das Letras, 2000. 57

NEVES, Marcelo. A constituição simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Page 48: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

48

2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS E CONCEITUAIS PERTINENTES AO OBJETO EM

ESTUDO

“I have a dream that my four little children will

one day live in a nation where they will not be

judged by the color of their skin but by the

content of their character.”

(Martin Luther King, Jr.)

Devem ab ovo ser feitas observações de cunho conceitual, por certo que

facilitarão a tarefa de discorrer acerca do objeto de estudo. Incorrer-se-ia, pois, em grave

omissão na investigação em que ora se inclina, se não se aludisse, ainda que rapidamente, a

definições de seus elementos estruturantes.

2.1 Preconceito

“O homem é um ser axiológico”.58

Portanto está constantemente valorando os

objetos cognoscíveis. Racional que é, o homem tem a aptidão interna de eleger suas condutas.

Desse modo, “viver é estar sendo”,59

estar escolhendo. E enquanto o homem está sendo, está

escolhendo, ele está exercendo sua liberdade. O homem assim está constantemente praticando

seu poder decisório. Cada mínima ação requer uma decisão, mesmo que quem decida nem

sequer se dê conta de que está escolhendo, e o faz por meio de valorações.

Valor seria, desse modo, “toda força que, partida do homem, é capaz de gerar no

homem a preferência por algo.”60

Quer sejam universais, sociais, nacionais, particulares; quer sejam permanentes,

duradouros ou efêmeros; quer sejam positivos ou negativos, os valores são inerentes ao

homem.

No ato de conhecimento, que é uma constante na vida humana, é inafastável a

presença de três elementos, a saber, o eu: aquele que conhece; a atividade, que o eu

cognoscente desenvolve; e o objeto a que se dirige a atividade desenvolvida pelo eu. Não há

eu sem objeto, nem tampouco objeto sem sujeito.61

58

FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 19. 59

Ibid., p. 19. 60

Ibid., p. 20. 61

Ibid., p. 20.

Page 49: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

49

Dessa arte, no processo de conhecimento, qualquer que seja o objeto na “teoria

das ontologias regionais,”62

ele será conhecido pelo eu, que desenvolverá uma atividade, a

qual resulta dos valores pertinentes àquele.

Sedimentando o entendimento que fora alicerçado por Gadamer, não pode o ser

humano prescindir de seus valores para desenvolver a atividade. 63

Preconceito seria, por isso,

um conceito prévio de algo. A primeira volta no ciclo interpretativo de Heidegger.

Determinada conduta em potencial. É enfim uma atividade – não em sentido físico, mas

mental -, formada a partir de uma valoração inicial, para com determinado objeto.

Preconceitos são, portanto, inerentes à natureza humana.

Atualmente, contudo, o vocábulo preconceito tem sido empregado somente com

caráter pejorativo, sendo entendido como resultado de não outros valores que os negativos

que não passam do plano da ideia.

A expressão preconceito relaciona-se a percepções endógenas de um indivíduo,

constituídas a partir de seu processo educacional e vivencial relativamente a pessoas

e ou grupos que se diferenciam por possuírem características fenotípicas distintas,

ou por serem originárias de outro país ou nação, por serem de alguma etnia, por

possuírem algum tipo de deficiência física, ou mental ou por serem de outro sexo.

[...] O preconceito é originário de pré-compreensões intuitivas de realidade, sem

qualquer respaldo científico, é sempre a motivação e o fundamento de práticas

discriminatórias.64

De fato, a psicossociologia atual pressupõe que os preconceitos estão

essencialmente relacionados a práticas e comportamentos discriminatórios, é dizer, práticas

objetivas de exclusão social.

Deve-se ter em conta que atitudes preconceituosas geram-se em situações concretas

de discriminação. Na perspectiva psicossocial, considera-se que os preconceitos

desenvolvem-se no interior dos processos de exclusão social e modificam-se junto

com estes. Nesta perspectiva o preconceito se define como uma forma de relação

intergrupal em que, no quadro específico das relações de poder entre grupos, se

desenvolvem e se expressam atitudes negativas e depreciativas e comportamentos

hostis e discriminatórios aos membros de um grupo por serem membros desse

grupo. 65

2.2 Discriminação

62

Ibid., p. 13-18. 63

BRESOLIN, Kleberson. Gadamer e a reabilitação dos preconceitos. Revista Intuito, Porto Alegre, n. 1, 2008,

p. 63-81. 64

VIEIRA JÚNIOR, Ronaldo Jorge. Responsabilização objetiva do Estado: segregação institucional do negro

e adoção de ações afirmativas como reparação aos danos causados. Curitiba: Juruá, 2011, p. 27. 65

CAMINO L., PEREIRA C., O papel da Psicologia na construção dos Direitos Humanos: análise das teorias e

práticas psicológicas na discriminação ao homossexualismo. Revista Perfil, 2002.

Page 50: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

50

Quando um valor negativo dá cabimento a uma ação física contra um objeto, está-

se diante de uma conduta discriminatória. O preconceito de valor negativo seria, nas

expressões da Física Mecânica, uma energia potencial, enquanto que a discriminação, energia

cinética.

Discriminar é diferenciar, distinguir, separar, discernir, estabelecer diferença. A

discriminação (segregação separação, apartação) é ato. Como ato, pode ser

observado, descrito, testemunhado. Preconceito, como a etimologia do vocábulo

indica (pré + conceito) é um pré-juízo, ou seja, um pré-julgamento: juízo antecipado

ou a priori – opinião formada sem reflexão, conceito anterior a toda experiência ou

fato: prevenção, abusão. [...] A discriminação envolve desigualdade de tratamento.

O preconceito envolve sentimentos (antipatia, aversão, ódio, medo, insegurança,

desconfiança etc.)66

Para Danièle Lochak, “la discrimination, c’est la distinction ou la différence de

traitement illégitime: illégitime parce qu’arbitraire, et interdite puisqu’illégitime.”67

Joaquim Barbosa Gomes68

divide as formas pelas quais podem manifestar-se as

práticas discriminatórias em (a) discriminações intencionais, as que se pode ainda subdividir

em (a.1) explícitas, e (a.2) implícitas; bem como as (b) discriminações não intencionais.

Podem-se perceber as discriminações intencionais explícitas quando,

deliberadamente, se defere a um determinado indivíduo ou coletividade um tratamento

desigual em qualquer atividade pública, tais como concursos e promoções ou, no mesmo

sentido, junto à iniciativa privada, em razão de cor, raça, sexo, religião, bem como, qualquer

outra característica que a distinga da maioria naquele meio determinado. Assim, o critério do

discrimen se observa com nitidez e objetividade.69

Embora a discriminação intencional configure, via de regra, uma situação de fato

ilícita, visto que contaria o princípio da isonomia, benfazejo lembrar que há circunstâncias em

que elas podem ocorrer em consonância com o direito. Sobretudo quando a discriminação

apresentar-se como essencial ou necessária para o desenvolvimento de determinada

modalidade de trabalho ou serviço, no qual se exigem habilidades técnicas específicas ou nas

quais uma determinada tarefa pode ser melhor realizada ou deve necessariamente ser efetuada

por grupos integrantes de um determinado sexo ou raça. Exemplifica o professor Celso

Antônio Bandeira de Mello:

66

BRANDÃO, Adelino. Direito racial brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 13. 67

LOCHAK, D., Réflexions sur la notion de discrimination, Droit Social, n 11, 1887. ‘’Discriminação é a

distinção ou a diferença de tratamento ilegítimo: ilegítimo por ser arbitrário, e proibido pois ilegítimo.” (tradução

livre) 68

GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro e

São Paulo: 1ª Edição, 2001. 69

Id., Ibid.

Page 51: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

51

Suponha-se hipotético concurso público para seleção de candidatos a exercícios

físicos, controlados por órgãos de pesquisa, que sirvam de base ao estudo e medição

da especialidade esportiva mais adaptada a pessoas de raça negra. É óbvio que os

indivíduos de raça branca não poderão concorrer a este certame. E nenhum agravo

existirá ao princípio da isonomia na exclusão de pessoas de outras raças que não a

negra. [...] Pode-se, ainda, supor que grassando em certa região uma epidemia, a que

se revelem resistentes os indivíduos de certa raça, a lei estabeleça que só poderão

candidatar-se a cargos públicos de enfermeiro, naquela área, os indivíduos

pertencentes à raça refratária à contração da doença que se queira debelar. É óbvio,

do mesmo modo, que, ainda aqui, as pessoas terão sido discriminadas em razão da

raça, sem , todavia, ocorrer, por tal circunstância qualquer preceito ao princípio

igualitário.70

No mesmo plano de discriminação intencional legítima, situam-se aquelas que

foram alcunhadas de discriminações positivas, aplicadas por intermédio de políticas públicas,

conhecidas como ações afirmativas. Nessa modalidade, busca-se um meio ativo por meio do

qual se impeça que a mera garantia de igualdade se constitua em fator de perpetuação de

desigualdades estruturalmente compartilhadas. Possuem caráter redistributivo e restaurador,

pressupondo necessariamente uma desigualdade oficial ou historicamente comprovada.71

No que diz respeito à prática das chamadas discriminações intencionais

implícitas, por seu turno, ocorrem estas na medida em que o agente que impõe a exclusão o

faz de forma dissimulada. Em algumas circunstâncias, pode resultar de uma interpretação

maliciosa de determinada disposição legislativa, uma discriminação na aplicação do direito,

na qual inexiste um caráter ostensivo de discriminação.

Por fim, examinem-se as denominadas discriminações não intencionais. Estas

decorreriam de alguma omissão, constituindo-se em discriminações de fato. Tal aspecto

decorre não de um propósito explícito ou implícito da exclusão de determinados grupos,

tampouco de ato comissivo da administração ou do legislativo. Procede sim da indiferença do

poder público em face de grupos sociais expostos a processo recorrentes de marginalização,

sujeitos a diversas formas de estigma. Resultaria, então, da ausência de políticas públicas ou

de iniciativas privadas destinadas à reversão desse quadro de exclusão de oportunidades, por

meio do qual se cria espécie de naturalização das desigualdades.72

Tratando do mesmo assunto, porém, de forma mais genérica, Celso Antônio

Bandeira de Mello procurou, com exata propriedade, fixar algumas regras capazes de

70

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2011, p. 16. 71

GOMES, Joaquim Barbosa. Op., cit., 2004. 72

Id., Ibid.

Page 52: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

52

assegurar no plano normativo a igualdade de tratamento, ou em outros termos, regras

autorizadoras e desautorizados de discriminação.73

Nesse sentido, o estabelecimento de discriminações não poderia ser realizado sem

a violação ao princípio da isonomia em relação a três aspectos: (a) o primeiro diz respeito ao

elemento tomado como fator de desequiparação; (b) o segundo reporta-se a uma correlação

lógica e abstrata existente entre o fator instituído como critério de discriminação e a

disparidade estabelecida no tratamento jurídico em concreto; (c) o terceiro fator diz respeito à

consonância dessa correlação lógica com os interesses tutelados pelo sistema constitucional e,

desse modo, judicizados.74

Nessa baila, dever-se-ia primeiro identificar o que é adotado como critério

discriminatório; depois verificar se existe alguma justificativa racional, algum fundamento

lógico para, em razão desse critério, atribuir-se o tratamento desigual; e, por fim, analisar-se

se tal fundamento encontra-se perfilado com os valores prestigiados no sistema normativo

constitucional.

Segundo o jurista, tais aspectos não deveriam ser considerados isoladamente, mas

somente a conjunção de todos os três permitiria uma interpretação adequada do problema.

Nesses termos, se a norma estiver ajustada ao princípio da igualdade sob o primeiro aspecto,

cumpriria examiná-la, sucessivamente, em relação aos outros dois – sendo que a ofensa a

qualquer deles já seria per si suficiente para desqualifica-la.

Há ofensa ao preceito constitucional da isonomia quando: I – a norma singulariza

atual e definitivamente um destinatário determinado, ao invés de abranger uma

categoria de pessoas, ou uma pessoa futura e indeterminada. II – a norma adotada

como critério discriminador, para fins de diferenciação de regimes, elemento não

residente nos fatos, situações ou pessoas por tal modo desequiparadas. É o que

ocorre quando pretende tomar o fator “tempo” – que não descansa no objeto – como

critério diferencial. III – a norma atribui tratamentos jurídicos diferentes em atenção

a fator de discrímen adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência

lógica com a disparidade de regimes outorgados. V – a norma supõe relação de

pertinência lógica existente em abstrato, mas o discrímen estabelecido conduz a

efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses prestigiados

constitucionalmente. V – a interpretação da norma extrai dela distinções, discrimens,

desequiparações que não foram professadamente assumidas por ela de modo claro,

ainda que por via implícita.75

2.3 Racismo

73

Id., Ibid. 74

Id., Ibid. 75

Ibid., p. 47-48.

Page 53: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

53

Não é o cerne deste debruço dissertar acerca de um conceito vasto e amplamente

difuso como o de “racismo”. Traça-se, porém, uma ideia do que este seja.

Parta-se, ab initio, da definição de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, para

quem racismo significa:

Tendência do pensamento, ou modo de pensar em que se dá grande importância à

noção da existência de raças humanas distintas.

Qualquer teoria que afirma ou se baseia na hipótese da balidade científica do

conceito de raça e da pertinência deste para o estudo dos fenomenos humanos. [Cf.

Raça (1 e 2)]

Qualquer teoria ou doutrina que considera que as características culturais humanas

sao determinadas hereditariametne, pressupondo a existencia de algum tipo de

correlação entre as características ditas “raciasi” (isto é, físicas e morfológicas) e

aquelas culturais (inclusive atributos mentais, morais, etc.) dos indivíduos, grupos

sociais ou populações

P. ext. Qualquer foutrina que sustenta a superioridade biológica, culturoal e ou

moral de determinada raça, ou de determinada população, povo ou grupo social

considerado como raça.

Qualidade de sentimento de individuo racista; esp. atitude preconceituosa ou

discriminatória em relação a indivíduo(s) considerado(s) de outra raça.76

Sob a espeque da Ciência Política, tem-se uma outra formulação de relevo:

Com o termo racismo se entende, nao a descrição da diversidade das raças ou dos

grupos étnicos humanos, realizada pela antroplogia física ou biológica, mas a

referÊncia do comportamenteo do indivíduo à raça a que pertence e, principalmente,

o uso político de alguns resultados aparentemente científicos, para levar à crença da

superioridade de uma raça sobre as demais. Este uso vida a justificar e consentir

atitudes de discriminação e persiguição contra as raças que se consideram

inferiores.77

Um conceito jurídico para o racismo seria: “une opinion selon laquelle l’humanité

doit être divisée en races hiérarchisées. Il pousse ceux qui y adhèrent à commettre des

discriminations à l’égard des personnes qu’ils considèrent appartenir à des races

inférieures.”78

O racismo seria, portanto, a tendência do pensamento, ou o modo de pensar, em

que se dá grande importância à noção da existência de raças humanas distintas e superiores

umas às outras, normalmente relacionando características físicas hereditárias a determinados

traços de caráter e inteligência ou manifestações culturais. O racismo não é uma teoria

científica, mas um conjunto de opiniões pré concebidas que valorizam as diferenças

76

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro:

nova Fronteira, 1988. 1 v. p. 548. 77

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 12. ed.

Brasília: EdUnb, 2002, p. 1.059. 78

LEBRETON, Gilles. La lutte contre les discriminations raciales. Nomos, revista do curso de mestrado em

direito da UFC, vol. 28.2, jul-dez 2008. Em tradução livre: “Uma opinião segundo a qual a humanidade deve

estar dividida em raças hierarquizadas. Seria legítimo, segundo essa corrente, que se cometessem discriminações

em relação a pessoas que se considerassem de raças inferiores.”

Page 54: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

54

biológicas entre os seres humanos, atribuindo superioridade a alguns de acordo com a matriz

racial.79

2.4 Ações Afirmativas

As ações afirmativas, chamadas, em geral, na Europa de discriminação positiva,80

surgiram inicialmente como um mero encorajamento por parte dos Estados a que os

tomadores de decisão do setor público e privado levassem em conta nas suas decisões

referentes, por exemplo, ao acesso ao mercado de trabalho e à educação, as desigualdades

naturais entre os seres humanos. No final da década de sessenta, nos Estados Unidos,

demonstrada a insuficiência do mero encorajamento, o instituto das ações afirmativas passou

a ser associado à ideia de realização da igualdade de oportunidades.

Plutôt que de s´en tenir aux discours de justifications de la discrimination positive

dominants dans le débat politico-juridique américain, en envisageant le dispositif

soit comme un mécanisme de restauration de la distribution des ressources socio-

économique entre les différents groupes raciaux qui aurait prévalu en l´absence de

l´injustice commise dans le passé à l´encontre de certains d´entre eux, selon le

paradigme de la compensation (justice corretive ) importé du droit privé, soit comme

un instrument de promotion de la diversité, envisagée comme un bien social, il est

possible, et à notre sens plus cohérent, de concevoir l´affirmative action comme

ayant pour objectifs la rédution de ce qui apparaît comme un désavantage spécifique

subi aux États-Unis par les Noirs dans de nombreuses shères d´interaction,

désavantage lié précisément aux phénomènes d´identification raciale.81

79

BARBUJANI, Guido. A invenção das raças. São Paulo: Editora Contexto, 2002. 80

“Le choix de traduire affirmative action (qui littéralement signifie « action volontariste ») par « discrimination

positive » n’est pas neutre. En associant l’épithète « positive » au substantif « discrimination » – mot négatif s’il

en est –, cette mauvaise traduction semble signifier le rejet de la politique qu’elle désigne. Ce n’est donc pas un

hasard si cette expression, marquée par une très forte charge négative, s’est ainsi répandue. Toutefois, elle ne

paraît plus convenir et il deviendrait préférable d’en changer. Alors que la formule « discrimination positive » est

longtemps restée une appellation commode pour ne pas envisager de la mettre en application, elle est aujourd’hui

gênante tant les pressions pour la mettre en oeuvre sont de plus en plus fortes. Ainsi, on propose plutôt de faire

de l’« action positive » – traduction directe d’une acception anglo-saxonne –, de la « mobilisation positive »

comme l’évoque le Premier ministre Jean-Pierre Raffarin qui en a forgé le terme, ou de la « promotion positive »

suivant le vocable choisi par le Haut Conseil à l’intégration. On peut y voir une volonté de s’attacher à la forme

pour repousser le moment où il faudra s’occuper sérieusement du fond.” KESSLASY, Éric. La discrimination

positive aux États-Unis e en France. Bréal, 2004. Em tradução livre : “A escolha de traduzir ação afirmativa

(que literalmente significa "ação voluntarista") por "discriminação positiva" não é neutra. Ao combinar o epíteto

de "positivo" com o substantivo "discriminação" - palavra negativa, se for o caso - esta má tradução parece

significar a rejeição da política que ela designa. Então não é por acaso que esta expressão, marcada por uma

carga negativa muito forte, se espalhou assim. No entanto, parece não ser mais adequada e seria preferível mudá-

la. Embora a designação "discriminação positiva" tenha permanecido durante muito tempo um rótulo

conveniente para não vislumbrar a sua implementação, hoje é incômodo e a pressão para implementá-la está se

tornando cada vez mais forte. Assim, propomos fazer da "ação positiva", tradução direta de uma acepção anglo-

saxã, uma "mobilização positiva", como mencionado pelo primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin, que cunhou o

termo, ou "promoção positiva" de acordo com a palavra escolhida pelo Conselho Superior para a Integração.

Desta forma podemos ver nesta escolha uma vontade de se concentrar na forma para postergar o momento em

que será preciso analisar seriamente os méritos da questão." 81

SABBAGH, Daniel. L´affirmative action: effets symboliques et strategies de presentation. L'Enjeu mondial.

Presses de Sciences Po, 2009. Em tradução nossa: "Mais do que se concentrar nos discursos de justificações da

Page 55: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

55

O principal objetivo das ações afirmativas, então, é o de promover e concretizar o

princípio da igualdade real. Coaduna-se perfeitamente com a ideia esposada por Rawls, em

sua Teoria da Justiça, de construir uma sociedade baseada na igualdade e na diferença.

Atualmente as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas

públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas

com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de

origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da

discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de

efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.

Diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias, baseadas em leis

de conteúdo meramente proibitivo, que se singularizam por oferecerem às

respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de

intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm natureza multifacetária. Visam a

evitar que a discriminação se verifique nas formas usualmente conhecidas – isto é,

formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou através de

mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais e no

imaginário coletivo. Em síntese, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão

concebidos por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência

jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional de

oportunidades a que todos os seres humanos têm direito.82

Tendo como ascendente o intelecto das universidades norte-americanas, o

conceito de ação afirmativa, de lá, vem-se propagando por diversos países, inserindo-se no

interior de suas ordens jurídicas. Poder-se-ia defini-la, assim, como conjunto de políticas

compensatórias e de valorização de identidades coletivas vitimadas por alguma forma de

estigmatização.

São normalmente impulsionadas pelo poder público, quer diretamente, quer por

meio de incentivos à iniciativa privada e à sociedade civil, com o fito de facilitar o acesso a

certos bens jurídicos por parte de indivíduos pertencentes a grupos minoritários. Malgrado a

imprecisão do termo “minoritário”, este aponta para os segmentos da sociedade que

historicamente foram alvo de algum processo de opressão, discriminação ou marginalização

étnico-religiosa, social, econômica, política, sexual etc.

discriminação positiva dominantes no debate jurídico-político norte-americano, considerando o dispositivo como

um mecanismo de recuperação da distribuição dos recursos sócio-econômicos entre diferentes grupos raciais que

teriam prevalecido na ausência de injustiça cometida no passado contra alguns deles, de acordo com o paradigma

da compensação (justiça corretiva) importado do direito privado, quer como um instrumento para promover a

diversidade, considerada como um bem social, é possível, e mais coerente em nossa opinião, conceber a ação

afirmativa tendo como objetivo a redução do que aparece como uma desvantagem específica sofrida pelos

negros nos Estados Unidos da América em inúmeras interações relacionadas aos fenômenos da identificação

racial."

82

GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In SANTOS, Renato E;

LOBATO, Fátima (orgs.). Ações afirmativas: políticas públicas contra as desigualdades raciais. Rio de

Janeiro: DP&A, 2003, p. 27.

Page 56: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

56

Trata-se, portanto, de um conjunto de políticas de integração, em que, servindo-se

de diversos instrumentos de intervenção, almeja-se uma recomposição da estrutura de classes

da sociedade contemporânea a partir de um corte culturalista.

De cunho pedagógico e não raramente impregnadas de um caráter de exemplaridade,

têm como meta, também, o engendramento de transformações culturais e sociais

relevantes, aptas a inculcar nos atores sociais a utilidade e a necessidade da

observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas

do convívio humano. Por outro lado, constituem, por assim dizer, a mais eloquente

manifestação da moderna ideia de Estado promovente, atuante, eis que se sua

concepção, implantação e delimitação jurídica participam todos os órgãos estatais

essenciais. Aí se incluindo o Poder Judiciário, que ora se apresenta no seu

tradicional papel de guardião da integridade do sistema jurídico como um todo e

especialmente dos direitos fundamentais, ora como instituição formuladora de

políticas tendentes a corrigir as distorções provocadas discriminação. Trata-se, em

suma, de um mecanismo sócio-jurídico destinado a viabilizar primordialmente

harmonia e a paz social, que são seriamente perturbadas quando um grupo social

expressivo se vê à margem do processo produtivo e dos benefícios do progresso.

Bem como a robustecer o próprio desenvolvimento econômico do país, na medida

em que a universalização do acesso à educação e ao mercado de trabalho tem como

consequência inexorável o crescimento macroeconômico, a ampliação generalizada

dos negócios, numa palavra, o crescimento do país como um todo.83

As ações afirmativas só puderam atingir o status de políticas públicas de

integração, não se pode olvidar, porque foram precedidas por um forte movimento de

revalorização de identidades até então marginalizadas, até mesmo por boa parte daqueles que

por elas identificados (Multiculturalismo84

).

La discrimination positive a pour objet d´offrir une réponse, un correctif, à une

situation constatée de discrimination vécue par le groupe visé. Elle naît donc d´un

constat : les mebres du groupe visé sont sous-représentés dans un ensamble

considéré. Autrement dit, les statistiques montrent que les membres de ce groupe ont

moins de chances que les autres individus d´accéder à tel ou tel avantage ou à telle

ou telle position considérée comme enviable. Ainsi, on peut constater que peu de

personnes issues de l´immigration accèdent à des emplois de haut niveau, que peu de

femmes sont présentes sur les listes électorales, que peu de jeunes d´origine

étrangère accomplissent des études universitairs...85

Um dos elementos do Estado Social, cujo propósito já se mencionara, reside

exatamente no estabelecimento de um paradigma assentado no oferecimento de prestações

83

Ibid., p.. 24-25. 84

A expressão multiculturalismo “designa originalmente a coexistência de formas culturais ou de grupos

caracterizados por culturas diferentes no seio das sociedades modernas” (SANTOS, Boaventura de Souza.

Reconhecer para Libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2003. p. 26). Deve-se, portanto, reconhecer as diferenças por meio da criação de políticas sociais voltadas para a

redução das desigualdades, a redistribuição de recursos e a inclusão. 85

RENAULD, B. Les discriminations positives. Plus ou moins d´égalité, RTDH, 1997. "A discriminação

positiva tem por objetivo fornecer uma resposta, um corretivo à uma situação constatada de discriminação

sofrida pelo grupo visado. Ela nasceu, portanto, de uma constatação: os membros deste grupo-alvo são

subrepresentados em um conjunto a ser considerado. Em outras palavras, as estatísticas mostram que os

membros deste grupo possuem menos chances do que outros indivíduos para ter acesso à uma vantagem especial

ou a esta ou àquela posição considerada invejável. Assim, podemos ver que poucas pessoas oriundas da

imigração conseguem empregos de alto nível, que poucas mulheres constam das listas de eleitores, que poucos

jovens de origem estrangeira concluem o ensino universitário... " (tradução livre)

Page 57: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

57

positivas, de natureza material e em caráter universal. Nesse ínterim, os objetivos do Estado

Democrático Social de Direito coincidem com aqueles usualmente atribuídos às ações

afirmativas.

Em regra geral, justifica-se a adoção das medidas de ação afirmativa com o

argumento de que esse tipo de política social seria apta a atingir uma série de

objetivos que restariam normalmente inalcançados caso a estratégia de combate à

discriminação se limitasse à adoção, no campo normativo, de regras meramente

proibitivas de discriminação. Numa palavra, não basta proibir, é preciso também

proibir, tornando rotineira a observância dos princípios da diversidade e do

pluralismo, de tal sorte que se opere uma transformação no comportamento e na

mentalidade coletiva, que são, como se sabe, moldados pela tradição, pelos

costumes, em suma, pela história. Assim, além do ideal de concretização da

igualdade de oportunidades, figuraria entre os objetivos almejados com as políticas

afirmativas o de induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica,

aptas a subtrair do imaginário coletivo a ideia de supremacia e de subordinação de

uma raça em relação à outra, do homem em relação à mulher. O elemento propulsor

dessas transformações seria, assim, o caráter de exemplaridade de que se revestem

certas modalidades de ação afirmativa, cuja eficácia como agente de transformação

social poucos até hoje ousariam negar. Ou seja, de um lado essas políticas

simbolizariam o reconhecimento oficial a persistência e da perenidade das práticas

discriminatórias e da necessidade de sua eliminação. De outro, elas teriam também

por meta atingir objetivos de natureza cultura, eis que delas inevitavelmente

resultariam a trivialização, a banalização, na polis, da necessidade e da utilidade de

políticas públicas voltadas à implantação do pluralismo e da diversidade. Por outro

lado, as ações afirmativas têm como objetivo não apenas coibir a discriminação do

presente, mas sobretudo eliminar os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e

comportamentais) da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar. Esses

efeitos se revelam na chamada discriminação estrutural, espelhada nas abismais

desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos marginalizados. Figura

também como meta das ações afirmativas a implantação de uma certa diversidade e

de uma maior representatividade dos grupos minoritários nos mais diversos

domínios de atividade pública e privada.86

São modalidades de ações afirmativas o uso de cotas; a instituição de programas

baseados em metas, fixando-se uma dada proporção de indivíduos pertencentes a grupos

minoritários que se esperaria ver integrados em certas instituições públicas e em posições de

comando e de liderança em empresas; incentivos fiscais, dentre outros.

No que pertine às técnicas de implementação das ações afirmativas, podem ser

utilizados, além do sistema de cotas, o método do estabelecimento de preferencias, o

sistema de bônus e os incentivos fiscais (como instrumento de motivação do setor

privado). De crucial importância é o uso do poder fiscal, não como mecanismo de

aprofundamento da exclusão, como é a nossa tradição, mas como instrumento de

dissuasão da discriminação e de emulação de comportamentos (públicos e privados)

voltados à erradicação dos efeitos da discriminação de cunho histórico. Noutras

palavras, ação afirmativa não se confunde nem se limita às cotas. [...] ação

afirmativa é um conceito que, usualmente, requer o que nós chamamos de metas e

cronogramas. Metas são um padrão desejado pelo qual se mede o progresso e não se

confunde com cotas. [...] a ação afirmativa parte do reconhecimento de que a

competência para exercer funções de responsabilidade não é exclusiva de um

determinado grupo étnico, racial ou de gênero. Também considera que os fatores

86

GOMES, Joaquim Barbosa. In SANTOS, Renato E; LOBATO, Fátima (orgs.), 2003, p. 29-30.

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58

que impedem a ascensão social de determinados grupos estão imbricados numa

complexa rede de motivações, explícita ou implicitamente, preconceituosas.87

87

Ibid., p. 38.

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59

3. A PROBLEMÁTICA RACIAL NO BRASIL E AS CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS DA

ESCRAVIDÃO E DA ABOLIÇÃO

“– Não gosto que a cantes, não, Isaura. Hão de

pensar que és maltratada, que és uma escrava infeliz,

vítima de senhores bárbaros e cruéis. Entretanto

passas aqui uma vida, que faria inveja a muita gente

livre. Gozas da estima de teus senhores. Deram-te

uma educação, como não tiveram muitas ricas e

ilustres damas, que eu conheço. És formosa e tens

uma cor linda, que ninguém dirá que gira em tuas

veias uma só gota de sangue africano.

[...]

– Mas senhora, apesar de tudo isso que sou eu mais

do que uma simples escrava? Essa educação, que me

deram, e essa beleza, que tanto me gabam, de que

me servem?... São trastes de luxo colocados na

senzala do africano. A senzala nem por isso deixa de

ser o que é: uma senzala.

– Queixas-te de tua sorte, Isaura?

– Eu não, senhora: apesar de todos esses dotes e

vantagens, que me atribuem, sei conhecer o meu

lugar.”

(Trecho de conversa de sinhá Malvina com Isaura,

extraído do romance “A Escrava Isaura” de

Bernardo Guimarães. Grifou-se)

3.1 A colonização brasileira e a trajetória do negro

Iniciaram os lusíadas, movidos pelo ideário mercantilista, impulsionados pela

tenra formação do Estado nacional português, e munidos de avançada tecnologia de

navegação importada do mundo mouro, seus ensaios de jornadas marítimas, galgando, com

tais proezas, de todos o seu maior feito histórico.

À procura de ouro e de especiarias, mas principalmente de um caminho

alternativo para as Índias, navegavam, desde sua primeira investida de grande porte, quando

da conquista da cidade de Ceuta em 1415.

Foi nesse contexto que o português chegou ao Brasil, em 1500,88

iniciando seu

processo exploratório com a extração da primeira riqueza encontrada, o pau-brasil, e com a

utilização da mão de obra indígena.

88

“Desde o século XIX, discute-se se a chegada dos portugueses ao Brasil foi obra do acaso, sendo produzida

pelas correntes marítimas, ou se já havia conhecimento anterior do Novo Mundo e Cabral estava incumbido de

Page 60: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

60

Posteriormente, introduziram no Brasil a cultivação de açúcar, cuja técnica já

dominavam pelo cultivo dessa especiaria nas ilhas do Atlântico. No entanto, não havia

interesse português em ocupar as novas terras coloniais, uma vez que o pagamento de salários

altos comprometeria a viabilidade econômica da exploração colonial. Com efeito, “o

empreendimento econômico das terras americanas só se tornaria viável com a mão-de-obra

escrava.”89

Por essa época, os portugueses já eram senhores de um completo conhecimento

do mercado africano de escravos. As operações de guerra para captura de negros pagãos

haviam evoluído num bem organizado e lucrativo escambo que abastecia certas regiões da

Europa de mão-de-obra escrava.90

Assim, os primeiros negros chegaram ao Brasil em meados de 1540, uma vez que

a escravidão indígena não havia logrado êxito.91

Eram provenientes da África Central e da

África Ocidental.92

As condições em que os africanos cruzavam o Atlântico eram de extrema

precariedade. Muitos morriam durante o trajeto em virtude das condições desumanas, mas,

ainda assim, era um negócio veementemente lucrativo para a Coroa portuguesa. “Durante o

período em que era legal entre África e Brasil, foram importados entre 3,5 e 3,6 milhões de

escravos.”93

O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas a riqueza que custa

ousadia, não riqueza que custa trabalho. A mesma, em suma, que se tinha

acostumado a alcançar na Índia com as especiarias e os metais preciosos. Os lucros

que proporcionou de início, o esforço de plantar a cana e fabricar o açúcar para

uma espécie de missão secreta que o levasse a tomar o sumo do ocidente. [...] Assim, não se elimina a

possibilidade de navegantes europeus, sobretudo os portugueses, terem frequentado a costa do Brasil antes de

1500. De qualquer forma, trata-se de uma controvérsia que hoje interessa pouco, pertencendo mais ao campo da

curiosidade histórica que à compreensão dos fatos históricos.” FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo:

Ed. Edusp. 2006. p. 30. 89

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 35. 90

Ibid., p. 44. 91

Boris Fausto aponta um conjunto de fatores pelos quais houve predileção do trabalho escravo negro ao

indígena: “os índios tinham uma cultura incompatível com o trabalho intensivo e regular e mais ainda

compulsório, como pretendido pelos europeus. Não eram vadios ou preguiçosos. Apenas faziam o necessário

para garantir sua subsistência, o que não era difícil em uma época de peixes abundantes, frutas e animais. [...]

