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“Enquanto isso na Casa da Dinda...”: a (outra) história do governo Collor contada nas páginas do Jornal da CUT São Paulo 1 MIANI, Rozinaldo Antonio (Doutor) 2 MESSIAS, Fernanda Targa (Graduanda) Universidade Estadual de Londrina/PR Resumo: O Jornal da CUT São Paulo foi criado em abril de 1991 para ser o principal veículo de comunicação da Central Única dos Trabalhadores Estadual de São Paulo (CUT/SP) junto aos sindicatos filiados. A certa altura, mais precisamente na edição nº 8 do referido periódico semanal, começou a ser produzida a seção intitulada “Enquanto isso na Casa da Dinda...”. Tratava-se de uma seção que tinha como objetivo contar de maneira irônica e humorada os absurdos cometidos pelo então presidente Fernando Collor de Mello e sua equipe de governo. A seção foi publicada até a edição nº 76, de outubro de 1992, pouco depois do então presidente Collor ter sido afastado do cargo. Este artigo tem como objetivo analisar a referida seção, apontando as suas principais características, como por exemplo, a combinação criativa de textos verbais e imagens, bem como apresentar a perspectiva crítica e classista da abordagem dos fatos que envolveram o governo Collor durante o mandato daquele que foi o primeiro presidente da República eleito pelo voto popular após o período da ditadura civil-militar. Palavras-chave: Imprensa sindical; Jornal da CUT São Paulo; Governo Collor. 1. Introdução A imprensa sindical pode ser reivindicada como uma das mais importantes e consolidadas práticas de mídia alternativa. Sem pretender, neste momento, aprofundar uma discussão em torno do conceito de mídia alternativa, tomamos por base o reconhecimento de que se trata de toda produção comunicativa que, fundamentalmente, 1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Alternativa, integrante do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, 2013. 2 Rozinaldo Antonio Miani - Graduado em Comunicação Social/Jornalismo e História. Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (ECA/USP). Doutor em História pela Unesp/Campus Assis. Pós-doutor pela Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor do Departamento de Comunicação e do Programa de Mestrado em Comunicação Visual da Universidade Estadual de Londrina. Coordenador do Curso de Especialização em Comunicação Popular e Comunitária. Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Comunicação Popular (NCP) cadastrado junto ao CNPq. E-mail: [email protected] Fernanda Targa Messias - Graduanda em Relações Públicas na Universidade Estadual de Londrina. Bolsista de iniciação científica pelo CNPq. E-mail: [email protected]

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“Enquanto isso na Casa da Dinda...”: a (outra) história do governo Collor contada nas páginas do Jornal da CUT São Paulo 1

MIANI, Rozinaldo Antonio (Doutor) 2 MESSIAS, Fernanda Targa (Graduanda) Universidade Estadual de Londrina/PR

Resumo: O Jornal da CUT São Paulo foi criado em abril de 1991 para ser o principal veículo de comunicação da Central Única dos Trabalhadores Estadual de São Paulo (CUT/SP) junto aos sindicatos filiados. A certa altura, mais precisamente na edição nº 8 do referido periódico semanal, começou a ser produzida a seção intitulada “Enquanto isso na Casa da Dinda...”. Tratava-se de uma seção que tinha como objetivo contar de maneira irônica e humorada os absurdos cometidos pelo então presidente Fernando Collor de Mello e sua equipe de governo. A seção foi publicada até a edição nº 76, de outubro de 1992, pouco depois do então presidente Collor ter sido afastado do cargo. Este artigo tem como objetivo analisar a referida seção, apontando as suas principais características, como por exemplo, a combinação criativa de textos verbais e imagens, bem como apresentar a perspectiva crítica e classista da abordagem dos fatos que envolveram o governo Collor durante o mandato daquele que foi o primeiro presidente da República eleito pelo voto popular após o período da ditadura civil-militar. Palavras-chave: Imprensa sindical; Jornal da CUT São Paulo; Governo Collor.

