Ensaios Econômicos - Eginardo Pires

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8/10/2019 Ensaios Econômicos - Eginardo Pires http://slidepdf.com/reader/full/ensaios-economicos-eginardo-pires 1/297 Eginardo Pires ENSAIOS ECONÔMICOS

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Eginardo Pires

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13- 02-1945Cruz Alta - RS

EGINARDO PIRES19- 12-1980

Rio de Janeiro - RJ

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ENSAIOS ECONÔMICOSCopyright © 1984 by Pedro José de Souza Pires

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É vedada a reprodução total ou parcial desta obrasem a prévia autorização da editora.

Produção GráficaHéctor Ricardo

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20021 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Editor Robson Achiamé Fernandes

Coordenação EditorialVicente de Percia

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“Eginardo muito querido!O ano passado passou tão apressado, eu seique foi um corre-corre danado.O ano inteiro eu passei sem dinheiro, eu seique foi um tal de segurar essa peteca no ar,como se fosse empinar papagaio. Nem sempre tem vento.Mas sempre tem jeito pra dar,quando se trata de vida ou de morte.E se não me engano, no próximo ano vai vir aquela dose de cicuta que euvou ter que engolir,como se fosse um suco de fruta,como se fosse eu a grande maluca.Corre-corre-corre! ”19-12-80

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Sobre o Eginardo (Mário Luiz Possas)9 Resenha biográfica7 2

Excertos de cartas 18A teoria marxista das crises econômicas e as formações do Capitalismo20 Valor-trabalho e Ideologia28Posfácio ao livro “Valor e Acumulação” (Zahar Editores)64 Deterioração dos termos de troca e intercâmbio desigual79 Mudanças no padrão de acumulação no após-guerra102 Crítica da lei tendencial da baixa da taxa de lucro119 A elevação da composição orgânica do capital não tem, em si mesma, nenhum

efeito sobre a taxa de lucro150 A preferência pela liquidez e a eficiência marginal do capital, segundo

Gardner Ackley160 A industrialização excludente e suas origens180 Economia monetária e financeira (minuta para desenvolver)196 Notas sobre o problema da transição do feudalismo ao capitalismo201 Problemas atuais do capitalismo mundial213 Breve recapitulação polêmica da história econômica do Brasil226 Circular a alguns amigos do Eginardo297

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SOBRE EGINARDO

O convite que recebi para escrever esta breve nota evocativa, como ex-colega e amigo de Eginardo, foi para mim uma dupla satisfação. Primeiro, pela justificativa que me foi dada por seu pai: a confiança e o apreço que mededicava, mais do que poderia supor —afinal, não cheguei a privar de sua intimidade e nosso contato escasseou muito nos últimos anos, desde que deixei o Rio de Janeiro e me transferi em definitivo para Campinas, limitando-sea alguma correspondência e poucos encontros ocasionais. Segundo, porque,coincidentemente, acabara de tomar a decisão de dedicar à sua memória a tesede doutoramento — teórica, como ele apreciava — que estou concluindo;uma homenagem sem maior significado para quem não o conheceu, mas quese complementa nesta nota com a oportunidade de trazer a público um testemunho pessoal de quanto se perdeu com o desaparecimento prematurode Eginardo.

É verdade que um autor vale sobretudo por sua obra, e esta coletâneade seus artigos, ao lado de sua tese de mestrado em Economia já publicada,falam por si mesmas. Mas seria uma pena que o leitor ficasse privado de conhecer um pouco mais de uma personalidade intelectual capaz de penetrarcom tanta acuidade em áreas de conhecimento tão complexas e diversificadas.

Não sei se minha amostragem é ampla o bastante, mas estou certo deque a capacidade intelectual de Eginardo estava entre as mais completas quetive o privilégio de conhecer. No campo da Economia, em que pude acompanhar e apreciar sua atividade intelectual, ela tinha três características marcantes: uma sólida formação, com profundo domínio de um amplo espectrode temas, especialmente os teóricos, e da literatura pertinente; uma capacidade inexcedível, quase compulsiva, de trabalhar uma questão intrincada portodos os ângulos até esgotá-la; e um permanente engajamento crítico, que olevava a questionar insistentemente todo e qualquer ponto de vista sobre oqual pairasse a menor suspeição de dogmático ou mal fundamentado. Coerente com essa postura, preocupava-se com a dimensão política do seu trabalho,

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dedicando à luta em favor dos oprimidos de classe boa parte do seu tempo, da mesma forma com que desprezava o brilho fácil do intelectualismo de salão ou de bar.

Conheci Eginaxdo em 1974-75, em Campinas, como seu colega na primeira turma do Mestrado em Economia da Unicamp, voltando a encontrá- lo como pesquisador da FINEP, no Rio, entre 1976 e 77. Naqueles dois ano de convivência no Mestrado, ele granjeou profundo respeito de todos os seu companheiros; não só por sua inteligência, nível de formação e capacidade de expressão incomuns, mas sobretudo pela atitude modesta e democrática com que se relacionava com todos e se solidarizava com as causas justas, po mais circunstanciais que pudessem parecer. Algo mais velho que a maioria de nós, com um currículo de filósofo razoavelmente conhecido por seus ensaios na área de Epistemologia, além de recém-formado em Economia, ele des

pertava admiração e respeito entre os colegas, mas nunca inibição ou distanciamento. Aquele seu ar eternamente impassível e fleumático não refletia uma personalidade egocêntrica, mas contida e educada, incapaz de discriminar quem quer que fosse, de menosprezar com adjetivos a opinião mais irre- fletida ou de elevar o tom de voz no mais acalorado dos debates.

Por outro lado, despertava um certo temor, — mais entre os professores — no que contava até com alguma cumplicidade dos colegas, na certeza de que as aulas sobre temas mais instigantes e polêmicos seriam transformadas em debates de alto nível. O rigor com que se munia de argumentos e contra-argumentos para sustentar uma posição e a meticulosa coerência em que os alinhava, por escrito ou oralmente, mesmo quando não tinha razão —o que não era muito freqüente —, foram sua marca intelectual mais invejável. Como desmontar uma argumentação cujas premissas parecem convincentes, a lógica do raciocínio correta e a conclusão inexorável —mas contrário ao saber estabelecido, à intuição ou às evidências? Esse o enigma que Eginardo às vezes nos propunha, aos colegas e aos mestres, como que po atração ao paradoxo. Mas nunca se tratava de um sofisma deliberado, e esse

era o verdadeiro enigma.Pensando bem, creio que esta era uma faceta do seu método científico sui generis de construir convicções passo a passo. Seu senso crítico aguçado o impedia de aceitar, mesmo provisoriamente, verdades alheias, sem antes submetê-las a um exaustivo escrutínio. Por vezes, um subproduto deste processo de filtragem nos era apresentado como produto acabado —e o era de fato, do ponto de vista da construção lógica, mas nem sempre do ponto de vista teórico, quando faltava o seu próprio referencial suficientemente desenvolvido e explícito; isto é, quando ele ainda estivesse em elaboração. Ao fim de cada semestre, Eginardo e eu trocávamos para discussão posterior nossos trabalhos de fim de curso julgados mais interessantes, e me recordo de pelo menos uma vez em que, discordando do enfoque geral e da conclusões a que ele chegara, levei vários dias para descobrir o que pensava ser a falha do argumento —até voltar a discutir com ele e ser dissuadido. So

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mente anos, depois, com as idéias mais maduras, vim a compreender por que ele estava certo, e por que parecia errado: faltava apenas generalidade ao seu argumento — era mais um daqueles produtos semi-acabados de sua interminável filtragem intelectual.

Um dos traços mais impressionantes em Eginardo era sua capacidade de trabalho inesgotável. Freqüentemente ele atravessava madrugadas estudando e fazendo anotações. A carga de leitura do curso era pesada, e muitos de nós conseguíamos dar conta dela, mas ainda assim estudávamos bem menos que ele. Um dia descobri o mistério: Eginardo estava fazendo dois cursos em um. Aproveitando indicações bibliográficas suplementares, ele montou para si praticamente um curso paralelo em torno do tomo II d‘0 Capital, de Marx —quase sempre ignorado, seguido da controvérsia de Cambridge sobre a teoria do capital, da obra de Sraffa, de uma leitura sistemática das teorias pós-keynesianas de crescimento econômico, e sabe-se lá mais o quê. Certamente ele extraiu mais do curso que qualquer um de nós. Mas, pelo menos

no que me diz respeito, uma parte apreciável do proveito que tirei do curso devo a longas discussões com ele.Posteriormente, nos seminários do Centro de Estudos e Pesquisas da

FINEP, sua participação sempre foi intensa e profícua: seu processo de criar dúvidas ao propor resolvê-las pode não ser particularmente didático —nem pretendia sê-lo —, mas a tal ponto era capaz de demolir nossas convicções menos firmes, que nos obrigava a um grande e proveitoso esforço de reconstituí-las de ponta a ponta.

Deste relato, infelizmente muito parcial, emerge uma notável vocação intelectual. Acima de tudo, em meu julgamento pessoal, um exemplo de coerência em tomo da convicção de que um pensamento sério e socialmente relevante só pode ser crítico; e de que uma ciência digna desse nome não se faz nem com dogmas nem com oligopólios do poder e do saber, mas contra ambos.

Campinas, fevereiro de 1983. Mario Luiz Possas

(Ensaísta Econômico e Professor do Departamento de Economia da UNICAMP—Universidade Estadual de Campinas, SP)

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RESENHA BIOGRÁFICA DE EGINARDO PIRES

Eginardo de Souza Pires, ou Eginardo Pires, como era conhecido,nasceu a 13 de fevereiro de 1945, na Maternidade Santa Lúcia, em CruzAlta - RS. Era filho do professor Pedro José de Souza Pires e de sua primeiraesposa, Maria Tereza de Souza Pires. O pai, exercia, naquela cidade gaúcha,o cargo de Delegado Seccional do Imposto de Renda, do Ministério da Fazenda e de professor de Estatística, no Colégio N. S. dos Anjos.

Eginardo dizia que a sua “fome livresca”, provinha do hábito de seu pai ler e reler histórias para os filhos, apontando com o dedo e bem pronunciando as palavras, que iam ficando gravadas pela repetição exigida pelos pequenos ouvintes, tanto que, muito cedo, todos se foram alfabetizando. Chegando a ler, Eginardo deixou-se absorver pela biblioteca paterna.

Na capital do Estado, fez o curso primário no Grupo Escolar “General Daltro Filho” e, no Colégio N. S. do Rosário, o ginasial, que concluiuno Colégio N. S. da Assunção, ambos dos Irmãos Maristas. O curso colegial(segundo grau) prestou no Colégio Rui Barbosa, terminado em 1962.

Desde menino demonstrou grande facilidade de desenhar, hábito que jamais abandonou totalmente, tendo a família parentes e amigos conservadoseus belos trabalhos, inclusive uma história em quadrinhos. Esse interesseo fez matricular-se na Escola de Belas Artes, de Porto Alegre, da qual, noentanto, logo desistiu. Também, quando ginasiano, voltou-se a praticarcinema, monopolizando equipamento de filmagem e projeção que o pai trouxera dos Estados Unidos, realizando, com grupo por ele dirigido, um filmeque está em poder de ex-colega e amigo seu. Lendo muito sobre cinema,escreveu a respeito, alguns trabalhos bem elaborados.

Começado em Porto Alegre, no Rio de Janeiro completou o curso militar de preparação de oficiais da reserva (CPOR), sendo aspirante em 1966.

Em 1974, fez viagem de observação e estudos por muitos países da Europa, principalmente França e Inglaterra.

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Dispondo, pois, de grande apego aos livros, revelòu-se, desde o curso primário, muito estudioso e aluno aplicado, sempre obtendo as primeirascolocações, quando não o primeiro lugar.

Para melhores detalhes da laboriosa e dedicada vida, transcrevemos“memorial”, por ele preparado, para apresentar à Faculdade onde pretendia lecionar:

“Memorial: Estas páginas contêm um relato sumário de minha experiência intelectual e profissional, esclarecendo os caminhos através dos quaischeguei a me fixar no propósito de me dedicar ao estudo e ao ensino daeconomia. Como apêndice a este texto, anexo umcurriculum vitae nos moldes costumeiros, onde se encontram indicações mais precisas sobre cursos,atividades e trabalhos publicados, mencionados ao longo desta auto-apre-sentação.

Meu primeiro contacto com a vida acadêmica deu-se em 1963, emPorto Alegre, quando, com dezoito anos, fui admitido como aluno no cursode bacharelado em Direito na Universidade do Rio Grande do Sul, curso queiria concluir em 1968, no Rio de Janeiro, na Faculdade de Direito da Universidade Federal. Esta primeira opção foi determinada principalmente por razões práticas. Meu interesse intelectual predominante era a filosofia, masobter título acadêmico nesta matéria oferecia escassas perspectivas de profissionalização. Somente mais tarde se impôs para mim a necessidade de seguir mais decididamente esta vocação, apesar das dificuldades. Já residindono Rio de Janeiro, submeti-me então ao exame vestibular para o Institutode Filosofia e Ciências Sociais da U.F.R.J., classificando-me em primeirolugar no começo do ano de 1966.

Durante os quatro anos seguintes, dediquei-me intensamente ao estudoda Filosofia. Meus interesses eram bastante diversificados, e o curso doI.F.C.S. atendia a esta curiosidade, por ter como espinha dorsal quatro anosde História da Filosofia. Mas interessava-me sobretudo a corrente do pensamento contemporâneo que tem raízes na fenomenología proposta por Hus-serl no início de nosso século: o existencialismo francês. Pouco a pouco, aexperiência pessoal e a reflexão foram-me conduzindo a perceber as insu

ficiências dessa posição filosófica. Minhas dúvidas estavam concentradasnum problema particular: a recusa de Sartre, expoente desta escola, a admitir a existência do inconsciente. Dediquei-me então ao estudo da psicanálise na tentativa de me distanciar criticamente deste autor, e deste esforçonasceram dois artigos publicados em 1968 pela Revista Tempo Brasileiro:“O Insconsciente em Sartre e Politzer” e “Os ‘Écrits’ de Jacques Lacan”.

Este primeiro contacto mais sistemático com uma ciência humana — de grande importância prática (terapêutica) em nosso meio social — e a percepção de que poderia ser necessário recusar uma filosofia quando esta

entrava em choque com um conhecimento científico, colocaram-me num percurso que se prolongou em outras direções. Chegando ao fim do cursoapresentava-se com mais premência — e com poucas alternativas práticas

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—o eterno problema: o que fazer com a filosofía no Brasil? E, mesmo do ponto de vista estritamente intelectual, aquele saber abstrato e especulativo noqual eu tinha estado imerso durante anos tinha muito de decepcionante. Minha curiosidade com relação às ciências aumentava, em conseqüência, e,à procura de novo caminho, passei a me dedicar então, com outros colegas,ao estudo da Filosofia da Ciência.

Aqui se colocava, nesta passagem, a necessidade de opção, pois a reflexão filosófica sobre a ciência, em nossos dias, está dividida em duas vertentes: a primeira, predominante nos países de língua inglesa, concentra-se naanálise lógica da linguagem; a outra, fortemente enraizada na França, desenvolve-se em estreita associação com a atividade de pesquisa sobre a históriado pensamento científico e com a reflexão sobre os problemas teóricos e metodológicos com os quais os cientistas se defrontam praticamente em cadaetapa desta história. Este último caminho nos pareceu mais fecundo.

Tais estudos levaram também à publicação de dois artigos no final dadécada passada: “Sobre Heidegger” e “A Teoria da Produção dos Conhecimentos” . No essencial, eram textos críticos, tendo como objetivo de exame,diversos autores ou correntes do pensamento contemporâneo, que gozavamde razoável prestígio nos meios filosóficos de nosso país (Heidegger, Hus-serl, os positivistas lógicos). Mas, assim sendo, eles foram também, de algummodo, uma espécie de despedida, e expunham as razões de decepção diantede várias formas de filosofia expeculativa.

Chegado a este ponto, era preciso romper o impasse. Com outros ami- 1gos, também preocupados com o desenraizamento intelectual a que nos levava nossa formação filosófica, participei de grupo de estudos sobre a “realidade brasileira”, onde líamos e discutíamos nossos economistas, historia-dores e cientistas políticos. Paralelamente, impunha-se para mim a necessidade de evitar o risco da esterilidade e do diletantismo no próprio estudo dafilosofia da ciência: era preciso combinar este último com a formação sistemática e aprofundada numa determinada disciplina científica.

Diversas razões marcaram minha escolha neste momento. Meu trabalho como bancário e, mais tarde, como Fiscal do Imposto sobre circulaçãode mercadorias, tinha-me dado certa vivência das realidades do mundo das

empresas e, no curso de direito, meu interesse havia sido vivamente despertado por uma cadeira de economia política. Por outro lado, a economia estava no centro dos debates em nosso país, nesta época, e seu estudo oferecia perspectivas profissionais. Optei, então, por essa disciplina.

No início, aprofundei-me neste estudo sistematicamente, mas atécomo autodidata. Isto foi há cerca de dez anos atrás. Em 1973, no entanto,surgiu a oportunidade de fazer o Mestrado na Unicamp. Passei pelas provasdo concurso nacional, conseguindo um dos primeiros lugares. Dois anostranscorreram, a partir deste momento, durante os quais me beneficiei com

tempo máximo de disponibilidade para o estudo da teoria e da históriaeconômica, e com um convívio frutífero com os professores e alunos da-

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quela instituição. Voltando ao Rio de Janeiro, em 1976, comecei a trabalharcomo pesquisador no Centro de Estudos e Pesquisas da FINEP. O primeirotrabalho profissional nesta área teve como tema, como indica seu título, aestrutura industrial e o progresso técnico na produção de laticínios. Estetrabalho, realizado em co-autoria com Ricardo Bielschowsky, foi publi

cado em 1978 na série monográfica do IPEA.Sabe-se a importância que tem a pesquisa de campo para completar aformação de um cientista social, e, em particular, do quanto a compreensão que o economista tem dos problemas brasileiros e o próprio instrumentaanalítico que ele dispõe se transforma com esta experiência, ao longo da quaele deve sistematicamente interpretar informações — à primeira vista caóticas e díspares —sobre o universo de uma determinacla indústria. Mas a pressão íntima de antigas curiosidades e as circunstâncias acabariam por me trazer de volta a terreno mais familiar. Para obter o título de Mestre em Ciên

cias Econômicas, na Unicamp, expus sob forma sistemática os resultados delongo estudo, apresentando tese teórica sobre a controvérsia de Cambridgee os problemas da teoria do valor e da acumulação na economia políticaclássica. Esta tese foi aprovada com o grau máximo pela banca examinadoraem junho de 1978. Pouco depois, a ampliação das atividades do grupo de pesquisa sobre a História Social da Ciência no Brasil, na FINEP, dar-me-iaa ocasião de conciliar encargos profissionais com o interesse pela históriadas idéias e sua relação com a história econômica e social. Assim, a partirde setembro do ano passado, assumi, com outro colega, a responsabilidade

de desenvolver perquirições sobre a evolução do pensamento econômico noBrasil, da Segunda Guerra Mundial até o início dos anos sessenta.“Este trabalho, hoje em andamento, tem-me permitido fundir num úni

co esforço intelectual os conhecimentos adquiridos no estudo da filosofia eda história da ciência —que ajudam a equacionar os problemas fundamentaida dinâmica da transformação das idéias —e aqueles conhecimentos sobreo processo de desenvolvimento que fazem parte da formação do economistaAssim, se me disponho hoje a tentar obter a possibilidade de lecionar nessaFaculdade, é com a expectativa de que as atividades de ensino e investigações possam fecundar-se reciprocamente, e de que me seja possível, tendo passado por este aprendizado onde se reúnem múltiplas disciplinas, ser útinesta tarefa de transmitir informação adequada sobre o passado da economia e da sua teoria, que ilumina nosso presente e possivelmente também onosso futuro.” —Eginardo de Souza Pires, fevereiro de 1979.

Depois do curso de Mestrado de Economia, Eginardo dedicou-se, infatigavelmente, ao estudo das matérias da disciplina, iniciando a brilhantesérie de numerosos trabalhos pertinentes, muitos dos quais publicados nasnossas melhores revistas especializadas e, em livro, por Zahar Editores.

Integrado ao magistério de economia, foram muitos os cursos eventuais que ministrou em estabelecimentos de ensino cariocas. Convidado,realizou aplaudida conferência sobre “Davi Ricardo” , na Universidade do Pa

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raná. Sem embargo, todavia, solicitado sempre, fez muitas palestras e cursossobre temas de filosofía. Em 1979, foi contratado para professor da cadeira de “História do Pensamento Econômico”, do Departamento Econômico, da PUC, do Rio de Janeiro.

De 1978 a 1980, participou de vários trabalhos e cursos levados aefeito pelo Instituto dos Economistas do Rio de Janeiro (IERJ), do qualfoi sócio dedicado. Por isso, em virtude do seu trespasse, o jornal do IERJ(janeiro-fevereiro-1981), registrou o seguinte:

“In memoriam: Eginardo PiresEginardo Pires se foi. Os que com ele conviveram, no IERJ ou foradele, sabem o vazio que fica desta partida extemporânea. Filósofo

por formação e economista por opção, buscou na política —e nãosó na teoria — o caminho de sua realização enquanto indivíduo. Eginardo se foi. Mas sua lembrança ficará conosco, nas lutas que travamos

e nos seus livros, que sua família, generosamente, doou ao Institutoe que se constituem no primeiro grande passo para a formação da bi blioteca do IERJ.”

Em 1980, tese sua conquistou o terceiro lugar no Concurso do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico —BNDE.

De 1978 a 1980, teve destacada atuação no Instituto Brasileiro dePsi-coanálise — 1BRÁPSI, do Rio de Janeiro que, em seu jornal “Sigmund”, defevereiro de 1981, publicou pranteado necrológio:

“Eginardo Pires — in memoriam.Em dezembro último, o Brasil perdeu uma esperança. Deixou-nosEginardo, jovem filósofo e economista, intelectual crítico de primeiracategoria. Em sua breve passagem pelas atividades da nossa Instituição, foi fácil e rápido apreciá-lo em suas dimensões de amigo e estudioso. Como pessoa, o conhecemos respeitoso, doce, humilde. ComoPensador, nos impressionou por sua surpreendente erudição, a serviçode uma orientação ideológica. Em suas intervenções e seus trabalhostal inspiração adquiria um matiz marcadamente ético, estranha rique

za num meio em que a honestidade das idéias quase não existe.Chegamos a saber pouco dessa coleção de lugares comuns que as mentesminúsculas chamam “vida privada” de uma pessoa. Mas, o diálogoteórico e a colaboração institucional nos bastaram para saber consideravelmente, da fina correção de sua vida intelectual. Pouco nos interessam os motivos manifestos pelos quais optou abandonar o terrível combate que se vê obrigado a sustentar, nesse contexto, quem temos ideais que ele sustentava. Por pretencioso que pareça, nossa lutaem comum, nos permite conjecturar sobre os motivos de sua partida,

com alto grau de uma certeza que as anedotas ocultam....Despedimo-nos dele com o abraço que não chegamos a lhe dar, reconhecendo o quão difícil e trágico toma-se investigar onde as pesqui

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sas se burocratizam, escrever onde poucos leem, ensinar onde poucosservem para aprender, militar onde a história parece haver-se detido,ser autêntico no reino da impostura, ser decente na era da corrupção. Ninguém agüenta inteiro, o fogo dessa compressão infernal. Todos pagamos um preço. Às vezes exige-se-nos dar o último que temos.

Nossa chance de apostar, a) Gregório Beremblitt” .Eginardo tornou-se militante do PT, seção do Rio de Janeiro, na qual se

empregou a fundo em organização, exposições doutrinárias, palestras e seminários, compondo grupo de ação e debates.

Submeteu-se a concurso, em meados de 1979, para professor assistente da FEA, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi classificado em 4? lugar e, como havia apenas 3 vagas, não foi nomeado.

Sua vida amorosa: as mulheres que ele amou, devotado e ardoroso,embora na fórmula de Vinicius de Morais, “enquanto durava”, e que deledevem ter conservado a saudade, a amizade, o despeito ou o ódio.

Era assim, muito bem dotado, inteligência servida por sólida culturacrescente. Homem de caráter íntegro, honesto e leal nos trabalhos, pensamentos e pronunciamentos, na sua ação polarizava simpatia, apreço e imediata admiração, bom amigo, bom filho, bom irmão.

Finalmente, em maio de 1980, ocorre a sua súbita demissão da FINEP, bem como, meses depois, o seu licenciamento “ex-oficio” na PUC, etapa emque passou a sofrer dificuldades na publicação dos seus artigos técnicos, e te

ve de enfrentar francas ameaças anônimas ou telefônicas.Passou a morar na casa dos seus pais. Tais coisas muito o amarguravam e o fizeram sofrer sobremaneira. Todavia, não enfrentando problemasfinanceiros, os meses sucediam e Eginardo via restabelecida a saúde, voltava à calma e ao espírito de luta, com novos planos e motivações que examinava, antes de novos empreendimentos e trabalhos, entre os quais, uma viagem de‘estudos à França e, principalmente, levar avante a pesquisa e elaboração da sua “História do Pensamento Econômico do Brasil”, já esquematizada.

Surpreendentemente, porém, Eginardo falece a 19 de dezembro de

1980, em circunstâncias muito estranhas, sozinho em seu apartamento emSanta Teresa, vítima incontestável da intolerância e truculenta compressãoideológica, transformada em cruel perseguição, ele tão amante da liberdade,da justiça social, do respeito à palavra e pensamento, do direito de buscada verdade, de falar, escrever e agir pacífica e ordeiramente. Ele que atéas idéias marxistas, princípios e diretrizes, submetia a contínuas meditações,debates, livre sempre para aplaudi-las, refútá-las, revisá-las, negá-las.

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EXCERTOS DE CARTAS

“A auto-satisfação com o conhecimento já adquirido, do que acabeide falar, é muito relativa, pois ainda hoje a tarde tivemos nosso terceiro seminário com a M. Conceição Tavares (que afinal entrou em contato conoscoaqui em Campinas), e é impossível passar uma tarde discutindo com a Mestra, sem que isto nos deixe uma sensação de desalento e de autoconsciência da própria ignorância, em parte pela massa de informações que ela tem nacabeça (e que despeja torrencialmente sobre seus discípulos aterrados), e em

parte, pela grande dificuldade que o discípulo sente (quando acontece que ele

sente, instintivamente não poder concordar com alguma afirmação da Mestra) de formular com suficiente rapidez, uma contra-argumentação qualquer, dado o ritmo que ela impõe à discussão.”

(Em carta de 28.5.1975)“O autor destas linhas é um filósofo materialista que está profunda

mente convencido de que “criação” e “gênio” são coisas que simplesmente não existem; todas-as descobertas (ou encobrimentos) da história daciência têm certamente uma explicação histórica, e o que existe, efetivamente, é um processo histórico e coletivo de produção de conhecimentos.Diga-se de passagem, aliás, que a internacionalização das forças produtivasintelectuais é um dos fatos mais auspiciosos de nossa época; a existência deuma comunidade científica atua como um fermento de democracia e de es pírito coletivo, num mundo cada vez mais abismado nos impasses da irracionalidade, do ódio e da violência.”

(Em “Posfácio” ao livro “Valor e Acumulação”)“que, malgrado as aparências, Freud se enganava ao pensar que o ins

tinto da morte estava prestes a vencer sua batalha contra o instinto da vida em

nossa época. Ao contrário, deve-se pensar que toda criatura viva deseja nãoapenas viver, mas também contribuir para o advento de algo que a ultrapassa.(Em “Posfácio”)

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“É verdade também que nem sempre eles fazem muitas nuanças. São

obrigados alevar em conta a existência destas nuanças, para sobreviver,mas também são obrigados em grande medida a ignorá-las em seu discurso,como “contradições secundárias de Outro Lado”, pois sabem por uma longa e sofrida experiência, que a grande maioria de seus “pares”, nos maisvariados quadrantes do espectro político “ideológico” e teórico, tem em comum a firme disposição de estabelecer em torno deles uma cortina de proscrição e silêncio.”

(Em carta de 7/6/1980)

“Enfim, a situação é esta. Percebo que os tempos estão difíceis para osdefensores conseqüentes da chamada “dialética materialista”. Mas, emboraeu seja um deles, creio que posso empregar para o meu caso, uma bela ex pressão utilizada pelos católicos progressistas: “estou convencido de que pertenço ao número daqueles quetêm direito a serem criticados.” E para que eu possa ser criticado, e aprender com isto, é indispensável que eu possa ser lido e ouvido. Tenho este direito porque, há mais de dois anos, comecei a pu blicar trabalhos assinados, com meu nome, sob minha exclusiva responsabilidade, tratando de assuntos a respeito dos quais eu já tinha estudo e

refletido o suficiente para poder me pronunciar em público. E tomando posições que não eram fáceis de serem defendidas, que me expunham a re presálias por parte dos atingidos (e represálias não exclusivamente “teóricas”).”

(Em carta de 9/6/1980)

“...pois eu passei anos convivendo com bons economistas e me recusando sempre a puxar discussões filosóficas, coerente com meu pressu posto althusseriano de que o filósofo deve aprender com os cientistas e

evitar a atitude de ser um cuspidor de regras (metodológicas) desinformado.Acontece que estas coisas que digo fazem parte de uma briga que vai ocuparo resto de minha vida (e você sabe que esta, num certo nível que não éainda o desta carta, é uma briga de vida e morte). E sabendo disso, comovocê também sabe, não vou fingir ignorar que uma intervenção como estaque fiz e faço tem inevitavelmente alguma coisa de destrutivo. Acredite, noentanto, que não é uma intenção destrutiva que me move.”

(Em carta de 2/10/1978)

“Obs.: guarde a carta anexa na sua mão. Você sabe: em caso de provocação extrema, eles usam picaretas.”(Em carta de 3/6/1980)

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A TEORIA MARXISTA DAS CRISES ECONÔMICAS E AS TRANSFORMAÇÕES DO CAPITALISMO*

Castells, Manuel. A Teoria Marxista das Crises Econômicas e as Transformações do Capitalismo. Rio de Janeiro: EditoraPaz e Terra, 1979. Tradução de Alcir Henriques da Costa.

Este livro de Manuel Castells vem somar-se a um conjunto de esforçosque têm sido realizados nos últimos anos, em nosso País e no exterior, no

sentido de desenvolver análises concretas e aperfeiçoar os recursos teóricosque nos possibilitem compreender mais profundamente o significado e as perspectivas da atual crise do capitalismo1.

Segundo seu autor, a redação do livro teve como motivação imediataa necessidade de revisar e desenvolver o marco conceitua! que lhe servirade base numa obra anterior sobre a crise norte-americana (p. 15). Tal necessidade tornou-se imperativa diante das repercussões de controvérsia recente, que dividiu os teóricos marxistas em dois campos, tendo como objetoas conhecidas proposições de Marx sobre a lei tendencial da queda da taxa

de lucro2.*In - Pesq. Plan. Econ., Rio de Janeiro, p. 667 a 676 ago. 1980.

1 Uma das linhas de análise econômica mais interessantes e realistas sobre esta crise éaquela desenvolvida po r A nton io Barros de Castro no livroO Capitalismo Ainda É Aq uele (Rio de Janeiro: Editora Forense, 1979), p. 126-175. Uma orientação semelhante na teoria das crises foi anteriormente defendida e exposta, entre nós, por Paul Singer. Ver, porexemplo, o artigo “As Contradições do Milagre”,in Estudos Cebrap, n? 6 (outubro/dezembro de 1973), p. 62-69.2 Os leitores brasileiros tiveram uma primeira oportunidade de tomar conhecimentodeste debate através de um artigo de Guido Mântega, “A Lei da Taxa de Lucro: A Tendência da Queda ou a Queda da Tendência?”,in Estudos Cebrap, n? 16 (abril/junhode 1976).

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Como este debate constitui o verdadeiro pano de fundo da empresateórica de CasteUs, faz-se necessário, a título de preámbulo para esta resenha, dizer a respeito algumas palavras.

Resumiremos assim, esquematicamente, nossa posição: se os defensores da chamada “lei de Marx” (como Cogoy e Yaffe) têm o mérito de pro

curar recuperar aspectos centrais da construção teórica daquele autor contradeterminados abandonos do “marxismo keynesiano”, não escapam, no entanto, às armadilhas do dogmatismo, e parecem dispostos a reafirmar a todo custoqualquer proposição encontrável em seus textos clássicos; por outro lado, os adversários da lei tendencial (como Hodgson e Sweezy), emboracompreendam a necessidade de refletir seriamente sobre os avanços recentesda teoria neoricardiana do valor e dela extrair as conclusões que se impõem(no caso de Hodgson), mostrando com razão o que há de indefensável nastentativas habituais de explicar as crises através daquela lei, perdem de vista a

importância estratégica do que está contido na seção pertinente do LivroIII de O Capital para a análise teórica dadinâmica secular da acumulação capitalista3.

Este último ponto é essencial. Poderíamos arriscar-nos a dizer queo quiproquó fundamental, que invalida parte da argumentação desenvolvida pelos autores deambas as posições, consiste no fato de que o que está predominantemente em jogo, para eles, é a pertinência da “lei de Marx” comofundamento para a explicação das crises4. Os movimentos de longo prazo

3 O texto mais importante deste debate é o artigo de Geoff Hodgson, “The Theoryof the Falling Rate of Profit”,in New L eft Review, n? 84 (março/abril de 1974). Masé verdade também que Hodgson se excede em sua aceitação de certas conclusões neo-ricardianas (sobretudo por influência de D. Nuti), chegando ao extremo de negar a possibilidade de tratar o capital como grandeza determinada, medida em preços ou em va-lor-trabalho incorporado, num determinado momento do tempo. Proceder assim, segundo ele, implicaria considerar o capital como uma coisa, esquecendo que se trata de umarelação social (ver Hodgson,op. cit., p. 66-67). Mas o capitalé também uma coisa, para o su jeito capital ista, e impõe-se lidar teoricamente com este dado necessário. As dificuldades na mensuração do estoque de capital fixo têm sua raiz, basicamente, nofato de que este contém certo número de equipamentos velhos, de sucessivas gerações,e, ao contrário de Marx, a abordagem neoricardiana vale-se, para estimar o valor destasmáquinas, de método contábil de depreciaçãonão-linear, que é o método correto paradeterminar o preço pelo qual elas seriam negociadas num mercado de “segunda mão”,entre empresários capitalistas interessados em operar no mesmo ramo industrial. No entanto, o valor (preço) destas máquinas desgastadas, como proporção do preço de umequipamento recém-produzido, variaregularmente com a taxa de lucro,diminuindo quando esta última cai. Ver Piero Sraffa,Producción de Mercancias po r Medio d e Mercancias (Barcelona: Editora Oikos-Tau, 1966), Cap. X, p. 93-105.4 A explicação das crises através da modificação da composição do capital e da conseqüente queda da taxa de lucro é explicitamente formulada por Marx no “esboço” de

O Capital (os Grundrisse), mas encontra-se apenas sugerida, de modo ambíguo, na seçãocorrespondente de suá obra definitiva. A conclusão mais plausível que se impõe diantedesta constatação é a de que, no intervalo de tempo que separa a redação dos dois textos, teriam crescido no espírito de Marx dúvidas quanto à possibilidade de explicar as

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da composição orgânica do capital só ocupam lugar importante na discussão na medida em que é só nesta perspectiva temporal mais ampla que se torna possível verificarempiricamente se a composição orgânica tende ou não a aumentar, conforme “predizem” as versões simplificadas da lei. E, não obstante, mesmo que se recuse a suposta necessidade ou inexorabilidade deste aumento, a lei tendencial, repensada e compreendida essencialmente como

conseqüência lógica principal da teoria do valor-trabalho de Marx, permanece, sob dois pontos de vista, como um elo indispensável e de vital importância de sua construção teórica:

a) enquanto elemento essencial da teoria do imperialismo e da exportação de capitais, como indicam os textos clássicos de Hilferding, Lenin e Bukarin (para falar apenas destes); e

b) no confronto crítico da economia política marxista com a teoria econômica conservadora: demolida a função de produção neoclássica na cha

mada “controvérsia de Cambridge”, os economistas neoclássicos vêem-se privados (quando não “trapaceiam” no jogo) de uma peça que é de modo geral necessária para a elaboração de “modelos de crescimento”, isto é, da possibilidade de estabelecer, por outra via original e independente daquela sugerida por Marx, algum tipo de relação determinada entre o movimento da razão capital/trabalho e o movimento da razão capital/produto.

Não nos estenderemos aqui sobre estes dois pontos. É verdade que eles remetem-nos a problemas de evidente complexidade, que por sua importância mereceriam uma reflexão mais atenta, o que poderia, se não desmen

tir, ao menos retificar parcialmente nossas proposições. No entanto, interessa-nos agora examinar, à luz do próprio texto de Castells, de que modo ele reage teoricamente diante dos resultados do debate a que nos referimos no início desta resenha.

Com o risco de dar imagem distorcida do livro e de não fazer justiça à complexidade de sua análise, fixar-nos-emos num assunto de crucial importância para a reflexão sobre o capitalismo atual: a questão de saber se existe ou não uma tendência à elevação da composição orgânica do capital, isto é, ao aumento da razão entre o capital constante (investido na compra de meios

de produção) e o capital variável (utilizado para adquirir força de trabalho).Num espírito antidogmático, Castells começa por nos dizer (grifando ele próprio esta frase) que“na teoria de Marx não há nenhuma parte essen

cial que prediga explicitamente se, a longo prazo, pesam mais a tendência ou as tendências contrárias” (p. 30). E sua discussão a este respeito é rica e bèm informada. No entanto, à medida que avançamos na leitura, começa a se manifestar de modo cada vez mais nítido um viés: a disposição de salvar, sobre

crises por esta via. Mas é conclusão provisória, considerando-se o fato de que o Livro IIIde O Capital foi editado por Engels com base em manuscritos aos quais o próprio Marxnão teve tem po suficiente para dar forma definitiva. Sobre* o trabalho de Engels comoeditor desta parte da obra de Marx, ver Jerrold Seigel, M arx 's Fate (Nova Jersey: Princeton University Press, 1978), p. 336-347.

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tudo contra a devastação provocada pelo artigo rigoroso e contundente dHodgson, a concepção predominante segundo a qual “existe uma tendência estrutural ao aumento da composição orgánica do capital, como parte da lógica da acumulação capitalista” (p.88).

CasteUs exprime este viés não apenas ao manifestar repetidamenteceticismo exagerado quanto à possibilidade de testar determinadas proposções relacionadas com a economia política marxista através da informaçãestatística disponível —mas não elaborada para estes fins (p. 45-46 e 63-64 — como também lançando mão, em prol da sua tese, de conjunto de argmentos teóricos e empíricos de extrema fragilidade.

Este é, em primeiro lugar, argumento teórico geral, cuja substância pode ser resumida como se segue (se o despojarmos das imprecisões presentno próprio texto de Castells). De acordo com a análise de Marx, o aumentda composição orgânica poderia em princípio ser contrabalançado, ou mesminvertido, através do barateamento dos componentes do capital constanteque resulta do progresso técnico no Departamento I, produtor de meios d produção. No entanto (na opinião de Castells), isto exige a introdução, nDepartamento I, de novas máquinas produtoras de máquinas, mais eficientdo que as antigas. Segundo outra hipótese desnecessária e não demonstrad(indemonstrável), mas também admitida por Castells, estas novas máquina por representarem uma inovação, deverão “normalmente” (p. 87) ter umvalor superior ao das máquinas preexistentes. E, antes de serem introduzidana produção, continuarão por algum tempo a ser produzidas com o equipmento antigo, o que as torna mais caras, pois são fabricadas em condiçõede produtividade inferiores àquelas que elas próprias criam quando finalmete passam a operar como meios de produção. Como estes processos de “cuto prazo” se repetem continuamente, a longo prazo haveria a tendência aencarecimento do capital fixo e ao aumento da composição orgânica (p. 336 e 87-88).

5 Castells chega ao ponto de afirmar que, “ historicam ente, só é possível demonstraa existência de uma tendência secular ao aumento da composição orgânica do capitaestudando,em termos de valor, o processo de acumulação em escala mundial” (p. 64).E evidente que a aceitação destes requisitos tornaria absolutamente impraticável qualquer tenta tiva de subm eter à prova dos fatos a referida tendência. Mas estaé super-exigência metodológica inteiramente descabida. Em primeiro lugar, pode-se recorrer a estimatvas em preços, e não só em valor; a teoria do valor-trabalho, em si mesma, pode ser testada independentemente, com base em informaçõesdistintas daquelas que são adequadas para formar uma idéia a respeito dos movimentos de longa duração da composição orgânica do capital. E esta última pode eventualmente elevar-se ou diminuir, em escala mundial, à medida que o modo de produção capitalista se expande em direção àsua “periferia”. Mas este último processo é acompanhado por transplante progressivo(contraditório e relativamente bloqueado) de técnicas geradas nos centros dominantedo sistema capitalista mundial. É, portanto, não só relevante, como de importância estratégica, para a discussão em pauta, saber quais são as tendências do “progresso técnico” (da razão capital/produto ou da composição orgânica) em regiões como a Euro pa Ociden tal e os Estados Unidos.

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0 argumento se reduz às duas suposições indemonstráveis e não obstante necessárias para que ele sc mantenha em pé, isto, é, pressupõe sua pró pria conclusão. Ignora, ademais, o fato reconhecido pelo próprio Castellsem outras passagens: à medida que uma inovação se difunde, tornando obsoletos os velhos equipamentos, ela simultaneamente osdesvaloriza (p.90-91), o que deve ter como efeito tambémreduzir concomitantemente parte do valor-trabalho contido nos produtos (inclusive os equipamentosnovos) gerados por este capital fixo preexistente. Qualquer leitor atento deMarx sabe que o valor das mercadorias (máquinas, inclusive) correspondenão ao tempo de trabalhoefetivamente gasto no passado para sua produção, e sim ao tempo de trabalhosocialmente necessário (no presente) para

produziMas, segundo as condições médias de eficiência vigentes em cada momento do tempo. A seqüência daqueles “períodos curtos” em que inovaçõessucessivas se difundem no Departamento I só pode ter como resultado, nolongo prazo, uma elevação paulatina deste grau médio de produtividadesocial na fabricação de equipamentos, tendendo, portanto,a baratear o ca

pital constante.Passemos à argumentação ao nível empírico, que Castells na prática

também aceita e desenvolve, apesar de suas reservas. 'No centro da discussãoestá a série descontínua de dados anuais sobre a relação capital/produto nosetor industrial e no conjunto da economia norte-americana, de fins áo século passado até os anos 50 e 60 do século atual. Destes dados (que têm como

fonte original os trabalhos de S. H. Mage e J. M. Gillman), Hodgson extraíraa conclusão básica dainexistência de qualquer movimento sensível de elevação da composição orgânica a partir da década de 20. Castells os rediscutecom a predisposição de chegar à conclusão oposta (p. 53-57), mas menos prezando, ao fazê-lo, uma dificuldade fundamental: por se tratar de estatísticas anuais, eles refletem flutuaçõescíclicas, inclusive ciclos de curta duração. Em conjunturas recessivas, a razão capital/produto (assim como a razãocapital/trabalho) aumenta naturalmente como conseqüência do desemprego eda queda do grau de utilização da capacidade produtiva instalada. Este fe

nômeno éabsolutamente distinto das mudanças da composição orgânicado capital:na definição de Marx, estas devemrefletir (de modo direto ou invertido) mudanças na composição técnica do capital. As variações da razãocapital/produto só podem ser tomadas como indicador do movimento dacomposição orgânica na medida em que sãocorrigidas para eliminar os efeitos do ciclo e deixar transparecer os movimentos do progresso tecnológico,que são mais lentos e persistentes quanto à sua orientação geral.

Os dados de S. Kuznets também citados por Hodgson minimizam adificuldade a que nos referimos no parágrafo acima: trata-se demédias anuais

por década6 . E, se alguma tendência (estatística) se delineia a partir destes

6 Geoff Hodgson,op. cit., p. 73.

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dados, esta é bastante clara: a razão entre o capital e o produto (líquidos)decresce na economia norte-americana dos anos20 aos 607.

Mas Castells vale-se também de outros recursos: apela para dados queatestam (nos Estados Unidos e na França) um aumento da razãocapital/trabalho (p. 48-52). Repete, assim, o mesmo equívoco de Cogoy, já devida

mente apontado por Hodgson. Quando se trata de utilizar estatísticas convencionais para testar hipótese sobre os movimentos de longo prazo da com posição orgânica, o indicador teoricamente mais adequado é a razãocapital/ produto, e não, como poderia parecer à primeira vista, a razãocapital/trabalho. Em conseqüência do método através do qual estes índices são habitualmente construídos, o aumento desta última razãoê em grande parte um mero reflexo contábil do aumento da produtividade física do trabalho8.

Resta a Castells ainda um último expediente, para que os números possam exibir leve aumento da composição orgânica nos Estados Unidosdurante curto período cuidadosa e arbitrariamente escolhido. A expansãoda- grande empresa no capitalismo contemporâneo exige o emprego de quantdade relativamente grande de pessoas em departamentos de administração publicidade e promoção de vendas. Seguindo Gillman (p. 62), Castells decde-se heroicamente a considerar os gastos realizados para comprar o “trabalho vivo” destes trabalhadores improdutivoscomo fazendo parte do capital constante! E isto o conduz, segundo suas próprias palavras, à “situação paradoxal de ter de dizer que cada vez se emprega número maior de gente como ‘trabalho morto’ ” (p. 85), ou seja, em português claro, esta decisão leva-o à aberração teórica de atribuir às despesas com a compra deste trabalho“improdutivo” o mesmo estatuto conceituai do trabalho produtivo passado “coagulado”, como dizia Marx, no estoque de equipamentos.

Voltemo-nos agora para a última parte do trabalho de Castells, ondeele nos expõe sua própria alternativa teórica para a análise das crises no captalismo contemporâneo. Este esforço teórico tem como inspiração e é guiad

7 Pode-se dizer mais, em consideração aos que só consideram pro dutivos os setores que

geram mercadorias, excluindo os serviços: uma tabela do artigo de Hodgson contendodados mais desagregados elaborados por Kuznets (ver Hodgson,op. cit., p. 74) revelaque naqueles ramos de produção como extração de metais e metalurgia, que, numa primeira (e ainda grosseira) aproximação, poderiam ser considerados como representativos do Departamento I, ocorre uma queda drástica da razão capital/produto desde oinício do século. E quem tenha alguma familiaridade com autores como Bertkiewicz,ou com artefatos teóricos como a curva de lucros-salários neoricardiana, sabe que umdecréscimo da composição orgânica na produção de meios de produção tende aelevar a taxa de lucro máxima e a fazercair a razão capital/produtono conjunto ou em qualquer subsetor do sistema econômico (articulado com o subsetor correspondente doDepartamento I).

8 Geoff Hodgson,op. cit., p. 71, nota 37. Ver também Bob Rowthorn, “ Late Capi-talism”, Zn New L eft Revie w, n? 98 (julho/agosto de 1976), p. 65-66, ou a tradução brasileira “O Capitalismo Tard io” ,in Cadernos de Opinião, n? 14 (outubro/novem bro de 1979), p. 43-44.

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por preocupação antimecanicista e antieconomicista, a mesma que anos atráslevou um autor não citado por Castells (Étienne Balibar) a escrever que “aanálise da mais-valia é a análise de uma combinação interna de formas determinadas de luta de classes9'" e a iniciar o artigo onde aparece uma afirmação com as seguintes palavras: “A teoria científica marxista (materialismq

histórico) éuma economia política? Inclui, como uma de suas partes, umaeconomia política? A estas questões, parece-me necessário, na conjunturaatual, responder claramente:não10

Mesmo que se possa questionar a plena adequação teórica das fórmulasutilizadas, uma orientação fundamentalmente justa se exprime nestas teses,com a condição adicional de que não sirvam de pretexto para menosprezaro exame daquelas relações quantitativas quetambém são relevantes para aanálise da dinâmica contraditória da acumulação do capital. Negligênciasneste terreno podem conduzir a equívocos graves, como temos procuradofazer perceber ao longo deste texto.Podemos verificar isto sobre mais um ponto, considerando brevemente o modo como Castells expõe sua tentativa de elaborar “um marcoexplicativo hipotético para o estudo social das crises econômicas nocapitalismo avançado” (p. 66). Esta construção contém inúmeros elementos interessantes, mas conduz Castells a uma conclusão básica, ou seja, a de que“o processo de luta de classes ao nível da sociedade global determina as características básicas do processo de acumulação” (p. 92), o que dificilmente é aceitável com a significação que seu autor lhe atribui.

Esclareçamos esta objeção, deixando ao leitor o trabalho de avahar por sua conta o que permanece válido — apesar do que vamos dizer —na síntese de Castells. E admissível que a luta de classes tenha um impacto sobre arepartição do produto entre capitalistas e trabalhadores, isto é, sobre a taxade mais-valia. Mas poderá esta luta (combinada com a concorrência interca pitalista) decidir também, em última instância, a orientação geral do movimento dacomposição orgânica do capital? Pensamos que não. Castells, noentanto, pretende chegar até aí. Assim,uma das direções em que ele avança, para atribuir à luta de classes um papel determinante mais amplo, deve serencarada a nosso ver como ilegítima. Pouco a pouco, malgrado a complexidade da análise, malgrado uma riqueza de fatores considerados que é tambémem parte sistema de escapatórias diante de certas opções teóricas fundamentais, vai-se infiltrando e sendoreposta, em sua exposição, uma velha e sim plicíssima idéia. Esta aparece inteira e com todas as letras na mesma página da qual extraímos a última citação acima. Trata-se da conhecidíssima pro posição segundo a qual, diante da pressão dos trabalhadores em prol do aumento dos salários, impõe-se como resposta por parte dos capitalistasa ele

9 Étienne Balibar, “Plus-Value et Classes Sociales”,in Cinq Études du Matérialisme Historique (Paris: Maspero, 1974), p. 124.10 Ibid., p. 105.

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vação da produtividade através do aumento da composição orgânica do capital, isto é, através de mudanças tecnológicas poupadoras de trabalho, “que pode(m) propiciar um descenso da taxa de lucro” (p. 92).

Ora, é preciso afirmar claramente o seguinte: esta tese, para muitos tãosimples e evidente, não tem nenhuma base racional, e isto estádemonstrado em alguns escritos neoricardianos dos anos 60. Esta idéia deve toda a sua“evidência” e o seu peso, mesmo no espírito de muitos marxistas (comoHodgson o sugeriu com razão)11, à influência que consciente ou inconscientemente exerce, sobre eles, a ideologia dominante, isto é, a teoria econômica conservadora (neoclássica), que sustenta exatamente a mesma concepção.

Não diremos mais do que isto. Para muitos, já teremos certamentedito mais do que devíamos, sobretudo para aqueles que, em seu imediatis-mo, costumam medir o que se deve ou não dizer mais pelas chamadas “conseqüências políticas” (imediatas) daquilo que é dito do que com base em umcompromisso fundamental com a verdade, quando este é, de fato, o único procedimento politicamente promissor e viável no longo prazo12. Concluindo, e para evitar qualquer mal-entendido, devemos advertir que seriaindevido depreender do conjunto de observações críticas aqui desenvolvidaque, a nosso ver, o livro de Castells não merece ser lido. Ao contrário, contémmuitas análises interessantes, uma ampla bibliografia e, mesmo em seus defeitos, é de certo modo representativo do estado atual da reflexão teóricamarxista sobre as questões que aborda. Devemos particularmente chamar aatenção do leitor para o fato de que, por motivos de espaço e outros, nãonos foi possível dar a merecida atenção ao belo prefácio autobiográfico destobra. Um prefácio que começa com estas palavras, que gostaríamos não de pôr em dúvida, mas, ao contrário, de sublinhar e subscrever:

“Estamos no limiar de um novo mundo.”

11 Geoff Hodgson,op. cit., p. 62 e 69-70.12 “Estou encontrando certa dificuldade em conseguir a publicação desses dois escri

tos. Sugiro ler em primeiro lugar a resenha; além de ser mais curta do que o artigo, elaexplicita claramente qual a questão que está em jogo em ambos os textos.”(Carta a am;go, em 3 .6.1980)

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VALOR-TRAB AL HO E IDEOL OGIA*

Se fosse possível resumir em fórmula sintética a teoria do valor-tra balho, presente na obra de Marx, diria que ela consiste na afirmação de queos preços das diferentes mercadorias são proporcionais ou aproximadamente proporcionais às quantidades de trabalho socialmente necessárias à sua produção, e que esta afirmação é sustentável quando se considera o movimentode longo prazo destes preços, uma vez que estes são grandezas flutuantes eestão permanentemente sujeitos, em períodos curtos, à ação de forças que perturbam aquela relação de proporcionalidade. Mas mesmo estas proposições, que só retêm seu aspectoquantitativo mais explícito, já deixariam trans parecer que se trata de construção conceptual complexa, se não soubéssemosquanto tempo e quanta tinta foram gastos, ao longo de séculos na tentativade elucidar os enigmas reais ou imaginários que esta teoria nos propõe. E,sem negar a importância de muitos destes escritos, é verdade também que estas dificuldades deram muitas vezes pretexto para discursos econômicos sutis, mas de utilidade intelectual duvidosa, onde são discutidos o significadoe as múltiplas maneiras de tratar matematicamente o problema da transformação de valores em preços, como deram pretexto, também, para discursosfilosóficos centrados sobre a relação entre “essência” e “aparência”, entreo valor e suas formas, e onde o “flerte” de Marx com a dialética hegeliana pode ser levado a excessos de absoluta esterilidade. Não vejo nisto razão paraque se deseje ver cessarem tais controvérsias, uma vez que também me dis ponho aqui a tratar da lei do valor e das ilusões que estão associadas ao desconhecimento ou à não-aceitação desta teoria. Mas não estranharia saber quealgum de meus eventuais leitores reagiu, diante do próprio título deste artigo, com um movimento íntimo de cansaço e desalento, e se perguntou por

que razão mais um, e uma vez mais, resolveu discorrer sobre estes temas.•Redigido em janeiro-fevereiro, revisto em março de 1979, definitivamente publicadoem “Encontros com a Civilização Brasileira”, Vol. til n? 23, em março de 1980.