Em termos comparativos, as populações indígenas tinham melhores condições de resistir do que os escravos

africanos. Enquanto estes se viam diante de um território desconhecido onde eram implantados à força, os índios

se encontravam em sua casa. [...] Outro fator que colocou em segundo plano a escravização dos índios foi a

catástrofe demográfica. Esse é um eufemismo erudito para dizer que as epidemias produzidas pelo contato com

os brancos liquidaram milhares de índios. Eles foram vítimas de doenças como sarampo, varíola, gripe, para as

quais não tinham defesas biológicas.” História do Brasil. São Paulo: Ed. Usp, 2007, p. 49-50. 92

Costuma-se dividir os povos africanos em dois grandes grupos étnicos: os sudaneses, predominantes na África

ocidental, Sudão egípcio e na costa norte do Golfo da Guiné, e os bantos, da África equatorial e tropical, de parte

do Golfo da Guiné, do Congo, Angola e Moçambique. HEYWOOD, Linda M. Diáspora Negra no Brasil.

Tradução Ingrid de Castro Vompean Fergozen. São Paulo: Editora Contexto, 2010. 93

HEYWOOD, Linda M. Diáspora Negra no Brasil, 2010, p. 19.

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61

mercados europeus, compensavam abundantemente esse esforço – efetuado, de

resto, com as mãos e os pés dos negros .94

O negro passou a ser a grande máquina produtiva da sociedade colonial brasileira,

proporcionando às elites de então a exaltação da ociosidade frente ao trabalho manual que era

inferior e degradante. Retorna-se a um instituto que se pensava superado no mundo ocidental.

Enquanto povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações

ibéricas colocam-se ainda largamente no ponto de vista da Antiguidade Clássica. O

que entre elas predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o

negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e

o amor.95

A escravidão era, portanto, essencial para a sobrevivência do colono europeu no

Brasil nas novas terras.96

A incorporação dos negros à sociedade brasileira ocorreu, desse

modo, através da violência, da opressão e do desrespeito à dignidade humana.

Assim foi também no período do ouro e do café: o negro escravizado sempre

garantiu, com seu trabalho, o sucesso dos diversos ciclos econômicos da colonização

brasileira.97

Seria errôneo pensar, contudo, que, enquanto os índios se opuseram à

colonização, os negros a aceitaram passivamente. A resistência negra se deu, àquela época,

por meio de fugas individuais ou em massa, bem como agressões. Os quilombos,

estabelecimentos de negros que escapavam à escravidão por fuga e constituíam formas de

organização social semelhantes às africanas, espalharam-se por todo o Brasil. “A reação mais

contundente ao regime colonial, no caso brasileiro, foi sem nenhuma dúvida as várias

experiências quilombolas que a historiografia oficial sempre tentou desconsiderar ou reduzir

sua importância.” 98

Nada caracterizava melhor o final do período colonial brasileiro no início do

século XIX do que a escravidão, que influenciava todos os setores da vida social: organização

econômica, política, social e moral. “Nessa época, havia no país cerca de sete milhões de

habitantes, sendo que desses, dois milhões eram de escravos”.99

94

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969 P. 55 95

Ibid., p. 33. 96

FURTADO, Celso, 2007, p. 64. 97

FURTADO, op. cit., p. 65. 98

SILVÉRIO, Valter Roberto. Ação afirmativa e o combate ao racismo institucional no Brasil. Cadernos de

Pesquisa, São Paulo, n. 117, p. 230. 99

FURTADO, op. cit., p. 198.

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62

Mesmo com a independência do país, tal era a força da resistência à abolição, que

se impediu sua efetivação. O escravo era considerado como uma riqueza e a abolição da

escravidão ensejaria, segundo o pensamento da época, o empobrecimento dos proprietários.100

Desse modo, mantiveram-se, no Império, em linhas gerais, as mesmas condições

desumanas impostas ao negro durante o período colonial,101

restringindo-lhes direitos

essenciais, como saúde102

e educação103

.

Fortes pressões internacionais houve pelo fim da escravidão no século XIX, a

exemplo do Congresso de Viena (1815), no qual Portugal e Inglaterra acordaram o fim do

tráfico negreiro, levando o Governo brasileiro a proibir, em 1831,104

a importação de

escravos. Tais medidas não foram suficientes para findar o comércio marítimo de negróides.

100

FURTADO, op. cit., p. 199. 101

A Constituição de 1824 manteve intacto o instituto da escravidão consoante se depreende da análise do inciso

I do artigo 6º que faz menção ao liberto (escravo que obtém a alforria) e ao ingênuo (filhos de escravos ou ex-

escravos que nasce livre), a despeito de propugnar, de acordo com o inciso XIII do artigo 179 que “a Lei será

igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”. 102

Veja-se exemplo trazido por Vieira Júnior: “Regulamento para o Hospital Público São Pedro de Alcântra da

cidade de Goyaz: ‘art. 4º - Os benefícios do hospital também se estenderão aos escravos, si os seus senhores

quiserem pagar as despesas de seu tratamento. Essas despesas consistem em assistir aos escravos com 200 rs. por

dia para sua sustentação, os quaes deverão ser adiantados de cinco em cinco dias., e pelos remédios aplicados

pelo Facultativo.’ Diferentemente dos cidadãos que tinham acesso gratuito aos socorros públicos, os negros

escravos tinham que ter seu tratamento custeado por seus senhores.” VIEIRA JÚNIOR, Ronaldo Jorge Araújo.

Responsabilidade objetiva do estado: segregação institucional do negro e adoção de ações afirmativas como

reparação aos danos causados. Curitiba: Juruá, 2011, p. 68. 103

A Carta Outorgada de 1824 estabelecia, por força de seu artigo 179, inciso XXXII que a instrução primária

era gratuita a todos os cidadãos. Como os negros escravos e os libertos nascidos na África não possuíam a

cidadania brasileira, estavam alijados desse direito constitucional. “Houve na legislação do Império, a partir de

1854, vedação expressa à presença de negros escravos no ensino primário e secundário. A reforma Couto Ferraz,

implementada pelo Decreto 1.331 de 17.02.1854, estabelecia que ‘nas escolas públicas do país não seriam

admitidos escravos e a previsão da instrução para adultos dependia da disponibilidade dos professores’ [...] O

Decreto 7.031-A de 1878 estabelecia que os negros somente poderiam estudar nos turnos noturnos, ao mesmo

tempo em que impunha obstáculos ao funcionamento das escolas nesse período do dia, o que dificultava a

educação dos negros.” LIMA, Maria José Rocha. Da educação negada à educação renegada. In: Educação,

etnias e combate ao racismo. Brasília: Núcleo de Educação, cultura, desporto, ciência e tecnologia da Bancada

do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados, 2001, p. 81. 104

Constituída de nove artigos, a Lei Feijó, no primeiro deles, declarava livres todos os escravos que entrassem

no Brasil a partir da data de sua promulgação. Essa cláusula obteve uma importância histórica porque, nas

décadas posteriores, foi utilizada por escravos e advogados como argumento jurídico para pleitearem o direito à

alforria. Outros aspectos que podemos destacar nesse diploma legal são a punição dos responsáveis pela

importação de escravos, com base no Código Penal brasileiro, e a ampla classificação de quem seria considerado

importador, que incluía não apenas os comandantes das embarcações, mas também os financiadores das viagens

e os compradores do produto do tráfico. Durante o primeiro ano de vigência da lei, houve uma queda nas

importações. Logo em seguida, entretanto, o tráfico se reorganizou em base ilegais e voltou a atingir índices

alarmantes no fornecimento de mão-de-obra africana para as lavouras de café e açúcar. BETHELL, Leslie. A

abolição do tráfico de escravos no Brasil, 1807-1869. Rio de Janeiro: Expressão Cultural, 1976.

Page 63: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

63

Assim, o Parlamento Inglês, em 1845, atribuiu poderes especiais à Marinha Real

Inglesa para apreensão de quaisquer navios de tráficos de escravos. Tal medida, o Slave Trade

Suppression Act, ficou conhecida por Bill Arbedeen105

.

Como resultado direto da investida inglesa, adveio a Lei Eusébio de Queiroz, Lei

581/1850, a qual entrou para história como a lei que, de fato, extinguiu o tráfico de escravos.

Tal lei criminalizou a conduta,106

bem como dispôs que as embarcações utilizadas para esta

prática seriam apreendidas.107

Com o fim do tráfico de escravos e o aumento das demandas pelo café nos idos do

século XIX, surge o problema da mão-de-obra, que se tornara escassa.

Eliminada a única fonte importante de imigração, que era a africana, a questão da

mão-de-obra se agrava e passa a exigir urgente solução. [...] Demais, é provável que

a redução do abastecimento de africanos e a elevação do preço destes hajam

provocado uma intensificação na utilização da mão-de-obra e portanto um desgaste

ainda maior da população escrava.108

Percebendo que o sistema escravista se degradava rapidamente, a solução

alternativa da elite cafeeira paulista para o problema da mão-de-obra nas plantações, que era

“a chave da crise econômica brasileira,”109

foi o emprego da mão-de-obra livre dos imigrantes

europeus, que seriam organizados em colônias financiadas pelo Estado. Assim, pela primeira

vez na América, tornou-se possível que uma volumosa corrente migratória europeia fosse

destinada para o trabalho em grandes plantações agrícolas.

3.2 A exclusão social do negro após a escravidão: a incorporação da teoria do racismo

“científico”

105

“O Parlamento Inglês aprovou um ato que no Brasil ficou conhecido como ‘Bill Aberdeen’, em uma

referência a Lorde Aberdeen, então ministro das Relações Exteriores do governo britânico. O ato autorizou a

marinha inglesa a tratar os navios negreiros como navios piratas, com direito à sua apreensão e julgamento dos

envolvidos pelos tribunais ingleses. No Brasil, o Bill Arbedeen foi alvo de ataques com um recheio nacionalista.

Mesmo na Inglaterra, muitas vozes se levantaram contra o papel que o país se atribuía de ‘guardião moral do

mundo’” FAUSTO, Boris, 2006, p. 197. 106

Art. 3: São autores do crime de importação de escravos, ou de tentativa dessa importação, o dono, o capitão

ou mestre, o piloto e o contramestre da embarcação e o sobrecarga. São cúmplices a equipagem e os que

coadunarem o desembarque de escravos no território brasileiro ou que concorrerem para os ocultar ao

conhecimento da autoridade, ou para subtrair à apreensão no mar, ou em ato de desembarque, sendo perseguidos.

Art. 4: A importação de escravo no território do Império fica nele considerada como pirataria, e será punida

pelos seus tribunais com as penas declaradas no artigo segundo da lei de 7 de novembro de 1831. A tentativa e a

cumplicidade serão punidas segundo as regras dos artigos 34 e 35 do Código Criminal. 107

Art. 6: Todos os escravos que forem apreendidos serão reexportados por conta do Estado para os portos

donde tiverem vindo, ou para qualquer outro ponto fora do Império, que mais conveniente parecer ao governo, e

enquanto essa reexportação se não verificar, serão empregados em trabalho debaixo da tutela do governo, não

sendo em caso algum concedidos os seus serviços a particulares. 108

FURTADO, Celso, 2007, p. 176. 109

FURTADO, Celso, op. cit., p. 177.

Page 64: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

64

A 13 de maio de 1888, foi dado o passo final para o fim do sistema escravista no

Brasil com a Lei Áurea, Lei 3.353/1888,110

sancionada pela princesa Isabel. Contudo, tal

norma não possibilitou a inclusão, mas somente colocou os negros frente a outra batalha, a

busca por cidadania, dignidade, igualdade e inclusão.

Cabe tão-somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população

submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a abolição,

retardando sua assimilação e entorpecendo o desenvolvimento econômico do país.

Por toda a primeira metade do século XX, a grande massa dos descendentes da

antiga população escrava continuará vivendo dentro de seu limitado sistema de

necessidades, cabendo-lhe um papel puramente passivo nas transformações

econômicas do país.111

Os negros foram arremessados das senzalas para as periferias das cidades,

vivendo na pobreza e na marginalização. Ao ex-escravo, após tantos anos de exploração e luta

pela sobrevivência, não era presente a ideia de acumulação de capital.

A falta de perspectiva e a busca por cidadania se deram de maneiras diferentes em

cada região do país. No sudeste, os negros se viram excluídos diante da concorrência com os

muitos imigrantes europeus112

e as políticas de branqueamento da população nacional.

No sudeste, estabeleceu-se uma clara relação entre abolicionismo e imigracionismo,

como resultado do clima de pessimismo racial do fim do século XIX. Nesse

contexto, o progresso era entendido como exigindo o branqueamento do país. [...]

viam o escravo como um obstáculo à modernização econômica.113

No nordeste, os negros foram integrados às fazendas onde viviam. Houve, com o

fim da relação escravista, o florescimento e a intensificação de relações sociais marcadas pela

dependência nos moldes dos regimes servis, o que trouxe graves consequências ao longo de

toda a historia brasileira, como a formação do coronelismo e a opressão social, bem como as

disparidades sociais.114

110

A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a

todos os súditos do Império que a Assembleia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:

Art. 1.º: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil.

Art. 2.º: Revogam-se as disposições em contrário.

Manda, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a

cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém.

O secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e interino dos Negócios

Estrangeiros, Bacharel Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho de Sua Majestade o Imperador, o faça imprimir,

publicar e correr.

Dada no Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1888, 67.º da Independência e do Império.

Princesa Imperial Regente. 111

FURTADO, Celso, 2007, p. 137. 112

“O número de imigrantes europeus que entram nesse estado [São Paulo] sobe de 13, no ano de 1870, para 184

mil no decênio seguinte e 609 mil no último decênio do século. O total para o último quartel do século XIX foi

803 mil, sendo 577 mil provenientes da Itália.” FURTADO, Celso, 2007, p. 188. 113

HASENBALG, Carlos A. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Tradução de Patrick Burling.

Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 164. 114

FAUSTO, Boris, 2006, p. 359.

Page 65: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

65

Na região nordestina as terras de utilização agrícola mais fácil já estavam ocupadas

praticamente em sua totalidade à época da abolição. Os escravos liberados que

abandonaram os engenhos encontraram grandes dificuldades para sobreviver, nas

regiões urbanas pesava já um excedente de população que desde o começo do século

constituía um problema social. Os deslocamentos [dos ex-escravos] se faziam de

engenho para engenho. Não foi difícil em tais condições atrair e fixar uma parte

substancial da antiga força de trabalho escravo, mediante um salário relativamente

baixo. [...] seria difícil admitir que as condições de vida dos antigos escravos se

hajam modificado sensivelmente após a abolição, sendo pouco provável que esta

última haja provocado redistribuição de renda de real significação. 115

O racismo fez-se presente e encontrou apoio nas teorias racistas que proclamavam

a inferioridade do negro em relação ao branco. A miscigenação era vista como um mal

profundo da sociedade brasileira e que impediria qualquer possibilidade de um

desenvolvimento econômico, político e social pleno.116

O europeu era visto como mais

qualificado e o negro como inútil, não servindo nem mais para o trabalho.

O imigrante europeu era um concorrente direto pelas posições de trabalho com os

negros, inclusive naquelas formas mais simples e humildes. A consequência destas

práticas excludentes foi a marginalização social do negro que em tudo era

perseguido e visto como ser diferente e inferior ao branco. De maneira sutil e com

base em políticas universalistas, o Estado brasileiro criou formas excludentes para os

negros. Um racismo quase imperceptível privilegiou sobremaneira os imigrantes

europeus através de um sistema social hierarquizante e condizente com a supremacia

branca.117

As teorias racistas europeias influenciaram os intelectuais brasileiros daquela

época. Sílvio Romero, representante da Faculdade de Direito do Recife, defendia o

branqueamento como única solução alternativa para nação em face da inferioridade do negro

e do índio;118

já Nina Rodrigues, médico maranhense, professor da Faculdade de Medicina da

Bahia, acreditava que a mestiçagem no Brasil explicava a criminalidade, a loucura e a

degeneração da população.119

Assim, surgiu a ideia de “branqueamento” da população brasileira como tentativa

patrocinada pelo Estado de “refinar” a composição da população do Brasil, fazendo com que

115

FURTADO, Celso, 2007, p. 201. 116

O final do século XVIII foi marcado pelo progresso das ciências naturais. Chegou-se à classificação das raças

com base no estudo do crânio ou do rosto. Os principais elementos que fundamentaram as teorias racistas eram

“a existência de raças como grupamentos humanos que possuem características físicas comuns; a continuidade

entre o físico e o cultural, em que a capacidade intelectual de uma raça é, por determinismo biológico,

transmitida hereditariamente; a ação do grupo dobre o indivíduo, em que o pertença;; a hierarquia universal dos

valores, em que os grupamentos raciais étnicos são submetidos a uma hierarquização, cujo ápice é ocupado pelo

padrão eurocêntrico a partir do qual são universalizados os padrões estéticos, intelectuais e morais; e a política

assentada no saber, em que as raças inferiores devem ser subjugadas, assimiladas ou eliminadas pelas

superiores.” ABREU, Sérgio. Os caminhos da tolerância: o afro-brasileiro e o princípio da igualdade e da

isonomia no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p 7. 117

RODRIGUES, Eder Bomfim. As ações afirmativas e o princípio da igualdade no Estado Democrático de

Direito. Paraná: Juruá, 2011, p. 150. 118

ABREU, Sérgio, op. cit., 19-20; 35-36. 119

Id., Ibid.

Page 66: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

66

os negros e mestiços fossem paulatinamente desaparecendo do horizonte demográfico

brasileiro mediante sucessivos cruzamentos interétnicos de um lado, e, de outro, pelo estímulo

oficial120

a uma massiva imigração de colonos europeus. “O núcleo desse racialismo era a

ideia de que o sangue do branco purificava, diluía e exterminava o do negro, abrindo, assim, a

possibilidade para que os mestiço se elevassem ao estágio civilizado.”121

Na verdade, quando se estuda o branqueamento, constata-se que foi um processo

inventado e mantido pela elite branca brasileira, embora apontado por essa mesma

elite como um problema do negro brasileiro. Considerando (ou quiçá inventando)

seu grupo como padrão de referência de toda uma espécie, a elite fez uma

apropriação simbólica crucial que vem fortalecendo a autoestima e o autoconceito

do grupo branco em detrimento dos demais, e essa apropriação acaba legitimando

sua supremacia econômica, política e social. O outro lado dessa moeda é o

investimento na construção de um imaginário extremamente negativo sobre o negro,

que solapa sua identidade racial, danifica sua autoestima, culpa-o pela discriminação

que sofre e, por fim, justifica as desigualdades raciais.122

Dessa arte, os horizontes culturais diferentes colocaram os negros e mulatos em

desvantagens em face dos imigrantes. Em consequência, a estrutura do operariado

incipiente123

constituiu-se permeada pelo preconceito de cor e pelo etnocentrismo.

Os negros e os mulatos ficaram à margem ou se viram excluídos da prosperidade

geral, bem como de seus proventos políticos porque não tinham condições para

entrar nesse jogo e sustentar as regras. Em consequência, viveram dentro da cidade,

mas não progrediram com ela e através dela. Constituíam uma congérie social,

dispersa pelos bairros, e só partilhavam em comum uma existência árdua, obscura e

muitas vezes deletéria. Nessa situação, agravou-se, em lugar de corrigir-se, o estado

de anomia social transplantado do cativeiro.124

3.3 A difusão por Gilberto Freyre da “democracia racial” e a ocultação da realidade

social

120

O Decreto de 20.04.1824 mandava “abonar subsídios pelo prazo de dois anos, aos Colonos Alemães que se

forem estabelecer em Nova Friburgo”; o Decreto de 22.12.1829 concedia “quatro loterias para socorro dos

emigrados portugueses”; O Decreto 09.12.1835 dava instruções aos Presidentes de Províncias para o tomarem

providências, como transporte, manutenção e outras para bom desempenho das atividades dos colonos; o

Decreto de 18.04.1836 isentava as embarcações que conduzissem colonos para o Brasil do imposto da

ancoragem. Sua única restrição é que deveria ser de “colono branco”; a Lei 601 de 18.09.1850 previu a

possibilidade de destinar as terras devolutas para a colonização de europeus. VIEIRA JÚNIOR, Ronaldo Jorge

Araújo, 2011, p. 69. 121

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2011, p.

53. 122

BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e Branquetude no Brasil. In: VIEIRA JÚNIOR, Ronaldo

Jorge Araújo, 2011, p. 25. 123

Em verdade, a classe operária paulista já havia se transformado, em termos raciais, nos anos 50, por meio da

absorção de imigrantes nordestinos, em especial negros e mestiços, enquanto os descendentes de imigrantes

recentes escalavam a pirâmide social. A mobilidade relativamente rápida dos imigrantes europeus testemunha,

assim, a relativa complacência da sociedade brasileira vis-à-vis aos imigrantes brancos, contrastando muito com

o modo subordinado e preconceituoso com que os africanos foram assimilados. GUIMARÃES, Antônio Sérgio

Alfredo, 2011, p. 57. 124

FERNANDES, Florestan. A integração do negro à sociedade de classes. São Paulo, Faculdade de Filosofia,

Ciências e Letras, USP, 1964, p 82.

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67

Na década de 1930, contrastando com as teorias de racismo “científico”, que

outrora fixavam a órbita de debates entorno do qual girava a discussão da raça no Brasil,

adveio, com bastante aceitação, a ideia romântica e cordial da gênese do país decorrida da

miscigenação das raças branca, negra e indígena, exaltando as contribuições de cada raça na

formação da nação brasileira.

Em sua obra “Casa-Grande e Senzala” (1933), Gilberto Freyre inaugura essa

concepção, entendendo ser desnecessário e irrelevante, num país miscigenado como o Brasil,

distinguir quem é branco ou quem é negro. Pelo contrário, a mistura dessas raças, bem como

da indígena, é um traço positivo, pois foi a base para a formação da nacionalidade brasileira, a

qual é uma integração única entre essas raças.

Para Freyre, a miscigenação é um traço constitutivo e formador da nacionalidade

brasileira. O Brasil nada mais é do que um caldeirão étnico, uma incrível mistura de raças.

Assim, o mestiço é alçado à condição de símbolo nacional, diferentemente dantes, quando era

tido como grave problema para o Brasil.125

Enxerga, na formação da sociedade colonial, não a exploração, os conflitos e a

discriminação; mas a predisposição à miscigenação do colonizador português, afirmando que

havia um contato íntimo entre o conquistador e os povos dominados, uma espécie de mútuo

sentimento de cooperação para a formação da sociedade brasileira, sendo tal aspecto um

diferencial da colonização do Brasil entre os demais países latino-americanos.126

Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se

constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um ambiente

de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de aproveitamento dos

valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado; no máximo de

contemporização da cultura adventícia com a nativa, da do conquistador com a do

conquistado.127

Em suas palavras, “a singular predisposição do português para a colonização

híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-a, em parte, o seu passado étnico, ou antes,

cultural de povo indefinido entre a Europa e a África”,128

ou seja, a diversidade na

composição do povo levou à facilidade de adaptação e à mobilidade e miscibilidade que

resultaram numa eficiente ocupação de um vasto território.

125

“Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo [...] a sombra,

ou pelo menos a pinta do indígena ou do negro.” FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da

família brasileira sob o regime da economia patriarcal. In: SANTIAGO, Silviano. Intérpretes do Brasil. Rio de

Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 230. 126

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo, 2011, p. 45. 127

FREYRE, Gilberto. 2002, p. 396. 128

Ibid., p. 235.

Page 68: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

68

Para o sociólogo, a vitoriosa colonização do Brasil só teve sucesso com o traço da

miscigenação entre brancos, índios129

e negros, que muito foi influenciada pelos particulares,

os quais foram os responsáveis diretos por boa parte dos empreendimentos coloniais.130

E

nesse aspecto, procurando explicar a mistura das raças, retoma a lenda portuguesa da moura

encantada para valorizar o tipo físico mestiço.131

A mulher morena é glorificada e todos os

sues traços físicos são apresentados como objeto de puro desejo.

Distingue a colonização brasileira da norte-americana pela falta de preocupação

dos portugueses com a mistura das raças. Aqui o bandeirante, filho da mistura do português

com os povos dominados, é valorizado por ser o grande responsável pela expansão e

desbravamento do território conquistado.132

Era o povo brasileiro se autocolonizando. Desse

modo, para Freyre, o mulato e a miscigenação são elementos de paz social e da integração

pacífica de todas as raças do país.

Inaugura Freyre um modo de ver todo especial da escravização do negro no

Brasil. Parece ver a escravidão como algo positivo para os dois lados. Haveria, segundo ele,

em virtude de uma herança moura dos portugueses, douçura e cordialidade nas relações entre

brancos e negros na colonização.

[...] através desse elemento moçárabe é que tantos traços de cultura moura e

mourisca se transmitiram ao Brasil. Traços de cultura moral e material. Debané

destaca um: a douçura no tratamento dos escravos, que, na verdade, foram entre os

brasileiros, tanto quanto entre os mouros, mais gente da casa do que besta de

trabalho.133

Na obra freyreana, a amizade entre negros e brancos é fortemente realçada.

Relata-se a contadora de histórias, a ama negra, a cozinheira, sempre presentes na vida das

jovens brancas filhas dos colonizadores.

Histórias de casamento, de namoros, ou outras, menos românticas, mas igualmente

sedutoras, eram as mucamas que contavam às sinhazinhas nos doces vagares dos

dias de calor, a menina sentada, à mourisca, na esteira de pipiri, cosendo ou fazendo

renda; ou então deitada na rede, os cabelos soltos, a negra catando-lhe piolho,

129

“Não nos esqueçamos, entretanto, de atentar no que foi para o indígena, e do ponto de vista de sua cultura, o

contato com o europeu. Contato dissolvente. Entre as populações nativas da América, dominadas pelo colono o

pelo missionário, a degradação moral foi completa.” FREYRE, Gilberto. op cit., p.238. 130

“Tudo deixou-se, porém, à iniciativa particular. Os gastos de instalação. Os encargos de defesa militar da

colônia. Mas também os privilégios de mando e de jurisdição sobre terras enormes. Da extensão delas fez-se um

chamariz, despertando-se nos homens de pouco capital, mas de coragem, o instinto de posse; e acrescentando-se

ao domínio sobre terras tão vastas, direitos de senhores feudais sobre a gente que fosse aí mourejar. A atitude da

Coroa vê-se claramente qual foi: povoar sem ônus os ermos da América.” Ibid., 239. 131

“A mulher morena tem sido preferida pelos portugueses para o amor, pelo menos para o amor físico.” Ibid.,

239. 132

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo, 2011, p. 198. 133

FREYRE, Gilberto, op. cit., p. 230.

Page 69: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

69

dando-lhe cafuné; ou enxotando-lhe as moscas do rosto com um abano. Supria-se

assim para uma aristocracia quase analfabeta a falta de leitura.134

Relatava, ainda, que os brancos e negros eram educados juntos nas aulas

ministradas pelos padres nas casas grandes. Da mesma forma era o profundo respeito dos

negros com seus senhores. Choravam aqueles nos enterros destes, “choravam não só com

saudades do senhor velho, como pela incerteza do seu próprio destino.”135

O contrário

também acontecia:136

a consideração era tanta que “os negros tomavam a bênção ao senhor

dizendo: ‘Louvado seja o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo!’ E o senhor respondia: ‘Para

sempre!’ ou ‘Louvado seja!’”137

Destacou que os negros teriam por natureza espírito alegre,138

e que tal sentimento

sempre contagiava seu ambiente de trabalho, seja nas fazendas ou nas cidades.

Nos engenhos, tanto quanto nas plantações como dentro de casa, tanques de bater

roupa, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando prato, fazendo doce, pilando café;

nas cidades, carregando sacos de açúcar, pianos, sofás de jacarandá de ioiôs brancos

– os negros trabalhavam sempre cantando: seus cantos de trabalho, tanto quanto os

de xangô, os de festa, os de ninar menino pequeno, encheram de alegria africana a

vida brasileira.139

Por meio da obra de Gilberto Freyre difundiu-se, entretanto, a ideia de

“democracia racial,” uma vez que ser de uma origem híbrida transformou-se em motivo de

orgulho nacional, um elemento capaz de formar uma nova identidade coletiva no país,

refutando-se as teorias científicas do racismo e atendendo aos anseios de recusa do passado

escravista brasileiro.

Com a aparição de Casa-Grande e Senzala, em 1933, estava dada a partida para uma

grande mudança no modo como a ciência e o pensamento social e político

brasileiros encaravam os povos africanos e seus descendentes, híbridos ou não.

Gilberto Freyre (1933), ao introduzir o conceito antropológico de cultura nos

círculos eruditos nacionais, e ao apreciar, de modo muito positivo, a contribuição

dos povos africanos à civilização brasileira, representou um marco no deslocamento

e no desprestígio que, daí em diante, sofreram o antigo discurso racialista de Nina

Rodrigues e, principalmente, o pensamento da escola de medicina legal italiana,

ainda influente nos meio médicos e jurídicos nacionais. [...] a ideia de ‘democracia

racial’, tal como interpretada por Freyre (1933), pode ser considerada como um mito

fundador de uma nova nacionalidade.140

134

FREYRE, Gilberto, 2002, p. 443. 135

Ibid., p. 525. 136

“Alguns senhores mandavam dizer missa por alma dos escravos de estimação; enfeitavam lhes as sepulturas

com flores; choravam com saudade deles como se chora com saudade de um amigo ou de um parente querido.”

Ibid., p. 526. 137

Ibid., p. 521. 138

“A risada do negro é que quebrou toda essa ‘apagada e vil tristeza’ que foi abafando a vida nas casas grandes”

Ibid., p. 552. 139

Ibid., p. 546. 140

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo, 2011, p. 64-65; 54.

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70

Contudo, o mito da democracia racial acabou por tornar-se um elemento de

manutenção das desigualdades raciais no Brasil e da garantia de privilégios aos brancos.141

Ele obscurece as enormes disparidades entre ser branco e ser negro, naturalizando as

diferenças sociais e negando o racismo no país, além de impedir a contestação ao status quo

de desigualdade e de perseguição e a realização de políticas públicas e privadas de combate ao

racimo e de todas as formas de desigualação injustas no país. “O Brasil foi o último país das

Américas a por fim ao sistema escravista e, ironicamente, foi o primeiro a se declarar como

uma democracia racial.”142

O Brasil criou o melhor dos mundos. Ao mesmo tempo que mantém a estrutura de

privilégio branco e subordinação da população de cor, evita que a raça se constitua

em um princípio de identidade coletiva e ação política.143

Por conseguinte, a difusão do mito contribuiu decisivamente para a proliferação

de inverdades a respeito da situação dos negros no Brasil, por meio de ocultação da realidade.

Generalizou um estado de espírito farisaico, que permitia atribuir à incapacidade ou

à irresponsabilidade do “negro” os dramas sociais da “população de cor” da cidade,

com o que eles atestavam com índices insofismáveis de desigualdade econômica,

social e política na ordenação das relações raciais. Segundo, isentou o “braço” de

qualquer obrigação, responsabilidade ou solidariedade morais, de alcance social e

natureza coletiva, perante os efeitos sociopáticos da espoliação abolicionista e da

deterioração progressiva da situação socioeconômica do negro e do mulato. [...]

[Criou-se com o mito as ideias de que] 1º “o negro não tem problemas no Brasil”; 2º

a ideia de que, pela própria índole do povo brasileiro, “não existem distinções raciais

entre nós”; 3º a ideia de que as oportunidades de acumulação de riqueza, de prestígio

social e de poder foram indistinta e igualmente acessíveis a todos, dirante a

expansão urbana e industrial da cidade de São Paulo; 4º a ideia de que o “preto está

satisfeito” com sua condição social e estilo de vida em São Paulo; 5º a ideia de que

não existe, nunca existiu, nem nunca existirá outro problema de justiça social com

referência ao “nego”, excetuando-se o que foi resolvido pela revogação do estatuto

servil e pela universalização da cidadania – o que pressupõe o corolário segundo o

qual a miséria, a prostituição, a vagabundagem, a desorganização da família, etc.,

imperantes “na população de cor”, seriam efeitos residuais, mas nunca transitórios, a

serem tratados pelos meios tradicionais e superados por mudanças qualitativas e

espontâneas.144

De fato, se analisada à profundidade, a suposta mudança de paradigma alavancada

pela noção de democracia racial manteve o racismo e a ideia de “branqueamento” da

população; entretanto, com novos argumentos.

Embranquecimento passou, portanto, a significar a capacidade da nação brasileira

(definida como uma extensão da civilização europeia, em que uma nova raça

emergia) de absorver e integrar mestiços e pretos. Tal capacidade requer, de modo

implícito, a concordância das pessoas de cor em renegar sua ancestralidade africana

141

O mito da ‘democracia racial’ assumiu importância específica como componente dinâmico das forças de

inércia social, que atuavam no sentido de garantir a perpetuidade de esquemas de ordenação das relações sociais

herdadas do passado. FERNANDES, Florestan, 1964, p. 205. 142

RODRIGUES, Eder Bonfim. 2011, p. 172. 143

HASEMBALG, Carlos, 2005, p. 116. 144

FERNANDES, Florestam, 1964, p. 198 199.

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71

ou indígena. Embranquecimaneo e democracia racial transformaram-se, pois, em

categorias de um novo curso racialista. O núcleo desses conceitos reside na ideia, às

vezes totalmente implícita, de que foram três as raças fundadoras da nacionalidade,

que aportaram diferentes contribuições, segundo as suas qualidades e seu potencial

civilizatório. A cor das pessoas assim como seus costumes são, portanto, índices do

valor positivo ou negativo dessas raças.145

Ora, como negar o racismo em uma sociedade marcada por grandes contradições?

Como afirmar uma democracia racial se ao mesmo tempo vivem-se intensas desigualdades

raciais? Como defender igualdade racial em uma sociedade em que “a ‘cor’ tornou-se, a um

tempo, marca racial e símbolo indisfarçável de uma posição social” ?146

3.4 Diagnóstico da realidade do negro no Brasil do século XXI: desigualdade,

discriminação e injustiça social

Devem-se expor agora dados da realidade social brasileira sob o viés da raça, para

que se constate a atual posição em que se encontram os afrodescendentes na pirâmide. São

pesquisas que atestam a baixa apropriação de bens e serviços públicos, a colocação nos

extratos mais baixos da distribuição nacional de renda, bem como as reduzidas oportunidades

de ingresso e permanência no mercado de trabalho.

De acordo com dados da PNAD de 1999, dos cerca de 160 milhões de brasileiros,

54% declaravam-se brancos, 39,9% pardos, 5,4% pretos, 0,46% amarelos e 0,16% índios. É a

segunda maior população negra do mundo em termos absolutos, perdendo apenas para a

Nigéria.147

Pela PNAD de 2001, a população brasileira é de cerca de 170 milhões de pessoas,

das quais em torno de 91 milhões são brancas e 76 milhões são negras, vale dizer, 45% da

população brasileira é composta por negros, em pouco diferindo da pesquisa de 1999.148

A composição da população nas diversas regiões do país é muito diferente. Os

brancos são maioria nas regiões sul e sudeste e os negros nas regiões norte e nordeste (Tabela

1149

).