1. Introdução

A imprensa sindical pode ser reivindicada como uma das mais importantes e

consolidadas práticas de mídia alternativa. Sem pretender, neste momento, aprofundar

uma discussão em torno do conceito de mídia alternativa, tomamos por base o

reconhecimento de que se trata de toda produção comunicativa que, fundamentalmente,

1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Alternativa, integrante do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, 2013. 2 Rozinaldo Antonio Miani - Graduado em Comunicação Social/Jornalismo e História. Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (ECA/USP). Doutor em História pela Unesp/Campus Assis. Pós-doutor pela Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor do Departamento de Comunicação e do Programa de Mestrado em Comunicação Visual da Universidade Estadual de Londrina. Coordenador do Curso de Especialização em Comunicação Popular e Comunitária. Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Comunicação Popular (NCP) cadastrado junto ao CNPq. E-mail: [email protected] Fernanda Targa Messias - Graduanda em Relações Públicas na Universidade Estadual de Londrina. Bolsista de iniciação científica pelo CNPq. E-mail: [email protected]

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“agrega o sentido do contra-hegemônico e, por vezes, pode representar a ruptura com os

sistemas e processos comunicativos convencionais, entendidos como empresariais e

mercadológicos, marcados por uma dinâmica conservadora, autoritária e unidirecional”

(MIANI, 2010, p.298).

Nesse sentido, a imprensa sindical 3, como parte constitutiva de um complexo

mais amplo que é a comunicação sindical, se apresenta como contra-hegemônica na

medida em que se constitui como estratégia de uma organização política classista que

rompe com processos mercadológicos na ordem da mídia empresarial e corporativa.

Pois bem, essa imprensa sindical, em sua expressão mais criativa, tem sido

responsável pela produção de importantes experiências comunicativas, inclusive,

criando gêneros comunicativos próprios para atender às especificidades de seu público e

de seus objetivos políticos.

Um exemplo significativo nesse sentido foi a experiência da seção “Bilhetes do

João Ferrador”, que circulou no jornal Tribuna Metalúrgica do Sindicato dos

Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema entre 1972 e 1980, e que “se

tornou um ícone da imprensa sindical e um instrumento efetivo da luta política dos

trabalhadores contra a ditadura militar” (MIANI, 2007, p.1).

Além dos “Bilhetes do João Ferrador”, e tantas outras experiências criadas no

contexto da imprensa sindical que poderiam aqui ser registradas, destacamos a seção

“Enquanto isso na Casa da Dinda...”, do Jornal da CUT São Paulo, que colocava na

ordem do dia uma análise crítica e bem humorada das mazelas, das maracutaias e das

articulações do governo Collor (1990-1992) e suas implicações para a classe

trabalhadora.

Diante disso, este artigo tem como objetivo analisar a seção “Enquanto isso na

Casa da Dinda...”, apontando as suas principais características, bem como apresentar a

perspectiva crítica e classista da abordagem dos fatos que envolveram o governo Collor.

Para tanto, faremos inicialmente uma breve descrição analítica do que foi a referida

seção e também faremos alguns apontamentos sobre a conjuntura política da época,

para, posteriormente, analisar algumas edições da seção, procurando identificar os

elementos da crítica apresentada pelo movimento sindical ao governo Collor.

3 Nos referimos aqui à imprensa sindical no âmbito das classes trabalhadoras. Reconhecemos que existe uma imprensa sindical produzida pelas organizações e sindicatos patronais, mas esta imprensa não se constitui como uma prática contra-hegemônica, pois as organizações responsáveis por sua produção são, por sua própria natureza, representantes dos setores da burguesia.

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2. O Jornal da CUT São Paulo e a seção “Enquanto isso na Casa da Dinda...”

Conforme informações obtidas no site da Central Única dos Trabalhadores

Estadual de São Paulo, “a CUT/SP foi a primeira estadual fundada no país, depois da

CUT Nacional, que foi fundada em 28 de agosto de 1983. A estratégia de criar as

estaduais teve o objetivo de disseminar as políticas cutistas nos 27 Estados, visando

organizar a classe trabalhadora” (CUT, 2012).