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Devo dizer que esta preocupação de meu hipotético leitor é legítima,se por acaso ela existe, e que ele não será poupado da necessidade de atravessar comigo velhas citações e velhos argumentos. Mas posso também tranquilizá-lo em parte, e esclarecer que optei aqui por procedimento de exposição maiabrupto do que o habitual, aceitando a sugestão de Bukarin segundo a qual “alei do valor é a lei fundamental do sistema capitalistaem movimento1,5 (o grifo é meu).0 significado desta proposição torna-se mais explícito à luzde uma passagem anterior do texto-de onde ela foi extraída:“0 que caracteriza (...) o marxismo é antes de tudo a amplitude de visão, fundamento detodo o seu sistema, a concepção dinâmica a partir da qual o capitalismo éconsiderado apenas como uma fase do desenvolvimento social. A economia política marxista vai ao ponto de se servir da lei do valor como meio deinvestigação da lei de movimento que rege o conjunto do mecanismo capitalista2”. Se isto é verdade, não será ilegítimo, desde o início (extrapolando

em certa medida as implicações que o próprio Bukarin extrai de sua tese),relacionar diretamente a lei do valor com as “leis de movimento” do modode produção capitalista enunciadas por Marx e, em particular, com aquelaque pode ser vista, segundo suas próprias palavras, como a mais importanteentre todas as outras (se não for sua expressão final e condensada): a lei datendência ao declínio da taxa de lucro. Pois esta, que Marx disse ser “a leimais importante da economia política moderna3”, nos impõe reflexão crítica na qual está em jogo necessariamente, e de modo explícito, a questãodos limites históricos do modo de produção capitalista.

Já desenvolvi em óutro trabalho, análise orientada neste sentido4; por esta razão (com o risco de deixar insatisfeito o economista, mas também para facilitar a compreensão do leigo), determinadas afirmações, no presentetexto, estarão eventualmente desacompanhadas de suas provas, ou a argumentação que as sustenta será apresentada de forma extremamente elípticaou condensada. Por outro lado, ao contrário daquele trabalho anterior, adiscussão terá por base nãoO Capital, mas o “esboço” desta obra redigido

por Marx nos anos 1857-58: osGrundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. Mas esta opção não se deve apenas à preocupação de reduzir as repetições a mínimo estritamente necessário; deve-se também ao fato de que osGrundrisse têm despertado, a partir da década de sessenta, interesse crescente por parte de muitos intelectuais marxistas. Como os aspectos proféticosdesta obra e o hegelianismo ostensivo de sua linguagem me comovem muito

1 Nicolas Boukharine, L 'É conomie Politique du Rentier (critique de l'économie margi- naliste), E. Dil., Paris, p. 188.2 Idem , p. 185.3 Karl Marx,Fondements de la Critique de l'Économie Politique, vol. II, Editions An-

thropos, Paris, 1968, p. 275;Elementos Fundamentales para la crítica de la economia polí tica (borrador} - 1857-1858, Siglo XXI Argentina Editores, B. Aires, 1972, vol.2, p. 281.4 Valor e Acu mu lação, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1979.

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menos do que a outros, exporei uma breve análise de sua parte final na es perança de que meus argumentos contribuam para que o leitor se situi na posiçãooposta a uma tese cujo paradoxo já se revela em seu próprio enunciado: segundo a qual o “esboço” deO Capital, embora sendo um conjuntode textos “obscuros e fragmentários”, poderia ser visto como “a única obrade economia política verdadeiramente completa que Marx escreveu5

Esta discussão, no entanto, exige um preâmbulo, que nos traz de voltaa O Capital. Sabe-se que, na análise marxista da dinâmica histórica do capitalismo, atribui-se papel crucial ao processo incessante de modificação dos métodos de produção, que se desenvolve em praticamente todos os ramos deatividade, sob a pressão da concorrência intercapitalista. Este desenvolvimento das forças produtivas, — que assumem forma especificamente capitalistaa partir da Revolução Industrial, ou do surgimento da indústria fabril - temcomo uma de suas manifestações mais importantes as alterações que ele pro-

5 Martin Nicolaus, “El Marx desconocido” , introdução a K. Marx,Elementos Fundamentales para la crítica de la economia política, op. cit., vol. 1, p. XIV. Uma das obrasmais importantes no movimento atual de promoção dosGmndrisse é o conhecido livrode Roman Rosdolsky sobre a gênese deO Capital (La, Genèse du “Capita l" chez Karl

Marx, I, Maspero, Paris, 1976;Genesi e Struttura del “Capitale" di Marx, Editori La-terza, Roma-Bari, 1975). A introdução deste livro demonstra o contrário do que pretende demonstrar, a saber, a importância da Lógica de Hegel na estruturação definitivada obra de Marx. Segundo o plano delineado por Marx em 1857, os três primeiros livros deveriam tratar, respectivamente, do capital, da propriedade fundiária e do trabalhoassalariado. A justificativa histórica e dialética para esta seqüência em três estágios éapresentada em termos explicitamente hegelianos nosGrundrisse, mas pode ser entendidamais facilmente neste trecho (citado por Rosdolsky) de uma carta de Marx a Engels datada de 2 de abril de 1858: “A passagem do capital à propriedade fundiária é ao mesmotempo histórica, posto que a forma moderna da propriedade fundiária é o produto daação do capital sobre a propriedade fundiária feudal, etc. Do mesmo modo, a passagemda propriedade fundiária ao trabalho assalariado não é somente dialética, mas tambémhistórica, posto que o último produto da propriedade fundiária moderna é a instauração generalizada do trabalho assalariado, que, em seguida, aparece como a base de todaesta po rcaria.”(Genèse, op. cit., I, p. 66;Genesi..., op. cit., 1, p. 59; ver tambémFon- dements..., op. cit., vol. I, p. 227;Elementos..., op. cit., vol. 1, p. 220-1). Ora, na redação final de sua obra,.Marx acabou por tratar do trabalho assalariado no próprio Livro I,ao mesmo tempo em que começava a expor o seu conceito de capital. Rosdolasky observa a este respeito: “Isto prova que toda a análise do processo de produção e do processo de circulação do capital podia ser realizada sem que fossem tratados os temas projetados para os livros previstos sobre o trabalho assalariado e a propriedade fundiária.As premissas da análise eram unicamente a existência da moderna relação de salariado, mas esta coincide conceptualmente com a existência do próprio capital. Era então possível e necessário fazer abstração de to do o resto para poder elaborar a categoriade capital em sua forma pura. A este respeito, a separação estrita dos domínios deanálise que era o fundamento do plano original tinha perfeitamente prova

do o que poderia dar. Mas o que tinha sido no início útil e necessário devia revelar-semais tarde como uma limitação incômoda e supérflua (tanto mais porquanto a manutenção desta separação deveria ter conduzido a repetições constantes do que já tinhasido exposto).”(Genèse, I, p. 88;Genesi, 1, p. 80). Em outras palavras: a ordem lógicadas categorias não tem relação com a ordem de sua sucessão histórica.

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voca no peso relativo dos diversos componentes do estoque total do capital produtivo da sociedade. E, dado que estas alterações têm importância decisiva na discussão sobre a lei da tendência ao declínio da taxa de lucro, faz-senecessário por um momento tomar por base o que está dito a respeito na obra principal de Marx, e esclarecer alguns pontos básicos sobre o conceito decomposição orgânica do capital.

A Composição Orgânica do Capital

Situemo-nos, de saída, do ponto de vista da sociedade em seu con junto. O estoque agregado do capital produtivo pode ser decomposto emduas grandes parcelas: a que foi investida na compra (ou no aluguel) de força de trabalho e a que se materializou sob a forma de meios de produção(máquinas, instalações e matérias-primas). Este estoque de capital pode portanto ser epcarado, em primeira instância, como um conjunto diferenciado de mercadorias úteis: de um lado, força de trabalho (cujo montante pode se traduzir numa certa quantidade de trabalho, isto é, de horas trabalhadas, se esta mão-de-obra é utilizada diariamente durante períodò de tem po prefixado), de outro, meios de produção, objetos dotados de utilidade produtiva e cuja massa, de um ponto de vista qualitativo, é extremamenteheterogênea. As formas em que se combinam estes dois grandes componentes do capital definem o estado atual das forças produtivas num momentodado, e o volume dos meios de produção empregados por unidade de trabalho é o que Marx denomina acomposição técnica do capital. Mas esta é

por definição imensurável, dada a diversidade qualitativa dos meios de produção, e só pode assumir a forma quantitativa de simples percentagem ou derazão algébrica se expressarmos emvalor as quantidades dos dois grandescomponentes do capital produtivo.

Os economistas, em geral, opinariam que o modo mais prático de res ponder a esta necessidade consiste em medir as duas grandezas em questãoem preços monetários. Mas mais adiante ficará claro que Marx tinha suas razões para medi-las emvalor no sentido que ele próprio atribuía a este termo,isto é, entendendo-se como a quantidade total de trabalho socialmente necessário à produção das mercadorias, incluindo-se aí tanto o trabalhodireto como o trabalho empregado na produção dos próprios meios de produção de cada mercadoria, pois o valor neles incorporado se transmite ao produto final ao longo do processo de produção, segundo a concepção de Marx.Basta dizer, de imediato, que esta opção tem base no pressuposto provisório de que existe proporcionalidade simples entre valores e preços. O valortotal do capital produtivo pode ser assim decomposto em duas grandes parcelas: o valor do estoque de meios de produção, ao qual Marx dá o nome decapital constante, e ocapital variável, que è o valor da força de trabalho, ou.mais precisamente, o montante (em valor) que os capitalistas precisam inves

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tir antecipadamente na compra de mão-de-obra, durante o intervalo de tem po em que eles estão obrigados a esperar que este “investimento” seja reposto através da venda do produto acabado. E por “valor da força de trabalho”entende-se o valor (trabalho) das mercadorias cujo consumo é necessário,durante este período, para reproduzir a população trabalhadora a serviçodo capital.

O capital constante dividido pelo variável nos dá acomposição em valor do capital; Marx define a composiçãoorgânica do capital como “a com posição em valor enquanto está determinada pela composição técnica ere flete as mudanças que nela se operam6 ”. A ênfase da definição está posta,como se percebe, nomovimento do valor. Mas é preciso atentar também parao fato de que o requisito imposto por Marx para que as alterações da com posição do capital em valor possam ser consideradas como expressão autên

tica das modificações da composição técnica pode dar lugar a problemas quesão insolúveis pelos próprios termos de sua formulação. Seria ilusório, porexemplo, procurar definir as condições sob as quais poder-se-ia estabelecercorrespondência quantitativa precisa entre a expansão dovolume dos meiosde produção utilizados e o aumento dovalor do capital constante. A massa

física dos meios de produção é, por definição, não suscetível de medida,não só por sua heterogeneidade qualitativa, como também pelas freqüentesmodificações que eles sofrem em suas características técnicas (ainda que oseconomistas possam sempre, neste sentido, construir números-índices mais oumenos adequados para determinados propósitos práticos). Não seria correto, portanto, ver na definição de Marx a preocupação em estabelecer relaçãoentre duas variáveis que pudesse se expressar através de uma função matemática. A correspondência que ele procura formular entre a composição emvalor e a composição técnica do capital é de outra natureza. Pode-se entender que ela está subordinada à exigência profunda de sua construção teórica: a de não deixar romper-se o vínculo que deve existir entre dois níveisdo discurso teórico da “crítica da economia política” : de um lado, a análisedo conjunto complexo de transformações sociais que pode ser incluído soba rubrica do “desenvolvimento das forças produtivas capitalistas”, de outro,

a análise “econômica” daquelas grandezas ou razões (como a composição docapital em valor) que afetam de modo decisivo a taxa de lucro e desempenham, por isto, papel essencial na formulação das leis que regem o processode acumulação ou de valorização do capital.

Sem perder de vista este ponto básico, pode-se também, por outrolado, chamar atenção para o fato de que a definição da composição orgânicacitada acima aparece no final do Livro I de OCapital, este Livro onde estãoinseridos os capítulos clássicos sobre a passagem da manufatura à indústria

6 Kail Marx,El Capital, Livro I, vol. II, cap. XXIII, Fondo de Cultura Económica, México, 1947, p. 691;O Capital, vol. 2, Ed. Civilização Brasileira,•Rio de Janeiro, 1968, p. 713.

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fabril. É compreensível, assim, que esta definição esteja claramente marcada pelo interesse de Marx em ver na elevação da composição do capital em valor,como movimento de longo prazo, reflexo imediato das profundas e contínuastransformações tecnológicas desencadeadas a partir da Revolução Industrialde fins do século XVIII, diante das quais era perfeitamente dispensávelqualquer sofisticação técnica na elaboração de números-índices para perce ber que elas envolviam tanto a difusão de maquinaria mais pesada e complexacomo também o aumento da massa de matérias-primas processadas por dadaquantidade de trabalhadores, num determinado período de tempo, à medidaque se elevava a produtividade do trabalho. Como é sabido, as análises históricas penetrantes de Marx não se limitaram a esta simples constatação (elassão tambémteoria)-, o que acabei de dizer serve apenas de introdução ao meu

propósito de desviar agora nossa atenção para outra passagem extraída doúltimo livro deO Capital, apoiado no pressuposto bem plausível, para nãodizer óbvio, de que quanto mais avançamos na exposição de Marx,mais nosaproximamos de uma compreensão daquilo que ele finalmente queria nos fazer entender.

Vejamos, portanto, esta passagem do início do Livro III. Ela nos situa em um registro teórico centrado sobre a análise de relações quantitativas, mas, por fazer parte de longo preâmbulo que antecede a seção que tratada tendência ao declínio da taxa de lucro, ela não nos desencaminhará emnossa intenção de reencontrar, por outra via, relação que necessariamente

existe, entre a economia política e a ciência da História. Marx salienta, neste texto, as diferenças entre o capital variável e o capital constante no processo de geração do valor. Este último éconstante no sentido de que seu valor não se altera, mas apenas étransferido ao produto final à medida que oselementos físicos em que ele está incorporado (os meios de produção) sãoconsumidos através de sua utilização no processo produtivo. Mas o capitalvariável é investido na aquisição de força de trabalho; o uso produtivo destamercadoria sob o comando do capitalista significa a realização de certa quantidade de trabalho e, portanto, a geração de um valor novo. A diferença en

tre este valor total criado num determinado período de tempo e o valor da própria força de trabalho (pago aos trabalhadores) constitui um excedente(a mais-valia) que é apropriado pelos capitalistas, proprietários dos meios de produção. Se a taxa de lucro é a mais-valia expressa como percentagemsobre o capital total, um aumento do capital constante (com relação a quantidade de trabalho empregada) tem um efeito depressivo sobre a taxa de lucro. Mas o interessante é que o texto em questão começa por enfatizar que éabsolutamente Irrevelante, neste contexto, o volume físico de meios de produção que é representado por certo montante em valor de capitai constante:

“Aqui se revela precisamente a relação orgânica especial do capitalvariável com o movimento do capital total e sua valorização, assim como sua diferença diante do capital constante. O capital constante, no

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que diz respeito à criação de valor, só interessa pelo valor que encerra, sendo indiferente, para estes efeitos, que um capital constante de1.500 libras esterlinas, por exemplo, represente, suponhamos, 1.500toneladas de ferro a 1 libra esterlina ou 500 toneladas a 3 libras cadauma. A quantidade de matéria real na qual se corporifica seu valor éabsolutamente indiferente para os efeitos da valorização e da taxa delucro, a qual varia na razão inversa deste valor, qualquer que seja a relação existente entre o aumento ou a diminuição do valor do capitalconstante e a massa dos valores de uso materiais em que este valor secorporifica.

Não ocorre o mesmo com o capital variável. O que interessa neste primordialmente, não é o valor que encerra, o trabalho nele materializado, mas este valor, pura e simplesmente, como índice do trabalhototal que ele põe em movimento e que não encontra nele sua expres

são...7”.A ênfase da questão sobreo que representa uma dada grandeza em va

lor desloca-se aqui, inequivocamente, do capital constante para o capital vriável. E a razão é clara: um aumento deste último, reduzindo a composiçãdo capital em valor, pode significar tanto um aumento do valor dos saláriocomo um aumento da quantidade de trabalho empregada com o mesmo captal constante. Mas na primeira hipótese esta variação comprime a mais-vale faz cair a taxa de lucro, enquanto na segunda dá-se o efeito inverso, desd

que se mantenham inalteradas as proporções em que o produto é repartidentre capitalistas e trabalhadores (ou a taxa de mais-valia). Ainda que elnão o diga explicitamente, Marx está aqui à procura de definição adequada dcomposição orgânica do capital, que lhe permita afirmar sem ambigüidadque uma modificação nesta última provoca variação da taxa de lucro na dreção oposta. Deste ponto de vista, o acréscimo do valor pago aos trabalhadores representa uma diminuição espúria da composição do capital em valor, que não pode ser considerada como equivalente a uma autêntica dimnuição da composiçãoorgânica, posto quenão reflete modificação no mesmosentido da composiçãotécnica do capital8. Estamos, pois, diante da mesmadificuldade reposta em outros termos: a possibilidade de dissociação entre movimento da composiçãoem valor e o movimento da composiçãoorgânica do capital. Mas, ao contrário do que ocorria antes, quando estava em jogo a quantidade física representada pelo capital constante, o problema agora pode ser resolvido. Pois se Marx diz literalmente que o capital variável

7 El Capital, op. cit., Livro III, vol. I, cap. III, p. 84, 85;O Capital, op. cit., vol. 4, p. 57.8 Mario Cogoy chamou a atenção para este problema da representatividade do capita

variável no movimento da composição orgânica, em seu artigo “Baisse du Taux dProfit et Théorie de l'Accumulation”, em Les Temps Modernes, n? 330, (jan-74), p.1238 a 1241.

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não exprime adequadamente a quantidade total de trabalho realizado, daqual ele deveria ser o “índice”, é legítimo e mesmo preferível substituir aexpressão inadequada e indireta pela medida direta da grandeza em questão, pois o volume físico de trabalho efetuado é imediatamente mensurável emhoras-homem. Procedendo assim, transformamos a composição do capitalem valor em outra relação: a razão entre o valor do capital constante e o tra balho vivo total. Mas podemos dar ainda um passo além nesta direção, paraobter uma expressão mais manejável da composição orgânica. Apoiando-nosnas análises do próprio Marx no Livro II sobre os diferentes períodos de rotação dos distintos componentes do capital total, damo-nos conta de que, nocaso mais geral, os salários são pagos em intervalos curtos de tempo (uma semana ou um mês) e existe em cada ramo de produção, fluxo contínuo demercadorias acabadas e vendidas, o que permite ao capitalista recuperar ra pidamente (em dinheiro) a importância investida na aquisição de força detrabalho. Em conseqüência, o capital variável deve constituir parcela diminuta do estoque de capital total, mesmo que os salários sejam elevados. Assim,a razão que definimos acima não se modifica muito se substituirmos a com posição orgânica do capital pela divisão do capital produtivototal (e não sódo capitalconstante) pela quantidade de trabalho vivo empregada9.

Chegamos, desta maneira, à expressão familiar aos economistas contemporâneos: a razão capital/trabalho. Mas o próprio estoque de capital está, aqui,avaliado em valor-trabalho, e o trabalho total realizado pela sociedade num determinado período, digamos um ano, equivale por sua vez aovalor novo gerado durante este ano, isto é, corresponde, nos termos dateoria marxista do valor, ao montante do produto liquido que é repartidoentre a classe trabalhadora e a classe proprietária.. Medindo-se todas as variáveis em valor-trabalho, a razão capital/trabalho e, assim,idêntica à razãocapital/produto.

Aproximamo-nos, deste modo, do término de nosso preâmbulo, jáequipados para empreender a discussão dosGrundrisse\ é preciso apenas prolongar um pouco mais este preâmbulo com algumas considerações gerais so bre a problemática da acumulação de capital e da tendência ao declínio dataxa de lucro. Esta taxa se define como a razão entre o lucro (aqui identificado, por simplificação, à mais-valia) e o estoque total de capital. Assim, fixada a repartição do produto entre trabalhadores e capitalistas, a taxa de lucro será tão mais elevada quanto maior for a razão produto/capital (ou quanto menor for a razão capital/produto). E, embora outros desenvolvimentosteóricos de fundamental importância nos obriguem a reconhecer que o pró

9 Um proced imen to semelhante é adotado por Mark Blaug em seu artigo “ProgressoTécnico e Economia Marxista”, embora ele o justifique com o argumento ilegítimo deque “o próprio Marx jamais definii® eJotamente a denominada ‘composição orgânica’do capital.” (David Horowitz, ed., A Eco nomia Moderna e o Marxismo, Záhar Editores,Rio de Janeiro, 1972, p. 218). Vale a pena ler também, a propósito, o capítulo de Marxsobre a rotação do capital variável, na segunda seção do Livro 11 deO Capital.

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prio ritmo de acumulação desejado pelos capitalistas tem sob certas condições, papel determinante na fixação da taxa de lucro (por sua influência narepartição do produto), neste nível de análise é a taxa de lucro que determina o potencial de acumulação, pois esta consiste na conversão de parte do produto excedente da sociedade, isto é, da mais-valia, em novos acréscimos

ao estoque de capital produtivo.Ademais, como o trabalho vivo é a fonte do valor e da mais-valia,compreende-se que o ímpeto inerente ao capital no sentido da acumulação,de sua autovalorização ilimitada, esteja na raiz do caráter essencialmenteexpansivo do modo de produção capitalista, de seu movimento próprio queenvolve não só a apropriação de massa crescente de recursos naturais, necessários à reprodução física do capital, como também a incorporação deuma população crescenteà grande rede das relações econômico-sociais capitalistas, pois esta massa trabalhadora em expansão é essencial à reprodução am pliada dovalor do capital10. Por outro lado,»o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas -e a subversão tecnológica incessante que o acompanhafornecem também ao capital recursos para escapar às restrições que podemser impostas ao seu movimento pela eventual insuficiência do crescimento da população ou pela resistência das formas pré-capitalistas de produção, sobreas quais ele avança em sua “fronteira móvel”. Mas ele o faz, então, pela aceleração do aumento da razão capital/trabalho, isto é, pela adoção de técnicas poupadoras de mão-de-obra, e, neste caso, seus limites manifestam-sena tendência ao declínio da taxa de lucro, na queda da razão produto/capital em valor. O desenvolvimento da problemática da “lei tendencial” deveter presente não só a coexistência destas duas tendências opostas que polarizam o movimento de valorização do capital, como também a possibilidadede que as “contradições internas” desta lei tenham como efeito uma alternância na qual predomina ora uma, ora outra destas duas tendências, no percurso do capital em seu movimento expansivo de longo prazo. Pois é o pró prio Marx quem nos diz de passagem, nosGrundrisse, referindo-se a estas“exigências contraditórias” do capital, que “elas se manifestam em um processo onde os elementos contraditórios se sucedem uns aos outros no tem po11” .

É preciso mencionar aqui também, brevemente, alguns problemasque esta abordagem levanta. O primeiro, e o mais fundamental, decorre da

10 “O capital tem a tendência de criar constantem ente mais trabalho excedente, tantoque lhe é necessário criar também os pon tos de intercâmbio correspondentes. Do pontode vista da mais-valiaabsoluta ou do trabalho excedente, ele deverá apelar para maistrabalho como integração de si mesmo. É no fundo a propagação da produção fundadano capital, ou de um modo de produção que lhe corresponde. A tendência a criar omercado mundial está dada imediatamente na própria idéia de capital”.(Fondements, op. cit., I, p. 364, 365;Elementos, op. cit., 1, p. 360).? 1 Fondements..., II, p. 302;Elementos..., 2, p. 307, 308. Omito aqui, e ao longo deste artigo,- para simplificar a argumentação, um ponto fundamental: o papel da fixaçãodos limites da jornada de, trabalho neste processo.

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consideração de que os capitalistas não avaliam a razão capital/produto emvalor-trabalho, mas em sua expressão monetária. E é verdade, como se podededuzir do que foi dito a respeito pelo próprio Marx e em toda a discussão

posterior sobre o “problema da transformação” , que a razão capital/produtomedida em preços não é idêntica, isto é, não é necessariamente igual a esta

mesma razão medida em valor-trabalho. Para responder a esta objeção, devemos nos apoiar na tese de que a lei do valor é lei de movimento, o quesignificatambém, entre outras coisas, que os preços relativos movem-se nolongo prazo na mesma direção das quantidades de trabalho socialmente necessárias à produção das mercadorias, embora possa e deva existir, de fato,certa desproporcionalidade entre preços e valores. E o ponto mais importante, para sustentar a argumentação exposta nos parágrafos anteriores, estáno fato de que se pode demonstrar que a razão capital/produto medida em preços varia necessariamente na mesma direção em que varia a razão capi

tal/produto em valor, que é idêntica à razão capital/trabalho quando se mede o próprio capital pelo tempo de trabalho incorporado nos meios de produção. Isto não significa que um aumento da razão capital/trabalho,medin- do-se o capital em preços (mesmo deflacionados), envolva necessariamenteum aumento da razão capital/produto; significa apenas que a elevação acelerada daquela primeira razão, ultrapassados determinados limites, tende aestar associada a uma elevação desta última12.

Outro ponto importante: ao contrário do que pensam certos autoresmarxistas contemporâneos, não se pode encontrar na lei tendencial da queda

da taxa de lucro, tomada em sua acepção mais imediata e explícita, explicação para as crises econômicas13, isto porque, abstraindo-se os problemas

12 Quando trabalhamos com grandezas monetárias e físicas, usando os índices de preçoe quantidade adequados, é necessário em qualquer caso fazer com que as definições adotadas sejam coerentes, respeitando a identidade que existe entre a relação capital/trabalho e a relação capital/produto multiplicada pela relação produto/trabalho. A conseqüência desta identidade é que a taxa de crescimento da razão capital/trabalho (normalmente positiva) é necessariamente igual à taxa de crescimento da razão capital/produto(que pode ser negativa)mais a taxa de aumento da produtividade física do trabalho.13 Alguns defendem claramente esta explicação. Paul Boceara, mais cauteloso, apenas

sugere, em seu livro sobre o capitalismo monopolista de Estado, referindo-se àsupera-' cumulação e remetendo ao capítulo de Marx sobre o “desenvolvimento das contradiçõesinternas da lei tendencial”. Mas se “superacumulação de capital significa excesso deacumulação de capital... com relação aos limites da soma total de mais-valia ou de lucro que é possível obter para valorizar este capital” (Études sur le capitalisme monopo- liste d'État, sa crise et son issue, Editions Sociales, Paris, 1973, p. 42), a expressão émeramente descritiva, isto é, é umsinônimo para “crise” ou “queda da taxa de lucro”.A fórmula deixa em; aberto a questão de saber o que provoca esta queda: uma acumulação excessiva com relação à quantidade de força de trabalho disponível para ser em pregada pe lo capital ou com relação à demanda corrente que pode absorver os seus produtos? O te xto de Marx não exclui nenhuma destas alternativas , mas tem sobre o

de Boceara a vantagem de explicitá-las. Quando este último procura esclarecer o mecanismo que desencadeia a crise, revela de passagem o caráter subconsumista de sua concepção (Études..., op. cit., p. 295), mas com um constrangimento só compreensível porrazões extra-teóricas (idem, p. 300, 301).

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da insuficiência da demanda efetiva ou da desproporcionalidade entre os dversos setores de produção, e aceitando o pressuposto de que os capitalistasó introduzem novas técnicas quando estas são mais rentáveis do que as préexistentes, também é possível demonstrar que este pressuposto tem comconseqüência “macroeconômica” este efeito: em qualquer caso a elevaçãda composição orgânica do capital estará associada a um aumento compensatório da participação dos lucros no produto (isto é, da taxa de mais-valiao qual será sempre suficiente para impedir o declínio efetivo da taxa dlucro no sistema em seu conjunto. Mas não nos interessa, agora, a discussãdestes problemas de curto prazo, embora eles também tenham relação comas leis que regem a dinâmica secular da acumulação. Voltando à consideração desta última, quero apenas lembrar aqui, de passagem, que uma damais antigas críticas à lei tendencial consiste justamente na afirmação de quMarx menosprezou a possibilidade de que esta fosse contrariada pelo aumento da razão entre as mais-valia e o valor anualmente pago aos trabalhdores (taxa de mais-valia). A crítica baseia-se no fato de que Marx, no captulo pertinente do Livro III deO Capital, não mencionou esta possibilidadeao enumerar- as causas que contrabalançam a lei.

O que pensar desta crítica? Duas coisas, para resumir. Primeiro: esta possibilidade não elimina os limites impostos pela lei tendencial ao processde acumulação, pois o movimento no sentido de concentrar a distribuiçãdo produto em benefício da classe proprietária não pode prolongar-se indefinidamente. Segundo: Marx discutiu explicitamente esta possibilidade nLivro I, ao tratar da “produção da mais-valia relativa”, que é também ummanifestação do desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismoSegundo sua análise, o declínio da participação dos salários no produto torna-se possível através do barateamento dos artigos que formam a cesta dconsumo da classe trabalhadora, mesmo que não haja queda no salário reaQuando se tem presente a unidade lógica da obra de Marx, não se deve veno aumento da taxa de mais-valia, argumento para refutar a lei tendencial pois ele próprio escreveu que “as mesmas causas que produzem a tendêncià baixa da taxa de lucro amortecem também a realização desta tendência14.

14 El Capital, op. cit., Livro III, vol. I, cap. XIV, p. 292;O Capital, op. cit., vol. 4, p. 271. A crítica menc ionada neste parágrafo foi form ulada por Benedetto Croce antesde Joan Robinson. É interessante transcrever a resposta de Gramsci a Croce sobre este ponto ; “Croce apresenta como objeção à teoria exposta no terceiro volume a análisecontida no primeiro, isto é, expõe como objeção à lei da tendência à queda da taxa delucro a demonstração da existência de uma mais-valia relativa devida ao progresso técnico, sem por isso mencionar uma só vez o primeiro volume, como se a objeção tivessesurgido de seu cérebro, ou como se fosse uma produto do bom-senso. Em todo caso,deve-se ter presente que o problema da lei da tendência à queda da taxa de lucro não pode ser estudado só na exposição dada pelo terceiro volume; esta análise é o aspectocontraditório do que está exposto no primeiro volume, do qual não pode ser separado.”(Antonio Gramsci,El materialismo h istórico y la filosofia de Ben ede tto Croce, Ediciones Nueva Vision, Buenos Aires, 1971, p. 217, 218) Note-se a ênfase de Gramsci

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Os Limites do Capital nos “Grandrisse”

Voltemo-nos, finalmente, para osGrundrisse. A análise estará referidaàquela centena de páginas da parte final deste livro que começa com uma subdivisão do “capítulo do capital” intitulada, na edição francesa,O Processo

de Trabalho e o Capital Fixo15. Aí está contida, no estágio de elaboraçãoalcançado na data de redação destes textos, a reflexão de Marx sobre a pro blemática do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas e da tendência ao declínio da taxa de lucro. Esta discussão é entremeada por digressões:uma vez iniciada nas primeiras páginas desta parte do livro, dá lugar a análises fragmentárias sobre outros temas, como as diferenças entre o capitalfixo e o circulante, os diferentes tempos de rotação, q entrelaçamento entreos vários capitais no circuito global da circulação do capital, etc., temas já presentes em partes anteriores desta mesma obra, e que foram mais tarde

desenvolvidos por Marx metodicamente, e com extrema minúcia, ao longodo Livro II deO Capital, que se encerra com os capítulos fundamentais so bre os esquemas de reprodução do capital em seu conjunto. NosGrundrisse, o argumento sobre a lei tendencial só é retomado mais adiante, na “terceiraseção”, que na edição francesa tem o título de Mais-Valia e Lucro, e aí jáde modo explícito e bastante semelhante ao que está exposto nas primeirasseções do Livro III deO Capital.

Nesta parte dosGrundrisse, Marx começa analisando, ao longo de cerca de vinte páginas, os múltiplos aspectos do desenvolvimento das forças

produtivas capitalistas, a transformação do processo de trabalho e seus efeitos contraditórios sobre a dinâmica da valorização do capital. A ênfase recaisobre a importância decrescente do trabalho vivo: a perícia individual dotrabalhador torna-se supérflua, posto que a seqüência das operações produtivas tende a ser cada vez mais pré-determinada pelas características técnicasde maquinaria complexa. O trabalhador, já submetido socialmente à autori

sobre a unidade lógica deO Capitai, seu anti-economicismo está também fundado emum bom entendimento da economia política marxista; é este que lhe permite rejeitar

a interpretação catastrofista da lei tendencial também formulada por Croce, segundo aqual esta lei, se fosse válida, “implicaria nem mais nem menos do que o fim automáticoe iminente da sociedade capitalista”. Gramsci responde: “Nada é automático nem muitomenos iminente. Esta dedução de Croce é devida ao erro de ter examinado a lei da quedada taxa de lucro isolando-a do processo em que foi concebida...”(El materialismo..., op. cit., p. 221). E em uma página anterior surge uma passagem onde Gramsci explicitaque a derrocada “econômica” do capitalismo por esta via é uma perspectiva remota:“Quando se pode imaginar que a contradição levará a um nó górdio insolúvel normalmente, mas que exija a intervenção de uma espada de Alexandre? Quando toda a economia mundial tenha se tornado capitalista e com um determinado grau de desenvolvimento; ou seja, quando a “fronteira móvel” do mundo econômico capitalista tenha al

cançado suas colunas de Hércules.”(idem, p. 218).15 Fondements, op. cit., vol. II, p. 208 a 325;Elementos, op. cit., vol. 2, p. 216 e seguintes.

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dade do capital, perde agora a própria possibilidadematerial de exercer controle sobre o processo de produção; no limite, suas funções se reduzem àmera vigilância sobre um mecanismo que transforma por si mesmo a matéria-prima, sem exigir sua intervenção ativa. Aqui aparecem as passagens conhecidas em que Marx antecipa os efeitos mais extremos da automação. Mas paralelamente à análise destas transformações estruturais do processo de tra balho, Marx insiste também no fato de que o trabalho vivo passa a ter, neste processo, uma participação cada vez mais diminuta e insignificante tambémde um ponto de vistaquantitativo. E, neste ponto, transparece uma certaambiguidade: se Marx não está dando ênfase aqui a um declínio do empregoem termos absolutos, a quantidade de trabalho empregada diminui progressivamentecom relação a quê? Qual é o outro termo da comparação? De um lado, deve ser a massa de valores de uso, o produto físico, poitodas estas transformações se traduzem numa elevação contínua da produtivi

dade do trabalho: “À medida que a grande indústria se desenvolve, a criaçãode riquezas depende cada vez menos do tempo de trabalho e da quantidadede trabalho utilizada, e cada vez mais da potência dos agentes mecânicos quesão postos em movimento durante o período de trabalho (...) A riqueza rease manifesta agora na enorme desproporção entre o tempo de trabalho utilizado e seu produto...16”. Mas, como mesmo esta passagem deixa transparecer (ao lado de outras que são bem mais explícitas), Marx vê como um pré-requisito para esta elevação da produtividade o aumento docapital fixo (máquinas e instalações) utilizado em combinação com uma dada quanti

dade de trabalho. Aqui se põe outra questão: este capital fixo cresce (comrelação ao trabalho) em seu volume físico ou emvalor? O conjunto destestextos não deixam dúvida quanto ao fato de que Marx está pensando numaelevação constante do que ele denominará mais tarde a composiçãotécnica do capital, como mostra esta passagem: “A utilização em grande escala destespécie de capital fixo implica pois a extensão da parte circulante do capitaque consiste em matérias primas e, por conseguinte, do capital em geral.Ela supõe ao mesmo tempo uma diminuição (relativa) da porção do capitatrocada por trabalho vivo17”. E Marx acrescenta logo abaixo: “Mede-se o

nível de desenvolvimento já atingido pelo modo de produção capitalista.. pelo volume representado pelo capital fixo, do ponto de vista não só quantitativo, mas também qualitativo1®”. Esta última citação revela a dificuldadede Marx em conceber, aqui, a possibilidade de dissociação entre o movimento da composição técnica e o movimento da composição do capitalem valor (no que diz respeito às dimensões do capital fixo, ou, em termos mais geraisdo capital constante). Por isto ele pode afirmar taxativamente, logo nas primeiras páginas da seção dosGrundrisse que estamos examinando: “No capital

16 Fondements, H, p. 221 ;Elementos, 2* p. 227, 228.17 Fondements, II, p. 234; Elem entos, 2, p. 240.18 Fondements, II, p. 234;Elementos, 2, p. 241.

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fixo desenvolvido em maquinaria, o capital, que se apropria da atividade produtora de valor, age num processo de que liga o valor de uso do capital ao(valor de uso) da força de trabalho. Assim, o valor objetivado na maquinariaapresenta-se aí como a precondição: diante dele, a força valorizadora do operário individual se apaga, tornando-se infinitamente pequena19

Deve-se notar que, ainda que Marx já tenha definido anteriormenteneste livro a diferença entre o capitalconstante e o capitalvariável, ela está praticamente ausente nestes textos, e, ocupando o seu lugar, por influência deAdam Smith20, está a oposição capital /¿xo/capitalcirculante, que é insistentemente invocada por Marx em sua análise. Estas duas classificações nãose superpõem. A diferença entre o capital fixo e o capital circulante (ao contrário da primeira) não diz respeito ao processo de geração do valor na esferada produção, mas está relacionada à seqüência das mudanças de forma que este atravessa ao se transformar repetidamente de dinheiro em mercadoria ede mercadoria em dinheiro (incluindo-se aí a etapa intermediária do processo de produção, onde os meios de produção e a força de trabalho, que sãomercadorias, são utilizados para fazer aparecer uma nova mercadoria, o produto, a qual absorve o valor das primeiras expandido pelo acréscimo damais-valia). Marx sublinha aqui reiteradamente esta característica própria dasmáquinas e das instalações: elas atuam como valores de uso no processo de produção, mas, ao contrário das matérias-primas, que se transformam em produtos acabados e postos a venda, não entram fisicamente no processo decirculação, não aparecem materialmente no mercado para serem reconverti

das em dinheiro (ou pararealizar o seu valor, como diz Marx). O capitalfixo só circula enquantovalor (de trõca), não como valor de uso, pois seuvalor se transfere gradualmente a seus produtos à medida em que ele se desgasta ao longo de sua vida útil.

Vale a pena citar parágrafo particularmente revelador quanto ao modocomo esta oposição capital fixo/circulante opera, aqui, no pensamento deMarx: “Quando o capital fixo entra na circulação como valor, ele cessou deagir como valor de uso no processo de produção. Ora, é precisamente seuvalor de uso que aumenta a força produtiva do trabalho... Na medida em queele entra na circulação, seu valor é simplesmente reposto, mas não aumentado. Em troca, o produto - o capital circulante —é o suporte da mais-valia,que só se realiza na seqüência do processo de produção, quando ela passa àcirculação21 (grifado por mim —E.P. —). É notável, nesta citação, a identificação que Marx faz entre o produto e ocapital circulante, sobretudo quando se registra o fato de que, em outro lugar, ele tende a ver no capital fixo ocapital por excelência'. “A maquinaria aparece... como a forma mais adequa-

19 Fondements, II, p. 213;Elementos, 2, p. 220.

20 Fondements, II,-p. 265;Elementos, 2, p. 271.2^ Fondements, II, p. 297;Elementos, 2, p. 303.

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da do capital fixo, e este comoa forma mais adequada do capital emgeraL..2 2.Estes dois movimentos tendem para o mesmo ponto por caminhos opostoindicando que Marx é tentado, nestes textos, a fazer com que a relação c pital fixo/capital circulante funcione em seu raciocinio de modo análogo aque denominaríamos hoje em dia a relação capital/produto. É verdade qunesta mesma obra estão presentes os argumentos que lhe proíbem de chegarafirmar explicitamente a identidade entre as duas razões. Não entrarei n pormenor destes argumentos, para que não nos extraviemos numa digressãsobre o circuito do capital. Basta assinalar ^ue, ao se inclinar no sentidde estabelecer aquela identidade, Marx não tem em vista a complexidaddo processo de geração e conservação do valor e das mudanças de forma que o valor do capital sofre ao atravessar alternadamente a esfera da prodção e a esfera da circulação. Este movimento quase imperceptível de seu pesamento decorre no fato de que seu trabalho crítico sobre a obra de antecessores ainda não tinha atingido aqui estágio suficiente de maturaçãoele é sensibilizado, em conseqüência, por fenômenos que têm base nas cracterísticas que distinguem qualitativamente a maquinaria e as matérias pmas enquanto valores de uso produtivos. As matérias-primas circulam fisicamente, sua substância material se transfere a outros proprietários, à medidem que elas se transformam em produtos terminados, enquanto as fábricae as máquinas permanecem nos lugares da produção, funcionando sob as odens do mesmo agente social que detém sua propriedade (mesmo que istexija que estes meios de produção se desloquem no espaço, como é o casdas locomotivas). Marx parece estar tateando aqui à procura da idéia dcontraste entre um fluxo e umestoque, para usar um jargão familiar aos ouvidos do economista contemporâneo. E ainda que exista um certo equvoco em suas fórmulas, segundo razões que ele próprio nos expõe, é verdatambém que isto por si só não tem conseqüências graves no conjunto desta parte de seu “esboço” , pois, como procurei mostrar anteriormente, é posvel também, e mesmo conveniente, pensar as contradições do movimento gral do capital colocando estrategicamente no centro da análise não a compsição interna do estoque de capital, e sim a relação capital/produto em valo

Tendo isto presente, retrocedamos às páginas que se seguem, neste fnal dosGrundrisse, à discussão sobre as transformações do processo de traba-

22 Fon dem en ts , II, p. 213; Elementos, 2, p. 220. Existe também outra passagem em queMarx afirma: “o capital fixo existe... por excelência enquanto capital produtivo.” ( Fon

dem ents , II, p. 224; Elem ento s, 2, p. 241). Mas é preciso observar que, dado o predomínio, neste livro, do problema da circulação do capital em geral, Marx estabelece inicialmente a equivalência inversa, afirmando que o capital aparece antes de mais nadcomo capita l circulan te. (F on dem en ts , II, p. 29; E lemen tos, 2, p. 27). Mais adiante encontramos exposto o jogo dialético através do qual o capital circulante “põe” a sua

própria negação, o capital fixo, dedução lógica que cu lmina numa síntese: am bos sãapenas “determinações formais do mesmo capital.” (Fondements , II. p. 124 a 126; E lem ento s, 2, p. 131 a 132). Ë na parte final dosGrundrisse, aqui discutida, que o capitafixo passará a ser visto como a encarnação mais plena do conceito de capital.

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lho e a predominância crescente do capital fixo sobre o trabalho vivo. Marx põe aqui em destaque as perspectivas que se abrem a partir desta mutação profunda e contínua da base material da sociedade, que põe a serviço do ca pital o domínio crescente sobre as forças naturais propiciado pelo avançodos conhecimentos técnicos e científicos. O desenvolvimento acelerado das

forças produtivas e a elevação da produtividade criam progressivamente os pré-requisitos para transformação radical das relações sociais, a partir daqual a economia de trabalho poderia ser aproveitada para aumentar o tempode lazer das massas trabalhadoras, dando lugar ao “livre desenvolvimentodas individualidades23”. O que, como Marx assinala também, não deixaria de repercutir positivamente sobre o próprio desenvolvimento das forças produtivas, pois a redução do tempo dedicado à produção material no sentidoestrito significaria também a ampliação do tempo disponível para as atividades culturais em geral, no campo da arte ou da ciência. Mas a realizaçãodestas possibilidades encontra um obstáculo na permanência das relaçõesde produção capitalistas. Enquanto a dinâmica da sociedade está cegamentesubmetida às exigências da valorização ininterrupta da riqueza de uma minoria, e esta só pode prosseguir através da absorção de trabalho vivo, a reduçãodo tempo de trabalho aparece como uma ameaça para o capital. Marx, falando dariqueza no sentido ricardiano demassa física de valores de uso (e nãode valor)2*, começa a formular, assim, a existência da contradição:“O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual repousa a riqueza atual, aparece como base miserável comparada à base nova, criada e desenvolvida pela própria grande indústria. Desde que o trabalho, sob sua forma imediata,deixou de ser a fonte principal da riqueza, o tempo de trabalho deixa e devedeixar de ser sua medida, e o valor de troca deixa pois de ser também a medida do valor de uso25.” Marx não está se referindo aqui a uma fase do desenvolvimento do capitalismo, mas sim ao limite extremo daimpossibilidade de sua existência, como ele esclarece logo adiante: “Com isto desaba a produção baseada sobre o valor de troca, e o próprio processo de produção material imediato se vê despojado de sua forma miserável e antagônica26.”

23 Fondements, II, p. 222;Elementos, 2, p. 229.24 “O valor difere essencialmente da riqueza, pois aquele depende não da abundância,mas da dificuldade ou facilidade de produção. O trabalho de um milhão de homens nasindústrias produzirá sempre o mesmo valor, mas nem sempre a mesma riqueza.” (DavidRicardo, Principios de Econom ia Política y Tributación, Editorial Claridad, B. Aires,1941, cap. XX, p. 231). Deve-se levar em conta, a propósito, queMarx critica esta distinção ricardiana na parte anterior de seu “esboço”, opondo-lheumconceitode riquezaque (tal como seu conceito de mercadorias) aparece como a síntese do valor de uso e dovalor de troca. (Fondements, I, p. 275, 280;Elementos, 1, p. 268, 273). Mas esta crítica é ditada por sua preocupação em indicar que Ricardo não percebe claramente o papel do trabalho no processo devalorização da riqueza (e suas contradições), conce bendo-a unicamente com o expansão da massa de valores de uso (Fondements, I, p.300 , Elementos, 1 p. 293),

25 Fondements, II, p. 22 2;Elementos, 2, p. 228.26 Fondements, II, p. 222;Elementos, 2, p. 229.

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Estas páginas proféticas encerram, na verdade, o primeiro enunciadode Marx sobre a tendência ao declínio da taxa de lucro, como teoria do limite histórico da produção capitalista. Pois ele nos dá aqui mesmo a fórmula condensada da contradição: “O capital é uma contradição em processo:de um lado, ele tende a reduzir a um mínimo o tempo de trabalho; de outro,

ele põe o tempo de trabalho como a única fonte e a única medida da riqueza27”. Não é difícil, à luz do que já foi exposto anteriormente neste artigo,compreender o significado desta passagem. A elevação contínua da razãocapital/trabalho se expressa, nos termos mais simples da teoria do valor-trabalho, como aumento contínuo da razão capital/produto, ou queda darazão produto/capital em valor. Esta desvalorização dos produtos do capital(que contêm a mais-valia) tende a bloquear o processo de acumulação. Édeste modo que Marx desvenda o reverso do poder do capital; este, emboraseja a força dominante da sociedade, esbarra em seus limites, que têm sua raiz

no vínculo que o liga, até a morte, à classe trabalhadora. Se o movimentodo capital leva-o a desvencilhar-se deste vínculo (economizando mão-de-obra),aquela barreira à sua expansão se ergue diante dele sob a forma de um processo incontrolável: a queda do valor de seus produtos28.

Mas o enunciado das contradições que podem levar à derrocada “econômica” da produção capitalista, restrito a estas fórmulas, suscita um pro blema, pois se baseia no pressuposto de que em quaisquer circunstâncias aelevação da razão capital/trabalho é um pré-requisito indispensável ao incremento da produtividade. Depois de ter afirmado repetidamente que o

desenvolvimento da capacidade produtiva da sociedade se mede pelo capitalfixo29, o próprio Marx se defronta com uma primeira manifestação destadificuldade, um pouco antes da “terceira seção”, ao assinalar que “quantomenor é o valor do capital fixo com relação à sua eficácia, mais ele preenche

27 Fondements, II, p. 222;Elementos, 2, p. 229.28 As ambiguidades do próprio texto de Marx se refletem nesta nota de rodapé deMandei: “A partir do momento em que o fenômeno da automação integral se generalizaem todas as empresas, os lucros e a mais-valia devem necessariamente perecer; de fato,

não há mais lugar para uma ‘economia de mercado’ nas condições deabundância m anifesta criadas pela automação generalizada.” (Ernest Mandei, A Formação do Pensa mento E conôm ico de Karl Marx, Rio de Janeiro, 1968, p. 95). (grifado por mim - E.P. - ) .Mandei resvala aqui em direção a uma explicação neoclássica: seria o excesso da ofertadas mercadorias, a sua superabundância enquanto massa de valores de uso, que transformaria estas mercadorias em “bens livres” (como o ar), destituídos de valor. Mas Marxé bem explícito ao declarar que é a desaparição do trabalho vivo que suprime o valor:“Na realidade, se a m áquina não necessitasse de nenhum trabalho, ela poderia aum entaro valor de uso, mas o valor de troca que ela produz iria não seria nunca m aior do que suasdespesas de produção, seu próprio valor, o tempo (de trabalho) materializado nela.”(.Fondements, II, 299;Elementos, 2, p. 305). Não se pode esquecer, no entanto, que esta hipótese significa que a automação não é integral (esta possibilidade é quase inconcebível): algum trabalho continua sendo investido na produção das próprias máquinas.29 Fondements, II, p. 214 e 224 , Ele mentos, 2, p. 221 e 230.

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sua finalidade30”. Ainda que ele não o diga, o contexto da citação permiteentender que isto significa que os capitalistas individuais, pressionados pela concorrência, interessam-se também por mudanças tecnológicas que envolvam economias novalor do capital fixo necessário para se obter um volume dado de produção. Não é este, no entanto, o ponto mais importante,

pois em geral não depende da vontade deles que tais oportunidades surjamou não. Voltando ao âmbito do movimento global do capital, é verdade quese pode dizer que é necessário que o capital fixo atinja inicialmente determinadas dimensões mínimas para que o capital possa se apropiar das forças produtivas sociais que resultam da cooperação e da divisão do trabalho entre um grande número de operários, e da aplicação da ciência às atividadesda produção. Mas isto não quer dizer que, uma vez,alcançado este estágio,todo aumento subseqüente da produtividade esteja necessariamente associado a um aumento do volume ou do montante em valor do capital fixo. Pensar o contrário é desconhecer o fato fundamental de que, se o capital é dotado de valor, é porque seus componentes físicos precisam ser produzidos,ou permanentemente reproduzidos (pois eles são também perecíveis), e aelevação da produtividade também pode ocorrer na produção dos elementosmateriais que formam o estoque de capital.

É neste ponto que se revelam todas as conseqüências do estado fragmentário e inacabado em que permanecem, nosGrundrisse, aquelas análisesque antecipam o conteúdo do Livro II deO Capital, onde Marx, ao tratardo processo de circulação e do circuito deum capital qualquer (tomadoisoladamente), é levado finalmente a desenvolver as implicações do entrelaçamento dos “múltiplos capitais” no movimento de reprodução do capitalsocial em seu conjunto. Aqui é preciso pôr em destaque uma distinção básica, pois a análise das relações existentes entre os “múltiplos capitais” pode significar ou a análise daconcorrência ou a análise dareprodução*1.Para indicar esquematicamente onde se separam estas duas vertentes da investigação teórica sobre o movimento do capital, poder-se-ia dizer que o exame da concorrência nos orienta no sentido de analisar as relações existentesentre os “múltiplos capitais” em ummesmo ramo de produção (mesmo quando se trata de analisar a passagem dos capitais individuais de um ramo aoutro), enquanto a análise da reprodução nos encaminha para por em destaque as relações entre diferentes capitais situados em ramos de produção distintos. No Livro II deO Capital, ao discorrer sobre o circuito do valor docapital atravessando suas formas sucessivas (mercadoria - dinheiro - mercadoria), Marx mostra como se engancham neste processo os diferentes ca-

30 Fondements, II, p. 263;Elementos, 2, p. 269.31 É importante sublinhar esta distinção, pois Roman Rosdolsky provocou algumasconfusões ao sugerir que Marx analisa a concorrência no Livro 111 e que o tratamento

dos múltiplos capitais” está ausente no Livro 11 deO Capital (Genèse, op. cit., p. 84e 87; Genesi, 1 ,op. ci t., p. 76 e 78).

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pitais individuais, enquanto eles se situam uns diante dos outros não comoconcorrentes, mas como co-participantes de um processo de intercâmbio.E o decisivo, aqui, para os efeitos de nossa discussão, é que neste processodeterminados capitalistas (que em outro momento são também compradores)vendam a outros mercadorias que fazem parte do estoque de capital destes

últimos, sejam estas mercadorias os artigos de consumo que constituem acontrapartida real do valor da força de trabalho (ou do capital variável),ou sejam elas, simplesmente, meios de produção. Orientadas nesta direção,as análises de Marx no Livro II culminam nos capítulos sobre a reproduçãosimples e ampliada do capital em seu conjunto, nos quais se examinam as relações existentes entre os dois grandes setores em que estão agrupados osinúmeros ramos de atividade em que se subdivide o trabalho da sociedade:a produção de meios de produção e a produção de artigos de consumo3 2.