145

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo, 2011, p. 55-56. 146

Fernandes utiliza a expressão “metamorfoses do escravo”, que consiste justamente em empregar o termo

“preto” ou “negro” – que parecem designar a cor da pele – para significar uma subclasse de brasileiros marcada

pela subalternidade. FLORESTAN, Fernandes. op. cit., p. 319. 147

HENRIQUES, Ricardo. Desigualdade Racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90.

Rio de Janeiro: IPEA, 2001. 148

Id. Ibidem. 149

Disponível em http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/ Fonte: Ipea, com base na PNAD

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72

No que diz respeito à distribuição de renda, a população negra revela-se, de forma

marcante em desvantagem. Em 2001, cerca de 34% da população brasileira vivia em famílias

com renda abaixo da linha de pobreza, e 15% em famílias com renda inferior à linha de

extrema pobreza.150

Entre os negros, a pobreza atingiu 47% do grupo, entre os brancos apenas

22%; a porcentagem de extremamente pobres no interior dos grupos era de 22% e de 8%,

respectivamente (Tabela 2). Conclui-se, portanto, que “o combate à pobreza no Brasil não tem

resultado historicamente em alterações significativas no quadro de disparidade entre brancos e

negros.”151

A distribuição dos pobres entre os grupos de cor nas regiões sudeste e sul não

evidencia claramente a real desvantagem dos negros nessas localidades. Na verdade, deve-se

150

A linha de extrema pobreza refere-se aos custos de uma cesta alimentar, regionalmente definida, que atenda

às necessidades de consumo calórico mínimo de um indivíduo, enquanto a linha de pobreza inclui, além dos

gastos com alimentação, um mínimo de gastos individuais, como vestuário, habitação e transportes. 151

Henriques, Ricardo. op., cit.., 2001.

Page 73: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

73

atentar para a supremacia da cor branca nesses espaços: no sudeste, pelo grande peso de São

Paulo, que, detendo 51% da população regional, abriga 70,4% de brancos e apenas 20,4% de

negros e pardos; no sul, pela força do componente branco na região como um todo.152

Tomada

a média dos domicílios cujos chefes são brancos como referência (100%), o gráfico 1 indica

em que patamar se encontra, relativamente a renda dos domicílios “negros” em cada

localidade, e não deixa dúvidas quanto ao déficit deste grupo em todas as regiões, seguindo a

tendência nacional.

De fato, como mostra o gráfico 2, no período após a estabilização econômica do

Plano Real, a partir de 1994, as rendas de brancos e negros variaram, mas as distâncias entre

os níveis de bem-estar permaneceram constantes – como historicamente se tem revelado na

evolução socioeconômica no Brasil, mantida sempre a desvantagem entre os negros.

152

Ibid..

Page 74: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

74

O gráfico 3 apresenta a razão entre as rendas de negros e brancos alocados em

cada décimo da distribuição da renda nacional. Há, entre o segundo e o oitavo décimos, certa

estabilidade e igualdade na razão entre as médias. Contudo, a evidência de como se espalha

cada grupo racial pelos décimos da distribuição brasileira revela um nítido movimento de

inversão favorável aos brancos em direção ao topo. Nesses estágios, a razão entre as rendas

sai do patamar de 1,00 para quase 1,25, motivada pela presença reduzida de negros, que chega

apenas a 3.5% no ponto mais alto.

O gráfico 4 apresenta a razão entre as rendas dos décimos, contrastando as duas

distribuições de renda, a da população negra e a da população branca. Visualiza-se aqui, de

Page 75: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

75

forma mais direta, a significativa distância que separa a renda média dos dois grupos raciais

em todos os níveis da escala socioeconômica.

Em termos gerais, essa diferença configura-se numa disponibilidade de recursos 2

a 2,5 vezes maior para os brancos em relação aos indivíduos situados nos décimos

correspondentes da distribuição da população negra.

Essa estrutura de desigualdades entre brancos e negros mantém-se na comparação

da média de renda da ocupação principal por cor (gráfico 5).

A desigualdade racial mantém-se presente, de igual modo, nos indicadores

culturais. Com relação às estatísticas educacionais, por exemplo, melhor sorte não assiste a

população negra. Ainda que a escolaridade média do brasileiro tenha aumentado, a diferença

entre os brancos e negros ainda continuam acentuadas, conforme se aduz do gráfico 6.

Page 76: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

76

A primeira exigência para que uma pessoa possa ser educada, contudo, é que

tenha acesso à escola e obtenha bom desempenho, sendo aprovada a cada ano. Nesse sentido,

são importantes outros indicadores, como a frequência escolar (gráfico 7). O acesso à

educação no Brasil vem se tornando praticamente universal para as crianças com idade entre 7

e 14 anos.

No entanto, há índices que chamam atenção para uma desigualdade ainda mais

grave para o propósito do presente estudo, que pode ser verificada na comparação relativa à

proporção de pessoas de 25 anos e mais de idade que possuem entre 11 e 14 anos de estudo

(superior incompleto): aí se encontram 22% da população branca, mas apenas 14% dos negros

(gráfico 8). Para a faixa com 15 a 17 anos de estudo (nível superior), a distância é ainda

maior: os brancos ficam no patamar de 10%, enquanto os negros atingem somente 2,5%.

Page 77: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

77

A taxa de analfabetismo é outro grave problema nacional, como se percebe nas

informações contidas na tabela 3. Mesmo com a redução dos índices de analfabetismo, a

diferença entre brancos e negros ainda é bastante acentuada, uma vez que o percentual dos

negros é mais que o dobro dos brancos.

Ao se debruçar nas pesquisas referentes ao mercado de trabalho, podem-se

perceber diversas desvantagens da população negra em relação à branca. Existem diferenças

importantes, por exemplo, no momento de entrada e de saída de indivíduos pertencentes a

grupos raciais distintos, é dizer, os negros tendem a entrar mais cedo e sair mais tarde do

mercado de trabalho (gráfico 9). A entrada precoce de crianças e jovens no mundo do trabalho

e a consequente necessidade de conciliar trabalho e estudo, leva não só a uma taxa de

abandono escolar mais elevada entre os negros, mas também a piores performances no

sistema educacional, que, somadas às manifestações racistas que permeiam a sociedade,

acabam desestimulando os jovens negros a permanecerem na escola e os coloca em situação

de desvantagem perante seus colegas brancos.

Page 78: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

78

Desse modo, a inserção no mercado em condições mais precárias do que os

brancos, faz com que negros tenham maior tendência a estarem sujeitos a relações informais

de trabalho e, portanto, a terem contribuído menos para a previdência. Têm, portanto, que

permanecer mais tempo trabalhando na velhice, de forma a complementar o baixo valor de

seus rendimentos de aposentadoria ou mesmo para compensar a sua inexistência.

A decisão de entrar no mercado de trabalho não é concretizada de forma

igualitária para os diferentes grupos populacionais. Constata-se que mulheres e negros

encontram mais dificuldades para ocupar postos de trabalho, sejam eles formais ou informais.

O gráfico 10, abaixo, aponta para uma maior probabilidade desses grupos se

encontrarem na situação de desemprego. Enquanto quase 8% dos homens e 10,6% dos

brancos encontravam-se desempregados em 2003, esses valores saltavam para 12,4% e 12,6%

no caso de mulheres e negros, respectivamente. Cabe destacar, ainda, que o aumento nas taxas

de desemprego, verificada entre 1996 e 2003, se deu de forma mais intensa para mulheres e

negros do que para a população branca ou masculina.

Page 79: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

79

A análise cruzada por sexo e cor revela que entre homens brancos e mulheres

negras existe uma diferença de quase 9 pontos percentuais nas suas taxas de desemprego.

Enquanto para os homens brancos esse valor é de 8,3%, para as mulheres negras ele sobe para

16,6% (gráfico 11). Essa é uma clara manifestação da dupla discriminação a que este grupo

está submetido, pois, se de um lado, as mulheres negras são excluídas dos “melhores”

empregos simplesmente por serem mulheres, de outro elas também são excluídas dos

“empregos femininos”, como aqueles que requerem contato com o público, simplesmente por

serem negras.

Se observarmos, por fim, onde se situam os negros no mercado de trabalho, a

partir dos dados de posição na ocupação, fica claro que estes se concentram em atividades

mais precárias e com menor proteção social do que a população branca (Gráficos 12 e 13).

Enquanto 34,5% dos brancos estão em ocupações com carteira assinada, apenas 25,6% dos

negros estão na mesma situação. De forma semelhante, 5,9% dos brancos são empregadores,

apenas 2,3% dos negros o são. No outro extremo, 22,4% de negros concentrados em

atividades sem carteira assinada e apenas 16,2% dos brancos em mesma posição.

Page 80: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

80

Dessa maneira, constata-se, a partir do exame dos dados aqui listados, que, de

fato, sofrem os negros, ainda, as consequências do processo histórico que os rebaixou em

relação aos outros atores sociais desde os exórdios da povoação do país. São os

afrodescendentes, ainda hoje, apesar de seus ascendentes terem sido fundamentais para a

formação econômica brasileira, vítimas da marginalização social, além da estigmatização

oriunda da discriminação em todas as faces da sociedade.

A inexistência de um aparato legal efetivo de segregação racial no País tem sido

um dos argumentos mais utilizados pelos opositores das políticas afirmativas direcionadas

para os negros. Alguns números divulgados pela imprensa em 2001 e atualizados pelo

Page 81: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

81

pesquisador José Jorge de Carvalho em 2005 apontam para uma espécie de, como ele mesmo

concluiu, “cotas de fato” para cargos de elite no Brasil:

- Dos 620 Procuradores da República, apenas 7 são negros, ou seja, 98,6% de

brancos;

- No Poder Judiciário, dos 77 Ministro dos quatro Tribunais Superiores, há apenas

dois negros; um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), e um no Supremo

Tribunal Federal (STF). Ressalte-se que Carlos Alberto Reis de Paula foi o primeiro negro a

ingressar em um dos Tribunais Superiores Brasileiros;

- Segundo a Associação dos Juízes Federais, dos 970 juízes, o número de negros é

menor que 5%;

- No Superior Tribunal de Justiça, há 33 Ministros, todos (100%) são brancos;

- No Ministério Público do Trabalho, de 465 Procuradores, apenas 7 são negros,

ou seja, 98% são brancos;

- Na Câmara Federal, há 513 Deputados, dos quais apenas 20 são negros (96% de

brancos);

- No Senado Federal, apenas 2 dos 81 Senadores são negros (97% são brancos);

- O Itamaraty conta com um corpo de cerca de 1.000 Diplomatas, menos de 10

deles são negros (99% de brancos);

- Dos professores da rede das 53 Universidades Federais, 99% são brancos.

Nesse sentido, é certo que o racismo e a discriminação são dados presentes na

realidade nacional, sendo, inclusive, reconhecidas pelo próprio povo brasileiro,153

e que

causam graves disparidades. Tudo isso só dificulta a realização efetiva da um Estado

Democrático de Direito, pautado pelo princípio da dignidade humana e da igualdade real.

153

Em pesquisa realizada pela Fundação Perseo Aubramo, por meio da qual se perguntava ao entrevistado “Em

sua opinião, existe racismo no Brasil ?”, 89% dos participantes se posicionaram pela existência, enquanto que

apenas 5% acreditam não existir racismo no Brasil. SILVA, Maria Palmira da; SANTOS, Gevanilda. Racismo

no Brasil: percepções da discriminação e do preconceito racial no século XXI. São Paulo: Ed. Fundação Perseu

Aubramo, 2011, p. 141.

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82

4 “A FRANÇA NÃO PODE RECEBER TODA A MISÉRIA DO MUNDO:”

INTOLERÂNCIA E XENOFOBIA NO HEXÁGONO EUROPEU E SUAS

CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS

“Solo voy con mi pena, sola va mi condena,

correr es mi destino para burlar la ley.

Perdido en el corazón de la grande Babylon, me

dicen el clandestino por no llevar papel.

Para una ciudad del norte yo me fui a trabajar, mi

vida la dejé entre Ceuta y Gibraltar.

Soy una raya en el mar, fantasma en la ciudad: mi

vida va prohibida, dice la autoridad.

Africano, clandestino; argelino, clandestino;

nigeriano, clandestino; mano negra ilegal.”

(Manu Chao)

Nas eleições presidenciais francesas de 2002, o partido de extrema direita, Front

Nacional, representado pelo candidato Jean Marie Le Pen, logrou a disputa do segundo turno,

enfrentando ali o candidato Jacques Chirac (candidato de direita tradicional), deixando de

fora do debate presidencial o tradicional Partido Socialista.

Na ocasião, o sucesso eleitoral de Le Pen no primeiro turno foi recebido com

espanto pela mídia e pela própria sociedade francesa, o que, apesar da vitória larga (82% dos

votos válidos154

) de Chirac em relação a seu oponente, evidenciou o quão relevante o

“problema da imigração” na França tem se tornado.

Desde os anos 1970, mas, sobretudo, após a queda do muro de Berlim, a questão

das identidades nacionais vem ocupando um espaço cada vez maior nos debates mundiais.

Espalham-se pelos países conflitos raciais entre negros e brancos; acontecimentos como a

guerra da Iugoslávia, retomando a ideia de “limpeza étnica”; atentados de skin heads na

Alemanha; chacina de imigrantes na Suécia, chamam a atenção, uma vez que se mostram

paradoxalmente opostos à realidade atual, em que as ideias de difusão da noção de

globalização e de fim das fronteiras são intensamente discutidas.

Esse contexto de antissemitismo tem, também, tomado espaço no cenário sócio-

político francês, dando lugar a manifestações de racismo e de xenofobia, uma vez que,

“despite an astonishing level of cultural and ethnic diversity, France has seen itself as and has

154

Le monde-web, 05.05.02

Page 83: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

83

sought to become a monocultural society,” 155

ou, em outras palavras, “France has been the

European country most open to immigration but the most resistent on assimilation.”156

Além da inesperada ascensão ao segundo turno das eleições do partido de extrema

direita francês nas eleições de 2002, inúmeros são os exemplos do crescimento da intolerância

no hexágono europeu nos últimos anos. No affaire du foulard, por exemplo, como ficou

conhecido, à medida que se foi desenvolvendo e envolvendo cada vez mais as altas esferas da

política nacional, e até mesmo as relações da França com os países do mundo islâmico, foi

revelando muito sobre a natureza da identidade nacional francesa, e como ela se constrói em

relação ao outro, representado pelo estrangeiro.157

Observa-se, simbolicamente, uma

confrontação entre a identidade nacional francesa e o outro.

La démocratie implique par essence la reconnaissance de la diversité. Tant que cette

diversité s’inscrit dans un même cadre, les difficultés de cohabitation sont en général

mineures et peuvent être assez aisément surmontées. Les véritables défis à la

démocratie sont liés à des conflits de valeurs, de lois et de normes, en particulier

lorsque certaines expressions culturelles ou religieuses se présentent comme l’image

d’un passé que nous avons combattu ou refusent elles-mêmes la diversité. Or, on

assiste aujourd’hui à la montée de courants fondamentalistes religieux de tout ordre

face auxquels les démocrates se doivent de réaffirmer clairement un certain nombre

de principes. [...] Nous avons pu percevoir que l’affaire du port du foulard n’est

qu’un signe d’une évolution du phénomène religieux dans la société et la

République française, ainsi que du changement des rapports sur la scène

internationale, mais également de la difficile tache d’intégration dans une

démocratie.158

Atualmente, portanto, a relação nacional/estrangeiro adquiriu uma imensa

importância na França, a julgar pela frequência com que ela é discutida nos meios de

comunicação, nas ruas, nos meios políticos, pela relevância que ela adquire nas vésperas de

eleições, pela imensa quantidade de leis, circulares e decretos que concernem a essa relação,

passando até por uma reforma no código de nacionalidade, a primeira desde 1945.

155

BEN JELLOM, Tahar. French Hospitality: Racism and North African Immigrants. New York: Columbia

University Press, 1999, p. 13. Em uma tradução livre: “apesar de um nível impressionante de diversidade

cultural e étnica, a França tem se visto como e tem procurado se tornar uma sociedade monocultural.” 156

LEVINE, Robert A. Assimilating immigrants: why America can and France cannot. Los Angeles: Rand

Europe, 2004. Em livre tradução: “A França foi o país europeu mais aberto à imigração, mas o mais resistente na

assimilação.” 157

MONT´ALVERNE, Tarin Cristino Frota. La remise encause du principe de laïcité à travers l’affaire du

foulard. Nomos, revista do curso de mestrado em direito da UFC, vol. 29.2, jul-dez 2009. 158

Id., Ibid. Em uma tradução nossa: "A democracia, por essência, envolve o reconhecimento da diversidade.

Como essa diversidade está no mesmo contexto, as dificuldades de convivência são geralmente menores e

podem ser facilmente superadas. Os verdadeiros desafios para a democracia estão relacionadas aos conflitos de

valores, leis e normas, especialmente quando certas expressões religiosas ou culturais se mostram como a

imagem de um passado em que nós combatemos ou negamos a diversidade. Ora, hoje estamos testemunhando o

surgimento de movimentos religiosos fundamentalistas de todos os tipos contra os quais os democratas devem

claramente reafirmar um certo número de princípios. [...] Nós pudemos perceber que o caso do porte véu

islâmico é somente um sinal de uma evolução do fenômeno religioso na sociedade e da República Francesa, bem

como da mudança das relações no cenário internacional, mas igualmente da difícil tarefa de integração em uma

democracia."

Page 84: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

84

Mesmo durante o primeiro mandato de François Mitterrand, quando, sem dúvida,

inúmeros progressos foram feitos em termos dos direitos dos imigrantes, o primeiro-ministro

socialista Michel Rocard ficou famoso ao justificar a adoção de voos charters para expulsar

imigrantes ilegais, afirmando: “A França não pode acolher toda a miséria do mundo.”159

France has always prided itself as a terre d'accueil, as the land of freedom and

human rights. Since the Revolution, however, the ability of French citizens to

welcome or simply accept the arrival of large groups of foreigners-let alone tolerate

their own regional minorities-has been severely put to the test160

Tendo já feito breves considerações a respeito do racismo no Brasil, buscar-se-á,

neste capítulo, explorar a questão da discriminação racial imperante na França, traçando

alguns dos fatores envolvidos nessa temática.

4.1 Contextualização histórica da imigração na França

Malgrado se tenha ventilado com mais vigor, especialmente a partir da década de

1980, a questão da xenofobia e da discriminação racial na França, a preocupação com os

grupos estrangeiros no território francês é um fenômeno cujo nascedouro enraíza-se em

período bem mais largo,161

uma vez que é sabido que, durante a maior parte dos últimos dois

séculos, a França foi o mais importante país da imigração no mundo industrializado.162

Os estudiosos das correntes migratórias costumam fazer a distinção entre fatores

que “puxam” e fatores que “empurram” (pull and push factors) as populações entre os

países.163

A industrialização e os baixos índices de crescimento populacional, quando

comparada com a maioria dos países vizinhos, são os principais pull factors que inclinaram a

França a aceitar, e em alguns casos até a recrutar, fluxos de estrangeiros. De fato, as grandes

perdas populacionais sofridas pelo país na Primeira Grande Guerra, por exemplo, bem como,

159

Le monde-web, 03.12.89. 160

HARGREAVES, Alec G. Perceptions of Ethnic Difference in Post-War France. Immigrant Narratives in

Contemporary France. Eds. Susan Ireland and Patrice J. Proulx. estport, CT: Greenwood Press, 2001. Em

tradução livre: “A França sempre se considerou “terre d’accueil,” como lugar da liberdade e direitos humanos.

Desde a revolução, entretanto, a habilidade dos cidadãos franceses de receber ou simplesmente aceitar a chegada

de grandes grupos de estrangeiros – ou apenas tolerar suas próprias minorias regionais – tem sido posta em jogo

de maneira severa.”

161 Id. Ibid.

162 HANSEN, Randall. Migration to Europe since 1945: its history and its lessons. Oxford: Blackwell

Publishing, 2003. 163

HOLLIFIELD, James. Migrants ou citoyens : la politique de l'immigration en France et aux États-Unis In:

Revue européenne de migrations internationales. vol. 6 n°1. L'immigration aux États-Unis.

Page 85: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

85

de modo mais ameno, na Segunda Grande Guerra impulsionaram fortemente o

desenvolvimento de políticas pró-imigração.164

Na maior parte das vezes, a busca por ascensão econômica impeliu os estrangeiros

a se deslocarem até o território francês. Contudo, em alguns casos, as perseguições políticas

falavam mais alto que interesses econômicos, e muitos grupos buscaram as terras francesas

como refúgio de práticas genocidas vigentes em seus países de origem.

Ademais, desde a Revolução de 1789, a França cultiva uma reputação

internacional de país defensor dos direitos humanos, fazendo dele um destino natural daqueles

que desejavam refugiar-se.165

Há ainda outros pull factors, como o grau de facilidade de adentrar legalmente as

barreiras do país, bem como “geographical proximity, transport systems and social networks

based on friends or relatives who have already migrated.”166

Durante o século XIX, a França não possuía relevantes controles da entrada de

estrangeiros no país, ficando a movimentação de pessoas reguladas pelas forças do

mercado.167

Até mesmo depois da instituição oficial de controles, estes eram flexíveis, a

depender das conveniências do Estado, fato bem exemplificado pela entrada da maioria dos

trabalhadores imigrantes na França na época do boom econômico de 1960, que se deu

inicialmente de modo ilegal, tendo sido regularizada ex post facto sua situação, mediante a

comprovação de que estavam trabalhando. Evidenciava-se, assim, a necessidade francesa de

suprir a escassez de mão-de-obra naquele período.168

Dessa arte, observa-se que a mão-de-obra francesa não foi suficiente para as altas

demandas decorrentes da expansão industrial, e, apesar da considerável migração de franceses

das áreas rurais para as urbanas, trabalhadores estrangeiros vieram em muita quantidade.

O gráfico 14 mostra uma coleta de dados percentuais da população estrangeira na

França desde 1851. É notável o aumento dessa população em relação à nacional de 1% em

1851 para 3% em 1886. Manteve-se essa proporção estável até a Primeira Guerra Mundial,

quando, rapidamente, dobrou. Nos anos após a Segunda Guerra Mundial, a média manteve-se

164

Id. Ibid. 165

Id. Ibid. 166

Id. Ibid. Em tradução livre : “proximidade geográfica, sistemas de transporte e as redes sociais com base em

amigos ou parentes que já migraram.” 167

FASSIN Didier. L'intervention française de la discrimination. In: Revue française de science politique, 52e

année, n°4, 2002. pp. 403-423. 168

Id Ibid.

Page 86: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

86

estável até a década de 1970, em virtude da forte instabilidade econômica e das altas taxas de

desemprego do pós-guerra.

Nos anos 1920, belgas e italianos representavam mais da metade dos estrangeiros

residentes. Aqueles atraídos pelas oportunidades de emprego no setores têxtil e de carvão do

norte da França; estes, tradicionalmente concentrados em trabalhos não qualificados no

sudeste do país. Na década de 1930, foram os espanhóis aqueles particularmente numerosos

dentre os imigrantes, compondo grande parte dos trabalhadores da agricultura do sudeste

francês. No período entre guerras, uma grande comunidade polonesa também se desenvolveu,

trabalhando sobretudo em minas ou plantações.169

Finda a Segunda Guerra Mundial, o governo francês alavancou políticas para

arregimentar imigrantes a fim de assistir a construção civil, bem como para compensar a

queda demográfica no país. As discussões em torno do melhor formato para uma política de

imigração foram, no entanto, bastante intensas e controversas. De um lado, estavam os

economistas preocupados com a questão da mão-de-obra, e, de outro, os demógrafos,

encabeçados por George Mauco, que apregoavam a imigração de famílias, obedecendo a

critérios de compatibilidade étnica e cultural com a França.170

Diante das pressões econômicas e da impopularidade de medidas de

discriminação nacional no imediato pós-guerra, a visão dos economistas prevaleceu, e, já em

169

SIMON, Patrick. Les statistiques, les sciences sociales françaises et les rapports sociaux ethniques et de «

race ». Ophrys | Revue Française de sociologie. 2008/1 - Volume 49. 170

LEVINE, Robert A. Assimilating immigrants: why America can and France cannot., 2004.

Page 87: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

87

1945, o país lançou as bases de uma política que visava atrair trabalhadores estrangeiros, com

a criação do Office National d´Immigration171

para sua melhor implementação.172

Nesse período, o império além-mar francês, então o segundo maior do mundo,173

foi, gradualmente, descolonizando-se. A independência foi garantida para indochina francesa

em 1954, e, para as colônias da África centro-leste, aconteceu em 1960.

O último grande passo desse processo veio com a independência da Argélia, em

1962. Até então, a região vinha sendo oficialmente regulada como uma parte integral do

território francês, e todos os seus habitantes tinham o status formal de nacionais. Com sua

independência, os argelinos continuaram tendo direito de liberdade de ir e vir dentro e fora

das metrópoles francesas. De 22 mil em 1946 argelinos no território francês, a população

passou para 805 mil em 1982, o que contribuiu para que se tornassem o maior grupo de

estrangeiros na população francesa.174

También, Francia, muy desesperada por atraer trabajadores, firmó acuerdos con

muchos países, entre ellos Marruecos, Túnez, Portugal, Yugoslavia y Turquía. En

particular, el acuerdo con Argelia, firmado tras su guerra con Francia en 1962,

afectó la inmigración de uma manera inesperada: las personas de estos dos países

ahora podían mudarse libremente. Aunque el objetivo de tal acuerdo fue permitir el

regreso de los franceses que se habían mudado a rgelia durante la colonización, lo

opuesto ocurrió: los argelinos llegaron, aprovechándose de más oportunidades

económicas en Francia. El impacto del acuerdo con Argelia se puede medir por

estas cifras: durante los trece años después de firmar el acuerdo, la población

argelina que vivía en Francia dobló hasta llegar 710.690. En general, como

consecuencia de estas medidas, 3.5 millones de personas inmigraron a Francia entre

1945 y 1974.175

171

“los estragos de la Segunda Guerra Mundial han dejado a Francia con una crisis de población: sería imposible

reconstruir la economía sin la ayuda de inmigrantes. Aunque no existía una política étnica oficial, el gobierno sí

intentaba atraer agresivamente a ciertos grupos étnicos, como los italianos. En 1945, se creó un departamento

oficial encargado de seguir la inmigración.” TAGMAN, Jeffrey M. El reparte de nations: instituitiones y

políticas de inmigracion en Francia y en los Estados Unidos. Westport, CT: Praeger, 2002, p. 8. Em tradução

nossa: “Os estragos da Segunda Guerra Mundial deixaram a França com uma crise populacional: seria

impossível reconstruir a economia sem a ajuda de imigrantes. Ainda que não existisse oficialmente uma política

étnica, o Governo procurava sim atrair em mais intensidade certos grupos étnicos, como os italianos. Em 1945,

foi criado um departamento oficial encarregado de administrar a atração de imigrantes.” 172

LEVINE, Robert A., 2004. 173

Id, Ibid. 174

BERTOSSI, Christophe. Les Musulmans, la France, l’Europe : contre quelques faux-semblants en matière

d’intégration. Paris: Türkan Karakurt (FES) et Christophe Bertossi (Ifri), 2007. 175

TAGMAN, Jeffrey M. El reparte de nations: instituitiones y políticas de inmigracion en Francia y en los

Estados Unidos. Westport, CT: Praeger, 2002, p. 84-94. Em livre tradução : “Também a França, desesperada em

atrair trabalhadores, firmou acordo com muitos países, dentre eles Marrocos, Tunísia, Portugal, Iuguslávia e

Turquia. Particularmente, o acordo com a Argélia, firmado no contexto de sua guerra de independência em 1962,

afetou a imigração de uma maneira inesperada: as pessoas desses países poderiam agora se mudar livremente.

Ainda que o objetivo do referido acordo tenha sido o regresso dos franceses que se haviam mudado para a

Argélia durante a colonização, o oposto ocorrera: os argelinos chegaram aproveitando-se das maiores

oportunidades econômicas na França. O impacto desse acordo com a Argélia se pode medir por estes números:

durante os treze anos posteriores ao acordo, a população argelina que vivia na França dobrou até chegar a

710.690. Em geral, como consequência dessas medidas, 3.5 milhões de pessoas imigraram para França entre

1945 e 1974.”

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88

Marrocos e Tunísia eram também regulados pelas normas francesas até 1956, mas

a esses Estados foi dado o status jurídico de protetorados. Seus cidadão não foram, portanto,

oficialmente classificados como franceses.

Dans l'espace social et politique français, l'immigration maghrébine détient un statut

symbolique particulier qui la différencie des autres migrations en raison

principalement de son origine coloniale, puis post-colonial. Ceci explique que, plus

que tout autre, elle a longtemps été considérée comme installée de manière

transitoire non seulement par les autorités politiques françaises, mais aussi par les

dirigeants des pays d'origine. Elle était appréhendée comme une migration de travail

provisoire n'ayant pas vocation à devenir une migration de peuplement dans la

mesure où cette position était en adéquation avec le discours nationaliste des États

d'origine ainsi qu'avec les impensés de la société française.176

Desse modo, entre 1945 e 1973, milhares de estrangeiros se estabeleceram na

França, dentre eles portugueses,177

refugiados da ditadura de Antonio Oliveira Salazar, bem

como de argelinos, que, como visto, após a independência, passaram a dispor de

nacionalidade francesa (ver gráfico 15).

176

CESARI, Jocelyne. De l'immigré au minoritaire : les Maghrébins de France In: Revue européenne de

migrations internationales. vol. 10 n°1. Mobilisations des migrants en Europe – Du national au transversal. p.

109-126. Em tradução nossa: "No espaço social e político francês, a imigração magrebina detem um estatuto

simbólico particular que a diferencia de outras migrações, principalmente devido a sua origem colonial e, depois,

pós-colonial. Isso explica porque, mais do que qualquer outra coisa, ela foi considerada por longo tempo como

algo instalado de maneira transitória, não só pelas autoridades políticas francesas , mas também pelos líderes dos

países de origem. Ela era tida como uma migração de trabalho temporário não destinado a se tornar uma

migração demográfica, na medida em que esta posição se aliava ao discurso nacionalista dos países de origem

assim com o que não fora pensado pela sociedade francesa." 177

Para detalhes da migração de portugueses, ver: HELDER, Diogo. A comunidade portuguesa em França e

na região de Lyon: uma evolução sociodemográfica. Cadernos curso de doutoramento em Geografia flup 1

2009.

Page 89: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

89

No início da década de 1970, a questão da imigração começou a despontar no

contexto das revoltas estudantis e da denúncia das condições de vida dos imigrantes,

sobretudo no que dizia respeito ao problema da habitação. Além disso, aumentaram os crimes

de conotação racial no país.178

Grâce au droit au regroupement familial, ceux-ci ont commencé à se sédentariser. La

fermeture des frontières à l'immigration en 1974 a définitivement fixé ces

populations sur le territoire français. A partir des années 1980, les immigrés passent

au politique. Ils deviennent la cible des politiques publiques alors que l'immigration

est reconstruite comme un «problème», tandis que leurs enfants deviennent des

citoyens français en vertu du droit de la nationalité. Au même moment, l'islam

devient un objet «visible» dans l'espace public, notamment après des grèves dans

l'industrie automobile en 1983 et des mouvements sociaux dans le secteur locatif

spécialisé dans l'hébergement des immigrés.179

178

TAGMAN, Jeffrey M., op., cit., 2002. 179

BERTOSSI Christophe. Dilemme de la citoyennetéIntégration / anti-discrimination em Europe : le cas

français. CENTRE D'ETUDES DE L'ETHNICITE ET DES MIGRATIONS. Rencontre du CEDEM, 18 avril

2002. "Graças ao direito ao reagrupamento familiar, estes começaram a se sedentarizar. O fechamento das

fronteiras à imigração em 1974 fixou definitivamente essas populações em território francês. A partir dos anos

1980, os imigrantes passam a ser uma questão política, pois se tornaram o alvo das políticas públicas, uma vez

que a imigração é reconstruída como um ‘problema,’ pois seus filhos se tornem cidadãos franceses por conta da

Page 90: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

90

A França suspendeu, então, o direito de livre circulação dos argelinos em 1964, e,

a partir de 1968, iniciou uma política com um duplo objetivo: aumentar a expulsão de

argelinos e negociar com o governo da Argélia a diminuição de imigrantes desse país. Alguns

acordos bilaterais para restringir a imigração foram assinados.180

No começo da década de 1970, a participação dos trabalhadores estrangeiros em

greves e movimentos operários (Pennaroya, de Lyon, 32 dias em 1972, e Renault, de

Billancourt, três semanas em 1974) deu visibilidade política aos imigrantes. Grupos solidários

aos imigrantes despontaram na cena política francesa. Paralelamente, a crise econômica

francesa levou o governo a adotar medidas visando desencorajar a vinda de imigrantes e

controlar a entrada de ilegais.

A decisão de suspender as imigrações foi decorrente da Crise do Petróleo de 1973.

A França, como outros países importadores de mão-de-obra, decidiu, então, fechar suas

barreiras para os imigrantes, em virtude do aumento considerável no desemprego. Nesse

contexto, um complexo de normas para retirar direitos dos imigrantes foi criado.181

Because of the dominance of the labor market in shaping the basic thrust of

migratory flows, immigrants had come to be regarded as synonymous with

immigrant workers, who were in turn equated with unskilled workers rather than

professionally qualified personnel.182

Em 1977, o governo passou, não somente a evitar que os imigrantes entrassem no

país, mas também a tentar fazer a população de imigrantes que já estava na França retornasse

ao seu país de origem. Os incentivos financeiros destinados a encorajar que estes deixassem a

França, l´aide au retour, no entanto, obtiveram pouco sucesso.183

Dès que cette crise apparaît durable que le chômage devient en 1977 la première

préoccupation des Français et que dans immigration familiale globalement en déclin

arrivée de familles de Maghrébins est en progression Valéry Giscard Estaing décide

lei da nacionalidade. Ao mesmo tempo, o Islã se torna um objeto "visível" na arena pública, especialmente após

as greves na indústria automobilística em 1983 e os movimentos sociais no setor de locação especializada em

alojamento de imigrantes." (tradução livre) 180

BERTOSSI, Christophe. Les Musulmans, la France, l’Europe : contre quelques faux-semblants en matière

d’intégration, 2007. 181

Id, Ibid. 182

JENNINGS, Jeremy. Citizenship, republicanism and multiculturalism in contemporary France. United

Kingdom: Cambridge University Press B.J.Pol.S. 30. Tradução livre: “Por causa da dominância do mercado de

trabalho na formação do impulso básico dos fluxos migratórios, os imigrantes passaram a ser vistos como

sinônimos de força de trabalho, que representava muito mais a força de trabalho não-qualificada do que

qualificada.” 183

BERTOSSI, 2007.