Numa importante decisão política dos dirigentes estaduais da referida central

sindical, em abril de 1991 4 foi criado o Jornal da CUT São Paulo para ser o

“Informativo semanal da Central Única dos Trabalhadores - São Paulo” (CUT/SP) e que

se tornou o principal veículo de comunicação da organização durante toda a década de

1990. Daniel de Oliveira Figueiredo e Carla Fernanda da Silva de Morais apresentam as

principais características editoriais da publicação:

O jornal possuía formato tablóide variando entre quatro e oito páginas dependendo do volume de notícias produzidas. Em sua primeira página eram apresentados os destaques da edição com chamadas, imagens e frase de impacto; na página dois havia sempre o editorial, além de notas, recados, colunas de opinião (apenas em alguns números); nas demais páginas se discutiam as notícias da semana e os textos de debate (FIGUEIREDO; MORAIS, 2009, p.52).

A partir da edição nº 8, de maio de 1991, começou a ser produzida a seção

“Enquanto isso na Casa da Dinda...”. A criação e a edição da seção foram atribuídas aos

jornalistas Cid Marcondes (editor geral do semanário), Marcos Palácio e Silvio de

Sousa e aos ilustradores Gilmar Barbosa, Márcio Baraldi e Hércules Sanches. A seção

foi publicada em quase todas as edições 5 até a edição nº 76, de outubro de 1992.

Segundo Figueiredo e Morais,

A estratégia de constituir uma sessão (sic) regular no jornal respondia a objetivos definidos. A identificação dos leitores com personagens e raciocínios frequentes constitui uma ligação com o público e funciona como atrativo para as edições subsequentes. Dessa maneira, a sessão (sic) “Enquanto isso na Casa da Dinda”, arriscamos afirmar, construiu um grupo de leitores permanentes que esperavam as edições posteriores com ansiedade e elaboravam seu imaginário e

4 Abril de 1991 foi a data de circulação da edição nº 1 do Jornal da CUT São Paulo. Porém, em agosto de 1990 foi produzida a edição número zero como uma preparação para o lançamento da publicação que teria periodicidade semanal a partir do primeiro semestre do ano seguinte. 5 Exceto nas edições 46, 61 e 68; no total, 66 edições do Jornal da CUT São Paulo contou com a publicação da seção “Enquanto isso na Casa da Dinda...”.

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compreensão sobre o período de gestão do presidente Collor com base nos textos e charges ali publicados (FIGUEIREDO; MORAIS, 2009, p.62).

Uma boa caracterização do que a seção “Enquanto isso na Casa da Dinda...”

vinha representando, no auge de sua existência, foi apresentada, de maneira escrachada

e objetiva, pelos próprios produtores da referida seção na edição nº 27 do Jornal da

CUT São Paulo, de outubro de 1991. De acordo com os jornalistas,

Tem sido praxe na nossa coluna (ou sessão) (sic) “Enquanto isso na Casa da Dinda” fazer brincadeiras com as “putarias” que ocorrem no Brasil. Nosso objetivo, temos certeza, sempre foi entendido pelos nossos leitores como uma forma de dizer a verdade utilizando uma forma mais leve e descontraída de falar a verdade. Afinal, a imprensa sindical não precisa ser chata e mal-humorada. (JORNAL DA CUT SÃO PAULO, nº 27, 1991, p.4).

Vale registrar que o nome da seção também despertava curiosidade nos leitores.

A explicação mais plausível também foi apresentada por Figueiredo e Morais:

O nome “Enquanto isso na Casa da Dinda” fazia referência clara a uma escolha do presidente em residir em uma mansão de sua família (particularmente, de sua madrinha, avó de Leda Collor, mãe do ex-presidente) durante seu mandato, contrariando a história e as expectativas de morar na Granja do Torto ou no Palácio da Alvorada, residências funcionais e oficiais da Presidência da República (FIGUEIREDO; MORAIS, 2009, p.61).

A decisão de Fernando Collor de Mello em ocupar uma moradia particular (de

propriedade da família) e não uma residência oficial da Presidência da República fazia

parte de uma estratégia do então presidente de conquistar a simpatia do povo. Collor

alegava que a opção de ocupar uma residência oficial se caracterizaria como uma

escolha de “marajá” e, como seu lema de campanha foi “o caçador de marajás”, ele

argumentava que estava sendo coerente em sua decisão de não se “beneficiar” daquele

suposto privilégio.

