Ensaio: os rótulos e as ‘verdades’ absolutas

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Ensaio: Os Rótulos e as ‘Verdades’ Absolutas 1 Fernanda Matos Daniela Diniz O mundo acadêmico, cada vez mais guiado pelo gerencialismo 2 tem admitido o enquadramento do ensino e da pesquisa às lógicas de gestão de empresas. Em um ajustamento de tudo em caixinhas organizadas e nominadas, como que expostas em prateleiras de supermercados organizadas por seções, ou como estoques que adotam o modelo kanban. Permitiu- se, portanto, que as instituições responsáveis pela geração e difusão do conhecimento – atividades complexas, que demandam arte 3 , tempo e reflexão – se submetessem ao modus operandi das organizações produtoras de latas de sardinha, em uma visão linear de processo, onde impera a minimização de inputs e a maximização de outputs. Neste aspecto, igualando o trabalho do professor e pesquisador ao ofício do administrador gerencial. Alcadipani (2011) vai além, dizendo que a academia está prestes a virar fast-food, no qual os docentes prestadores de serviços precisam agradar seus alunos clientes. Nesta 1 Publicado no Linkedin / Pulse em 04 de mar de 2016. Disponível em: https://www.linkedin.com/pulse/ensaio-os-r%C3%B3tulos-e-verdades-absolutas- fernanda-matos?trk=hp-feed-article-title-publish 2 O gerencialismo quando aplicado ao ensino e a pesquisa corrói a essência da produção da produção e a divulgação do conhecimento. O problema da inserção da lógica gerencial no meio educacional é que ela passa a impor um ‘ethos’ corporativo para um tipo de atividade que pouco ou nada tem a ver com o mundo das empresas. 3 Arte no sentido de craft como aponta Mattos (2006) 1

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Ensaio: Os Rótulos e as ‘Verdades’ Absolutas1

Fernanda MatosDaniela Diniz

O mundo acadêmico, cada vez mais guiado pelo gerencialismo2 tem admitido o

enquadramento do ensino e da pesquisa às lógicas de gestão de empresas. Em um ajustamento

de tudo em caixinhas organizadas e nominadas, como que expostas em prateleiras de

supermercados organizadas por seções, ou como estoques que adotam o modelo kanban.

Permitiu-se, portanto, que as instituições responsáveis pela geração e difusão do

conhecimento – atividades complexas, que demandam arte3, tempo e reflexão – se

submetessem ao modus operandi das organizações produtoras de latas de sardinha, em uma

visão linear de processo, onde impera a minimização de inputs e a maximização de outputs.

Neste aspecto, igualando o trabalho do professor e pesquisador ao ofício do administrador

gerencial.

Alcadipani (2011) vai além, dizendo que a academia está prestes a virar fast-food, no

qual os docentes prestadores de serviços precisam agradar seus alunos clientes. Nesta

necessidade de sempre agradar, ou seja, acrescida à arte de animar salas de aula e auditórios,

está a participação na ‘Corrida Maluca4’ dos pontos de produtividade no âmbito da pós-

graduação stricto sensu. Mas, “não é só a pontuação da Capes como meta que desvirtua nossa

almejada produção, mas, também, o modo como atingimos esses pontos” (Bertero et al.;

2013). Outros problemas à lógica de produção está a ‘noção de autoria’ que ‘está à beira de

ser desvirtuada’, bem como o ‘horror à crítica’ que se estabelece.5 Ou seja, os pesquisadores

não realizam uma leitura aprofundada, crítica e posicionada das teorias e métodos produzidos

em outros países. Barros e Carrieri (2013) advertem que é preciso colocar o conhecimento sob

análise a partir de um olhar histórico, buscando entender seu aparecimento e seu

1 Publicado no Linkedin / Pulse em 04 de mar de 2016. Disponível em: https://www.linkedin.com/pulse/ensaio-os-r%C3%B3tulos-e-verdades-absolutas-fernanda-matos?trk=hp-feed-article-title-publish2 O gerencialismo quando aplicado ao ensino e a pesquisa corrói a essência da produção da produção e a divulgação do conhecimento. O problema da inserção da lógica gerencial no meio educacional é que ela passa a impor um ‘ethos’ corporativo para um tipo de atividade que pouco ou nada tem a ver com o mundo das empresas.3 Arte no sentido de craft como aponta Mattos (2006)4 Referência aos desenhos de Hanna Barbera (1968)5 Alcadipani (2011); Bertero et. Al (2013)