Privilegiar esta direção da análise significa negar qualquer impor

tância à concorrência? Não no sentido de que a existência de uma “multi plicidade de capitais” , enquanto determinante da luta competitiva que sedesencadeia entre eles, constitui também para Marx uma característica básica do modo de produção capitalista. Sem ela, seria impossível compreender a pressão irresistível a que está submetido cada agente capitalista individual, empurrando-o a valorizar incessantemente seu capital, o que tem como implicações a introdução permanente de novas técnicas e a migração dos

32 Já na prim eira seção do Livro II, onde analisa as diversas form as do circuito de um

capital individual, Marx sublinha as vantagens da terceira destas formas, a representação do circuito que tom a como pon to de partida o capital-mercadoria, pois neste aparece desde o início, como pré-requisito, o intercâmbio com outros capitalistas (para queo movimento possa prosseguir com a transformação das mercadorias em dinheiro e parte deste em capital produtivo ): “ ... Precisamente p orque o circuito M’ - M’, em seudesenvolvimento, pressupõe ou tro capital industrial sob a forma de M (= T + Mp)(e Mp engloba outroa diversos capitais, com o por exemplo, em nosso caso, máquinas,carvão, óleo, etc.), exige que se o considere não só como formageral do circuito, istoé, como a forma social sob a qual pode ser considerado todo capitalista industrial individual (fora de seu primeiro investimento) e, portanto, não só como uma forma de movimento comum a todos os capitalistas industriais individuais, mas também como a forma em que se move a soma dos capitais individuais, ou, o que é o mesmo, o capitalglobal da classe capitalista, movimento no qual o de todo capital industrial individualnão é mais do que um movimento parcial entrelaçado com os demais e condicionado por eles.”(El Capital, Livro II, cap. III, p. 104;O Capital, vol. 3, p. 98, 99).

E na introdução da terceira seção do Livro II, Marx define assim o seu objeto: "...Tanto na primeira como na segunda seção, tratava-se sempre de um capital individual,da dinâmica de uma parte autonomizada do capital social. No entanto, os circuitos doscapitais individuais se entrelaçam uns com os outros, se pressupõem e se condicionammutuamente, e é precisamente este entrelaçamento que constitui a dinâmica do capitalsocial em seu conjunto (...) Cabe-nos agora estudar o processo de circulação (forma, emseu conjunto, do processo de reprodução) dós capitais individuais considerados como partes in tegrantes do capital global da sociedade e, portanto, o processo de circulaçãodeste capital social em seu conjunto.”(El Capital, Livro II, cap. XVIII, p. 381, 382;O Capital, vol. 3, p. 378).

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capitais em direção àqueles ramos onde a taxa de lucro é mais elevada, processos básicos da própria dinâmica da lei do valor. Mas, apesar disto, é verdade também que é um extravio deter-se na análise da “ação recíproca”dos múltiplos capitais em sua luta (para usar a linguagem dosGrundrisse), e é ilusório situar-se do ponto de vista do sujeito capitalista (individual),

quando se pensa em elucidar teoricamente as leis de movimento que regemo processo global de acumulação33. Marx já tinha, ao redigir osGrundrisse, entendido em alguma medida este ponto fundamental, através do exemplode Adam Smith que tentara explicar pela concorrência entre os capitais a baixa da taxa de lucro, o que só tem sentido quando se considera um ramode produção em particular (com um mercado de dimensões pré-fixadasou, em termos mais gerais, exogenamente determinadas), mas não quandose tem em vista o processo de acumulação no conjunto do sistema. Citandoa crítica dirigida por Ricardo a esta concepção de Smith, Marx conclui:

33 “Por definição, aconcorrência é a natureza interna do capital. A determinaçãoessencial deste é de aparecer como a ação recíproca dos diversos capitais entre si: é umatendência interna que aparece como imposta do exterior. O capital não existe e não pode existir senão como múltiplos capitais; é por isto que sua autodeterminação se apresenta como a ação recíproca de uns sobre os outros.” (Fondçments, I, p. 371;Elementos,1, 366). Os termos desta passagem decisiva dosGrundrisse remetem, em primeiro lugar,ao terceiro capítulo do primeiro livro da Lógica onde Hegel expõe a passagem dialéticaatravés da qual oUm se transforma namultiplicidade: “O ser-para-si éem primeiro lugar um imediato existente-para-si, umUm. Em segundo lugar o Um pássa àmultiplicidade dos Uns...” (G. W. F. Hegel,Ciencia de la Lógica, I, Hachette, B. Aires, 1956, p. 201). "... Algo está pa ra si enquanto elimina o ser-outro, sua relação e comunidadecom o outro, isto é, enquanto as rechaçou e abstraiu. O outro existe para ele sócomo um superado, como ummo m ento seu; o ser para sí consiste nisto: que se saiu para alémdo limite, para além de seu próprio ser outro, de modo que, enquanto é esta negação,é o retorno infinito em si. A consciência contém já em si mesma esta determinação doser-para-si, enquanto serepresenta um objeto que (ela) sente, intui, etc., quer dizer,cujo conteúdo (ela) temem si, e de tal maneira que este conteúdo existe comoideal.” (Idem, I, p. 202). “O ideal é necessariamente para-Um, mas não é para umoutro-, o Um, pa ra o qual (ele) é, é só ele mesmo. - Portanto o eu , ou o espírito em geral, ou Deus, sãoideais, porque são infinitos...”(Idem, I, p. 204). Mas, por este voltar-se sobre si mesmo,o Um se cinde e se desdobra no múltiplo: “...Enquanto o ser-para-si se acha fixado comoUm, comoexistente para si, comoimediatamente presente, sua relaçãonegativa consi

go é ao mesmo tempo relação com umexistente; e posto que é também (relação) negativa, aquilo, ao qual ele se refere, permanece determinado como umaexistência e umoutro; e o outro, como referência essencialmentea si mesmo, não é a negação indeterminada, como va:zio, mas é igualmenteUm. O Um, portanto, é umtornar-se muitos Uns. (...) ...o Um se rechaça a si mesmo longede si. A referência negativa do Um a simesmo érepulsão.” (Idem, I, p. 214). A categoria daação recíproca, por sua vez, aparececomo a superação da causalidade exterior do mecanismo em direção à autodeterminação dasubjetividade. Transcrevo aqui apenas o trecho queabre o caminho para esta última passagem do segundo ao terceiro livro da Lógica: “Aquela primeira causa que atua prim eiro, e recebe de volta em si sua ação como reação, apresenta-se assim de novo com ocausa, de modo que o atuar que na causalidade finita termina na progressão do falsoinfinito, fica duplicado, e se converte em umatuar recíproco, que volta a si, quer dizer,um atuar recíproco infinito.”(Idem, II, p. 240).

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“A concorrência executa as leis imanentes do capital; faz delas leis necessárias e obrigatórias para cada capital particular, mas não as cria. Ela as realiza.É admitir que não se compreendeu estas leis, querer explicá-las simplesmente a partir da concorrência34”. Mas Marx não tinha ainda chegado ao pontode diferenciar claramente a análise da concorrência e a análise da reprodu

ção. Assim, numa página do “capítulo do capital” onde tinha começado aesboçar a análise do entrelaçamento de dois capitais distintos na circulação,ele a interrompe alegando que “não temos que considerar ainda aqui o intercâmbio entre os múltiplos capitais, pois este entra na teoria da concorrência ou da circulação dos capitais35”. A reprodução e a concorrência, enquanto problemas, estão aqui literalmente identificadas, isto é, confundidas. É somente emO Capital que Marx decididamente separa a concorrência como um domínio de investigação que não faz parte do plano de suaobra, ao mesmo tempo em que leva a seu pleno acabamento o exame do processo de circulação, que tem seu fecho na análise da reprodução docapital3 6Em diversas passagens, Marx revela ter perfeita consciência do quantosua elaboração teórica estava inacabada sob este aspecto nosGrundrisse. Assim, ele diz, por exemplo, na linguagem característica deste livro, que “será necessário abordar mais adiante a análise detalhada das proporções segundo as quais é necessário produzir capital fixo e capital circulante37”.Por outro lado, é também uma opção deliberada de sua parte fixar-se provisoriamente no movimento do capital como um bloco indiviso, abstraindosuas diferenciações internas. “Consideramos unicamente aquio capital em

processo; os múltiplos capitais não existem pois ainda para nós. Só tratamos pois do próprio capital, e da circulação simples, a partir da qual ele absorveem si mesmo —e rejeita fora dele —o valor, sob a dupla forma do dinheiro

34 Fondements, ÍI, p. 279;Elementos, 2, p. 285. Ver tambémFondements, I, p. 396;Elementos, l ,p . 392.35 Fondements, II, p. 253;Elementos, 2, p. 259.36 Assim, o trabalho teórico realizado por Marx após a redação dosGrundrisse faz comque as noções de “concorrência” e de “multiplicidade dos capitais” apareçamredefinidas em sua obra definitiva. O próprio Rosdolsky reconhece este fato: “... È preciso nãoexagerar a afinidade estrutural entre as duas obras. Não se deve esquecer que a reorganização posterior do “ livro do capital” original provocou, e teria que provocar, uma certamodificação dos conceitos fundamentais deste livro, e que por isto a significação destesconceitos noCapital e no Esboço não coincide sempre, nem inteiramente(Genèse, p. 85; Genesi, 1, p. 77). Devemos a Roger Establet ter sublinhado a existência deste“campo teórico não elaborado mas exatamente delimitado” emO Capital, o da concorrência, embora ele exagere ao dizer quetodo discurso sobre esta “é perfeitamenteideológico” (“Présentation du plan duCapital”, em Lire le Capital, II, Maspero, Paris,1967, p. 380). Pois ainda que Marx considerasse dispensável, para seus propósitos, oestudo da concorrência, não se pode inferir de suas fórmulas que esta não constitui umdomínio legítimo de investigação; o que ele nos diz a respeito significa apenas que aconcorrência não pode constituir-se no objeto de uma disciplina autônoma.37 Fondements, II, p. 263;Elementos, 2, p. 268.

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e da mercadoria38.” Aqui é a simples oposição capital/produto que está presente, com uma marca hegeliana inequívoca nos próprios termos dafórmula: o capitalem si, como um estoque homogêneo, contraposto à suaexteriorização: o fluxo do valor produzido que ele expele e em seguida reabsorve (parcialmente) em seu próprio interior, através da acumulação, para

poder expandir-se enquantovalor39. Mas esta escolha de Marx não podedeixar de afetar a sua análise, quando esta perspectiva é adotada para tratardas contradições do movimento do capital em seu conjunto. Pois mesmoque ele tenha presente que o valor gerado pelo capital e parcialmente reincorporado nele tem como substância o trabalho vivo, a simples oposiçãocapital/produto, dissociada da compreensão das subdivisões internas de cadaum destes termos no processo de reprodução, leva-o'a menosprezar o fatode que a elevação da produtividade do trabalho pode traduzir-se não só numa desvalorização dos produtos, mas também numa redução do valor do próprio capital. E ao desconsiderar esta possibilidade ele estava, na verdade,subestimando a capacidade de sobrevivência “econômica” do mecanismodo modo de produção capitalista.

Pode-se avaliar as conseqüências desta insuficiência do pensamentode Marx percorrendo a exposição da “terceira seção”, que desde o início jáse encaminha para o tratamento da lei da queda da taxa de lucro, agora jáchamada por seu nome e deduzida de modo explícito em termos praticamente idênticos aos que são utilizados no Livro III deO Capital. A hipó

tese da taxa de mais-valia constante (essencial para a formulação dalei em si, antes da consideração de suas causas contrabalançadoras) é mencionada soba forma de uma relação constante entre otrabalho excedente (isto é, amais-valia) e otrabalho necessário (necessário para a reprodução do valorda força de trabalho): “Supondo uma mesma mais-valia(um mesmo trabalho excedente com relação ao trabalho necessário), a taxa de lucro dependeda relação entre a parte do capital trocada pelo trabalho vivo e a parte formada pelas matérias-primas e os meios de produção. Em conseqüência, sea porção trocada pelo trabalho vivo é pequena, a taxa de lucro é baixa. A

taxa de lucro baixa, portanto, à medida em que o capital enquanto tal ocupaum lugar crescente com relação ao trabalho imediato40.” Na seqüência daexposição, encontramos uma única referência passageira, sem nenhum co

38 Fondements, II, p. 251;Elementos, 2, p. 257.39 A presença de Hegel como matriz destas fórmulas aparece também claramentenuma passagem da qual só citei, anteriormente, o início (sobre o capital fixo): “A maquinaria aparece... como a forma mais adequada do capital fixo, e este comoa forma mais adequada do capital em geral, se se considera o capital em sua relação consigo mesmo. Por ou tro lado, na medida em que o capital jix o está vinculado a um valor de uso

particula r bem determinado, não corresponde ao conceito do cap ital , que, enquantovalor, é indiferente a toda forma determinada de valor de uso. Ocapital circulante será pois a form a adequada do cap ital, com relação ao capital fixo, em seu movim ento esua relação com o exterior.”(Fondements, II, p. 213, 214;Elementos, 2, p. 220, 221).40 Fondements, II, p. 273;Elementos, 2, p. 279.

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mentário adicional, à “constante desvalorização de uma parte do capitalexistente”, como um fator que freia este processo41. Marx resiste à idéiade que esta desvalorização do capital possa deter ou mesmo inverter a seqüência prescrita pela formulação simples da lei da queda da taxa de lucro.Assim, numa passagem anterior, ele escreve, considerando a hipótese de

uma composição constante do valor do capital: “Esta relação uniformeentre as duas partes do capital implica um crescimento do capital sem aumento nem desenvolvimento da força produtiva do trabalho (...) Esta uniformidade contradiz a lei do desenvolvimento capitalista e, especialmente,do desenvolvimento do capital fixo42.” Mas Marx ainda mostrará algumashesitações a respeito, e justamente, como seria de se esperar, na subdivisãodesta “terceira seção” que tem (na edição francesa) o título deO Valor do Capital Fixo. Transcrevo aqui apenas a passagem em que ele volta aconsiderar explicitamente, como um dos casos possíveis, a constância da com

posição do capital em valor: “A produtividade aumenta simultaneamentenão só num ramo de produção dado, mas também no ramo dos meios de produção que ele utiliza... (...) Neste caso, as proporções do capital permanecem as mesmas, ou seja, o capital não precisa fazer investimentos maioresem matérias-primas e instrumentos, ainda que a produtividade aumente43.”Percebe-se que Marx só chega a encarar esta possibilidade para umdeterminado ramo de produção em particular, não como um movimento que possa prevalecer quando se pensa no sistema em seu conjunto, o que está perfeitamente de acordo com uma fórmula que aparece (sublinhada por ele mes

mo) logo no início desta subdivisão do texto: “O capital tende, por um lado, a aumentar o valor global do capital fixo, e, por outro lado, a diminuir ao mesmo tempo o valor de cada uma de suas partes alíquotas4 4Podemosconsiderar esta como sua última palavra sobre o problema nosGrundrisse.

É verdade que esta concepção de Marx sobre a tendência ao crescimento do capital fixo era defensável por seu realismo: desde as últimas décadado século XVIII até o seu tempo, não foi na produção de meios de produção que se verificaram as mudanças tecnológicas mais espetaculares da indústria capitalista, e sim nos setores produtores de artigos de consumo e no

serviços de transporte. Era legítimo, portanto, ver no aumento da razãocapital/produto uma característica fundamental do desenvolvimento dasforças produtivas capitalistas. Mas também Ricardo havia formulado anteriormente sua concepção da lei da queda da taxa de lucro, que segundo ele seria provocada pelo encarecimento relativo dos gêneros de subsistência e pela conseqüente elevação dos salários, no pressuposto de que a produçãoagrícola se caracterizaria por ter rendimentos decrescentes, enquanto o au

41 Fondements, II, p. 278-,Elementos, 2, p. 284.4 2 Fondements, II, p. 274;Elementos, 2, p. 280.43 Fondements, II, p. 305;Elementos, 2, p. 311.44 Fondements, II, p. 296;Elementos, 2, p. 303.

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mento da produtividade estaria restrito à indústria. E Marx, nosGrundrisse, criticou-o nestes termos: “Ele só apreende um caso particular. É como se sedeclarasse que a taxa de lucro baixa um conseqüência de um aumento momentâneo do salário, ou se elevasse a lei geral um fato que se verifica nodecurso de um período de 50 anos, mas evolui no sentido inverso nos 50

anos seguintes, como o desequilíbrio histórico entre o desenvolvimento daagricultura e o da indústria45.” A crítica atingia o seu próprio autor nomomento em que ele a formulava, como sabemos hoje, pois ao longo doséculo XX o desenvolvimento capitalista parece ter sido acompanhado não por um aumento, mas por umdeclínio contínuo da razão capital/produto4 6.

Somente a última versão da teoria de Marx permanece intacta diantedestas evidências. Pois ao redigirO Capital ele já havia elaborado sistematicamente e em seus mínimos detalhes os esquemas de reprodução, que mostram a articulação necessária entre o setor produtor de meios de produçãoe o setor produtor de artigos de consumo. Isto deve-lhe ter permitido perceber que não existia nenhuma razão apriorística plausível para considerarum ou outro destes dois setores como o lugar privilegiado do desenvolvimento das forças produtivas, como se a concentração unilateral deste desenvolvimento fosse uma lei imutável do capitalismo. Por outro lado, comoaqueles esquemas de reprodução deixam ver claramente a correspondênciaexistente entre a composição orgânica do capital e as proporções em que ocapital e o trabalho se distribuem entre os dois setores, esta percepção sereflete no fato de que, no Livro III, Marx dedica capítulo inteiro às economias no emprego de capital constante e trata explicitamente do barateamento de seus componentes materiais como uma das causas contrabalançadorasda tendência à queda da taxa de lucro. Em contraste com estas páginas deO Capital, os textos dosGrundrisse sobre a automação e o predomínio crescente do capital fixo, aos quais se atribui hoje (com certa dose de razão)impressionante atualidade, aparecem como não sendo mais do que a projeção linear, num tempo futuro, das conseqüências mais extremas de um movimento característico do desenvolvimento da grande indústria nos dias deMarx; as concepções que eles expõem são demasiadamente “reflexo” ou “ex pressão” de sua época para poderem serteoria no sentido mais pleno e desenvolvido deste termo. Foi no interior destes limites teóricos que Marxcomeçou a delinear, neste “esboço” deO Capital, a sua construção conceptual sobre os limites históricos do capitalismo e sobre a lei tendencial, e juntou as duas peças fundamentais desta construção: o conceito da dependência do processo de acumulação com relação à força de trabalho e ao tra-

45 Fondements, II, p. 279, 280;Elementos, 2, p. 286.46 Na economia norte-americana, observa-se um lento mas persistente decréscimo darazão capital/produto de 1889 a 1966 (John Kendrick,Postwar Productivity Trends in the United States, NBER, New York, 1973, p. 41).

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balho vivo, e o da impotência do capital em impedir a desvalorização de seus produtos4 7.

A Negação da Leí do Valor

Retornemos aO Capital. Já vimos o suficiente, para os propósitosdeste artigo, sobre a lei de movimento fundamental do capitalismo; é preciso agora que nos voltemos para algumas passagens do Livro III onde Marxmostra de que modo o movimento real deste modo de produção gera e re produz incessantemente as aparências que o dissimulam, aqueles fenômenosque fornecem um ponto de apoio às ilusões presentes no discurso ideológico do sujeito capitalista e dos teóricos que compartilham do ponto de vistado capital.

Quero pôr em destaque, aqui, passagem da primeira seção deste Livrode O Capital que trata da conversão da mais-valia em lucro, isto é, da transformação do trabalho excedente (do qual se alimenta o capital) em sua ex pressão aparente, que está presente no cálculo do agente capitalista individual como uma grandeza monetária. Para Marx, é a mais-valia que determinao lucro, mas, ao contrário do que se poderia depreender de algumas de suasfórmulas, o ponto essencial não está em que se possa afirmar que estas duasgrandezas são necessariamente iguais em termos absolutos. Pois esta igualdade não tem por si só nenhuma significação especial: ela sempre poderá

ser assegurada, quando o desejarmos, desde que escolhamos convenientemente as unidades de medida (em tempo de trabalho e em dinheiro) com asquais se medem a mais-valia e o lucro. Mas existe um outro vínculo entre amais-valia e o lucro que independe das convenções adotadas quanto a unidades de medida. Mesmo que estas grandezas sejam desiguais em termos absolutos, o importante é saber o que êstá por trás domovimento da taxa de lucro, pois é estarazão entre o lucro e o capital total que tem um papeldeterminante sobre as potencialidades de expansão deste último. A taxa delucro depende por definição da razão produto/capital e da repartição do pro

duto entre capitalistas e trabalhadores. E, como já afirmei anteriormente,é possível demonstrar que esta taxa se move necessariamente no mesmo sentido, quer se estime em preços monetários ou em tempos de trabalho asgrandezas envolvidas em sua definição, uma vez que o movimento dos preçosestá ligado ao movimento dos valores.

47 Mandei, embora atribua uma grande importância aosGrundrisse, não deixa de assinalar de passagem que as insuficiências desta obra podem ser localizadas, precisamente,na elaboração inacabada da teoria da reprodução e da lei tendencial (Ernest Mandei,

A Formação do Pensamento..., op. cit., p. 106). Rosdolsky, por outro lado, apoia-seno “esboço” deO Capital para apresentar uma interpretação catastrofista da tendênciaà queda da taxa de lucro (Genesi, op. cit., 2, p. 441).

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É neste sentido, isto é, da perspectiva da lei de movimento da taxa delucro, demonstrada em capítulos posteriores àquele de onde extraímos acitação abaixo, que Marx tem razão em afirmar que a taxa de lucro é a

forma transformada da taxá de mais-valia. Pois, como ele mesmo diz (quaisquer que sejam as escolhas arbitrariamente feitas quanto a unidades de medida), a taxa de lucro, sendo a razão entre a mais-valia e o capital total (constante + variável) é necessariamente inferior à taxa de mais-valia, que é amais-valia (ou oexcedente em valor) dividida simplesmente pelo capital variável (isto é, pelovalor pago à força de trabalho durante um período de rotação deste capital). Marx salienta em seu texto que esta última razão émais reveladora por explicitar a relação com otrabalho, do qual o capitaldepende para se valorizar:

“Quando o excedente, para expressarmo-nos em termos hegelianos,se reflete em si mesmo ou, dito de outro modo, caracteriza-se mais pro priamente pela taxa de lucro, aparece como um excedente que o capital produz sobre seu próprio valor, anualmente, ou em um determinado período de circulação.

Por conseguinte, ainda que a taxa de lucro seja numericamente diferente da taxa de mais-valia, enquanto mais-v^lia e lucro são na realidade a mesma coisa e iguais numericamente, o lucro é, não obstante,uma forma transformada da mais-valia, forma na qual se embaralhame se apagam a sua origem e o segredo de sua existência. Na realidade,o lucro não é senão a forma sob a qual se manifesta a mais-valia, a qualsó pode descobrir-se através da análise, despojando-a da roupagem daquele. Na mais-valia se desnuda a relação entre o capital e o trabalho.Ao contrário, na relação entre o capital e o lucro, quer dizer, entre ocapital e a mais-valia...aparece o capital como uma relação consigo mesmo, relação na qual ele se distingue, como soma originária de valor, do valor novo acrescentado por ele mesmo. Existe a consciênciade que este valor novo é engendrado pelo capital ao longo do processo de produção e do processo de circulação. Mas o modo como ocorreisto aparece mistificado e como fruto de qualidades misteriosas inerentes ao próprio capital45”.

48 El Capital, Livro III, vol. I, cap. II, p. 79;O Capital, vol. 4, p. 51, 52. Pode-se encontrar nos Grundrisse um a passagem semelhante a esta, mas na qual, para falar tamb ém emtermos hegelianos, Marx “suprime sua distinção” com relação a Hegel e se identificacom este último, usando como sua a categoria idealista dosujeito: “Primeiro o capitalintroduz uma diferença entre ele e o lucro, valor recém-produzido, apresentando-se como a precondição do valor que se valoriza e pondo um lucro como medida de sua valorização; em seguida, ele suprime esta distinção e identifica o lucro com ele mesmo, aumentando em seu montante, para recomeçar uma vez mais o processo em uma escala

ampliada. Percorrendo um circuito, ele Se amplia a si mesmo, enquanto sujeito destemovimento, e descreve assim um círculo em expansão, uma espiral.” (Fondements,II, p. 273;Elementos, 2, p. 279). Mas a seqüência do texto reafirma que este processoexpansivo é alimentado pela absorção co ntínua de trabalho vivo.

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Na taxa de mais-valia, o acréscimo ao valor do capital, o excedente, está explicitamente relacionado à sua fonte, ao trabalho vivo empregado. Aocontrário, na taxa de lucro, que é a razão relevante na contabilidade capitalista, este excedente parece emanar do próprio capital, considerado como umtodo indiferenciado. Suprimem-se, deste modo, os limites que são imposto

à expansão e ao reforço do poder do capital pela suarelação com o trabalho, a qual remete àsrelações de produção características do capitalismo. Ocapital aparececomo uma relação consigo mesmo, e nesta aparente auto-suficiência do capital se alicerça a miragem de sua onipotência4 9. Não é por acaso, portanto, que Marx volta a invocar explicitamente, neste contexto, alinguagem hegeliana. Pois o capital, quando exprime sua auto-valorização nforma da taxa de lucro, surge dotado dos atributos da divindade: como oLogos hegeliano, esta substância simples e animada que, a partir da indi-ferenciação primeira da origem, põe para além de si mesmo o seu Outro, a

sua criação, para num momento posterior ver fundir-se nele mesmo este diverso, que é mera projeção dele próprio e só existe fora dele aparentementeassim o capital “se distingue” de si fazendo surgir “o valor novo acrescentado por ele mesmo”, valor novo que será em seguida reincorporado à sua“soma originária” através da acumulação. Mas, ao contrário do que ocorrinos Grundrisse, os “termos hegelianos” não são retomados por Marx comouma expressão adequada de sua própria concepção. Ele já sabe mais claramente, agora, de que modo a totalidade homogênea do capital se enraíza, em semovimento, na complexidade da estrutura do modo de produção (relaçõesde produção e forças produtivas) e das diferenciações internas do capitae do produto no processo de reprodução. A linguagem hegeliana não podeexpressar a relação estabelecida pelo próprio Marx entre o movimento rea(a “essência”) e as aparências que este produz; ela lhe serve, ao contrário para caracterizara estrutura interna da própria ilusão. E esta aproximação é possível porque o fetichismo do capital é tão teológico como a dialética hegeliana50.

49 No processo de produção , diz Marx nosGrundrisse, “o capital está posto como valorexistente para si,egocêntrico, por assim dizer.” (Fondements, I, p. 251;Elementos, 1, p. 244).

S0Mesmo nos Grundrisse é possível localizar ao menos um te x to onde a referência explícita a Hegel, embora este seja claramente um ponto de apoio (e a referência uma homenagem), está associada a um equívoco especulativo que constitui tam bém o alvo imediatoda crítica de Marx. Trata-se de uma passagem em que ele comenta as proposições de A.Smith sobre este grande “capital fixo” co nstituído pela Natureza, pelos elementos materiais que ela põe a disposição de tod a atividade produtiva: “ . . . De um po nto de vista puramente material, é certo que todo capital circulante provém originariamente do capitafixo, com a condição de que Smith considere a produção capitalista e não a situe no começo do mund o. Sem redes ele não poderia pescar, sem arado não poderia lavrar a terra,sem martelo,, etc., não poderia exp lorar um a mina. Se uma simples pedra servisse de martelo,'etc., esta não seria nem capital circulante, nem capital algum, mas um meio de tra

balho. Desde que o homem pro duz, está disposto a utiliza r diretamente como meio de

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Não recapitularei aqui todos os passos através dos quais, ao longo do Livro m , Marx revela como a dinâmica da produção capitalista reproduz os fenômenos que ocultam suas articulações determinantes e expõe progressivamente os elementos que serão reunidos em um dos capítulos-síntese da última seção, o capítulo sobre “as aparências da concorrência”. Quero chamar

a atenção agora para outra passagem extraída da seção sobre a divisão da mais-valia em juro e lucro do empresário. Ela nos interessa, porque Marx mostra aí como a forma extrema da ilusão do sujeito capitalista é a do capital de empréstimo, que é investido em dinheiro e retoma a seu proprietário com um acréscimo, o juro. Do ponto de vista do capitalista bancário, e também do rentista, o dinheiro parece multiplicar-se como decorrência de uma propriedade mágica, sem que isto tenha como precondição a passagem do capital pela esfera da produção. Surge assim a ilusão de que o capital sob a forma de dinheiro ou de títulos de dívida pode expandir-se sem limites, indepen

dentemente das vicissitudes a que possa estar sujeito o capital real, cujo valor se multiplica pela incorporação de trabalho vivo nas atividades propriamente produtivas. Esta ilusão se exprime na fórmula D —D’, dinheiro transformado em outra soma incrementada de dinheiro, fórmula onde se representa o circuito do capital eliminando-se as etapas intermediárias: a transformação do dinheiro em mercadorias utilizáveis na produção (meios de produção e força de trabalho),a transformação das matérias-primas em produtos e a venda subseqüente destas novas mercadorias por dinheiro. A fórmula leva a desconhecer, assim, o fato de que o juro não é mais do que uma fra

ção da mais-valia, um pagamento em dinheiro que confere àquele que o rece be,o poder de se apropriar de uma parcela do excedente produzido pela sociedade. Desaparecem, deste modo, os últimos vestígios daquela “consciência de que o valor novo é engendrado pelo capital ao longo do processo de produção e do processo de circulação”, que Marx dizia existir ainda na forma da taxa de lucro, e chega-se em conseqüência à fantasia de uma autonomia absoluta da expansão do capital de empréstimo com relação à acumulação de capital na esfera produtiva:

“O fetichismo do capital e a idéia do capital como um fetiche apa

recem consumados aqui. Na fórmula D —D’, temos a forma mais absurda de capital, a inversão e a coisifícação das relações de produção elevadas ao mais alto grau: a forma do juro, a forma simples do capital, anteposta a seu próprio processo de reprodução; a capacidade do

trabalho um a parte dos objetos naturais existentes, e - como diz Hegel, corretamente -subm ete estes o bjetos à sua atividade, m esmo se não existe ainda um processo de mediação .” (Fondem ents, II, p. 256; E lementos, 2 p. 262) (grifado po r mim —E. P. —) Mas aseqüência do texto mostra logo a insistência de Marx em situar-se do ponto de vista dareprodução do modo de produção capitalista já dado, recusando esta especulação sobre o“começo do mundo”: “De fato, é da apropriação do trabalho alheio que provém não sóoriginariamente, mas ainda continuam ente, tod o capital, tan to fixo como circulante. Maseste processo supõe, como vimos, a continuidade da pequena circulação, isto é, troca dosalário, ou dos meios de subsistência, pela força de trab alh o.”

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dinheiro, ou, respectivamente, da mercadoria, de valorizar seu pró prio valor independentemente da reprodução, a mistificação capitalista em sua forma mais descarada.

Para a economia vulgar, que pretende apresentar o capital como fonte independente de valor, de criação de valor, esta forma é, natural

mente, um magnífico achado, a forma em que já não é possível identificar a fonte do lucro e na qual o resultado do processo capitalistade produção — dissociado do próprio processo —adquire existênciaindependente51Segundo uma conhecida proposição de Marx, “a barreira do capital

é o próprio capital” ; estas citações indicam, no entanto, que seria ilegítimointerpretar esta proposição em sentido fetichista, como se ela significasse queo capital tem em si mesmo a origem do seu movimento e cria ele próprio osobstáculos à sua expansão. Aqui se pensa, ao se falar de capital, por oposi

ção ao trabalho, na força dominante de nossa sociedade. Mas Marx disse tam bém, por outro lado, que o capital é uma relação social: no conceito deca-

5IE1 a p it a i, Livro III, vol. I, cap. XXIV, p. 467, 468 ; O Capital, vol. 5, p. 452. A negação d a autono mia do movimento do cap ital de empréstimo não significa que o acréscimodo valor monetário deste “capital fictício” não possa se dar a um ritmo mais rápido doque o da expansão do valor monetário do capital produtivo. O “capital fictício” é constituído por uma massa de papéis ou títulos que, em regra geral, representam dívidas(ainda que seja necessário destacar aqui o caso particular das ações, que a rigor não sãotítulos representativos de dívidas a serem pagas pelas empresas em cujo nome elas São

emitidas, mas dão a seus detentores u m direito à participação nos lucros destas empresas).Aqui cabem apenas algumas observações esquemáticas. Na medida em que a expansão do“ capital fictício” decorre apenas de uma multiplicação das relações de endividamento entre empresas, qualquer que seja a im portância deste fenômeno sob ou tros aspectos, estecapital deve ser visto como fictício no sentido mais literal da palavra, pois sua expansãonão envolve um aumento efetivo da riqueza do conjunto da classe capitalista. Mas estaúltima pode crescer realmente através do endividamento crescente do Estado ou dos assalariados (pelo crédito ao consumidor). Neste último caso, a capacidade de endividam ento dos assalariados en contra limites em seu nível de renda. Quanto à dívida pública,o Estado também deve pagá-la principalmente através da fração do excedente ou da mais-valia da qual ele se apropria, o que também restringe a expansão indefinida dos títulos re

presentativos desta dívida.Pode-se-ia contra-argumentar, por exemplo, raciocinando sobre este último caso, queo Estado pode financiar o serviço de sua dívida simplesmente contraindo novas dívidas,e que aqueles que adqu irem seus título s podem fazê-lo através da mobilização de suas reservas financeiras disponíveis, sem que esta aquisição os obrigue, portan to, a renu nciar simultaneamente a uma parte do produto real da sociedade. É duvidoso, no entanto, quese possa levar esta argumentação ao ponto de dem onstrar que o Estado pode financiar indefinidamente suas despesas através do endividamento, sem provocar progressivamente(a partir de um certo ponto) uma imensa depreciação de seus títulos e grandes perturbações no mercado financeiro. Os limites dentro dos quais o “capital fictício” pode tomara dianteira sobre a acumulação do capital produtivo são elásticos, mas não infinitamente

elásticos (uso aqui estas expressões como metáforas). É preciso dizer isto contra a afirmação de uma pura e simples autonomia do movimento do “capital fictício”, pois esta última nos desvia da investigação sobre as relações existentes en tre a acumulação financeirae a acumulação de capital na esfera produtiva.

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pitai está incluída, em conseqüência, a sua relação necessária com o trabalho.Assim, o capital traz em si as suas próprias barreiras no sentido de que as relações de produção que definem o modo de produção capitalista determinamos limites do poder do capital, limites que lhe são impostos, enquanto forçahistórica, pelo laço que o liga, por toda a sua existência, ao seu Outro, a classe trabalhadora.Assim, à luz da teoria de Marx, todo o discurso da “teoria econômica”acadêmica, que encara o capital e o produto ou como grandezas puramentefísicas, como agregados de valores de uso, ou como variáveis tomadas em suasimples expressão monetária, suprimindo a relação existente entre o valor eo trabalho, e com isto o papel do trabalho no processo de valorização da riqueza, todo este discurso, mesmo quando ele chega a elucidar e dominaranaliticamente aspectos reais do funcionamento da máquina capitalista,aparece como a expressão de uma única tese fundamental que permaneceimplícita, e que poder-se-ia resumir nesta simples afirmação: a afirmaçãoda auto-suficiência, da onipotência e da eternidade do capital52. E se houvera este respeito alguma dúvida, é possível lançar mão do exemplo daqueleseconomistas que, ainda que desenvolvam uma compreensão crítica da dinâmica do capitalismo, opondo-se com isto em pontos essenciais às posiçõesmais conservadoras na economia política, separam-se da posição teóricamarxista precisamente por esta linha de demarcação: a negação da lei do valor

Posso invocar aqui exemplo notável neste sentido, o de Josef Steindl,autor de uma obra importante intitulada Maturidade e Estagnação no Capitalismo Americano, cujo capítulo final é dedicado a uma discussão sobreMarx onde ele dá mostras de uma grande compreensão e simpatia por este“economista”53. Steindl discute sucessivamente em seu capítulo as proposições de Marx sobre a formação de uma população excedente e sobre a tendência à queda da taxa de lucro, tendo presente que estes dois processosestão relacionados, na concepção marxista, a determinadas característicasdo “progresso técnico”, isto é, do desenvolvimento das forças produtivas.Mas na primeira parte da discussão a composição orgânica do capital aparece“traduzida” como sendo a razão capital/trabalho, e, mais adiante (ao se discutir a lei tendencial) reaparece sob a forma da razão capital/produto, sem

52. Em outras palavras: a tese do capital com o sujeito da História, que constitui a perfeita antítese de uma outra tese segundo a qual este sujeito seria o proletariado. Contrafórmulas deste tipo, é preciso reafirmar, com Althusser, que não se alcança o conhecimento invertendo uma ideologia e que não existe Juízo Final, ou seja, a História nãotem sujeito (s) nem fim (ns). Esta última afirmação deve ser necessariamente complementada por outra: são asmassas que fazem a História. E que, por ter um paladar filosófico demasiadamente tradicional, tiver dificuldade em entender diretamente atravésde Althusser que as massas não podem ser pensadas como umsujeito, pode recorrer a

Sartre, embora esta via de acesso leve quase inevitavelmente a outros descaminhos.53. Josef Steindl, M atu ri ty and Stagnation in American Capítaüsm, Brasil Blackwell,Oxford, 1952, p. 228 e seguintes. (Este cap ítulo, intitulado “ Karl Marx e a Acumulação de Capital”, foi publicado por David Horowitz, ed., A Eco nomia Moderna e o

Marxismo, op. cit., p. 233 a 257).

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que se possa encontrar no texto de Steindl nenhuma explicação a respeito de como lhe foi possível dar este salto mortal (mortal para ele). Comosabemos, desde Freud, quealguma coisa fala e se exprime mesmo atravésdo silencio, é preciso ver em tais omissões o indício da dificuldade em enfrentar um problema fundamental: o papel da lei do valor na seqüência unitáriada exposição teórica de Marx. E é preciso também ver nestes exemplos umarazão a mais para submeter os discursos teóricos àquele procedimento de análise crítica que Althusser batizou com o nome deleitura sintomal.

Isto se faz ainda mais necessário porquanto hoje manifestam-se dúvidas, mesmo entre economistas marxistas, quanto a vigência da lei do valorna atual etapa do capitalismo. Esta posição tem alguma base em determinadosfenômenos reais, característicos do capitalismo monopolista, que estão relacionados a uma dimensão da lei do valor à qual não demos ênfase ao longodeste trabalho. Faz parte da dinâmica desta lei o processo através do qual ocapital se distribui espontaneamente entre os diversos ramos de produção,guiados pelas diferenças de lucratividade que existem entre eles, o que temcomo conseqüências uma tendência ao ajustamento entre a composição da produção e a da demanda social, assim como uma tendência à uniformização das taxas de lucro nos diferentes ramos de produção. Este aspecto da leido valor não é especificamente marxista: a economia neoclássica ou margi-nalista trata também do mesmo processo real, num quadro teórico substancialmente distinto, sob a rubrica da “alocação dos recursos”. Ora, é uma característica do capitalismo contemporâneo a formação de estruturas oligopo-listas, de mercados dominados por um pequeno número de grandes empresas e protegidos pela ereção de várias formas de “barreiras à entrada” quevedam ou dificultam o movimento dos capitais de um ramo de produção aoutro. Este enrijecimento típico do capitalismo de nossos dias acarreta nãoapenas formação e a persistência de uma estrutura de taxas de lucro desiguaisentre os diversos ramos de produção, como também debilita a capacidade deauto-regulação automática do sistema54.

Seria ilusório, no entanto, apoiar-se nestes fenômenos para pôr emquestão a validade da lei do valor no sentido que foi explicitado ao longodeste trabalho, onde se destaca seu caráter de lei de movimento e seu nexo54. Estes fenômenos dão lugar à intervenção crescente do Estado na economia, que temtambém suas raízes no processo de socialização das forças produtivas; uma das manifestações deste último é o surgimento de novos ramos de atividade (alguns dos quais deutilidade social bastante discutível) que exigem investimentos excepcionalmente volumosos: “Os progressos realizados na indústria atômica já tinham demonstrado que odesenvolvimento das forças produtivas faz estourar o quadro da propriedade privada:nenhum país capitalista teria sido capaz, sem subvenções e financiamento do Estado,de se dotar de uma indústria nuclear baseada unicamente no capital privado. E é agoraa vez de a aeronáutica e a “indústria do espaço” confirmarem a fórmula mais geral segundo a qual o desenvolvimento das forças produtivas faz explodir não somente o qua

dro da propriedade privada, mas também as fronteiras do Estado nacional: sem financiamento do Estado e sem cooperação internacional, não seria possível fabricar na Europa nem aviões supersônicos, nem satélites artificiais.” (Ernest Mandei, La réponse socialiste au d éfl americain, Maspero, Paris, 1970, p. 48,49).

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fundamental com a tendência ao declínio da taxa dc lucro. Pois a nffo-unlfor-midade das taxas de lucro entre os diversos ramos de produçíTo nüo significaque as diferenças existentes possam aumentar ilimitadamente, e somente nesta última hipótese poder-se-ia conceber uma dissociação absoluta entre omovimento de longo prazo dos preços e o movimento dos valores55. É pre

ciso procurar, em conseqüência, as razões extra-teóricas que conduzem aoabandono da lei do valor e da lei tendencial que é seu desdobramento último, fazendo com que mesmo o discurso da economia política marxista possa ser freqüentado pelo fantasma da onipotência do capital. Pois este recuodiante da teoria econômica dominante pode chegar a se impor, principalmente, em países e em conjunturas onde a correlação de forças é extremamente desigual no plano teórico e político, e onde a classe trabalhadora, por razões históricas que precisam ser entendidas, “decepciona” as expectativas do intelectual de esquerda.

É possível deixar mais explícito este ponto recorrendo ao exemplo dedois intelectuais norte-americanos. E isto tem interesse porque, com efeito,a tomada de posição mais categórica e conhecida, em nossos dias, a favordo abandono da lei do valor e da lei tendencial (como concepções válidas para a atual etapa do capitalismo) pode ser encontrada em um livro notável soboutros aspectos: oCapitalismo Monopolista, de Paul Baran e Paul Sweezy. Ve

jamos aqui o texto onde ela aparece:“Toda a motivação da redução do custo é aumentar os lucros, e a

estrutura do mercado permite às empresas se apropriarem da parte do

leão dos frutos da maior produtividade, diretamente, na forma delucros mais elevados. Isto significa que, no capitalismo monopolista,a redução dos custos representa uma ampliação contínua das margensde lucro. E isto, por sua vez, significa lucros globais que não só seelevam de forma absoluta, mas também como parcela do produto nacional. Se igualarmos provisoriamente os lucros globais com o excedente econômico da sociedade, poderemos formular, como uma lei docapitalismo monopolista, o fato de que o excedente tende a elevar-se

55. A possibilidade desta dissociação completa entre o movimento dos preços e o dosvalores no longo prazo, além de ser difícil de se admitir apiioristicamente, tem contraela também algumas evidências factuais. No livro já citado acima, John Kendrick apresenta os resultados de investigação econométrica relacionando as variações de preçosrelativos com as variações do que ele denomina a “produtividade total dos fatores”(capital e trabalho). Este último conceito (neoclássico) não coincide exatamente como conceito marxista da redução do tempo de trabalho necessário para se obter um dadonível de produção física, mas tem, em contrapartida, a vantagem de refletir tambémas economias de capital constante, que influem na determinação dos preços de produção (os quais são, na concepção de Marx, a form a transformada dos valores). SegundoKendrick, existe uma alta correlação rçegativa entre as mudanças de preços e os aumentosda produtividade nos Estados Unidos, durante o período 1948-66. Esta correlação seeleva a - 88% quando se utiliza um “deflator ajustado de preços do prod uto líquid o” ,considerando-se apenas a redução do “valor adicionado” nas diferentes indústrias (JohnKendrick,Postwar Productivity Trends..., op. cit., p. 119).

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tanto absolutamente como relativamente, à medida que o sistema sedesenvolve.

Essa lei leva imediatamente à comparação, como seria de esperar,com a lei da tendência decrescente da taxa de lucro postulada pelomarxismo clássico. Sem entrarmos na análise das diferentes versões

desta última, podemos dizer que em todas há a pressuposição de umsistema competitivo. Substituindo a lei do lucro decrescente pela do’excedente crescente, não estamos, portanto, negando ou modificando um teorema tradicional da Economia Política: estamos simplesmente tomando conhecimento do fato indubitável de que a estruturada economia capitalista sofreu uma modificação fundamental desdeque tal teorema foi formulado. O que é mais essencial na modificaçãoestrutural sofrida pelo capitalismo, de sua forma competitiva para amonopolista, encontra sua expressão teórica nessa substituição”56.

Não se poderia negar o rigor e a riqueza da obra de Baran e Sweezy,que estão presentes na forma como eles analisam sistematicamente as modalidades da utilização do excedente na sociedade norte-americana e sua relaçãocom seu caráter de classe, assim como em seus capítulos históricos. Mas pusaqui uma lente de aumento sobre uma passagem onde o rigor deste discurso sedesfaz. É possível tomá-la por base para indicar brevemente que o abandonoda lei do valor e da lei tendencial está ligado a duas proposições fundamentais.

A primeira é umateoria dos preços, segundo a qual as empresas oli-gopolistas estariam dotadas de um arbítrio absoluto na fixação das margens percentuais de lucro calculadas sobre seus custos variáveis. Baran e Sweezysubestimam aqui os limites impostos ao poder do capital não diretamente

pela classe trabalhadora, mas pela divisão interna da própria classe capitalista, que se manifesta neste ponto sob a forma mais elementar da concorrência.Pois esta não deixa de existir, no plano nacional e internacional, na etapamonopolista do capitalismo. E se nos apoiarmos em certos textos já clássicos da teoria contemporânea do oligopólio, como os de Sylos-Labini, podemos indicar esquematicamente que, ainda que as grandes empresas dis ponham de uma razoável margem de liberdade ao administrarem seus preços e garantirem para si mesmas lucros extraordinários, esta fixação de preços está sujeita a certas restrições. Estas decorrem basicamente de três fatores: 1) a elasticidade da demanda (ou a sensibilidade dos consumidores àsmudanças de preço, que determina em que medida a empresa pode elevar o

preço sem ser prejudicada pelo decréscimo de suas vendas);2) o volume ótimo de produção das fábricas medido como uma percentagem do tamanhodo mercado (dàdo tecnológico que determina o acréscimo da oferta totalda indústria ou a capacidade ociosa que resultaria da entrada de um novocompetidor no mercado), e 3)as diferenças de custo de produção entre em

56. Paul A. Baran e Paul M. Sweezy,Capitalismo Monopolista, Zahar Editores, Rio deJaneiro, 1966, p. 78, 79.

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presas de distintos tamanhos (que determinam a possibilidade de invasão domercado por pequenas empresas se os preços se tomam muito elevados).Existe, naturalmente, uma interdependência na atuação destes diversos fatores, mas basta mencioná-los aqui para sugerir a natureza das limitações aque está submetida a política de preços da empresa oligopolista5 7.

Por outro lado, estreitamente associada a esta teoria dos preços, está presente no texto de Baran e Sweezy umateoria da distribuição. Segundo esta, a política de preços oligopolista tem papel determinante na repartiçãoda renda nacional. Os salários fazem parte dos custos variáveis; ao fixar margem percentual de lucro sobre estes últimos as grandes empresas estão comisto afetando a proporção entre lucros e salários ao nível da economia comoum todo. Baran e Sweezy se apoiam aqui na teoria da curto prazo do “graude monopólio”, ou antes em sua versão vulgarizada implicitamente presenteno livro já citado de Steindl, que omite a força contrabalançadora das orga

nizações sindicais neste processo, embora este elemento estivesse explícitona formulação original desta teoria, que se deve a Kalecki58. Seguindo aslinhas desta concepção, pode-se chegar a negar que, em determinadas con

junturas favoráveis que reforçam seu poder de barganha, a classe trabalhadoratenha força suficiente para comprimir momentaneamente os lucros, ainda queas empresas oligopolistas sempre repassem em alguma medida os aumentosde salários através da elevação dos preços59. O pressuposto básico é, naturalmente o poder absoluto de fixar as margens de lucro, atribuído aos capitalistas.

Coerentemente com esta teoria dos preços e da distribuição, que afirma implicitamente a debilidade do proletariado ao níveleconômico, apareceneste mesmo livro a tomada de posição terceiro-mundista de Baran e Sweezysegundo a qual a iniciativa da luta política anti-capitalista teria passado, por razões estruturais características da atual etapa do sistema, da classe trabalhadora dos países capitalistas mais avançados para “as mãos das massas empo brecidas dos países subdesenvolvidos60” . E, como conseqüência natural, estclasse à qual se negaa priori papel político decisivo no longo prazo perde tam bém interesse enquanto objeto de estudo; Baran e Sweezy assinalam expli

citamente a lacuna de seu livro a este respeito, lembrando que ao concentrarem a análise na dinâmica da geração e da absorção do excedente, eles

57. P. Sylos-Labini,Oligopolio y progreso técnico, Ed. Oikos-Tau, Barcelona, 1966, p. 47 a 72. Ver também Joe S. Bain, Barriers to N ew Competi tion, Harvard UniversityPress, 1971.58. Sobre esta explicação da distribuição, Steindl construiu uma teoria da estagnação delongo prazo que é, segundo suas próprias palavras, “apenas uma nova forma de teoriasubconsumista.” (. Maturity and Stagnation, op. cit., introdução, p. IX).59. O fato de que os trabalhadores possam conquistar esta força não significa que em

quaisquer circunstâncias seja de seu interesse esmagar os lucros. A decisão a respeitodisto passa (ou deve passar) pela avaliação das conseqüências política s de um tal esmagamento, numa conjuntura determinada.60. Capitalismo Monopolista, op. cit., p. 18.

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deixam de lado a investigação sobre o processo de trabalho: “Não fazemoqualquer tentativa para pesquisar sistematicamente as conseqüências que otipos particulares de transformação teconológica característicos do período dcapitalismo monopolista tiveram para a natureza do trabalho, a composição diferenciação) da classe trabalhadora, a psicologia dos trabalhadores, as forma

de organização e luta de classe operária, e assim por diante61”. E, curiosamente, a lacuna e a sua razão reforçam-se uma à outra, pois é a ausência duma investigação sobre estas questões que permite aos dois autores justificarem sua posição terceiro-mundista nestes termos na conclusão do livro“Os trabalhadores industriais são uma minoria decrescente na classe operáriamericana, e seu núcleo organizado nas indústrias básicas foi, em grande pate, integrado no sistema vigente, como consumidores e como membroideologicamente condicionados dessa sociedade. Os trabalhadores sãovistos comoconsumidores (e “integrados” em parte através do consumo),não como produtores, negligenciando-se com isto o que haveria em comumentre os trabalhadores industriais e a maioria crescente dos assalariados dsetor terciário, do ponto de vista de suas condições de trabalho e de seu grade qualificação. Pois hoje é sobretudo graças ao livro de Harry Braverma{Trabalho e Capital Monopolista) que nós podemos, vencidos alguns preconceitos com relação a este setor “improdutivo” (qualificativo que não podter nenhuma implicação política direta), compreender que, devido às transformações tecnológicas que alcançam vastos segmentos do setor de serviçoà difusão da automação e das formas mais requintadas e engenhosas da “administração científica” do trabalho, cerca de metade da população na metró pole do capitalismo é formada atualmente por um proletariado (num sentidnão tradicional) de homens e mulheres submetidos a um processo de desqulificação progressiva e insatisfeitos com a fragmentação e a monotonia de suatarefas quotidianas6 3.

61. Idem , p. 18. Não haverá quem possa atribuir tal omissão a uma indiferença dos doisautores quanto ao destino da classe trabalhadora de seu país, ou pôr em dúvida a auten

ticidade da satisfação com que Sweezy acolheu o preenchimento desta lacuna por Harry Braverman em 1974, quando este último publicou o seuTrabalho e Capital Monopolista. Mas a razão invocada por Sweezy no prefácio deste livro para explicar porque ele e Baran não teriam se aventurado antes nesta empreitada (a falta de “qualificações necessárias”), embora deva ser também real, nSo poderia ser tomada como uma contraprova que invalida o que está dito no texto deste artigo, (v. H. Braverman,Trabalho e Capital Monopolista: a degradação do trabalho no século XX, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977, p. 10). Bem entendido, era perfeitamente legítima a opção de Baran e Sweezy, ao concentrarem a análise sobre questões tão importantes como a geração e a absorção do excedente no capitalismo americano. Ninguém estáobrigado a estudar o processo de trabalho; a omissão dos dois autores não tem nada de condenável; ela ape-

na é significativa, em certa medida, quando justaposta a outros aspectos de sua obra.63. Ver H. Braverman,op. cit., p. 319 e seguintes, e também a crítica de E. Olin Weight a Paulantzas em seu artigo “Class Boundnies in Advanced Capitalist Societies”(New

L e ft Review n° 98)

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Assim, sè inserimos a recusa da lei do valor e da lei tendenciál por parte de Baran e Sweezy na lógica do discurso onde ela é formulada, entendemosi|ue estes abandonos fazem parte de conjunto de negações, afirmações e lacunas às quais se pode atribuir, examinando-as, uma única significação comum, sobretudo se se considera sua ocorrência simultânea numa mesma obra,cuja coerência não pode ser negada mesmo sob este aspecto. Com efeito,todos este elementos (ou ausências) do discurso convergem para a mesmatese básica e subjacente: a da onipotência do capital e seu correlato, a negação da força econômica e política da classe trabalhadora nas sociedadescapitalistas desenvolvidas.