No entanto, contrariamente à expectativa criada, durante seu mandato como

presidente da República, e sua respectiva estadia na Casa da Dinda, Collor foi alvo de

inúmeras denúncias de corrupção, inclusive, de escândalos envolvendo obras e reformas

em sua moradia oficial, como a reforma dos jardins da Casa da Dinda. Até mesmo a

Revista Veja, em reportagem de Orlando Brito e Policarpo Jr., denunciou o episódio:

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Os jardins babilônicos de Fernando Affonso Collor de Mello são a sétima maravilha da corrupção do governo e servem como monumento vegetal à farsa collorida. No domingo 30 de agosto, Fernando Affonso teve o pejo de sustentar na televisão que a reforma dos jardins da Casa da Dinda foi uma obra menor. Acusou a CPI de mentir ao dizer que a obra custou "milhões de dólares" e encerrou informando que o seu Éden particular é típico "das boas residências de Brasília”. [...] Na semana passada, o paisagista José Roberto Nehring, dono da Brasil's Garden, a empresa que ficou três anos erguendo a mordomia botânica do casal Malta-Collor, prestou depoimento à Polícia Federal sobre o caso e, em seguida, deu uma entrevista exclusiva à VEJA. Nehring, conhecido em Brasília como "paisagista do rei", desmonta peça por peça o pronunciamento de Fernando Affonso. "Nada foi reconstruído", diz Nehring. "As obras começaram em maio de 1989 e foram concluídas em junho passado." Ele calcula que nesse período recebeu 2,5 milhões de dólares, parte diretamente de PC Farias, outra de seus fantasmas e uma terceira de Cláudio Vieira, o secretário particular de Collor (BRITO; POLICARPO JR., 1992).

Como se pode verificar, a história registrou completa incompatibilidade entre o

discurso de moralização de Fernando Collor de Mello e suas práticas efetivas (de

corrupção) na condução do governo. Para além disso, não foi apenas a corrupção que

marcou o governo Collor; a aplicação de uma política econômica voltada para atender

aos interesses do capital internacional e alguns setores da burguesia nacional, em

detrimento dos interesses dos trabalhadores, e uma política social insuficiente para

atender às necessidades dos “descamisados” e “pés descalços” (expressão utilizada por

Collor para se referir aos setores mais pobres da sociedade brasileira) marcaram

decisivamente a história do governo Collor.

Fernando Collor de Mello foi o principal responsável pela implantação do

neoliberalismo no Brasil, que depois foi intensificado e consolidado pelo governo de

Fernando Henrique Cardoso. Com um discurso de “modernização”, Collor promoveu

uma abertura comercial irresponsável, resultando num desmonte progressivo da

indústria nacional, e impulsionou um programa de privatizações, por meio do Programa

Nacional de Desestatização (PND), que destruiu boa parte do patrimônio público

brasileiro. No campo social, o principal legado do governo Collor foram os recordes

sucessivos de desemprego e o estabelecimento de uma recessão das mais perversas da

história brasileira.

Os principais episódios dessa história foram retratados pelo Jornal da CUT São

Paulo na perspectiva dos trabalhadores. Numa linguagem bastante apropriada à

especificidade do público, recheada de ironia e humor, a seção “Enquanto isso na Casa

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da Dinda...” apresentou por quase um ano e meio alguns absurdos praticados pelo

governo Collor e seus aliados políticos.

3. O governo Collor na mira da seção “Enquato isso na Casa da Dinda...”

A seção “Enquanto isso na Casa da Dinda...” apareceu pela primeira vez no

Jornal da CUT São Paulo na edição nº 8, de maio de 1991. Desde então, pequenas notas

jornalísticas, breves reflexões a respeito de temáticas da conjuntura política, fotografias

e, principalmente, charges apresentaram de maneira crítica, com ironia e humor, fatos

do cotidiano da política brasileira envolvendo personalidades públicas ou situações

polêmicas do governo Collor.

Nas primeiras edições, havia uma quantidade bastante significativa de textos

verbais que, gradativamente, foram dividindo espaço com imagens, ora fotografias ora

charges - estas que deram o tom humorístico à referida seção. Geralmente publicada na

última página do semanário 6, a seção não tinha um tamanho definido; chegou a ocupar

uma página inteira ou apenas um box num dos cantos da página.