Page 91: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

91

de faire du retour massif immigrés non européens la priorité de sa nouvelle politique

immigration.184

Muitos portugueses e espanhóis decidiram voltar, pois já havia terminado a guerra

civil e a ditadura em seus países; poucos magrebinos,185

entretanto, o quiseram, pois não havia

vantagens significativas em fazê-lo.

Tal fato contribuiu para que, entre 1972 e 1980, o governo francês se empenhasse

em atingir a chamada imigração zero.186

No entanto, sucessivos governos esbarraram nos

limites impostos pela legislação francesa de direitos humanos. Assim, por exemplo, em 1978,

o Conselho de Estado, citando o Preâmbulo da Constituição de 1946 e a legislação europeia,

proibiu o governo Giscard d’Estaing de recusar vistos aos familiares de imigrantes para

diminuir a imigração, e afirmou que os estrangeiros residindo regularmente na França têm,

como os nacionais, o direito de levar uma vida familiar normal; que esse direito comporta, em

particular, a faculdade, para esses estrangeiros, de trazer para junto de si seus cônjuges e seus

filhos.187

O Executivo também se deparou com a resistência dos próprios imigrantes,

especialmente os da segunda geração, cada vez mais organizados e mobilizados, e de grupos

de apoio aos imigrantes, dentre os quais um dos mais influentes, ainda hoje, é o Groupe

d’Information et de Soutien des Immigrés (Gisti), fundado em 1972.188

Entre 1981 e 1983, durante o primeiro governo do socialista François Mitterrand,

houve um processo de consolidação dos direitos dos estrangeiros. O governo declarou, desse

modo, anistia para todos os imigrantes ilegais que tivessem entrado no país antes de 1 de

janeiro.189

Ao todo, 132.000 imigrantes ilegais foram regularizados dessa forma durante o

184

WEIL, Patrick. Racisme et discrimination dans la politique française de l'immigration : 1938-1945/1974-

1995. In: Vingtième Siècle. Revue d'histoire. N°47, juillet-septembre 1995. pp. 77-102. "A partir do momento

em que esta crise se mostra durável, o desemprego se torna em 1977 a primeira preocupação dos franceses e com

a imigração familiar, em gegal em declínio, a chegada de famílias magrebinas progride. Então o Valéry Giscard

d’Estaing decide fazer do retorno maciço de imigrantes não europeus, a prioridade de sua nova política de

imigração." (livre tradução) 185

“O Magrebe ou Magreb (em língua árabe, برغملا, Al-Maghrib) é uma região africana que abrange, em

sentido estrito, Marrocos, Sahara Ocidental, Argélia e Tunísia (Pequeno Magreb ou Magreb Central). O Grande

Magreb inclui também a Mauritânia e a Líbia. Na época do Império Romano, era conhecido como África menor.

Al-Maghrib significa "poente" ou "ocidente", em razão da posição ocidental dessa região, relativamente ao resto

do mundo islâmico. Opõe-se a Machrek ("nascente"), que designa o oriente árabe e se estende desde o Egito até

o Iraque e a Península Arábica.” FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa.

2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 186

LEVINE, Robert A. Assimilating immigrants: why America can and France cannot., 2004. 187

Id, Ibid. 188

Id. Ibid. 189

LIONNET, Françoise. Immigration, Poster Art, and Transgressive Citizenship: France 1968-1988.

SubStance, Vol. 24, No. 1/2, Issue 76/77: Special Issue: France's Identity Crises, (1995), pp. 93-108.

Page 92: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

92

inverno de 1981.190

Em outubro de 1981, o governo promulgou lei que garante a liberdade de

associação aos imigrantes, dando um novo impulso ao ativismo imigrante. As associações que

reuniam a segunda geração dos imigrantes árabes das antigas colônias francesas, conhecidos

como beurs, passaram a ser cada vez mais influenciadas pelo discurso da esquerda norte-

americana de direito à diferença. 191

Plus tard en 1984 après que la gauche eut entre 1981 et 1983 pris exact contrepied

de la politique précédente en régularisant par exemple 130000 étrangers em situation

irrégulière les quatre partis ayant participé au gouvernement depuis 1974 UDF RPR

PS PCF adoptèrent une loi sur le titre unique de dix ans Tout enconfirmant arrêt de

immigration de travailleurs non qualifiés et donc la lute contre immigration

irreguliere ele garantit la stabilité du séjour des residents étrangers quelle que soit

leur nationalité.192

Em 1983, essas organizações juntas realizaram a Marcha pela igualdade e contra

o racismo, que ajudou a dar visibilidade a essa parte esquecida da sociedade francesa e

pressionar pelo reconhecimento de suas demandas. Entre as reivindicações do movimento

beur, estavam o direito de voto local para os imigrantes, a proteção contra a expulsão, a

adoção de políticas sociais e a revisão da política de nacionalidade francesa.193

Impulsionada

pelo sucesso da Marcha, nasceu uma das organizações mais importantes e atuantes do

movimento imigrante, o SOS Racisme, que chega a ter dezoito mil filiados na década de

1980.194

En 1983, un mouvement conduit par les jeunes de la deuxième génération s’attaque

alors frontalement à ces confusions en articulant la dénonciation du racisme à

l’hypocrisie du modèle d’intégration. La « marche pour l’égalité et contre le racisme

», (également appelée « marche des beurs ») est l’occasion de montrer

l’inconsistance des promesses de la République à l’égard des descendants

d’immigrants maghrébins. Tout au long des années 1980, se développe dans

l’espace public français le thème de la montée du racisme. En 1985, la création de

l’association SOS racisme va entraîner une médiatisation croissante de la question.

Cette nouvelle force antiraciste, à laquelle s’ajoutent Radio Beur, France Plus et bien

d’autres, se démarque des canaux plus traditionnels de la lutte contre le racisme en

affirmant l’implication de toute une génération qui s’organise dans un premier temps

autour du débat sur le droit à la différence.195

190

Id. Ibid. 191

LEVINE, Robert A. Assimilating immigrants: why America can and France cannot., 2004. 192

WEIL, Patrick. Racisme et discrimination dans la politique française de l'immigration : 1995. Em nossa

tradução : "Mais tarde, em 1984, depois de a esquerda, entre 1981 e 1983, agir exatamente contrária à política do

governo anterior, por exemplo, regulamentando 130.000 estrangeiros ilegais, os quatro partidos que

participavam do governo desde 1974 - UDF RPR PS PCF adotaram uma lei com o único objetivo de parar em

dez anos a imigração dos trabalhadores não qualificados e, portanto, a luta contra a imigração irregular. Esta lei

garante a estabilidade da estadia de estrangeiros residentes, independentemente da sua nacionalidade." (tradução

livre) 193

LEVINE, Robert A., 2004. 194

Id. Ibid. 195

POLI, Alexandra. Faire face au racisme en France et au Brésil : de la condamnation morale à l’aide aux

victimes, 2005. “Em 1983, um movimento liderado pelos jovens da segunda geração começa a atacar

frontalmente a confusão da denúncia do racismo e a hipocrisia do modelo de integração. A ‘marcha por

igualdade e contra o racismo’, (também chamada de ‘marcha dos beurs) foi uma oportunidade para mostrar a

Page 93: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

93

Paralelamente à intensificação do ativismo imigrante, cresceram também as

manifestações racistas e xenófobas na sociedade francesa. Em 1972, foi fundado o Front

National, cuja proposta era unificar a direita radical francesa e pôr fim ao “processo de

decadência intelectual, moral e física no qual estamos engajados”.196

A imigração foi

considerada pelo partido como um atentado contra a cultura e a economia francesa, e, como

tal, passível de ser combatida. Ela não foi, no entanto, inicialmente, o foco principal do

discurso do Front. Com o passar do tempo, no entanto, a mescla de imigração com a

preocupação com a segurança veio a se tornar o eixo principal das campanhas do partido.

A profusão de novas legislações, quase todas de teor restritivo, ao longo dos

últimos anos, levou, ainda, ao surgimento da figura dos sans papiers, indivíduos que, apesar

de terem entrado legalmente na França, tornaram-se ilegais em virtude das mudanças na

legislação francesa. Como muitas mudanças são contraditórias em relação à legislação

anterior, os sans papiers ,muitas vezes, não podem ser legalizados nem expulsos da França,

ficando em uma espécie de limbo jurídico. Uma pessoa, por exemplo, que mora há pelo

menos quinze anos na França é protegida da expulsão pelo artigo 25 da ordenança de

novembro de 1945 referente à imigração, mas, pelas mudanças legislativas de 1993, pode não

ter o seu visto renovado se estiver desempregada.197

Os sans-papiers foram bastante ativos politicamente na década de 1990 e

organizaram várias manifestações com o objetivo de sensibilizar a opinião pública e o

governo para sua situação. Em certo sentido, o movimento dos sans- papiers foi bastante

inovador ao propor que a imigração fosse considerada como um direito humano. No fim de

1997, os socialistas foram eleitos com uma plataforma que incluía, entre outras coisas, a ab-

rogação das legislações imigratórias de 1993 e 1997. Contudo, poucas mudanças foram feitas,

e mais uma vez, parece ter prevalecido o temor de parecer complacente com os imigrantes

ilegais diante de um eleitorado que flerta com o Front National.

A cada ano, cerca de 100.000 estrangeiros tornam-se franceses.198

Cerca da

metade são não imigrantes que o fizeram por naturalização (Tabela 4). Muitos outros

inconscistência das promessas da República contra os descendentes de imigrantes norte-africanos. Ao longo de

toda a década de 1980, desenvolveu-se no espaço público francês o tema do aumento do racismo. Em 1985, a

criação da associação SOS racisme levou a uma crescente midiatização da questão. Essa nova força antirracista,

a qual fora completada pela Radio Beur, France Plus e muitas outras, destaca mais canais de luta contra o

racismo, por afirar o envolvimento de uma geração que está organizada inicialmente em torno do debate sobre o

direito à diferença.” (tradução livre) 196

LEVINE, Robert A. Assimilating immigrants: why America can and France cannot., 2004. 197

BERTOSSI, Christophe. Les Musulmans, la France, l’Europe, 2007. 198

SIMON, Patrick. Les statistiques, les sciences sociales françaises et les rapports sociaux ethniques et de «

race », 2008.

Page 94: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

94

adquiriram por meio casamento com francês ou de filho nascido na França. No século XXI,

mais de 9 milhões de pessoas que vivem na França são filhos ou netos de imigrantes.199

4.2 A Imigração como problema francês e o “novo racismo”

Quando os imigrantes divergem pelo menos de um dos conceitos que constituem a

mentalidade da imigração (assimilação, papel de mão-de-obra, por exemplo), a sociedade

dominante reage por meio de uma estigmatização ainda mais acentuada. Pela perspectiva da

sociedade dominante, “an immigrant [is] supposed to remain an immigrant and never emerged

from that strictly defined and supervised category.”200

Como já aludido, na década de 1970, os grupos de imigrantes ou de filhos de

imigrantes começaram a “sair” dessa dita categoria. Os magrebinos, ainda que tenham se

assimilado e aculturado, resistiram à limitação socioeconômica. Surge assim, da sociedade

dominante, um novo tipo de racismo, não baseado nas diferenças biológicas, mas culturais,

como forma de manter seu status socioeconômico.

199

SIMON, Patrick. 2008. 200

BEN JELLOM, Tahar. French Hospitality: Racism and North African Immigrants., 1999, p. 13. “Um

imigrante deve sempre ser um imigrante e nunca sair dessa categoria supervisionada e estritamente definida.”

(tradução livre)

Page 95: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

95

Nesse período, começou a ser perceptível o aumento dos magrebinos na França, o

que representou uma grande mudança na percepção dos imigrantes, refletindo oficialmente

em esforços do governo de reduzir o número de imigrantes o máximo possível.

Devido ao acordo com a Argélia, os franceses e argelianos poderiam

intercambiar-se sem a aprovação dos respectivos governos; como consequência, o número de

imigrantes argelinos subiu rapidamente e mais ainda com os programas de reunificação

familiar. Por isso os imigrantes “invadiram” o espaço público, como as ruas, as praças e,

especialmente, as escolas públicas.201

A visibilidade dos imigrantes aumentou bastante, o debate do princípio da

assimilação ainda mais importante. Com efeito, o impacto maior da chegada de famílias era

que agora os imigrantes não pensavam mais em retornar a seus países nativos: tinham

interesses nos aspectos políticos e sociais da França. Como membros de uma comunidade de

trabalhadores desempregados, os imigrantes violavam um terceiro elemento da imigração: a

desestabilidade. A sociedade francesa já se encontrou com a ameaça dos imigrantes (e de

suas culturas) influenciando a cultura francesa. Em particular, o Islamismo se fez mais visível:

em geral foi expressado privadamente por parte dos homens que tinham imigrado sozinhos,

mas a presença das famílias fazia necessária a construção de mesquitas.202

Os contratempos sociais não tinham que ver com as culturas nativas, nem

tampouco com a identidade híbrida da segunda geração de imigrantes, ou seja, os filhos de

imigrantes originais. Essa geração magrebino-francesa, queria distanciar-se de seus pais,

vistos como “permanently settled minority communities, [and] not transitory workers”203

.

Assim, percebe-se que os imigrantes mudaram, e não a sociedade dominante: “the immigrants

have changed. They’re younger, often literate, and politicized.”204

Essas diferenças criaram um conflito de geração entre os pais e filhos: a segunda

geração não tem a mesma perspectiva que a primeira.205

Em particular, a politização os

diferencia não somente de seus pais, como também das gerações anteriores de imigrantes em

geral: essa geração de franceses pertencem ao não pertence à categoria “imigrante” como se

201

DERDERIAN, Richard L. North Africans in Contemporary France: Becoming Visible. New York:

Palgrave MacMillan, 2004, p. 14. 202

LAMBERT, Wallace E., FATHALI M. Moghaddam. Assimilation vs. Multiculturalism: Views from a

Community in France. Sociological Forum 5.3: 387- 441. JStor. Bowling Green State University Libraries,

Bowling Green State University. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/684395> Acesso em 01 de outubro

de 2011. 203

BEN JELLOM, Tahar. French Hospitality: Racism and North African Immigrants, 1999, p. 67. “Uma

permanente minoria, [e] força de trabalho não transitória” (tradução livre) 204

Id. Ibid., p. 67. 205

DERDERIAN, Richard L. North Africans in Contemporary France: Becoming Visible, 2004, p. 24. “os

imigrantes mudaram. Estão mais jovens, muitas vezes letrados, e politizados.” (tradução livre)

Page 96: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

96

define literalmente, nem muito menos ao grupo étnico francês como percebido pela sociedade

dominante, fato que provocou uma crise de identidade tanto para os imigrantes como para a

sociedade francesa.

Por isso, se chama “geração ilegítima”, presos entre sua percepção de lugar dentro

da sociedade francesa e sua identidade construída para eles pela sociedade francesa.206

A

sociedade os viu como não-franceses pela distância cultural que os separava, uma distância

maior que aquela entre franceses e outros imigrantes europeus, especialmente pelo sistema

educativo.

Desse modo, pode-se atribuir a discriminação religiosa e étnica da segunda

geração de imigrantes magrebinos como consequência de sua assimilação exitosa à cultura

francesa. A nova geração prova que “the real cultural differences have become negligible”207

e que é “precisely because ethnic minorities have embraced dominant values that racial

discrimination generates sentiments of hatred, anger, [and] frustration…””208

Algumas estatísticas apoiam essa teoria: em 1994, 126.300 argelinos se

naturalizaram (o número mais alto desde 1945).209

Ademais, a taxa de matrimônios mistos, o

indicador mais fundamental de integração e melhor defesa contra o racismo em geral, indica

que em 1994 a metade dos homens e um quarto das mulheres de origem argelina viviam com

um(a) francês(s).210

O aspecto econômico só aumentou as tensões sociais entre a sociedade francesa e

os imigrantes. A crise econômica mundial dessa época, motivada em parte pela escassez de

petróleo, contribuiu com a reivindicação do movimento etnonacionalista promovido pelo FN,

dentre outros.

Implementou-se, assim, um racismo escondido na França, sem o uso de termos

raciais. A identidade de “imigrante” serve para designar uma raça e uma classe social.211

Devido a uma historia impregnada de conflitos raciais, culturalmente se evita um racismo

explícito. Contornar o racismo explícito não significa que não haja racismo, que se dá de

forma mascarada. Existem vários termos para descrever o racismo escondido. O que se aceita

206

HARGREAVES, Alec G. Perceptions of Ethnic Difference in Post-War France. Immigrant Narratives in

Contemporary France. Eds. Susan Ireland and Patrice J. Proulx. estport, CT: Greenwood Press, 2001, p. 15. 207

Id. Ibid. “reais diferenças culturais se tornaram insignificantes” (tradução livre) 208

DERDERIAN, Richard L., 2004, p. 25. “precisamente porque as minorias adotaram valores dominantes que a

discriminação racial gera sentimento de raiva, ódio [e] frustração...” (tradução livre) 209

BEN JELLOM, Tahar, 1999, p. 20. 210

Id. Ibid. 211

BALIBAR, Étienne. Is There a ‘Neo-Racism’? Trans. Chris Turner. Race, Nation, Class: Ambiguous

Identities. Eds. Étienne Balibar and Immanuel Wallerstein. London: Verso, 1991.

Page 97: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

97

em comum é que não se trata de um racismo oriundo de diferenças biológicas, mas um

racismo baseado na cultura.

O racismo explicitamente biológico se associa com o Nazismo. Não obstante, o

racismo biológico continuou através de um racismo cultural; por considerar as diferenças

culturais “irredutíveis” e inerentes a atributos raciais, o racismo cultural é meramente o

racismo biológico com outro nome. Sob o disfarce da nomenclatura de racismo cultural, as

diferenças étnicas e culturais se veem tão marcadas que é impossível a coexistência e

integração, exatamente o que propõe o racismo ideológico.212

Ainda que o novo racismo não levante questões de superioridade de raça, traça

uma superioridade de uma cultura específica, e que a incompatibilidade de culturas faz

impossível sua coexistência. A esse neorracismo, Taguieff aplica o termo “differentialist

racism”, que na verdade é um racismo de “segunda posição”; em outras palavras, diz que quer

prevenir o racismo pela manutenção de “tolerance thresholds” e “cultural distances.”213

O sociólogo Edgar Morin o descreve como “racismo emocional e popular,” no

qual se constroem identidades sociais para culpar os imigrantes por vários problemas.214

Na

França, há outro elemento de racismo dirigido aos magrebinos: sua colonização do norte da

África. Existe uma continuação da mentalidade imperialista combinada com os sentimentos

de ressentimento pela caída do império e até mesmo uma necessidade de vingança.215

Esse “novo racismo” atribui certos elementos culturais (positivos e negativos) a

determinados grupos étnicos. Essas caracterizações estão tão vinculadas às etnicidades dos

grupos que eventualmente se unem: as características sociais naturalmente acompanham os

grupos sociais. Por exemplo, um estudo francês encontrou vários estereótipos associados com

os magrebinos: entre todos os grupos de imigrantes da França, os magrebinos são vistos como

os mais fracos, os mais agressivos, os menos confiáveis, mais desagradáveis e os que mais

descumprem as leis.216

O mesmo estudo examinou também outros fatores: os imigrantes magrebinos são

criticados em todas as áreas sociais, incluindo a higiene. O mais interessante é que esses

imigrantes são também criticados por não expressar agradecimento à França. Aqui se revela

212

DERDERIAN, Richard L. North Africans in Contemporary France: Becoming Visible., 2004, p. 13. 213

BALIBAR, Étienne, 1991. 214

BEN JELLOM, Tahar. French Hospitality: Racism and North African Immigrants., 1999, p. 25. 215

BALIBAR, Étienne. Racism and Nationalism. Trans. Chris Turner. Race, Nation, Class: Ambiguous

Identities. Eds. Étienne Balibar and Immanuel Wallerstein. London: Verso, 1991. 37-69. 216

LAMBERT, Wallace E., FATHALI M. Moghaddam. Assimilation vs. Multiculturalism: Views from a

Community in France. Sociological Forum 5.3: 387- 441. JStor. Bowling Green State University Libraries,

Bowling Green State University. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/684395> Acesso em 01 de outubro

de 2011.

Page 98: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

98

um elemento da mentalidade de assimilação: não é suficiente que os imigrantes se assimilem

se não que o façam por vontade própria. Claramente esta expectativa ignora que durante 130

anos lhes foi imposta a cultura e o idioma francês.

O obstáculo verdadeiro para os franceses são os imigrantes e seus “defeitos”

culturais. O vínculo entre o termo “imigrante” e sua associação com certos grupos étnicos

revela que certos movimentos aniimigrantes são dirigidos não à imigração no total, mas a

certos grupos de imigrantes. A questão que se tem politizado em ambos os países não é a

imigração, mas a etnicidade dos imigrantes evidente na discriminação que afeta não só aos

imigrantes originais, mas também a seus descendentes, com os mesmos atributos fenotípicos

de seus pais.

O problema principal dos magrebinos que se mudaram para França é sua religião;

o marco central de usa identidade, que no geral é muçulmana. O vínculo entre a religião e a

raça, especialmente no caso do Islamismo é muito poderoso: qualquer pessoa morena é vista

como árabe, muçulmana e argeliana.217

No geral, o Islamismo se praticava privadamente

pelos imigrantes do sexo masculino que haviam chegado sós; mas com a reunificação

familiar, aumentou a necessidade de mesquita e se introduziram os costumes familiares

islâmicos na sociedade francesa. Atualmente, na França, o Islamismo é a religião mais

praticada depois do catolicismo; e se vê como ameaça cultural, associada com o movimento

palestino e a revolução do Iran de 1970.218

O Islamismo representa também uma ameaça à neutralidade francesa, que é um

orgulho nacional. O debate sobre a burca nas escolas públicas ilustra que a Revolução

Francesa e seus valores são ainda sagrados.

Le Pen serve como exemplo mais emblemático da impossibilidade de assimilação

dos magrebis: disse que os imigrantes dos países subdesenvolvidos são “difficult to assimilate

both because of large numbers and because of their specific culturalreligious characteristics

which incite them to refuse assimilation.”219

Le Pen é ainda mais explícito quando diz que

“the nature of immigration has changed” por questões religiosas, e que o Islamismo “is

217

HARGREAVES, Alec G. Perceptions of Ethnic Difference in Post-War France., 2001, p. 14. 218

Id. Ibid., p. 15. 219

DERDERIAN, Richard L. North Africans in Contemporary France: Becoming Visible., 2004, p. 12. Em

tradução livre: “difíceis de serem assimilados, tanto pelo seu grande número, como pelas suas características

culturais e religiosas, as quais os incitam a recusar qualquer tipo de assimilação.”

Page 99: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

99

opposed to any kind of assimiliation and threatens our identity, our occidental and Christian

civilization.”220

A associação entre o Islamismo e uma incapacidade de assimilação não é nova:

quando a Argélia era ainda uma colônia francesa, os franceses consideravam sua população

árabe e muçulmana de difícil assimilação por seus “entrenched and alien Islamic beliefs.”221

Essa mentalidade também aparece nas escolas públicas, a instituição que mais promove a

cultura francesa: um professor de literatura em uma escola pública declarou que:

In France there is a problem linked to, well, children of Maghrebin descent. It’s our

culture; it’s Greco-Latin…It’s clear, you only need to take the writers of the 16th,

18th, 19th centuries. They were all educatied by the Jesuits. Let’s be clear about

this; it’s a cultural foundation that is carefully and clearly defined. You see, we are

in a system that is relatively closed, and only Indo-European. Therefore, for our

students, well, they would rather make reference to the Muslim world, and it’s not

possible because we don’t operate in that system, and when we tell them that they

have to understand this system, understand its values, they think we’re making

religious propaganda, that what we’re trying to tell them is cultural propaganda.222

Esse professor não acredita ser possível superar o abismo religioso que separa os

estudantes magrebinos dos outros. Ainda que um dos principais fundamentos da educação

pública francesa seja a liberdade de toda influência religiosa, as diferenças de religião se vêm

como obstáculo para integração dos estudantes muçulmanos dentro da sociedade dominante

francesa; vê-se, em suma, o Islamismo como uma perspectiva mundial que não é compatível

com “o europeu.”223

4.3 Repercussões sociais da dificuldade de integração

Como visto, até recentemente, a maioria esmagadora de imigrantes que vinham

para a França eram provenientes de países que compartilhavam com a França da tradição

catolicista. Hoje, contudo, a maior parte destes é oriunda de países islâmicos, ou seja,

220

Id. Ibid.., p. 12. “a natureza da imigração mudou” por questões religiosas, e que o Islamismo “se opõe a

qualquer tipo de assimilação e ameaça a nossa identidade, de civilização cristã e ocidental”

221

Id. Ibid.., p. 12. 222

KEATON, Trica Danielle. Muslim Girls and the Other France. Indianapolis: Indiana University Press,

2006, p. 106. 223

BALIBAR, Étienne. Is There a ‘Neo-Racism’?, 1991. Em tradução nossa: “Na França, há um problema

ligado a crianças descendentes dos Maghrebi. É a nossa cultura; é Greco-latina.... é clara, você apenas precisa

observar os escritores dos séculos 16, 17 e 18. Eles foram todos educados pelos jesuítas. Vamos ser claros sobre

isso; é uma base cultural cuidadosa e claramente definida. Você vê.. estamos em um sistema que é relativamente

fechado e apenas Indo-Europeu. Para nossos estudantes, portanto, eles gostariam de fazer referência ao mundo

Muslim e não é possível pois nós não pertencemos a esse sistema, e quando falarmos para entenderem nosso

sistema, seus valores, eles pensam que estamos fazendo propaganda religiosa, e que estamos querendo fazer

propaganda cultural”

Page 100: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

100

proferem religião que não tinha praticamente nenhuma expressão na França até a sua chegada,

o que lhes tem gerado dificuldades de assimilação da cultura francesa, bem como de que seus

costumes fossem bem aceitos pelos franceses.224

French culture is product of a long national and European history, which has created

a very modern civilization with very ancient roots. After more then a millennium of

Catholicism and more than a century of struggle over the role of the Church,

culminating in a 1905 law establishing secularism, the last century has been

officially and strongly secular but with many remaining Catholics and Catholic

reminders. Not just Christmas and Easter, but a number of lesser religious occasions

remain public holidays, for example, and very city and village has its old churches.

In contrast, despite the century of French occupation and influence in the Maghreb

and four decades of major Muslim residence in France, French Islam remains closer

its premodern model. Although religion as such is less pervasive than in the past and

in some Muslim countries to the east, there has been no breakout toward secularism.

[…]

Most of the immigrants ask only the thing, that they not be treated differently from

the native population. They want to be treated as everyone else and live in their own

traditions. But for the Maghrebians to live in their own traditions, France would

have to either allow a major and continuing cultural exception or adapt its own

culture, and it is willing to do neither.

Neither has French policy helped bring the mass of newcomers into the economic

mainstream. France has engaged in little of what Americans call ‘affirmative action’.

As controversial as such positive discrimination in economic and other areas is in

the United States, it runs even more strongly against the single-nation philosophy of

the French.225

Muitos dos imigrantes muçulmanos vêm do norte e oeste da África e são

visualmente reconhecidos como provenientes de fora do país por suas características

fenotípicas diferenciadas dos europeus, o que facilita a sua identificação, bem como a de seus

descendentes, diferentemente do que ocorre com os imigrantes europeus, cujo fenótipo não

difere de forma tão tenaz, podendo estes se passarem por franceses natos.226

Les Maghrébins, en fait principalement les Algériens en France, peuvent d’autant

plus être objets de répulsion qu’ils rappellent par leur présence la dernière guerre

224

LORCERIE, Françoise. L’islam comme contre-identification française : trois moments. L'Année du

Maghre. II | 2005-2006. Disponível em < http://anneemaghreb.revues.org/> Acesso em 17 de setembro de 2011. 225

LEVINE, Robert A. Assimilating immigrants, 2004. Traduzindo-se : “A cultura francesa é produto da

História Europeia e nacional, que criou uma civilização bastante moderna com raízes bem antigas. Após mais de

um milênio de catolicismo e mais de um século de luta sobre o papel da Igreja, que culminou com uma lei

estabelecendo o secularismo em 1905, o último século tem oficialmente sido secular, com muitos símbolos e

defensores do catolicismo. Não apenas o Natal ou a Páscoa, mas um grande de ocasiões de reminiscência

religiosas ainda permanecem, como feriados públicos, por exemplo, e todas as cidades apresentam suas velhas

igrejas. Em oposição, apesar de um século de ocupação francesa e influência Maghreb e das 4 décadas de

residência muslim na França, os islâmicos franceses permanecem fechados e próximos ao seu modelo pré-

moderno. Apesar de a religião ser menos penetrante que em alguns países no Leste, não houve nenhuma fuga em

relação ao secularismo . […] A maior parte dos imigrantes apenas pedem para que não sejam tratados de maneira

diferente da população local. Eles querem ser tratados como todos os outros e viver em suas próprias tradições.

Mas para os Magrebinos viverem suas próprias tradições, a França teria que permitir uma exceção grande e

contínua ou adaptar sua própria cultura, e ela não optou por nenhuma das duas alternativas.” 226

LORCERIE, Françoise. L’islam comme contre-identification française, 2005.

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101

[Guerra da Independência da Argélia] que la France a livrée (et perdue), cause d’une

blessure nationale jamais refermée.227

Controvérsias como o uso da burca, que começaram em 1989, quando três garotas

islâmicas se recusaram a remover as suas burcas nas suas escolas, têm sido sintomáticas dos

conflitos relacionados com a compatibilidade da cultura islâmica com as normas francesas.

Duvidas como o comprometimento de pessoas jovens de origem imigrante com valores da

sociedade francesa, encontraram sua mais poderosa expressão simbólica na reforma das leis

da nacionalidade francesa de 1993, que regulou a necessidade de requisição da nacionalidade

francesa pelos filhos dos imigrantes, em vez de estes a receberem, como dantes,

automaticamente.228

La France, depuis une trentaine d’années, est devenue un pays à forte immigration et

dont la composition humaine s’est profondément modifiée. La présence sur le sol

français de plus de quatre millions d’étrangers, de culture et de religions différentes

de celles de la majorité des Français, a soulevé des problèmes de voisinage,

d’assimilation et plus encore d’intégration difficiles à résoudre.

[...]

Prenons comme exemple l’antisémitisme: en France, son histoire est aussi ancienne

que celle de l’Europe tout entière. Le vieil antisémitisme d’origine chrétienne et

d’extrême droite n’a pas disparu et a toujours sa clientèle. En l’espace de deux ans,

les actes de racisme ont quadruplé et, parmi eux, les actes d’antisémitisme ont été

multipliés par six. Il semble intéressant de faire référence à un sondage réalisé par le

commission consultative nationale de droits de l’homme en 2002 qui a montré que

ceux qui professent leur haine des juifs détestent tout autant les arabes, les noirs, etc.

L’équation est par conséquent beaucoup plus complexe et doit être traitée en restant

en accord avec les valeurs républicaines français de démocratie, d’unité, de liberté,

d’égalité et laïcité.229

Nos últimos anos, as populações migrantes que se estabeleceram na França o tem

feito no contexto de alto desemprego e reestruturação econômica. As oportunidades de

incorporações socioeconômicas expressivas foram, portanto, menos abundantes que durante

os períodos anteriores. A sua integração ineficaz, desse modo, têm relação mais com

227

Id. Ibid. Em tradução livre: "Na verdade, os magrebinos, principalmente os argelinos na França, são objetos

de repulsa pois lembram, por sua presença na última guerra [Guerra da Independência da Argélia] que a França

começou (e perdeu) e por causa de uma ferida nacional nunca fechada. " 228

GASTAIGNÈDE, J. La lutte contre les discriminations raciales. In: Cuaderno del Instituto Vasco de

Criminología San Sebastian, nº 8. Extraordinario. Diecembre 1995. 229

MONT´ALVERNE, Tarin Cristino Frota. La remise encause du principe de laïcité à travers l’affaire du

foulard, 2009. Em tradução nossa: “A França, por trinta anos, se tornou um país de imigração elevada e cuja

composição humana mudou profundamente. A presença em solo francês de mais de quatro milhões de

estrangeiros de cultura e religiões diferentes da maioria dos franceses criou problemas de vizinhança, de

assimilação e mais ainda de integração difíceis de resolver. [...] Tomemos como exemplo o anti-semitismo na

França, sua história é tão antiga quanto a de toda a Europa. O velho anti-semitismo de origem cristã e de

extrema-direita não desapareceu e tem sempre seus adebtos. No período de dois anos, os atos de racismo

quadruplicaram, dentre eles os atos anti-semitas que aumentaram seis vezes. Parece interessante se referir a uma

pesquisa realizada pela Comissão Consultiva Nacional de Direitos do Homem em 2002, a qual mostrou que

aqueles que professam seu ódio aos judeus odeiam com a mesma intensidade os árabes, os negros, etc. A

equação é, portanto, muito mais complexa e deve ser tratada em consonância com os valores republicanos

franceses da democracia, da unidade, da igualdade, da liberdade e da laicidade".

Page 102: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

102

circunstancias socioeconômicas que com questões culturais entre os migrantes pós-coloniais e

seus precedentes europeus. Questões desse tipo representam menos uma reflexão das

diferenças culturais caracterizando imigrantes que uma negação francesa de incorporar os

estrangeiros.

Ainsi, il existe moins de victimes du racisme que de victimes des inégalités sociales,

ce qui conduit en retour à envisager l’intégration socio-économique des individus

comme la fin du racisme. Au fond, au-delà des raisons structurelles invoquées,

comme le chômage, l’insalubrité de l’habitat, le principal coupable identifié sans

ambages est le Front national dont les scores se font de plus en plus menaçants vers

la fin des années 1980. Ces résultats inquiétants poussent la lutte contre le racisme

dans les années 1990 à faire du parti son ennemi principal.230

De fato, há verdadeira imbricação entre o racismo e a exclusão socioeconômica. A

produção econômica forma a moldura em que as estruturas sociais e as oportunidades de vida

individual são construídas. O fato de ser possível a distinção das pessoas de origem imigrante

em virtude de características étnicas bem peculiares dificulta-lhes os mais básicos aspectos de

sua incorporação social. Sofrem, assim, de desvantagens agudas no mercado de trabalho,

sendo categorizadas como “classe inferior”. As localidades em que contenham densas

populações dessas pessoas são, inclusive, muitas vezes, rotuladas de “guetos”.231

Le terme de "banlieue" a fini par résumer cette situation sociale. Vivre en

"banlieue", c'est faire l'expérience de différentes formes de discriminations, fondées

sur l'origine nationale, ethnoculturelle et religieuse, mais aussi sur l'origine sociale :

une adresse qui ne plaît pas aux employeurs, la difficulté de se projeter par l'école

vers un avenir construit. Parce qu'elle cumule les inégalités matérielles et la

ségrégation culturelle, la "banlieue" comme espace de vie sociale rend l'accès au

marché du travail plus difficile. Les taux de chômage de ces jeunes populations

atteignent alors des proportions trois à quatre fois supérieures à la moyenne

nationale, elle-même déjà três élevée.232

230

POLI, Alexandra. Faire face au racisme en France et au Brésil : de la condamnation morale à l’aide aux

victimes, 2005. "Assim, há menos vítimas do racismo do que vítimas da desigualdade social, o que nos leva em

contrapartida a considerar a integração sócio-econômica dos individuos como o fim do racismo. Basicamente,

além das razões estruturais citadas, como o desemprego, a insalubridade da moradia, o principal culpado

identificado de forma inequívoca é o partido Front National cujos escores são cada vez mais ameaçadores dos

por volta dos anos 1980. Estes resultados inquietantes fazem da luta contra o racismo na década de 1990 o

principal inimigo do partido." (tradução nossa) 231

BIBB, Robert. Constructions et mutations de l’antiracisme en France. Journal des anthropologues. 94-95.