Seria por acaso necessário, depois de já ter mencionado o contextohistórico que determina estas concessões à ideologia dominante, enfatizarainda que esta conclusão não desrespeita aqueles a quem ela atinge? Se alguémimaginasse o contrário, insistindo em situar a discussão naquele plano onde sedesencadeia o frenesi do amor próprio ofendido, ter-se-ia que começar por relembrar quem foi Paul Baran e quem é Paul Sweezy: estes dois homens, praticamente ignorados pela comunidade acadêmica em que iniciaram suascarreiras, defenderam (desenvolvendo-a) a ciência de Marx na “América” da(Juerra Fria e da “grande comemoração” dos anos cinquenta, contribuindo para manter vivo o fogo da crítica naquela sociedade então satisfeita consigomesma. A leitura sintomal, sendo ela própria método de crítica (como já foitambém autocrítica nas mãos daquele mesmo que a propôs), pode nos ajudara compreender melhor todas aquelas obras científicas que, por serem relevantes, por se situarem no coração dos conflitos de sua época, trazem em sua própria armação lógica os estigmas de seu combate, a marca não só das ideologias herdadas, como também a dos temores e das esperanças daqueles que as produziram.

Rio, março de 1979

64 (Adicionada pelo Coordenador). “Aí vai, com grande atraso, o trabalho que eu tinha prometido remeter para você assim que estivesse pronto.Para além de algumas razões circunstanciais, que explicam parte deste atraso, você pode ver nele uma manifestação de ambigüidade de minha atitude com relação a este texto. De um lado, o que está escrito aí, me parece simplesmente verdadeiro e, a longo prazo útil, teoria e praticamente, merecendo, portanto, ser levado em conta. De outro lado, percebo que a maior parte de meus colegas não poderia sustentar publicamente tais posições, ainda que o quisessem, pois sua situação na vida não lhes permite o “luxo” de encarar com tranquilidade, alguma perspectiva de marginalização profissional, que poderia ser relativamente bem suportada por um excêntrico como eu. Todas as instituições em que os economistas trabalham são pesadamente dependentes com relação ao Estado ou à Igreja. Daí que estas minhas investidas tendam a cair no vazio, ao menos de imediato. E é uma situação intimamente muito desconcertante ficar defendendo coisas tão universais, como se se tratasse apenas de um caso pessoal. Você deve conhecer este tipo de incerteza: creio que não preciso me explicar mais. Tudo isto motivou uma grande cautela de minha parte com este último artigo: cheguei até a me desinteressar por ele depois de escrito e, ao contrário de trabalhos anteriores, sua divulgação em xerox foi limitadísima. (carta de 11/7/79)

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POSFÁCIO *

Nosso trabalho, por razões polêmicas, incorre num desvio que precisaser, se não corrigido de imediato, ao menos assinalado: fizemos a separaçãoexcessivamente rígida entre o que Marx denominava a.análise da concorrência e a análise domovimento real da acumulação de capital em seu conjunto.A insistência neste último nível da análise, apesar de ser bastante “ortodoxa”, tende a suscitar a idéia, certamente equivocada, de que os fenômenosda concorrência seriam meras aparências determinadas por movimentos invisíveis, não tendo estas “formas” nenhum impacto real sobre a dinâmica do processo de acumulação. Na verdade, a existência de uma multiplicidade decapitais privados e a luta competitiva entre eles constitui um elemento estrutural básico da produção capitalista, sem o qual é impossível compreendera própria “tendência a acumular” que é o primeiro motor da dinâmica destesistema. A supressão deste elemento, na teoria, conduz em linha reta a invocar dado psicológico (osanimal spirits) para explicar o comportamento doscapitalistas, quando o esforço de investir e de suplantar os concorrentes éna verdade uma condição de sobrevivência num universo competitivo.

Por esta razão (como nos advertiram numa das primeiras discussões arespeito deste trabalho) deve-se considerar também como um desenvolvimento teórico legítimo aquela concepção que deduz a tendência à estagnação a partir dos efeitos do processo de concentração e centralização da pro priedade capitalista, que redunda na eliminação (tendencial) da concorrênciaentre os capitais. Não insistiremos neste ponto: a fecundidade deste caminhoestá mais do que patente em todas as obras em que os problemas da acumulação são tratados num quadro teórico de inspiração kaleckiana. É verdadeque ainda acreditamos ser justo sustentar que esta linha teórica padece de certas insuficiências, que estão ligadas, em particular,à subestimação da pressão

*Ao livro do autor “Valor e Acumulação”, ampliação da sua tese de Mestrado em Economia, UNICAMP, SP, Zahar Editores, 1979, rua México, 31 s /l, Rio.

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da concorrência inter-capitalista no plano internacional, como fenómeno característico do capitalismo em sua etapa atual. Mas mesmo ao invocar este fatoé preciso reconhecer que a unificação do capital em escala mundial constitui também umlimite (impossível de ser atingido) da produção capitalista,como Lenin já o havia assinalado em sua crítica da concepção kautskiana

do imperialismo.Assim, se nós insistimos aqui num outro caminho (e nisso não estamossozinhos), não é com a intenção de minimizar a importância das obras a quefizemos referência no parágrafo anterior; é, ao contrário, com a esperança deque adivergência, necessária num primeiro momento, se traduza, em últimaanálise, num reencontro. O ponto da divergência, ou da bifurcação entre estes caminhos, pode ser enunciado de imediato: acreditamos ser necessárioafirmar a vigência, mesmo na etapa monopolista do capitalismo, da lei do valor, que foi concebida por Marx como a lei que determina o paralelismodas variações dos preços e dos valores-trabalho. O problema da relação (e dadistorção) entre os preços de monopólio e o tempo de trabalho socialmentenecessário à produção das mercadorias é sistematicamente ignorado pelomarxismo kaleckiano (ou keynesiano). É preciso então explicar o que significa, para nós, este problema, qual é a razão de sua importância e por que motivos ele foi esquecido pelos autores que são, aqui, alvo de nossa crítica.

A distorção entre preços e valores, no capitalismo monopolista, temuma de suas raízes principais na diferenciação entre as taxas de lucro de diferentes ramos de produção, e mesmo de diferentes empresas num determi

nado ramo de produção. Uma análise estática desta distorção acaba por li-mitar-se a assinalar os efeitos que ela tem sobre a alocação de recursos e sobrea distribuição do produto entre os agentes sociais. Ela tem como resultado,assim, a simples denúncia de uma “ineficiência” ou de uma “injustiça”, sejaela uma análise neoclássica ou neoricardiana (como o mostra bem o exem plo do ensaio de A. Emmanuel sobre o intercâmbio desigual). O problemareal reside, ao contrário, na análise dos efeitos desta distorção sobre a dinâmica da economia capitalista. Os obstáculos à migração dos capitais entre ramos de produção se traduzem num bloqueio dos mecanismos de auto-regulação

do sistema e provocam problemas crescentes de realização, os quais reforçama necessidade do desenvolvimento da intermediação financeira e da intervenção do Estado na economia. Um dos méritos dos autores ligados à tradiçãoteórica aqui criticada reside justamente em terem eles desenvolvido, seguindoas sugestões dos clássicos, a análise destes efeitos das modificações da leido valor na etapa monopolista sobre o processo de acumulação.

É tendo em vista os mesmos objetivos destes mestres da teoria econômica contemporânea que se faz necessário afirmar a vigênciaatual da lei dovalor. Sem esquecer nada do que eles nos ensinaram, sem ignorar suas contri buições positivas, é preciso dizer

4ue a teoria keynesiana é uma teoria de cur

to prazo, razão pela qual ela é obviamente insuficiente para todos aquelesque pretendem estar vivos no longo prazo. E nós acreditamos que este é um

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desejo universal, ou seja, que, malgrado as aparências, Freud se enganava ao pensar que o instinto de morte estava prestes a vencer sua batalha contra oinstinto de vida em nossa época. Aa contrário, deve-se pensar que todacriatura viva deseja não apenas viver, mas também contribuir para o adventode algo que a ultrapassa. É neste sentido que se pode dizer, como outro grande pensador do século passado (Nietzsche), que toda criatura viva, na medida em que ela atinge um certo grau de consciência de seu destino, “desejaseu próprio declínio”. Não é por outra razão que, num mundo já superpo-voado, permita-se em geral que as crianças nasçam e cresçam, embora sejatambém costume (ou necessidade) abandoná-las à sua própria sorte.

A teoria de Marx é a única teoriacientífica da História, no interior daqual toma-se possível pensar, num horizonte temporal mais amplo, os pro blemas e as contradições crescentes da acumulação de capital. Nesta teoria,o lugar central é ocupado pela lei do valor e sua expressão final, a lei tenden-cial da baixa da taxa de lucro. A importância da lei do valor está ligada aofato de que ela condensa duas idéias fundamentais, que é sempre perigoso perder de vista: de um lado, a dadominação do capital, de outro, a de sua fragilidade e de seu limite de longo prazo. Dominação, porque a lei do valor éa lei da valorização do capital, de sua expansão e de seu poderio crescente.Limite do capital: a lei do valor é também a lei que revela a impotência docapital em impedir a desvalorização de seus produtos, e, com isto, sua incapacidade de evitar o bloqueio tendencial do processo de acumulação.

Se esta lei fundamental de movimento do modo de produção capitalista foi esquecida pelos grandes teóricos do marxismo keynesiano, isto de modo algum se deve a alguma intenção perversa de sua parte, ou ao fato de queeles não dispunham dos recursos intelectuais necessários para formular o problema e encaminhar sua possível solução. O autor destas linhas é umfilósofo materialista que está profundamente convencido de que “criação”e “gênio” são coisas que simplesmente não existem: todas as descobertas (ouencobrimentos) na história da ciência têm certamente uma explicação histórica, e o que existe, efetivamente, é um processo histórico e coletivo de produção de conhecimentos. Diga-se de passagem, aliás, que a internacionalizaçãodas forças produtivas intelectuais é um dos fatos mais auspiciosos de nossaépoca; a existência de uma comunidade científica atua como fermento dedemocracia e de espírito coletivo num mundo cada vez mais abismado nosimpasses da irracionalidade, do ódio e da violência.

Os limites do marxismo keynesiano devem encontrar sua explicaçãohistórica, nesta perspectiva, na hegemonia do pensamento de Keynes a partir da década de 30 e no atraso do desenvolvimento da teoria marxista no período stalinista. Evocaremos apenas aqui, como ilustração, as condições emque foram escritos os livros de dois autores a quem tanto devemos, Paul Ba-ran e Paul Sweezy. Conhecemos adata de sua obra e as características gerais

do período em que ela nasceu: a afirmação decisiva da hegemonia mundialdo capitalismo americano na Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria e a

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“grande comemoração” dos anos 50. Que estes dois homens, praticamentesozinhos em seu país, tenham conseguido manter vivo e desenvolver emmuitos aspectos importantes o pensamento de Marx, desafiando a comunidade acadêmica conservadora e segura de si mesma, é demonstração inegável de que eles pertencem à raça dos que não se abatem facilmente, dos que

vêem longe e sabem abrir caminhos para o futuro.Evocar estas circunstâncias torna fácil compreender que eles tenhamfeito concessões excessivas ao keynesianismo e nos tenham transmitido umaversão da teoria marxista na qual esta se encontra quebrada, em pontos decisivos, em sua unidade lógica. Sem nenhum desrespeito por estes dois grandes mestres do marxismo contemporâneo, é preciso assinalar a urgência dasuperação de seus equívocos, dando continuidade a um trabalho crítico quetem seu ponto de partida, como se sabe, na obra de Paul Mattick e seusdiscípulos. Resumiremos nosso ponto de vista, aqui, numa única afirmação

as condições históricas em que Baran e Sweezy escreveram suas obras principais deixaram uma marca de pessimismo que se reflete em todo o núcleode sua produção teórica: o abandono da lei do valor, o subconsumismo e oterceiro-mundismo são apenas expressões de uma única tese fundamentala da impotência da classe trabalhadora nas sociedades capitalistas desenvolvidas.

Encerrado este prólogo, no qual se esclarece a natureza de nosso pro blema, voltaremos a explorar nosso modelo extremamente simplificado ddois setores, para insistir na idéia de que é possível um tratamento formal

(não estático) das distorções entre preços e valores, mesmo no que diz res peito à etapa monopolista do capitalismo. Para generalizar nosso modelosugeriremos que ele não é necessariamente um modelo de reprodução sim

ples, mostrando como se pode introduzir nele, como variável, a taxa de crescimento do estoque de capital. Definiremos também novas variáveis que ex pressam a diferença entre as taxas de lucro nos dois setores e a intervençãdo Estado na economia. Com a finalidade de evitar, numa primeira aproximação, os problemas complexos da teoria monetária e financeira que deveriam ser tratados se abordássemos a inflação e a dívida pública, adotaremo

a hipótese de um orçamento equilibrado. A presença do Estado na economise reflete assim no montante dos impostos. Suporemos igualmente que aintervenção do Estado sustenta a taxa de acumulação e evita o surgimentode capacidade ociosa não planejada; a razão capital/produto em valor (E/L)nestas circunstâncias, expressa as características da tecnologia usada no sistema. Lembramos finalmente, a propósito, que todas as variáveis físicas estãexpressas em valor-trabalho e que se utiliza como numerário a unidade detempo de trabalho materializada em artigos de consumo (pc =1).

Seja r a taxa de lucro na produção de artigos de consumo e x a razão

entre a taxa de lucro na produção de equipamentos e esta mesma taxa na produção de artigos de consumo. A taxa de lucro na produção de equipamentos será assim igual arx. Se o poder de administrar preços for maior no setor

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que produz equipamentos, x será maior do que 1 (um). Definamos agora umavariável y tal que26) 1+ r.x =(1 + r) yde onde se segue que

26’) x = yr_l+ y r E claro, por esta equação, que toda variação de x (dado r) está ass

ciada a uma variação de y no mesmo sentido. E se x = 1, isto implica em qy = L

Introduzamos agora os impostos. Para maior simplicidade da análisconsideraremos a existência de dois tipos: um imposto direto sobre a rende propriedade, expresso numa alíquota única sobre o lucro(d) e um imposto

indireto que se expressa numa alíquota(i)

sobre o valor (preço) adicionadoem cada setor. Tomando como exemplo o setor produtor de artigos de cosumo, o imposto indireto total cobrado sobre sua produção será iguali. [ n.Ec.pe + w.Lc] ou i.n.Ec.pe + i.w.Lc

Do mesmo modo como fizemos para x e y , podemos definir duas novas variáveism e n tais que27) r.d = (1 + r) me28) r.i =(1 + r) n

De 27 e 28 segue-se que29) m + n = — x — .(d + i)1+ r

Podemos sugerir aqui também que, embora nossa equação 3 não senecessária à demonstração que se segue, pode-se mostrar, generalizandoque nosso modelo não é necessariamente estático, por ser ela um caso pacular de uma equação mais geral 3’, ondeg, a taxa de crescimento do estoque de capital, é igual a zero. Com efeito, fazendo com que a produção

tal de equipamentos seja igual à reposição dos equipamentos desgastadnos dois setores mais o incremento líquido do estoque de capital, temos q(1 + g) (Ee + Ec) = E ou3’) Ee + Ec = — ?—

(1 + g)Tendo em conta as definições acima e as equações 26’, 27, 28 e 29,

podemos agora reescrever as equações básicas de nosso modelo:1’) Ee.pe (1 + r) y [ 1 + (m + n)] + (1 + i) w.Le = E.pe2’) Ec.pe (1 + r) [ 1 + (m + n) ] + (1 + i) w.Lc = C

Estas duas equações mostram como o preço total da produção de cadasetor é igual à soma dos lucros, salários e impostos diretos e indiretos. A

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riável y reflete, por outro lado, a diferença entre as taxas de lucros nos doissetores.

Dividindo 1’ por 2’, temos:Ee y _ E.pe —(1 + i) w.Le

Ec C —(l +i )w. LcE.pe = y .— . [ C —(1 + i). w.Lc] + (1 + i) w.Le -»

Ec

5’) K = y. C + (1 + i) w.Lc [ Í £ —í f . .y]Ec Lc Ec

Logo,20’) K/L = (1 + i) w [ J ^ -h l . í f . . y ] + Jk .y

L L Ec EcA equação 20’ torna visíveis os seguintes pontos:

1) Se Le/L < (Lc/L). (Ee/Ec), isto significa que Le/Ee < Lc/Ec, ou seja, quea composição orgânica do capital é mais elevada na produção de meios de produção do que na produção de artigos de consumo. Neste caso (e se y = 1)um aumento dos impostos indiretos (i) tende a fazer com que pe diminua,reduzindo a razão capital/produto medida em preços (K/L),dada a razãocapital/produto em valor-trabalho (E/L). (Para maior simplicidade, suporemos em seguida que os impostos indiretos não se elevam; o aumento dasdespésas estatais é possibilitado pelo aumento do “imposto de renda”, quenão tem nenhum efeito sobre os preços relativos).2) Se a concentração e a centralização do capital aumentam na produção demeios de produção, em comparação com a produção de artigos de consumo,é de se esperar que a taxa de lucro se eleve acima da média naquele primeirsetor, o que se traduz num aumento de y e agrava a tendênciaao declínioda taxa de lucro, na medida em que isto tende a elevar a razão capital/produto medida em preços (K/L).3) Se, ao contrário, a produção de meios de produção é estatizada, sendo estas mercadorias vendidas por preços inferiores a seus preços de produção,reduz-se K/L e isto freia a tendência ao declínio da taxa de lucro. Mas dadasas nossas hipóteses este processo requer um aumento do “imposto de renda” para financiar a expansão das empresas estatais; por razões sociais e políticas que são mais do que claras, este aumento tem evidentemente limitesnuma sociedade capitalista.4) A intervenção do Estado na economia pode se dar também através deuma política de compra de excedentes e de sustentação de preços nos ramosde produção onde a lei do valor se manifesta de forma mais dramática, mesmono capitalismo monopolista (vide o caso da agricultura norte-americana).

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Mas isto requer também o aumento do “imposto de renda” e esbarra nmesmos limites mencionados no parágrafo anterior.

Não é preciso dizer mais por enquanto para dar a entender que o ralelismo das variações de valores e preços, a lei do valor e a tendência aoclínio da taxa de lucro continuam operando na etapa monopolista do catalismo. Chegamos agora à tese, já sugerida, segundo à qual tudo isto dter uma relação com o imperialismo e a exportação de capitais. Desde s primeiras etapas, o modo de produção capitalista sempre se desenvol puxando para sua rede uma massa crescente de homens e recursos naturavançando em direção a seuexterior e transformando e destruindo, nestemovimento, os modos de produção preexistentes; isto não está apenrelacionado a problemas de realização e à busca de novos mercados. O imrialismo significa em substância o fato de que este processo histórico se senvolve hoje em escala planetária. O que nós procuramos sugerir, de psagem, é que este processo pode ter-se acelerado, em parte, como decorrcia das novas tendências do progresso técnico que tendem a frear a elevatendencial da composição orgânica do capital e relação capital/trabalho.

Ao dizer isto, deixamos claro também, de passagem, que não é por evia que se pode compreender os determinantes imediatos e conscientesexportação de capital; isto nos ajuda apenas a compreender anecessidade do fato de que a acumulação transborda as fronteiras nacionais. O que ncontradiz o fato notório de que o fluxo de capitais em direção à perife

do sistema capitalista mundial tem sido relativamente limitado duranteúltimo século. A abundância de trabalho vivo na periferia não permite n justifica por si só investimento estrangeiro. E claro, para imaginar um ex plo, que não é interessante implantar uma fábrica de automóveis em Ugda, não obstante o fato de que (apesar de todas as atrocidades de que tem notícia) exista lá certa abundância de trabalho vivo. Pois é verdade apenas minoria insignificantes dos cidadãos de Uganda está em condiçõescomprar automóveis.

Isto não nos impede de afirmar que, talvezsobretudo pelas razões que

invocamos, a presença de empresas estrangeiras nos países periféricos é cessidade irreversível enquanto existir capitalismo nos países centrais (aomenos no sentido que atribuímos hoje à palavra “capitalismo”). Nosirmãos do Nortenão voltarão para casa quaisquer que sejam as soluções queeles encontrem para seus problemas de subconsumo ou de subdemanda,contrário do que pensam os social-democratas para os quais a harmonia tre as nações encontra expressão máxima no Parlamento universal, a ganização das Nações Unidas. Esta verdade básica é também importante ra todos os que se interessam pelo problema político real de negociar as c

dições e as regras do jogo dentro das quais as empresas estrangeiras continrão a existir e a se expandir em nossas sociedades. Nosso trabalho deve ser criticado e modificado. Todo esforço intel

tual de um indivíduo tem, evidentemente, limites (este é o nosso refr

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a tese fundamental é a de quetudo tem limites). Mas se'o conjunto de nossaexposição não estiver seriamente comprometido por alguma falha lógica quetenha passado inadvertida, não é difícil ver que se abrem então algumas perspectivas interessantes; no desenvolvimento destas, evidentemente, deveráser levado em conta tudo o que omitimos aqui, seja por razões polêmicas,seja por considerarmos supérfluo repetir o que já foi dito - e bem dito — por outras pessoas. Mencionemos aqui o que nos ocorre, de imediato, dentre tudo o que ainda está em grande parte por ser feito:1) O desenvolvimento do problemadinâmico da transformação de valoresem preços, para o caso de sistemas econômicos mais complexos;2) A crítica das teorias economicistas do progresso técnico, o exame das confusões e contradições em que elas incorrem, notadamente no que diz respeitoao tratamento das relações entre a razão capital/trabalho e a razão capital/ produto (esta crítica permitirá isolar e incorporar, evidentemente, tudo oque existe de positivo e válido nestas teorias);3) A releitura crítica das teorias contemporâneas do imperialismo e da acumulação de capital em escala mundial;4) A releitura crítica da produção teórica cepalina e mesmo das críticas maisrecentes a que ela foi submetida, o que permitirá compreender com clareza possivelmente maior o caminho percorrido até aqui pelo pensamento econômico latino-americano, e elucidar, a partir de tudo o que já está dadoe pensado nesta riquíssima tradição teórica, os mecanismos particularesda tendência ao declínio da taxa de lucro numa economia periférica (é preciso sublinhar, uma vez mais, quecrítica, na linguagem filosófica,não signi

fica destruição; já deixamos transparecer ao longo do texto que nossa pró pria leitura d ‘0Capital procura se inspirar nesta tradição teórica e, princi palmente, em suas manifestações mais recentes, que nos orientaram em direção ao problema fundamental dasmudanças no padrão de acumulação).

O tratamento do primeiro problema requer um arsenal de conhecimentos matemáticos. As duas últimas tarefas, por outro lado, para serem bemrealizadas, exigem algo mais do que o conhecimento meramente “panorâmico” da história contemporânea de que dispomos. Mas existem pessoasinteressadas em tratar de todas estas questões. Nossa opinião é de que elas de

vem ser estimuladas neste sentido, por que estas são também tarefas importantes. Dizer isto não significa ignorar que, dada a complexidade do real e a urgência das questões que ele nos coloca, a maior parte do esforço intelectual deve ser dirigido para a “análise concreta de situações concretas”. O autor destas linhas sente-se especialmente à vontade ao afirmar isto por estar participando, hoje, de uma pesquisa que não poderia ser mais empírica, e eledeseja concluir agradecendo a todos aqueles que o empurraram neste caminho, por saberem (antes que ele o soubesse) como é importante “meter amão na massa” para ter uma percepção mais viva das realidades do desenvolvimento capitalista.

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N ota s adicionadas pelo Coordenador :

1.Este “Valor e Acumulação” — originariamente tese de Mestrado, aprovada com a nota máxima pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas-SP), destina-se tanto aos economistas familiarizados com o assunto, quanto aos estudantes de economia

que devem tomar conhecimento desse debate, inclusive nos seus aspectos formais. Por outro lado, é esperança do autor, que suscite também o interesse dos cientistas sociais e filósofos. É também importante ressaltar, que a seção matemática, contida no primeiro capítulo, não deverá constituir-se numa barreira para certos leitores, já que a estrutura do texto permite que ele seja retomado mais adiante, sem prejuízo de sua compreensão.(Final da orelha da capa do livro “Valor e Acumulação”, Zahar Editores.

2. “... encaminho aqui, submetendo-o à apreciação, o texto de minha tese de mestra aprovada naquele Departamento (Departamento de Economia e Planejamento Econômico da Universidade de Campinas), em meados de 1978.

Juntamente com o texto original que foi apresentado à Banca Examinadora nesta ocasião, envio também dois exemplares da versão final publicada pela Editora Zahar no início o ano passado. Essa versão final é substancialmente idêntica àquele texto original, mas faz-se necessário esclarecer a natureza e as razões de pequenas alterações que foram feitas para efeito da publicação do trabalho. 1?) o título original (Ensaio sobre a Teoria do Valor) transformou-se em “Valor e Acumulação”, que dá, sinteticamente, umá idéia mais precisa do conteúdo e do oòjéto do livro; 2?) A “Nota Introdutória” foi ampliada e substituída por um “Prefácio” contendo diversos esclarecimentos que eram necessários para apresentar o trabalho a um público mais amplo; 3?) foram introduzidos no corpo da trabalho pequenas modificações para eliminar exageros contidos em algumas passagens e dar maior amplitude a determinados pontos da argumen

tação....(Ao BNDE, em 6.5.1980)

3. Passo agora aos pontos sobre a tese (que já saiu em livro, finalmente). Acredito que aqui serei mais sucinto, pois, como você deve ter notado, estou enviando a cópia de um novo artigo sobre estes temas, assim como o capítulo da última tese de nossa Mestra que me serviu de provocação” (se te interessar, posso remeter o restante da tese, que é muito bom). Duas palavras sobre alguns participantes do seminário. Não conheço o Sheik, mas ele' me interessa e deverei estudá-lo também porque ele é popular entre alguns professores do mestrado da FEA que estudaram nos E.U.A. Quanto a Mandei, a quem respeito muito, a diferença está exatamente onde você a localiza: a visão literal

da lei tendencial, inclusive como explicação para as crises (quanto ao porque Mandei é levado a pensar assim talvez fique claro através da discussão sobre os Grundrisse no meu último artigo: o velho, nos Grundrisse, usa expressamente a lei tendencial como explicação para as crises, o que não se atreveu a fazer no Capital). A síntese dos “pontos básicos” da tese é, a meu ver, perfeita. Alegra-me que você a tenha reexaminado tão atentamente. Vou me limitar aqui a acrescentar alguma coisa que, espero, apesar do tom um pouco dogmático e da síntese das. fórmulas, ficará claro à luz da própria tese e do artigo que estou enviado. Você reconhecerá nestas afirmações respostas a dúvidas que você formulou.1) A explicação das crises pela desproporção entre os dois setores resultante de mudanças tecnológicas (e, logo, mudanças nos preços relativos) não é de fato a mesma coisa

que uma explicação via tendencia à queda da taxa de lucro. Basta dizer que esta última exige um au mento da composição orgânica, enquanto a primeira pode ser provocada também por inovações “poupadoras de capital” (no sentido de: redutoras de K/L ou K/P). O que se pode dizer é apenas isto: Marx ao mesmo tempo se interessou pelos

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efeitos de longo prazo e de curto prazo das mudanças tecnológicas (tendendo a ver nestas últimas, via de regra, um aumento da COK).2) O Livro I do “Capital” foi o único que Marx concluiu e publicou durante sua vida, tendo se empenhado vivamente por sua difusão no meio operário e sua tradução em outras línguas que não o alemão. Entenda-se: ele era um homem apaixonadamente decidido a ajudar a “transformar o mundo”. E o primeiro livro é não só o mais compreensí

vel para os não-intelectuais, por falar da fábrica, da exploração, etc., como também é aquele que, para além de seu alcance teórico, vale também em grande parte como uma verdadeira análise concreta (ainda que delineada em traços amplos) do movimento do capitalismo e de suas contradições, tal como estavam se manifestando nos países mais avançados nos dias de Marx. Este último tinha razões para esperar, e logo para acreditar, que o capitalismo não duraria muito. Se isto fosse verdade, o sistema deveria perecer pelo aumento drástico da composição orgânica, e entre os possíveis efeitos deste aumento era importante pôr em destaque (por razões políticas e de veracidade histórica), mais do que um hipotético declínio da taxa de lucro, o fato mais brutal e imediato do desemprego e da miséria crescente. O Livro I devia assim formai, no espírito de Marx, uma unidade à parte e auto-suficiente com relação ao restante da obra. Ao menos para o Marx prá tico deveria ser assim. Daí que no último capítulo ele põe um fecho “dialético” aparentemente satisfatório em si mesmo e que para muitos leitores, ainda ho

je (helas!) torna dispensável a continuação da leitura: a história começa com a expropriação dos produtores (ac. primitiva) e termina com a expropriação dos expropriado- res. Situando no contexto: ela termina como resultado da polarização-explosiva da sociedade entre uma minoria de super-ricos (concentração e centralização do capital) e uma maioria de miseráveis (superpopulação, miséria crescente, etc.).Ora, nós sabemos hoje que nos países mais avançados o sistema não seguiu exatamente este caminho. Marx também devia suspeitar desta possibilidade, a possibilidade de que a vida do sistema seria mais longa. Aqui entra o outro lado da cabeça de Marx. Pense não mais no revolucionário, mas no intelectual que especulava também sobre outros possíveis para além de seu tempo e que, nas vésperas de uma crise econômica prevista,

precipita-se a completar a sua obra para deixá-la para a posteridade “antes do dilúvio”. Assim, sem pensar muito nos seus contemporâneos, ele abordou no Livro III as “outras vias” pelas quais o sistema poderia acabar batendo em seu limite. É surpreendente, diante disso, que este Livro seja hoje para nós, em muitos aspectos, mais completo e mais atual? Veja que estou voltando aqui, e “inconscientemente” (pois só agora me dou conta) ao mesmo tema de antes, o da divisão do sujeito. Pois estou a dizer aqui que o indivíduo Marx também devia ter uma atitude dupla diante de sua própria obra. Esquematizando: O Livro I, ou antes, sua conclusão, é a sua fé revolucionária; o Livro III é a sua cabeça lógica, “acima de seu tempo” (tanto quanto isto lhe era possível: é claro que este Livro III tem também seus limites e defeitos).3) Chegando ao último ponto: mesmo que se afirme, num sentido bem específico, este “primado” do Livro III, é verdade que a tendência à queda da taxa de lucro não pode ser entendida literalmente. Usar desta expressão tem então apenas um sentido prático: é chamar a atenção para a importância do que está escrito naqueles três capítulos. Mas por quê? Para que serve esta “lei” que não é propriamente o que ela diz ser? É preciso aqui explicitar um pouco mais o “conteúdo positivo” que se atribui a ela (aparentemente, quase como um “resíduo”) depois de toda a discussão.a) Ela é uma teoria das mudanças do padrão de acumulação. Enfatizo aqui apenas um ponto que é importante, de um ponto de vista crítico. Destruída a função de produção, é preciso berrar de alto e bom som uma pequena verdade muito desagradável para os autores de muitos “modelos de crescimento”: a teoria econômica convencional não tem nenhum recurso legítimo para pensar teoricamente a relação que existe entre o movimento destas duas razões: a razão capital/trabalho e a razão capital/produto. Este “elo mais frágil”, ou o elo que falta na teoria acadêmica está em Marx, se minha leitura é correta, O detalhe parece banal, mas suas conseqüências podem ser muito grandes. A conferir.

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b) Ela é uma teoria dos limites do capitalismo. Aparentemente ainda, isto só interessa aos futurólogos, uma vez que num prazo mais curto o capitalismo pode morrer de outras doenças que não o esgotamento do exército de reserva em escala mundial. Mas isto tem uma outra conseqüência mais interessante, isto é, de interesse mais imediato, que diz respeito à teoria do imperialismo. Este ponto ficou meio em surdina para não exacerbar a fúria de minha orientadora, e também para deixar as coisas amadurecerem lentamente, já que se está tratando de coisas muito complicadas; mas remeto aqui aquela nota de rodapé no fim do cap. III da tese. Vou confessar para você que uma de minhas motivações principais está num livro de John Strachey, “O Fim do Império” (tradução literal do título inglês), que constitui a fina flor da teoria social-democrata do imperialismo. Acredito que o livro, apesar de antigo (1950, por aí), é acessível a você. Resumo aqui o raciocínio, esquematicamente. O ponto de partida é Hobson. A exportação de capitais decorre da falta de mercados, isto é, do subconsumo na metrópole. Mas a partir dos anos 30 surge a intervenção do Estado na economia, em moldes keynesia- nos, e a política trabalhista combate valentemente o subconsumo. Logo, não há mais hoje nenhuma necessidade “econômica” no imperialismo. A nova harmonia entre as nações vai ao ponto de criar um parlamento universal, a O.N.U., o que não pode deixar de alegrar a todos nós (eu acho bom, sinceramente), e mais ainda um coração social- democrata. Perguntinha chata (anti-keynesiana): e se o capital precisa não só de demanda efetiva, mas também detrabalho? É claro que não posso pôr tudo isto amanhã em um artigo. A nossa mestra alega com razão, por exemplo, que o emprego gerado pelas multinacionais no terceiro mundo é desprezível. Assim, eu não posso explicitar estas conseqüências sem levar em conta mil e um problemas concretos deste tipo, sob pena de parecer um maluco. É preciso tempo. Mas acredito que isto que eu disse já dá para te dar uma idéia ao menos desta poss ib il idade: pequenas diferenças de pressupostos, a um nível mais abstrato, podem ter conseqüências importantes quando se prossegue a análise, numa aproximação progressiva em direção ao “concreto”.(Em carta de 23/4/79).

4. No que se refere ao trabalho como um todo, tenho apenas algumas reservas a fazer ao privilégio que você concede à distinção entre o “capital em geral” e a “pluralidade dos capitais”, posta em destaque por Rosdolsky.A valorização desta distinção (a partir do trabalho de Rosdolsky, tanto quanto eu sei) é feita por autores que se utilizam dosGrundrisse como obra que forneceria a “chave” para a elucidação da lógica interna d ‘OCapital. O que está em jogo: mais uma vez, a relação entre Hegel e Marx; trata-se de “re-hegelianizar” Marx valendo-se da autoridade de um texto clássico escrito um pouco antesd'O Capital. Tenho podido verificar os efeitos nocivos desta operação no tratamento de certas questões da problemática marxista. Exemplo: um artigo recente de David Yaffé sobre o problema da transformação de valores em preços, naCritiques de VÉcon omie Politique. Yaffé contesta o uso dos esquemas de reprodução do livro II por parte de Bortkiewicz e Sweezy, no tratamento matemático daquele problema. Argumento básico: no Livro II, a análise de Marx se desenrolaria ainda ao nível do “capital em geral”; somente no livro III (em particular no tratamento da formação de uma taxa média de lucro) a análise se voltaria para a concorrência entre os “múltiplos capitais”. Não se poderia, segundo Yaffé, proceder como faz Bortskiewizc, “misturando” os dois níveis de abstração. (Estou sendo muito esquemático; como estou sem meus livros, cito de memória o cerne do argumento; de qualquer maneira, não pretendo me demorar muito neste ponto).Objeção geral à posição de Yaffé-Rosdolsky (embora haja diferenças entre eles; o último é mais cauteloso e chega a dizer mais ou menos, tanto quanto me lembro, o que vou dizer em seguida): em nenhum momento no Capital, Marx toma como objeto a análise da concorrência e a interação dos múltiplos capitais. Isto Marx nos diz repetidamente, mesmo no Livro III: não trato deste assunto. A concorrência é invocada sempre como umdado geral, como um pré-requisito básico para que exista necessariamente:

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¡i) a introdução de novos métodos de produção (busca do “superlucro” temporário) (Livro I); b) o impulso de acumular em vez de consumir a mais-valia (condição de sobrevivencia dos capitais individuais) (Livro I); c) a formação da taxa média de lucro (busca dos ramos com taxa de lucro mais elevada) (Livro III). Os autores citados ignoram isto e “forçam a barra” tentando ver n'O Capital uma dialética do desdobramento do Um no Múltiplo, ou uma passagem (hegeliana) do universal ao particular.O resultado desta operação ideológica no caso de Yaffé é uma regressão da teoria marxista, a recusa de nma solução teórica perfeitamente legitima (a de Bortkiewizc), ou, o que é o mesmo, a recusa de ver no texto de Marx do Livro III um problema em aberto, quando Marx se refere expressamente à insuficiência de sua solução (assinalando que, a rigor, seria necessário “transformar” não só o valor dos produtos mas também o valor dos “insumos” que servem à sua produção, para usar a linguagem dos economistas). É óbvio, nos termos em que Marx indica esta insuficiência provisória de sua própria solução, que a solução completa só pode ser encontrada num esquema numérico (ou algébrico) dentro do qual seja possível pensar simultaneamente a modificação do valor dos produtos e dos insumos, ou seja, num esquema onde as1mercadorias aparecem simultaneamente como produtos e como meios de produção para outras mercadorias. O que nos remete diretamente à sua análise da reprodução do Livro II. Yaffé não consegue perceber esta evidência por estar submetido a uma ideologia que identifica o pensa

mento de Marx ao de um filósofo para quem a História tinha nele mesmo o seu ponto terminal. Pois a substância da posição de Yaffé resume-se nesta frase: Marx já disse tudo; o trabalho de Bortkiewizc, partindo do pressuposto contrário, é equivocado e supérfluo.(Em carta a amigo, de 13/1 /77)5. “O pensamento econômico burguês tem trajetória semelhante à da filosofia burguesa”. A ideologia neoclássica contêm elementos científicos; até hoje usamos a famosa elasticidade da demanda para explicar o funcionamento de estruturas oligopólicas. A grande crise de 30 produziu Keynes; jogando-se fora seu modelo de equilíbrio (ainda essencialmente neoclássico), encontramos nele um número ainda maior de elementos científicos (o multiplicador, a teoria da moeda, etc.), e é esta cientificidade inerente ao miolo do pensamento keynesiano, sua capacidade de apreender mecanismos reais da produção capitalista, que assegura sua relativa eficácia prática, quando este pensamento orienta a política econômica dos governos capitalistas. Existem correntes progressistas no pensamento econômico burguês de nossos dias, como o neoricardianismo e o keynesianismo de esquerda, embora seja verdade que de momento não são estas as correntes dominantes (tenderão a sê-lo, no entanto, a meu ver). O keynesianismo não é mais a-histórico do que a economia política de Ricardo, onde o obstáculo à acumulação de oapital é um obstáculo natural . A burguesia não tem-se valido apenas do “recolhimento aos muros da reação” ; ela tem também lançado mão de reformas para gerar um consenso bastante sólido quanto à legitimidade de sua dominação, e tem desenvolvido também um pensamento racional que lhe permite submeter a um relativo controle

alguns dos aspectos mais destrutivos do funcionamento da máquina capitalista.É errôneo contestar a preocupação do Schumpeter com o rigor lógico e a exatidão formal da análise. Não é este o ponto essencial. O rigor também é importante para nós, inclusive no que se refere ao uso da matemática, no tratamento das questões em que ela é relevante (isto é, nos aspectos da análise científica do movimento real dó capitalismo em que é essencial estabelecer relações funcionais claras entre quantidades variáveis). Você conhece a história de Davi e Golias. O gigante pode dar-se ao luxo de errar algumas pauladas. Mas você já pensou se Davi erra a sua pedrada? A primeira condição para não errar é ter um pensamento claro, uma visão clara e nítida. Daí que meu mestre tenha uma preocupação quase obsessiva com o rigor, com a “briga por palavras”. Este é um exemplo a ser imitado.A idéia de que as mercadorias chegam ao mercado sem valor não é absurda; pode-se até produzir alguns “efeitos do c Dnhecimento” interessantes partindo deste pressuposto.

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É verdade apenas que o que se alcança por esta via é muito limitado. Mas para tornar isto visível é precisodesenvolver o caminho alternativo. A mera negação repetitiva dos pressupostos do adversário não produz nenhum efeito, nem para nós, nem sobre ele.Um ponto importante a ser dito na discussão sobre a autocrítica da teoria marginalista é que a idéia de utilidade cardinal foi substituída pela de utilidade ordinal, expressa nas curvas de indeferença; ao nível em que você condiz a discussão, esta é uma resposta neoclássica satisfatória e sólida; a teoria da preferência revelada mostra inclusive como

se monta oexperimento a partir do qual se constroem as curvas de indiferença.A crítica de Belluzzo à teoria neoclássica é restrita. Não é suficiente dizer que a distribuição da renda tem que estar dadaantes para que se determinem as demandas individuais; o equilíbrio geral neoclássico envolve a determinação simultânea de todas as variáveis, e esta determinação simultânea não tem nada de logicamente indeterminada ou de tautológica. Em sua expressão formal mais acabada, a teoria do valor-trabalho também utiliza um sistema de equações onde se determinam simultaneamente todas as variáveis que tem que ser determinadas aí dentro. Considero isto uma “Coisa Boa”, como diria Joan Robinson.Não é legítimo apoiar-se na crítica desta senhora à teoria da utilidade marginal. Ela tem como pressuposto o positivismo lógico, ela invoca um conceito de “metafísica” que é

utilizado também para atacar a teoria do valor-trabalho. É preciso lembrar aqui a crítica marxista do empirismo (e estou uma vez mais fazendo referência aos trabalhos de meu mestre). Note que no final do texto Joan Robinson desliza de problema teórico para problema moral: é preciso ter uma idéia da utilidade para julgar as nossas preferências (a questão inicial era a de saber se era possível, teoricamente, tomá-las como

fa to ). Não se pode engolir ao mesmo tempo tudo isto.Esta maneira de criticar a economia neoclássica tem dado provas de uma absoluta ineficácia durante quase um século de debates onde as duas posições parecem sofrer de uma surdez crônica diante dos argumentos do adversário. Só existem dois tipos de crítica que podem abalar a autoconfiança dos neoclássicos. A primeira é o exame interno (e leal) do miolo de sua construção (vide Garegnani). A segunda é odesenvolvimento

da posição alternativa, é a demonstração cada vez mais rica e completa de que através dela é possível alcançar um conhecimento inigualavelmente rigoroso e profundo dos mecanismos da acumulação no capitalismo de nossos dias. Acho que nós precisamos nos preparar para realizar com o máximo de eficácia estes dois tipos de crítica, a direta e a indireta.(Em carta de 8/12/76)

6. "... Tive que reconhecer o que muito althusserianamente eu havia omitido: que os fenômenos daconcorrência não são meras fo rmas determinadas por movimentos invisíveis, mas, ao contrário, a existência de uma multiplicidade de capitais privados e a luta entre eles constitui componente essencial da estrutura do modo de produção capita

lista. Os autores com os quais a... se identifica mais, deduzem da eliminação (tendencial) da concorrência, a tendência à estagnação no capitalismo monopolista, o que é também concepção bastante “ortodoxa”. É verdade que continuo sustentando que não é por aí que se pode chegar às conclusões mais importantes. Mas, como Você pode adivinhar,o debate entre as nossas posições filosóficas é debate atual no interior da própria “ciência econômica” (leia-se “Economia Política”), e eu estou começando a perceber a possibilidade da existência de reconciliação entre estes dois caminhos. O que há de exigir ainda muita discussão.O essencial da minha tese consiste na afirmação da atualidade da lei do valor (malgrado as modificações a que ela está sujeita no capitalismo monopolista) e numa proposta de leitura “de trás para diante”do grande livro, a partir dos três capítulos sobre a lei tendencial da queda da taxa de lucros e principalmente do capítulo sobre o “Desenvolvimento das Contradições Internas” desta lei. Leio estes três capítulos, vendo neles uma teoria das mudanças do “padrão” ou da trajetória da acumulação de capital, mu-

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dança de rota através das quais o capitalismo afasta seus limites internos sem supri- mí-los, uma vez que “a barreira do capital é o pxóprio capital”. Esta leitura se inspira na Economia Política latino-americana e, principalmente, na última tese da..., cujo primeiro capítulo formula o problema teórico das mudanças no padrão de acumulação. É natural que esta seja idéia nascida aqui em baixo; o capitalismo periférico se choca com mais freqüência com seus limites, por causa do estrangulamento externo, do intercâmbio desigual, etc.(Carta de 3/12/76)7. “Sobre a elasticidade da demanda. É claro que este conceito não tem de modo algumo papel central que lhe seria atribuído por uma análise neoclássica do funcionamento de estruturas oligopólicas. Mas, qué ele tenha algum papel (por exemplo, em Labini ou Bain) não há nenhuma dúvida. Mas, talvez você tenha uma certa razão ao dizer que a função demanda seja um conceito empírico (embora isto também possa depender do quadro teórico no interior do qual ele funciona); é verdade que ele só é útil num nível de análise “micro” e, por isto, mais “superficial” do que aquele em que se situa Marx;o objeto deste nunca foi a “análise da concorrência” e sim o. “movimento real” (do sistema em seu conjunto).(Em carta de 1/1977)

8. “Meu tratamento do tema “valor” é estritamente factual. Neste plano, não posso deixar de considerar correta a importância que você atribui ao fenômeno da circulação no processo de constituição do valor. Apenas em um aspecto, talvez, minhas próprias análises tenham implicações ontológicas, é que parece-me inadmissível a dissimulação do valor e o fetichismo na produção mercantil simples. Se você toma o comentário de Paul Sweezy (Teoria do Desenvolvimento Capitalista) a fábula dos castores e gamos de Smith, que é, tanto quanto eu saiba, a única de mon stração da lei do valor por um autor marxista, impõe-se a conclusão de que esta só é sustentável (enquanto lei da produção mercantil simples) se se admite que o tempo de trabalho é uma grandeza que pertence a ordem do vivido. Os caçadores não ignoram o tempo dispendido pelos outros para caçar tipos diferentes de animais; senão, como poderiam orientar-se para procurar o “ramo de caça” mais vantajoso? O tempo de trabalho é uma grandeza subjetiva, imediatamente transparente à consciência dos agentes. Assim, quais são os efeitos psicológicos (de ocultação) específicos da produção mercantil simples, de que fala Bettleheim...”(Em carta de 8/1/1973)

9 'Preciso te dizer mais duas palavras sobre meu posfácio. Já “briguei” um pouco (amigavelmente) com... a este respeito e este tipo de discussão costuma me provocar uma crise mista de arrogância e humildade. O que eu não podia aceitar na posição de vocês,

era a idéia de que eu tivesse feito uma coisa bonita, etc. mas válida apenas para o século passado, quando minha intenção é chegar a poder falar, da maneira mais rigorosa possível (depois de descer cuidadosamente todos os degraus do nível de abstração) a respeito do Brasil em 1976 (ou 1977). Meu ponto é o seguinte: reconheço que a lei do valor não funciona mais como lei auto-reguladora do sistema na etapa atual, mas insisto em que ela continua funcionando como lei dest ru idor a (lei tendencial). Isto se expressa, no modelo, na variável y, que reflete o diferencial das taxas de lucro entre os dois sistemas; você pode notar, pela fórmula, que esta variável (além de só poder variar, digamos, no num intervalo de 0,3 a 4) tem uma influência bem pequena em comparação com a dos outros determinantes da razão capital/produto medida em preços. A... salientou a ausência, no modelo, do capital financeiro, da dívida pública, etc. Reconheço isto. Mas, como eu

disse, tratar destas questões exigiria outras 100 páginas. E eu não tenho nenhuma intenção de ficar correndo na frente; parece-me, pelo que você disse, que seu curso no ano que vem vai tratar destes problemas. Tenho a esperança apenas de ter amarrado oessencial

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do que precisava ser dito sobre o movimento do capital real, produtivo, na medida em que isto pode ser pensado independentemente de tudo o que eu omiti.”(Em carta de 1/12/1976)

10. "... atirei-me, portanto, freneticamente, num rush para chegar a dominar razoavelmente uns últimos assuntos importantes que precisava conhecer para por em ordem o conjunto de problemas de que me ocupo: o imperialismo, a historia contemporánea, etc. No mês de dezembro, enfim, comecei a primeira etapa de “passar a limpo” a montanha de observações e notas acumuladas em minhas pastas desde que iniciei o estudo de economia. Resolvi atacar de saída a questão que foi meu ponto de partida, o que dariao trabalho mais longo e fundamental: o problema do valor e da baixa da taxa de lucro.” (Em carta de 8/1/1973)

11. Devaneio do Eginardo, duas vezes ouvido em fins de 1980:“Ora, não é que o malsinado LAZER ainda pode, paradoxalmente, ajudar a resolvero crucial problema do Desemprego, da marginalização econômica, social e cultural da Massa discriminada? Introduzindo-se o horário de dois turnos?Reduzindo, pois, o Trabalho Obrigatório para quatro ou cinco horas (reavive-se a Organização Internacional do Trabalho!), nas empresas com jornadas de oito ou dez horas: duplicaria os índices do Pleno-emprego; fomentaria a Demanda, atendendo à Produção acionada pela racionalização, automação, comando numérico a agora, a robotização; reabilitaria os Desocupados mantidos pelas esmolas capitalistas; acabaria com a Capacidade Ociosa, conseqüência do subconsumo que se generaliza na maior parte da humanidade, sem meios até de buscar a mais simples subsistência.Por que? - perguntava Eginardo - , a partir da Revolução Industrial inglesa, quando a tecnologia progredia lentamente, a jornada obrigatória de trabalho foi sendo reduzida até parar em oito horas; e não devia parar por todo e precisamente o ciclo seguinte, - os últimos sessenta anos - nos quais a Ciência e a Técnica, com novos métodos e equipamentos, vêm levando ao auge o gigantismo em grande escala ou facilitando ao máximo a execução das tarefas. Vai haver aumento dos preços? Mas é truismo econômico: ninguém tem medo do preço; o que apavora é a dificuldade ou impossibilidade de pagá-lo.Será que os Mágicos Descobridores só visavam mesmo, desumanamente, enriquecer os Ricos, cada vez mais ricos, relegando ou entregando o Pobre, cada vez mais pobre, ao Desemprego, à fome, à miséria, ao exaspero da violência?É assunto que vem mordendo os cérebros dos economistas, sociólogos, empresários, sindicalistas e políticos bem intencionados. Enseja grandes polêmicas, mas também merece análises e meditações serenas e profundas.Para o futuro e tranqüilidade do Capitalismo e do seu lógico sucessor, o Socialismo Democrático: a Espada de Dámocles, Utopia, No Górdio, Ovo de Colombo? —Ou Ficção Científica: no horizonte, numa determinada etapa, determinado Assalariado poderá ter apenas um determinado compromisso diário obrigatório: numa determinada hora apertar um simples e determinado botão micro-eletrônico?E o LAZER - que os Ricos tanto sabem inteligente e liberalmente usar - pode descer à Massa, como tantas outras manifestações do Progresso. Porque, certo, não se acabará com os ROBÔS, assim como não se acabou com a MÁQUINA. O caminho é adaptar-se”. (O Coordenador pede desculpa pela forma, talvez bem precária, como procurou sintetizar um dos últimos pensamentos de Eginardo, perplexo com a abundância crescente, num mundo em desespero de tantas carências.)

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DETERIORAÇÃO DOS TERMOS DE TROCA E INTERCÂMBIO DESIGUAL1 - 2.

INTRODUÇÃO

Atualmente, o economista ou cientista social que pretenda analisar asrelações comerciais entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos no interior do sistema capitalista mundial (sobretudo se é movido por um espírito crítico e identificado com aquelas nações mais atrasadas e que ocupama posição mais desvantajosa neste processo de intercâmbio), dispõe de um instrumental teórico não ortodoxo proveniente de duas grandes concepções quse desenvolveram, no pós-guerra, no tratamento desta questão. Ambas as concepções já tem um tempo de vida e tem sido objeto de debate por períodosuficientemente longo para que seja possível, talvez, referirmo-nos a elas como duas tradições teóricas alternativas. Como nosso tema, neste artigo, é oexame dos pontos de convergência e das diferenças entre estas duas escolascomeçaremos por recordar brevemente as linhas básicas das teorias que eladefendem.

Uma primeira escola que se formou na análise da questão mencionadaacima pode ser bem representada pela obra de Raul Prebisch, personalidadeintelectual mais destacada na elaboração do que se tomou conhecido comoa visão “cepalina” na interpretação dos problemas econômicos da AméricaLatina. No interior de sua doutrina, a evolução desfavorável dos termos deintercâmbio, em detrimento dos países deste continente, era tratada no âm bito de problemática mais geral, como um dos obstáculos externos no processo de desenvolvimento das economias da região. Na interpretação mais ge

1 Agradecemos a Ricardo Tolipan que, gentilmente, através de observações críticas enviadas numa carta, ajudou-nos a corrigir diversos defeitos presentes na primeira versão deste trabalho, redigida em meados de 1975. É claro, no entanto, que qualquer equívoco contido na versão final aqui apresentada é de nossa inteira e exclusiva responsabilidade. (E.P.)2 In - Revista de Economia Política, vol. 1, n? 2, abril-junho, 1981.