Para este artigo, selecionamos cinco edições da seção “Enquanto isso na Casa da

Dinda...”, a começar pela primeira edição do Jornal da CUT São Paulo que publicou a

referida seção, como já registrado, em maio de 1991. Composta apenas por texto verbal

e ocupando completamente o espaço da última página (Figura 1), a seção fez referência

a várias personalidades políticas, em seis pequenas notas jornalísticas.

Os seis blocos de texto apresentam comentários críticos a respeito de

determinados acontecimentos políticos ou personalidades da época. Duas notas fazem

referência ao então ministro do Trabalho e Previdência Social, Antônio Rogério Magri

(que, aliás, seria um dos principais alvos dos criadores da seção), numa delas

questionando sua “honestidade” em relação ao recebimento de dois salários e, em outra,

ironizando sua “folclórica” mania de dizer palavras difíceis (ou inventar palavras) e

dizer coisas absurdas.

Indicando que a seção iria concentrar esforços, dentre outras prioridades, em

criticar e denunciar as maracutaias envolvendo o governo e os setores pelegos do

movimento sindical, em especial a Força Sindical e seu presidente Luiz Antonio de

Medeiros, a seção apresentou uma nota denunciando a liberação de recursos da Caixa

6 Apenas nas edições nº 71 e 72 a seção ocupou o espaço do editorial, na página 2, e nas edições nº 35 e 75 que a seção “Enquanto isso na Casa da Dinda...” foi publicada na capa do Jornal da CUT São Paulo.

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Econômica Federal para a referida central sindical, para que esta pudesse construir sua

escola de formação profissional, justamente às vésperas de uma Greve Geral convocada

pela CUT e após o anúncio da Força Sindical de que não participaria da referida

mobilização nacional.

FIGURA 1

Fonte: Jornal da CUT São Paulo - Ano I - nº 8 - maio/1991, p.4

Outra nota relacionada a essa questão fez referência à declaração do sindicalista

José Ibrahim, também ligado à Força Sindical, de que não apoiaria a Greve Geral; a

nota faz referência ao passado respeitável do sindicalista, mas critica sua então atitude

de compactuar com Collor e com as propostas da central sindical pelega.

O esbanjamento do dinheiro público pelo, à época, ex-governador do Piauí, que

teria comprado uma lancha e depois quatro jet-skis com dinheiro público, e a truculenta

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ação da Polícia Militar de São Paulo contra estudantes universitários que participaram

da greve geral, são os outros assuntos abordados na primeira edição da seção “Enquanto

isso na Casa da Dinda...”.

A próxima edição selecionada para nossa análise apresenta uma configuração

que foi bastante comum durante a existência da seção “Enquanto isso na Casa da

Dinda...”. A combinação de texto verbal e charge se repetiu em dezenas de edições,

geralmente com autonomia de cada um dos elementos comunicativos. Nessa edição,

publicada no Jornal da CUT São Paulo, edição nº 28 de outubro de 1991, além de uma

charge, temos a íntegra da letra da música “Presidente Mauricinho” do cantor Lobão

(Figura 2).

FIGURA 2

Fonte: Jornal da CUT São Paulo - Ano I - nº 28 - outubro/1991, p.4

A música “Presidente Mauricinho” do cantor e compositor Lobão, a quinta faixa

do seu álbum “O inferno é fogo” de 1991, lançado pela Gravadora BMG, faz referência

a algumas peripécias do então presidente Fernando Collor de Mello durante o seu

governo. Este que se apresentava como um político jovem, que gostava de explorar seu

lado atlético e esportista como jogada de marketing, que destilava a retórica da

“modernidade” como seu projeto para o Brasil, foi considerado, no final da letra da

música, como “um babaca”. Tratava-se da crítica do artista, que representava bastante

bem a opinião pública, e também a opinião dos editores da seção “Enquanto isso na

Casa da Dinda...”, a respeito de suas atitudes e de sua forma de governar.

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Ao lado da letra da música, foi publicada uma charge que não tinha relação

direta com o texto. Considerando os episódios que se sucediam à época, a charge parece

fazer referência à crise conjugal que envolvia o então presidente e sua esposa Rosane

Collor. Desde agosto de 1991, vários rumores - e algumas informações e declarações

públicas - davam conta de haver uma crise conjugal na Casa da Dinda. Foram

noticiados dois supostos romances extraconjugais da primeira-dama durante o período

em que Collor esteve na Presidência. Além disso, também já circulavam boatos a

respeito de possíveis relacionamentos homossexuais de Fernando Collor de Mello 7.