2003. Disponível em <http://jda.revues.org/1999> Acesso em 17 de setembro de 2011. 232

BERTOSSI, Christophe. Les Musulmans, la France, l’Europe : contre quelques faux-semblants en matière

d’intégration., 2007. Em tradução livre : "O termo ‘subúrbio’ passou a resumir esta situação social. Viver no

"subúrbio" é experimentar diferentes formas de discriminação baseadas na origem nacional, étnico-cultural e

religiosa, mas também sobre a origem social: um endereço que não agrada os empregadores, a dificuldade de ser

projetar pela escola rumo a um futuro construído. Por combinar as desigualdades materiais e a segregação

cultural, o "subúrbio", como um espaço de vida social, torna o acesso ao mercado de trabalho mais difícil. As

taxas de desemprego destes jovens atingem então proporções três a quatro vezes superiores a média nacional, em

si já muito elevada."

Page 103: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

103

Antes do congelamento do recrutamento para o trabalho imposto na França na

década de 1970, a França era caracterizada como pull factor por seus altos índices de

atividade econômica e altas taxas de emprego. Os imigrantes, como já analisado algures, eram

contratados para empregos de baixa habilidade e mal pagos. Estes compunham, portanto, essa

parte da população de trabalhadores, juntamente com os europeus que ocupavam as mais

baixas posições sociais.

Desde então, ocorreram grandes mudanças econômicas e demográficas. Na época

do censo de 1946, algo em torno de 60 % dos estrangeiros na França eram parte da força de

trabalho formal, é dizer, estavam empregados ou a procura de empregos, comparado com

54% dos nacionais. No final dos anos 1960, o estabelecimento das famílias francesas já estava

recomposta da Segunda Guerra Mundial, o que reduziu o percentual da população estrangeira

economicamente ativa para 48%, comparado com os 41% dos franceses.

Em 1990, apenas 45% da população estrangeira era economicamente ativa,

número quase idêntico ao da população nacional como um todo. Ao mesmo tempo, o

desemprego cresceu significativamente, particularmente entre os não-nacionais. Entre os

cidadãos franceses, a taxa de desemprego se manteve a 10% em 1990, sendo de 20% o da

população estrangeira.

A Tabela 5 arquiteta que, em 1999, a taxa de desemprego subiu a 12% entre os

franceses e 24% entre os estrangeiros. Enquanto a taxa dos imigrantes europeus

desempregados permaneceu similar ao dos franceses, os não-europeus sofrera aumentos bem

mais acentuados. Mais de um em três magrebinos estavam sem emprego em 1999. Entre esse

grupo, as taxas de desemprego eram pelo menos três vezes maior que entre os europeus.

Page 104: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

104

A atual crise por que passam os países europeus corrobora para elevar ainda mais

as taxas de desemprego referentes aos emigrantes estrangeiros, bem como para mantê-los

submetidos a empregos inseguros e subvalorizados (Tabelas 6 e 7). Transformaram-se, assim,

em um verdadeiro exercito de trabalhadores em reserva.233

Ademais, existe evidência

crescente de que a segunda geração de membros de minorias pós-coloniais tendem a ocupar

uma posição social similar a dos seus pais, ocorrendo verdadeira estratificação social.

A força de trabalho estrangeira tem sido tradicionalmente representada no setor

industrial. Em 1975, dois terços dos trabalhadores estrangeiros possuíam empregos

industriais, incluindo mais de um quarto na indústria de construção. Em contraste, cerca de

metade dos franceses estavam empregados no setor de serviços (Tabela 6). Muitos desses

deixaram empregos industriais durante o boom pós-guerra, abocanhando oportunidades mais

atraentes no setor terciário. Os empregos menos desejáveis localizados no setor industrial

foram preenchidos pelos imigrantes estrangeiros. Em 1990, quase dois terços dos franceses

estavam empregados no setor de serviços. Ademais, pesquisas apontam que “un candidat

maghrébin reçoit cinq fois moins de réponses positives, à curriculum vitae (CV) identiques,

qu'un candidat au nom à consonance française.”234

233

CATHERINE, Haguenau-Moizard. La lutte contre le racisme par le droit en France et au Royaume-Uni.

In: Revue internationale de droit comparé. Vol. 51 N°2, abril-junho, 1999. pp. 347-366. 234

BERTOSSI, Christophe. Les Musulmans, la France, l’Europe : contre quelques faux-semblants en matière

d’intégration, 2007.

Page 105: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

105

Moradia e emprego estão ligados em duas maneiras principais. As oportunidades

de moradia são pesadamente condicionadas pelo nível da renda, o que depende,

primariamente, do emprego. A população imigrante francesa, está pesadamente concentrada

em áreas urbanas (Gráfico 16) o que reflete a predominância histórica do emprego industrial

entre os não nacionais.

Apenas 10% dos imigrantes vivem em áreas rurais, comparados com 26% dos não

imigrantes. Os imigrantes estão concentrados nas grandes cidades, formando a Ile de France,

a maior conurbação da França, que acolhe 37,5% da população imigrante, comparando com

metade da população em geral de nacionais.

los inmigrantes no sabían cómo encontrar las viviendas. En las condiciones en las

cuales vivían, los dueños no confiavam en ellos y por eso les alquilaron casas al

mayor precio que franceses, y a los franceses el gobierno les dio prioridad en vivir

en viviendas administradas por el Estado. Por lo tanto, los bidonvilles, o chabolas,

crecieron en las afueras de las grandes ciudades.235

235

TAGMAN, Jeffrey M. El reparte de nations: instituitiones y políticas de inmigracion en Francia y en los

Estados Unidos. Westport, CT: Praeger, 2002, p. 88. Em tradução livre : “os imigrantes não sabiam como

Page 106: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

106

A discriminação, como já referido, não se restringe aos imigrantes, mas afeta,

sobretudo, seus descendentes. Em pesquisa realizada pelo ISEE, em que se perguntava “você

já se sentiu discriminado em razão da origem em alguma situação ?”, os descendentes de

imigrantes não-europeus foram mais enfáticos nas respostas que os próprios imigrantes, veja-

se o gráfico 17.

encontrar moradia. Nas condições em que viviam, os donos não confiavam nele e por isso alugavam as casas em

preço maior para eles que para os franceses, e o governo a estes o governo dava prioridade para morar em

habitações administradas pelo Estado. Por isso, as favelas ou cortiços cresceram nas periferias das grandes

cidades.”

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5 O COMBATE ÀS DISCRIMINAÇÕES RACIAIS NO BRASIL E NA FRANÇA: AS

AÇÕES AFIRMATIVAS NOS RESPECTIVOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS

“O Brasil do futuro será exatamente do tamanho

daquilo que juntos fizermos por ele hoje, do

tamanho da participação de todos e de cada um,

dos movimentos sociais, dos que labutam no

campo, dos profissionais liberais, dos

trabalhadores e dos pequenos empreendedores,

dos intelectuais, dos servidores públicos, dos

empresários, das mulheres, dos negros, dos

índios, dos jovens, de todos aqueles que lutam

para superar distintas formas de discriminação. ”

(1º de janeiro de 2011, primeiro pronunciamento

de Dilma Rousseff após eleita presidente da

República Federativa do Brasil)

“Faire vivre ensemble tous les Français sans

distinction d'origine, de parcours, de lieux, de

résidence, autour des mêmes valeurs celles de la

République. Tel est mon impérieux devoir. Quel

que soit notre âge, quelles que soient nos

convictions, où que nous vivions dans l'Hexagone

ou dans les outre-mer, dans nos villes, dans nos

quartiers, dans nos territoires ruraux, nous

sommes la France”

(6 de maio de 2012, pronunciamento de François

Hollande após investido no cargo de Presidente

da República Francesa)

Assentado o arrazoado em que se contemplaram as realidades das minorias étnicas

de negro no Brasil e de imigrantes africanos e seus descendentes na França, toca-se,

doravante, perquirir como as referidas nações têm, por meio de arsenal normativo, combatido

tal intemperismo subjetivo, e bem assim, a que nível se encontra a recepção das medidas de

ação afirmativa em cada pátria.

5.1 A recepção das ações afirmativas pelo direito brasileiro

Aqui tem lugar estudo relativo à concepção doutrinária, legislativa e

jurisprudencial acerca das ações afirmativas, bem como são relacionados de dispositivos

constitucionais e infraconstitucionais em que dormitam medidas engendradas na noção que

alberga o instituto.

Page 109: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

109

5.1.1 O texto constitucional brasileiro e a positivação da igualdade material

No plano jurídico, o Direito Constitucional vigente no Brasil é, segundo

entendimento majoritário da doutrina e do Supremo Tribunal Federal, perfeitamente

compatível com o princípio da ação afirmativa. Melhor dizendo, o Direito brasileiro já

contempla algumas modalidades de ação afirmativa, inclusive em sede constitucional.

Note-se, mais uma vez, que este tipo de comportamento estatal [ação afirmativa] não

é estranho ao Direito brasileiro pós-Constituição de 1988. Ao contrário, a

imprescindibilidade de medidas corretivas e redistributivas visando a mitigar a

agudeza da nossa questão social já foi reconhecida em sede normativa, através de

leis vocacionadas a combater os efeitos nefastos de certas formas de discriminação.

Nesse sentido, é importante frisar, o Direito brasileiro já contempla algumas

modalidades de ação afirmativa. Não obstante tratar-se de experiências ainda tímidas

quanto ao seu alcance e amplitude, o importante a ser destacado é o fato da acolhida

desse instituto jurídico em nosso Direito.236

A Constituição Federal brasileira de 1988 abriga a igualdade tanto na sua vertente

material quanto formal. Mesmo sistematicamente antes da positivação do artigo 5º caput, que

trata do princípio constitucional da igualdade, no Preâmbulo237

e no artigo 3º,238

a

Constituição de 1988 já ressalta a busca por uma sociedade justa, pluralista e sem

preconceitos.

A Constituição Brasileira de 1988 tem, no seu preâmbulo, uma declaração que

apresenta um momento novo no constitucionalismo pátrio: a ideia de que não se tem

a democracia social, a justiça social, mas que o Direito foi ali elaborado para que se

chegue a tê-los [...] Verifica-se que todos os verbos utilizados na expressão

normativa [artigo 3º] – construir, erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale

dizer, designam um comportamento ativo.”239

236

GOMES, Joaquim B. Barbosa. A recepção do instituto da Ação Afirmativa no Direito Constitucional

Brasileiro. Revista de Informação Legislativa do Senado Federal. 2002. 237

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um

Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a

segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade

fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e

internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (grifou-se) 238

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade

livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e

reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,

sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

239

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação Afirmativa. O Conteúdo democrático do princípio da igualdade

jurídica. op. cit., p. 289.

Page 110: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

110

Imperioso é ainda trazer outros dispositivos que consubstanciam a igualdade

material e repudiam o preconceito, bem como a prática do racismo. O artigo 1º, III240

eleva a

busca da dignidade humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. O

artigo 5º, XLI e XLII241

determina que a serão punidas quaisquer discriminações atentatórias

aos direitos fundamentais, e torna o crime de racismo inafiançável e imprescritível.

Os incisos XX e XXXI242

do artigo 7º determinam a proteção ao mercado de

trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, bem como a proibição de qualquer

discriminação no tocante a salario e critérios de admissão do trabalhador portador de

deficiência. O artigo 37, VIII243

determina que a lei reservará percentual dos cargos e

empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência.

O artigo 23, II e X244

garante que a prestação de saúde e assistência pública, a

proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência, o combate das causas da pobreza e

dos atores de marginalização, com a integração social dos setores desfavorecidos são de

competência administrativa comum entre os entes federativos; e bem assim o art. 24 XIV,245

trata da competência legislativa concorrente entre as entidades federadas no que tange à

proteção e integração das pessoas portadoras de deficiência.

No artigo 170, IX,246

dormitam dois dos princípios da ordem econômica, qual

sejam, o que almeja a redução das desigualdades sociais e regionais, além daquele que impõe

tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e

que tenham sua sede e administração no país.

240

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do

Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade

da pessoa humana; 241

XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; XLII - a prática

do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; 242

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição

social: [...] XX - proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;

[...] XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador

portador de deficiência; 243

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e

eficiência e, também, ao seguinte: [...] VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as

pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão; 244

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...] II - cuidar

da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; [...] X - combater as

causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos. 245

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...] XIV -

proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência; 246

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim

assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

[...] VII - redução das desigualdades regionais e sociais; [...] IX - tratamento favorecido para as empresas de

pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Page 111: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

111

O artigo 227, § 1º, II247

preza pela criação de programas especiais de integração

social dos adolescentes e dos portadores de deficiência.

O princípio da igualdade resplandece sobre quase todos os outros acolhidos como

pilastras do edifício normativo fundamental alicerçado. É guia não apenas de regras,

mas de quase todos os outros princípios que informam e conformam o modelo

constitucional positivado, sendo guiado apenas por um, ,ao qual se dá a servir: o da

dignidade da pessoa humana.248

O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias249

trata da

emissão de títulos para imissão de posse aos remanescentes das comunidades dos quilombos.

Este dispositivo constitui uma reparação histórica aos descendentes africanos que residem

nessas localidades. Conclui o Professor Joaquim Barbosa:

Vê-se, portanto, que a Constituição Brasileira de 1988 não se limita a proibir a

discriminação, afirmando a igualdade, mas permite, também, a utilização de

medidas que efetivamente implementem a igualdade material. E mais: tais normas

propiciadoras da implementação do princípio da igualdade se acham precisamente

no Título I da Constituição, o que trata dos Princípios Fundamentais da nossa

República, isto é, cuida-se de normas que informam todo o sistema constitucional,

comandando a correta interpretação de outros dispositivos constitucionais.250

O Brasil é também signatário da Convenção Internacional Sobre Eliminação de

Todas as Formas de Discriminação Racial. Tal diploma estabelece, em suma, que não serão

consideradas de discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de

assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que

necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos

igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais

medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes

grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.251

247

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com

absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,

à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda

forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 1º O Estado promoverá

programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de

entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos: [...] II -

criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física,

sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante

o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a

eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação. 248

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad,

2000, p. 380. 249

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida

a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. 250

GOMES, Joaquim B. Barbosa. op. cit. 2002. 251

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação Afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade

jurídica. op. cit., p. 289.

Page 112: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

112

5.1.2 As ações afirmativas na legislação infraconstitucional

A legislação brasileira infraconstitucional também contempla diversos

dispositivos que tratam da ampliação objetiva das prestações públicas e privadas para a

consecução da igualdade material.

O Decreto-lei nº 5.45243 (Consolidação das Leis do Trabalho) prevê, em seu art.

354252

, que deve haver cota de dois terços de brasileiros para empregados de empresas

individuais ou coletivas. No artigo 373-A,253

estabelece, outrossim, a adoção de políticas

destinadas a corrigir as distorções responsáveis pela desigualação de direitos entre homens e

mulheres.

A Lei 8.11290 fixou no seu artigo 5º, § 2º254

cotas de até 20% para os portadores

de deficiência no setor público civil da União. A Lei 8.21391 prescreve, em seu artigo 93,255

cotas para os portadores de deficiência no setor privado. A Lei 8.66693 estabelece, no artigo

24, XX256

a inexigibilidade de licitação para contratação de associações filantrópicas de

252

Art. 354 - A proporcionalidade será de 2/3 (dois terços) de empregados brasileiros, podendo, entretanto, ser

fixada proporcionalidade inferior, em atenção às circunstâncias especiais de cada atividade, mediante ato do

Poder Executivo, e depois de devidamente apurada pelo Departamento Nacional do Trabalho e pelo Serviço de

Estatística de Previdência e Trabalho a insuficiência do número de brasileiros na atividade de que se tratar. 253

Art. 373-A. Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções que afetam o acesso da

mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades estabelecidas nos acordos trabalhistas, é vedado: I -

publicar ou fazer publicar anúncio de emprego no qual haja referência ao sexo, à idade, à cor ou situação

familiar, salvo quando a natureza da atividade a ser exercida, pública e notoriamente, assim o exigir; II - recusar

emprego, promoção ou motivar a dispensa do trabalho em razão de sexo, idade, cor, situação familiar ou estado

de gravidez, salvo quando a natureza da atividade seja notória e publicamente incompatível; III - considerar o

sexo, a idade, a cor ou situação familiar como variável determinante para fins de remuneração, formação

profissional e oportunidades de ascensão profissional; IV - exigir atestado ou exame, de qualquer natureza, para

comprovação de esterilidade ou gravidez, na admissão ou permanência no emprego; V - impedir o acesso ou

adotar critérios subjetivos para deferimento de inscrição ou aprovação em concursos, em empresas privadas, em

razão de sexo, idade, cor, situação familiar ou estado de gravidez; VI - proceder o empregador ou preposto a

revistas íntimas nas empregadas ou funcionárias. Parágrafo único. O disposto neste artigo não obsta a adoção de

medidas temporárias que visem ao estabelecimento das políticas de igualdade entre homens e mulheres, em

particular as que se destinam a corrigir as distorções que afetam a formação profissional, o acesso ao emprego e

as condições gerais de trabalho da mulher. § 2o Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se

inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência

de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no

concurso. 254

§ 2o Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para

provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais

pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso. 255

Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a

5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência,

habilitadas, na seguinte proporção: I - até 200 empregados, 2%; II - de 201 a 500, 3%; III - de 501 a 1.000, 4%;

IV - de 1.001 em diante, 5%. 256

Art. 24. É dispensável a licitação: [...] X - na contratação de associação de portadores de deficiência física,

sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, por órgãos ou entidades da Administração Pública, para a

Page 113: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

113

portadores de deficiência. A Lei 9.50497 preconiza, em seu artigo 10 § 2º,257

cotas para

mulheres nas candidaturas partidárias. A Lei 10.63903 dispõe sobre a inclusão, no currículo

oficial da Rede de Ensino, da temática História e Cultura Afro-brasileira. A Lei 11.09605

institui o Programa Universidade para todos (PROUNI), e no seu artigo 7º, II,258

estabelece

que o percentual de bolsas de estudo destinado à implementação de política afirmativas de

acesso ao ensino superior de portadores de deficiência ou de autodeclarados indígenas e

negros.

Por fim, a lei 12.288 de julho de 2010 institui o Estatuto da Igualdade Racial,259

o

qual alberga, dentre outras garantias, efetivação de políticas voltadas para a inclusão da

população negra no mercado de trabalho,260

e a igualdade de tratamento no ambiente de

trabalho.261

Tal Estatuto criou, ainda, o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial

(Sinapir).262

Há, ademais projetos de lei nesse sentido tramitando no Congresso Nacional:263

prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obra, desde que o preço contratado seja compatível com o

praticado no mercado. 257

Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa,

Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, até cento e cinquenta por cento do número de lugares a

preencher. [...] § 2º Nas unidades da Federação em que o número de lugares a preencher para a Câmara dos

Deputados não exceder de vinte, cada partido poderá registrar candidatos a Deputado Federal e a Deputado

Estadual ou Distrital até o dobro das respectivas vagas [...] 258

Art. 7o As obrigações a serem cumpridas pela instituição de ensino superior serão previstas no termo de

adesão ao Prouni, no qual deverão constar as seguintes cláusulas necessárias:[...] II - percentual de bolsas de

estudo destinado à implementação de políticas afirmativas de acesso ao ensino superior de portadores de

deficiência ou de autodeclarados indígenas e negros. 259

Art. 1o Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da

igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à

discriminação e às demais formas de intolerância étnica. 260

Art. 38. A implementação de políticas voltadas para a inclusão da população negra no mercado de trabalho

será de responsabilidade do poder público, observando-se: I - o instituído neste Estatuto; II - os compromissos

assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Racial, de 1965; III - os compromissos assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção no 111, de

1958, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata da discriminação no emprego e na profissão;

IV - os demais compromissos formalmente assumidos pelo Brasil perante a comunidade internacional. 261

Art. 39. O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de

trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da

igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e

organizações privadas. 262

Art. 47. É instituído o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) como forma de

organização e de articulação voltadas à implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar

as desigualdades étnicas existentes no País, prestados pelo poder público federal. Art. 48. São objetivos do

Sinapir: I - promover a igualdade étnica e o combate às desigualdades sociais resultantes do racismo, inclusive

mediante adoção de ações afirmativas; II - formular políticas destinadas a combater os fatores de marginalização

e a promover a integração social da população negra; III - descentralizar a implementação de ações afirmativas

pelos governos estaduais, distrital e municipais; IV - articular planos, ações e mecanismos voltados à promoção

da igualdade étnica; V - garantir a eficácia dos meios e dos instrumentos criados para a implementação das ações

afirmativas e o cumprimento das metas a serem estabelecidas. 263

O PL 1.86699 estabelece medidas compensatórias para os negros diante da necessidade de se alcançar uma

igualdade social; O PL 3.00400 reserva 20% das vagas de universidades públicas para os negros por um período

de 10 anos; O PL3.14700 busca reservar 10% do total de vagas nas empresas para os trabalhadores negros; O PL

3.43500 pretende instituir, de maneira inédita, cotas para candidaturas dos negros nas eleições; O PL 5.23901

Page 114: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

114

5.1.3 A doutrina constitucional brasileira e o posicionamento acerca das ações afirmativas

Ainda que a maior parte da doutrina posicione-se de forma favorável, ainda há

juristas que rejeitam a receptividade das medidas de ação afirmativa pelo ordenamento pátrio.

Talvez uma das questões mais relevantes da discussão seja em que medida o Estado pode

compelir atores públicos e privados beneficiários de recursos públicos a conformarem seus

atos e políticas ao ideal de equidade de um projeto democrático.

O cerne da questão reside em saber se na implementação do princípio constitucional

da igualdade o Estado deve assegurar apenas uma certa “neutralidade processual”

(procedural due processo f law) ou, ao contrário, se sua ação deve-se encaminhar de

preferência para a realização de uma igualdade de resultados.264

Para Joaquim Gomes Barbosa, autor dos mais defensores da implementação das

discriminações positivas no Brasil, se o princípio da igualdade material é aceito como

mecanismo de combate às múltiplas formas de discriminação (mulheres e deficientes, por

exemplo), haverá de ser aceito para combater aquela que é a “mais arraigada forma de

discriminação entre nós, a que tem maior impacto social, econômico e cultural, a

discriminação de cunho racial.”265

Citando o professor Arruda Falcão, Gomes assevera que a justificação do

estabelecimento da diferença seria uma condição sine qua non para a constitucionalidade da

diferenciação, com o intuito de evitar a inconstitucionalidade.266

Para tanto, a justificação deve ter um fundamento razoável para a diferenciação; a

motivação deve ser objetiva, racional e suficiente; e deve ser proporcional, ou seja, a

diferenciação deve ser um reajuste de situações desiguais. Sustenta que a diferenciação deve:

a) decorrer de um comando-dever constitucional, no sentido de obedecer a uma norma

deseja indenizar a população negra pelos danos da escravidão em território nacional; O PL 6.21302 e PL 621402

o primeiro institui incentivos para que os estudantes nefros alcancem a educação infantil, o ensino fundamental e

o ensino médio nas escolas públicas. Já o segundo estabelece cota mínima de 20% das vagas para os negros e

índios nas universidades estaduais e federais; O PL 6.91202 institui ações afirmativas pelo prazo de 50 aos para

os afrodescendentes com cota de 20% n preenchimento de cargos e empregos públicos, no acesso às vagas de

universidades públicas e privadas e nos contratos do FIES, amém de estabelecer que os partidos políticos e as

coligações partidárias terão que incentivar a candidatura dos negros aos cargos eletivos; O PL 588205 impõe

ações afirmativas no mercado de trabalho às empresas que deverão contratar negros na população da região onde

estiverem localizadas; O PL 1736 estabelece cota de no mínimo 50% das vagas nas instituições públicas federais

de ensino técnico, agrotécnico, tecnológico, e científico, nos níveis de ensino médio e superior, para aqueles que

tenham cursado em sua integralidade o ensino público. Disponíveis em: www.senado.gov.br Acesso em:

10.04.1012. 264

GOMES, op. cit., 2000, p. 139. 265

Id., Ibid. 266

Id., Ibid.

Page 115: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

115

programática que determina a redução das desigualdades sociais; b) ser específica,

estabelecendo claramente aquelas situações ou indivíduos que serão “beneficiados” com a

diferenciação; e c) ser eficiente, ou seja, é necessária a existência de um nexo causal entre a

prioridade legal concedida e a igualdade socioeconômica pretendida.267

Após tais fundamentações, o professor conclui, posicionando-se favorável às

medidas afirmativas:

No plano estritamente jurídico (que se subordina, a nosso sentir, à tomada de

consciência assinalada nas linhas anteriores), o Direito Constitucional vigente no

Brasil, é perfeitamente compatível com o princípio da ação afirmativa. Melhor

dizendo, o Direito brasileiro já contempla algumas modalidades de ação afirmativa,

inclusive em sede constitucional. [...] Assim, à luz desta respeitável doutrina, pode-

se concluir que o Direito Constitucional brasileiro abriga, não somente o princípio e

as modalidades implícitas e explícitas de ação afirmativa a que já fizemos alusão,

mas também as que emanam dos tratados internacionais de direitos humanos

assinados pelo nosso país.268

Muitos doutrinadores no Brasil, a exemplo de Lucena de Menezes, defendem a

tese de que, excetuando-se as limitações estruturais que o sistema jurídico romano-germânico

impõe à atuação do Poder Judiciário, o ordenamento jurídico brasileiro tem amplo espaço

para o desenvolvimento de políticas de ação afirmativa, tanto públicas como privadas.269

De inicio, verifique-se que a Constituição Federal do Brasil contempla valores,

objetivos e princípios balizadores que autorizam a instituição de diferenciações

jurídicas voltadas para o estabelecimento de uma igualdade não apenas formal, mas

também material. Essa distinção inicia-se pelo caput do preceito que dispõe acerca

dos direitos e garantias fundamentais que trata da igualdade em dias passagens em

com sentidos diversos.270

Sustenta, pois, que o estabelecimento de diferenças no plano legal deve ser

analisado levando-se em conta não apenas o elemento de distinção adotado, mas também a

relação que este mantem com as diferenças estabelecidas juridicamente, a qual deve ser

pertinente, razoável e proporcional. Tal entendimento é convergente como de muitos juristas

de relevo, tais como Marco Aurélio Mello,271

Marcelo Neves,272

Flávia Piovesan,273

Carlos

Roberto de Siqueira Castro274

e Hédio Silva Jr.275

267

Id., Ibid. 268

Id., Ibid. 269

MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa: os modelos jurídicos internacionais e a experiência

brasileira. Revista dos Tribunais. Ano 92, 2003. 270

Id., Ibid. 271

“E, aí, a Lei Maior é aberta com o artigo que lhe revela o alcance: constam como fundamentos da República

Brasileira a cidadania e a dignidade da pessoa humana, e não nos esqueçamos jamais de que os homens não são

feitos para as leis; as leis é que são feitas para os homens. Do artigo 3º vem-nos luz suficiente ao agasalho de

uma ação afirmativa, a percepção de que o único modo de se corrigir desigualdades é colocar o peso da lei, com

a imperatividade que ela deve ter em um mercado desequilibrado, a favor daquele que é discriminado, que é

tratado de forma desigual.” MELLO, Marco Aurélio. Ótica Constitucional: a Igualdade e as Ações Afirmativas,

Page 116: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

116

O professor Paulo Gustavo Gonet Branco, por seu turno, defende a adoção do

fator racial como critério de diferenciação, desde que cumpra três requisitos, a saber, a)

devem ter finalidade justa, do ponto de vista dos valores constitucionais; b) devem ter o

sentido de resposta a uma agressão sofrida por um grupo, capaz de se opor ao pleno

desenvolvimento das suas capacidades; e c) que os efeitos da discriminação do passado ainda

sejam atuais, admitindo-se a prova disso por meio de dados estatísticos.

Já no magistério de Sérgio Martins, a Constituição Federal de 1988 inaugurou na

tradição constitucional brasileira o reconhecimento de desigualdade material vivida por

alguns setores e propõe medidas de proteção, que implicam a presença positiva do Estado.

Para ele só é permitido discriminar positivamente as categorias estabelecidas no próprio texto

durante o Seminário Discriminação e Sistema Legal Brasileiro, Discurso no Tribunal Superior do Trabalho,

20 de novembro de 2001. Disponível em: www.stf.jus.br Acesso em: 10.04.12 272

“Quanto mais se sedimenta historicamente e se efetiva a discriminação social negativa contra grupos étnico-

raciais específicos, principalmente quando elas impliquem obstáculos relevantes ao exercício de direitos, tanto

mais se justifica a discriminação jurídica positiva em favor dos seus membros, pressupondo-se que esta se

oriente no sentido da integração igualitária de todos no Estado e na sociedade. (...) as discriminações legais

positivas em favor da integração de negros e índios estão em consonância com os princípios fundamentais da

República Federativa do Brasil, estabelecidos nos incisos III e IV do seu artigo 3º.” NEVES, Marcelo. Estado

democrático de direito e discriminação positiva: um desafio para o Brasil" In MAIO, Marcos C; SANTOS,

Ricardo V. (orgs). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil, 1996. 273

“Se o combate à discriminação é medida emergencial à implementação do direito à igualdade, todavia, por si

só, é medida insuficiente. Faz-se necessário combinar a proibição da discriminação com políticas compensatórias

que acelerem a igualdade enquanto processo. Para assegurar a igualdade, não basta apenas proibir a

discriminação, mediante legislação repressiva, pois a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta

automaticamente na inclusão.” PIOVESAN, F. A compatibilidade das cotas raciais com a ordem internacional e

com a ordem constitucional brasileira. In: Audiência pública sobre políticas de ação afirmativa de reserva de

vagas no ensino superior. 2010, Brasília. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa>.

Acesso em: 10.04.1012. 274

“Ressalte-se, portanto, que a ação afirmativa tem como objetivo não somente coibir a discriminação mas

sobretudo eliminar os chamados "efeitos persistentes" da discriminação do passado, que tendem a perpetuar.

Ainda nesse contexto, revela destacar que se partindo da premissa de que os grupos minoritários normalmente

não são representados ou sub-representados nos mais diversos ramos de atividade, as

ações afirmativas pretendem a implantação de uma certa diversidade e de uma maior representatividade dos

grupos minoritários nos mais diversos domínios de atividade pública e privada. Nesse contexto, destaque-se que

o efeito mais visível das políticas afirmativas, além do estabelecimento da diversidade e da representatividade

propriamente ditas, é a eliminação de "barreiras invisíveis" que acabam por impedir o avanço de negros e

mulheres, independentemente da existência ou não de política oficial tendente a subordiná-los. [...] A adoção de

cotas para ingresso de estudantes negros em universidades brasileiras afigura-nos como uma necessária medida

para solucionar o desproporcional quadro do ensino superior em nosso País.” CASTRO, Carlos Roberto de

Siqueira. Constituição aberta e os direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 275

“Salvo engano, é certo que a Constituição de 1988, implícita e explicitamente, não apenas admitiu como

prescreveu discriminações, a exemplo da proteção do mercado de trabalho da mulher (artigo 7o, XX) e da

previsão de cotas para portadores de deficiência (artigo 37, VIII), donde se conclui que a noção de igualdade

circunscrita ao significado estrito de não-discriminação foi contrapesada com uma nova modalidade de

discriminação, visto como, sob o ângulo material, substancial, o princípio da igualdade admite sim a

discriminação, desde que o discrímen seja empregado com a finalidade de promover a igualização.” SILVA

JUNIOR, Hédio. Direito de igualdade racial: aspectos constitucionais, civis e penais: doutrina e jurisprudência.

São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 112.

Page 117: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

117

constitucional, os demais casos seriam objeto de contestação através da ação direta de

inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.276

Por fim, não se pode deixar de mencionar que a doutrina nacional não é em todo

afinada em reconhecer a compatibilidade da Constituição de 1988 com as medidas de

discriminação positiva. Tal entendimento dissonante é, por exemplo, defendido por Rosimeiro

Pereira Leal:

Na atualidade, máxime no sistema da Civil-Law em que se adota o princípio de

reserva legal, é, no direito brasileiro, espúria a expressão ação afirmativa, porque

não estando expressamente incluída na tipologia da procedimentalidade com thelos

vinculado ao decido processo constitucional, cuida de conteúdos restritos à

empolgante ideologia de seus defensores que, ao afirmarem que o direito à diferença

é essencial à efetivação da igualdade procedimental, ficam desatentos ao que seja

igualdade procedimental na teoria do processo e ao que seja direito à diferença na

constitucionalidade democrática. Não é o reconhecimento de um direito à diferença

que torna efetiva a igualdade (isonomia) como pressuposto da construção e

aplicação normativa que torna os diferentes iguais em direitos fundamentais,

dispensando um insólito direito à diferença a ser resgatado por ações afirmativas

inerentes a um aparato judicial, administrativo ou social de mentes sensíveis,

heroicas ou vanguardistas.277

5.1.4 A jurisprudência brasileira

Dentre a infinidade de ações judiciais e administrativas pertinentes ao tema,

elegeram-se os três seguintes sinistros envolvendo o assunto, para ora pormenorizar-se, dada a

amplitude da reverberação de seus efeitos na realidade nacional.

5.1.4.1 O contencioso da Universidade Estadual do Rio de Janeiro

O Estado do Rio de Janeiro foi pioneiro na criação do sistema de cotas destinado a

regular o acesso, via concurso vestibular, dos estudantes de ensino médio aos cursos

oferecidos pelas universidades públicas estaduais. O conjunto normativo era composto

inicialmente por três leis estaduais: 3.524, de 28.12.00; 3.708, de 09.11.01; e 4.061, de

02.01.03.