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raímente aceita (sobretudo por seus adversários), a raiz fundamental do fnómeno era localizada na baixa elasticidade renda da demanda de produto primários por parte dos países desenvolvidos. Isto tenderia a fazer com quà medida em que se elevava a renda per capita nestecentro dinâmico docapitalismo mundial, a absorção de produtos provenientes da periferia se de

se a uma velocidade relativamente menor. Por outro lado, a expansão insuficiente do emprego e da produção em outras atividades alternativas, voltdas para o mercado interno, bloqueava, nas economias periféricas, a elevação do salário real. Deste modo, à proporção em que aumentava a produtvidade do trabalho nas atividades de produção para exportação, isto provocava como resultado a elevação dos lucros, a expansão incontrolada doferta e finalmente o declínio dos preços, acarretando a transferência contnua, para o exterior, dos “frutos do progresso técnico” realizado nas economias periféricas.

Na década de sessenta, principalmente a partir dos trabalhos de Arghiri Emmanuel. desenvolveu-se a visão alternativa do problema3. A novabordagem estava centrada sobre a aplicação da teoria do valor-trabalhincorporado à compreensão do processo de formação de preços no mercadmundial. Supondo a tendência à igualação das taxas de lucro entre as naçõe(garantida pela mobilidade internacional de capital, característica da fasatual de desenvolvimento capitalista) e incorporando o dado fundamentade que o salário real dos trabalhadores dos países desenvolvidos chega a sedezenas de vezes superior ao salário pago aos trabalhadores da periferia

Emmanuel procurou mostrar, utilizando os esquemas de transformação dvalores-trabalho em preços de produção, como estes dados estruturais re percutiam na determinação dos preços das mercadorias transacionadas ent países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Uma relação lucros/salários suprior nestes últimos produz como resultado, visível nos exemplos numéricode Emmanuel, o fato de que o preço de produção do produto de exportaçã periférico é deprimido abaixo do valor (como reflexo do baixo valor da foça de trabalho periférica) enquanto o produto do país central tem seu preçelevado acima do valor. Aparentemente em concordância com a hipótes

da mobilidade internacional ilimitada do capital, a demonstração era realzada admitindo-se que a raz;ão capital/trabalho era igual nos dois paísesA ênfase do problema era deslocada de seu aspecto dinâmico para uma análicom características de análise estática, ao menos à primeira vista (deslocamento não necessariamente ilegítimo): punha-se em destaque não tanto deterioração a longo prazo dos termos de intercâmbio, mas sim o fato deque em qualquermomento dado o comércio internacional entre desenvolvidos e subdesenvolvidos acarretava, sob aparente equivalência, a transferêcia unilateral de trabalho incorporado dos últimos para os primeiros. Est

efeito era visto como tendo seu alicerce fundamental nas condições de pr3 Arghiri Emmanuel, L 'Échange lnégal. Maspero, Paris, 1969.

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dução das mercadorias nos dois polos do sistema, ou, mais precisamentenas condições deremuneração da mão de obra. Estas últimas (por razões“institucionais” ou político-históricas, segundo Emmanuel) comprimiam salário ao nível de subsistência na periferia, mas permitiam sua elevação cotínua nos países centrais. O salário era, deste modo, privilegiado por Em

manuel com o estatuto de “variável independente” (ao menos do ponto dvista econômico) e constituía por esta via, elemento decisivo e último dexplicação proposta. A posição de Emmanuel envolvia, assim, importantaspecto crítico em relação às concepções anteriores, ao negar às caracteríticas dademanda dos produtos primários qualquer papel fundamental nadeterminação dos termos de intercâmbio.

Como sugerimos acima, nosso propósito aqui consiste em pôr emconfronto, brevemente, estas duas posições. Julgamos conveniente, no entato, antes de abordar com mais detalhes os pontos de divergência, apresenta

modelo simples onde estão presentes alguns fatores básicos na formação dotermos de intercâmbio e na determinação das diferenças de salário entre o poios desenvolvido e subdesenvolvido da economia capitalista mundial.

O MODELO

-O modelo a que nos referimos é extremamente simplificado, de tiponeoricardiano, e procura incorporar, segundo nossa visão, alguns aspecto

mais válidos das posições teóricas acima resumidas. Descrevemos a segusuas características fundamentais.1) Um país subdesenvolvido (representando aqui o conjunto do

ceiro Mundo”) produz anualmente certa quantidade (S) de artigos de consmo para o mercado interno (s) e uma certa quantidade (M) de matérias-prim para exportação(m). E conveniente imaginar o artigo de consumo (homogêneo) em pauta como sendo um “alimento” suprido pelo setor agrícola d baixa produtividade no país subdesenvolvido. O produtom, do qual se produzem M unidades, poderia representar igualmente um artigo de consum

industrializado,sob a condição de que a indústria de onde provêm este hi potético artigo de consumo operasse em condições tecnológicas idênticas às do ramo produtor de matérias-primas, no sentido de ter a mesma razão f ísica capital/trabalho, tal como definida no item 2 abaixo. Mas a existêncideste setor industrial periférico não precisa ser considerada na análise suseqüente, a não ser que se imagine que a economia subdesenvolvida já concom produtos manufaturados em sua pauta de exportações.

Por outro lado, um país desenvolvido (representando, em nossomodelo, o conjunto do mundo capitalista desenvolvido) produz certa quan

dade (E) de um tipo único de meios de produção (e) (digamos um “equipmento” com um tempo de vida útil igual a um ano), para uso interno e parexportação (pois o “equipamento” é utilizado também no país subdesen

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volvido), e produz igualmente certa quantidade (D) de artigo para consuinterno (d ) (digamos um “alimento” homogêneo proveniente do setor agcola desta economia). O produtoe poderia representar também, simultaneamente, um artigo de consumo industrializado que é consumido inter

mente e exportado para a economia subdesenvolvida, sob a condição, selhante àquela já mencionada para o caso do produtom, de que a indústria de onde provêm este hipotético artigo de consumo operasse em condiçõe tecnológicas idênticas às do ramo produtor de “equipamentos”.

2) A razão física capital/trabalho (E/L) e a produtividade do trabalhosão mais baixas na “agricultura” (produção para o mercado interno) país subdesenvolvido, em comparação com a “agricultura” do país desvolvido (Es/Ls < Ed/Ld e S/Ls < D/Ld). Esta hipótese, inegavelmente lista, tem importância na seqüência deste artigo, e é ignorada nas análide Emmanuel4.3) A razão física capital/trabalho (EL) na produção de matérias-pmas de exportação é mais elevada do que na produção (“agrícola”) po mercado interno, no país subdesenvolvido (Em/Lm > Es/Ls). Esta hitese incorpora uma característica generalizada dos setores exportadores economias periféricas, enfatizada por diversos autores (como, por exemS. Amin), e reflete fato básico que é menosprezado no momento cenda argumentação de Emmanuel, mas é decisivo, como se verá, na teoriaPrebisch: as disparidades tecnológicas internas das economias subdesvolvidas, que devem ser tratadas como um traçoespecifico destas economias,ao menos no nível de abstração e de “estilização dos fatos” em que se senvolve esta análise.

4) Como no modelo de Emmanuel, a taxa de lucro (r) é igual ndois países. Por outro lado, umresultado das premissas do modelo é a existência de taxas de salário real diferenciadas no plano internacional (embhomogêneas, por simplificação, no interior de cada país), sendo a taxa delário na economia desenvolvida superior à da economia subdesenvolv

(wd > ws). Deixamos para mais adiante a análise das razões que conduza uma relativa igualdade internacional das taxas de lucro, assim como o qtionamento do estatuto de “variável independente” que Emmanuel conà taxa de salário.

Observe-se que, assim definido através de suas hipóteses básicasmodelo deixa inteiramente de lado qualquer consideração não apenas a peito de aspectosmonetários normalmente relevantes na análise do comérciointernacional, como também (o que é mais importante, uma vez que a cussão está voltada para a determinação dos preçosrelativos nesta esfera dasrelações comerciais) exclui qualquer tratamento teórico das razões que terminam aespecialização dos diferentes países na divisão internacional d

4 A "razão física capital/trabalho” mencionada neste parágrafo corresponde ao qseria denominado, no jargão marxiano, a “composiçãotécnica do capital”.

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trabalho, assim como a influência das condições dedemanda na determinação dos preços e das quantidades de cada mercadoria que é produzida e vendida nos (e pelos) dois países representativos do polo central e periféricodo sistema capitalista mundial. Aqui, uma vez mais, adiamos para a partefinal do artigo a (breve) resposta à questão de saber se esta última omissã

não compromete a validade’e a relevância de nossos resultados.Esclarecido este ponto, podemos introduzir uma última observação.Os produtoss e d , que representam, no modelo, a parte da produção dasduas economias que está excluída do comércio internacional, são na verdade considerados aqui comoúnico e mesmo produto. O uso de símbolos algébricos distintos (S e D) para designar as quantidades deste produto (“agrícola”) que provêm, respectivamente, dos setores de produção para o mercadinterno na economia periférica e central deve-se exclusivamente à necessidade de enfatizar, ao nível da própria formalização, o fato de que ele é pro

duzido em condições tecnológicas diferentes nas duas economias, conformea hipótese2 já definida acima. Ao leitor que considerar excessivamente irrealista e forçada esta última simplificação, devemos observar que a ausêncideste elemento comum na composição qualitativa da produção nos dois

países tornaria absolutamente impossível qualquer comparação internacional racionalmente fundamentada das produtividades físicas do trabalhoa não ser que se introduzissem, explícita ou implicitamente,métodos de avaliação destas produtividades que são estranhos a (e incompatíveis com) os pressupostos teóricos inerentes à definição do próprio modelo.

Com base no pressuposto definido acima, admitimos que o produto“agrícola” excluído do comércio internacional tem o mesmo preço nasduas economias, o fazemos ps= pd = I (um), escolhendo este produto comunidade de medida de preços e salários em nosso modelo. Podemos entãoescrever como se segue o sistema de equação de tipo neoricardiano que o re presenta:

1)Espe (l +r) + Lsws = S2) Empc (1 + r) + Lmws = Mpm3) EdPc (1 +r) + Ldwd = D4) Mepm (1 + r) + Lewd = EpeHá um detalhe deste sistema de equações que certamente não escaparáà observação do leitor atento, e parecer-lhe-á, não sem razão, extremament

arbitrário: à diferença do que ocorre em todos os outros setores, o estoqufísico de capital (com duração de vida correspondente a um ano) no seto produtor de “equipamentos” na economia desenvolvida não contêm “equ pamentos” , mas exclusivamente matérias-primas (Me) provenientes do seto primário-exportador da economia subdesenvolvida. Um recurso simples para corrigir esta suposição obviamente irrealista seria o de reescrever sob a foma (Eepe + Mepm) (1 + r) a primeira parcela da soma à esquerda da equa

ção 4. Não o fazemos, no entanto, pela seguinte razão: esta alteração no sistema de equações não afetaria, no essencial, os resultadosqualitativos a que

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chegaremos na seqüência da exposição, mas introduziria, por outro lado, uma pequena complicação nos cálculos do exemplo numérico que será utilizado para exibir e ilustrar os referidos resultados. Nossa intenção é representaratravés deste sistema as condiçõesmínimas para a existência de umentrelaçamento entre as duas economias, que se dá através do intercâmbio, entre

elas, dos dois produtosbásicos (no sentido sraffiano do termo) cujas condições de produção estão definidas nas equações 2 e 4.Temos, assim, cinco variáveis: pe: preço do “equipamento” exportado pelo país desenvolvido pm: preço da matéria-prima exportada pelo país subdesenvolvidows: taxa de salário no país subdesenvolvidowt]: taxa de salário no país desenvolvidor: taxa de lucroDado ws ou wd (ou dado r), determinam-se os valores das demais

variáveis do sistema.Se dividirmos a equação 3 pela equação 1, podemos obter:

Ea/Ld , , E d _ S , DWd Es/Ls La 'Es Ld

Ed Ed / L(jComo— = ( --------- ) Es/Ls temos

Ld Es/L*

Ed/Ld Ed/Ld S Dwd = ws( — — ) - ( --------) — +----- .

s' s Es/Ls -Ls Ldequação que se transforma em

S Ed/Ld D5)wd = ( w s —_ ) ( - S L Í ) + —

^s' s m !

Segundo nossa hipótese 2 acima, a razão (Ed/Ld) será normalmenteE s / L s

superior a 1 (um). Por outro lado, para que exista lucro positivo, é necessário que a taxa de salário na “agricultura” subdesenvolvida (ws), medidaem unidades do produto deste setor de produção para o mercado interno, sejamenor que a produtividade física do trabalho neste mesmo setor (S/Ls):

6) ws S_ Le

Em conseqüência, (ws — S_) será inferior a zero e toda a primeiraLs

parcela da soma à direita da equação 5 será negativa. De modo que se podeafirmar igualmente que, sob estas condições, também wd < D/Ld.

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Um aumento na razão física capital/trabalho na produção para omercado interno do país desenvolvido (elevação deE j /L j ), mantidos cons-

Es/Lstantes os demais fatores (inclusive D/Ld) provocará adiminuição da taxade salário no país desenvolvido (queda de Wd). O significado econômico deste efeito tornar-se-á plenamente explícito quando, num momento posteriorde nossa exposição, passarmos a considerar ataxa de lucro, como a variávelindependente de nosso sistema. Dado r, a queda de salário se impõe comonecessária para manter constante esta taxa de lucro diante da elevação da razão física capital/trabalho. De modo análogo, pode-se dizer, à luz da equação 5, que um aumento de Es/Ls (fazendo diminuir a razão Ed/Lj ) tende

Es/Lsa acarretar uma diminuição de ws, mantendo a igualdade expressa nestaequação.

Mas esta equação 5 nos conduz a outras conclusões que têm, paraos efeitos de nossa discussão, uma importância maior. Ela mostra tambémque, constantes todos os demais fatores, o aumento da produtividade dotrabalho na “agricultura” subdesenvolvida conduz ao aumento da taxa desalário neste setor, pois a igualdade deve ser preservada mantendo constantea diferença negativa (ws — S/Ls). De modo análogo, a elevação de D/Ljtende a ter como efeito a alta de wj.

A relação funcional explicada no parágrafo acima poderá ser apresentada sob uma forma ainda mais simples e nítida se introduzirmos a hipótese segundo a qual as diferenças internacionais da produtividade física dotrabalho na produção para o mercado interno são proporcionais às diferenças existentes nas razões físicas capital/trabalho:

Ej/Ld = D/Lj

Es/Ls S/LsÉ fácil ver que, introduzindo esta igualdade em nossa equação 5,

ela reaparece sob esta forma:

wd = ws D/Ld S D/Ld D .S/Ls Ls S/L + Ld

que se reduz aD/Ld

7) wd = ws ( ------ )s / l ;

Com esta equação apenas se exibe formalmente o acerto da crítica aEmmanuel formulada por Christian Palloix, quando este último procuralocalizar a raiz das disparidades salariais nas diferenças de produtividadeentre os setores de produção para o mercado interno nos dois poios do sis-

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tema capitalista mundial5. E se indica também a justeza da crítica mais geraldirigida a Emmanuel pelo editor de seu livro6. Emmanuel manipula os esquemas de transformação de valores em preços como um “modelo” onde as grandezas e relações decisivas (razão lucros/salários, razão capital/trabalho) sãoencaradas ilusoriamente como flexíveis e assumem valoresarbitrários comrelação às características fundamentais doobjeto que aqueles esquemas visam revelar em suas articulações internas. Em particular, nos exemplosnuméricos deste autora) suprime-se um efeito do desenvolvimento desigualdo capitalismo em esGala mundial ao se supor razões capital/trabalho médias idênticas nos dois polos do sistema,b) ignora-se também o desenvolvimento desigual no interior da própria economia periférica, que deve se refletir na inferioridade da razão capital/trabalho na produção (primária) parao mercado interno ec) conseqüentemente a compressão dos salários a níveis extremamente baixos não é posta em relação com a insuficiência do desenvolvimento da produtividade do trabalho, que deve no mínimo ter algumvínculo plausível com o baixo nível alcançado pela razão capital/trabalho.

Este equívoco fundamental conduz Emmanuel a pelo menos duas pro posições dificilmente sustentáveis:

1?) A distinção radical entre o intercâmbio desigual “no sentido am plo” (decorrente das diferenças da razão capital/trabalho entre dois setoresou dois países) e o intercâmbio desigual “no sentido estrito” (que derivaexclusivamente das diferenças nas taxas nacionais médias de salário)7.

2?) O tratamento utópico da questão prática da depreciação das exportações do “Terceiro Mundo”, em algumas sugestões daquele autor, segundoas quais uma elevação dos salários nestas regiões poderia atenuar e, no limite, anular a transferência unilateral do valor-trabalho incorporado para oscentros do capitalismo mundial8.

Todos estes equívocos têm como núcleo o parti pris teórico fundamental de Emmanuel, que consiste em considerar a taxa de salário comovariável independente. Isto nos conduz a outro ponto de sua análise: a teseda uniformização internacional da taxa de lucro. Sabe-se que o argumento básico invocado por este autor para sustentar a existência de uma tendência à igualdade das taxas de lucro nos diferentes países consiste na mobilidade internacional do capital que caracteriza á presente etapa do desenvolvimento do capitalismo. Uma dificuldade particular deste ponto de vista está em compatibilizá-lo com a evidência do que esta mobilidade mostrou ter,historicamente, importância quantitativa limitada, ao menos no que se re

5 Christian Palloix,Problèmes de la Croissance en Économie Ouverte, Maspero, Paris,1969, p. 87.6 Vei “Préfacé” e “ Remarques Théoriques”,in A. Emmanuel,op. cit.7 A. Emmanuel,op. cit ., p. 189 a 203.

8 Idem , p. 169 e 171. Na verdade, o próprio Emmanuel chega a reconhecer as dificuldade desta proposta, embora a lógica de sua teoria faça com que ele se incline nesta direção. Ver tambémidem, p. 291.

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fere às relações entre o polo central e o polo periférico do capitalismo mundial. O fluxo de investimentos em direção à periferia, ao longo do séculoatual, não acarretou desenvolvimento intenso nestas áreas mais atrasadasdesmentindo sob este aspecto as expectativas dos primeiros autores queanalisaram o fenômeno da expansão internacional do capitalismo a partirde fins do século XIX. Não parece razoável, por conseguinte, localizar namobilidade internacional do capital o determinante básico de nivelamentomundial das taxas de lucro.

A análise das forças centrípetas que limitam a exportação de capital para a periferia do mundo capitalista constitui por si só aspecto importante de uma teoria de desenvolvimento desigual do capitalismo em escalamundial. Não nos deteremos aqui nesta questão. Dirigindo-nos a um outro ponto do problema, podemos assinalar que o próprio Emmanuel, de passagem, ao discutir as posições de autores como Byé e Williams sobre a mobilidade do capital no interior das economias capitalistas e no plano internacional, minimiza o papel que ela teria a desempenhar na equalização internacional das taxas de lucro. Diz ele que “a questão não é a de saber qual é o graude mobilidade ou imobilidade, mas se há ou não igualação das remuneraçõedos fatores9 ”. Isto nos abre caminho para interpretar livremente sua posição,entendendo a relativa homogeneidade da taxa de lucro no plano internacional (que é o cerne realista da hipótese deste autor) como determinada predominantemente por mecanismos outros que não a mobilidade do capital.

Exporemos breve e esquematicamente nossa argumentação com relação a este ponto. Diversas teorias, com diferentes pressupostos e objetivosestabelecem algum tipo de relação entre a taxa de lucro e a taxa de acumulação de capital, e, qualquer que seja o sentido da relação causal que se su ponha existir entre estas duas taxas, certamente haveria amplo consenso emadmitir que elas tendem a variar na mesma direção. Por outro lado, ao contrário do que ocorre com a taxa de salário real, que pode elevar-se ilimitadamente à medida em que aumenta a produtividade do trabalho num determinado país, as margens de variação da taxa de lucro no tempo e no espaçosão relativamente estreitas. Dizer isto não significa de modo algum minimizar a imensa diferença que existiria, para todos os efeitos práticos, entre asituação da economia onde a taxa de lucro (ou de acumulação) estivessenum nível tão baixo como (por exemplo) 4% ao ano e a situação de umaeconomia onde aquela(s) taxa(s) se encontrasse(m) (por exemplo) num nível tão elevado como 30% ao ano. Significa apenas dizer que,numa primeira aproximação, sem desconsiderar as disparidades significativas que possam

9 Idem, p. 88. Convém assinalar a definição peculiar (não neoclássica) do conceito do “fator de produção” introduzida por Emmanuel: é um fator de produção “todo direito estabelecido a uma primeira partilha do produto econômico da sociedade” (numa economia mercantil) (idem, p. 56). Em si mesma, esta definição é aceitável, se a expressão “direito estabelecido” puder ser interpretada não numa acepção ju rídica mas designando um poder social efetivo.

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se verificar nas taxas médias anuais de lucro entre diferentes países, é legítimo, no nível de abstração (e, como já dissemos, de “estilização dos fatos”)em que está situada a nossa discussão, manter no modelo a hipótese da igualdade da taxa de lucro nos dois países, para representar o fato da dispersãorelativamente limitada desta razão no plano internacional, em contraste comas enormes (e potencialmente crescentes) diferenças observadas nas taxasnacionais de salário.

Admitida aquela dispersão e os seus limites, pode-se acrescentar queexistem mecanismos internos, no interior de cada país, que asseguram a manutenção de taxa de lucro historicamente “normal”, entendida esta comouma taxa situada no interior do espectro (relativamente) restrito fora doqual a acumulação pode entrar em colapso por insuficiência ou excesso doexcedente apropriado pelas empresas. Nesta última hipótese, é a própria insuficiência da demanda efetiva que tende a provocar, através de recessões,a queda “corretiva” da taxa de lucro. Quanto à primeira hipótese, a possibilidade de esmagamentoduradouro dos lucros pela pressão dos salários emalta pode ser contornada por múltiplos recursos acessíveis ao empresariadoe inerentes à sua posição neste confronto, no quadro de uma sociedadecapitalista. Referimo-nos aqui não tanto ao comando que os empresáriosdetêm sobre a escolha de técnicas (que talvez seja, apesar de certas aparências teóricas, sua arma mais secundária e mesmo ilusória), mas sobretudo aosdiversos recursos do poder de que eles dispõem, em seu conjunto, tanto aonível econômico como ao nível propriamente político.

São basicamente mecanismos desta natureza que tendem a manter cslucros em sua “normalidade” de longo prazo e a aproximar as taxas delucros vigentes nas diversas economias capitalistas nacionais. A exportaçãode capitais desempenha certamente papel neste sentido, mas não é desca bido supor que se trata de um papel marginal, ao menos no que se refere àsrelações entre países capitalistas centrais e periféricos. Estas consideraçõesnos conduzem, por um lado, a aceitar (provisoriamente) a hipótese de Em-manuel a respeito do nivelamento das taxas de lucro no plano internacional, e, por outro lado, a fazer uma opção à sua na discussão subseqüente,tratando não a taxa de salário, mas sim a taxa de lucro como um dado, oucomo variável independente10. Uma última justificativa para este procedimento está no fato de que, formalmente, não haveria grandes dificuldadesem introduzir, no modelo atrás exposto e no exemplo numérico que utilizaremos a seguir, modificações que levassem em conta a variabilidade histórica e as diferenças internacionais das taxas de lucro11.

10 Esta escolha é idêntica àquela feita por Sraffa a partir do último parágrafo do capítulo V de seu livro, embora as razões sejam distintas. Mas o primeiro (e principal) argumento invocado por Sraffa está também na base de nossa opção. Ver Piere Sraffa,

Producción de Mercancias por medio de Mercancias, Oikes-Tau, Barcelona, 1966, p.55.11 No que se refere às diferenças internacionais entre as taxas de lucro, poder-se-iadefinir um coeficientea = rd /r s e substituir o símbolo r nas duas últimas equações de

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UM EXEMPLO NUMÉRICO

Encerrada esta primeira etapa de nossa discussão, voltemos agoraao nosso modelo inicial, especificando os valores de seus parâmetros:

1’) 3.pe (1 + r) + 8.ws = 42 ) 12.pe (1 + r) + 8.ws = 16.pm3’) 12. pe (l +r) + 8.wd = 164’) 12.pm (1 + r) + 8.wd = 16.peDas equações 1’ e 3’ deste sistema, podemos obter novamente nossa

sétima equação7’) wd = 4.ws

segundo a qual o salário em unidades ded ou s será sempre quatro vezessuperior no país desenvolvido em comparação com o país subdesenvolvido.O que reflete o fato de ser a produtividade do trabalho e a razão física capital/trabalho, no setor “agrícola”, quatro vezes maior naquele primeiro país.

Tomemos agora como variável independente a taxa de lucro, e su ponhamo-la exogenamente dada, de modo que r = 14,6%.

As demais variáveis do sistema serão determinadas, com os valoresabaixo:

ws: 0,10wd: 0,40Pm: 0,85 pe : 0,93t = Pm/Pe = 0,91Poder-se-ia demonstrar que, dados os parâmetros de nosso sistema de

equações acima, a quantidade de trabalho (direto e indireto) contida numaunidade de equipamento é igual àquela contida numa unidade de matéria- prima. Esta demonstração (fundada num procedimento análogo à “redução”sraffiana a quantidades datadas de tempo de trabalho) será omitida aqui para não sobrecarregar a exposição. Ela implica, como conseqüência, que os preços relativos atrás obtidos para as duas mercadorias envolvem a existência de intercâmbio desigual, no sentido de uma transferência líquida de va-lor-trabalho da economia subdesenvolvida para a economia desenvolvida(implicitamente: supondo-se equilibrada a balança comercial). Uma trocanão desigual, no sentido de Emmanuel, exigiria que a razão entre os preçosdas duas mercadorias, ou os termos de intercâmbio para o país periférico (t)fossem iguais à unidade (1,00).

Introduzamos agora a primeira transformação em nosso exemplo numérico, supondo a duplicação da produtividade do trabalho no setor de“equipamentos” da economia desenvolvida. Nossa equação 4’ transforma-se

nosso sistema (3 e 4) pela expressão (rs. cc ). Obviamente escolhendo como exemploum caso pa rticular), quanto mais o coeficiente a se elevasse acima de 1 (um), maisdesfavoráveis seriam os term os de intercâmbio para o país subdesenvolvido.

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Cm 4”) 12.pm (1 + r) + 4.wd = 16.pe,e, mantida a taxa de lucro em seu nível inicial (r igual a 0,146), as variáveisdo sistema assumem novos valores:

ws: 0,15wd: 0,60Pm • 0,77 pe : 0,81t —Pm/Pe 0,95Confrontando-se este resultado com os valores anteriores das mes

mas variáveis, verifica-se que, mantida a taxa média de lucro,, o aumentoda produtividade do trabalho, na medida em que se restringe à produção deexportação de um dos países (no caso o país desenvolvido), modifica os termos de intercâmbio externos em seu prejuízo, tornando possível, não obstante este fato, uma elevação dos salários em ambos os países. Se o progresso técnico houvesse atingido simultâneamente a produção (“agrícola”) parao mercado interno, os salários teriam subido a nível ainda mais alto no paísdesenvolvido e isto impediria o declínio dos preços dos “equipamentos”exportados, evitando a deterioração dos termos de intercâmbio. Isto se com

prova facilmente se, além da modificação acima efetuada no setor produtor de, introduzirmos uma duplicação da produtividade do trabalho igualmente na produção ded , transformando nessa equação 3’ em

3”) 12.pe (l + r) + 4.wd = 16

Como resultado, mantida a taxa de lucro, nossas variáveis retornam aseu nível inicial, com exceção da taxa de salário na economia desenvolvida,que é duplicada:

ws:0,10wd: 0,80Pm ■0,85 pe : 0,93t = pm/pe = 0,91O mecanismo causal decisivo da deterioração dos termos de intercâm

bio, implícito nos exemplos acima, corresponde ao núcleo racional da posição de Prebisch, como se pode verificar nesta citação de Emmanuel, ondeele nos oferece de passagem o ponto forte da tese de seu adversário:

“Segundo Prebisch, o benefício de um aumento uniforme da produtividade de todos os ramos de uma economia nacional se traduz porum aumento dos salários e é por conseguinte retida no país. Ao contrário, como os salários se alinham sobre a produtividade marginal,uma grande disparidade da produtividade faz com que os setores queavançam transfiram o fruto de sua produtividade diferencial ao es

trangeiro pela deterioração dos preços12

12 A. Emmanuel, op ci t. , p. 131.

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Seja confundindo-se por este fato, seja por intuito polêmico (ou pelasduas razões), Emmanuel efetivamente explora, ao discutir o que ele denomina “a tese Singer-Prebisch”, alinguagem neoclássica utilizada por esteúltimo autor. Mas uma retificação quanto a este ponto não afeta em nadade essencial a validade da referida tese, como o sugere a obtenção de resul

tado idêntico em nossos exemplos acima, fundados de modo explícito em pressupostos teóricos absolutamente distintos (não neoclássicos) no que dizrespeito à teoria da distribuição.

O que há de irreal em nossos exemplos anteriores reside precisamenteno fato de que são as economias capitalistas desenvolvidas que se beneficiamdaquela relativa homogeneidade do progresso técnico entre os vários ramos de

produção. É preciso, portanto, completar o quadro ifitroduzindo um terceirocaso mais adequado à evolução secular dos termos de intercâmbio entrecentro e periferia do sistema capitalista. Esta evoluçãotende a se efetuar

(na ausência de processos contrabalançadores) em detrimento dos países periféricos. Podemos obter uminsight sobre o movimento que a determina,ao nível do modelo, supondo uma elevação da produtividade do trabalho,na economia periférica, paralela ao progresso técnico realizado no conjuntoda economia central, mas restrita, no caso da economia periférica, ao setor

primário-exportador. Assim, se duplicarmos a produtividade do trabalhotambém no setor produtor de matérias-primas, transformamos nossa equação 2’ em

2”) 12.pe(1 + r) + 4.ws = 16.pm,

obtendo como resultado os valores abaixo (suposta constante a taxa delucro mundial):ws: 0,1076Wd: 0,8609Pm: 0,811 pe: 0,912t = Pm/Ps = 0,88Os termos de intercâmbio se modificam, como se vê, em detrimento

do país primário-exportador. A razão fundamental para que isto ocorra reside no atraso tecnológico crescente do setor de mercado interno da economia periférica, que mantém dentro de limites estreitos a elevação dos salários. Em conseqüência, o progresso técnico realizado no setor exportadorredunda quase exclusivamente em queda de preços e transferência para oexterior dos ganhos de produtividade. Emmanuel está portanto equivocado quando, discutindo a “tese Singer-Prebisch”, contesta a conexão entrea orientação setorial do progresso técnico na periferia e a deterioração dostermos de troca13. Este último processo tem base na desigualdade do desenvolvimento no interior das próprias economias periféricas. Conclusão que,obviamente, não pode ser vista como explicação plena do fenômeno, mas

13 Idem, p. 128 e seguintes.

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constitui passo necessário nesta direção e uma formulação mais adequada respeito de sua natureza.

Sintetizamos num quadro único nossos resultados:

Setor onde se dá Termos de Efeito qualitativo

a duplicação da intercâmbio produtividade do (t)trabalho

0,91 (situação inicial)1) somente eme 0,95 termos de troca melhoram para a periferia2) eme e emd 0,91 termos de troca estáveis3) eme, d em 0,88 termos de troca pioram para a periferia

Pode-se observar que, nas duas primeiras variações, as alterações tecnológicas no setor produtor dee envolvem uma intensa redução da quantidade de trabalho contida em cada unidade de “equipamento” exportada para o país subdesenvolvido. Este movimento implica, por conseguintenum agravamento dadesigualdade do intercâmbio entre os dois países emtermos de trabalho incorporado, pois nem mesmo a suave queda do preço relativo do “equipamento” no primeiro caso pode compensar a redução dovalar-trabalho desta mercadoria. E, não obstante, neste primeiro caso ostermos de intercâmbio modificam-se favoravelmente para o país periférico

Na última variação, este país é concretamente prejudicado pela deterioraçãdos termos de troca, mas o agravamento da desigualdade do intercâmbioé evidentemente menor do que nos dois primeiros casos, pois o progressotécnico no setor primário-exportador reduz também drasticamente a quantidade de trabalho incorporada em cada unidade de matéria-prima exportadaÉ importante ter presente, portanto, que o processo secular de deterioraçãodos termos de troca que é objeto da análise presbischiana não se confundecom o aprofundamento dadesigualdade do intercâmbio no sentido que estaexpressão tem nos trabalhos de Emmanuel, não existe, logicamente, nenhum paralelismo necessário entre os dois processos14. E, de um ponto de vist

14 Prebisch já havia assinalado o fato de que a deterioração dos termos de troca não é incompatível com a economia do tempo de trabalho necessário para adquirir uma dada quantidade de produtos importados (Ver Raul Prebisch), “Interpretação do Processo de Desenvolvimento Econômico”,in Revista Brasileira de Economia, ano 5, n? 1, março de 1951, p. 65). Este fato a que nos referimos no parágrafo acima, ao discutir a ter- eeira variação dos termos de troca, poderia ser reinterpretado num quadro teórico neoclássico, assumindo então uma significação distinta no contexto de considerações a respeito dos efeitos que teria esta alteração sobre o “bem estar econômico” no país subdesenvolvido. Poder-se-ia então dizer que, no caso desta terceira e última variação, os

“termos de intercâmbio de um só fator” teriam melhorado, malgrado a piora dos termos de troca em mercadorias (Ver, por exemplo, Gettfried Heberler, “Los Términos de Intercâmbio y el Desarrollo Económico”,in H.S. Ellis - ed. —,E l Desarrollo E conóm ico

y America Latina, Fondo de Cultura Económica, México, 1957, p. 326 e 327).

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dinâmico, o primeiro processo pode ser revestir de uma importância maisdecisiva como um dos mecanismos de bloqueio do crescimento das economias periféricas15.

A TEORIA DE PREBISCH

Alcançada esta etapa de nossa exposição, resta-nos ainda pelo menosum problema importante a ser resolvido. Até aqui temos salientado os pontosdébeis da concepção de Emmanuel num percurso crítico onde explicitamenteestá patente a pretensão de nos situarmos, como sobre terreno necessário para servir de ponto de apoio a esta crítica,do ponto de vista da teoria de Prebisch. Na parte final do item anterior deste artigo, formulamos algunsargumentos que nos parecem válidos para recusar uma objeçãosecundária de Emmanuel contra esta teoria: o vínculo essencial que supostamenteexistiria entre ela e a explicação neoclássica sobre a distribuição da renda.

Mas nada dissemos, até o momento, a respeito da crítica principal dirigida por Emmanuel a esta teoria, crítica esta que tem como alvo o papel importante que nela é atribuído às condições dademanda na determinação dos preçosdos produtos exportados pelos países subdesenvolvidos.

E, com efeito, é impossível negar a presença deste elemento ao longode toda a obra de Prebisch. Tomando um exemplo, vejamos como esteeconomista sintetizava sua concepção sobre a deterioração dos termos de troca no início dos anos sessenta:

“A origem deste fenômeno está nessa relativa lentidão com que

cresce a procura mundial de produtos primários, comparada com ade produtos industriais. Estas disparidades no crescimento da procuranão teriam por que trazer baixa alguma nos preços primários, se a produção se ajustasse, contínua e rapidamente, ao ritmo da procura.Para isso, seria indispensável que se cumprissem três condições, que na

realidade não se verificam:a) que o incremento de população ativa nas atividades primárias se

desloque delas na medida em que (ela) não é necessária para que a pro-

15 Esta importância especial da deterioração dos termos de trocaem si (independentemente dos movimentos relacionados à desigualdade do intercâmbio medida em valor- trabalho) se justifica na medida em que se possa concluir que aquela deterioração constitui “um dos principais fatores da diminuição do coeficiente de importações dos (...) países industriais” e, por conseguinte, seja possível ver nela um fator decisivo da limitação da capacidade de importar dos países periféricos (Raul Prebisch,op. cit., p. 63). Mas também se pode encontrar na obra de Prebisch referências à baixaelasticidade renda da demanda de produtos primários como um fator independente e responsável por si só pela tendência ao desequilíbrio do balanço de pagamentos na periferia (e a queda dós preços relativos surge então como umaconseqüência e uma agravante deste movimento). “É um fato bem estabelecido que a elasticidade renda da demanda de importações de produtos primários latino-americanos nos centros é geralmente mais baixa

do que a elasticidade renda da demanda latino-americana de produtos industriais destes centros.” (Raul Prebisch, “Commercial Policy in the Underdeveloped Countries”,in The American Economic Review, vol. XLIX, May 1959, n? 2, p. 252).

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dução aumente sem exceder o ritmo de crescimento da procura. Esdeslocamento teria de ser tanto mais intenso quanto maior fosse o cremento de produtividade nessas atividades, a par de outros fatores;

b) que a mão-de-obra assim deslocada encontre ocupação na indútria e em outras atividades absorventes, segundo já foi explicado,

c) que a absorção ‘desta mão-de-obra se dê com tanta intensidaque os salários reais dos trabalhadores nas atividades primárias possasubir, de forma a captar o incremento de produtividade das mesmas1Aparentemente, ao menos, existe certo número de elos frágeis nes

cadeia de raciocínio. Em primeiro lugar, surge aqui como fator primário que desencadeia o processo de deterioração, o insuficiente dinamismo da manda de produtos primários por parte das economias centrais. Neste poné Emmanuel quem ganha uma certa razão sobre Prebisch ao pôr em evid

cia a superfluidade deste fator na explicação do fenômeno. Toda a nosdiscussão anterior sugere de que modo a deterioração dos termos de trocsuscetível de se produzir independentemente da debilidade do crescimeda procura por aqueles produtos. Por outro lado, Emmanuel usa convcentemente o argumento segundo o qual a queda dos preços a longo pranão é fatalidade que atinge determinados produtos e sim determinados países, quaisquer que sejam as modificações que estes últimos consigaintroduzir em suas pautas de exportações 7. 0 fenômeno do declínio d preços não está fundado na natureza específica dos produtos primários

quantovalores de uso, mas no crescente empobrecimento relativo das massatrabalhadoras com cujo trabalho eles são produzidos.Mesmo que se admita a realidade dos fatores que tendem a desace

rar a demanda de produtos primários por parte das economias centrais (fcionamento da lei de Engel, progresso técnico poupador de matérias-pmas, etc.)18, tal desaceleração deve ser encarada como relevante ape

16 Raul Prebisch, Dinâmica do Desenvolv im ento Latino-A mer icano, Editora Fundode Cultura, S. Paulo, 1964, p. 97 e 98.

17 A. Emmanuel,op. cit., p 128 e 129. Assim, as mudanças na divisão internacionaldo trabalho, abrindo ao menos para certo grupo de países subdesenvolvidos a posslidade de exportar produtos manufaturados, não elimina a tendência à piora dos termde troca e a transferência dos ganhos de produtividade da periferia para o centro. VMaria da Conceição Tavares, Acumulação de Capital e Industrialização no Brasil, tesede livre-docência, Rio de Janeiro, mimeograf. 1975, p. 106.1 8 A crítica neoclássica à visão prebischiana nos anos cinq üenta teve como alvo vilegiado precisamente a tese sobre a evolução dos termos de intercâmbio, interpretcomo resultante de fatores deste tipo. As primeiras reações fundadas nesta perspectortodoxa de que temos notícia, através de textos publicados no Brasil, partiram Jacob Viner e Robert E. Baldwin e concentraram-se nos seguintes pontos: 1) a deteração é uma possibilidade, mas não pode ter o estatuto de uma lei válida para o lon prazo, 2) as esta tísticas sobre o comércio do Reino Unido utilizadas nesta época pCEPAL (sobretudo por não considerarem as econom ias efetuadas nos custos de transpte internacionais) constituem base empírica precária para afirmar a existência de drioração contra os países subdesenvolvidos dos anos setenta do século passado até

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como mecanismo específico de bloqueio às possibilidades de crescimentodas economias subdesenvolvidas, através da compressão da capacidade de im portar equipamentos e matérias-primas não suscetíveis de suprimento interno. Porém ela não tem nenhuma conexão imediata e necessária com a evolução perversa dos termos de intercâmbio19, pois semà) a contenção dos salários e />) sem o incrementolocalizado da produtividade no setor expor-

unoN (|uurenta deste século; 3) a lei de Engel é aplicável aos alimentos, mas não às maté-rlit-í -primas e principalmente aos minérios, cuja situação seria (ao menos relativamente)viintujoui 110 que diz respeito à demanda dos países desenvolvidos. (Ver, na Revista llrusilfira de Economia: J. Viner, “Seis Conferências sobre as Tendências Modernas daIcoriu do Comércio Internacional”, ano 5, n? 2, junho de 1951, p. 74, 81 a 86, 198 a200; K. E. Baldwin, “A Modificação Secular das Relações 'de Troca ” , ano 6, n? 3,sol em br o de 1952, p. 79 a 95; e os “C omentários” dos dois autores no núm ero de março de 1953, p. 79 a 100). Todos estes pontos foram retomados de forma mais siste-miíüca e elaborada no artigo já citado de G. Haberler, e em grande parte contestados

com sólidos argumentos nos debates que se seguiram à apresentação deste trabalhonuma reunião da Associação Econômica Internacional, realizada no Rio de Janeiro emagosto de 1957 (Ver H. S. Ellis,op. cit., p. 326 a 362).19 Como os dois processos que distinguimos aqui estão comum ente associados e mesmoidentificados nas versões correntes da teoria, é conveniente recorrer ao nosso modelo para explicitar a na tureza de sua diferença. No capítulo V de seu te xto clássico sobre a“Interpretação do Processo de Desenvolvimento Econômico”, Prebisch discute as condições sob as quais poder-se-iam desenvolver no país periférico novas indústrias capazesde suportar a concorrência estrangeira, apesar de sua produtividade inferior segundo os padrões internacionais. A reduçã o dos salários abaixo de seu nível de partida é descartada mediante o argumento de que (além do prejuízo imposto aos trabalhadores) istoacarretaria “não somente a queda do custo monetário da produção para consumo interno como também a do custo das exportações, causando evidente prejuízo à relação detrocas. Ademais,à medida em que se acentuasse o desnível dos salários em relação aos centros industriais, aumentaria não somente o custo relativo das importações para consumo como também odesembolso exigido pelasimportações de bens de capital. Assim,seriam reforçadas as dificuldades levantadas contra a industrialização,e a proporção entre o capital fixo e os salários afastar-se-ia cada vez mais do nível ótimo registrado nos centros. ” (R. Prebisch,op. cit., p 109. Os grifos são nossos —E.P. -) .

Temos aí formulada, nesta passagem, a idéia de uma “tendência à queda da taxade lucro” (isto é à elevação da razão capital/produto) numa modalidadeespecificamente

periférica , associada à deterioração dos termos de troca. No quadro do exemplo nu

mérico exposto na terceira parte deste nosso artigo, a hipótese de partida (grifada na citação -acima) corresponde ao caso da terceira variação (baixa dos termos de intercâmbio paxa a pe riferia), com a única diferença de que a disparidade crescente dos salários anível internacional resulta, na possibilidade mencionada po r Prebisch, dedeclínio da produtividade na produção para o mercado interno na periferia (introdução de indústriasnão competitivas segundo os padrões internacionais), e não de um aumento da produtividade nos outros três setores. Mas esta diferença é irrelevante para os efeitos do pro blem a que estamos discutindo nesta nota . Se, efe tuan do os cálculos necessários, examinássemos as repercussões daquela terceira variação sobre o setors (representado pelaequação 1’), verificaríamos que a mudança desfavorável dos termos de intercâmbio externos está associada não a uma alta, mas a umadiminuição da razão capital/produtoneste setor. Isto se deve simplesmente ao fato de que, se os “equipamentos” importados se encarecemcom relação às matérias-primas exportadas, elesse tornam, não obstan-

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tador periférico, a lentidão de crescimento da demanda se traduziria rapidmente num freio à acumulação de capital neste setor e numa desaceleraçda oferta, através do declínio setorial da taxa de lucro, ou, mais precisamenatravés dos obstáculosinternos antepostos à possível elevação desta taxa.É preciso pôr em destaque, portanto, os elementos da tese de Presbisch q

dizem respeito àqueles dois últimos fatores.Para fazê-lo, voltaremos agora nossa atenção para aqueles textos inagurais onde a teoria em questão foi formulada pela primeira vez: os dois pmeiros escritos de Prebisch em sua fase “cepalina”, publicados na passagedos anos quarenta aos anos cinqüenta. Mas é preciso reconhecer e mesmsublinhar, antes de mais nada, que mesmo nestes escritos iniciais encontmos inúmeras passagens onde a questão é exposta em termos essencialmenidênticos aos da citação acima transcrita. E mais: é preciso dizer também qisto tem razão de ser, pois a lentidão do crescimento da demanda nos paísescentrais, assim como as contrações cíclicas desta demanda, podem ser letimamente tratadas como fator primário no sentido que esta expressão temquando se considera umaseqüência causal (temporal), na qual os preços dos produtos exportados para o centro sofrem sucessivos impactos depressivIsto não significa, no entanto, que aquele fator{primário na acepção aquiexplicitada) possa ocupar o lugar dedeterminante e condição fundamental

te este efeito,mais baratos com relação aos produtos destinados ao mercado interno

da periferia.Este último efeito revela que, no quadro de um modelo onde se consideram apenas as “conseqüências das desigualdades internacionais das rendas nacionais e da produtividade” (título daquele capítulo V de Prebisch), não se pode fundamentar a proposição de uma tendência à queda da razão produto/capital como mecanismo específico de bloqueio à acumulação industrial na periferia. Afirmação que, para nós, vale também como uma retificação do que está dito no final da nota 16 do capítulo III de nosso livro Valor e Acumulação (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1979, p. 100). Em outro escrito de Prebisch, datado de fins da década de quarenta, aparece no entanto a idéia de obstáculo similar (masdistinto, como é nossa intenção salientar nesta nota), no contexto de uma discussão onde está em jogo a escassez de divisas e a redução do coeficiente de importações, limites com os quais se choca uma necessidade crescente de bens de capital importados (ver R. Prebisch, “O Desenvolvimento Econômico da América Látina e seus Principais Problemas”,in Revista Brasileira de Economia, ano 3, n? 3, setembro de 1949, p. 88 e 89). Nesta hip óte se, que constitui uma possibilidade diferente daquela discutida acima, pode ocorrer uma altageneralizada da razão capital/produto na economia periférica, sob condições que por definiçãoultrapassam os limites de nosso modelo: há um desequilíbrio na balança comercial euma ruptura na suposta igualdade internacional entre as taxas de lucro. Mas estaé uma situação conjuntural e temporária, ainda que possa perdurar por muitos anos e se repetir ao longo de fases sucessivas do processo de acumulação na periferia: ela tende a provocar como reação o desenvolvi

mento da produção interna de bens de capital, como mostra toda a elaboração teórica da tradição cepalina sobre o processo de substituição de importações. Nossa intenção não é negar a importância nem as raízes estruturais profundas deste último fenômeno, e nem mesmo sua possível vinculação com a deterioração dos termos de troca. Trata-se apenas de assinalar que são fenômenos de natureza diversa.

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tio movimento de longo prazo dos preços (relativos) dos produtos exportados pela periferia, ou datendência à deterioração secular dos termos de intercâmbio dos países subdesenvolvidos20.

Não é também suficiente, embora seja este elemento necessário da ex plicação, atribuir este papel de determinante fundamental exclusivamente

A superabundância estrutural de força de trabalho, na linha daquela passagem de um livro de Prebisch que transcrevemos ainda há pouco. Pois invocar apenas este fator é formular em outras palavras a idéia de uma insuficiência dademanda de mão-de-obra que, no contexto desta concepção,aparece como um aspectoderivado (ao menos em parte) do dinamismoinsuficiente da demanda de produtos primários nos países centrais. Isto é(e dizêmo-lo sem intenção de menosprezar o peso dos chamados “obstáculos internos”): limitar-se a invocar aquele fator significaria até certo pontorepor , sob forma deslocada, explicação baseada nas condições de demanda<|ue é em si mesma, na sua formulação mais direta, vulnerável sob vários

20 Do ponto de vista da abordagemde longo prazo a que nos atemos no conjunto deste artigo, a referência aos ciclos econômicos nas economias centrais e suas repercussõesna periferia têm valor quase que estritamentedescritivo. Mas é verdade que se pode encontrar nos primeiros escritos “cepalinos” de Prebisch fórmulas nas quais, explicitamente, arepetição de fenômenos cíclicos desta natureza é apresentada comoexplicação do processo secular de piora dos têrmos de troca. (Ver, por exemplo, R. Prebisch,“Interpretação de Processo...”,op. cit., p. 79).

Geralmente associadas a esta versão (ou a este aspecto) da teoria, existem inter pretações que põem em destaque a administração oligopolista dos preços nos pa ísescentrais; como um fator tendente por si só a desequilibrar os termos de troca em pre

ju ízo da periferia. No quadro de nosso modelo , este elemento poderia ser in troduzidoformalmente seguindo as indicações da nota n? 9 atrás. Mas é dificilmente concebível,

pelas razões apresentadas no fina l da segunda parte deste artigo, que se possa explicar por este caminho um processo contínuo e pers istente de modificação dos term os de intercâmbio, pois isto exigiria umadiferenciação crescente e virtualmen te ilimitada das taxas de lucro na economia m undial.

Assim, é com estranheza que, num artigo recente e excepcionalmente interessante e útil sobre a história das idéias da CEP AL, encontram os nestes termos um elo estratégico do raciocínio original de Prebisch: “... Como nos países industrializadosexiste

pressão sindical para manter o nível dossalários e a produção industrial organiza-se detal forma que osoligopólios defendem a taxa de lucro, os preços não declinam propor

cionalmente ao aumento da produtividade.” (Fernando H. Cardoso, “La originalidadde la copia: la CEPAL y la idea de desarrollo”,in Rev ista de la CEPAL, n? 4, 2? semestre de 1977, p. 12 e 13). Ora, no próprio texto de Prebisch citado pelo autor deste artigo, a ênfase está posta no prim eiro fator, e não no segundo; embora fale das “limitações da concorrência” no cen tro, Prebisch diz literalmente que “ dura nte a crescente,uma parte dos lucros se foi transformando em aumento de salários, pelaconcorrência dos empresarios uns com os outros e pela pressão sobre todos eles das organizações operárias.” (R. Prebisch, “O Desenvolvimento Econômico...”,op. cit., p. 59) No mesmosentido, Prebisch afirma, em seu óutro escrito clássico désta época onde desenvolve umaanálise mais detalhada sobre o tema dos ciclos: “Para sermos breves, nos referiremosapenas aoaumento de salários, em virtude de ser esteo fenôemno de maior importân

cia... ” (“Interpretação do Processo...”,op. cit., p. 82. Todos os grifos nas citações contidas nesta nota são nossos - E.P. - ) .

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aspectos diante de objeções de proveniência diversa (neoclássica ou baseadana obra de Emmanuel). É compreensível e legítimo que urna teoría que naceu sob a inspiração e mesmo sob a pressão de problemas concretos, colocados pela realidade das economias latino-americanas numa determinadfase de seu desenvolvimento, tenha dado destaque e se referido reiterada

mente a fenômenos tão dramáticos como o desemprego (ostensivo ou difarçado) e o sub-emprego. Mas, se desenvolvêssemos ao limite as implicaçõdo raciocinio que estamos discutindo, ele nos levaria à conclusão de que absorção integral deste excedente de mão-de-obra seria uma condiçãosu

ficiente para a elevação dos salários (e, conseqüentemente, para evitar a deterioração dos termos de troca). No entanto, podemos encontrar ao menouma passagem, no primeiro artigo de Prebisch publicado em nossos paísonde, ultrapassando por momento o exame dos problemas mais imediatoque constituiam o centro de suas preocupações, ele se refere a este limit

hipotético para indicar nitidamente que a condição acima mencionada para elevação geral dos salários serianecessária mas não suficiente, precisandoser combinadacom o aumento da produtividade nos setores de produçãovoltados para o mercado interno:

“Dissemos, ao começar, que havia dois meios de melhorar a rendareal. Um, o aumento da produtividade, e outro, o reajustamento da renda na produção primária, para ir atenuando sua disparidade relativamente às rendas dos países industriais.

O segundo só se poderá conseguir na medida em que se vá alcançando o primeiro. Conforme aumente a produtividade e a remuneração real média na indústria dos países latino-americanos, terão que isubindo nestes os salários da agricultura e da produção primária em geral, como ocorreu em outras partes21Esta expressão “outras partes” significa aqui, sem dúvida possível

o centro desenvolvido do sistema capitalista mundial, onde (comparativmente) não existe o mesmo grau de heterogeneidade das condições de prodção e de produtividade dos diferentes setores da atividade econômica. Nabertura de um outro escrito contemporâneo deste que acabamos de citaPrebisch começa por nos falar da “relativamente lenta e irregular (...) expan

21 R. Prebisch, “O Desenvolvimento Eco nômico...” ,op. c it , p. 83. Neste mesmo artigo, Prebisch explicita sua concepção sobre o mecanismo através do qual o aumento d produtividade na indústria se propag a, alcançado a agricultura e outros setores voltado para o mercado in tern o: “Tem os insistido em que, para alcançar esse aumento de pro dutividade, é necessário aum entar, sensivelmente, o capital por homem , e adquirir a técnca de seu emprego eficaz. Esta necessidade é progressiva. Com efeito, ao aumentaremem geral, os salários, pela maior produtividade da indústria,estende-se gradualmente a alta a outras atividades, obrigando-as a empregar maior capital por homem, a fim de conseguir o aumento da produtividade, sem o qual não poderiam pagar salários mais al

tos. Assim, ir-se-á impondo, na América Latina, a mecanização de muitas atividades emque hoje é mais proveitoso o trabalho direto, por ser este mais barato, como se impora mecanizaçãoda economia doméstica. (Idem, p. 80. Os grifos são nossos - E.P. - ) .