Como podemos verificar na charge, o presidente Collor parece estar angustiado e

desconfortável diante da insinuação de um homem (que não foi possível identificar),

que está sendo retirado de perto do presidente por um segurança, de que ele seria

homossexual, a julgar pela imagem da cabeça de um veado contida no balão de fala.

Como não há outras referências a respeito dessas questões no conteúdo da respectiva

edição do Jornal da CUT São Paulo, temos que considerar nossa análise como

meramente especulativa.

A terceira edição da seção “Enquanto isso na Casa da Dinda...” selecionada para

nossa análise foi publicada no Jornal da CUT São Paulo em sua edição nº 72 de

setembro de 1992. À época, a situação envolvendo o então presidente Fernando Collor

já se apresentava praticamente irreversível. O processo de impeachment já estava

pautado na ordem do dia e os integrantes da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)

haviam aprovado, em 25 de agosto de 1992, o relatório do senador Amir Lando

incriminando o então presidente da República. Era questão de tempo para que ocorresse

a votação da admissibilidade do impeachment por parte da Câmara dos Deputados 8.

Nessa edição, merece destaque o fato da seção ter sido publicada no espaço

tradicionalmente destinado ao editorial, que só havia acontecido também na edição

anterior. Na medida em que o editorial é o espaço destinado à direção da entidade para

apresentar de maneira explícita suas posições políticas, essa decisão é reveladora da

representatividade, da credibilidade e da visibilidade da seção “Enquanto isso na Casa

da Dinda...” junto aos leitores do periódico, justamente por se tratar de um momento de

intensa mobilização dos trabalhadores brasileiros em relação aos escândalos praticados

7 A Revista Veja, em sua edição de 17 de março de 1993, traz a reportagem “Última pá de lama”, apresentando informações a partir de entrevistas concedidas por Pedro Collor, irmão do ex-presidente Fernando Collor de Mello, com algumas revelações dos bastidores da Casa da Dinda. A manchete da referida edição da revista faz referência a tais revelações: “Sexo, drogas e brigas na Dinda”. 8 Isso viria a ocorrer no dia 29 de setembro de 1992 numa votação que registrou 441 votos a favor e 33 votos contra a abertura do processo de impeachment.

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pelo governo.

Vale destacar, ainda, que a seção foi constituída apenas por uma charge, prática

que se tornou bastante característica desde a edição nº 25 do Jornal da CUT São Paulo,

quando, pela primeira vez, uma única charge ocupou o espaço reservado para a seção

“Enquanto isso na Casa da Dinda...”. Desde então, mais do que antes, exigiu-se do leitor

uma perspectiva de análise intertextual, ou seja, buscando ampliar a compreensão do

sentido da charge a partir de uma leitura do conteúdo geral da publicação, pois a

intertextualidade é uma característica constitutiva da charge (MIANI, 2005).

Outro detalhe importante a ser observado é o acréscimo da expressão “o lixo”

inserido no interior do título da seção que ficou assim: “Enquanto isso (o lixo) na Casa

da Dinda...” (Figura 3).

FIGURA 3

Fonte: Jornal da CUT São Paulo - Ano II - nº 72 - setembro/1992, p.2

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A justificativa para a inserção da referida expressão fica clara na própria

imagem, que mostra o presidente Collor sentado numa lixeira sobre Paulo César Farias

(PC Farias), o seu tesoureiro de campanha, e sua esposa Rosane Collor, dividindo

espaço com vários outros objetos descartado. Considerando a conjuntura, Collor já

estava na iminência de se juntar oficialmente aos outros (por força do impeachment) no

lixo da política brasileira.

Por fim, note-se o número 171 na camisa de PC Farias como referência ao artigo

do Código Penal que trata do crime de “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita,

em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou

qualquer outro meio fraudulento” (CÓDIGO PENAL, 1940).

Seguimos nossa análise com uma edição da seção “Enquanto isso na Casa da

Dinda...” publicada na capa da edição nº 75 do Jornal da CUT São Paulo, de setembro-

outubro de 1992. Além dessa, apenas na edição nº 35, a referida seção também foi

publicada como capa do periódico. A manchete do jornal é o próprio título da seção e

apresenta uma charge ocupando toda a página (Figura 4).