A lei estadual 3.524 de 2000 estabeleceu o seguinte mecanismo:

Art. 2º. As vagas oferecidas para acesso a todos os cursos de graduação da

Universidades Públicas Estaduais serão preenchidas observados os seguintes

critérios:

276

MARTINS, S. da S. ação afirmativa e desigualdade racial no Brasil. Estudos Feministas. IFCS/UFRJ-

PPCIS/Uerj, v. 4, n.1, p.202-208, 1996. 277

LEAL, Rosimeiro Pereira. Isonomia processual e igualdade fundamentao a propósito das retóricas ações

afirmativas. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: v. 47, n. 2, 2003.

Page 118: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

118

I – 50% (cinquenta por cento), no mínimo, por curso e turno, por estudantes que

preencham cumulativamente os seguintes requisitos:

a) Tenham cursado integralmente os ensino fundamental e médio em instituições da

rede pública dos Municípios e ou do Estado;

b) Tenham sido selecionados em conformidade com o estabelecido no art, 1º desta

Lei.

II – 5% por estudantes selecionados em processo definido pelas Universidades,

segundo a legislação vigente.

Em seguida, foi editada a Lei 3.708 de 2001, a qual criou sistema mínio de cotas

para os vestibulandos que se autodeclarassem negros ou pardos:

art. 1º Fica estabelecida a cota mínima de até 40% para as populações negra e parda

no preenchimento das vagas relativas aos cursos de graduação da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro – UERJ e da Universidade Estadual do Norte Fluminense –

EUNF

Parágrafo Único. Nesta cota mínima, incluídos também os negros e pardos

beneficiados pela Lei n. 3.524.

O sistema de reserva de vagas contemplou os portadores de deficiência física por

meio da Lei estadual n. 4.061 de 2003:

art. 1º. A Universidades Públicas Estaduais deverão reservar 10% das vagas

oferecidas em todos os seus cursos para alunos portadores de deficiência.

Paragrafo Único. As vagas oferecidas nesta Lei serão tomadas dentre aquelas

ofertadas aos alunos egressos da rede pública de ensino do Estado ou dos

Municípios, conforme dispões a Lei n. 3.524

A experiência gerou muitas controvérsias no que se refere à eficácia do benefício

para alunos carentes. Ademais, questões relativas ao uso do fator racial, mérito,

proporcionalidade e igualdade foram utilizadas como argumento para a propositura de mais

de 200 mandados de segurança com pedido de liminar. A Constitucionalidade das leis foi

questionada tanto na Justiça Estadual quanto no Supremo Tribunal Federal. Foi também

proposta uma ação civil pública em benefício de todos os alunos prejudicados pelo sistema de

cotas. As controvérsias em torno do sistema levara a Assembleia Legislativa a formar uma

Comissão para rever o modelo de acesso adotado.278

O sistema de cotas foi aplicado no vestibular da UERJ de 2002. Oitocentos e

quarenta negros ou pardos entraram sem utilizar a cota e as vagas reservadas para alunos de

escola pública viabilizaram a entrada de setecentos e noventa e sete alunos negros ou pardos.

Para completar o percentual das cotas, foi necessário selecionar mais 331 candidatos negros

ou pardos. Inconformada com a imposição do sistema de cotas, e considerando que as leis

278

CESAR, Raquel Coelho Lenz. Ações Afirmativas: e agora doutor? SBPC: Instituto Ciência Hoje, n 195,

jul.2003, p. 26-32, v. 33.

Page 119: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

119

representavam uma imposição que feria sua autonomia, a UERJ solicitou à Assembleia

Legislativa que mudasse a lei para 20% de negros, 20% de escola pública e 5% para

deficientes físicos e outras minorias.279

Ademais, a Lei 3.524 de 2000 foi impugnada perante o Tribunal de Justiça

daquele estado em face de alegada contrariedade a dispositivos da Constituição Estadual do

Rio de Janeiro, por meio da Representação por Inconstitucionalidade n. 20.2003. O Tribunal

concedeu Medida Cautelar suspendendo a eficácia da referida lei por ofensa ao art. 9º, § 1º da

Constituição Estadual (princípio da igualdade) e art. 5º caput e 208, V da Constituição

Federal.

Concomitantemente, foi proposta Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI

2858-8) pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) perante

a Suprema Corte brasileira, visando à declaração de inconstitucionalidade das três leis

supracitadas, por ofensa ao princípio constitucional da proporcionalidade e os artigos 5º

caput, XXIV, 206, I e 208, V, todos da Constituição Federal.280

A ADI 2858-8, contudo, perdeu o objeto em razão da revogação das Leis 3.524,

3.708 e 4.061 pelo art. 7º da Lei Estadual 4.151 de setembro de 2003. O Ministro Carlos

Velloso (Relator) aduziu que, “revogada a lei arguida de inconstitucionalidade, é de se

reconhecer, sempre a preda de objeto da ação direta; revelando-se indiferente, para esse

efeito, a constatação, ainda casuística, de efeitos residuais concretos pelo ato normativo”.281

O sistema de cotas da UERJ voltou a ser analisado pelo Supremo, novamente sem

julgamento do mérito, no Agravo de Instrumento 547.555 (o qual inadmitiu Recurso

Extraordinário), tendo como Relator o Ministro Sepúlveda Pertence:

Ocorre que a impetrante obteve o 356º na classificação do concurso, de forma que,

caso não houvesse reserva de vagas, ainda haveria ao menos 310 candidatos melhor

classificados que a impetrante, que teriam direito a ingressar no curso de Medicina

antes dela.

Assim, não há questão constitucional a ser dirimida na espécie, mas apenas

premissas de fato apresentadas no acordão recorrido, cujo reexame é inviável por

meio do recurso extraordinário.282

279

FRY, Peter. A persistência da raça. Ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África autral. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 325. 280

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2858-8.

Disponível em: www.stf.jus.br Acesso em: 10.04.1012. 281

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Decisão Monocrática Final da Ação Direta de Inconstitucionalidade

2858-8. Disponível em: www.stf.jus.br Acesso em: 10.04.1012. 282

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento 547.555. Disponível em: www.stf.jus.br Acesso

em: 10.04.1012.

Page 120: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

120

O Poder Judiciário do Rio de Janeiro, no exame do vasto contencioso em torno do

sistema de cotas para acesso às universidades estaduais, tem sido cuidadoso em assegurar

vaga somente aos candidatos que teriam sido aprovados se as cotas não existissem,

prestigiando a condição meritória individual, como se pode perceber da transcrição dos

julgados do TJ.RJ:

Duplo grau obrigatório de jurisdição. Reserva de cotas para negros e pardos.

Concessão da segurança para a impetrante que obteve o grau necessário para a

aprovação no curso de Engenharia de Produção na UERJ. Em que pese a louvável

iniciativa do Poder Público, o sistema de reserva de cotas, tal qual foi concebido

pela Lei Estadual 3708ofenfe a Constituição da República tanto pela ótica formal

como material, já que infringe a autonomia universitária, assegurada pelo art. 207,

bem como viola o art. 208, V da Carta Magna e o princípio da igualdade, insculpido

no art. 5º. A igualdade, como direito fundamental, pode sofrer limitação, desde que

atenda a critérios de razoabilidade, que não se aplicam na pré-falada lei estadual. A

instituição de programas deste teor é um poderoso instrumento de combate à

desigualdade, desde que compatível com a Constituição. Manutenção da Sentença

por seus próprios fundamentos.283

Apelação. Administrativo. Mandado de Segurança visando à matrícula no curso de

Medicina da UERJ. Classificação obtida fora do total de vagas oferecidas, ainda que

afastado o sistema de cotas instituído pelas leis n. 3524 e 3708 o fato de outros

candidatos com nota inferior terem obtido a classificação por se autodeclararem

pardos ou negros não autoriza a que todos os que tiraram nota superior à do último

candidato que ingressou em razão das cotas pleiteiem o ingresso, mas somente

aqueles que efetivamente estivessem dentro do número de vagas oferecidas não

fosse a reserva instituída por aqueles diplomas. Inexistência de violação do princípio

da isonomia. Primeiro porque a interpretação que lhe deu a recorrente no recurso

consiste em inovação recursal, que se sabe descabida, e segundo, porque o fato de

outras pessoas autodeclaradas negras e pardas terem sido matriculadas não lhe dá

direito à vaga, no máximo autorizando a pleitear, em face dos legitimados, a ação

competente para obstar-lhes a matrícula. Desprovimento do recurso. 284

5.1.4.2 O contencioso da Universidade Federal do Paraná

Em 2004, a Universidade Federal do Paraná (UFPR) estabeleceu em seus

concursos vestibulares para ingresso nos cursos de graduação a reserva de 20% das vagas para

estudantes afrodescendentes e outros 20% aos egressos de escola pública. O Ministério

Público Federal propôs. Perante o Juízo Federal de Guarapuava – PR, ação civil pública

destinada a ordenar que a UFPR deixasse de aplicar as normas editalícias referentes ao

sistema de reserva de vagas.285

283

Processo: 2004.009.00272. Disponível em tj.rj.gov 284

Processo: 2004.001.15772. Disponível em tj.rj.gov 285

BRASIL. Tribunal Federal da 4ª Região. Suspensão de Execução de Liminar n. 2004.04.01.05675-8.PR.

Disponível em trf4.gov.br Acesso em: 10.04.1012.

Page 121: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

121

Foi proferida decisão antecipando a tutela e, com isto, impedindo que no edital

constasse o percentual de vagas mencionado, porque tal sistema estaria afrontando o princípio

constitucional da isonomia. A UFPR interpôs pedido de suspensão da liminar, alegando que

agiu nos limites de sua autonomia e que a ação visava à declaração de inconstitucionalidade,

usurpando, dessa forma, a atribuição do Procurador-Geral da República.286

A decisão de primeira instância foi suspensa por decisão do Presidente do

Tribunal Federal da 4ª Região, que, após reconhecer a inexistência de legislação federal

disciplinando o sistema de cotas e as desigualdades entre os alunos egressos de escolas

públicas e particulares, consignou o seguinte despacho:287

Pois bem, a r. decisão atacada, prolatada por um jovem e dos mais brilhantes

magistrados federais da Justiça Federal desta 4ª Região, baseou-se na ofensa ao

princípio da isonomia. Esta é a questão, Não me alongo nas considerações, inclusive

porque os autos não vieram com cópia da inicial da Ação Civil Pública. A questão

central é a isonomia, ou seja, a decisão administrativa estraria tratando

desigualmente negros e brancos. Assim não penso, com a vênia devida. Toco

superficialmente no tema, até porque ele não morrerá aqui, pois será objeto de

debate em muitas ações. Ao meu ver, a distinção feita administrativamente e a ser

disciplinada por lei trata igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, como

bem exposto na petição inicial (fls. 20 a 23). Em outras palavras, repetindo a lição

de José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo. Editora

Malheiros, 14ª Ed, p. 205), a igualdade não deve ser reconhecida formalmente, mas

sim com os demais princípios, exigências e objetivos da Constituição. No caso, é

fora de dúvida que a Carta Magna persegue também a redução das desigualdades

sociais (art. 3º, III) e a igualdade de condições para acesso e permanência na escola

(art. 206, I). Para mim, sem necessidade de longas citações doutrinárias, é o quanto

basta.288

Em outra decisão proferida pelo mesmo magistrado de primeira instância, em

ação ordinária ajuizada com pedido de liminar contra o sistema de reserva de vagas da UFPR,

a questão voltou a ser discutida e questionou-se a constitucionalidade das normas emanadas

no edital289

da referida universidade. A autora da ação, uma candidata ao curso de medicina,

alegou que obteve nota suficiente que a posicionaria em 49º lugar da “lista de espera”, sendo

286

Id., ibid. 287

Id., ibid. 288

Id., ibid. 289 Art. 3º - O Núcleo de Concursos disponibilizará na internet (www.nc.ufpr.br), até 16 de julho de 2004, o guia

do candidato, que conterá os cursos e as vagas ofertadas para o ano letivo de 2005, inclusive com a indicação das

vagas de inclusão racial e social, e outras informações complementares às deste Edital, que sejam necessárias

para a orientação do candidato quanto às inscrições, as provas e ao registro acadêmico. § 1º - Das vagas

oferecidas para os cursos, 20% serão de inclusão racial, disponibilizadas para estudantes afrodescendentes, sendo

considerados como tais os que se enquadrarem como pretos ou pardos, conforme classificação adotada pelo

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. § 2º - Das vagas oferecidas para os cursos, 20% serão de inclusão

social para estudantes que tenham realizado ensino fundamental e médio exclusivamente em escola pública,

sendo possível a exceção de um ano letivo em escola particular.

Page 122: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

122

que 70 das 176 vagas do curso foram destinadas aos cotistas. Caso não houvesse listas

separadas para cotistas, a autora lograria sua aprovação em 144ª colocada no certame.290

O magistrado em sua decisão favorável à autora aduziu que os dispositivos que

disciplinavam as cotas na UFPR padeciam de vício de inconstitucionalidade material, uma

vez que violariam o art. 208, V da CF 88.291

Argumentou ainda o referido pretor que o fator raça não se mostra adequado às

finalidades da norma constitucional que expressamente assegura a igualdade de condições

para o acesso como princípio do ensino no Brasil.292

E mais. Se o vestibular não se mostra adequado para testar o grau de conhecimentos

indispensáveis ao acesso às Universidades, como corriqueiramente defendem alguns

notáveis pedagogos, que se crie outro método mais eficiente de avaliação desses

conhecimentos. O que não se pode admitir é que esse suposto erro sirva de

justificativa válida para a instalação desse outro ainda mais grave, já que, como se

disse, o critério de raça, de crença religiosa, de idade, de convicção política, de sexo,

ou de qualquer outro que se distancie da finalidade inerente ao ensino superior

(desenvolvimento da ciência) representa afronta ao princípio da igualdade, que rege

todas as relações jurídicas no Direito Brasileiro.293

Analisando a questão dos cotistas egressos de escolas públicas, a decisão de

primeira instância considerou que a reserva de vagas às “pessoas menos afortunadas acaba,

assim, como no caso das cotas raciais, implicando em segregação social, e não sua

reintegração.”294

Por fim, não menos importante, mister consignar que não se está aqui aplicando

isoladamente o princípio da isonomia ou a regra constitucional que exige a

capacidade do aluno como único critério válido para o ingresso no ensino superior.

Não se está, nem de longe, olvidando-se dos fundamentos da República Federativa

do Brasil, tais como a erradicação da pobreza, a constituição de uma sociedade livre,

justa e solidária, a promoção do bem de todos sem preconceitos (art. 3º, CF88). O

que se está fazendo é evitando a prática de ações compensatórias distorcidas em

favor de classes minoritárias, completamente alheias e dissonantes do sistema

jurídico vigente, capazes de gerar o enfraquecimento do ensino superior que vem, há

tempos, pelo total descaso político da Administração Pública, sofrendo violações

sérias na sua qualidade. 295

5.1.4.3 O contencioso da Universidade de Brasília e o julgamento da ADPF 186

290

Processo n: 2005.70.00.016443-4. Disponível em: jfpr.gov.br 291

Id., ibid. 292

Id., ibid. 293

Id., ibid. 294

Id., ibid. 295

Id., ibid.

Page 123: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

123

Como divisado, não se encontra concórdia concreta acerca da conformidade de

aplicação de ações afirmativas com o sistema constitucional pátrio, quer na jurisprudência,

quer na doutrina.

No entanto, recente decisão da Suprema Corte Brasileira veio a estruturar os

moldes em que seria recebido o instituto da discriminação positiva pelo ordenamento jurídico

brasileiro doravante.

Em 2009 foi ajuizada ação de descumprimento de preceito fundamental

n. 186 pelo Partido Democratas (DEM), para impugnar a política de cotas étnico-raciais para

seleção de estudantes da Universidade de Brasília (UnB).

A instituição universitária fixou, pelo prazo de 10 anos, a reserva de 20% de suas

vagas para estudantes negros e pardos e vinte vagas para índios de todos os estados

brasileiros.

Em sua peça inaugural, o partido alegou que o que havia sido disposto na Reunião

Extraordinária do Conselho de Ensino da Unb, e bem assim, posteriormente concretizado na

Resolução n. 38 de 18 de junho de 2003 do referido órgão acadêmico,296

no Plano de Metas

para Integração Social, Étnica e Racial da Unb,297

e no Edital n. 2 de 20 de abril de 2009,298

seriam disposições sobrepujantes das normas dormentes no texto Constitucional.299

No ponto de vista do DEM, a reserva de vagas para negros e pardos no acesso à

Universidade Federal feriria o princípio republicano da meritocracia do art. 208, V da

Constituição Federal;300

a dignidade da pessoa humana, a proporcionalidade, o devido

processo legal, a legalidade, e, principalmente, a isonomia. 301

296 RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO N. 38.2003[...] Resolve Aprovar

a Proposta de Plano de Metas para a Integração Social, Étnica e Racial na Universidade de Brasília a ser

estudada e analisada pela Comissão integrada pelos seguintes membros (...) 297 PLANO DE METAS PARA A INTEGRAÇÃO SOCIAL, ÉTNICA E RACIAL DA UNIVERSIDADE DE

BRASÍLIA [...] I. Objetivo: O plano de Metas visa atender à necessidade de gerar, na Universidade de Brasília,

uma composição social, étnica e racial capaz de refletir minimamente a situação do Distrito Federal e a

diversidade da sociedade brasileira como um todo. II. Ações para alcançar o objetivo: 1. Acesso a)

Disponibilizar, por um período de 10 anos, 20% das vagas do curso vestibular da Unb para estudantes negros,

em toos os cursos oferecidos pela Universidade. (...) 298 EDITAL N. 2 – 2º VESTIBULAR 2009 DE 20 DE ABRIL DE 2009. [...] 2. DOS CURSOS E DAS VAGAS.

2.1 Os candidatos serão selecionados por campus, sistema, curso, turno, segundo o deu desempenho no

vestibular e o número de vagas oferecido. 2.2. O 2º Vestibular de 2009 da Unb será realizado por meio dos

sistema de vagas: o Sistema Universal e o Sistema de Cotas para Negros (...) 299

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Petição Inicial da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental

186. Disponível em: www.stf.jus.br Acesso em: 10.04.1012. 300 Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...] V - acesso aos níveis

mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um. 301

Id. Ibid.

Page 124: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

124

Com a instituição da referida comissão racial, atinge-se ademais: o artigo 1º, inciso

III (dignidade da pessoa humana, conforme veremos melhor no item 6), o artigo 5º,

inciso XXXIII (direito à informação dos órgãos públicos, já que ninguém sabe os

critérios por meio dos quais a Banca escolherá os “eleitos” que conseguirão ter

acesso à Universidade Pública, nem mesmo se sabe a composição de tal Banca

Racial), o inciso XLII (vedação ao racismo e LIV (devido processo legal – princípio

da proporcionalidade, nos subprincípios da adequação, exigibilidade e ponderação,

conforme veremos melhor no item 6), além dos artigos 205 (direito universal de

educação), 206 caput e inciso I (igualdade de condições de acesso ao ensino, 207

(autonomia universitária), já que tal princípio encontra limites na necessidade de

combater o racismo e no respeito ao princípio do mérito acadêmico, previsto no

artigo 208, inciso V, que determina ser o acesso aos níveis mais elevados do ensino

e da pesquisa de acordo com a capacidade de cada um. Atinge-se, em suma, o

próprio princípio Republicano!302

Vários foram os Amici Curiae invocados pelo Relator, o Ministro Ricardo Ricardo

Lewandowski. Contrários às cotas falaram a representante do Movimento Pardo-Mestiço

Brasileiro (MPMB), Juliana Corrêa e a advogada do Movimento contra o Desvirtuamento do

Espírito da Política de Ações Afirmativas nas Universidades Federais e do Instituto de Direito

Público e Defesa Comunitária Popular (IDEP), Wanda Siqueira.303

Pela improcedência da ADPF 186, favoráveis às cotas, falaram o presidente do

Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante; o defensor

público geral federal, Haman Córdova, pela Defensoria Pública da União (DPU); o advogado

Hédio Silva Júnior, pela Associação Direitos Humanos em Rede – Conectas Direitos

Humanos; o advogado Humberto Santos Júnior, pelo Instituto de Advocacia Racial e

Ambiental (IARA); a advogada Silvia Cerqueira, do Movimento Negro Unificado (MNU); o

advogado Thiago Bottino, pelo Educafro – Educação e Cidadania de Afro-Descendentes e

Carentes; e o advogado Márcio Thomaz Bastos, que representou a Associação Nacional dos

Advogados Afrodescendentes (ANAAD).304

Muito esperada era a manifestação da Procuradoria Geral da República, por

Deborah Duprat, a qual desconstruiu a ideia de uma miscigenação natural no país, realizada

por encontros amorosos entre brancos e negros. Lembrou que, na verdade, tratou-se

de política de estado de ocupação e aumento populacional. “Ela decorre de uma engenharia

social do período colonial escravocrata como estratégia de povoamento e de força de trabalho

escravo.”305

Conforme ressaltou a Subprocuradora Geral, ações afirmativas em relação a

302

Id. Ibid. 303

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 186. Disponível em:

www.stf.jus.br Acesso em: 10.04.1012. 304

Id. Ibid. 305

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Manifestação da Procuradora Geral da República na Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental 186. Disponível em: www.stf.jus.br Acesso em: 10.04.1012.

Page 125: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

125

grupos minoritários não são novidades em nossa Constituição, como é o caso das relativas às

mulheres e aos deficientes. Indagou, então, porque as ações, quando referentes ao recorte

racial, causam “tanto desassossego”. Questionou, muito apropriadamente, por que questões

como “Por que não só mulheres e deficientes pobres?” somente são invocadas quando se está

a discutir cotas raciais. Afinal, a finalidade das cotas, ressaltou, é promover a diversidade nas

universidades, ao contrário de pretender resolver um problema social.306

O Ministro Relator fez longo e bem fundamentado voto, assistindo razão a

improcedência do pedido, é dizer, favoravelmente às cotas estabelecidas pela Unb. Fez

referência ao autor Dalmo de Abreu Dallari, ao afirmar que as políticas de ação afirmativa

estão baseadas no conceito contemporâneo de democracia.

Aliás, Dalmo de Abreu Dallari, nessa mesma linha, adverte que a ideia de

democracia, nos dias atuais, exige a superação de uma concepção mecânica,

estratificada, da igualdade, a qual, no passado, era definida apenas como um direito,

sem que se cogitasse, contudo, de convertê-lo em uma possibilidade, esclarecendo o

quanto segue: “O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que

assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o melhor preparo

intelectual, negando tudo a outros, mantendo os primeiros em situação de privilégio,

mesmo que sejam socialmente inúteis ou negativos.”307

Buscou como fundamento filosófico para o instituto da discriminação positiva a

Teoria da Justiça de Rawls, a qual já fora nesta investigação perfilhada. Ressalta que “só ela

[a Teoria da Justiça de Rawls] permite superar as desigualdades que ocorrem na realidade

fática, mediante uma intervenção estatal determinada e consistente para corrigi-las,

realocando-se os bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício da coletividade

como um todo.”308

Em derradeiro, julgou que o modelo constitucional brasileiro não se mostrou

alheio ao princípio da justiça distributiva ou compensatória, porquanto

incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes

de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade. Como sabem os

estudiosos do direito constitucional, o nosso Texto Magno foi muito além do plano

retórico no concernente aos direitos e garantias fundamentais, estabelecendo

diversos instrumentos jurídicos para conferir-lhes plena efetividade.309

Os demais Ministros acompanharam o Relator310

no mérito do decisum, sendo

deliberada, por unanimidade, a improcedência do pleito formulado pelo DEM, e consequente

306

Id. Ibid. 307

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Voto do Relator, Ministro Ricardo Lewandowski, da Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental 186. Disponível em: www.stf.jus.br Acesso em: 10.04.1012. 308

Id. Ibid. 309

Id. Ibid. 310

Valem aqui eco de trechos proferidos por alguns Ministros na Audiência do dia 20.04.2012, quando foram

delineados os votos e declarada a decisão pelo Presidente da Corte. Proclamou o Ministro Luiz Fux que “pelo

Page 126: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

126

efeito vinculante, declarando a constitucionalidade das cotas para negros e pardos nas

Universidades Públicas brasileiras, bem como da possibilidade constitucional de

implementação de medidas de discriminação positiva.

Desse modo, com a aludida histórica decisão do Supremo Tribunal Federal de

efeitos vinculantes, findou-se a polêmica da possibilidade de serem as ações afirmativas

compatíveis com a Constituição. Nas sábias palavras do Presidente do STF, Ministro Carlos

Ayres Britto, “a partir desta decisão, o Brasil tem mais um motivo para se olhar no espelho da

história e não corar de vergonha.”311

5.2 O combate à discriminação racial no Direito Francês

É chegado o momento de investigar a disposição dos arranjos jurídicos gauleses a

respeito da proteção ao imigrante discriminado, bem como da compatibilidade das medidas de

discriminação positiva com o direito público francês: é o que em diante se passa a expor.

5.2.1 As bases do Direito Público francês: entre Universalismo e Diferencialismo

O sistema jurídico da República Francesa, foi construído, desde a Revolução de

1789, sobre um princípio norteador das relações de natureza pública, a saber o Universalismo.

Diferentemente do ordenamento brasileiro, o sistema francês encontra-se atado, até hoje, às

origens da nação, em 1789, gozando, por exemplo, a Declaração Universal de Direitos do

Homem e do Cidadão atualmente de validade jurídica.

O fundamento do princípio do universalismo do Direito Público francês encontra-

se em um elemento presente desde a Revolução Francesa, qual seja, a igualdade. É o que se

leite que as amas de leite negras tiraram de seus filhos para darem aos filhos das senhoras, pelas chicotadas que

tomaram no período da escravidão, mas não se renderam, não se entregaram, não se deixaram dominar nem de se

aculturar, [...] Viva Chica da Silva, viva Zumbi, viva Pelé, viva Chico Rei, viva os brancos, viva os pardos, viva

os mulatos, viva os índios, viva nós todos, e viva a nação afrodescendente que colore o nosso querido Brasil.

Voto pela improcedência, senhor presidente.” BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental 186. Disponível em: www.stf.jus.br Acesso em: 10.04.1012. Já a

Ministra Rosa Maria Weber declarou: “Eu intendo que os princípios constitucionais que foram apontados pelo

autor da ação como violados, são justamente os preceitos que levam, data máxima vênia, à total improcedência

da ação. É como voto, senhor presidente.” Id. Ibid. O Ministro Marco Aurélio Mello asseverou: ”a meritocracia

sem igualdade de pontos de partida é apenas uma forma velada de aristocracia. Só existe a supremacia da Carta

quando, à luz desse diploma, vingar a igualdade. A ação afirmativa evidencia o conteúdo democrático do

princípio da igualdade jurídica. [...] Entendo harmônica com a carta federal, com os direitos fundamentais nela

previstos a adoção temporária e proporcional às necessidades do sistema de cotas pra o ingresso em

Universidades Públicas.” Id. Ibid. 311

Id. Ibid.

Page 127: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

127

chama de direito à indiferença (droit à l’indifférence): todos os indivíduos são possuidores

dos mesmos direitos e assumem as mesmas obrigações. Tal proposição filosófica, diretamente

relacionada com a concepção de nação deliberada pelos revolucionários, e até os dias de hoje

viva no Direito Francês, é, pois, conhecida por universalismo republicano.312

La logique universaliste a été, à la Révolution, étroitement liée à la volonté d’unifier

et sourtout d’homogénéiser la société : le droit élaboré à cette époque s

explicitement pour objectif de construire « Une » nation. Ce projet s’est concrétisé à

travers différentes mesures : uniformisation des droites bien sûr, mais aussi

uniformisation administrative, uniformisation linguistique et uniformisation des

poids et des mesures.313

Além de estampado no artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos do Homem

e do Cidadão, o qual perfilha que a igualdade dos homens leva todos estes a serem tratados de

forma igual perante a lei, a qual “doit être la même pour tous, soit qu’elle protege, soit qu’elle

punisse,”314

o universalismo encontra custódia no artigo 1º da Constituição Francesa de 4 de

outubro de 1958,315

que dispõe que dispõe que “La France [...] assure l'égalité devant la loi

de tous les citoyens sans distinction d'origine, de race ou de religion.”316

Tal escolha conduz a França a lutar pela proteção contra as discriminações dos

indivíduos, bem como pela erradicação das desigualdades sociais, mas não reconhece grupos

étnicos coletivos, não podendo instalar a estes proteção especial.

Sur la base de ce príncipe, les autorités françaises ont en effet largement nié

l´exigence de minorités identifiées par particularismes ethniques, linguistiques ou

religieux sur le sol français. [...] Il s´ensuit une architecture juridique qui, d´une part,

reconnaît à chaque individu le bénéfice des droits de l´homme, mais que, d´autre

312

L’emploi de cet adjectif [républicain] permet à la fois d’insister sur la rupture opérée par le droit public

français par rapport à celui de l’Ancien Régime et de le distinguer de droits étrangers, notamment du droit anglo-

saxon qui, lui, reconnaît – emplicitement ou explicitement – les communautés intra-étatiques. BUI-XUAN,

Olivia: Le droit public français entre l’universalisme et le différencialisme. Economica : Paris, 2004, p. 3.

Em tradução livre: “O emprego do adjetivo [republicano] permite ao mesmo tempo insistir na ruptura operada

pelo Direito Público francês em relação ao do Antigo Regime e distinguir-lhe do direito estrangeiro,

notadamente do direito anglo-saxônico, o qual reconhece – explícita ou implicitamente – as comunidades infra-

étnicas.” 313

Id., Ibid. Em nossa tradução: “A lógica universalista era, na Revolução, estritamente ligada à vontade de

unificar e principalmente homogeneizar a sociedade: o direito elaborado naquela época se explicava pelo

objetivo de construir ‘Uma’ nação. Esse projeto foi concretizado por meio de diferentes meios: uniformização

dos direitos, é claro, mas também uniformização administrativa, uniformização linguística e uniformização de

pesos e de medidas.” 314

“Deve ser a mesma para todos, quer proteja, quer castigue” (tradução nossa). 315

Merece nota o fato de que o Universalismo tal como hodiernamente propala a doutrina é em alguns termos

distinto daquele a que outrora se referiam os revolucionários. Naquele tempo o “universal” albergava toda a

humanidade. Eles não almejavam elaborar a Declaração de direitos somente para a França, mas para o homem

em geral. Estavam ali afirmando os direitos dos seres humanos antes de serem cidadãos franceses. Id., Ibid. A

acepção do Universalismo que ora se analisará é, portanto, mais restritiva que aquela, pois se limita ao fato de

que o Direito Público francês entende tratar de forma idêntica apenas todos os que estão sob seu campo de

atuação. 316

“A França assegura a igualdade a todos os cidadãos, sem distinção de origem, raça ou religião” (tradução

nossa).

Page 128: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

128

part, lui refuse des droits particuliers en sa qualité de membre d´un grupe minoritaire

qui aux taux de l´Etat n´existe pas.317

Desse modo, a lógica individualista de 1789 condena toda e qualquer

consideração jurídica de categorias de pessoas, entendidas como pessoas que possuem uma ou

várias características comuns.318

No entanto, a lógica de categorização de pessoas é, de certa

forma, inerente à ciência jurídica, como bem assevera Mélin-Soucramanien:

Légiferer, comme gouverner, c’est forcément choisir. Le processus d’édiction des

normes requiert du législater qu’il procède à des différenciations de tratement, ce qui

implique qu’il se trouvera toujours des catégories de sujets de droit qui s’estimeront

lésées par l’un ou l´autre des choix de politique législative. 319

Assim, a doutrina e jurisprudência francesa construíram, ao longo dos anos,

categorias jurídicas subjetivas320

que seriam não somente compatíveis com a lógica

universalista, mas também necessárias à gestão estatal.

Parce que les hommes naissent et demeurent égaux, la conception de la démocratie

peut éventuellement admettre des différences en fonction de ce que les citoyens font

(métier, situation, status, etc.) jamais en fonction de ce qu’ils sont.321

Converge pacificamente o entendimento doutrinário de que o número de

categorias jurídicas subjetivas varia no tempo e no espaço. A França parece ser um país que

tem tal numeração mais reduzida, comparada, por exemplo, com a Inglaterra e os Estados

Unidos.322

317

MAISONNEUVE, Mathieu. Les discriminations positives ethniques ou raciales en droit public interne: vers

la fin de la discrimination positive à la française. Droits et Libertes, RFDA, 2002. "Com base neste princípio, as

autoridades francesas, de fato, negaram amplamente a exigência de minorias identificadas por particularismos

étnicos, lingüísticos ou religiosos em solo francês. [...] Surge então uma arquitectura jurídica, que por um lado,

dá a cada pessoa o benefício dos direitos do homem, mas que, por outro lado, lhes nega direitos particulares na

sua qualidade de membro de um grupo minoritário, que nas estatísticas do estado não existe." (tradução livre). 318

ATTAL-Galy, Y. Droits de l’homme et catégoties de personnes. Thèse pour le doctorat en droit, Université

de sciences sociales de Toulouse I, 2002, p. 12. Disponível em : http://epublications.unilim.fr Acesso em:

10.04.12. 319

MÉLIN, SOUCRAMANIEN, F., Le príncipe d’égalité dans la jurisprudence du Conseil constitutionnel,

Economica: Paris, 1997, p. 18. Em tradução nossa: “Legislar, assim como governar, é necessariamente escolher.

O processo de edição de normas requer do legislador que sejam feitas diferenciações de tratamento, em que se

encontrarão sempre categorias de sujeitos de direito que serão lesados por uma ou outra das escolhas políticas

legislativas.” 320

A doutrina francesa chama o termo que aqui traduzimos, por questão didática, “categoria jurídica subjetivas”

de “catégories juridiques”: “Les catégories juridiques peuvent être définies comme des classes ou ensembles de

fait, d’actes, d’objets, auxquels la loi ou toute autre norme attaché des conséquences juridiques” LOCHAK, D.

La race: une catégorie juridique? Mots. N. 33, 1992. Disponível em: Disponível em :

http://epublications.unilim.fr Acesso em: 10.04.12. “As categorias jurídicas podem ser definidas como classes

ou conjuntos de fatos, de atos, de objetos os quais a lei ou outra norma vincula consequências jurídicas.”

(tradução nossa) 321

CARCASSONNE, G. La Constituition, introduite et commentée. Seuil: Paris, 1996. In BUI-XUAN, op.,

cit., 2004. Em tradução livre: “Pelo fato de os homens nascerem e morrerem iguais, a concepção da democracia

pode, eventualmente, admitir diferenças me função do que os cidadãos fazem (trabalho, situação, status, etc.),

jamais em função do que eles são.” 322

Id., Ibid.