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silo universal do progresso técnico» sujo impulso, partindo dos países em quelove origem, se estendeu, pouco a pouco, a todo o mundo22.” Na periferia,“extensa e heterogénea”, “os movos métodos de produção atingem, em primeiro lugar, aquelas atividades que estão ligadas, por um meio ou outro,Aexportação de gêneros alimentícios e matérias-primas (...). Extensas regiõesse articulam ao sistema económico mundial, enquanto outras, igualmenteextensas e acusando, como regra geral, maior densidade de população, continuam até hoje à margem do âmbito desse sistema. É evidente a desigualdadede desenvolvimento deste fenômeno2 3 E a tendência à piora dos termosde troca para esta periferia, por sua vez, aparece como “um fenômeno essencialmente dinâmico” e “estreitamente ligado à forma de expansão universal de progresso técnico24

Eis aí o determinante e a condição fundamental a que nos referíamosacima: o desenvolvimento desigual no sistema capitalista mundial e no interior de seu polo periférico2 5. Isto é praticamente uma conclusão e, à luzdo que já dito anteriormente, não haveria mais nada a esclarecer ou acrescentar, por enquanto, se não tivéssemos ainda algumas promessas a cumprirantes de pôr um fecho neste artigo. Na segunda parte, quando apresentamosnosso modelo básico, perguntamo-nos de passagem se a validade e a relevânciade nossas conclusões não seriam prejudicadas1?) pela ausência do tratamento dos fatores que determinam a especialização dos diferentes países na divisão internacional do trabalho e2?) pela não consideração dos efeitos dascondições de demanda na determinação dos preços relativos. Como anun

ciamos antecipadamente que a resposta prometida seria breve, podemos dizer que os elementos para esta resposta já estão dados. Com relação ao primeiro ponto, deve-se notar que ele só seria relevante para a discussão aquidesenvolvida se a deterioração dos termos de troca fosse tendência queafetasse não determinado grupo de países definido por sua posição periférica na economia mundial, e sim determinada categoria de produtos definida por suas características enquantobens, ou objetosúteis. Quanto aosegundo ponto, cabe observar que o modelo em que apoiamos nossa argu

22 R. Prebisch, “Interpretação do Processo...”,op. cit., p. 723 Id em , p. 9.24 Id em , p. 63.25 Mesmo em seu artigo sobre política comercial publicado em 1959, onde a presença doinstrumental analítico neoclássico é excepcionalmente marcante e extensiva, quando ocomparamos com seus escritos ante riores . Presbisch não deixa de justapor este fator fundamental à menção da elasticidade renda da demanda, no parágrafo em que resume suaconcepção sobre o movimento dos termos de intercâmbio: “Em última instância, a pressão sobre os preços de exportação e atendência correspondente à deterioração dostermos de troca, no processo de crescimento periférico sujeito ao jogo irrestrito das forças do mercado, é o resultado de disparidades na elasticidade renda da demandae da forma desigual através da qual o progresso técnico se difundiu na economia mundial, provocando enormes disparidades nas densidades tecnológicas.” (R. Prebisch, “Commercial Policy in the U nderveloped” ,op. cit., p. 261. Os grifos são nossos - E.P. - )

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mentação incorpora implicitamente os pressupostos teóricos de concepção ecnômica pré-marginalista que jamais negou, em qualquer de suas variantes, o faóbvio de que os preços estão sujeitos a oscilações conjunturais resultanteda interação entre a oferta e a procura, tendo apenas sustentado a idéia dque estas variações se dariam em torno de preço médio (chamado “preçnatural”, “preço necessário” ou “preço de produção”) determinado exclusivamente pelas condições de produção das mercadorias. Esta concepçãé legítima, desde que nos desembaracemos (haveria alguma razão suficietemente forte paia não faze.-lo?) da ficção teórica de uma curva de custocrescentes ou decrescentes de “longo prazo”.

Mas dizer isto não basta para concluir, pois é previsível que se levante contra o modelo aqui utilizado uma última objeção, proveniente de out perspectiva. Refiro-me aqui àqueles que certamente dirão (ou, no mínim pensarão) que a ênfase que é posta na parte final de nossa análise sobre caráterdinâmico do processo de deterioração dos termos de troca é absolutamente incompatível com o uso de um “modelo de equilíbrio estáticoonde os coeficientes técnicos sãodados e âparecerealizada uma igualdadedas taxas de lucro entre diferentes setores e países. Estes coeficientes técncos (perguntarão) não estão sendo permanentementemodificados pelasmudanças tecnológicas que acompanham e são parte essencial de processo dacumulação de capital? A desigualdade entre as taxas de lucro não está sem pre sendo recriada ao longo deste processo? A igualação das taxas de lucrnão existe então apenas comotendência que nunca se concretiza de fato emmomento algum numa situação de “equilíbrio”? A resposta a todas esta perguntas é, evidentemente, afirmativa. Mas faz-se necessário acrescenta(infelizmente) que o movimento dos preços relativos, que é a manifestaçãmais visível de todos estes processos, é um tipo de movimento que só pde ser elucidado teoricamente, compreendido em sua natureza e sua dreção, dominado analiticamente, sob a condição de que o consideremos d ponto de vista de seulimite, mesmo sabendo que a própria definição deste limite (que é uma hipotética situação de “equilíbrio”) está sendo alterada cada instante pelas transformações mencionadas, e que portanto nenhumlimite (nenhum “equilíbrio”) é jamais alcançado pelo sistema em seu pecurso. A objeção é, portanto, superficial e, no fundo, obscurantista, poiquaisquer que sejam os méritos dos que defendem esta espécie de argumentou os méritos intrínsecos do próprio argumento, e seu efeito “líquido” nã pode ser outro senão este: reforçar sentimento ilusório de confiança no supotamente já sabido e incentivar um menosprezo automutilador diante das ptencialidades abertas pela escola neoricardiana contemporânea.

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Nota s a dic ionadas p elo Coo rdenad or

I Conformeé explicado na primeira parte do artigo (introdução), seu tema é a análise dos pontos de convergencia e das diferenças existentes entre duas concepções teó-iU hn mío ortod oxas surgidas no pós-guerra tendo por objeto as relações com erciaisen Ire países desenyolvido e subÜesenvolvidos.

Na segunda parte do artigo é ap resentado um modelo de tip o neoricard ia norom quatro setores, incorporando hipóteses extraídas dos trabalhos dos principais re presentantes das teorias acima mencionadas, tais como as desigualdades tecnológicascutre o centro e a periferia da economia m undial e no interior do polo periférico dosistema (Prebisch) e a tendência à igualação das taxas de lucro entre diferentes países(Kmmanuel). A discussão baseada neste modelo, que conclui pelo desenvolvimentoiliis razões pelas quais seria legítimo adotar esta última hipótese, está focalizada em suamulor parte no questionamento do estatuto de variável independente atribuído por I mm anue l à taxa de salario.

Na terceira parte é aprese ntado um exem plo numérico calcado no modelo anterior. Através de variações sucessivas intraduz idas nos parám etros iniciais, exibem-se

¡is relações e diferenças existentes entre os fenómenos da deterioração dos termos detroca e d o intercam bio desigual, e esclarecem-se alguns po nto s de divergencia entre asduas concepções.

Na quarta e últ im a parte , através de um exame dos primeiros escritos de Pre bisch como economista da CE PAL, procura-se m ost ra r que as característica s do modeloanteriormente apresentado refletem efetivamente os aspectos mais importantes desua concepção original. Esta parte do trabalho se desenvolve através de uma polêmicasucinta com interpretaçõ es alternativas. (Cópia do resum o feito pelo Eginardo.)

2.“Em primeirolugar, relendo meu artigo, não consigo encontrar nenhuma passagemem queeu tenhaafirmado pertencer à “escolaneoricardiana”.(Carta a um amigo, em 27/8/19 80)

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MUDANÇAS NO PADRÃO DE ACUMULAÇÃO NO APÓS-GUERRA

O impacto historicamente mais relevante da crise de 1929 sobre a enomia brasileira consistiu, como se sabe, no deslocamento do núcleo dmico do desenvolvimento do setor primário-exportador para o setor intrial voltado para o mercado interno. O processo de industrialização decadeado nas décadas que se seguem a esta grande viragem atinge um “auhistórico no ano de 1961. A taxa de crescimento alcançada neste anoseria suplantada recentemente, noboom que se sucede, a partir de 1968,aos anos de relativa estagnação da década de 60.Se concentrarmos nossa atenção nos três decênios posteriores à crdos anos 30, a evidência empírica disponível aponta a década de 50 coum período de substanciais transformações na natureza deste processoindustrialização. Em sua primeira etapa, é realizada e praticamente ccluída a substituição, pela produção interna, de bens de consumo genezado como tecidos e alimentos, anteriormente supridos em proporçapreciáveis através de importações. Deste modo, embora a produção intde matérias-primas e produtos intermediários (tais como ferro, aço emento) cresça a um ritmo mais acelerado que a de bens de consumo noríodo anterior a 1950, este pode não obstante ser caraterizado, de um pode vista puramente descritivo, como o período em que se processa e c pleta a substituição de importações de bens de consumo não-duráveis. A dteira conquistada por estes itens no processo de substituição (apesar menores taxas de crescimento relativo dos ramos que os produzem) explse tanto pelo fato de que tais ramos têm um peso limitado no valor da prção industrial de nação desenvolvida, como pelo fato de que seu desenvimento, no país, antecede o período da industrialização post-30, e remoa etapa primário-exportadora. Na segunda etapa do processo de industrzação, em contraste, passa a predominar a substituição de outra categde produtos, os bens de capital e os bens de consumo duráveis (autoveis, eletro-domésticos, etc.), enquanto se promove igualmente, a ritmo

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lerado, a substituição de outros insumos básicos, como os derivados do petróleo. Ainda de um ponto de vista empírico podem-se agregar outros traços que foram habitualmente postos em destaque para caracterizar a novaetapa por oposição à anterior. Assim, à medida que se introduziam no paísnovos ramos “modernos” sobre a estrutura preexistente das indústrias “tradicionais, as mutaçõe". tecnológicas realizadas na economia, com ênfasecrescente em técnicas poupadoras de mão-de-obra, desaceleravam o ritmo deexpansão do emprego no setor industrial e davam base à presença progressivamente dominante do Estado e da grande empresa estrangeira como agentesdo processo.

Estes contrastes colocaram para todos os autores mais importantes(|ue se ocuparam da industrialização brasileira o problema de explicar tantoa ordem histórica de sucessão das duas etapas, como o de definir sua natureza e os mecanismos de passagem de uma à outra. A ênfase nos diversos aspec

tos do problema e a maneira de formulá-lo, evidentemente, variam tanto quantoas interpretações propostas. Segundo as interpretações mais antigas, tratava-se basicamente de elucidar a ordem de substituição dos itens na pautade importações e o fenômeno conexo de que, num período dado, determinadas indústrias em expansão acelerada tomam a dianteira sobre outrasno processo de substituição. Como a composição da oferta industrial estáintimamente ligada à estrutura da demanda, e esta última à distribuição darenda, o predomínio da produção de “artigos de luxo” como os bens duráveis de consumo foi associado às tendências concentradoras da distribuiçãono período mais recente. Mas ainda retendo o conjunto das característicasque empiricamente opõem as duas etapas, pode-se julgar mais importante,segundo outras visões, explicar o papel dominante que recentemente cabe aoEstado e ao capital estrangeiro, assim como o caráter específico do processode acumulação oligopólico que é promovido por estes agentes. Nesta ótica,o corte histórico entre as duas etapas situa-se mais precisamente em 1956,quando se configura, usando a nova terminologia, uma mudança no “padrãode acumulação” na economia brasileira. Para salientar, por um momento,a continuidade entre as várias abordagens da questão que procuraremosconfrontar em seguida, pode-se notar, de passagem, que uma das raras (senãoa única) definição que encontramos para a expressão “padrão de acumulação” traz ainda a marca das discussões anteriores a respeito dos nexos entretransformação da estrutura da produção industrial e tendências à concentração da renda. Assim, segundo Maria Conceição Tavares, tratar-se-ia de estudar“o modo pelo qual um sistema econômico vai modificando, historicamente,os seus padrões de acumulação, isto é, de como se modificam, dinámicamente, as relações entre diferenciação da estrutura produtiva e a distribuição social da renda1.”

1Maria da Conceição TAVARES, Acumulação de Capital e Industrialização no Brasil, texto mimeografado, 1975, p. 14.

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Pretendemos pôr em confronto, aqui, um certo número de textonde estas diferentes interpretações foram desenvolvidas. Estes textos tuam-se, de um modo geral, num nível de abstração intermediário entreque poderia ser uma “teoria do desenvolvimento capitalista” e as análiconcretas sobre a história econômica, nacional. Ao construir seu própobjeto, eles retêm ou destacam, na realidade histórica de referências, apeum número limitado de características não necessariamente exclusivas do pem questão, e procuram exibir a lógica interna do movimento deste obje de suas transformações. Trata-se, portanto, de “teorias da industrializa periférica” , cuja eficácia explicativa vai além, até certo ponto, do caso brleiro a que elas se referem.

O trabalho clássico sobre a industrialização brasileira é q Auge e Declínio do Processo de Substituição de Importações, de Maria Conceição Tavares, escrito nos primeiros anos da década de 60. Neste texto, encontramresposta à primeira de nossas questões. Nos anos 30, quando a crise comme violentamente a demanda dos produtos primários exportados e o pode compra externo da economia, este é reservado aos produtos mais essciais, e a demanda de bens de consumo se desloca das importações par parque industrial já existente no país. Deste modo,

“A substituição inicia-se, normalmente, pela via mais fácil da pdução de bens de consumo terminados, não só porque a tecnolognela empregada é em geral menos complexa e de menor intensidade capital, como principalmente porque para estes é maior a reserva mercado, quer a preexistente quer a provocada pela política de mércio exterior adotada como medida de defesa2.”O fator tecnológico que M. C. Tavares menciona, dando-lhe import

cia secundária, será posto em destaque como peça básica de interpretaçi \ mais recentes. Decisiva, aqui, segundo a autora, é a preexistência da dema

de bens de consumo. Mas no que se refere à ordem cronológica da subtuição dos produtos a explicação de M. C. Tavares vai concentrar-se nos pulsos que conduzem a que este processo atinja, sucessivamente, as mrias-primas e outros insumos (como os bens de capital), à medida em quexpansão da produção interna e o crescimento da demanda industrial bens de produção provoca novos pontos de estrangulamento, colidindo ca reduzida capacidade de importar da economia. Assim, a discussão está trada na ordem de sucessão entre bens de consumo em geral e bens de dução, o modelo deixa em aberto a questão distinta da procedência dos bde consumo não-duráveis sobre os duráveis (embora o “fator tecnológisupracitado pudesse ser coerentemente invocado como explicação).

A carência dkquele texto clássico quanto a este último ponto (a dem bens não-duráveis/duráveis) vai refletir-se num desenvolvimento t

2Maria da Conceição TAVARES, Auge e Declínio do Processo de Substituição de Imptações no Brasil, in Da Substituição de Importações ao Capitalismo financ eiro . Zahar tores, Rio de Janeiro, 1973, p. 42.

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rico posterior: a conhecida tese de Antonio Castro sobre o papel de “matriz” estrutural que o setor agroexportador teria desempenhado no desenvolvimento e conformação do setor urbano-industrial. E verdade que as análises de Castro a respeito do desenvolvimento da industria no Brasil se diferenciam da interpretação centrada sobre a “substituição de importações”

:io enfatizar seu caráter “descentralizado” numa primeira etapa e ao procurarem sobretudo a chave histórica de suas especificidades regionais. Nãoobstante, a tese da “agricultura-matriz” , enunciada num alto nível de generalidade, retém traço fundamental daquela interpretação: o impacto decisivo da estrutura da demanda preexistente sobre os rumos do desenvolvimento industrial. Segundo Castro, o caráter excludente da economia ruralna fase primário-exportadora e a elevada concentração da renda ai vigenteteria orientado precocemente a industria brasileira no sentido de suprir uma demanda de artigos de lux o, gerada pelas camadas de altas rendas. Como as indus

trias de onde provérri estes bens operam com tecnologia moderna e poupadorade mão-de-obra, a concentração da propriedade industrial e o débil dinamismo da criação de empregos nas cidades perpetuariam as tendências concentradoras do sistema à medida em que nele ganhasse um peso crescenteo setor industrial. O resultado histórico, segundo Castro, é que “o setoragrícola projetou sua imagem sobre o mundo urbano-industrial3”, significando isto que

“As disparidades distributivas, o carátér excludente, etc., do universo rural estariam tendendo a reproduzir-se no próprio processo deindustrialização4”.A este nível de generalidade, a tese enunciada não nos permite com

preender o aspecto aqui destacado da ordem de sucessão no desenvolvimentodas diferentes industrias. Ao contrário, o fenómeno torna-se, deste ponto devista, paradoxal: por que razão, antes da implantação de um ampio parque produtor de duráveis nos anos 50, ter-se-iam expandido predominantemente,durante duas décadas em que o peso do setor agrícola ainda sobrepujava odo setor industrial, os ramos de bens de consumo não-duráveis, cujos produtos entram na cesta de consumo dos trabalhadores urbanos? Somente umaanálise mais desagregada poderia dar substância aos vínculos causais estabelecidos por Castro, na medida em que permitisse mostrar que mesmo no interior destas indústrias de bens de consumo generalizado ganham um pesocrescente, desde a etapa mais remota do processo, os itens mais sofisticadosdestinados aos grupos de alta renda.

Diante destes argumentos, é preciso recorrer, para explicar este aspecto da sucessão de etapas da substituição de importações às versões da teoriaque vêem a concentração da renda não como uma herança do setor primá-

3 Antonio Barros de CASTRO, Agricultura e Desenvolvimento no Brasil, in 7 ensaios so

bre a Economia Brasileira, vol. I, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1969, p. 28.4Idem,p. 27.

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rio-exportador mas, antes, como um resultado da própria dinâmica internado desenvolvimento industrial. Um exemplo notório é o oferecido por CelsoFurtado, emSubdesenvolvimento e Estagnação na América Latina. Na eta pa inicial do processo, expande-se predominantemente a produção de artigos de consumo não-duráveis. Ao nível de abstração em que é construído omodelo, o salário real :dos trabalhadores urbanos é considerado fixo num baixo patamar determinado pelos padrões vigentes no setor agrícola5. À medida em que a indústria se desenvolve,- os incrementos de produtividade, nãose traduzindo em salários mais altos, fazem com que a renda se concentrenas mãos dos não-assalariados. O perfil da demanda, em conseqüência, desloca-se progressivamente e dá lugar a um peso crescente da demanda de bens dconsumo duráveis. A estrutura produtiva é completada, assim, sucessivamente, com a introdução de novos “andares” : ramos de produção que su pram demanda de artigos de luxo e empregam uma tecnologia “moderna” provocando uma elevação gradual da relação capital-trabalho. Na elevaçãodesta razão, incide igualmente a diversificação dos produtos e a impossibilidade de realizar economias de escala, dadas as pequenas dimensões dos mercados de altas rendas. O mesmo efeito é produzido, simultaneamente, peloavanço do processo substitutivo em direção aos bens de capital. A elevaçãoda relação capital-trabalho reforça, por sua vez, a tendência ao declínio da participação dos salários no produto. Estes mecanismos dão origem, segundFurtado, a um “processo cumulativo circular6” que tende a conduzir o sistema à estagnação. Para este resultado, é decisiva a tendência ao declínio da

razão produto-capital, que se traduz na queda da taxa de lucro, malgrado aexistência de processo simultâneo de concentração na repartição do prbdutoem benefício dos lucros.

Se a despimos da roupagem neoclássica de sua formulação, e a tradu-zimo.s em outros termos (violentando em certa medida a concepção do autor), esta tese de Celso Furtado aparece como uma versão especial da lei detendência ao declínio da taxa de lucro, na qual os mecanismos que promovema elevação da composição orgânica do capital (o análogo marxiano da relação capitâl-trabalho) são típicos de economia dependente e periférica numa

etapa determinada (e transitória) de seu processo de desenvolvimento. Uma“tradução”, deste tipo, malgrado sua relativa arbitrariedade, permite destacar os aspectos do problema que põem em questão a lei do valor. E é desta perpectiva que deve ser julgado o acerto da crítica endereçada a Furtado poM. C. Tavares, em Além da Estagnação. Esta crítica, que se desdobra em di

sCelso FURTADO, Subdesenvolvimento e Estagnação na América, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1966, p. 79. (Note-se que a idéia da influência depressiva exercida pelas condições de vida miseráveis do trabalhador rural sobre os salários urbanos esttambém presente na tese de Antonio Castro. Neste sentido, evidentemente, ele tem razão ao susten tar que o universo rural transmite suas características excludentcs e concentradoras à sociedade urbano-industrial.).6Celso FURTADO, op. cit., p. 80.

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versos aspectos, tem como cerne teórico a negaçãd da necessidade da quedada taxa de lucro prevista por Furtado, tanto porque o progresso técnico pode ser poupador de capital (o que tende a evitar a elevação da composiçãoorgânica) como porque a concentração da renda em benefício dos lucrosaumenta a taxa de exploração de modo a compensar- os efeitos do aumento

da composição orgânica7. Com efeito, pode-se observar que, na medida emque a elevação da composição orgânica ocoYre pela transformação da técnicanas indústrias “tradicionais”, ela torna ipaiá baratos, artigos de consumooperário e com isto tende a diminuir o preço da força de trabalho (desdeque preservemos a hipótese abstrata de urri salário real fixo, como no modelo de Furtado). E na medida em1que a cümposição orgânica sobe em decorrência da introdução de novos ramos de bèns duráveis tampouco pode-se esperar por esta via um declíxlio da taxa de lucro: a lei do valor nos'ensina (em suas versões mais acabadas na linha *de Bertkiewiczpu Sraffa) que estes ramos, produtores de artigos de luxo ou de produtos “não básicos”, nãodesempenham nenhum papel ativo na determinação da taxa de lucro, por não participarem da reprodução material da força de trabalho ou dos elementosque compõem o capital constante. Assim, o acréscimo destes novos ramos,mesmo quando envolve aumento da composição orgânica média do sistema,se traduz, em termos macroeconômicos através do processo de formação de preços relativos, num aumento da razão produto-capital e num conseqüentemovimento compensatório ascendente da taxa de exploração (medida em preços, e não em valor-trabalho).

Mas existe outro aspecto da tese de Furtado que é menos contestáveldesde que se preservem os pressupostos básicos do modelo de industrialização por substituição de importações. Neste modelo, conforme a exposiçãoclássica da própria M. C. Tavares, é a pressão crescente sobre a reduzida ca pacidade de importar da economia, à medida em que se avoluma a demandade bens de produção por parte da indústria em expansão, que eleva o preçodestes bens de modo a tornar rentável a produção interna. Assim, a entradana nova etapa é acompanhada por um encarecimento dos “elementos materiais do capital constante” através de mecanismos ligados às relaçõesexternas do sistema e sobre os quais os empresários de uma economia dependente

não possuem em princípio nenhum controle. No caso concreto do Brasil,em fins da década de 60, a importância destas considerações se reforça pelofato de que estavam desaparecendo as condições favoráveis que permitiam baratos os equipamentos importados através da manipulação das taxas de câm bio em benefício destes itens.

A conclusão extraída por Furtado é, assim, perfeitamente lógica, dentro da estrutura do modelo em que ele a insere:

“Em realidade, os preços relativos dos equipamentos começam aelevar-se a partir do momento em que se inicia o processo de industria-

7Maria Conceição TAVA RES, Além da Estagnação, in Da Substituição de Im portaçõesao Capitalismo Finan ceiro, p. 165.

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lização substitutiva, mas é somente quando esta elevação alcança umdeterminado ponto que a produção de equipamentos se torna economicamente viável... (...) Essa... elevação dos preços relativos dos equ pamentos, que caracteriza a segunda fase da industrialização substittiva, tem sérias repercussões no processo de formação de capital, tan

no setor manufatureiro como no agrícola. Tendo em conta que a taxa salário está determinada por fatores exógenos ao mercado, sendo etável, é de esperar que o declínio na relação produto-capital, causad pela elevação dos preços relativos dos equipamentos, traduza-se eredução da taxa de lucro8.”Conhece-se a resposta de M. C. Tavares a este tópico da argumen

tação de Furtado. “Não há nenhum motivo”, diz ela, “para admitir qua nível macro-econômico, a relação produto-capital necessariamente sofuma queda no momento em que se atualizam os rendimentos dos inves

mentos de infra-estrutura que permitiram a instalação das indústrias metamecânicas e de base9.” O problema, nesta direção, se reduz assim à quest(empiricamente solúvel) de se saber se as economias externas oferecidas empresas sob a forma de menores custos de energia e transporte compensriam o encarecimento dos componentes materiais do capital constantsuposto pela lógica do modelo. Mas é possível também, como questão preminar, por em cheque a própria validade do modelo: a implantação do setde bens de capital não é forçosamente precedida de encarecimento dos eq

pamentos importados, nem se faz necessariamente sob o estímulo econ

mico automático de uma demanda prévia destes itens, cujo atendimento v produção substitutiva tenha-se tornado já de uma urgência premente. E pode resultar de decisões de política econômica que se antecipam ao mmento em que o estrangulamento externo se manifesta, drásticamente, sa forma daquela elevação de preços. Por outro lado, deve-se por em destaqtambém o caráter predominantemente oligopólico do processo de acumlação neste período e as transformações da lei do valor próprias do captalismo monopolista. Ainda que isto não desminta a possibilidade de umelevação da razão capital-produto macro-econômica, a elevação desta raz

pode ser evitada para as indústrias mais modernas e de implantação marecente, uma vez que elas operam em condições de oligopólio nas quaisfactível a remarcação dos preços para cima, transferindo para os consumdores a pressão ascendente dos custos. Estas observações visam apenas incar que a crítica à tese de Furtado por M. C. Tavares, em Além da Estagnação, ganha consistência, retroativamente, em seu trabalho mais recentna medida em que aí finalmente a autora coloca no centro de sua análisecaráter oligopólio do processo de acumulação na etapa discutida e reconh

8Celso FURTADO, op. cit., p. 78.9 /Maria Conceição TAVARES, Alem da Estagnação, p. 166.

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ce também explicitamente que não se aplica a esta eiapa o modelo tradicional da “industrialização por substituição de importações1°” .

Deve-se a Francisco de Oliveira, em suaCrítica da Razão Dualista,0 primeiro ensaio de reinterpretação da industrialização brasileira que se distanciou da visão tradicional da “substituição de importações”, procurandoabordá-la como um processo de acumulação capitalista. Nesta perpectiva,Oliveira põe em destaque o conjunto de mecanismos (econômicos e políticos) que garantem a geração de ecedente suscetível de ser investido esua concentração nas mãos dos capitalistas industriais. Através de processo permanente de “acumulação primitiva11”, os setores mais “atrasados” ounão-capitalísticos da economia (como a agricultura e o setor de serviços)transferem para o setor industrial uma parcela do excedente que nelas é produzido1 . Por outro lado, a intervenção do Estado como regulador do

1°Maria da Conceição TAVARES, Acumulação de Capital e Industrialização no Brasil,

p. 116 e 133.1 Francisco de OLIVEIRA, A Economia Brasileira: Crítica à Razão Dualista, Estudos CEBRAP n° 2, outubro de 1972, p. 16.12A tese de Francisco de Oliveira a respeito do papel dos setores “atrasados” no “desenvolvimento desigual e combinado” do capitalismo brasileiro não está isenta de uma certa ambigüidade, e existem ao menos duas significações que lhe podem ser atribuídas que a tomam contestável. Se se pretende sugerir que os mecanismos de “acumulação primitiva” estão assentados na composição orgânica mais baixa destes setores (na medida em que neles prevaleçam relações de produção capitalistas), é verdade que o processo de formação de preços de produção envolve transferências de valor-trabalho em benefício da indústria, onde a composição orgânica do capital é superior. Mas estas transferências não têm de fato nenhuma importância particular, pois a formação dos preços de produção é

o mecanismo capitalista normal que tende , em última instância’, a nivelar as taxas de lucro e as possibilidades de acumulação entre os diversos setores. Este tipo de argumento pecaria, ademais, por omitir, no caso da agricultura, o problema da renda do solo, e não é invocado em nenhum momento por Francisco de Oliveira. No caso do Terciário, segundo seu próprio enunciado, a não-capitalização do setor favorece a acumulação industrial no sentido banal de permitir concentrar na indústria “os escassos fundos disponíveis para a acumulação propriamente càpitalística” (p. 29). Mas estas circunstâncias explicam não as possibilidades e o ritmo da acumulação de capital no país, e sim apenas sua orientação inter-setorial. E um problema decisivo é aqui, escamoteado: porque as técnicas menos “capitalísticas” são competitivas, de um modo geral, no setor Terciário, em confronto

com técnicas que envolvem uma composição orgânica mais elevada (e, por suposto, a existência de relações de produção capitalistas)? Oliveira não se esquiva deste problema ao tratar do caso da agrucultura, apoiando-se, aí, nos trabalhos de R. Miller Paiva. (p. 17, 18). No que se refere à “acumulação primitiva” assentada sobre o setor agrícola, a argumentação concentra-se na caráter extensivo de seu desenvolvimento (que permite o aumento da produção através da expansão da fronteira, exigindo basicamente “inves- timentos-trabalhos” por parte dos trabalhadores agrícolas na preparação de novas terras) e no efeito de contenção dos preços agrícolas exercido pela desprezível remuneração monetária destes trabalhadores rurais. Mas ainda aqui é preciso assinalar que a abundância de terra e mão-de-obra (relativamente ao nível atingido pela acumulação capitalista), ao permitir este desenvolvimento extensivo e a super exploração da força de trabalho constitui um determinante não do ritmo e das possibilidades do processo de acumulação, e sim de sua orientação e natureza. Isto é tanto mais verdadeiro porquanto o desen-

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preço da força de trabalho garante a taxa de exploração e a apropriação, pelos capitalistas, do excedente gerado na própria indústria. A legislaçãotrabalhista dos anos 30 é assim interpretada por Oliveira como tendo historicamente o significado inverso daquele que correntemente lhe é atribuído; longe de ter um caráter redistributista, a fixação do salário mínimo legal

teria sido o efeito de “igualar pela base”, contendo a abertura do leque desalários que eventualmente beneficiaria, no caso de uma barganha sindica-autônoma, as categorias de trabalhadores mais qualificados13.

Os pontos básicos da interpretação de Oliveira sobre o processo de acumulação industrial no Brasil podem ser resumidos como se segue, usandosuas próprias palavras:

“... O preço de oferta da força de trabalho urbana se compunha basicamente de dois elementos: custo da alimentação — determinado pelo custo de reprodução da força de trabalho rural — e custo dos bens e serviços propriamente urbanos, nestes ponderava fortementeuma estranha forma de “economia de subsistência” urbana (Oliveirarefere-se aqui às habitações operárias construídas nas horas de “folga” pelos próprios trabalhadores —E. P.), tudo forçando para baixo o preço de oferta da força de trabalho urbana, e, conseqüentemente, os salários reais. De outro lado, a produtividade industrial crescia enormemente, o que, contraposto ao quadro da força de trabalho, e ajudado pelo tipo de intervenção descrito, deu margem à enorme acumulaçãoindustrial das três últimas décadas. Nessa combinação é que está a raizda tendência à concentração da renda na economia brasileira14.”Ao discutir explicitamente o modelo cepalino tradicional da “substituição de importações” , Oliveira reconhece que “a descrição corresponde,

sinteticamente, à forma do processo15”, mas denuncia naquela análise a

volvimento recente do capitalismo no Brasil conduziu a canalizar seu potencial tecnológico crescente para a satisfação de uma demanda de artigos de luxo, dinamizando ramos de produção que não são essenciais em seu processo de reprodução em escala ampliada, a não ser na medida em que contribuem para a realização do excedente através do consumo improdutivo. Na ausência de um exército de reserva superabundante, a taxa de exploração seria provavelmente comprimida, orientando apenasem outra direção a trajetória do sistema sem comprometer necessariamente suas possibilidades de expansão. Da mesma forma, pode-se, neste nível de abstração, especular com a idéia de que a ausência de uma base natural favorável, permitindo um desenvolvimento agrícola “extensivo”, incidiria igualmente sobre a orientação setorial do processo de acumulação, e não sobre seu ritmo ou sobre sua viabilidade histórica. Se não existissem condições para o que Francisco de Oliveira denomina “acumulação primitiva” baseada na agricultura, a taxa de acumulação na indústria não seria necessariamente reduzida; é possível apenas que este processo de acumulação se desviasse para a produção de tratores ou fertilizantes ao invés de dinamizar a produção de bens de consumo duráveis.13 Francisco de OLIVEIRA, op. cit. p. 12.

14Idem, p. 19, 20.15Idem, p. 31.

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ausência de conceitos como “mais valia”, forma pela qual ele alude ao tratamento inadequado dos determinantes da taxa de exploração. Mas o papel decisivo que joga a taxa de exploração em sua análise leva-o a coincidir noessencial com a tese tradicional num ponto básico: a explicação da passagemda industrialização “extensiva” para a industrialização “intensiva” nos anos50. Sua explicação para a seqüência cronológica do processo substitutivodistingue-se da tese tradicional no que se refere à primeira etapa, não é a

preexistência de uma demanda de bens de consumo não-duráveis que explica a ênfase inicial no desenvolvimento destes itens, mas sim necessidadesditadas pelo próprio processo de acumulação. Produziram-se em primeirolugar bens não-duráveis porque estes incidem sobre o custo de reproduçãoda força de trabalho, que precisava ser rebaixado16. Como Oliveira afirmatambém que é o Estado através da fixação de “preços sociais” (com baseem tarifas, subsídios, etc.), que determina a rentabilidade relativa dos di

versos setores e dita os rumos do processo de acumulação17, deve-se entender que a procedência histórica da substituição dos bens não-duráveis sobreoutros itens resulta de uma decisão política consciente. Esta tese pareceestar destituída de qualquer respaldo na evidência histórica (Oliveira não invoca nenhum argumento neste sentido) e é a mais frágil de todas aqui resumidas sobre este problema. Mas ao tratar da passagem à “segunda etapa”em que predomina a substituição de bens de consumo duráveis, Oliveiraadere, no essencial, à visão que a entende como determinada por modificações da distribuição da renda, apesar do tom polêmico do texto onde o autor pretende estar investindo, ainda, contra a tradição cepalina:

“O fato de que o processo tenha desembocado num modelo con-centracionista, que numa segunda etapa de expansão vai deslocar-seo eixo produtivo para a fabricação de bens de consumo duráveis, nãose deve ànenhum fetiche ou natureza dos bens, ã nenhum “efeitodemonstração,mas à redefinição das relações trabalho-capital, à enorme ampliação do “exército industrial de reserva, ao aumento da taxa de exploração1*...”Tal como nos autores aos quais ele endereça sua crítica, no conjunto

do artigo (como Furtado), é a concentração da renda que explica, paraOliveira, a transição para a nova etapa. O traço distintivo de sua tese encontra-se na formulação mais complexa que ele apresenta para os determinantes do aumento da taxa de exploração.

Em O Capitalismo Tardio, de João Manuel Cardoso de Mello, encontramos uma visão alternativa da industrialização brasileira compreendidacomo um processo histórico de acumulação de capital. Embora interessado, como Francisco de Oliveira, em elucidar sua dinâmica interna, no contex-

16Idem,p. 23.

17Idem, p. 14.18Idem, p. 23.

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to de uma crítica à “Economia Política da CEPAL”, Cardoso de Mello nãocompartilha da resistência daquele autor em pôr em relevo as conseqüêncque têm sobre este processo as “relações externas” da economia brasilecom os “centros” do capitalismo mundial. Deste modo, a industrializaç brasileira é compreendida como um caso particular de industrializaçãoretardatária, o que significa, na .definição adotada pelo autor, que ela tem com ponto de partida uma economia exportadora capitalista e se realiza num mmento histórico determinado: aquele em que o capitalismo, em escala mudial, ingressou em sua etapa monopolista19. As características deste mmento histórico acarretam determinadas conseqüências sobre a natureza eetapas do processo de industrialização que se desencadeia no país periférico

A expansão da economia exportadora capitalista, centrada sobre produção cafeeeira, ao envolver o emprego generalizado do trabalho aslariado, faz com que se expanda o mercado interno para produtos indutriais e permite com isto o surgimento da indústria fabril. A partir dos an30, o crescimento dà indústria toma a dianteira do processo e se autonmiza com relação aos limites que anteriormente lhe eram impostos pelo cremento da demanda gerada no setor agroexportador. É a partir deste mmento em que se pode falar em industrialização no sentido próprio. Esta to significado histórico de fazer com que se complete a estrutura do modo produção capitalista dominante no país; as relações de produção caractercas deste modo de produção tornam-se predominantes, aqui, antes que constituam forças produtivas especificamente capitalistas. Para Cardoso Mello, a formação desta “base material” do capitalismo corresponde à i plantação dentro do país do Departamento I, isto é, do setor fabril produde meios de produção.

19João Manuel CARDOSO DE MELLO, O Capitalismo Tardio, texto mimeografado, 1975,p. 100 e 101.

20As concepções aqui resumidas sobre a industrialização brasileira foram desenvolvidas como resultado de um trabalho em conjunto por João Manuel Cardoso de Mello e Maria de Conceição Tavares. Esta última autora expõe sua própria versão em sua tese de livre docência, Acumulação de Capital e Industrialização no Brasil. Sua exposição tem a vantagem de apresentar uma análise mais detalhada das duas etapas deste processo de industrialização. Apenas algumas nuances separam os dois autores. Pode-se dar um exemplo referente a um ponto que não é destituído de importância. Cardoso de Mello enuncia com maior rigor um dos pressupostos básicos da interpretação em questão ao definir a industrialização retardatária como aquela que se processa, problemáticamente, naseconomias exportadoras e numa fase em que capitalismo central já transitou para sua etapa mono

polista-, os traços peculiares e as contradições desta industrialização decorrem de fato, na análise, destas duas características. Assim, Cardoso de Mello distancia-se do uso dado a esta expressão nos trabalhos de A. Gerschenkron, enquanto M.C. Tavares faz sua definição coincidir com a deste último autor, ao referir-se aos países de “industrialização retardatária” como sendo simplesmente “aqueles que não participaram da primeira revolução industrial”, o que incluiria a Rússia, a Alemanha e o Japão. (v. Acumulação de Capital e Industrialização no Brasil, p. 126,127).

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A primeira etapa do processo de industrialização vai ser caracterizada, nesta perspectiva, pelos limites e obstáculos à constituição destas forças produtivas especificamente capitalistas:

“Penso queem 1933 se inicia uma nova fase do período de transi

ção, porque a acumulação se move de acordo com um novo padrão. Nesta fase, que se estendeaté 1955, há um processo deindustrialização restringida. Há industrialização, porque a dinâmica da acumulação passa a se assentar na expansão industrial, ou melhor, porque existe um movimento endógeno de acumulação, em que se reproduzem,conjuntamente, a força de trabalho e parte crescente do capital constante industriais; mas a industrialização se encontrarestringida porqueas bases técnicas e financeiras da acumulação são insuficientes paraque se implante,num golpe, o núcleo fundamental da indústria de bensde produção, que permitiria à capacidade produtiva crescer adianteda demanda, auto-determinando o processo de desenvolvimento industrial21.”Indagar sobre o que mantêm restringida a acumulação neste período

inicial, impedindo a constituição plena do Departamento I, significa repor,sob nova forma, nossa questão anterior: por que predomina, nesta etapa,o desenvolvimento do setor produtor de bens de consumo? Cardoso deMello invoca em sua resposta o “fator tecnológico” já mencionado de passagem no texto clássico de M. C. Tavares. Mas ele articula aqui a influênciadeste “fator” a características da etapa monopolista e imperialista do capitalismo na qual se situa historicamente este processo de industrialização periférico. Nos países centrais, a entrada do capitalismo nesta etapa histórica, em fins do século passado, esteve associada à “Segunda Revolução Industrial” e às mutações decisivas que ela acarretou com o desenvolvimentoda “indústria pesada” (incluindo aí a siderurgia e a indústria química)22.A partir deste momento, a internacionalização do setor produtor de meiosde produção teria como pré-requisitos imensa concentração de capitais(para dotar as empresas das escalas necessárias) e o acesso a uma tecnologiaavançada- que não estava disponível no mercado internacional, uma vez que

era ciosamente retida pelas grandes empresas no “centro”, num contextointernacional de agudas rivalidades inter-imperialistas2 3. Compreende-seassim a inviabilidade do desenvolvimento do setor “pesado” de meios de produção com base no capital privado nacional. Estas circunstâncias apontavam o Estado e a grande empresa estrangeira como os agentes econômicoscapazes de promover este desenvolvimento. E, com efeito, o Estado brasileiro deu os primeiros passos nesta direção já durante a etapa da industria-

21 João Manuel CARDOSO DE MELLO, op. cit., p. 115, 116.

22Idem, p. 106.23 Idem, p. 107.

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lização restringida. Mas não seria possível atrair para tal empreendimento,até os anos 50, o capital privado estrangeiro. Este último fato encontratambém uma explicação em circunstâncias conjunturais, como as restriçõesà exportação de capitais vigentes no “centro” durante a Grande Depressão24.

Entende-se, assim, que o capital privado nacional tenha canalizado sua própria expansão para outros ramos onde sua entrada era relativamentemais fácil . “Estas são as considerações que explicam, no essencial” , afirma Cardoso de Mello, “a preferência” pela indústria de bens de consumoassalariado e não problemas de demanda “preexistentes” ou preços relativosde “fatores”26.” Deve-se entender por isto, certamente, que a demanda

preexistente (ou a gerada pela própria expansão industrial do período) secompunha também em parte de meios de produção, que se faziam necessários em volume crescente; não é o perfil da demanda que determina, neste

caso, os limites à diferenciação interna da estrutura produtiva do setor industrial e sim os obstáculos históricos apontados para a implantação rápidado Departamento I. Pois Cardoso de Mello deixa implícita a idéia de que omodelo clássico da “substituição de importações encerra uma interpretaçãoao menos parcialmente adequada dos mecanismos dinâmicos da industrialização brasileira em sua primeira etapa. O texto citado acima, em sua conclusão, aponta como característica da industrialização restringida os obstáculos que não permitem à “capacidade produtiva crescer adiante da demanda”. Isto sugere que nesta etapa ela crescia a reboque da demanda, oque a preexistência desta não era um elemento desprezível para determinara rentabilidade dos ramos produtores de bens de consumo, para os quaiseram atraídos os empresários privados nacionais. O poder explicativo domodelo cepalino se dilui apenas para a etapa daindustrialização pesada que se inicia em meados da década de 50:

“A industrialização restringida, conforme salientamos, configurouum padrão “horizontal” de acumulação, porque nem a capacidade produtiva cresceu adiante da demanda, nem muito menos houve grandes e abruptas descontinuidades tecnológicas.

A implantação de um bloco de investimentos altamente complementares.entre-1956 e 1961, correspondeu, ao contrário, a uma verdadeira “onda de inovações” schumpeteriana: de um lado, a estruturado sistema produtivo se alterou radicalmente, verificando-se um profundo “salto tecnológico” ; de outro, a capacidade produtiva se am

pliou muito à frente da demanda preexistente. Há, portanto,um novo padrão de acumulação, que demarca uma nova fase, e as carac-

24Idem, p. 122.

25ldem, p. 119.

26Idem, p. 107

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teristicas da expansão delineiam um processo de industrialização pesada, porque este tipo de desenvolvimento implicou num crescimento acelerado da capacidade produtiva do setor de bens de produçãoe do setor de bens duráveis de consumo antes de qualquer expansão previsível de seus mercados27.”A discussão procedente sobre os problemas da industrialização res

tringida permite compreender, por contraste, o papel estratégico que cabe,na promoção desta nova etapa, às grandes empresas estrangeiras e, princi palmente, ao Estado. Este, quer diretamente, via investimento público, querindiretamente, mediante o sistema de incentivo corporificado na políticaeconômica doPlano de Metas, atua decisivamente para lançar a acumulação do capital industrial, no Brasil, em sua nova rota2 8.

Ao interpretar a industrialização brasileira como processo de cons

tituição das “forças produtivas especificamente capitalistas”, isto é, como processo de constituição do Departamento 1, Cardoso de Mello é conduzidoa privilegiar, na diferenciação de sufis duas etapas, a oposição bens de consumo/bens de produção, deslocando assim o papel central que a oposição bens de consumo duráveis/não-duráveis ocupa em outras análises. Este par- ti-pris —aliado a outros elementos de sua concepção —permite-lhe obter umgrau de distanciamento crítico máximo com relação à visão tradicionalda “substituição de importações”. Uma das manifestações deste distanciamento pode ser encontrada no fato de que as tendências à concentração darenda inerentes ao processo de industrialização não desempenham funçãoalguma em sua análise. As causas e feitos destas tendências concentradoras poderiam, de- fato, ser a ela consistentemente integradas (mesmo em seu papel habitual de fornecer explicação para a ênfase recente na substituiçãode bens de consumo duráveis). Mas certamente ocupariam, no conjunto desta análise, um lugar subordinado.

Um dos efeitos dignos de nota dos pressupostos adotados é o fato deque a tese de Cardoso de Mello apresenta-se, num certo sentido, ao nívelde seus resultados, comoinversão das posições adotadas por Francisco deOliveira, apesar das preocupações críticas comuns e outras convergências(como a importância atribuída por Cardoso de Mello à “oposição salário/lucros” em sua análise mais detalhada da expansão industrial nas décadasanteriores a 1930). Esta inversão se manifesta no papel causal que é atribuído aos automatismos econômicos (ligados às pressões da demanda) ou àintervenção do Estado na determinação da trajetória da acumulação industrial brasileira em suas duas etapas. Para Oliveira, esta intervenção (resultadode uma decisão histórica consciente) é importante na primeira etapa, quandose promove a produção de bens de consumo popular com o suposto objeti

27Id'jm, p. 124.

2*Idem, p. 126.

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vo de baratear a força de trabalho, mas eleimplicitamente atribui à estrutura da demanda (condicionada pela concentração da renda herdada do período anterior) uma eficácia no sentido de orientar ulteriormente a acumulação para a produção de bens duráveis. Para Cardoso de Mello, ao contrário, ademanda preexistente temimplicitamente seu papel reconhecido entre os

motores da acumulação na primeira etapa, enquanto na etapa subseqüenteé a intervenção do Estado que é decisiva para pôr em marcha o processode industrialização pesada.

Poderíamos finalizar esta discussão com duas notas críticas com relação à tese de Cardoso de Mello, certamente a mais totalizante e dotada demaior eficácia explicativa entre as aqui apresentadas. A primeira diz respeitoao conceito de “forças produtivas especificamente capitalistas”. Como seviu, a constituição destas forças produtivas se define, para Cardoso de Mello, de um ponto de vista nacional e identifica-se à implantação, dentio do

país, do setor fabril produtor de meios de produção. Em conseqüência, osignificado histórico da industrialização brasileira, nesta concepção, guardaestranha similitude com o ponto de vista do “capitalismo nacional” queinspirava a “Economia Política da CEPAL”, alvo do esforço de superaçãocrítica do autor. O termo final do processo é concebido como a formaçãode uma economia capitalista nacional, autônoma e auto-suficiente. Assim,comenta Cardoso de Mello à respeito dos resultados do primeiro surto de“industrialização pesada” : “A industrialização chegara ao fim e a autodeterminação do capital estava, doravante, assegurada29.” Pode-se perguntarse esta concepção não sacrifica indevidamente um aspecto fundamentaldas forças produtivas características do capitalismo em sua etapa monopolista e imperialista: o fato de que elas transbordam, em seu desenvolvimento,as fronteiras nacionais. Não obstante, a “interdependência” das diversas“economias nacionais” que este fato envolve, na reprodução do capitalem escala mundial, não exclui evidentemente (antes, ao contrário) o pa pel privilegiado que determinadas economias nacionais conservam comocentros autônomos de geração e propagação do processo técnico. A objeção desloca-se, assim, para um outro plano: a conclusão que acabamos de citara respeito da “autodeterminação” conquistada pelo capital no país nãosuperestima, deste ponto de vista, a posição ocupada pelo capitalismo brasileiro no desenvolvimento desigual do sistema em escala mundial? Umaoutra significação poderia ainda ser atribuída àquela noção (jamais definida) de “autodeterminação” do capital. Trata-se da idéia de que a interna-lização do núcleo fundamental do Departamento I libertaria o desenvolvimento das forças produtivas no país do estrangulamento externo que periodicamente o ameaça. Não será preciso recordar, no entanto, que a experiênciarecente não confirma a hipótese de que tais barreiras tenham sido definitivamente eliminadas.

29Idem,p. 130.

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Uma segunda linha de observações refere-se às ambigüidades da noçãodiscutida de “preexistência da demanda” , com as diversas significações queela implicitamente assume ao longo do debate. Literalmente entendida, aquela expressão faria alusão à existência de um “mercado” que antecede no tem po e estimula o surgimento da produção. É claro que, em termos macroeconômicos, trata-se de idéia destituída de sentido, como o mostra o mais elementar dos modelos de crescimento; é a própria acumulação (ou investimento) que permite “completar” o montante necessário da demanda efetiva, ex pandindo-a através da cadeia de dispêndios a que deu origem. Assim, numatrajetória de equilíbrio do sistema, o surgimento de capacidade produtiva nova e acabada dá-se simultaneamente com a formação da demanda monetáriacapaz de absorver a produção. Mas a idéia de “demanda prévia” tem significado distinto na discussão sobre o processo de substituição de importações.Trata-se, aqui, num plano microeconômico, da composição qualitativa da

demanda (efetiva ou potencial). O estrangulamento externo e o declínio dacapacidade de importar da economia se manifestam (na medida em que onível de renda e o montante global da demanda efetiva são preservados, nacrise, pela intervenção do Estado) num desajuste entre a estrutura da produção interna e a estrutura da demanda. Isto significa que itens específicos anteriormente importados terão seus preços relativos inflados no mercado interno pela insuficiência momentânea da produção. A taxa de lucro dos ramos que os produzem será em conseqüência elevada acima da taxa médiado sistema, criando um foco de atração para novos investimentos. Neste

contexto, a “preexistência” da demanda refere-se à préexistência de determinado perfil da demanda, e ela explica eventualmente não o processo deacumulação, mas sua orientação inter-setorial, o fato de que a acumulaçãose desloca de outras atividades para determinadas indústrias. Neste sentido,existe uma “demanda prévia” de automóveis no Brasil dos anos 50 do mesmomodo que existe uma “demanda prévia” de tecidos na etapa inicial da industrialização. Isto é a estrutura da demanda neste momento (condicionada peladistribuição da renda) torna excepcionalmente lucrativa a produção de automóveis no país. Aqui, o núcleo racional da tese de Cardoso de MeHo reside

na idéia de que esta estrutura da demanda (potencial, uma vez que seus efeitos só se manifestam uma vez instaladas unidades produtoras daqueles bens)não constitui condição suficiente para que a produção seja desenvolvida, naausência do capital estrangeiro e de um determinado tipo de intervenção doEstado. Mas a proposição do autor vai ainda além: afirma-se que a capacidade produtiva criada, nestes novos ramos, excede, em suas dimensões, a demandaexistente no curto prazo (supostamente, aos preços que garantem uma margem de lucro satisfatória para as empresas oligopólicas que aí se instalam). Este fato, no entanto, está ligado à problemas de economias de escala e à insu

ficiênciatransitória

das dimensões da demanda nacional para estes novos produtos, no período inicial em que se desencadeia o processo de industrialização pesada. Subsiste, então, uma última dúvida: em que sentido esta proce

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dência da capacidade produtiva sobre a demanda poderia caracterizar de foma permanente o novo padrão de acumulação que se inicia em meados da dcada de 50? O único significado concreto que poderia ser atribuído a est

procedência, neste caso, consistiria no especial poder de antecipação dos agetes econômicos dominantes na nova etapa, o Estado e a grande empresa intenacional, para os quais é possível planejar seus investimentos (que envolveem muitos casos longos períodos de maturação) numa perspectiva de long prazo.

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CRITICA DA LEI TENDÊNCIAL DA BAIXA DA TAXA DE LUCRO

(ou Por que a elevação da composição orgânica não tem, em si mesma, nenhumefeito sóbré a taxa de lucro?*)

O enunciado da tendência à queda da taxa de lucro decorre, em Marx,de uma intuição baseada na teoria do valor-trabalho. Segundo esta última,o valor novo que é adicionado ao dos meios de produção preexistentes é deteminado pela quantidade de trabalho atual, realizado no período. Dada a quantidade de trabalho, na qual os trabalhadores reproduzem seus próprios meios desubsistência (trabalho necessário), a fração restante do tempo de trabalho total

(trabalho excedente) demarca o montante da mais-valia, isto é, aparte do valor/tota l produzido apropriada pela classe proprietária. Abstraídos outros efeitos, a; substituição permanente de trabalhadores por máquinas que acompanham a j acumulação de capital deve, portanto, implicar numa* substituição de trabalho

vivo (presente) por trabalho passado ou trabalho morto (incôrporado nosmeios de prodi^ão), comprimindo a mais-valia-. Deste modo, a razão entre amais-valia e o valor total dos meios de produção e da força de trabalho devedeclinar ao longo do processo de acumulação.