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desenvolvimento. Esse “produtivismo6” conduz justamente a problemas de reprodução, de

falta de originalidade e baixo aprofundamento nas questões epistemológicas e teóricas, tão

caras a uma produção científica de qualidade.

Nesse regime produtivista, pesquisadores subjugados vivem a dicotomia de publicar

em maior quantidade. Mas o que interessa mais à ciência: publicar muito ou desenvolver

estudos que possam contribuir para o avanço do conhecimento na área e para elucidar

fenômenos brasileiros? Estuda-se muito pouco a Administração no Brasil. Uma das razões de

falta de originalidade deve-se ao fato de olharmos muito pouco para a realidade local (Paula,

2013).

Os pesquisadores enfrentam, ainda, a ira de outros competidores que defendem outras

linhas e/ou métodos. Além do produtivismo é preciso observar o paroquialismo7,

estrangeirismo e o colonialismo8. Isto é, a academia está limitada por posições antagônicas,

preconceitos, antagonismos de natureza profissional e pessoal que comprometem a

possibilidade de se criar uma agenda construtiva de debates entre diferentes perspectivas. É

preciso ter cuidado, ser político.

Nossa comunidade, como observado por Bertero et al. (2013), aplica etiquetas a

autores e teorias com frequência, citando algumas delas: neoinstitucionalista, universalita,

funcionalistas, estruturalistas, afinal quantos ‘istas’ pode haver!? Quantitativos ou

qualitativos. Por que a necessidade de se escolher apenas um caminho ou uma linha? Porque

atermos a cercas e terrenos tão demarcados!? E porque classificarmos e definirmos o nosso

estudo em um ‘paradigma’ ou ‘posição’?

A evolução do conhecimento sociológico e organizacional não ocorre por meio de

dicotomias e antagonismos, mas com a adoção de uma perspectiva que buscar somar as

diversas abordagens e interesses cognitivos. Faz-se necessário superar a mentalidade

paradigmática inserida por Burrell e Morgan (1979)9, com a intenção de tonar os estudos

organizacionais um campo mais pluralista e flexível, sem amarras.

6 Produtivismo, para Bertero et al. (2013, p.182) é a atitude desequilibrada na qual a qualidade, a pertinência e os padrões éticos cederiam ao imperativo de pontuações e CVs recheados de títulos. 7 O paroquialismo ou provincialismo, como define Bertero et al. (2013 p.182), é uma atitude desequilibrada na avaliação de autores, de teorias e da produção científica em geral, que acabam sendo sobreapreciados pelo fato de ser nacionais.8 Colonialismo acadêmico, no qual aqueles que avaliam nossa produção raramente são imparciais. Bertero et al. (2013).9 Citados nos textos de Machado-da-Silva et al. (1990), e Paula (2013)

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Essa imposição dos modelos enlatados e rotulados não é recente, nem exclusivo à

academia. O diretor Hector Babenco no filme ‘Brincando nos Campos do Senhor’10, baseado

em um livro de mesmo nome, faz uma crítica narrativa permeada pela matriz ocidental do

pensamento único, os missionários impondo uma visão de mundo, uma origem legitimada

pela ortodoxia fundamentalista ou católica. Aborda a dificuldade que as pessoas têm em

aceitar o que é diferente e a tentativa incansável de torná-los iguais.  Nessa visão, o outro

“indígena, selvagem, pecador, preguiçoso” precisa ser “pacificado, civilizado, disciplinado,

convertido, trazido da escuridão à luz, ser um bom cidadão”, tendo ainda, como pano de

fundo o interesse pela terra. Ainda nessa linha, da aceitabilidade do outro, apesar de

construídas a partir da mesma ‘base’ de crença e os fundamentos do Cristianismo, Católicos,

Presbiterianos, e outras denominações, que rotularam Deus em seitas que muitas vezes se

agridem, em que se mata e morre em nome de uma ‘verdade’ absoluta, construída do rótulo.