Page 129: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

129

Com efeito, a criação de tais categorias jurídicas subjetivas não é contraditória

com o sistema universalista republicano por várias razões. Primeiramente, ela se dá com o fim

de administração: ela visa a submeter certos indivíduos a regras particulares em função de seu

estado temporário (presidiários, pacientes hospitalizados) ou de seu status (direito do médico

a não prestar informações a respeito de pacientes, por exemplo); tais regras, ao crivo do

sistema francês, são indispensáveis para um bom funcionamento dos serviços públicos. Em

segundo lugar, na dicção de Carcassonne acima transcrita, tais categorias jurídicas subjetivas

são determinadas em função do que as pessoas fazem: são largas, transversais e abertas. É

dizer, toda pessoa ao longo da vida pode estar hospitalizada, ou encarcerado, um funcionário

público pode ser transferido de um órgão a outro, e assim submeter-se a regime de direitos e

obrigações diferenciados.

No olhar da tradição universalista, o reconhecimento das categorias jurídicas

subjetivas determinadas em função do que os cidadãos são é que parece ser de

compatibilidade mais problemática.

Assim, categorias que compartilham de identidade no que diz respeito ao sexo, à

orientação sexual, a determinada origem étnica, são, a priori,323

inconciliáveis com o

universalismo, pois a característica que as une diz respeito a um marco permanente, faz parte

de sua essência.

Transformer des groupes en catégories juridiques créatrices de droits et

d’obligations reviendrait à enfermer les individus dans des status juridiques

différenciés, situation qui rappelle par certains aspects la société d’Ancien Régime et

que es révolutionnaires entendaient précisémente faire disparaître.324

Todavia, malgrado o Direito Público francês tenha sido construído com alicerces

universalistas, parece que se tem assistido, de quase vinte anos para cá, a uma penetração da

lógica diferencialista. Anteriormente, as pesquisas jurídicas em torno da questão da igualdade

323

Diz-se a priori, pois estudo mais pormenorizado sobre as categorias jurídicas subjetivas no Direito Público

francês, o que não se mostra imperioso aqui tecer haja vista a natureza da investigação, permite reunir repertório

em que tais categorias (que se relacionam com a essência da pessoa) podem sofrer tratamento diferenciado pelo

ordenamento jurídico, tais como as mulheres, quando houver relação com maternidade e gravidez. É o que

acentua Bui-Xuan: “transformer le groupe des femmes em catégorie juridique, autrement dit faire en sore que le

fait d’être femme soit créateur de droits spécifiques, n’entre pas en contradition avec la tradition universaliste,

dans les cas de grossesse et de maternité ; attribuer aux seules femmes un congé de maternité ou une protection

juridique penant la grossesse ne ruine pas la logique universaliste dans la mesure où seules les femmes ont la

possibilité d’enfanter.” Op., cit., 2004, p. 15. Em tradução nossa : “Transformar o grupo das mulheres em

categoria jurídica, ou seja, fazer que o só fato de ser mulher crie direitos específicos, não entra em contradição

com a tradição universalista, nos casos de gravidez e maternidade; atribuir à mulheres uma licença maternidade

ou uma proteção jurídica durante a gravidez não arruína a lógica universalista, na medida em que somente as

mulheres tem a possibilidade de engravidar.” 324

Id., Ibid., p. 10. Em tradução nossa: “Transformar grupos em categorias jurídicas criadoras de direitos e

obrigações seria engessar os indivíduos em situações jurídicas diferentes, situação que lembra por certos

aspectos a sociedade do Antigo Regime e que os revolucionários desejavam precisamente fazer desaparecer.”

Page 130: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

130

estiveram à margem das discussões acadêmicas; contudo, após a publicação do Relatório do

Conselho de Estado de 1996325

sobre o princípio da igualdade, abriu-se, incontestavelmente,

uma brecha para o debate.326

À primeira vista, universalismo e diferencialismo são antinômicos; é, no entanto,

possível mitigar tal oposição e mostrar que são, em verdade, intimamente ligados.327

O fundamento do universalismo do Direito Público foi, idealizado, como dito

algures, a partir da Revolução Francesa, em reação contrária ao diferencialismo vigente no

Ancien Régime, pelo qual o direito levava em conta as diferenças sociais e se aplicava

diferentemente a três camadas da sociedade. Em 1789, foi proclamado o advento de um

direito universalista de vocação integrativa, aplicado a todos sem distinção. A cidadania

francesa nasceu, portanto, com ojeriza às diferenças.

Mas, se a igualdade formal fora ali bem proclamada, ela não fez desaparecerem as

diferenças de fato existentes entre os indivíduos.

L’ambition principale de l’universalisme républicain a eté d’homogénéiser le corps

social [...] Nonobstant la relative uniformisation de la société française consécutive à

l’aboliton de « lois particulières », force est de constater que l’egalité formelle

proclamée en 1789 n’a jamais résorbé les inégalittés socio-économiques : aux trois

ordres de la societé se sont en effet rapidement substituées les classes sociales.328

Uma tensão aparece, então, entre o que pretendia o projeto universalista de

cidadania, e a realidade concreta de camadas sociais e culturais separando os cidadãos. Nesta

circunstância, aplicando-se regras uniformes a todos, obtém-se resultado oposto ao outrora

esculpido, acentuando as desigualdades sociais; e, inversamente, o diferencialismo passou a

ser visto pelos publicitas franceses como instrumento necessário para se alcançar a essência

do universalismo.

325

CONSEIL D’ÉTAT, rapport public n. 48, Sur le principe d’égalité. Disponível em :

http://www.ladocumentationfrancaise.fr/. Acesso em: 10 de abril de 2012. 326

La question de l’appréhension des différences par le droit public n’a donc jamais été autant d’actualité qu’en

ce début de XXIe siècle comme peut en témoigner l’inscription sur l’agenda politique de questions aussi diverses

que l’évolution du statut de la Corse ou de la laicité, l’admission de discriminations positives ou encore la

valorisation des spécificités ultra-marines. Id Ibid., p. 2. Em tradução livre : “A questão da apreensão de

diferenças pelo direito público jamais foi tão atual como neste início de século XXI, como se pode atestar a

inscrição na agenda política de questões diversas como a evolução do status de Córsega, ou da laicité, a

admissão de discriminações positivas e ainda a valorização das especificidades dos territórios além-mar.” 327

MÉLIN, SOUCRAMANIEN, F., op. cit., 1997, p. 38. 328

BUI-XUAN. Op., cit., 2004. Traduzindo-se: “A ambição principal do universalismo republicano foi

homogeneizar o corpo social [...] não obstante a relativa uniformização da sociedade francesa após a abolição

das ‘leis particulares’, há que se constatar que a igualdade formal proclamada em 1789 jamais solveu as

desigualdades socioeconômicas: as três camadas da sociedade absolutista se fizeram, com efeito, rapidamente,

substituir-se pelas classes sociais.”

Page 131: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

131

A mutação ocorrida na interpretação do Direito Público francês nos últimos anos

passou a admitir algumas vertentes do diferencialismo, as quais seriam “compatíveis” com a

lógica universalista.

A doutrina classifica quatro “modalidades de diferenciações” apensas ao

diferencialismo: a) compensar as desigualdades socioeconômicas (deferencialismo-

compensatório); b) corrigir as discriminações (diferencialismo-corretor); c) adaptar o Direito

às especificidades territoriais de determinados grupos (diferencialismo-adaptador); e

reconhecer de maneira positiva identidades particulares de grupos distintos dentro da nação

(diferencialismo-reconhecedor). O entendimento majoritário é que apenas as duas primeiras

vertentes encontram adequação harmônica com a lógica universalista, já as duas derradeiras

iriam de encontro a tal sistema.

O différencialism compensatoire e o différencialism distributive têm, pois, por

objetivo a redução da fragmentação social; aquele está relacionado com a redução das

diferenças socioeconômicas, ao passo que este tem por escopo a luta contra as discriminações

sociais. Tentam ambos reduzir as diferenças do universalismo tradicional, que não logrou

êxito em unificar a sociedade assim como os revolucionários desejavam.

Por seu turno, o différencialism adaptateur, bem como o différencialism recognitif

não pairam, aos olhos da maioria dos doutrinadores, na órbita universalista. Encontram-se

antagônicos a essa tradição: consiste o primeiro em reconhecer especificidades regionais,

aplicando tratamento diferenciado em função da localidade em que o direito será aplicado

(spécificités géographiques); ao passo que o segundo tem a vocação de reconhecer, legitimar

e valorizar a presença, dentro da comunidade nacional francesa, de identidades coletivas

infra-étnicas, também chamadas de minorias (identités collectives).

Desse modo, a maior parte da doutrina, bem como da jurisprudência francesa,

como doravante se quedará exposto, reconhece que, neste inicio do século XXI, que o Direito

Público francês é sim regido pela lógica da tradição universalista, contudo, acrescida de

alguns bemóis, uma vez que se admitem compatíveis com tal sistema as vertentes

compensatória e distributiva do diferencialismo.

En ce début de XXIe siècle, peut-on affirmer que le droit public français est

toujours,conformément à sa tradition, sous-tendu par une logique universliste¿ [...]

on peut avancer une réponse positive, mas, les príncipes foundateurs du droit public

français, tous directement isso du doubassement universaliste, ont em effet coni, ces

vingt dernièrs années, de sérieuse secousses.329

329

Id., ibid. Em tradução livre: “Neste inicio do século XXI, pode-se afirmar que o Direito Público francês é,

ainda, conforme sua tradição, subtendido por uma lógica universalista? [...] pode-se avançar em uma resposta

Page 132: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

132

Ainda que seja reconhecida a atuação de algumas facetas do diferencialismo no

direito público, tal não se esvai do campo individual; é dizer, como não se reconhece a

existência de grupos infra-étnicos dentro da nação gaulesa, a ação do diferencialismo ajouja-

se somente à esfera do indivíduo, não atuando, por isso, para erradicar as desigualdades que

ali tocam as minorias. 330

As ações afirmativas pertencem ao domínio do diferencialismo-corretor, sendo,

portanto, este, objeto de maior profundidade no item subsequente.

5.2.2 O Diferencialismo-corretor

Mais recentes, as regras de direito que albergam o diferencialismo-corretor são

ainda mais raras no ordenamento gaulês que aquelas concernentes ao diferencialismo-

compensatório.331

São, com efeito, circunscritas a um domínio bem preciso: a luta contra as

discriminações.

O que essas medidas corretoras buscam apagar são as diferenças injustificadas de

tratamento, guardando harmonia total com o sistema universalista, que não pode ignorar as

discriminações de fato na sociedade.

As disposições jurídicas que o revelam, segundo entendimento da doutrina, são

sustentadas por uma justiça reparadora, a qual apregoa que é papel do Estado reparar os danos

experimentados pelos que sofreram discriminações.

A correção pode ser parcial ou total: é parcial quando o Direito contenta-se a dar

as mesmas chances a todos, combatendo a discriminação e reparando danos eventualmente

surgidos; é total quando a norma, por meio de discriminações positivas, tenta oferecer à

pessoa discriminada o lugar que ela teria alcançado na sociedade se ela jamais tivesse sofrido

qualquer discriminação. 332

positiva, mas os princípios fundadores do Direito Público francês, todos derivados diretamente do alicerce

universalista, com efeito, conheceram, nos últimos vinte anos, grave impacto.” 330

En injectant du concret au sein même du droit public, les pouvoirs publics cherchent en premier lieu à

respecter les individus, non les grupes. Id., Ibid. Traduz-se : “Ao petrificar o direito público, os poderes públicos

procuram, em primeiro lugar, respeitar os indivíduos, não os grupos.” 331

Contrairement ao différencialisme compensatoire dont on trouvait le ferment dans le droit public traditionnel,

puis dans le droite de l’État-providence d’aprés-guerre, le différencialisme correcteur est nouveau. Op., cit., p.

169. Em tradução livre: “Ao contrário do diferencialismo-compensador, o qual se encontrava de forma firme no

Direito Público tradicional do Estado-providência do pós-guerra, o diferencialismo-corretor é fenômeno

recente.” 332

MÉLIN-SOUCRAMANIEN, F. Op., cit., 1997.

Page 133: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

133

Antes de versar sobre a existência ou não do diferencialismo-corretivo via

correção total (discriminações positivas) no ordenamento francês, estende-se adiante à testilha

da aplicação do diferencialismo-corretor (parcial) para a proteção do indivíduo contra a

discriminação, sobre o qual há já instrumentos bastante eficazes em vigor no hexágono

europeu, quer advindos de institutos do Direito Internacional, quer de gênese legiferante

interna.

5.2.3 Proteção contra a discriminação no Direito Internacional e no Direito da União

Europeia

Sendo a França, no que pertine à relação entre o Direito Internacional Público e o

Direito interno estatal, adepta do sistema monista,333

imprescindíveis são os comentários

acerca dos dispositivos internacionais por este Estado já ratificados no tema em espeque.

No olhar do Direito Internacional, uma discriminação em razão da origem não é

necessariamente ilegal; “elle ne le devient que si elle aboutit à priver l´etranger du minimum

de traitement civilisé pour que l´État est tenu de lui accorder, ou si elle est prohibée par une

disposition precise d´une convention interncionale.”334

A Convenção de 9 de dezembro de 1948 de prevenção e repressão ao crime de

genocídio, ratificada pela França em 1950 define como genocídio o ato cometido em tempos

de guerra ou de paz “dans l´intention de détruire, em tout ou em partie um groupe national,

ethnique, racial ou religieux”335

. Considera tal dispositivo que o genocídio é a expressão mais

exacerbada do racismo. Sua disposição essencial é a que permite a todas as

partes contratantes de “saisir les organes competentes de l´ONU afin que ceux-ci prennent,

333

Para os monistas, “o Direito Internacional e o Direito Interno são dois ramos do Direito dentro de um só

sistema jurídico. Trata-se da teoria segundo a qual o Direito Internacional se aplica diretamente na ordem

jurídica dos Estados, independentemente de qualquer ‘transformação’. [...] Para a doutrina monista, a assinatura

e ratificação de um tratado por um Estado significa a assunção de um compromisso jurídico [...] não se faz

necessária, por isso, a edição de um novo diploma normativo ‘materializando’ no plano interno, pela via da

transformação, o compromisso internacionalmente assumido. O Direito Internacional e o Direito interno

formam, em conjunto, uma unidade jurídica, que não pode ser afastada em detrimento dos compromissos

assumidos pelo Estado no âmbito internacional. Não há, para os monistas, duas ordens jurídicas estanques, como

querem os dualistas, cada uma com âmbito de validade dentro de sua órbita, mas um só universo jurídico,

coordenado, regendo o conjunto das atividades sociais dos Estados, das Organizações Internacionais e dos

indivíduos. Os compromissos exteriores assumidos pelo Estado, dessa forma, passam a ter aplicação imediata no

ordenamento interno do país pactuante, o que reflete a sistemática da incorporação automática.” MAZZUOLI,

Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p.72-

73. 334

LOCHAK, Danièle. Les discriminations frappant les étrangers sont-elles licites. Droit Social, n. 1, janeiro,

1990. “Ela somente assim se torna se privar o estrangeiro do mínimo tratamento civilizado que o Estado é

obrigado a conceder ou se ela for proibida por disposição contida em convenção internacional” (tradução livre) 335

“na intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso” (tradução livre).

Page 134: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

134

conformément à la Charte des Nations unies, les mesures qu´ils jugent appropriées pour la

prévention et la répression des actes de génocide”336

de que se tenha conhecimento.

Pode-se afirmar que esta Convenção foi o primeiro tratado internacional de proteção

dos direitos humanos aprovado no âmbito da ONU, datando sua adoção de 9 de

dezembro de 1948. Tendo em vista as atrocidades perpetradas ao longo da Segunda

Guerra Mundial, particularmente o genocídio que resultou na morte de seis milhões

de judeus, a Convenção afirma ser o genocídio um crime que viola o Direito

Internacional, o qual os Estados se comprometem a prevenir e punir.337

A Convenção Europeia de salvaguarda dos direitos do homem, de 4 de novembro

de 1950, ratificada pela França em 1966, obriga os Estados signatários a reconhecer os

direitos e liberdades a “tout individu, étranger ou national, qu´il soit ou non ressortissant de

l´un des Éstats signataires.”338

Os Estados não podem, nos termos dessa convenção,

estabelecer, em princípio, discriminações que digam respeito a direitos fundamentais, exceto

nos direitos políticos e no direito de permanecer no território nacional.

Há ainda, a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação

racial, de 1965, adotada pela França em 1971, a qual institui um “comitê para eliminação da

discriminação racial.” Criou uma política de tolerância e não uma imposição de valores.

A tolerância assim compreendida não exige uma postura de neutralidade em relação

à ética, defendendo algo como um princípio de ‘indiferença à diferença.’ Ao invés

disso, uma política de tolerância supõe a possibilidade de interpretação e troca entre

diferentes. Entretanto, a validade moral dessa interação pressupõe que ela se realiza

em condições de igualdade não só formal, mas também material. Ou seja, é requisito

do contato entre culturas que sejam construídas condições empíricas de igualdade

que permitam que a interação transcultural se realize como troca, e não como

imposição de valores.

O artigo 5º da diretiva comunitária de 29 de junho de 2000, relativa à efetivação

da igualdade de tratamento entre pessoas sem distinção de raça ou da origem étnica, por fim, é

igualmente clara:

Article 5

Action positive

Pour assurer la pleine égalité dans la pratique, le principe de l'égalité de traitement

n'empêche pas un État membre de maintenir ou d'adopter des mesures spécifiques

destinées à prévenir ou à compenser des désavantages liés à la race ou à l'origine

ethnique.339

336

Em tradução livre: “Apelar aos órgãos competentes da ONU para que eles tomem medidas, conforme a Carta

das Nações Unidas, que julguem apropriadas para a prevenção e repressão de atos de genocídio.” 337

PIOVESAN, Flávia. Op., cit. 2000. P. 282-283. 338

“todo indivíduo, nacional ou estrangeiro, seja ele ou não pertencente a um dos países signatários” (tradução

livre). 339

Em tradução nossa: “Artigo 5. Ação Positiva. Para garantir a plena igualdade na prática, o princípio da

igualdade de tratamento não impede um estado-membro de manter ou adotar medidas específicas para prevenir

ou compensar desvantagens relacionadas com a raça ou com a origem étnica."

Page 135: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

135

5.2.4 Proteção Individual contra Discriminação no Direito Interno Francês

Malgrado o direito Francês já tenha permitido a escravidão em suas colônias até

1848 ou ter perseguido os judeus do Regime de Vichy, desde a V Republica tem lutado para

combater a discriminação racial de forma efetiva.

A Lei de 10 de janeiro de 1972 é uma peça bastante eficaz na repressão do

racismo e da xenofobia e tem um objetivo triplo.

Em primeiro lugar, a lei de 1972 modificou a lei da imprensa de 29 de julho de

1881. Tal dispositivo pune a injuria e difamação racista sem que seja necessário que se prove

a intenção de incitar o ódio racial. Ademais, criou um novo delito bastante vasto, cujo nomen

juris é Convocation à la Discrimination Raciale. Esse novo crime não se restringe aos crimes

cometidos em meio de imprensa, mas por todo meio de expressão, notadamente a palavra,

gestos, etc.

Os tribunais penais têm deveras aplicado esse dispositivo. Condenou-se, por

exemplo, à multa um prefeito (maire) que afirmou publicamente que “ l`holoucaust ce n’est

rien à côté de ce que vous me faîtes subir”

Au tribunal de Béziers Un maire, son adjoint et " l'Holocauste "

Dans son délibéré rendu le mardi 24 avril, le tribunal correctionnel de Béziers a

condamné René Grolier, ancien maire de la petite commune de Jacou, dans la

banlieue de Montpellier, à 6000 francs d'amende pour avoir lancé, lors du conseil

municipal du 19 juillet 1988, à M. Clément Hassin, un de ses anciens colistiers de

confession israélite dont une partie de la famille avait péri en déportation :

« L'Holocauste, ce n'est rien à côté de ce que vous me faites subir. »340

Condenou, também, a seis messes de prisão o editor da revista Révision por ter

escrito e difundido textos nos quais se dizia que as câmaras de gás não foram senão uma

propaganda judia.

Le responsable de la revue Révision en correctionnelle Trois mois de prison

ferme pour antisémitisme " obsessionnel "

“M. Alain Guionnet, trente-six ans, directeur de la publication de la revue Révision a

été condamné lundi 14 mai par la 17ème chambre correctionnelle de Paris à trois

mois de prison pour avoir écrit et diffusé des textes antisémites sanctionnés par trois

jugements distincts. Chacun de ces jugements le condamne à trois mois de prison

mais le tribunal a ordonné la confusion de ces trois peines prononcées pour "

340

Le Monde-web, 26/04/1990. Em tradução livre: "No Tribunal de Béziers Um prefeito, seu assistente e o

‘Holocausto’ Na sua decisão prolatada terca-feira 24 de abril, o Tribunal Penal de Beziers condenou René

Grolier, ex-prefeito da pequena cidade de Jacou, nos arredores de Montpellier, em 6.000 francos de multa por

dizer no conselho da cidade de 19 de julho de 1988, ao Sr. Clemente Hassin, um de seus ex-companheiros de

crença judaica, cuja parte da família morreu no exílio: ‘O Holocausto, não é nada comparado ao que você me fez

sofrer.’”

Page 136: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

136

provocation à la discrimination, à la haine ou à la violence raciales et diffamation

raciale ". Dans le numéro de septembre 1989 du mensuel Révision M.”341

Condenou, outrossim, Jean-Marie Le Pen, presidente do Front National, por ter

sustentado que as câmaras de gás foram “um pont de déntail de l`histoire de La Deuxième

Guerre Mondiale”.

Ce " détail " qui n'a pas de prix

“La première chambre civile du tribunal de Nanterre, présidée par M. Germain Le

Foyer de Costil, a rendu, mercredi 23 mai, un jugement condamnant M. Jean-Marie

Le Pen à verser le franc symbolique de dommages et intérêts à six associations de

déportés, à l'Association des fils et filles de déportés juifs de France, à l'Union des

Tziganes et voyageurs de France, au Mouvement contre le racisme et pour l'amitié

entre les peuples (MRAP) et à la Ligue internationale contre le racisme et

l'antisémitisme (LICRA). Cette sanction de principe est destinée à réparer le

préjudice créé par M.”342

Em segundo lugar, a lei de 1972 criou os delitos de discriminação racial inseridos

nos artigos 187-1 e 416 do código penal, posteriormente artigos 225-1 e 432-7 do Novo

Código Penal.

O artigo 225-1 pune toda pessoa que recusar um bem, um serviço ou contratação a

qualquer pessoa por questão de sua raça.

Constitue une discrimination toute distinction opérée entre les personnes physiques à

raison de leur origine, de leur sexe, de leur situation de famille, de leur grossesse, de

leur apparence physique, de leur patronyme, de leur état de santé, de leur handicap,

de leurs caractéristiques génétiques, de leurs moeurs, de leur orientation sexuelle, de

leur âge, de leurs opinions politiques, de leurs activités syndicales, de leur

appartenance ou de leur non-appartenance, vraie ou supposée, à une ethnie, une

nation, une race ou une religion déterminée. [...]

Constitue également une discrimination toute distinction opérée entre les personnes

morales à raison de l'origine, du sexe, de la situation de famille, de l'apparence

physique, du patronyme, de l'état de santé, du handicap, des caractéristiques

génétiques, des moeurs, de l'orientation sexuelle, de l'âge, des opinions politiques,

des activités syndicales, de l'appartenance ou de la non-appartenance, vraie ou

supposée, à une ethnie, une nation, une race ou une religion déterminée des

membres ou de certains membres de ces personnes morales.343

341

Le Monde-web, 16/05/1990. Em tradução livre: “O responsável da Revista Révision e a pena de três meses

de prisão fechada por antissemitismo ‘obsessivo’ Mr. Alain Guionnet, de trinta e seis anos, diretor da

publicação da revista Revision foi condenado, segunda-feira 14 de maio, pela 17ª câmara correcional de Paris a

três meses de prisão por ter escrito e distribuído textos anti-semitas textos sancionados por três julgamentos

distintos. Cada um desses julgamentos o condenou a três meses de prisão, mas o tribunal ordenou a junção

dessas três penas aplicadas por "incitação à discriminação, ao ódio ou à violência racial e à difamação racial". Na

edição mensal de setembro de 1989 da revista M.” 342

Le Monde-web, 25/05/1990. Em tradução livre : "O detalhe que não tem preço. O primeiro Tribunal Civil

de Nanterre, presidida pelo Sr. Germain Le Foyer de Costil, prolatou, quarta-feira, 23 de maio, um julgamento

condenando o Sr. Jean-Marie Le Pen a pagar um franco por danos para seis associações de deportados, para a

Associação dos filho e filhas de judeus deportados da França, para a União dos Ciganos e Viajantes da França,

para o Movimento contra o Racismo e pela Amizade entre os Povos (MRAP) e para a Liga Internacional contra a

Racismo e o Anti-semitismo (LICRA). Esta sanção de princípio é destinada a reparar o dano criado por M." 343

"Uma discriminação compreende qualquer distinção entre pessoas físicas aplicada em razão de sua origem,

sexo, estado civil, gravidez, aparência física, patronímico, estado de saúde, necessidades especiais, suas

características genéticas, seus hábitos, orientação sexual, idade, as opiniões políticas, atividades sindicais, a

adesão ou não adesão, verdadeira ou suposta a um grupo étnico, a uma nação, a uma raça ou a uma dada religião.

Page 137: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

137

Já o artigo 432-7 reprime toda recusa a um direito exarada por uma autoridade

pública a uma pessoa em razão de sua raça.

La discrimination définie à l'article 225-1, commise à l'égard d'une personne

physique ou morale par une personne dépositaire de l'autorité publique ou chargée

d'une mission de service public, dans l'exercice ou à l'occasion de l'exercice de ses

fonctions ou de sa mission, est punie de cinq ans d'emprisonnement et de 75000

euros d'amende lorsqu'elle consiste :

1° A refuser le bénéfice d'un droit accordé par la loi ;

2° A entraver l'exercice normal d'une activité économique quelconque.344

Portanto, os dois dispositivos punem a discriminação racial, sendo o primeiro

sancionador das autoridades públicas e o segundo das pessoas privadas.

Por fim, a lei de 1972 permite ao Presidente da Republica dissolver todas as

associações ou grupos que provoquem a discriminação racial. Vários movimentos neonazistas

já foram dissolvidos desse modo. Uma lei de 6 de dezembro de 1993, ainda nessa toada,

modificada em 2006, é conhecida por lutar contra a violência racista dos hoolingans nos

estádios. Esse dispositivo permite que o juiz penal ou o préfet de decretar a interdição do

estádio, além de permitir que o premier ministre dissolva a associação dos hoolingans.

Ainda mais importante que a lei de 1972, a lei de 30 de dezembro de 2004 criou a

Haute Autorité de Lutte contre les discriminations et pour légalité (HALDE), à qual foi

confiada a missão de lutar contra todas as discriminações ilegais, seja direta ou indireta, de

qualquer natureza: racial, sexual, religiosa, etc. Juridicamente, a HALDE é uma autoridade

administrativa independente do poder político, portanto os onze membros que a compõem são

designados por personalidades diferentes do mundo político ou jurídico.

Dessa arte, toda pessoa que se sinta vitima de uma discriminação pode a ela

recorrer. Ao final de sua investigação, a HALDE pode formular récommendations para

remediar a discriminação que fora constatada e para impedir a sua nova ocorrência. Os casos

A discriminação também compreende qualquer distinção entre pessoas jurídicas aplicadas em razão da origem,

do sexo, do estado civil, da aparência física, do patronímico, do estado de saúde, das necessidades especiais, das

características genéticas , dos costumes, da orientação sexual, da idade, da opinião política, das das atividades

sindicais, da adesão ou não adesão, real ou suposta a um grupo étnico, nação, raça ou religião determinada dos

membros ou de alguns membros dessas corporações." (tradução livre) 344

"A discriminação definida pelo artigo 225-1, cometida contra uma pessoa física ou jurídica, por uma pessoa

que tenha autoridade pública ou seja encarregada de uma missão de serviço público, no exercício ou por ocasião

do exercício de suas funções ou de sua missão, é punida com cinco anos de prisão e multa de € 75.000, quando:

1 °recusar o benefício de um direito concedido por lei, 2 °obstruir o exercício normal de qualquer atividade

econômica. " (tradução livre)

Page 138: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

138

de discriminação mais graves são encaminhados pela HALDE ao Ministério Público. Os três

primeiros anos de funcionamento da HALDE confirmaram sua eficácia.345

5.2.5 As discriminações positivas no direito francês

Como esposado alhures, as discriminações positivas são espécies do diferencialismo-corretor.

Contudo, seu reconhecimento no cenário jurídico francês é refreado pelo protesto de parte da

doutrina, haja vista a possível incompatibilidade do instituto com as bases da filosofia franco-

publicista. Tal abalo será espeque do exame que doravante se perfaz.

5.2.5.1 A Divergência doutrinaria

O que se encontra ao se debruçar na inquirição acerca da presença das ações

afirmativas no direito francês é uma heterogeneidade imperiosa na posição dos autores.

Para uns, levando em conta a tradição universalista e individualista da integração

francesa, as discriminações positivas não somente não existiriam, mas também não poderiam

existir na França, pois haveria de alguma forma incompatibilidade entre os princípios do

Direito Público francês e a lógica a partir da qual elas são formadas. Philippe Ardant, por

exemplo, afirma que “les discriminations positives n’ont pas encore droite de cité en

France”346

. Do mesmo entendimento comungam Véronique de Rudder, Christian Poiret e

François Vourc’h.

Il n’a [...] jamais été question, em France, [...] de mettre en place des dispositifs de

‘discrimination positives’. Ce type de politique se caractérise par l’adoption de

quotas préférentiels réservés à tel ou tel groupe minoritaire, ce qui suppose

l’établissement préalable de statistiques de référence, et donc [...] de dénombrements

ethniques ou ‘raciaux’ pour chaque domaine où il est censé s’appliquer.347

Outros juristas, em revanche, asseveram que, não somente as discriminações

positivas já existem na França, mas também estas seriam relativamente numerosas. Partilham

345

LEBRETON, Gilles. Nomos, vol 28.2, 2008. 346

ARDANT, P. L’égalité des personnes em droit public ou à la poursuite de l’ insaisissable égalité réelle.

Publications de la Faculté de droit de Poitiers: Paris, 1994. Disponível em: http://epublications.unilim.fr

Acesso em: 10.04.12. “As discriminações positivas ainda não têm direitos civis na França” (tradução livre). 347

RUDDER, V. de; POIRET, C.; VOURC’H, F., L’inegalité raciste. L’universalité républicaine à l’épreuve,

Paris, PUF, 2001, Disponível em : http://www.lab-urba.fr Acesso em : 10.04.12. Em tradução livre: “Jamais

existiu na França a questão da efetivação dos dispositivos de ‘discriminação positiva’. Esse tipo de política

caracteriza-se pela adoção de cotas preferenciais reservadas a este ou aquele grupo minoritário, que requer o

estabelecimento prévio de estatística de base e, portanto, a contagem étnica ou ‘racial’ para cada área onde se

pretende aplicar.”

Page 139: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

139

desse juízo Mélin-Soucramanien,348

Gwénaele Calvès,349

Bernadette Renault,350

François

Stasse,351

Franck David352

e Anne-Marie Le Pourhiet.353

Essa discordância de posicionamentos se mostra muito em virtude de os autores

não darem à discriminação positiva a mesma conceituação.

5.2.5.2 Ausência de consenso na definição

Os juristas franceses que se aventuram sobre o terreno da discriminação positiva

até agora não formularam uma definição clara e unânime. Dentre os que reconhecem sua

existência há aqueles que a conceituam de forma mais ampla, permitindo que ela englobe uma

infinidade de realidades jurídicas. Assim, para Calvès, a discriminação positiva é uma “forme

équitable de l’égalité” e um “instrument de lutte contre la discrimination.”354

Reúnem-se,

então, na mesma noção de discriminação positiva, a substituição de um “principe d’égalité

compensatrice ou correctrice à une stricte égalité de traitement entre les ayants droit et entre

les usagers et un traitement différencié et préférentiel qui vise à contrebalander les effets de

l’exclusion raciste ou sexiste.”355

Sua concepção de discriminação positiva é, portanto, ao

mesmo tempo as ajudas sociais pontuais do estado em favor das categorias das pessoas e

pessoas desfavorecidas e também as ações de favor de grupos cujas pessoas não são

escolhidas em razão de uma situação socioeconômico desfavorável, mais em função de

características inatas e indeléveis.

Ferndinand Mélin-Soucramanien formulou uma definição do instituto próxima

daquela exarada por Calvès. Segundo aquele, trata-se de “une différenciation juridique de

traitement, créée à titre temporaire, dont l’autorité normative affitme expressément qu’elle a

pour but de favoriser une catégorie déterminée de persones physiques ou morales au détriment

348

MÉLIN-SOUCRAMANIEN, F. Op., cit., 1997. 349

CÀLVES, G. Les politiques de discrimination positive. La documentation française, n. 822, mai-juin,

1999. Disponível em : http://www.ladocumentationfrancaise.fr/ Acesso em: 10.04.12. 350

RENAULT, B. Les discriminations positives. Plus ou moins d’égalité?. RTDH, 1997. Disponível em :

http://epublications.unilim.fr Acesso em: 10.04.12. 351

STASSE, F. Égalité et discriminations positives : regards sur l’actualité. La Documentation Française, juin,

1997. Disponível em : http://www.ladocumentationfrancaise.fr/ Acesso em: 10.04.12. 352

DAVID, F. La notion de discrimination positive en droit public français. Thèsis pour doctorat. Université

de Potiers. . Disponível em : http://epublications.unilim.fr Acesso em: 10.04.12. 353

LE POURHIET, A-M. Discriminations positives ou injustices? RFDA. n. 3, 1998. 354

CÀLVES, G. op., cit., 1999. Em tradução livre: “forma equitativa de igualdade e um instrumento de luta

contra a discriminação.” 355

Id., Ibid. Em tradução livre: “Princípio da igualdade compensatória ou corretiva a uma estrita igualdade de

tratamento entre os detentores e usuários e um tratamento diferenciado e preferencial que visa a contrabalancear

os efeitos da exclusão racista ou sexista.”

Page 140: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

140

d’une autre afin de compenser une inégalité de fait préexistante entre elles.”356

O franco-

constitucionalista insiste no fato de que as medidas são instaladas dentro de uma lógica de

igualdade de chances.