FIGURA 4

Fonte: Jornal da CUT São Paulo - Ano II - nº 75 - setembro-outubro/1992, capa

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O que se verifica de imediato é uma discussão entre Collor e sua esposa Rosane,

inclusive, ambos utilizando palavras de baixo calão. Collor grita com Rosane, a

constatar pelo formato do balão e pelo elemento de paralinguagem expresso pelo

tamanho e forma negritada das palavras, que, por sua vez, lamenta a situação.

Tudo não passava de uma metáfora da situação política vivenciada pelo ainda

então presidente Collor. À época, a votação para início do processo de impeachment já

estava marcada e a expectativa era de aprovação do referido processo.

Além disso, a charge fazia uma crítica, de maneira humorada, ao excessivo

hábito de consumo da primeira-dama, principalmente de compra de roupas íntimas

femininas, que, possivelmente, era pago com dinheiro provindo de algum esquema de

corrupção. Na imagem, Fernando Collor aparece impaciente, irritado e insistente ao

pedir que Rosane deixe suas coisas para trás e o siga em direção à saída; ela,

visivelmente decepcionada, tenta levar algumas de suas peças.

Por fim, apresentamos nossa última edição para análise, que coincide com a

última edição da seção “Enquanto isso na Casa da Dinda...”, publicada em outubro de

1992 na edição nº 76 do Jornal da CUT São Paulo. Essa edição é publicada na última

página do periódico e anuncia: “JC URGENTE! Capítulo final da Casa da Dinda”

(Figura 5).

FIGURA 5

Fonte: Jornal da CUT São Paulo - Ano II - nº 76 - outubro/1992, p.8

A charge apresenta uma analogia dos momentos finais do governo Collor com a

telenovela “Pedra sobre pedra” da Rede Globo de Televisão, que estava em exibição no

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ano de 1992. Numa imagem que mostra Collor envolto em ruínas, a charge expressa a

derrota do então presidente que, depois de muitas mentiras, arbitrariedades, truculências

e maracutaias, ainda aparece arrogante e ameaçador afirmando “Eu disse: não ira sobrar

pedra sobre pedra!”

Fernando Collor, enfim, havia sido afastado do cargo de presidente da República

para que o processo de impeachment pudesse tramitar. O resultado não seria outro senão

a condenação à perda definitiva do mandato e à inelegibilidade por oito anos, que

ocorreu oficialmente em 30 de dezembro de 1992. Para tentar evitar a votação do

processo de impeachment, Collor apresentou carta de renúncia um dia antes da sessão

de votação, mas o Senado, mesmo assim, deu continuidade ao processo e decretou, por

76 votos a favor e 3 votos contra, a cassação do mandato de Fernando Collor de Mello.

4. Considerações finais

A imprensa sindical, apesar da crise política vivenciada pelo sindicalismo

brasileiro há mais de duas décadas, se caracteriza como uma importante expressão da

mídia alternativa. Em tempos de emergência do “novo sindicalismo”, a imprensa

sindical foi protagonista de importantes experiências comunicativas que marcaram a

história do movimento sindical no país.

A criatividade sempre foi reconhecida como uma grande virtude dos militantes

em geral, e dos comunicadores em particular, atuantes nas organizações de esquerda,

nos grupos populares de lutas democráticas e, principalmente, nos movimentos

populares e sindicais. A criação de gêneros comunicativos no contexto da imprensa

sindical revela bem a natureza dessa criatividade, a exemplo da seção “Enquanto isso na

Casa da Dinda...”, do Jornal da CUT São Paulo, publicado entre maio de 1991 e

outubro de 1992.

Apesar de bastante limitada, acreditamos que a análise aqui apresentada dá uma

boa dimensão da importância e das características da referida seção e nos permite

afirmar que, por meio dela, é possível compreender as condições políticas da conjuntura

da época de maneira crítica e bem humorada. A análise de outras edições da seção

“Enquanto isso na Casa da Dinda...” certamente iria enriquecer ainda mais nossas

constatações; nesse sentido, essa tarefa passa a ser uma de nossas prioridades.

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Referências

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