Assim, ao contrário de sua versão ricardiana, a lei tendencial não exige

como suposto nenhum aumento progressivo dos custos de produção (sejamou não estes últimos medidos em tempo de trabalho), no enunciado de Marx.■O declínio da taxa de lucro decorre da mera substituição de trabalho vivo por^trabalho morto no processo de produção. Admitindo-se que sejam idênticasas composições orgânicas nos vários setores da economia (isto é, as razões entre trabalho passado e presente nestes diversos setores) e que o capital fixo sedesgasta inteiramente no período de análise, o valor bruto total da produção

Situação 1

Situação 2

c-I

-> I ir

Tema também desenvolvido no livro do autor, “Valor e AcumulaçSo”.

I 19

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pode ser representado por urna barra horizontal como no gráfico atrás (ondeC + V representam, indiferentemente, os custos totais ou o capital total inves-

í tido, ambos medidos em valor). A substituição de homens por máquinas pode) provocar, segundo Marx, queda da taxa de lucro (S/C + V)apesar de se tra

tar de inovação redutora de custos (e mesmo apesar de que, como no gráfico,exista alguma elevação compensatoria da taxa de exploração, S/V).É a impossibilidade realdesta hipótese de declínio da taxa de lucro quetratamos, aqui, dé demonstrar. A presente crítica da lei tendencial de Marxobviamente não pretende excluir a possibilidade de que a taxa de lucro desça(ou se eleve), a curto ou a longo prazo, em conseqüência das transformaçõestécnicas que envolvem modificações nos custos de produção.

É importante sublinhar que lidamos aqui com o caso de uma “pura”elevação da composição orgânica do capital.

' Na análise de Marx, surge,como possibilidades efetivas do sistema, dois

[_casos de elevação da composição orgânica. Ambas se encontram expostas nocapítulo do livro I doCapital sobre A Lei Geral da Acumulação Capitalista. AO primeira possibilidade ocorre numa conjuntura de exaustão do exército indus

trial de reserva, quando a escassez de mão-de-obra e a conseqüente elevaçãodos salários incita os capitalistas a substituírem trabalhadores por máquinas.É claro (ainda que Marx não o explicite) que, em circunstâncias semelhantes,a inovação poderá implicar num custo de produção mais elevado do que aquele que se obtinha com a técnica anterior,antes da elevação dos salários, em bora o custo tenha se tomado inferior ao que seria imposto aos capitalistas

se, após a elevação dos salários, permanecessem utilizando a mesma técnicamais utilizadora de trabalho.© A segunda possibilidade está implícita na doutrina de Marx a respeito

da miséria crescente. Entendida como pauperizaçãoabsoluta (o que encontraapoio na maior parte das citações que podem ser extraídas do capítulo-men-

j cionado), esta significa que o exército dos desempregados é uma fração crescente (relativamente) da força de trabalho potencial. A doutrina está implicitamente ligada, portanto, à idéia de que o ascenso permanente da composiçãoorgânica não depende da pressão dos salários em alta, uma vez que, ao contrá

rio, é a elevação ininterrupta da composição orgânica que produz, como resultado, taxa de desemprego crescente e a pauperização da classe trabalhadora. Nesta hipótese, o único motivo racional para a substituição de homens pormáquinas deve se encontrar no fato universal de que a mecanização do trabalho acarreta diminuição dos custos de produção.

Consideraremos aqui, no entanto, um caso ideal e intermediário entre asduas possibilidades efetivas do sistema descritas por Marx: trata-se de uma

1 “pura” elevação da composição orgânica, isto é, de uma substituição de traba-l^lho vivo por trabalho morto sem nenhuma alteração no custo de produção. A

análise desta possibilidade, manifestamente irreal, não está, no entanto, destituída de interesse. Pois a lei tendencial de Marx se aplica, como indicamos,também a esta hipótese (assim como à hipótese aparentemente mais favorável

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à acumulação capitalista de uma inovação poupadora de mão-de-obra eredutora de custos). A análise deste caso ideal se justifica pelo fato de estarmos interessados em isolar os efeitos (se houver) da elevação da composiçãoorgânica enquanto tal, separando-os de outras perturbações possíveis do sistema de preços e da taxa de lucro que poderiam resultar de modificações doscustos. Se nossa conclusão é correta, isto é, se é sustentável que a elevaçãoda composição orgânica em si mesma não tem nenhum efeito sobre o sistemade preços e sobre a taxa de lucro, mantidos os custos de produção, suaconseqüência é que as inovações poupadoras de trabalho e redutoras de custosdescritas por Marx, não podem de modo algum produzir um declínio, e simumaelevação na taxa de lucro.

É claro que a própria determinação dos custos de produção dependedo sistema de preços, e esclarecimento preliminar pode ser feito sobre estaquestão. Na demonstração que se segue, os preços serão obtidos com basenas equações de Sraffa. Estaremos, deste modo, utilizando uma teoria do valor que é compatível com a orientação geral do pensamento de Maix com relação a este problema, isto é, uma teoria do valor, ou, se preferirem, dos preços, que os concebe como determinados pelas condições de produção de todas as mercadorias em conjunto, num sistema onde existem relações inter-setoriais (isto é, um sistema em que as mercadorias são ao mesmo tempo produtos e meios de produção, seja no setor em que são produzidas ou em outros setores da economia). Os preços sraffianos são legítimos preços de produção no sentido de que permitem o equilíbrio no processo de reprodução permanente do sistema, possibilitando a cada produtor (ou capitalista) readquirir os meios de produção consumidos e obter a taxa média de lucros coma realização do produto.

Num apêndice à demonstração propriamente dita, mostramos, atravésde exemplos numéricos, como os mesmos resultados podem ser obtidos quando calculamos os resultados das informações em valores-trabalho.

HIPÓTESES1

1) Tomamos como ponto de partida um sistema econômico dividido em trêssetores, I, II e III, que produzem, respectivamente, três categorias homogêneas de produtos: “equipamentos”, “alimentos” (consumidos exclusivamente pelos trabalhadores) e “artigos de luxo” (consumidos exclusivamente pelos proprietários dos meios de produção).C designa o capital constante (valor-trabalho total dos equipamentos utilizados),V o capital variável (parcela emvalor do capital destinada à compra de força de trabalho) eS a mais-valia total (medida, igualmente, em tempo de trabalho). Os índices 1, 2 e 3 acrescentados a estes símbolos faz com que indiquem as parcelas de capital empregadas (ou a mais-valia obtida) respectivamente nos setores I, II e III. Assim, Cé o capital constante investido no setor I; V, é o capital variável empregadoem III; S! é a mais-valia obtida em II etc.

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5 J N i

2) 0 sistema econômico considerado encontra-se em;equilíbrio de reproduçãosimples jde forma que são válidas as seguintes igualdades:

C, + V, + S , = Ci + C2 + C3

c2 +.V-2 +s 2 = Vj + v2 + v 3C3 + V3+S3 = S1 + S2 + S3

Estas igualdades expressam a correspondência entre o valor total do produto de cada setor e o valor total da demanda. Nelas está implícita, igualmente, a suposição de que o capital fixo (equipamento) se desgasta inteiramente no período de análise, necessitando ser reposto em sua totalidade. O período de produção é idêntico ao período de análise; os capitalistas adiantam (como capital variável) a totalidade da folha de salários expressada em valor-tra- balho.3) As composições orgânicas dos três setores são iguais. Isto significa que asrazões entre ocapital constante e o capital variável são iguaisentre os váriossetores, .eiguais, cada uma, â razão global C/V. Em conseqüência, as taxas delucro podem ser iguais sem que sejam distintas as taxas de exploração nos vários setores; estas últimas serão idênticas à taxa global S/V. Deste modo, sãoválidas as equaçõ*es abaixo:

C, _ C2 _ C3 _ C = c, + V, +Sj _ Cj V, _ s ,V! V2 V3 V c2 + v 2 + s2 C2 V, S2

S,- s2 _ S3 s c 3 + v 3 + S3 _ c 3 _ v 3 _ S3V, V3 ~ V ~~c2 + v2 + s2 C2 V2 s2

S, _ s2 _ S3 s C3 + V3 + s3 _ c 3 _ v 3 _ S3

C, C2 C3 ~ ~ c ~ Cj + V, +Si Cl V, S,

4) Escolhamos, agora, as unidades físicas de cada mercadoria de tal forma quea quantidade física total produzida, para qualquer mercadoria, seja idênticaao quantum total de unidades de trabalho (vivo e morto) empregado em sua produção. Isto significará, por exemplo, que se1 quilo de alimento é o produto de quatro unidades (horas) de trabalho, a unidade física de alimento escolhida será igual a 1/4 de quilo. Deste modo, o valor trabalho de qualquer unidade de produto será sempre igual a 1 (um). E os símbolos C, V e S designarão, respectivamente, tanto a quantidade total de trabalho empregada, respectivamente, nos setores I, II e III, como a quantidade total de equipamentos, alimentos ou artigos de luxo que é produzida.

Os símbolos V,, V2 e V3 designarão igualmente, daqui por diante, aquantidade de alimentos que é consumida pelos trabalhadores dos setores I, II

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e III, respectivamente; estas quantidades serão, evidentemente, proporcionaisàs quantidades de força de trabalho empregada e, em última análise, às quantidades de trabalho vivo realizado nos respectivos setores (na suposição de que,em todo o sistema, os trabalhadores recebem o mesmo salário real de subsis

tência e operam em idênticas condições no que se refere à jornada e à intensidade do trabalho). Por conseguinte, pode-se considerar os alimentos comosendo, indiretamente, meios de produção necessários à obtenção dos produtos em qualquer setor do sistema (tomando estes o lugar que é ocupado, naanálise que se concentra nos valores-trabalho, pelo tempo de trabalho necessário, isto é, pelo trabalho vivo e pago realizado nos diferentes setores).

De modo análogo, os símbolos Si, S2 e S3 podem passar a significar,além do tempo de trabalhoexcedente (não pago) realizado em cada setor, aquantidade de artigos de luxo que é comprada e consumida pelos capitalistasde cada setor com sua parcela do lucro total. Naturalmente, se pensamos emtermos de quantidades físicas, estas quotas setoriais de produtos de luxo nãoestão incluídas na definição das condições de produção dos diferentes setores,e só podem ser determinadas posteriormente à fixação da taxa de lucro e dosistema de preços. Só tem significadoa priori a grandezaS, soma daquelas 3

parcelas, representando a quantidade total de artigos de luxo produzida pelaeconomia.

São necessárias algumas qualificações adicionais para nossa hipótese de homogeneidade dos produtos de cada setor. Objeção que pode ser pertinentemente levantada refere-se ao caráter qualitativamente homogêneo dos equipamentos

produzidos pelo setor I, pois estes se destinam a três usos diferentes: produçãode equipamentos, de alimentos ou de artigos de luxo. Procuremos satisfazera exigência implícita nesta objeção, para perceber o que ela acarreta. Primei-ramente, teríamos que subdividir o setor I em três setores distintos: Ie, especializado em produzir equipamentos para a produção de equipamentos, Ia, produtor de equipamentos para produzir alimentos e I¡, produtor de equi pamentos para a produção de artigos de luxo. Mas uma objeção análoga poderia ser posta com relação a Ie : este subsetor, utilizando um mesmo tipo deequipamento (equipamento produtor de equipamentos), produz três tipos de produtos distintos:1) equipamentos que produzem equipamentos para a produção de equipamentos,2) equipamentos que produzem equipamentos paraa produção de artigos de consumo operário e 3) equipamentos que produzemequipamentos para a produção de artigos de luxo. Assim, a recusa a admitirque equipamentos homogêneos produzem mercadorias distintas nos obrigariaa subdividirad infinitum o setor I.

Poderíamos fugir deste impasse (evitando ao mesmo tempo complicar a

demonstração com uma multiplicação do número de subsetores) unificandodesde um primeiro estágio o setor I, e admitindo que os equipamentos homogêneos que ele produz podem servir para a fabricação de três tipos distintosde mercadorias.

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No entanto, não é necessariamenteesta a suposição que fazemos. Pode-se admitir que um mesmo tipo de equipamentoutilizado no setor I dê origem,no processo de produção, a três tipos de equipamentos distintos. A quantidade de equipamento, em geral, é avaliada em, digamos, quilos de um mesmometal (como ferro), e esta massa de metal é apenas amoldada de diferentesmaneiras quando é preparada para servir ao fabrico de equipamentos, de alimentos ou de artigos de luxo. Para que'estes três tipos de metal amoldado tenham o mesmo preço por quilo em qualquer caso (e possam, por conseguinte,ser tratados como mesma mercadoria) é suficiente incluir a suposição adicional que as condições de produção são idênticas para dar forma ao metal emqualquer dos três casos, isto é, que o tempo de trabalho por quilo de ferronão é diferente quando este é amoldado para se transformar numa ferramentaadequada para produzir um equipamento, um alimento ou um artigo de luxo.Quando, na demonstração, introduzimos a transformação técnica em algumsetor, estaremos supondo, simplesmente, que uma quantidade de metal um pouco superior (amoldada num tempo de trabalho proporcionalmente superior) permite obter a mesma quantidade de produto com o uso simultâneo demenos trabalho (ou, equivalente, de menos alimentos). Basta que a proporçãoentre a quantidade física de metal e o tempo de amoldagem se mantenha idêntica nos três tipos de equipamentos produzidos, quando se produzem novosequipamentos (equipamentos qualitativamente distintos) para que não ocorranenhuma ambigüidade quando nos referimos a um aumento da quantidadefísica de equipamentos produzidos e empregados, pois isto significará: uma

quantidade de metal maior (com o mesmo tempo de amoldagem por quilo demetal, qualquer que seja o setor a que se destina o equipamento).Dadas as hipóteses acima, consideremos agora o seguinte sistema de

equações:

1) (Cj x + Vi y) (1 + r) = (Cj+C2 +C3) x2) (C2 x + V2 y )( l + r) = (V,+V2 +V3) y3) (C3 x + V3y ) ( l + r ) - ( Sj+S2 +S3)

Se interpretamos os símbolos C, V e S como quantidade de trabalho,o sistema corresponde às equações de transformação de valores-trabalho em preços de produção de Bortkiewicz. Cada equação corresponde a um setor(I, II e III, na mesma ordem). Os valores de C, V e S, para cada setor, são constantes dadas, e correspondem ao capital constante e variável empregado emcada setor (C e V) e à mais-valia obtida (S), medidos em valor-trabalho. Estas magnitudes de trabalho estão determinadas pelas condições técnicas de produção de equipamentos, de alimentos ou de artigos de luxo,ré a taxa delucro, e jcs y são, respectivamente, as razões preço/valor para os equipamentose para os alimentos. Os artigos de luxo produzidos pelo setor III são tomadoscomo numerário (o que é razoável, pois a mercadoria-moeda, o ouro, tal co-

! mo os artigos de luxo, não constitui meio de produção de nenhuma outra

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mercadoria); deste modo, a razão preço/valor dos artigos de luxo é considerada igual a 1 (um) e não se altera na transformação. As equações expressam anecessidade de que os preços se afastem dos valores (se as composições orgânicas forem diferentes) de modo que a taxa de lucro calculada em preços se

ja idêntica nos três setores. Isto é, o preço total dos meios de produção maiso lucro calculado segundo a taxa média deve ser igual ao valor total das vendas. A solução do sistema determina as três variáveisr, x e y.

Por outro lado, se os símbolos C, V e S forem interpretados como re presentando quantidades físicas de equipamentos, alimentos e artigos de luxo, respectivamente, o sistema de equações acima é análogo ao apresentado por Sraffa no segundo capítulo deProdução de Mercadorias por meio de Mercadorias; r é ainda a taxa de lucro calculada em preços, mas x e y passarão asignificar simplesmente os preços dos equipamentos e dos alimentos. Ou se

ja, x ,

que era a razão preço total/valor total dos equipamentos passa a representar a razão preço total/quantidade total destes mesmos produtos. E, damesma maneira, y passa a representar, em vez da razão preço total/valor total, á razão preço total/quantidade total para os alimentos.

Como as composições orgânicas são idênticas nos três setores, segundonossa terceira hipótese, os preços baseados em tempo de trabalho simples já possibilitam a obtenção de uma mesma taxa de lucro em cada setor. Os preços de produção não divergirão dos valores, nem ar transformada diferirá dar calculada em tempo de trabalho, r e j serão iguais a1na solução de nosso

sistema. E como as quantidades físicas são idênticas às quantidades de trabalho (cf. hipótese 4), o preço de cada equipamento ou de cada alimento será igual a1, igualmente, e proporcional (igual) às quantidades de trabalho incorporadas nos produtos.

DEMONSTRAÇÃO

É preciso, agora, introduzir no sistema uma alteração da composição

técnica do capital, ou seja, modificar as proporções físicas em que se combinam equipamentos com alimentos (ou trabalho vivo). Isto exige que se modifique, através de multiplicadores adequados, as constantes C e V (interpretadas como quantidades físicas) que aparecem em nosso sistema de equações sraffiano. Explicitar-se-á no momento oportuno em que sentido (umavez que as quantidades físicas estão vinculadas aos valores-trabalhos originais)as alterações na composição técnica envolvem alterações da composição orgânica do capital. O método adotado consiste em modificar a composição técnica (e orgânica) emum único setor de cada vez, para verificar os efeitos que

| esta transformação produz sobre a taxa de lucros e o sistema de preços relativos. A composição do capital será modificada na economia como um todocomo resultado, sucessivamente, de modificações alternativas introduzidasnos setores III, II e I.

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1) ALTERAÇÃO DA COMPOSIÇÃO ORGÂNICA NO SETOR III (PRODUÇÃO DE ARTIGOS DE LUXO)

A modificação da composição técnica em III provocará modificação dacomposição técnica global; na economia como um todo, expandir-se-á a produção física de equipamentos (C) e contrair-se-á a produção de alimentos(V), pois os trabalhadores desempregados (no caso suposto de uma elevaçãda composição técnica C/V) serão condenados à fome ou à emigração. Ctransformar-se-á em vC e V transformar-se-ã em wV (sendov e w os multiplicadores aplicados às quantidades físicas de equipamentos e alimentos).

Como os preços iniciais são todos iguais a 1, nossa condição de que setrata de uma “pura” modificação na composição técnica, deixando inalterados os custos de produção, implica em que o aumento da quantidade deequipamentos utilizada no sistema (por exemplo) seja inteiramente compensada por uma diminuição da quantidade de alimentos (ou trabalho). A condição pode traduzir-se na relação,

vC + wV = C + VLogo, (w —1)V = (1 —v)C =>

- ( I ) W = - Ç ( l - v ) + 1V v ’ ' \r

uo ^ 1Isto significa que

- v > 1 =*■ w <1

\ o que corresponde ao caso em que estamos interessados, isto é, umaelevação \ da composição técnica. Não obstante, a demonstração é perfeitamente gera

e engloba também o caso inverso em que v é menor ew é maior que1; nesta•"? hipótese significará o nosso resultado que uma baixa de composição técnicQ (e orgânica) não altera (não eleva) a taxa de lucro.

É evidente também pela equação ( I ) que v não pode assumirqualquer valor acima de1: para além de um determinado limite, seria necessário que omultiplicador w se tornasse negativo, o que não tem nenhum significado econômico.

É necessário, como próximo passo, determinar os multiplicadoresu (aplicado a C3) et (aplicado a V3), para transformar a composição técnicano setor III.

Com a produção de I multiplicada por v e a de II multiplicada por w,Ci transforma-se em vCi e V2 transforma-se em wV2, pois a composição téc

nica não se modificou nos setores I e II, e a modificação da produção de equ pamentos e de alimentos deve ser proporcional à modificação das quantidades de equipamento e alimento (trabalho) utilizadas na fabricação destes produtos. Pela mesma razão, C2 transforma-se em wC2 e V! transforma-se em vVi.

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A preservação do equilíbrio de reprodução simples exige que a quanti-•Iditr de equipamentos gastos nos três setores seja igual à quantidade total dei>i|iil|itunentos produzidos, ou seja

Isto é

vC, +wC2 + uC3 = vC = vCt + vC2 + vC3-

wC2 +uC3 = vC2 +vC3=> C3 ( u - v ) = C2 ( v - w )

=> u —V )2r (y- . w).'-3

Cf. hipótese 3,

=>(11) u = — (v —w) + VS v

Falta encontrar a equação do multiplicadort que transforma V3 em tV3.A condição a ser satisfeita, neste caso, para preservar o equilíbrio da reprodução simples é que a quantidade de alimentos consumida pelos trabalhadoresem todo o sistema seja igual à quantidade produzida, o que se traduz algébricamente da seguinte maneira:

Ou \V i +wV2 + tV3 = wV = wV] +wV2 +wV3

vVi + tV3 = wV! +wV3=> V3 (t —w) = V, (w —v)

v 7 \=> t —w — — (w - v)

Cf. hipótese 3,

( I I I ) t = ^ (w - v) + w

Temos assim 3 equações que relacionam nossos multiplicadores v, w,u e t, de modo que, dado um deles, podemos obter o conjunto coerente detransformações das quantidades físicas de equipamentos e alimentos que preservam tanto o equilíbrio da reprodução simples como os custos de produçãoiniciais para o conjunto do sistema.

Retomemos agora nosso sistema de equações sraffiano com as modificações introduzidas em suas constantes físicas:

1) v (C ,.x + V ,.y )( l + r) = (C, + C2 +C3).v.x

2) w(C2. x + V2. y) (1 +r) = (V, + V2+ V3).w.y|(3) (uC3x‘+ tV3y) (1 + r) = S

&ArJr\y%,J O fC 127

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Nas equações ( 1 ) e ( 2 ), os multiplicadores v e w podem ser elimindos em ambos os membros da igualdade, reestabelecendo as equações do temaoriginal. Deste modo, a taxa de lucror préexistente e os preços iniciaisiguais a1 continuam satisfazendo as duas primeiras equações, ou seja, scompatíveis com as condições de produção dos setores I e II. Trata-se de monstrar que estes mesmos valores der, x e y satisfazem ainda a terceira equação.

Com este fim, passaremos a demonstrar queuC3 + tV3 = C3 + V3 '

? C3 [Y 3(V- 1 ) + C3(v _ 1 )+ ( v _ 1)] =<3 i>3

= c3

[ X 3 ( v - i) + Yâ ^ ( v - i ) + ( v - i ) ] =^ 3 ^>3 V 3

■= C3 [ X 3 ( v + g 2 ( v - l ) - l ) + ( v - l ) ] = '0 3 V 3

Cf. hipótese 3,

= C3 [ X 3 ( v - g ( l - v ) - l ) + ( v - l ) ] =0 3 V

Cf.(I),

= C3 [ Y a ( v -w ) + v - i] =

Cf. hipótese 3 e equação (II) = C3 (u —1)

C3 [ X i ( v - l ) + J i ( v - l ) + ( v - l ) ] =^ 3 ^ 3

= C3 [ (v -1) + Já •ga (v -1) + Xa (v -1) ] =í>3 V3 V3= V3 [ C 3 ( v - l) + C 3 - g 3 ( v - l ) + £ 3 ( v - l ) ] =

o 3 Ò3 v 3 v 3

= V3 [ 1 + (v —1+ £ l (v - 1)+ Ç l (v - 1) - 1 J =S3 v 3 v 3

= V3 [ 1 + £ 2 (v -g 3 (1 _ V) _ 1)_ .C3(1 _ v )_ 1 ]= -a 3 V 3 v 3

Cf. hipótese 3 e equação ( I )

■= V3 [ 1 + (v - w) - w ] = b3= V3 [ 1 -,ÍL(w - v) - w ] = (cf. III) V3 (1 - t)S

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i iitao

(u - 1) = V3 (1 - 1) =>

c.q.d.I )cmonstramos, assim, que

u( 3 + tV3 = C3 + V3

Qual é a significação deste resultado?() (|ue se exprime na igualdade acima é o fato de que, se forem man-

Ililos os preços iniciais iguais a 1 para C e V (preços que satisfazem as duas pi lincli as equações de nosso sistema sraffiano), os custos de produção totaisdo setor III permanecerão inalterados. Como a produção total do setor, S,limibóm não foi modificada, isto quer dizer que, com os preços anteriores, onc Io i III pode obter a mesma taxa de lucro. Por conseguinte, os preços ini-clalM iguais a l e taxa de lucro preexistente satisfazem não apenas às duas pi Inteiras equações do sistema, mas também à terceira, que representa as no-vas condições de produção para os artigos de luxo. A taxa de lucro, portanto,nflo foi modificada.

Sc C e V representam quantidades físicas de equipamentos e alimentos(Irubalho), a passagem de C/V para vC/wV deve ser compreendida com umaiillorução da composição técnica global do capital. Mas trata-se também deuma alteração idêntica na composição orgânica. Segundo Marx, a composiçãoorgânica é a composiçãoem valor (trabalho) do capital, “enquanto se acha determinada pela composição técnica e reflete as mudanças operadas nesta”(vide capítulo 23 do Livro I doCapital, 1?seção). Para que a composição or-P.nuica possa refletir as modificações na composição técnica do capital, é necessário que /sé mantenha inalterado ovalor (trabalho) dos equipamentos edn lorça de trabalho, pois a composição técnica é definida como uma razãoentre suas quantidades físicasJSegundo nossa quarta hipótese, as quantidadeslísieas iniciais eramidênticas aos valores (representando-se o volume de forçade trabalho pela quantidade de alimentos consumidos pelos trabalhadores).Mantidos os valores iniciais, a passagem de C/V para vC/wV representa, igualmente, uma modificação orgânica.

liste primeiro caso de alteração da composição orgânica sem efeito al-Biitn sobre a taxa de lucro é tanto mais significativo porquanto o setor III é oúnico setor em que a elevação da composição orgânica não pode acarretar,simultaneamente, os efeitos compensatórios que segundo o próprio Marx con-Inibalançam a tendência ao declínio da taxa de lucro. Um aumento da composição orgânica no setor I contra-arresta a tendência ao baratearipso facto os

equipamentos, desvalorizando o capital constante. No setor II, omesmopro-

► uC3 - C3 = V3 - tV3

>| uC3 + tV3 = C3 + V3

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Cf. equação ( II ), u = v + — (v - 1) =* u^ (Hipótese 3)

(1 - v )

V, -(1 - v ) = 1+ Í 2. (1 - v )V,

[1+ ^ 2. ( 1 - v ) - v + A (1 _ v)] =V2 v2

= 1 + Çí_(l - v ) --- i-v2 c2

[Ca (1 + & (1 —v) —v) + C2 ( 1 + ^ - 0 - v ) - l ) ] =v2 V2

= 1+ Çl (1 _ v ) - J _ _

V2 c2[C2 (l + ^ - ( l —v) —v) + S2 ( l + ^ _ ( l - v ) - l ) ] =v2 v2

= Cf. ( I ) W [C2 (w - v) + S2 (W - 1)] =e hipótes (3) C2

= w. - X2 _ [ £2 _ (w -v ) + J b _ ( w -1)] ='-2 V2 V2

= (hipótese 3) w + ^2- [ - _£ (w - v) - — (w - 1)] =C2 V V

= (equação III) w + X l(w - 1)C2

Assim,u = w +l l . (w - 1)

C2c.q.d.

e portanto, uC2 + t v2 =C2 + v2

O resultado acima significa que, se forem mantidos os preço(iguais a1), a variação relativa do preço total dos insumos (decorrente da dificação de sua quantidade física) é igual à variação relativa do preço tot

produto no setor II (decorrente também, esta última, da modificação na q

tidade física de alimentos produzidos). Isto é: mantidos os preços iniciaissatisfazem a primeira e a terceira equação) o setor II pode obter a mesmade lucro anterior. Por serem compatíveis com as novas condições de prod

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nos três setores, serao preservados os preços preexistentes, assim como a taxa de lucro.

As quantidades físicas de equipamentos e alimentos produzidas (e consumidas) no sistema foram definidas inicialmente comoidênticas às quntida-des totais de tempo de trabalho incorporadas nestes dois conjunto de produ-

I os. Deste modo, a transformação de C/V em vC/wV pode ser interpretada aomesmo tempo como uma modificação da composiçãotécnica ou orgânica docapital global. Comprova-se, assim, que uma “pura” modificação da composição orgânica no setor II deixa igualmente inalterada a taxa de lucro.

Respeitando a definição correta decomposição orgânica do capital (vide supra), mantivemos constante na conclusão acima o tempo de trabalho incorporado em equipamentos ou alimentos. É claro, no entanto, que, em setratando de uma modificação técnica no setor II, esta preservação dos valoresnão passa de um simples procedimento metodológico: se a composição orgânica na produção de alimentos foiaumentada, deve ter-se contraído o valor-trabalho da força de trabalho, o que produz dois efeitos favoráveis sobre a taxa de lucro global: l)’uma diminuição do valor total do capital, uma vez que diminui o capital variável medido em tempo de trabalho (a composição em valor do capital deve aumentar mais que a composição orgânica) e2) um aumento da taxa de exploração (ou o que Marx chamava de “produção de mais-valiarelativa”), pois uma fração maior do trabalho vivo torna-se trabalhoexcedente (comprimindo-se o trabalho necessário à reprodução da própria força do tra balho).

Deixamos para o apêndice a discussão destes últimos efeitos através deum exemplo numérico. Através destes será exibido o resultado aparentemente paradoxal de que a taxa de lucroaumenta ao invés de diminuir com a mecanização da produção no setor II (se usamos como medida o tempo de trabalhosimples). É claro que não se pode presumira priori, a partir de um simplesexemplo, a generalidade deste efeito.

3) ALTERAÇÃO DA COMPOSIÇÃO ORGÂNICA NO SETOR I(PRODUÇÃO DE EQUIPAMENTOS)

A modificação da composição técnica, embora se restrinja ao setor I,deverá repercutir na composição técnica global do sistema, modificando-sea produção total de equipamentos (C) e de alimentos ou força de trabalho(V). Novamente, C transforma-se em vC e V transforma-se em wV. A condição para que os custos totais do sistema permaneçam inalterados (com preços iguais a1) é, ainda

vC + wV

ou (I)

C +V

w = — (1 - v) +1V

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No setor II, a composição técnica não se modifica: a alteração dossumos utilizados é proporcional à alteração do produto. Como V transforse em wV, C2 transforma-se em wC2 e V2 transforma-se em wV2.

No setor I, por sua vez, como a composição técnica é alterada, Ctransformado em uCt e Vj é transformado em tV i.Mantendo-se o equilíbrio da reprodução simples, a produção totalequipamentos deve igualar a quantidade destes produtos que é utilizadaconjunto do sistema:

vC = vCj +vC2 +vC3 = uCi +wC2 + C3

=> C, (u - v) = C2 (v - w) + C3 (v - 1)r .=*■ u v + Í2 _ (v - w ) + Ç i - ( v - l )Ci C]

(Cf. hipótese 3) ( I I ) V+ (v —w) + (v 1)

Do mesmo modo, o equilíbrio da reprodução simples requer que a qutidade de alimentos.produzida seja ainda igual à quantidade consumida:

wV = wVi +wV2 + wV3 = tVi + wV2 +V3

=> V3(w —1) = V! (t —w) =* t ■w V,2- (w - 1)

(Cf. hipótese 3) ( II I) t = w + £-(w -1)

Determinados os quatros multiplicadores (dado um deles), transformos da seguinte maneira as constantes físicas de nosso sistema de equaoriginal:

1) (uC,x + tVlY) (1 + r) = (C, + C2 + C3) vx2) w (C2x + V2y) (1 + r) = (Vi + V2 + V3) wy3) (C3x + V3y) (1 +r) = S

Como o multiplicadorw pode ser eliminado na segunda equação, única alteração do sistema de equação original encontra-se na equação1).Trata-se de demonstrar que também esta última é compatível coma taxa dlucro inicial, e com os preços iniciais iguais a 1. Com este propósito, pro

mos queuCi + tVj _ (Ci +C2 +C3)v _ v

C i + V j Q + C2 +C3

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V, [ ( v - l ) + C i_ (v - 1 )] + S, ( v - 1 ) =

V! [ v - £ í - ( l - v ) - l ] + S1 ( v - 1 ) ] =

M- (Cf. ( I ) ) Vi [ v —w] + Si (v —1) =

C, [ X l ( v -w ) + 1 l ( v - 1 ) ] =Cj Ci

= (Cf. ( I I ) ) Ci (u —v)e hipótese 3

V, [ (v - l ) + g i - ( v - l ) ] + S, ( v - 1 ) =MVi [ (v - 1) + ¿ L í v - O l + V , | í - ( v - l ) =

Vi Vj

= V 1 [ (v - 1 ) + & ( v - 1 ) + (V -1 ) ] -»1 v i

= V, [ V - ^ L ( 1 - v ) - l- | l (^L (1 - V ) + 1 - 1 ) ] =V! C, v i

= (Cf. ( I ), e hipótese 3) V, [ v —w - (w - 1) ] =Ci

= (Cf. ( III ), e hipótese 3) Vt (v - t)

Logo,C, (u - v ) = V! (v - t)

=> uCi - vCj = vVj —tVi=> uCi + tV i = vC] +vVj = v (C i +V i)

uC, +tV, = vC, + V,

Novamente obtivemos um resultado que significa que, no setor considerado (neste caso o setor produtor de equipamentos), as variações das quantidades físicas dos insumos e do produto são de tal ordem que, se forem mantidos os preços iniciais (iguais a1), a variação relativa dos"custos totais é idêntica à variação relativa do preço total do produto, de modo que a taxa de lu

cro e os preços obtidos através do primeiro sistema de equações sraffiano podem ser mantidos.

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A transição de C/V para vC/wC, no conjunto da economia, represenmais uma vez tanto uma modificação da composição técnica como uma mdificação da composiçãoorgânica do capital global. Fica demonstrado, porconseguinte, que tampouco uma “pura” elevação (ou baixa) da composiçorgânica localizada no setor I pode afetar a taxa de lucro.

São válidas,mutatis mutandis, as observações já feitas a propósito datransformação da composição do capital no setor n. Manteve-se a correspdência inicialmente suposta entre composição técnica e composição orgân por se ter preservado, teoricamente, o valor-trabalho original dos equipamene dos alimentos. Mas (como ficará claro no exemplo numérico mais adiànuma redução no trabalho vivo realizado no setor I deve não só depreciar equipamentos no conjunto da economia, como (na medida em que deprecou melhor,desvaloriza os equipamentos empregados no setor II, produtorde meios de subsistência) também deve reduzir o valor da força de trabalhaumentando a taxa de exploração e o valor da mais-valia. Ambos os efeida lei do valor são favoráveis à taxa de lucro. No exemplo numérico, obtése, como se verá, o resultado de quê a taxa de lucro globalse eleva em conseqüência da alta da competição orgânica em I. Isto é verdadeiro se o cálcufor efetuado em valor-trabalho simples.

CONCLUSÃO

Demonstrou-se aqui que,qualquer que seja o setor em que é introduzida, uma “pura” elevação da composição técnica e orgânica do capital socdeixa inalterada a taxa média de lucro. Por uma “pura” elevação da compoção orgânica se entende, em primeiro lugar, uma simples alteração dá razão t balho morto/trabalho vivo, isto é, uma intensificação da mecanização do t balho com custos de produção mantidos constantes, aos preços iniciais. medida em qutí (como foi demonstrado) o sistema de preços não se alteneste caso, os custos totais de produção tampouco se modificam quandcalculados com base nos preços finais, determinados pelas novas condiçõ

técnicas de produção.Com base nisto, algo pode ser dito a respeito da afirmação segundo qual a lei tendencial da queda da taxa de lucro seria uma “lei dos rendimenfísicos decrescentés disfarçada” (Prof. Antonio Castro). Em primeiro lugela não o é de modo algum no espírito de Marx. Este supõe implicitamenque a tendência pode operar ainda que os rendimentos físicos do capital

jam constantes ou crescentes. Mas é verdade que não se pode sustentar etese sem violar o equilíbrio da reprodução simples (quando a composição gânica muda), isto é, sem entrar em choque com as exigências logicamenincontomáveis de uma teoria dos preços fundada nas condições (interdepedentes) de (re)produção de todas as mercadorias em conjunto. E é eín direça uma teoria dos preços deste tipo queaponta o pensamento de Marx, ainda

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(|ue formulação errôneas (como a da lei tendencial) decorram, em sua obra,lia fixação sobre a idéia mais simples que vincula o valor ao tempo de trabalho. Neste sentido, a queda da taxa de lucro só é admissível como resultado de umdeclínio da produtividade física do capital. Ou seja: a tendência discutida só pode ser defendida em suas versões neoclássica e ricardiana(pois também emRicardo a fertilidade decrescente do solo impõe um declínio à produtividadedo capital aplicado à terra). E sóneste sentido a lei de Marx seria uma lei derendimentos decrescentes disfarçada.

O livro de Sraffa tem como subtítulo:Prelúdio a uma crítica da Teoria Econômica. As potencialidades críticas desta obra com relação à teoria neoclássica são notórias, mas a discussão acima mostra que há algo a ser criticado igualmente no campo marxista com base nas proposições nela estabelecidas. A diferença entre as duas vertentes possíveis de exploração crítica daobra de Sraffa reside em que, no caso de Marx, a crítica é umdesenvolvimento de seu próprio pensamento, ainda que conduza à rejeição de um teoremaaparentemente tão importante como o da lei tendencial.

A autocrítica da economia marxista quanto a este ponto (autocríticaessencial aodesenvolvimento do pensamento marxista e à compreensão plenade por que vias o capitalismo é mortal) foi esboçada por Baran e Sweezy nolivro Capitalismo Monopolista, onde a lei tendencial é invertida e se enunciauma lei de tendência à geração de um excedente crescente. Mas esta autocrítica permanece ambígua: atribui-se ao advento da etapamonopolista a inversão da lei, ao invés de retornar o problema do valor e reconhecer que ela nãoera válida sequer na etapa concorrencial. Além disto, Baran e Sweezy inter pretam a alta da taxa de lucro como conseqüência do poder da empresa monopolista de sustentar os preços á medida em que os custos são reduzidos pelo progresso técnico. É preciso implicitamente conceber o sistema econômicocomo feixe de indústrias de bens de consumo final sem ligações intersetoriais(retrocedendo neste ponto com relação à Marx) para imaginar efeito benéficouniversal destas políticas monopolistas sobre a taxa de lucro. Perguntemos ingenuamente: se tal política de sustentar preços for seguida pelos produtoresde meios de produção, não se estaráimpedindo uma alta da taxa de lucro noconjunto do sistema?

Ainda uma observação complementar. Pode-se pensar que o caráter restritivo de nossa terceira hipótese (composições orgânicas iguais em todos ossetores na situação inicial) compromete a generalidade dos resultados obtidos.Se as composições orgânicas forem inicialmente diferentes entre os vários setores, uma “pura” elevação da composição orgânica global afetará a taxa de

Jucro? De modo algum, pois, segundo o método adotado acima,qualquer sistema com composições orgânicas setoriais distintas pode ser concebido comoresultado de umatransformação de um sistema ideal primitivo no qual ascomposições orgânicas setoriais não diferiam. Assim, se A é um estado inicialdo sistema onde as composições orgânicas são iguais, e B e C representam diferentes situações do sistema resultantes de uma transformação “pura” da

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composição orgânica em algum setor, a transição de A para B ou C não míficará a taxa de lucro. Em conseqüência, tampouco será modificada a taxílucro quando o sistema se mover da situação B para a situação C.

AS TRANSFORMAÇÕES EM VALOR-TRABALHO- EXEMPLOS NUMÉRICOS -

1) O SISTEMA ORIGINAL

Nosso sistema inicial compõe-se de três setóres, I, II e III, produzirdcada um, na mesma ordem, três categorias de produtos homogêneos: equipmentos (C), alimentos (V) e artigos de luxo (S). Na hipótese de que o saláreal é fixado ao nível do mínimo de subsistência, a quantidade de fÕirçatrabalho empregada é representada indiretamente pela quantidade de alimtos produzidos (sendo os alimentos considerados de consumo exclusivameoperário). Mantidas constantes a jornada e a intensidade do trabalho, a qutidade de alimentos representa igualmente o volume de trabalho vivo realido no sistema durante o período de análise. Deste modo, como no modeinicial de Sraffa para a produção com um excedente, os meios de subsistêndos trabalhadores são contados entre os meios de produção de cada merca

í ria nas equações do sistema. As unidades físicas são definidas de forma a q; a quantidade total de cada produto seja idêntica à quantidade total de trab« | lho (vivo e morto) incorporada no produto total. Assim, o valor-trabalho

I cada unidade de mercadoria é sempre igual a1.0 sistema encontra-se em equilíbrio de reprodução simples, e a renda capitalista é inteiramente consumem artigos de luxo. Supõe-se igualmente que os equipamentos se desgastinteiramente no período de análise e que os capitalistas possuem antecipamente (como “capital variável”) a totalidade da folha de salários, por seras mercadorias vendidas apenas no final do período, quando se realizam trocas entre os três setores.

O quadro abaixo expõe as condições de produção nos três setorcando as quantidades de equipamento (C) e de alimento(V) que são necessá para produzir, respectivamente, as quantidades normalmente obtidas deV e S (artigos de luxo):

Note-se que a quantidade produzida de C (equipamentos), assim comode V (alimentos) é igual a quantidade total utilizada na produção, uma v

200 C + 100 V100 C + 50 V100 C + 50 V

400 C200 V200 S

Total 400 C 200 V

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que o excedente, consumido pelos capitalistas, não pode estar composto materialmente de meios de produção ou meios de subsistência para operários.

Sejam:x: preço de um equipamentoy: preço de um alimento «z: preço de um artigo de luxo

e r: a taxa de lucro (isto é, o preço de excedente total sobre o preço total dos equipamentos e alimentos usados na produção).

Façamos z igual a 1 (um), transformando os artigos de luxo na merca-doria-moeda(o que é lógico, posto que a mercadoria-moeda;, que tem necessariamente preço unitário, não entra como meio de produção no fabrico de outras mercadorias, característica que ela tem em comum com os artigos de luxo;

na terminologia de Sraffa, a moeda é um produto nâo-básico).Assim, temos 3 incógnitas, que são determinadas ao se resolver o sistema de equações seguintes (as equações expressam, simplesmente, a necessidade de que a taxa de lucro seja idêntica nas 3 indústrias ou setores, para que asmercadorias voltem a ser reproduzidas, incessantemente, nas mesmas quantidades):

1) (200 x + 100 y) (1 +r) = 400 x2) (100 x + 50 y) (1 + r) = 200 y (Sistema de equações 1)3) (100 x + 50y) (1 +r) = 200

As soluções são x e y igual a l e r igual 1 /3,como se pode verificar:

1) (200 + 100) (1 + 1/3) =300+100 = 402) (100 + 50)(1 + 1/3) =150+50 = 200•3) (100 + 50)(1 + 1/3) =150+50 = 200

As expressões do produto total em preços em cada setor (assim comodos custos totais ou do capital empregado) correspondem ao seguinte esque

ma de reprodução simples:Setores C V S Totais

I 200 100 100 400II 100 50 50 200 (Esquema de reprodução 1)III 100 50 50 200

Totais 400 200 200 800

Como as quantidades físicas são idênticas, por definição, aos valores-trabalho, o sistema d» equações de que partimos pode ser interpretado igual-

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mente como o sistema Bortkiewicz para a transformação de valores em pre No exemplo considerado, as composições orgânicas são iguais em todossetores. Deste modo, não haverá nenhuma divergência entre valores e preças razões preço/valor, x e y, serão iguais a1(um). O esquema de reproduçãosimples acima é edêntico, portanto, ao esquema marxiano, calculado seja

valores-trabalho, seja em valorestransformados (ou preços de produção).

2) ELEVAÇÃO DA COMPOSIÇÃO TÉCNICA E ORGÂNICA NO SETOR II

Transformemos nosso sistema económico inicial rio seguinte:

210 C + 105 V ->■ 420 C90 C + 45 V -* 180 V

120 C + 30 V 200 STotais 420 C 180 V

A razão entre a quantidade de equipamento (C) e alimentos (V) usanos setoresIe II não se modificou, permanecendo 2/1. bsta razão modificouse apenas no setor III, através de uma substituição de20 unidades de alimento (ou força de trabalho) por20 unidades de equipamento.

O sistema de equações correspondente é:

1) (210 x + 105 y) (1 + r) = 420 x2) ( 90 x + 45 y) (1 + r) = 180 y (Sistema de equações 3) (1 20 x + 30 y) (1 + r) = 200

E as soluções são x = y = 1 e r = 1/3. como se pode verificar:

1) (210 + 105) (1 + 1/3) = 315 + 315/3 = 315 + 105 = 42) ( 90 + 45) (1 + 1/3) = 135 + 135/3 - 135 + 45 = 13) (120 + 30) (1 + 1/3) = 150 + 50 = 200

A taxa de lucro permanece inalterada. Supor taxa de lucro distinta 1/3 (menor), para satisfazer a lei de Marx, implicaria em romper o equilíbda reprodução simples exigido pelas equações acima. O novo esquema de produção simples, em representação análoga à de Marx, seria o seguinte (culado em preços de produção sraffianos):

Setores C V S TotalI 210 105 105 420II 90 45 45 180 (Esquema de reprodução 2)III 120 30 50 200

Total 420 180 200 800

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Sem que tenha ocorrido qualquer redução no valor da força de trabalho(ainda que o valor total dos meios de subsistência tenha diminuído com a queda do nível de emprego), houve aumento automático da taxa de exploraçãoA taxa de lucro mantém-se, assim, constante, malgrado a elevação da composição técnica em UI e a elevação da composiçãoorgânica neste setor (pois segundo nossa definição inicial a composição orgânica é idêntica à composiçãotécnica, e de qualquer maneira, no conceito de Marx, a composição orgânicadeve ser a expressão em valor da composição técnica, refletindo os movimentos desta última). Uma força de trabalho reduzida em 10% produz uma maisvalia (calculada em preços) idêntica à inicial (igual a200).

Verifiquemos, agora, que resultado obtemos realizando as transformações em valor-trabalho. A quantidade de alimentos usada como meio de produção em III passou de 50 para 30, sofrendo portanto uma diminuição de 20unidades. Se for mantida a taxa de exploração inicial, 100%, a mais-valia gera

da em III -deve reduzir-se igualmente em 20 unidades de valor-trabalho (pois aunidades de alimento são equivalentes, em nossa definição inicial, às unidadede trabalho pago ou trabalho necessário realizado pelos trabalhadores). Tal como o valor total da força de trabalho (V), a mais-valia total (S) reduz-se de200 para 180.

Deste modo, para realizar a transformação de valores em preços podemos partir do sistema de equações abaixo (transformação Bortkiewicz), ondeas constantes representam, agora, quantidades de trabalho ou valores:

1) (210 x+ 105 y) (1 +r) = 420 x2) ( 90 x + 45 y)(1 + r) = 180 y(Sistema de equações 3)3) (120 x + 30 y) (1 + r) = 180

Se supusermosque apenas o valor-trabalho dos artigos de luxo (como bens de consumo) foi contraído, mas não o da moeda, não aparecerão divergências nos resultados. Para tanto, basta considerar que a composição orgânica na produção de moeda não foi modificada, o que pode ser feito facilmente, por exemplo, assimilando a moeda aos meios de produção, ou seja, transformando os próprios meios de produção em numerário, para evitar a introdução de um novo sub-setor no sistema. Deste modo, x = 1, e as variáveis dnosso sistema de equações Bortkiewicz sãor, y az , entendida esta última como a razão preço/valor dos artigos de luxo:

1) (210 + 105 y) (1 + r) = 4202) ( 90 + 45 y) (1 + r) = 180y(Sistema de equações 4)3) (120 + 30 y) (1 + r) = 180 z

As soluções serão, agora r =1/3, y = 1 e z = 200/180. Isto é, ataxa de lucro préexistente poderá ser mantida e o valor de z será tal que transformará em 200 o valor à direita da terceira equação. Deste modo, será possível construir um novo quadro de reprodução simples, baseado nesta versãda transformação Bortkiewicz, e idêntico ao nosso esquema dê reprodução 2

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3) ELEVAÇÃO DA COMPOSIÇÃO TÉCNICA E ORGÂNICA NO SETOR II

Transformemos, agora, nosso sistema econômico original, aumentado a composição técnica do capital exclusivamente no setor II, produtor alimentos, de modo que o resultado seja o representado pelo quadro abaix

210 C + 105 V - 420 C110C + 25 V -» 180 V100 C + 5 0 V -* 200S

Totais 420 C 180 V

C, V e S representam agora, respectivamente, quantidades físicas dequipamentos, alimentos e artigos de luxo. Os preços e a taxa de lucro são o

tidos com o sistema de equações sraffiano:1) (210 x + 105 y) (1 +r) = 420 x2)(1 10 x + 25 y) (1 + r) = 180y(Sistema de equações 4)3) (100 x +50 y)(1 +r)= 200

As soluções são, novamente, x = 1, y = 1 e r= 1/3.Verificando:

1) (210 + 105) (1 + 1/3) = 315 + 105 = 4202) (110 + 25) (1 + 1/3) = 135 + (135/3) = 135 +45 = 183) (100 + 50) (1 + 1/3) = 150 + 50 = 200

A taxa de lucro permanece, ainda, inalterada. O novo esquema derepro-. dução simples, com os preços totais agregados, é:!y

Setores C V S Total

I 210 105 105 420II 110 25 45 180 (Esquema de reprodução 3)

III 100 50 50 200Total 420 180 200 800

Mostraremos a seguir que um esquema de reprodução simples idêntiao anterior pode ser obtido se calcularmos os preços de produção com banos valores-trabalho.

A transformação por este método é mais complexa e exige que se reaze três passagens sucessivas: 1) contrair o valor total da produção do setorII,

considerando que neste setor está sendo empregada quantidade menor trabalho vivo;2) contrair o valor total da força de trabalho que permanece em pregada no sistema, ou seja, reduzir o capital variável, expandindo na mes

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medida a mais-valia; 3) aplicar aos valores-trabalho assim obtidos a transformação Bortkiewicz, para nivelar as taxas de lucro entre os vários setores.

Passemos ã primeira transformação. A quantidade de alimentos utilizada como meio de produção no setor II passou de 50 para 25. Segundoi nossadefinição das unidades de produto, estas quantidades físicas representam igualmente quantidades de trabalho pago ou trabalho necessário. Mantida constante a taxa de exploração, a mais-valia gerada no setor II deve reduzir-sie tam bém de 50 para 25. A soma total de trabalho incorporado na produçSo dosmeios de subsistência, levando em conta o trabalho morto materializado nasmáquinas (110), passa a ser 110 mais 25 mais 25 igual a 160. Com base nestenovo valor-trabalho da produção do setor II, montemos o seguinte quadro dereprodução simples:

Setores C V S Total

I 210 105 105 420II 110 25 25 160 (Esquema de reproduçãío 4)III 100 50 50 200

Total 420 180 180

Este esquema é incoerente. O valor total pago em salários à classe tra balhadora (180) supera o valor total dos alimentos consumidos pelos trabalhadores, isto é, o valor total da produção do setor II (160). Por outro lado, arenda capitalista total medida em valor-trabalho (180) é inferior ao valor totaldos artigos de luxo consumidos pela classe proprietária (200). Para eiliminaresta incoerência, faz-se necessário comprimir o valor da força do trab alho namesma medida em que foram desvalorizados os alimentos produzidos pelo setor II. Sabemos que a produção física deste setor é de 180 unidades; de alimento, enquanto o valor total da produção é de 160 Unidades de tempo detrabalho. O valor trabalho unitário inicial dos alimentos era1; agora toimou-se160/180, ou seja,0,8888. .. O valor da força de trabalho empregada cm cadasetor deverá ser, portanto, multiplicado por este último número. Como não sealtera a quantidade de trabalho vivo realizada, esta compressão do valo.r do ca pital variável expande na mesma medida a mais-valia, que deverá, em cada se

tor, ser multiplicada por 1 + (1 —0,888...) = 1,1111 __

Aplicando esites multiplicadores ao quadro precedente, obtemos um novo esquema de reproduçãosimples:

Setores C V S Total

I 210 93,333... 116,66... 420II 110 22 ,222... 27 ,77 ... 160 (Esquema deIII 100 44,444 ... 55 ,55... 200 reproduçãío 5)

Total 420 160 200 780

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Um aspecto notável deste último esquema consiste no fato de que, secalcularmos a razão S/C + V e a confrontarmos com a mesma razão obtidatravés do esquema de reprodução 3, verificaremos quea taxa de lucro elevou- se acima de 1/3. Ao menos no caso considerado, portanto, somos confrontados com o resultado surpreendente de que, feitos os cálculos em valor-trabalho simples, um aumento da composição orgânica do capital provoca umaelevação e não uma queda na taxa de lucro. Houve declínio da taxa de lucro nosetorII, onde teve origem a elevação da composição orgânica. Mas o efeito de

pressivo sobre a taxa de lucro média resultante deste declínio setorial é suplantado pelos efeitos positivos, no conjunto do sistema, da diminuição do valoda força de trabalho e da conseqüente elevação da taxa de exploração.