Contrairement au cas américan [...] aù ces distinctions visent essentiellement à

favoriser des minorités raciales afin de permettre leur intégration sociale, en France,

ces mesures ont surtout pour objectif d’établir une plus grande égalité dans le

domaine de l’emploi et en matiére fiscale, non seulment entre les personne en

prenant en compte leur sexe, leur âge, ou l’existence d’un handicap, mais également

entre les différentes composantes du territoire nacional.357

O autor defende, desse modo, uma “discriminação positiva à francesa”

necessariamente diferente da affirmative acton, na medida em que, em razão de o

embasamento universalista o Direito Público francês não poder apreender grupos de pessoas

(minorias); ademais, contrariamente ao federalismo norte americano, o qual não visa “à

établir une égalité de fait entre les différentes parties du territoire narional puisqu’elles sont

justement caractérisées par leur disparité”,358

o Direito Público gaulês teria por particularidade

estabelecer as discriminações positivas em favor de alguns territórios.

François Stasse, por seu turno, distingue as discriminações positivas das

discriminações justificadas. Estas últimas seriam

toute les différences de traitement que la jurisprudence admet lorsqu’elles sont

décidées pour un motif d’intérêt géneral – ce que la Déclararion de 1789 appelle

‘l’utillité commune’. La discrimination justifiée est donc une notion plus large que

celle de discriminarion positive utilisée récemment aux Étas-Unis : la discriminarion

positive est une catégorie particulière de discriminarion justifié, qui retient la

réduction d’une inégalité comme motif d’intérêt général.359

Outros autores, ainda, como o professor Pelloux, assimilam discriminação

positiva a discriminação ao reverso.

356

MÉLIN-SOUCRAMANIEN, F. Op., cit., 1997. Em tradução nossa : “Um tratamento jurídico diferenciado,

criado a título temporário, em que a autoridade normativa afirma expressamente que esta tem por objetivo

favorecer uma categoria determinada de pessoas físicas ou jurídicas em detrimento de outras a fim de compensar

uma desigualdade de fato previamente existente entre elas.” 357

Id. Ibid. “De forma contrária ao caso americano [...] onde tais distinções visam essencialmente a favorecer as

minorias raciais a fim de permitir sua integração social, na França, essas medidas têm sobretudo por objetivo

estabelecer uma maior igualdade em matéria de empregos e de tributos, não apenas entre as pessoas levando em

conta seu sexo, sua idade ou a existência de uma incapacidade, mas também entre as diferentes partes do país.”

(tradução livre) 358

Id. Ibid. “estabeleceu uma igualdade de fato entre as diferentes partes do território nacional que são

caracterizadas precisamente por sua disparidade.” (tradução livre) 359

STASSE, F. Op., cit., Em nossa tradução: “As diferenças de tratamento que a jurisprudência tem admitido

quando decididas por um motivo de interesse geral – o que a Declaração de 1789 chama de ‘utilidade comum’.

A discriminação justificada é, portanto, uma noção mais abrangente que a de discriminação positiva

recentemente utilizada nos Estados Unidos: a discriminação positiva é uma categoria particular de discriminação

justificada, que mantém uma desigualdade como motivo de interesse geral.”

Page 141: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

141

Dans une période intermédiaire, n’est-il pas juste d’aider ceux qui se trouvent dans

une situation inférieure pour leur permettre de s’intégrer peu à peu dans le système

géneral¿ Ainsi naît l’idée d’établir une discrimination positive, qualifiée parfois de

discrimination à rebours . Il s’agit de leur conférer certains avantages pour leur

permettre d’accéder à des emplois de se présenter à certains concours, d’être admis à

cerains stages.360

Para Patrick Auverte, as discriminação positiva confundir-se-ia com as

discriminação compensatória, que “à concevoir le principe de non-discrimination comme une

dynamique qui prend en compte le contexte social ; leur finalité est [...] d’assurer au principe

d’égalité sa force réelle c’est-a-dire rapprocher l’égalité de fait de l’égalité de droit.” 361

Anne-Marie Le Pourhiet, após sublinhar que “l’ambiguité conceptuelle majeure

qui domine la question”,362

distingue diferenciação de discriminação.

Une différenciation n’est [...] discriminatoire que si elle conduit à accorder aux uns

des ‘avantages’ qu’elle refuse aux autres, c’est-à-dire que la discrimination suppose

un système de vases communicants, qui sera d’autant plus visible dans un contexte

de rareté (emplois, places, postes ou même simplement exonérations fiscales des uns

se répercutant directement ou indirectement sur les autres contribuables .363

Ela critica, outrossim, a legitimidade das discriminações positivas pela existência

de discriminações no passado, na mediada em que

un individu contemporain donné n’a pu être victime de discrimination

‘passe’puisque ce terme vise généralement des générations précédentes plus ou

moins lointaines. Tout l’intérêt de láppel au groupe et du recours à la catégorie est

donc de permettre le rattachement de l’individu actuel à un être collectif, une sorte

de personne morale ayant la propriété de traverser les âges.364

A definição mais restritiva discriminação positiva é, por fim, propugnada por

Bernadete Renault, segundo a qual

360

PELLOUX, R. Le nouveaux discours sur inégalité. RDP, 1982. : Disponível em :

http://epublications.unilim.fr Acesso em: 10.04.12. Traduzimos : “Em um período transitório, não seria justo

ajudar aqueles que estão em posição inferior para lhes permitir integrar gradualmente ao sistema geral¿ Assim

nasceu a ideia de discriminação positiva, às vezes chamada de discriminação ao reverso. Consiste em dar alguns

benefícios que lhes permitam ter acesso a empregos, de participar de alguns concursos, ou alguns cursos.” 361

AUVERT, P.L’égalité des sexes dans la fonction publique. RDP, 1983. Disponível em :

http://epublications.unilim.fr Acesso em: 10.04.12. Em tradução livre: “projetou o princípio de não-

discriminação como uma dinâmica que leva em conta o contexto social; sua finalidade é assegurar que o

princípio da igualdade se mostre real, é dizer, aproximar a igualdade de fato da igualdade de direito.” 362

LE POURHIET, A-M. op., cit., 1998. “A grande ambiguidade conceitual que domina na questão” (tradução

nossa) 363

Id., Ibid. Em tradução livre: “Uma diferenciação é discriminatória quando leva a conceder a uns ‘benefícios’

que são recusados a outros, ou seja, a discriminação é supostamente um sistema comunicado de vasos, que será

ainda mais visível em um contexto de escassez (empregos, lugares, posições ou mesmo exonerações fiscais

repercutem direta ou indiretamente em outros contribuintes).” 364

Id., Ibid. Traduziu-se: “Um indivíduo contemporâneo não poderia ser vítima de discriminação ‘no passado’

pois esse termo atinge geralmente as gerações anteriores, de maior ou menor distância temporal. O ponto central

do chamamento ao grupo e de recorrer à categoria é pois o de permitir a ligação do indivíduo atual com um ser

coletivo, uma espécie de pessoa jurídica que tem a propriedade de perpassar pelo tempo.”

Page 142: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

142

pour identifier une discrimination positive, il faut que l’on soit em présence d’un

groupe d’individus suffisamment défini, d’une discrimination structurelle dont les

membres de ce groupe sont victimes, et enfin d’un plan établissant des objectifs et

définissant des moyens à mettre en oeuvre visant à corriger la discrimination

envisagée. Selon les cas, le plans est adopté, voire imposé par ine autorité publique

ou est le fruit d’une initiative privée.365

Para finalizar esse panorama e definições, reporta-se à firmada pelo Conselho de

Estado de 1996 sobre o principio de igualdade: “Régle visant expressément à favoriser une

catégorie de population en raison même de son origine.”366

5.2.5.3 A escolha de uma definição restritiva

Caso se considere que as discriminações positivas são a pura definição da

affirmative acton norte-americanas, constata-se que seu número se reduz no ordenamento

francês. Com efeito, a maior parte dos autores franceses que se interessaram em estudar as

discriminações positivas não buscavam saber se o Direito Público francês contemplava as

genuínas affirmative actons; eles guardaram a obediência ao postulado que lhes dera a

filosofia universalista do Direito Público francês, a qual não poderia compreender medidas

exatamente iguais àquelas desenvolvidas nos Estados Unidos. Consideraram, portanto, a

existência de “discriminações positivas à francesa,” medidas inspiradas na affirirmative acton,

mas em conformidade com os princípios fundantes do Direito Público gaulês.

Jacques Donzelot arvorou-se em elencar as diferenças entre as affirmative actons

e as “discriminações positivas à francesa.” Indispensável é a reprodução de seus pontos para o

bom cotejo das formas de interpretar as medidas afirmativas.

Les deux politiques diffèrent [...] aussis bien au niveau de leurs points d’application

respectifs que de leurs ambitions. L’affirmative action définit ses destinataires à

travers la race (le minorités ethniques), le genere (femmes, les autres minorités

sexuelles). La discrimination positive à la française les vise à travers le territoire.

L’affirmative action institue un traitement préférentiel pour ses publics par

l’attribuition de quotas à l’entrée de certaines professions ou des universités. La

discrimination positive territoriale ne se donne que des obligations de moyens pour

améliorer le fonctionnement de certains services, jamais directement les chances de

tel ou tel public. [...] La discrimination positive territoriale vise à compenser les

365

RENAULT, B. op., cit., 1997. Em livre tradução: “para identificar uma discriminação positiva deve-se ter a

presença de um grupo de indivíduos suficientemente definido, de uma discriminação estrutural de que os

membros do grupo são vítima, e por fim de um plano de estabelecer metas e definir formas de implementar e

corrigir a discriminação contemplada. Conforme o caso, o plano é adotado ou imposto por uma autoridade

pública ou é fruto de uma iniciativa privada.” 366

CONSEIL D’ÉTAT. Op., cit., 1996. “Regulamentos especificamente concebidos para favorecer uma classe

de pessoa por causa de sua origem.” (tradução livre)

Page 143: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

143

difficultés particulières que rencontrent les gens qui vivent dans ces cités, y exercent

une fonction publique ou privée. Mais elle ne fait que cela, de la compensation.367

Desse modo, como já largamente frisado, diferentemente do que se observa em

outros Estados europeus, no Brasil e nos Estados Unidos, as discriminações positivas,

segundo sua concepção francesa, irrigada pelo universalismo implica a luta contra as

discriminações raciais sofridas pelos indivíduos, mas outrossim a recusa de reconhecer

direitos coletivos a grupos raciais. Desde 1789, a França se comprometeu em garantir a cada

um o direito de uma cidadania igualitária independentemente de suas singularidades raciais ou

culturais. Mas não admite o comunitarismo, que, segundo o Conseil Constitutionnel seria

definida como “la reconnaissance de droits collectifs à des groupes définis par une

communauté d´origine, de culture, de langue ou de croyance”368

Isso significa, portanto, que a França não somente se recusa a conceder direitos às

minorias étnicas como nem sequer lhes reconhece a existência sob seu território, é dizer, à

política de diferenciação clamada pelo comunitarismo, o Estado francês preferiu manter-se

fiel a seu modelo de integração.

Nessa toada, por exemplo, o Conseil Constitutionnel se opôs às tentativas

propostas pelo parlamento de reconhecer “la communauté historique et culturelle vivante que

constitue le peuple corse,”369

e de fazer obrigatório o ensino da língua de Córsega em

determinadas escolas.370

Da mesma forma, julgou ser incompatível com a Constituição francesa um

importante tratado do Conselho Europeu, a Carta europeia de línguas regionais de 5 de

novembro de 1992, por acusá-lo de “porter atteinte aux principes constitutionnels

d’indivisibilité de la République, d’égalité devant la loi et d’unicité du peuple français […] en

367

DONZELOT, J.; MEVEL.C. La réaction républicaine, PLUS, n° 56, 2001. Disponível em :

http://epublications.unilim.fr Acesso em: 10.04.12. Em tradução livre, tem-se: “As duas políticas diferem [...]

tanto em seus respectivos pontos de aplicação quanto em suas ambições. A affirmative action define seus

destinatários através da raça (as minorias étnicas), do gênero (mulheres, outras minorias sexuais). A

discriminação positiva à francesa existe em função do território. A affirmative action institui um tratamento

preferencial para seus destinatários pela atribuição de cotas para o ingresso em determinadas profissões ou

universidades. Na discriminação positiva territorial, concedem-se somente os meios para melhoramento de

certos serviços, jamais diretamente se dá a chance a este ou aquele público. [...] A discriminação positiva

territorial visa a compensar as dificuldades particulares das pessoas que vivem nessas cidades e exercem a

função pública ou privada. Mas ela não faz a compensação.” 368

CC n°412 DC du 15/6/1999 Charte européenne des langues régionales ou minoritaires. Em livre tradução: “ o

reconhecimento de direitos coletivos a grupos definidos por uma identidade de origem, de cultura, de língua ou

de crença.” 369

CC n°290 DC du 9/5/1991 Statut de la Corse. “A comunidade histórica e cultural viva que constitui o povo

corso.” (tradução livre) 370

CC n°290 DC du 9/5/1991 Statut de la Corse.

Page 144: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

144

ce qu’elle confère des droits spécifiques à des groupes de locuteurs de langues régionales ou

minoritaires, à l’intérieur de territoires dans lesquels ces langues sont pratiquées ”371

Por fim, exerceu controle de constitucionalidade na Carta de direitos

fundamentais da união europeia de 7 de setembro de 2000, contrapondo que a interpretação de

tal instrumento normativo deve respeitar os « articles 1er à 3 de la Constitution qui s’opposent

à ce que soient reconnus des droits collectifs à quelque groupe que ce soit, défini par une

communauté d’origine, de culture, de langue ou de croyance »372

“Cette résistance acharnée peut surprendre, mais il faut reconnaître qu’elle jouit du

soutien de la majorité de la population française. Le rejet par le peuple français du

projet de Constitution européenne, lors du référendum du 29 mai 2005, s’explique

ainsi essentiellement par la crainte de devoir renoncer à un modèle de société hérité

de 1789. En 2003, les Corses, les Guadeloupéens et les Martiniquais ont également

rejeté, lors de trois référendums distincts, les statuts d’autonomie renforcée qu’on

leur proposait, manifestant ainsi leur attachement au modèle national. Enfin une

enquête officielle a révélé en 2005, à la surprise du gouvernement qui l’avait

commandée, que les jeunes Français issus de l’immigration préfèrent les « valeurs

universalistes » du service public (« égalité, neutralité, compétence »), à une «

représentation ethnique de la fonction publique » qui serait douloureusement

ressentie comme « une forme d’assignation identitaire »”373

5.2.5.4 As discriminações positivas à la française em concreto

Afinal, as conhecidas por discriminações positivas existem ou não no Direito

Público francês?

Como já deslizado neste debruço, as affirmative action norte-americanas foram

adaptadas para que se alocassem no encache do princípio universalista republicano,

restringindo sua aplicação, especialmente na seara da proteção às minorias, uma vez que tal

postulado, construtor do Direito Público francês, nega-lhes reconhecimento.

371

CC n°412 DC du 15/6/1999 Charte européenne des langues régionales ou minoritaires. “Minar os princípios

constitucionais da indivisibilidade da República, da igualdade perante a lei e da singularidade do povo francês,

[...] na medida em que concede direitos específicos para grupos falantes de línguas regionais e minoritárias

nesses territórios” (tradução livre) 372

CC n°505 DC du 19/11/2004 Traité établissant une Constitution pour l’Europe. “artigos 1o a 3o da

Constituição, que se opõem a que sejam reconhecidos direitos coletivos a qualquer grupo que seja definido por

uma comunidade de origem de cultura, de língua ou de credo” (tradução livre) 373

LEBRETON, G. 2008. Em tradução livre: "Esta resistência feroz pode surpreender, mas devemos reconhecer

que ela tem o apoio da maioria da população francesa. A rejeição pelo povo francês da proposta de Constituição

Europeia no referendo de 29 de maio de 2005, e é explicada principalmente pelo temor de abrir mão de um

modelo de sociedade herdado de 1789. Em 2003, os corsos, os guadalupenses e martiniquenses também

rejeitaram em três referendos separados, os estatutos de autonomia reforçada que lhes eram propostos,

demonstrando seu apego ao modelo nacional. Finalmente uma enquete oficial revelou em 2005, para a surpresa

do governo, que a havia encomendado, que os jovens francêses oriundos da imigração preferem os "valores

universais" do serviço público ("a igualdade, a neutralidade e a competência"), a uma "representação étnica do

serviço público" que seria dolorosamente sentida como "uma forma de assignação identitária"

Page 145: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

145

Contudo, há medidas já efetivas na prática sócio jurídica do Hexágono europeu, as

quais são classificadas pela maioria da doutrina como as discriminações positivas à la

française. Tais medidas é que irão preencher o presente tópico.

Serão aqui analisados quatro tipos de medidas, as quais guardam correspondência

com a noção de ação afirmativa, a saber, a) reserva de empregos; b) o recente dispositivo que

reserva vagas ao acesso ao Instituto de Estudos Políticos de Paris para alunos escolarizados

nas Zonas de Escolaridade Prioritária (ZEP); c) discriminação positiva na função pública

francesa; e por fim, d) discriminações positivas na política, reservando maior atenção àquelas

que estão com maior tensão imbricadas à questão racial, feixe para o qual aflui este

debruço.374

As leis de 26 de abril de 1926, de 26 de outubro de 1946, os decretos de 5 de

agosto de 1953 e de 7 de agosto de 1985 reúnem regras que destinam aos veteranos dos

combates militares de guerras um tratamento privilegiado para ascender a alguns empregos

públicos (essencialmente de categorias C e D).375

Outra medida similar é o conjunto de ajuda aos jovens de bairros desfavorecidos

para ingressarem no mercado de trabalho (emplois-jeunes): o Decreto n. 2002-400 de 25 de

março de 2000 prevê que as empresas que contratarem empregados jovens residentes em

bairros desfavorecidos podem se beneficiar de reduções da carga tributária. Ainda nessa

espeque, a medida inserida na convenção assinada em 6 de setembro de 2001 entre EDF-GDF

e o Estado, fixou a duas empresas o objetivo de recrutar, durante a duração estabelecida pela

convenção, no mínimo, 10 % de jovens provenientes dos quartiers prioritaires para compor

seus quadros de empregados.376

A implementação de medidas afirmativas têm-se efetivado, também, no campo da

educação, desde 1º de julho de 1981, quando o então ministro da Educação Nacional Alain

Savary criou as chamadas Zones d´Éducation Prioritaire (ZEP).

374

Vale salientar que, dentre os jurisconsultos franceses que admitem a existência da discriminação positiva sob

o solo do Direito Público nacional, há descenso no reconhecimento de todos os casos que serão aqui elencados

como, de fato, medidas de discriminação positiva, sendo muitos destes assim identificados apenas pelos autores

que entendem o conceito do instituto de fora mais ampla. Bui-Xuan, por exemplo, entende serem discriminação

positiva apenas os casos relacionados com a função pública ou com a política francesa, sendo os demais, apenas

outras facetas do diferencialismo corretor: “des actions, à première vue três proche des discriminations

positives, ne répondent donc pas aux éléments de définition [...] d’autres mesures remplissent, em revanche, tous

les critère de la discriminations positive, em particulier dans le domaine de la fonction publique et dans le

domaisne politique.” Op., cit., 2004. Em tradução livre: “essas ações, à primeira vista bem próximas das

discriminações positivas, não contêm os elementos de sua definição [...] as outras medidas, por sua vez,

preenchem todos os critérios da discriminação positiva, em particular no que tange à função pública e à política.”

Contudo, não nos custa mencionar ligeiramente tais casos, que são sim rotulados por grande parte da doutrina

como medidas de discriminação positiva. 375

Id., Ibid. 376

Id., Ibid.

Page 146: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

146

Tal medida permite às escolas situadas em zonas desfavorecidas de se

beneficiarem de vantagens peculiares. A dimensão de discriminação étnica se mostra uma vez

que um dos principais critérios para a fixação das ZEPs foi a quantidade de crianças

estrangeiras nas localidades. É dizer, o financiamento adicional do Estado se tornou

disponível para escolas com altas concentrações de alunos filhos de imigrantes. Tem-se,

portanto, um elemento étnico incluído no critério pelo qual escolas são designadas pelo status

ZEP, uma vez que altas concentrações de grupos minoritários são estatisticamente

consideradas.377

Cette « action éducative préférentielle » se traduit principalement par les mesures

suivantes : un encadrement renforcé grâce à plus d’aides-éducateurs et/ou de

surveillants, une dotation horaire plus importante afin de réduire les effectifs dans

les classes – dans les faits, il faut bien constater que la baisse est peu significative –,

et des avantages de carrière et financiers pour les personnels (comme les professeurs

qui perçoivent une indemnité spécifique de 1100 euros par an).378

Em 26 de fevereiro de 2001, o Instituto de Estudos Políticos de Paris (IEP) passou

a adotar disposição que instituiu nova forma de recrutamento destinada a estudantes

provenientes das ZEPs, a qual se daria sem a realização de concurso, com o objetivo de

diversificação social dos alunos dentro do estabelecimento acadêmico.379

Essa iniciativa gerou grande polemica: a UNI, sindicato dos estudantes, impugnou

tal medida perante o Tribunal Administrativo de Paris, requerendo a imediata suspenção do

que fora decidido na convenção universitária. O tribunal negou em absoluto o pleito da UNI e,

posteriormente, o Conselho Constitucional declarou a constitucionalidade do ato

convencionado pelo IEP, em 11 de julho de 2001, com fundamento no preâmbulo da

Constituição de 1946.380

As discriminações positivas que foram fixadas no seio da função pública francesa

foram em geral fundadas na origem, a exemplo do caso dos cidadãos franceses mulçumanos

377

BILEK, Arnaud. Discrimination positive et inegalités: une analyse politico-économique du système des ZEP

en France. Laboaratiore d´Economie Publique (LAEP). Paris 1. Set. 2004. 378

Id., Ibid. Em tradução livre: “Esta ‘ação educativa preferencial,’ traduz-se principalmente pelas seguintes

medidas: um enquadramento reforçado com mais ajuda aos educadores e / ou supervisores, uma carga horária

mais significante para reduzir o número de alunos nas turmas - de fato, deve-se notar que a diminuição é pouco

significativa -. e vantagens de carreira e benefícios financeiros para o pessoal (como os professores que recebem

um subsídio específico de 1100 euros por ano)” 379

Ver : PROUX, Michelle. Zones d´éducations prioritaires : un chanfement social en éducarion. Revue

Française de Pédagogie. N 83. 1988. ROCHEX, Jean-Yves, Les Zones d´Éducation prioritaires depuis 1981.

Société française, n. 29, dez. 1988. 380

“Est loisible au legislateur [...] de permettre la diversification de l’accès des éleves du second degré

aux formations dispensées par l’IEP. ” CC. Décition n. 2001-450 DC du 11 julliet 2001. “É facultado

ao legislador [...] permitir a diversificação de acesso dos alunos de segundo grau em formação pelo IEP.”

(tradução livre)

Page 147: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

147

da Argélia. Estas foram adotadas antes mesmo da década de oitenta, não fazendo parte, desse

modo, do fenômeno da penetração da lógica diferencialista no Direito Público francês.381

Consistiam em medidas destinadas ao um grupo que fora vítima, num passado de

maior ou menor distância, de discriminações a respeito de sua origem ou de sua religião.

Assim, o Poder Público instalou discriminações positivas ao seu favor: pelo só fato de

pertencer a um grupo (franceses mulçumanos da Argélia) toda pessoa teria direito ao um

tratamento privilegiado em matéria de acesso às funções públicas. Visando a concretizar

resultados (a integração efetiva na função pública local e no Estado de franceses mulçumanos

na Argélia), tais medidas tomaram a forma de cotas, de vias de acesso ad hoc à função

pública. Essas leis foram examinadas pelo Conselho Constitucional à época e foram

surpreendentemente declaradas conforme a constituição.

Le Conseil Constitutionnel n’a pas censuré ces dispositions inégalitaires car, se

contentant d’un examen formel du texte, il a estimé que ces lois organiques,

adoptées dans le ‘même espirit’ que l’ordennance organique du 22 décembre 1958

devaient bénéficier de la même ‘présomption irréfragable de conformité382

Ainda quanto ao fito de atenuar a discriminação por meio do acesso a empregos

públicos, a Életricité de France (EDF) firmou acordo com o Estado desde 2001 no sentido de

reservar 10% das vagas de seus empregados a jovens de origem estrangeira.383

No intento de corrigir as discriminações fundadas em uma incapacidade, ou seja,

em favor do grupo dos incapazes, entendidos estes como os que “ont en commun une

infermité durable, laquelle fait partie integrante de leur identité,”384

foram aprovadas a lei de

23 de novembro de 1957, e bem assim a lei de 10 de julho de 1987.

A primeira criou o benefício dos empregos reservados (emplois réservés), que

criou um sistema para facilitar o acesso ao mercado de trabalho dos incapazes, que funcionava

desta forma: “pour bénéficier d’um emploi réservé, la persone handcapée doit passer un

381

Les discriminations positives em faveur des citoyens français musulmans d’Algérie sont les seules mesures

participent d’un différencialisme correctour adoptée avant la décennie quarte-vingt. BUI-XUAN. Op., cit., 2004.

Em nossa tradução: “As discriminações positivas em favor dos cidadãos franceses muçulmanos da Argélia foram

as únicas medidas de diferencialismo corretor adotadas antes da década de oitenta.” 382

MÉLIN-SOUCRAMANIEN, F. Op., cit., 1997. Em tradução livre: “O Conselho Constitucional não censurou

essas disposições de desigualdade, pois resignou-se à análise formal do texto, estimando que essas leis orgânicas,

adotadas com ‘o mesmo espírito’ que a ordem orgânica de 22 de dezembro de 1958 deveriam beneficiar-se da

mesma ‘presunção irrefutável de conformidade’.” 383

LEBRETON, G. 2008. 384

BUI-XUAN. Op., cit., 1994

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148

examen ; en cas d’obtention de la moyenne, le candidat est classé sur une liste d’attente : les

nominations sur en emplois s’effectuent ensuit au fur et à mesure des vacances de poste.”385

A outra lei fixava uma obrigação a todos os empregadores privados e públicos

com mais de vinte empregados de contar com, no mínimo, 6% de trabalhadores incapazes no

seio de suas empresas.386

Por fim, a medida de discriminação positiva mais célebre na França foi a que

intentava gerar uma igualdade política entre homens e mulheres: uma lei de 6 de junho de

2000 impôs a paridade homem-mulher nas candidaturas para eleições municipais de comunas

com mais de 3.500 habitantes. Graças a essa medida, atualmente, de forma efetiva, tem-se

quase o mesmo número de mulheres e de homens ocupando cargos de responsabilidade

política.387

385

Id., ibid. Traduz-se: “Para se beneficiar de um emprego reservado, a pessoa incapaz deve passar por um

teste ; em caso de obtenção da média, o candidato é classificado em uma lista de espera: as nomeações se

efetuarão na medida em que os postos vierem a ficar vagos.” 386

Id., ibid. 387

AUVERT, P. Op., cit.

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149

REFLEXÕES CONCLUSIVAS

As codas executadas no presente empenho epilogam-se como frutíferas. As ações

afirmativas ab initio estão em harmonia com a Teoria da Justiça de Rawls, uma vez que

procuram corrigir uma desigualdade a priori. De fato, no contrato ralwseano, almeja-se

formar uma sociedade justa desde seu nascedouro, formulando o contrato encobertos pelo véu

da ignorância, o qual impede as partes de conhecer, ao certo, que papeis ocuparão na

sociedade vindoura. Pautar-se-ão os indivíduos, nos dizeres do filósofo, no princípio da

igualdade, que garante que todos tenham oportunidades iguais inicialmente; e no princípio da

diferença, que permite que cada um, dependendo dos próprios méritos, possa ascender

socialmente, obviamente, sem gerar grandes desigualdades sociais. O espírito das ações

afirmativas é exatamente o de promover uma desigualdade para corrigir uma outra advinda

anteriormente. Assim, assegura-se um equilíbrio apoiado na ideia da garantia de igualdade de

oportunidades, exatamente como propõe a Theory of Justice.

Riscada a trajetória do negro no Brasil, constata-se que desde o iter que

percorreram para chegarem ao solo brasileiro até a forma como aqui foram enquadrados

estavam eivadas de violência, da opressão e do desrespeito a sua dignidade. Noutra banda,

eram o motor de produção que garantiu a efetividade de todos os ciclos de produção da

colônia e do Império. Com a abolição, os negros foram arremessados das senzalas para as

periferias das cidades, vivendo na pobreza e na marginalização. A dualidade de tratamento

diante da lei estende-se ao sistema de clientelismo e ao colonato, que substituiu a escravidão.

Ou seja, as liberdades e os direitos individuais constitucionalmente outorgados não são

garantidos na prática social; as práticas de discriminação e de desigualdade de tratamento

continuam sendo a regra das relações sociais.

No pós-abolição, teorias de racismo “científico” rondeavam os debates

acadêmicos, fazendo surgir a ideia de “branqueamento” da população brasileira como

tentativa patrocinada pelo Estado de “refinar” a composição da população do Brasil, fazendo

com que os negros e mestiços fossem paulatinamente desaparecendo do horizonte

demográfico brasileiro mediante sucessivos cruzamentos interétnicos. Tal concepção somente

foi cambiar-se com os escritos de Freyre, os quais descrevem a formação do Brasil de maneira

romântica, e adicionam o negro na composição étnica do brasileiro.

Contudo, dos estudos freyreanos emergiu a noção de que o Brasil viveria em uma

“democracia racial”, o que, de certa forma, serviu para mascarar o racismo de fato existente

Page 150: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

150

no país. A realidade e as estatísticas, no entanto, apontam para um Brasil bem desigual

racialmente. De fato, alcançam os postos mais altos das coletas de dados quantitativos os

negros no que diz respeito à pobreza extrema, à falta de escolaridade, desemprego, etc.

Noutro tanto, na França, a questão da discriminação é politizada, sendo inclusive

aspecto decisivo nas disputas eleitorais dos últimos anos. Realmente, a despeito do que ocorre

no Brasil, onde o debate racial se restringe aos recintos acadêmicos, ali, a questão dos

imigrantes tem proporções bastante populares.

Com os déficits populacionais ocasionados pelas guerras do século XX, a França

foi obrigada a incentivar a vinda de mão-de-obra estrangeira. Posteriormente, com a

independência das colônias francesas do norte da África, notadamente a Argélia, os

magrebinos passaram a ocupar com mais frequência o território francês.

Com as crises econômicas do século XXI, acirraram-se as disputas por emprego

no mercado de trabalho francês, o que incita ainda mais o sentimento xenofóbico dos

franceses. Ademais, o fato de a religião muçulmana ser relacionada com costumes bem

distintos dos locais, cria-se uma ojeriza ao islamismo. Esse processo é chamado pelos

sociólogos de neorracismo, uma vez que, não mais se trata de um sentimento de superioridade

de uma raça em relação a outras, como dantes, mas sim a crença de que determinados

costumes são melhores que outros.

Essa conjuntura leva a uma marginalização da população descendente de

imigrantes, que são obrigados a morar nas periferias, onde não há boas escolas, ou, muita vez,

sequer existem condições dignas de vida. Ademais, situam-se o topo dos índices de

desempregados, e, quando não, ocupam empregos volúveis e mal pagos.

Pugna-se, por derradeiro, a análise das ações afirmativas efetivadas em ambos os

países. No Brasil, ainda há relativa celeuma doutrinária no reconhecimento da

compatibilidade das ações afirmativas no ordenamento nacional. Contudo, os rumores

contrários à harmonização do instituto tombaram silenciados empós o julgamento com efeitos

vinculantes da ADPF 186, no qual, o Pretório Máximo, por unanimidade, não só reconheceu a

existência no ordenamento jurídico nacional de medidas afirmativas, amparadas pela

Constituição, mas que a reserva de vagas ou ao estabelecimento de cotas em Universidades

para grupos minoritários, como negros, não seria estranha à suprema lex, e que que as

políticas de ação afirmativa não configurariam meras concessões do Estado, mas deveres

extraídos dos princípios constitucionais.

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151

Na França, a hesitação a respeito das discriminações positivas reside no principio

do universalismo republicano, base do direito público francês, o qual, gerido da ânsia dos

revolucionários por criar uma nação una e igualitária, não reconhece a existência de grupos

minoritários, e entende que a Administração Pública francesa deve tratar a todos os cidadãos

de forma igualitária.

Como se viu, nos últimos anos, tem ocorrido um fenômeno de mutação no direito

público francês, que tem introduzido elementos de uma teoria diferencialista no ordenamento

gaulês. O diferencialismo-compensatório, já efetivamente incorporado na realidade jurídica

do País, almeja a redução da fragmentação social, a redução das desigualdades

socioeconômicas. Por isso, a diferença legislativa ou administrativa de tratamento que almeja

atingir esse fim é justificável e legítima. O diferencialismo-corretor, por seu turno, tem por

alvo a redução das discriminações dirigidas a determinados cidadãos. Essa vertente do

diferencialismo, em sua órbita moderada, fita a dar as mesmas chances a todos, combatendo a

discriminação e reparando danos eventualmente surgidos. O alvoroço doutrinário se espaira

quanto à aplicação da modalidade total do diferencialismo-corretor, na qual repousam as

discriminações positivas, a qual tem por telo oferecer à pessoa discriminada o lugar que ela

teria alcançado na sociedade se ela jamais tivesse sofrido qualquer discriminação.

A dificuldade de reconhecimento do regime está imbricada com a adiafania de sua

definição pela doutrina francesa, é dizer, há estorvos na adaptação do que se vê efetivar no

seu país-berço, Estados Unidos, com o direito público francês.

Ademais, as outras expressões do diferencialismo, a saber, o diferencialismo-

adaptador, e o diferencialismo-reconhecedor, são ainda são rechaçados de forma majorada

pelos juristas do Hexágono, por serem, segundo eles, totalmente incompatíveis com a lógica

alicerçante do direito público francês: o universalismo republicano. Tais facetas do

diferencialismo são aquelas que tomam defesa do reconhecimento de grupos minoritários na

França.

Desse modo, malgrado não se reconheçam minorias étnicas, como é o caso dos

imigrantes árabes muçulmanos e de seus descendentes, há várias medidas de discriminação

positiva no solo francês no que pertine ao plano individual, o que se convencionou chamar de

discriminação positiva à francesa, notadamente na espeque da facilitação de acesso a

empregos públicos, a universidades, a escolas, e a empregos privados, bem como no âmbito

da política.

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152

Essa é, pois, a maneira como se assentam as diferenças e semelhanças de

realidade social e jurídica no que diz respeito à discriminação racial no Brasil e na França.

Page 153: EMMANUEL TEÓFILO FURTADO FILHO - UFC

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