Rótulos deveriam ser utilizados apenas para produtos, não para pessoas. Mas não

somos neutros, enquanto professores e pesquisas, percebemos que é uma mistura de vários

rótulos que nos aproxima e nos afasta dos outros que são diferentes. Seriam eles os diferentes

ou seriam nós? Quem nos empodera de sermos o modelo ou torna ‘nossa verdade é a verdade

universal’?. Mattos (2009, p.356) corrobora com a discussão, ao afirmar que Karl Popper - O

filósofo e professor emérito da London School of Economics and Political Science – nos traz

fortes ensinamentos. Para Popper é preciso, sobretudo na profissão acadêmica, “ser crítico e

criterioso em relação à própria experiência ou aos ‘fatos’ que nos são relatados, e que

absorvemos [...] sob o estereótipo do ‘fato, pura realidade’ ou ‘fato, argumento definitivo’”.

Misoczky e Vecchio (2006), acrescentam ainda que um dos fatores mais frustrantes

no campo da administração é a incapacidade da maioria de seus personagens de aceitar a

provocação para pensar a possibilidade de que possam existir arranjos organizacionais e

políticos diferentes dos atuais. Uma das causas dessa incapacidade está na aceitação acrítica

de discursos e prescrições que compõem a tradição teórica dos estudos organizacionais.

Politicamente, uma teoria ganha novos adeptos quando outros indivíduos e grupos

referenciam o trabalho atestando sua concordância ao divulgado. Paula (2013 p.19) adverte

que um “ponto crucial para a sustentação e a sobrevivência das perspectivas alternativas” é a

integração dos pesquisadores que as sustentam, sem ela o movimento que permanece dividido

e perde sua força. Neste caminhar, quanto mais adeptos mais força e repercussão. Nesse

10 At Play in the Fields of the Lord é um filme estadunidense-brasileiro de 1991, filmado na Amazônia, do gênero drama, dirigido por Hector Babenco e com roteiro baseado em livro de Peter Matthiessen.

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sentido, no meio científico-acadêmico, devemos seguir junto com a maioria ou devemos

buscar maior pluralidade?

Referências

ALCADIPANI, R. Academia e a fábrica de sardinhas. Organizações & Sociedade, v.18, n.57,

p.345-348,2011.

BABENCO, Hector. Brincando nos campos do senhor. Filme, 1991.

BARROS, A. N; CARRIERI, A. P. Ensino superior em Administração entre os anos de 1940

4 1950: uma discussão a partir dos acordos de cooperação Brasil-Estados Unidos. Cadenos

EBAPE.BR, v.11, n.1, p.256-273, 2013.

BERTERO, C. O; ALCADIPANI, R.; CABRAL, S.; FARIA, A.; ROSSINI, L. Os desafios da

produção de conhecimento em Administração no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, v.11, n.1, p.182-196,

2013.

MACHADO-DA-SILVA, C. CUNHA, V.C. DA; AMBON, N. Organizações: o estado da arte

da produção acadêmica no Brasil. In: Encontro Nacional de Programas de Pós-Graduação em

Administração, 14, 1990, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Anpad, 1990. V.6,p. 11-28.

MATTOS, P. L. C. L. Administração é ciência ou arte? E que podemos aprender com este

mal-entendido? RAE, n.3, v.49, São Paula, p. 349-360. Jul./set. 2009.

MISOVSKY, M. C..; CARRIERI, A. P. Notas provisórias sobre o desenvolvimento e a

superação dos estudos organizacionais. In: Encontro Nacional dos Programas de Pós-graduação e

Pesquisas em Administração, 2009, São Paulo. Enanpad, 2009.

PAULA, A. P. P. Repensando os estudos organizacionais: o circulo das matrizes

epistemológicas e a abordagem Freudo-Frankfurtina. Tese Titular. Belo Horizonte: CAD/UFMG,

2013.

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