Não obstante, os resultados obtidos ainda não são satisfatórios, pois oesquema de reprodução simples anterior apresenta taxas de lucro distintas para os vários setores. É preciso submeter os valores-trabalho nele representados à transformação Bortkiewicz, para obter os preços de produção:

1) (210 x + 93,333... y) (1 + r) = 420 x2) (110 x + 22,222... y) (1 + r) = 160 y3) (100 x + 44,444 ... y) (1 + r) = 200

As soluções são r= 1/3, x = 1 e y= 1,125. Aplicando estas razões preço/valor ao valor total da produção deI e deIIno esquema de reprodução anterior, e aplicando-as igualmente ao capital constante e ao capital variável, para

preservar o equilíbrio entre gastos e vendas, obtemos o seguinte esquema incompleto:

Setores C V S Total

I 210 105 420II 110 25 180III 100 50 200

Total 420 180 800Daí se deduz, por subtração, o montante das mais-valias em preços de

produção, permitindo completar o esquema:

Setores C V S Total

I 210 105 105 420II 110 25 45 180 (Esquema de reprodução6)III 100 50 50 200

To tal 42 0 180 200 800

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Este último esquema de reprodução é idêntico ao nosso esquema 3, calculado a partir das quantidades físicas, com as equações.

4) ELEVAÇÃO DA COMPOSIÇÃO TÉCNICA E ORGÂNICA NO SETOR I

O sistema econômico inicial será novamente modificado, desta vez atrvés de uma elevação da composição técnica circunscrita ao setor I, produtorde equipamentos:

230 C + 85 V -> 420 C90 C + 45 V ~> 180 V

100 C + 50 V 200 S

Totais 420 C 180V

Os preços de produção e a taxa de lucro podem ser obtidos através doseguinte sistema de equações sraffiano, onde as constantes são quantidadesfísicas:

1) (230 x + 85 y) (1 +r) = 420 x2) ( 90 x + 45 y) (1 + r) = 180y (Sistema de equações6)3) (100 x + 50 y) (1 +r) = 200

Mais uma vez as soluções sãor igual a 1/3, x igual a 1ey igual a 1. Verificando:

1) (230 + 85) (1 + 1/3) = 315 +315/3 = 315 + 105 =4202) ( 90 + 4 5 )(l + 1/3) = 135 + 135/3 = 135 + 45 = 1803) (100 + 50) (1 + 1/3) = 150+ 50 = 200

Com base nestes resultados, pode-se montar o esquema de reproduçãosimples com preços totais:

Setores C V S Total

I 230 85 105 420II 90 45 45 180 (Esquema de reprodução 7)III 100 50 50 200

Total 420 180 200 800

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Procuraremos obter agora este resultado calculando os preços de produção com base nos valores-trabalho.

Consideremos, em primeiro lugar, que a quantidade de trabalho pagorealizada no setor I foi reduzida a 85; mantida constante a taxa de exploraçãode 100%, a mais-valia no setor deve reduzir-se igualmente para 85 (lembremosque as quantidades de alimentos empregadas em cada setor são idênticas, pordefinição, ao trabalho pago ou ao capital variável empregado). Deste modo, ovalor-trabalho total da produção do setor I reduz-se a 230 (valor do equipamento) mais 85 mais 85, ou seja, a 400. Pode-se assim construir um novo esquema de reprodução simples baseado nos valores-trabalho:

Setores C V S Total

I 230 85 85 400II 90 45 45 180 (Esquema de reprodução8)III 100 50 50 200

Total 420 180 180

A primeira incoerência a ser assinalada neste esquema reside em que ovalor total dos equipamentos empregados na economia (420) supera o valortotal da produção do setor que produz estes equipamentos (400). Esta incoerência resulta do fato de, tendo reduzido o valor-trabalho da produção totalde I, deixamos constante o valor do capital constante nos 3 setores. È precisoagora calcular a desvalorização do capital constante resultante do barateamento dos equipamentos produzidos em I, em termos de valor-trabalho. No quese refere ao setor I, estamos, aparentemente, diante de círculo vicioso: paraavaliar em quanto se reduz o valor do equipamento usado em I (230 unidadesfísicas) é preciso avaliar em quanto se reduziu o valor total dos equipamentos produzidos no setor (420 unidades), pois somente assim se consegue o novo valor-trabalho unitário de cada equipamento. Por outro lado, parece impossívedeterminar o valor-trabalho total da produção de I sem conhecer de antemão aquantidade de trabalho morto que se incorpora a esta produção, ou, em outras palavras, sem conhecera priori o valor-trabalho do próprio equipamentoutilizado no setor I. Não obstante, equacionado algebricamente, o problemaapresenta-se como solúvel. Sejak o valor total dos equipamentos produzidos pelo setor I; o valor unitário de cada equipamento serán, igual ak dividido pela quantidade física de equipamentos produzidos (420) Como se conhecea quantidade de trabalho vivo empregada no setor 1 (85 mais 85), pode-se escrever desta forma a equação do valor total da produção do setor I:

K = (85 + 85) + 230 •

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pois 230 unidades físicas de equipamento são utilizadas na produção no setor I. Desenvolvendo:

K = 170 + 230Jí_=170 + (0,54761904. ,.)k

420K (1 -0,5476...) = 170

K ___

0,45237015..

K = 375,78852631578.

Determina-se entãon, o valor unitário de cada equipamento. Este éigual, como dissemos, ao valor totalk dividido pela quantidade produzida deequipamentos:

n = k/420 = 0,89473...

O valor-trabalho anterior de cada equipamento era 1. Multiplicando

0,89473. . . o capital constante de cada setor no esquema precedente de reprodução simples, obtemos a desvalorização desejada dos equipamentos totaisutilizados. Isto acarretará uma diminuição do valor-trabalho total incorporadoà produção dos setores II e III. Feitos os cálculos, é possível montar um novoesquema de reprodução:

Setores C V S Total

I 205,788 85 85 375,788

II 80,526 45 45 170,526 (Esquema deIII 89,473 50 50 189,473 reprodução 9)

Total 375,787 180 180 735,787

Subsiste ainda uma incoerência neste novo esquema de reprodução: amassa de salários em valor pagos aos operários (180) difere do valor total dosalimentos por eles consumidos (170, 526), assim como a mais-valia total apro priada pelos capitalistas (180) é diferente do valor total dos artigos de luxo

que eles consomem (189,473). Para sanar estas discordâncias, será preciso introduzir uma transformação adicional. É necessário levar em conta que, coma redução do valor dos alimentos (pela desvalorização do equipamento empregado para produzí-los), deve-se contrair o capital variável, ou o valor da força

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de trabalho. O valor total dos alimentos passou de 180 para 170,526. Ass0 capital variável ou o valor da força de trabalho empregada em cada setor verá ser diminuída através de um multiplicadorm = 0 ,947... (Do mesmo modo, a mais-valia se expandirá com o conseqüente aumento da taxa de expração, devendo ser multiplicada por um fator1 tal que 180 + 180 — (180m +180/), condição que é satisfeita se 360 = 180 (m +l) ou / = 2 —m ou ainda1= 1,052...).

Multiplicando os valores setoriais de V e S por 0,947.. . e 1,052... r pectivamente, no esquema de reprodução anterior, obtemos um ijovo quad

Setores C V S Total

I 205,788 80,526 89,473 375,787 (EsquemaII 80,526 42,632 47,368 170,526 de reproIII 89,473 47,368 52,632 189,473 dução10)

Total 375,787 170,526 189,473 735,787

É de se notar que a taxa de lucro global ou média neste esquema, callado em vaiores-trabalho simples, situa-se em cerca de 0,346... sendo porto superior a 1/3 (ou 0,333...). Se não se efetua a transformação de valoem preços, a elevação da composição orgânica do capital tem, também ne

caso, um efeito positivo sobre a taxa de lucro, ao contrário do que se esperia com base numa previsão intuitiva fundada na lei do valor. Ocorre, aqque a taxa de lucro é pressionada num sentido ascendente tanto por um bateamento dos elementos que compõem o capital constante, como pelo aumto da taxa de exploração (conseqüência, esta última, da redução do tempotrabalho morto empregado na reprodução da força de trabalho). Estes dmovimentos, operando no conjunto do sistema, mostram-se mais poderosoque o efeito depressivo do declínio da taxa de lucro no setor I sobre a tmédia ou global de lucro. Não obstante, precisamente porque a taxa de lu

é mais baixa no setor I, a transformação de valores em preços (que nivela axas de lucro) envolverá uma valorização da produção do setor I, provocancom isto, uma elevação da composição orgânica média e um declínio da tmédia de lucro a partir do quadro acima.

Submetendo os valores-trabalho expostos no esquema de reproduç10 à transformação Bortkiewicz, temos o seguinte sistema de equações:

1) (205,788 x +80,526 y) (1 +r) = 375,787 x (Sistema de2) ( 80,526 x +42,632 y) (1 +r) = 170,526 y equações 7)

3) ( 89,473 x +47,368 y) (1 + r) = 189,473As soluções são:x igual a 1,0588,>» igual a 1 er igual a 1/3. Tomando o

esquema de reprodução 10 e aplicando o multiplicador 1,0588. .. ao valor

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tal de produção do setor I, aos valores do capital constante de cada setor, ecalculando a mais-valia em preço como diferença entre o preço total da produção e o capital empregado, para cada um dos setores, obtemos o quadro final:

Setores C V S Total

I 217,888 80,523 99,473 397,884 (EsquemaII 85,261 42,632 42,632 170,526 de repro-III 94,735 47,368 47,368 189,473 dução 11)

Total 397,884 170,526 189,473 757,883

Este quadro apresenta a taxa de lucro global inalterada após; a transformação da composição do capital (igual a 1/3). Além disto, basta dividir os preços totais aí representados por 0,947... (que é o valor dem anteriormenteencontrado) para que obtenhamos um quadro idêntico ao nosso esquema dereprodução 7, onde os preços de produção tinham sido calculados através dasequações de Sraffa.

Obs.: É possível que este trabalho esteja incompleto, devido folhas finais não encontradas.

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A ELEVAÇÃO DA COMPOSIÇÃO ORGÂNICA DO CAPITAL NÃO TEM, EM SI MESMA, NENHUM

EFEITO SOBRE A TAXA DE LUCRO

Isto será mostrado através de exemplo de sistema econômico em equilí brio de reprodução simples, respeitando o princípio de que os preços deequilíbrio são determinados com base nas condições de produção das mercadorias tomadas em conjunto. É este mesmo princípio (concordante com aorientação geral do pensamento de Marx ao tratar o problema do valor) que, paradoxalmente, permite rejeitar corolário fundamental da teoria do valor-tra- balho.

Nosso sistema compõe-se de três indústrias ou setores, que produzem, por simplificação, três tipos de produtos homogêneos: o setor I, produtor demeios de produção (E = equipamento), o setor II, produtor de meios desubsistência para trabalhadores (A = alimentos) e o setor III, produtor deartigos de luxo para os empresários capitalistas (L = artigos de luxo). Nahipótese de que o salário é fixado ao nível do mínimo de subsistência, aquantidade de trabalho é indiretamente representada pelo volume físico dealimentos produzidos (o que envolve a suposição implícita de constância daintensidade do trabalho e da duração da jornada). Deste modo (segundo omodelo inicial de Sraffa para a produção com excedenteJ os meios de subsistência dos operários são contados entre os meios de produção de cada mercadoria nas equações do sistema. As unidades de medidas físicas úsalas paraavaliar a produção das diversas mercadorias foram escolhidas deliberadamentede modo tal que, nas soluções de nosso primeiro sistema de equações, o preçode cada mercadoria resulte ser igual a1, o que toiia cômodo acompanhar oraciocínio, pela possibilidade de traduzir automaticamente as quantidades emvalor em quantidades físicas.

O quadro a seguir expõe as condições de produção dos três setores,indicando as quantidades de E e A que são necessárias para produzir, respectivamente, as quantidades normalmente obtidas de E, A e L:

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200 E '+ 100 A -» i 400 E100 E + 50 A - 200 A100 E + 50 A -* 200 L

Total 400 E 200 A

(Note-se que a quantidade produzida de E, assim como a de À, ' igual aquantidade total utilizada na produção, uma vez que o excedente, Coi,sumrá° pelos capitalistas, não pode estar composto materialmente de meios df Pro^u"ção e meios de subsistência para operários).

Sejam: pe: preço de um equipamento pa: preço de um alimento pl: preço de um artigo de luxo

e r : a taxa de lucro ( = valor do excedente sobre o valor dosmprod e msubsist. usados na produç-*

Façamos, como Bortkiewicz, pl = 1, transformando os artigos de*ux0 namercadoria-moeda (o que é lógico, posto que a mercadoria-moeda, tf mnecessariamente preço unitário, não entra como meio de produção nc1tabncode outras mercadorias, característica que ela tem em comum como! artlg°sde luxo; na terminologia de Sraffa, a moeda é um produto não-básico)-

Assim, temos 3 incógnitas, que são determinadas ao se resolvei0 slste"ma deequações seguinte (as equações expressam, simplesmente, a nfcess* a'de deque a taxa de lucro seja idêntica nas 3 indústrias ou setores, paia ^ue asmercadorias voltem a ser reproduzidas, incessantemente, nas mesmas <luant1'dades):

1) (200 pe + 100 pa) (1 +r) = 400 pe2) (100 pe + 50 pa) (1 + r) = 200 pa3) (100 pe + 50 pa) (1 +r) = 200As soluçõessão pe = ], pa =1 e r = 1/3, com se pode verificar:1) (200 + 100) (1 + 1/3) = 300 + 100 = 4002) (100 + 50) (1 + 1/3) = 150 + 50 = 2003) (100 + 50) (1 + 1/3) = 150 + 50 = 200As expressões do produto total em valor em cada setor (assim cPmo

custos totais) correspondem ao seguinte esquema maixiano de reproc^Çaosimples (admitindo-se que o equipamento se desgasta inteiramente noPen°do considerado, supostamente um ano):

Setores______C V S TotaisE = I 200 100 100 400 Taxa de lucro = 200/A = II 100 50 50 200 (400 + 200) =200/60P - 1 /3

L = III 100 50 50 200Totais 400 200 200 800(C = capital constante = valor total dos equipamentos, V = capital vaf^ve^ -valor total dos meios de subsistência, S = mais-valia total)

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Agora, introduzamos em nosso sistema uma elevação da composiçãorgânica em sua forma mais pura. Por isto entendemos, em primeiro lugaque a transformação da composição técnica (substituindo trabalho vivo, i.meios de subsistência, por meios de produção) não provocará nenhuma alteção dos custos totais quando os insumos forem expressados em valores; trat-se de simples substituição de “capital variável” por “capital constante” senenhuma modificação da soma total destes dois itens, uma vez que a intençé isolar os efeitos da alta da composição orgânica enquanto tal, sem complicá-los com uma alteração simultânea dos custos. Em segundo lugar, entendimos por esta “pura” elevação da composição orgânica o fato a ser demonstrdo: que ela não produzirá nenhum efeito relevante no sistema, deixandinalterados os preços e a taxa de lucro.

De um ponto de vista marxista, seria fácil admitir que a queda da tax

de lucro fosse evitada, no resultado final, se introduzíssemos a elevação dcomposição técnica e orgânica na produção de meios de subsistência ou na meios de produção, já que, nestes casos, o incremento de produtividade impcado geralmente pela mecanização do trabalho redundaria em reduzir o valda força de trabalho (na primeira hipótese) ou dos componentes materiais dcapital constante (na segunda hipótese). Este mecanismo de “compensaçãda tendência à queda da taxa de lucro está evidentemente excluído de nosexemplo, pois, como se disse, não se introduzirá nenhum incremento d produção física obtida pela massa de meios de produção e trabalho usados e

conjunto, isto é, não se reduzirão os custos ou não se aumentará a produtivdade do “capital” como um todo (incluindo constante e variável). No entato, para que se torne mais visível, de saída, que não estamos pondo em jognenhum dos dois efeitos considerados, imaginaremos inicialmente que a elevção da composição orgânica se restringe à produção de artigos de luxo. Temassim um novo esquema do nosso sistema econômico:

210 E + 105 A -> 420 E90 E + 45 A-* 180 A

120 E + 30 A -» 200 LTotal 420 E 180 A

A razão entre a quantidade de “equipamento” e meios de subsistêncusada nas indústrias E (setor I) e A (setor II) não se modificou, permanecen1/2. Esta razão modificou-se apenas em L (setor III), havendo uma substitução de20 unidades de meios de subsistência (= trabalho) por20 unidades demeios de produção.

O sistema de equações correspondente é:1)(210pe + 105 pa)(1 +r) = 420 pe2) ( 90 pe +45 pa) (1 + r)= 180pa3) (12 0pe + 3 0 pa) (1 + r) = 200

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E as soluçoes sao pe = 1, pa = 1 e r = 1/3, como se pode verificar:1) (210 +105) (1 + 1/3) = 315 + 315/3 = 315 + 105 = 4202) ( 90 + 45) (1 + 1/3) = 135 + 135/3 = 135 '+ 45 = 1803) (120 + 30) (1 + 1/3) = 150 + 50 = 200

A taxa de lucro permanece inalterada. Supor uma taxa de lucro distinta(inenor) que 1/3, para respeitar a lei do valor marxiana (considerando quediminuiu a quantidade de trabalho usada e portanto o valor novo criado paraalém da reconstituição do valor da força de trabalho) implicaria em romper oequilíbrio da reprodução simples exigido pelas equações acima. O novo esquema de reprodução simples, em representação anáíoga à de Marx, seria o seguinte:

C V S TotalE = I 210 105 105 420 Taxa de Lucro = 200/A = II 90 45 45180 (420 + 180) = 200/600 = 1/3L = III 120 3050 200Total 420 180 200 800

Mantida constante a intensidade do trabalho e a jornada de trabalho,houve um aumento automático da taxa de exploração (de200/200 para200/180) independente de qualquer alteração técnica no setor II, produtor demeios de subsistência, i.é, independente do que Marx denominava “produçãode mais-valia relativa”. Uma força de trabalho reduzida em 10% produz uma

“mais-valia” idêntica a inicial ( =200)Incluímos em rápido apêndice outro exemplo numérico que demonstraa constância da taxa de lucro se introduzirmos a elevação da composiçãotécnica (e orgânica) no Setor II, sem qualquer aumento da produtividadefísica do capital como um todo. Esta última manipulação matemática é perfeitamente dispensável para o leitor já persuadido.

A lei tendencial da baixa da taxa de lucro não é uma “lei dos rendimentos físicos decrescentes” do capital disfarçada (Prof. A. Castro). Respeitada alei do valor-trabalho, é fácil demonstrar que a taxa de lucro acaba por cair se a

composição orgânica eleva-se constantemente, mesmo considerando o aumento da taxa de exploração resultante deste aumento se processar também nosetor II. E isto ocorre ainda que os rendimentos físicos do capital sejamconstantes (ou crescentes). Mas é verdade que não se pode respeitar a lei dovalor trabalho sem violar o equilíbrio da reprodução simples (quando a comp.orgânica muda), isto é, sem entrar em choque com as exigências logicamenteincontornáveis de uma teoria dos preços fundada nas condições (interdependentes) de (re)produção de todas as mercadorias em conjunto. (E é em direção a uma teoria dos preços deste tipo queaponta o pensamento de Marx,ainda que formulações errôneas (como a da lei tendencial) decorram, èm suaobra, da fixação sobre a idéia mais simples que vincula o valor ao tempo de

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trabalho). Neste sentido, a queda da taxa de lucro só é admissível em sversão neoclássica: como resultando da possibilidade de um declínio produtividade (marginal) física do capital. E sóneste sentido a lei de Marxseria uma lei de rendimentos decrescentes disfarçada.

Outras observações a serem desenvolvidas (mas cujo desenvolvimentoadiado dada a provável impaciência dos leitores neste ponto e o evidendespreparo provisório do autor):

1) O livro de Sraffa tem como sub-título: “Prelúdio a uma crítica Teoria Econômica”. As potencialidades críticas desta obra com relaçãoteoria neoclássica são notórias. A discussão acima indica que há algo a criticado igualmente no campo marxista com base nas proposições nela e belecidas. A diferença entre as duas vertentes possíveis de exploração crítda obra de Sraffa reside em que, no caso de Marx, a crítica é umdesenvolvimento de seu próprio pensamento, ainda que conduza à rejeição de um terema aparentemente tão importante como o da lei tendencial.2) A autocrítica da economia marxista quanto a este ponto (autcrítica essencial aodesenvolvimento do pensamento marxista e à compreensão plena de por que vias o capitalismo é mortal) foi esboçada por Baran eSweezy emO Capitalismo Monopolista, onde a lei tendencial é invertida e seenuncia uma lei de tendência a geração de um excedente crescente. Mas eautocrítica permanece ambígua: atribui-se ao advento da etapamonopolista ainversão da lei, ao invés de retomar o problema do valor e reconhecer que não era válida sequer na etapa concorrencial. Além disto, Baran e Sweeinterpretam a alta da taxa de lucro como consequência do poder da emprmonopolista de sustentar os preços à medida em que os custos são reduzi pelo progresso técnico. É preciso implicitamente conceber o sistema ecomico como um feixe de.indústrias de bens de consumo final sem ligaçintersetoriais (retrocedendo neste ponto com relação á Marx) para imagiefeito benéfico universal destas políticas monopolistas sobre a taxa de lucPerguntemos ingenuamente: se tal política de sustentar (ou elevar) preços seguida pelos produtores de meios de produção, não se estaráimpedindo uma alta da taxa de lucro (ou provocando uma queda da mesma) no conjunto sistema?

APÊNDICE:ELEVAÇÃO DA COMPOSIÇÃO ORGÂNICA NO SETOR II (A)

Transformemos nosso sistema econômico inicial no seguinte:

210 E + 105 A 420 E

110 E +25 A -> 180 A100 E + 50 A 200 LTotal 42 0 E 180 A

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Os preços e a taxa de lucro são obtidos com o sistema de equações abaixo:1)(2 10 pe + 105 pa) (1 + r) = 420 pe2)(11 0pe + 25 pa) (1 + r) = 180pa3) (100 pe +50 pa) (1 +r)= 200

As soluções são, novamente, pa = 1, pe = 1 e r = 1/3.Verificando:

1) (210 + 105) (1 + 1/3) = 315 + 105 = 4202) (110 + 25) (1 + 1/3) = 135 + (135/3) = 135 + 45 = 1803) (100 + 50) (1 + 1/3) = 150 + 50 = 200

A taxa de lucro permanece, ainda, inalterada. O novo esquema de reprodução simples, com os valores totais agregados, é :

C V S TotalE = I 210 105 105 420 Taxa de Lucro = 200/A = II 110 25 4 5 .1 8 0 (420 + 180) = 200/600 = 1/3L = III 100 5050 200Total420 180 200 800

Observemos, finalmente, que poderíamos indiferentemente ter escolhido os meios de produção (“equipamento”) ou os meios de subsistência (“alimento”) como moeda, pois todos os preços resultam sempre =1.

20 de maio de 1974

OBSERVAÇÕES COMPLEMENTARES (para os leitores ainda não convencidos)

I

Uma objeção que pode ser pertinentemente levantada com relação anosso exemplo refere-se ao caráter hipoteticamente homogêneo dos equipamentos produzidos pelo setor I. Pois estes se destinam a três usos diferentes: produção de equipamentos, de alimentos ou de artigos de luxo. Procuremossatisfazer a exigência implícita nesta objeção, para ver o que ela acarreta.Primeiramente, teríamos que subdividir o setor I em três setores distintos: Ie,especializado em produzir equipamentos para a produção de equipamentos,Ia, produtor de equipamentos para produzir alimentos e II, produtor de equi pamentos para produção de artigos de luxo. Mas uma objeção análoga poderiaser posta com relação a Ie: este sub-setor, utilizando um mesmo tipo de

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equipamento (equipamento produtor de equipamentos), produz três tipos de produtos distintos:1) equipamentos que produzem equipamentos para a produção de equipamentos,2) equipamentos que produzem equipamentos para produção de artigos de luxo e 3) equipamentos que produzem equipamentos para produção de artigos de consumo operário. Assim, a recusa a admitir que

equipamentos homogênios produzam mercadorias distintas nos obrigaria asubdividirad infinitum o setor I. Podemos evitar este impasse (evitando aomesmo tempo complicar nosso exemplo com uma multiplicação do númerode sub-setores) unificando desde um primeiro estágio o setor I e admitindo (oque seriamos sempre obrigados a fazer a partir de um certo ponto) queequipamentos homogêneos podem produzir três tipos distintos de mercadorias.

Em segundo lugar, pode-se considerar que a homogeneidade física dosequipamentos aplicados nos diversos setores não é necessária. Pode-se conce

ber simplesmente, como hipótese simplificadora, que a quantidade de equipamento é medida em, digamos, quilos do ferro, e que esta massa de metalapenas é moldada de diferentes maneiras quando é preparada para servir aofabrico de equipamentos, de alimentos ou de artigos de luxo; é suficienteincluir a suposição adicional de que o tempo de trabalho necessário para darforma ao metal não é diferente quando este é amoldado para se transformarnuma ferramenta adequada para produzir um produto E, A ou L. Quandointroduzimos a transformação técnica em algum setor, nos exemplos considerados, estamos supondo simplesmente que uma quantidade de ferro um pouco superior (e, provavelmente, amoldada de modo qualitativamente diferente) permite obter uma mesma quantidade de produto com o uso simultâneo demenor trabalho (i.é, “alimento”). Basta que a proporção entre a quantidadefísica de ferro e o tempo de amoldagem se mantenha quando se produzemnovos equipamentos (equipamentos qualitativamente distintos) para que nãoocorra nenhuma ambigüidade quando nos referimos a um aumento da quantidade física de equipamentos, pois isto significará: uma quantidade de ferromaior (com o mesmo tempo de amoldagem por quilo de ferro).

IIEm nossos exemplos, como não consideramos em momento algum o

trabalho como medida de valor e procuramos encontrar diretamente os preçosde produção (entendidos como preços de equilíbrio necessários à reproduçãosimples), tomamos a palavravalor como sinônimo de preço. Com isto, nãodeve ter-se tornado visível de que modo nossos resultados são incompatíveiscom uma teoria do valor que identifica o valor comtempo de trabalho. É estaincompatibilidade que é preciso, agora, explicitar. Feito isto, se nossos resultados foram considerados necessários, é a lei do valor-trabalho que deverá serrepelida.

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Nossos esquemas de reprodução simples (além de incluirem a suposiçãosimplificadora de que o equipamento se desgasta inteiramente no períodoconsiderado) estão montados, como é habitual, sobre a hipótese de que existeapenas uma troca anual entre os três setores (ao fim de cada ano), na qual oscapitalistas de II e III renovam seu equipamento e transferem para o setor I amassa de alimentos e artigos de luxo que será consumida neste último setorno ano seguinte. Deste modo, o período de rotação do capital é igual a umano e a soma dos gastos em equipamento e força de trabalho, durante o ano,se identifica com o estoque de capital total antecipado pelos capitalistas.Assim, quando transformarmos as grandezas que aparecem nos esquemas dereprodução em tempo de trabalho, C, o capital constante, e a massa detrabalho morto (trabalho passado) usada no período' em combinação com Vmais S, que representam, respectivamente, a quantidade de trabalho vivo pagoe não pago realizada no período.

Suponhamos que as quantidades de nosso primeiro esquema de reprodução (situação inicial) representam quantidades de trabalho. C era = 400 etransforma-se em 420 nas duas transformações analisadas. Este aumento de5% no valor-trabalho total contido nos equipamentos reflete um aumento de5% na quantidade física de equipamentos, pois não houve alteração alguma natécnica de produção dos equipamentos.

Não modificamos o salário real dos trabalhadores (definido pelo mínimo de subsistência); assim, a diminuição da produção, física de alimentos,idêntica nos dois exemplos considerados, representa uma diminuição proporcional da quantidade de trabalho vivo realizada no conjunto do sistema. Passamos de uma produção de200 alimentos para 180; isto significa que trabalhadores foram desempregados, e que o trabalho vivo realizado no sistema (= Vmais S) reduziu-se também em 10%. Então V mais S, que era 400 em t. detrabalho no primeiro esquema de reprodução (situação inicial), deve ter passado para

400 -4 0 0 • (10/100) = 400 - 4 0 = 360360 é o novo V mais S em tempo de trabalho, nos dois casos considerados.

A nova razão (V + S)/C em tempo de trabalho é 360/420A nova soma C + V + S em tempo de trabalho é 420 + 360 = 780

(A razão e a soma que nós encontramos, desrespeitando a lei do valor,são, respectivamente, 380/420 e 800).

É claro que os novos valores-trabalho, por serem incompatíveis com areprodução simples (já que as composições orgânicas diferem depois das transformações técnicas, tornando diferentes as taxas de lucro calculadas emvalor-trabalho) deverão ser transformados, segundo Marx, em preços de produção. Mas a transformação dos valores em preços de produção, no espíritode Marx, deve fazer com que (de algum modo) os agregados em preços de

produção sejam umreflexo dos agregados em tempo de trabalho; caso contrá-

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rio, não existiria nenhum nexo necessário entre os valores-trabalho e os pços. Este vínculo entre valores e preços pode ser definido de diversas manras.

Os preços de produção agregados segundo Marx (usando um detminado tipo de processo de transformação) poderiam reproduzir a razão VS / C calculada em valor. Os preços de produção agregados poderiam tamb(usando, por exemplo, a transformação Win temi t/.) reproduzir a soma C + S calculada em valor. Em ambos os casos, como já vimos, os resultadseriam discordantes dos nossos.

Suponhamos, no entanto (como parece pretender Meek), que a tranformação deva preservar ataxa de lucro em tempo de trabalho, quando passamos de valores para preços.

No primeiro exemplo (aumento da composição técnica em 111 ou

como o valor da força de trabalho não se alterou, a taxa marxiana de ma-valia deveria ficar constante ao nível de 100%: a diminuição de V para implica numa redução de S para 180. A nova taxa de lucro em valor seria / (180 + 420) = 180/600. Ora, já demonstramos que a taxa de lucro compvel com a reprodução simples é 200/600 = 1/3. E a taxa de exploraçnecessária segundo nosso cálculo é 200/180 e não 180/180.

O segundo exemplo (aumento da composição técnica em II = A) é mcomplexo. Ainda que não se tenha modificado o preço de produção da fode trabalho (segundo nosso cálculo), diminuiu o tempo de trabalho na pro

ção de alimentos e com isto diminuiu o valor-trabalho da força de trabalhoque aparentemente poderia explicar, numa ótica marxista, o aumento enctrado na taxa de exploração. Em quanto diminuiu o valor-trabalho da fode trabalho (ou dos alimentos)? Anteriormente, 200 alimentos eram proddos com 100 unidades de trabalho morto e100 unidades de trabalho vivo,tendo um valor total de 200 (C2 + V2 + S2 = 200). O valor-trabalho unitâdo alimento era 1. Agora, 180 alimentos são produzidos com 110 unidadestrabalho morto e uma quantidade de trabalho vivo reduzida em 50% (poisalário real total, i.é, os alimentos pagos aos trabalhadores no setor II, re

ziu-se de 50 para 25, representando uma diminuição proporcional do trabavivo empregado no setor). Então usam-se agora 110 unidades de trabamorto mais 50 unidades de trabalho vivo, ou 160 unidades de trabalho, p produzir 180 alimentos. O valor de 1 alimento é 160/180 = 0,8888... Coera antes igual a1, reduziu-se em11%, tendo-se reduzido na mesma proporção o valor-trabalho da força de trabalho.

Em conseqüência, com a redução em 10% h força de trabalhototal empregada pelo sistema, com a redução em10% do trabalho vivo total utilizado (que torna-se 180 + 180 = 360), a taxa de exploração não poderá per

necer = 180/180, mas deverá tratisformar-se em18 0( 1 + 11 /1 00 ) ^ 180 + I 8,9 _ 198.9 = , -,3

180(1 11/ 100) 18018.9 161.1

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Esta taxa de exploração final é superior a que encontramos (280/180 =1,111). Isto significa que, se a taxa de exploração aumentada fosse calculadasegundo a teoria do valor trabalho, o aumento da taxa de exploração teria nãosó evitado a queda da taxa de lucro, mas provocado suaascensão para além de1/3. Já verificamos, no entanto, que para preservar o equilíbrio da reprodução

simples, ela deve ser exatamente =1/3. Deixamos aos partidários da teoria dovlr-trab, o encargo de provar em que condições uma taxa de lucro maior seriacompatível com aquele equilíbrio.

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A PREFERÊNCIA PELA LIQUIDEZE A EFICIÊNCIA MARGINAL

DO CAPITAL SEGUNDO GARDNER ACKLEY

Pretendemos neste trabalho submeter a breve exame a versão do ensinamento de Keynes sobre a preferência pela liquidez e a influência da taxa de

juros sobre o nível de investimento, tal como é apresentado num compêndioconhecido, aTeoria Macroeconômica, de Gardner Ackley. Discussões recentestêm apontado diversos aspectos do processo sutil de transformação a que foisubmetido o pensamento de Keynes para acomodá-lo ao essencial (ou aoremanescente) da ortodoxia neoclássica dominante antes do aparecimento daTeoria Geral. O texto selecionado nos defronta com um exemplo, entre outros, dos resultados deste processo. Por tratar-se de compêndio, situa-se nosestágios finais do processo de formação e difusão das idéias econômicas, e nãonos permite talvez surpreender um momento do próprio trabalho coletivo deconstrução de nova ortodoxia. Mas é, possivelmente, significativo, por espelhar o que chegou a ser aceito como sua forma final, ao termo deste processo,suficientemente consensual e respeitável para servir de base à prática acadêmica de transmissão do saber econômico.

A preferência pela liquidez

Joan Robinson sugere, em Heresias Econômicas, que a impossibilidadede insuficiência da demanda efetiva no universo de Ricardo decorre naturalmente do tipo particular de sistema econômico descrito em seuEnsaio sobre

Para as duas referências principais são usadas as seguintes abreviaturas:TG: J. M. Keynes, Teoria G eral do Emprego, do Juro e do Dinheiro, Fu nd o de Cultura,

Rio de Jan eiro, 1970.'TM: Gardner Ackley, Teoria Macroeconômica, Livraria Pioneira Ed itora, São Paulo, 1969,

2 vols.

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o Lucro,, anterior à redação dosPrincipios. Trata-se de economia agrícolaonde o único bem, o trigo, é obtido como produto e usado como insumo. Aoinicio do período de produção, os capitalistas adiantam uma certa quantidadede cereal que inclui tanto as sementes a serem lançadas a terra quanto osalario anual em espécie, fixado ao nível mínimo necessário para garantir a

subsistência dos trabalhadores até o término da colheita. Ao final do ano oscapitalistas obtêm, em trigo, a reposição do investimento inicial e apro- priam-se da diferença entre a produção e os insumos. Este excedente não étransacionado num mercado; ele cai automaticamente nas mãos da classe proprietária, qualquer que seja o uso que esta pretenda lhe dar (inclusivedeixá-lo amontoar-se nos celeiros). Em nenhum ponto do sistema se manifestaum excesso de produtos indesejáveis. A demanda alçança necessariamente aoferta.

Ao procurar reconstituir em que consistia a “Economia clássica”, queKeynes se propôs a demolir, Ackley é levado a se perguntar em que condições

poderia ser válida a Lei de Say num universo econômico onde existe divisãodo trabalho (e, logo, a diversidade de produtos) e um mercado onde os

produtos são trocados. De início, ela é intuitivamente válida se as trocas seefetuam sob a forma deescambo, sem a intervenção de uma mercadoria--moeda. Nestas condições, cada indivíduo produz ou para seu próprio consumo ou para obter, por permuta direta, bens produzidos por outrem:

“A produção de cada homem (oferta) constitui a sua procura por outros bens e, portanto, a procura agregada deve de alguma forma igualara oferta agregada. A produção total pode ser limitada pelo fato de que,em algum ponto, para cada indivíduo, as satisfações decorrentes de um pouco mais de lazer suplantarão o sacrifício da maior quantidade de bens que poderia ser obtida, mas tal “desemprego” será ‘Voluntário” enão “involuntário”.1A introdução da moeda, no entanto, faz surgir um novo problema. Não

é mais logicamente necessário, que toda venda esteja vinculada a uma com pra, pois se os vendedores se tornam subitamente mais frugais podem entesourar indefinidamente a moeda obtida, desfalcando a demanda dos outros produtos. “. . . para uma economia que emprega moeda, a Lei de Say está longede ser óbvia.”2 A rigor, não se pode dizer sequer, neste ponto, se a lei éviolada com este súbito ato de entesouramento que imaginamos, isto é, se aconseqüência final é o surgimento de um “equilíbrio de desemprego” ou se odesfalque (temporário) da demanda conduz apenas a um declínio do nívelabsoluto de preços. Na apresentação inicial, no texto de Ackley, a vigência daLei de Sav parece estar associada à exclusão de ambos os efeitos, pois estáintimamente ligada à teoria quantitativa da moeda e tem, como esta, um pressuposto comum: os indivíduos não desejam a moeda por si mesma, mas

*TM, p. 1282TM, p. i 30

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conservam-na apenas como inevitável meio de troca.3 O estoque de moedaretido por um indivíduo é estritamente proporcional ao fluxo de despesas eque ele incorre durante o intervalo entre dois momentos de obtenção dreceitas, ou, inversamente* é proporcional ao fluxo contínuo de receitas entas datas em que ele se desfaz de seu encaixe pagando os credores. Assim, da

o estoque de moeda de que dispõe a comunidade, o volumereal das transações efetuadas e os intervalos institucionalmente consagrados entre os pagmentos, fixa-se o nível absoluto de preços segundo a teoria quantitativa moeda. Se a renda monetária auferida por um indivíduo excede o fluxmonetário de compras desejadas, ele transfere seu poder aquisitivo a outindivíduo interessado em realizar despesas produtivas em novos meios d produção, em troca de uma participação futura nos frutos deste investimeno que é sempre mais vantajoso do que manter esterilmente sua poupança sforma líquida. Sempre que o investimento permitir rendimento positivo, se

interessante esta transferência de fundos, e a Lei de Say assume o significade que a poupança desejada a nível de renda não pode ultrapassar o invesmento que a compensa, produzindo desfalque na demanda efetiva. Mas, dàa hipótese da recusa dos indivíduos a manterem encaixes ociosos (do ponde vista do motivo transacional para a retenção de moeda), ela está tambéassociada à idéia de que é impossível (como manifestação de uma insuficiêcia temporária da demanda) um declínio do nível geral de preços, sem modcações da oferta de moeda. Todo o impacto de eventual crescimento d poupança incide sobre ataxa de juros —possivelmente deprimindo-a, para darorigem a incremento correspondente das despesas de investimento.

Mas é sabido que estes resultados clássicos não podem ser obtidos' sedemanda de moeda contiver componenteespeculativo que é sensível às modificações da taxa de juros. Para tanto, segundo Ackley, basta que exista mercdo para compra e venda de títulos que representam direitos à participação nrendimentos do estoque existente de meios de produção. Através deste merdo, todos os títulos existentes (quer os atualmente emitidos, que correspodem a uma demanda presente de investimento, como os títulos emitidos

passado) estarão sujeitos à processo de avaliação permanente. Quanto maio preço de aquisição do título, menor a percentagem de juros garantida ao scomprador com base no rendimento nominal a que ele dá direito. A instabdade destes valores produz como resultado que, a todo momento, para umdada taxa de juros vigente no mercado, exista uma massa de moeda queretida não tendo em vista compras de mercadorias num futuro próximo, mque é conservada por aquela parcela dos compradores potenciais de títulque julga que a taxa de juros está excessivamente baixa para que possa manter. Esses compradores com expectativas “altistas” com relação à taxa

juros mantêm uma reserva especulativa de moeda destinada a compras futude títulos, em condições mais vantajosas, quando ocorrer a esperada baixa

3TM, p. 128 e 130.

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stni preço (isto é, a elevação da taxa de juros). A análise do funcionamento«Joslc mercado levou Keynes à proposição segundo a qual, quanto mais baixaii luxa vigente de juros, maior deve ser o número de compradores potenciaisde Iflulos que acreditam que ela logo tornará a se elevar. É mesmo plausívelque exista uma taxa mínima de juros (bastante baixa, mas positiva), capaz de persuadir atodos os especuladores de que tal elevação não tardará a ocorrer,linquanto não se atinge este limite, qualquer declínio da taxa de juros drenafração crescente do estoque de moeda da esfera das transações para a retençãoespeculativa, incidindo, portanto, sobre o nível da demanda monetária de mercadorias e sobre o nível de preços.

Compreende-se deste modo que, para completar o quadro das hipótesesnecessárias ao funcionamento dos mecanismos clássico?, Ackley exclua a existência de mercado onde seja possível a revenda de títulos antigos.4 Segundo a hipótese então formulada, todo indivíduo que adquire um valor estádefinitivamente vinculado a ele e passa a usufruir de direito perpétuo aorecebimento de juros. Os títulos são vendidos diretamente aos poupadoresindividuais. Estando então a compra de título ligada ao objetivo deinvestir que preside a emissão, a coincidência entre poupança e investimento decorrede queem geral poupar significa adquirir um título:

“Um poupador, então, tem três escolhas a fazer com a margem entresua renda e sua despesa de consumo: pode aumentar seu encaixe; pode — como empresário —comprar bens de capital diretamente; ou podecomprar títulos recentemente emitidos por um empresário. Nossa hipótese é de que um poupador racional não escolherá a primeira destasalternativas, pela simples razão de que a riqueza acumulada sob a formade dinheiro é estéril —não dá rendimento; as outras formas de riquezatêm um rendimento positivo e são, portanto, preferidas. Relativamente poucos poupadores escolhem a segunda alternativa (apesar de que representam uma fração significativa da poupança total); a maior parte dos poupadores prefere a terceira.(...) Observe-se que a hipótese aqui não é necessariamente a de que as pessoas poupem de forma a obter um rendimento de suas poupanças;nem que elas poupem mais ou menos se o rendimento for maior oumenor. A hipótese é mais a de que, se algum rendimento sobre as poupanças estiver disponível, será ele preferido a nenhum rendimento.Também é verdade que a maioria dos escritores clássicos imaginou a poupança como uma função crescente da taxa de juros, mas isto constitui assunto à parte.”5As implicações são claras. Ainda que o consumo seja uma função da

renda real, isto não excluirá os mecanismos clássicos, pois a poupança queseria gerada por uma renda de pleno emprego, por mais elevada que fosse, não

4TM, p. 160.sTM,p. 160.

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faria aparecer encaixes ociosos tornando a demanda insuficiente a um nível de preços, desde que o investimento prometaalgum rendimento positivo para induzir os poupadores a renunciarem a manter sua poupança sob flíquida. 0 que se afastou aqui, com a exclusão da demanda especulativamoeda, foi a chamada “armadilha da liquidez”, ou a possibilidade de q

juro aceitável pelos empresários, embora positivo, esteja abaixo de um superior a zero exigido pelos poupadores para desistirem do entesourameQualquer taxa de juros positiva fará com que estes renunciem aos enc“ociosos”. Mas, para excluir a outra possibilidade incómoda que decoranálise keynesiana, a “inconsistência” entre poupança e investimento, é nsário que o investimento de pleno emprego (por mais elevado que seja) ça sempre perspectiva de lucro positivo sobre o capital adicional:

“Aqueles que emitem títulos que os poupadores podem comprar sclaro, os empresários que desejam adquirir bens de capital a uma

em excesso daquela que é possível obter com sua própria poupançaEstão dispostos a incorrer na obrigação de pagar juros porque vêemoportunidade — através do uso dos bens de capital — de obter margem sobre todos os seus custos...(...) O que a teoria clássica tinha a dizer sobre este mercado (de títera que... ele funcionava... produzindo uma igualdade entre emprésou compra de títulos (que se poderia supor igual à poupança) e tomde empréstimos ou vendas de ações (que poderia ser suposta iguainvestimento)”.6Para AckJey, Keynes pôs em xeque a opinião clássica quanto à necdade do equilíbrio de pleno emprego ao mostrar a possibilidade teóric

duas situações conhecidas como “armadilha da liquidez” e “inconsistentre poupança e investimento”.7 Ambas têm como base a idéia de que poupança é função da renda e que investimento que equilibraria a poude pleno emprego pode ser inatingível. No primeiro caso (o da “armadilliquidez”) esta insuficiência do investimento tem seu fundamento na im bilidade de comprimir a taxa de juros a nível suficientemente baixo, osegundo Ackley, parece está ligado, via demanda especulativa de moe

existência de mercado para revenda de títulos. No segundo caso (o da “isistência”), o investimento que possibilitaria o pleno emprego é inalcanem qualquer hipótese por exigir uma taxa negativa de juros. Ambas as ções tornam impossível a existência de um equilíbrio de pleno empregquestão suplementar que se coloca é a de se saber se, partindo-se de hiposituação de pleno emprego, uma diminuição drástica da propensão a cmir, dando origem a alguma das duas incompatibilidades mencionadas, ataria um declínio indefinido do nível absoluto de preços (ou seja, um delíbrio permanente) ou a estabilização do sistema num equilíbrio de desem

go. A introdução da hipótese keynesiana de relativa rigidez dos salários 6t m , p. 161.7TM, p. 191.

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miiIü permite optar pela segunda alternativa. À medida em que declinam os pieçus, eleva-sc então o salário real. Se se admite que a produtividade marginal do trabalho é decrescente (hipótese neoclássica incorporada ao sistemakeynesiano), os empresários contrairão então, voluntariamente, a produção e oemprego até que se alcance o nível de renda que equilibra a poupança e oInvestimento.1' Km suma, a inflexibilidade dos salários monetários não éInlrodu/.ida no corpo das hipóteses para mostrar a eventual impossibilidade de

ñA loorüi da distribuição ado tada por Keynes na Teo ria Geral é, em substância, uma teo-i ui neoclássica, o que se reflete no endosso dado ao “prim eiro postulado” segundo oq ua lii sal lírio “é igual ao produ to marginal do trabalho” (TG, p. 18, cap. 2, seção I)’ Estaiiilosflo, que re presen tao trib uto pago pelo iconoclasta à obra de seus predecessores, presta-M- ,i servir como po nto de partida a alguns comentários marginais com relação ao tem acentral deste trabalho.A) A proposição citada acim a refere-se apenas a umresultado do processo econôm ico cu

ín necessidade Keynes reconhece com o ineren te à lógica do sistema cap italista, desde quese admita a hipótese de que, fixado o estoque de capital, os rendimentos do trabalho sãodecrescentesà medida em que aumenta o emprego. Mas em Keynes o próprio produtomarginal (determinante do salário) é uma variável a ser explicada, por depender do nívelde emprego. Assim sua teoria do salário difere da teoria neoclássica no que se refere àcompreensão do processo pelo qual o salário real se estabelece num determinado nível:a barganha sindical fixa o salário monetário e a demanda efetiva atua sobre o nível geralde preços para fixar o salário real e o emprego (é curioso, aliás, que Steindl, invocandoKeynes, rejeite em Max a idéia de que a luta de classe possa ter um impacto direto sobreos salários reais sem dar-se conta da premissa marginalista que está por trás do ponto devista keynesiano: a produtivuidade decrescente do trabalho a curto prazo —premissa quecie próprio descarta por seu irrealismo).

Isto significa que a teoria “keynes iana” da distribuição que Kaldor extraiu de umasugestão doTreatise onMoney encontra-se presente na própria Teoria Geral, em algunsdc seus aspectos, como complemento necessário a uma visão essencialmente neoclássica.Segundo a concepção elaborada por Kaldor (que pretende ser válida para o longo prazo),dado o salário nominal e as diferentes propensões a consum ir de traba lhadores e capitalistas, o nível de inves timento desejado por estes últim os age sobre o nível de preços (e assimsobre o salário real) de modo a produzir uma repartição do produto que iguale a poupança ao investimento. De forma similar, naTeoria Geral, uma expansão do investimentonuma situação de subemprego gera um fluxo adicional de demanda que se multiplica pelo sistema, e a cada momento do processo (dada a impossibilidade de expandir instantáneamente a oferta) a reação inicial é uma elevação dos preços que induz os empresáriosa contratar mais empregados a um salário nominal dado. Ao termo do processo, verifica-se que o incremento da demanda se resolveu em parte num aumento da produção e em parte numa elevação do nível de preços (vide as equações do Keynes, TG,p. 273, cap.20, seção 0 . É esta elevação dos preços que permite o aum ento do emprego ao deprimiro salário real.B) O que foi dito acima em que a resposta primária a um incremento da demanda (a cadaetapa da operação do multiplicador) é uma alta de preços, antecedendo esta à expansãoda oferta. No entanto, Axel Leijonhufvud, num artigo (por outros motivos notável) so

bre a obra de Keynes, af irma explicitamente o contrário: “ Keynes to mou emprestado deMarshall o método de tentar analisar processos dinâmicos com um instrumental de estática comparativa. A diferença crucial reside na inversão feita por Keynes na hierarquia das

velocidades de ajustamento de preços e quantidades subjacente à distinção de Marshallentre o “instante do mercado” (inarket day) e o “curto prazo”. A resposta inicial a umdeclínio na demanda é um ajustamento de quantidades.” (A. Leijonhufvud, “Keynes

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Admitiremos, portanto, nas páginas que se seguem, que os salários nominais são rígidos e que a demanda de mão-de-obra é função decrescente dosalário real. Em conseqüência, toda situação considerada de insuficiência dademanda efetiva, supostamente provocará tanto um declínio do nível de preços como do produto real e do emprego. O que nos interessa pôr em questão

aqui é, em particular, um outro pressuposto da análise de Ackley: a associaçãoque ele estabelece entre a existência de um mercado de títulos e o fenômenoda demanda especulativa de moeda. Talvez seja esclarecedor, para este fim,transcrever a passagem em que põe em destaque este aspecto de sua versão dateoria keynesiana:

“O que Keynes demonstrou é muito simples. Um aumento do desejo de poupar ou um decréscimo nas perspectivas de1investimento tenderiam,na verdade, e muito naturalmente, a reduzir as taxas de juros. Isto é,tenderiam a aumentar os preços dos títulos. Se não houvesse mercadode revenda de títulos, não haveria problema. Mas ao introduzirmos omercado de revenda, e reconhecermos que o volume de valores próximodo vencimento é muito grande, em comparação com a quantidade denovas emissões, devemos considerar como o detentor do título se com portaria provavelmente, ao crescerem os preços dos títulos (..^...Su ponhamos que na situação presente ele nada visse a indicar que o nívelde preços permaneceria mais elevado. Poderia então interpretar esteaumento como coisa temporária, provavelmente, invertendo-se mais tarde. Se esta for sua expectativa, ele lucrará se vender suas ações... (...)Além disso, os poupadores correntes também consideram a alta dos preços como temporária. Em lugar de comprar ações com sua poupança, eles podem meramente conservar o seu dinheiro e aguardar o declínio esperado no preço.”10O aspecto mais contestável da exposição de Ackley parece-nos residir

nesta vinculação que ele estabelece entre os fenômenos descritos sob a rubricada “preferência pela liquidez” e o dado institucional da existência de mercado

para a revenda de títulos. É verdade que a possibilidade sempre dada aosindivíduos de reconverterem em moeda os ativos (aumentando com isto aoferta de títulos) maximiza o impacto quantitativo que as flutuações da preferência pela liquidez podem ter sobre as condições de financiamento dosnovos investimentos (além de frear, como no exemplo acima, a necessáriaqueda da taxa de juros quando a poupança desejada aumenta). É verdadetambém que o próprio Keynes desenvolveu sua análise tendo em vista aexistencia daquela instituição e o seu funcionamento normal numa modernaeconomia capitalista. Ele enfatizou mesmo seus efeitos mais negativos sobre aestabilidade do nível de investimento, mostrando como o comportamento

o equilíbrio a menos que o pleno emprego seja impossível com os salários flexíveis (como poderia alguém negá-lo?) e, mesmo assim, não acreditar que os salários monetáriosdecrescentes conseguirão eliminar o desemprego.” (TM, p. 407).10TM, p. 194. F R

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especulativo com relação às reavaliações dos títulos e as mudanças irracinas previsões dos indivíduos envolvidos em negociá-los conduzia a flutu perturbadoras na taxa de juros. Mas- Keynes foi também claro ao indicarnão existindo esta regra do jogo que dá a cada indivíduo que “investe” nsa a ilusão de que seu investimento é “líquido”, podendo, a todo mom

ser reconvertido em dinheiro, a decisão de comprar um título tomar-se-imais assustador por sua irrevogabilidade, e a preferência pela liquidez intensificada:

“O espetáculo dos mercados financeiros modernos levou-nos alguvezes a concluir que, se as operações de investimento fossem torndefinitivas e irrevogáveis, à maneira do casamento, salvo em casomorte ou por outro motivo grave, os males de nossa época serutilmente aliviados, porque isso obrigaria os investidores a dirigiratenção apenas para as perspectivas a longo prazo. Mas, basta um

mento de reflexão para compreender que semelhante método nos lum dilema, e nos mostra que se a liquidez do mercado financeirvezes dificulta o investimento novo, em compensação facilita-o mais freqüência; porque o fato de cada investidor individualmentesiderado ter a ilusão de que interveio num negócio “líquido” (emisto não possa ser verdadeiro para todos os investidores coletivameucalma-lhe e anima-o muito mais a correr o risco... (...) Na medidaque o indivíduo possa empregar sua riqueza entesourando ou emtandodinheiro, a alternativa de comprar bens reais de capital não s

bastante atraente (sobretudo para o homem que não maneja esses e pouco sabe a respeito deles), exceto organizando mercados onde bens possam converter-se facilmente em dinheiro.”11Isto nos sugere que, se as regras do mercado financeiro obrigasse

“casar” indissoluvelmente o título com seu comprador, como na hipóteAckley, a conversão imediata da poupança em títulos não seria o compmento mais lógico, desde que o universo econômico descrito comportamínimo deincerteza normal num mundo onde decisões desta ordem sdecisões privadas. Pois é a incerteza que constitui o dado geral que está

base da teoria keynesiana da preferência pela liquidez; ela conduz a estvas subjetivas e divergentes entre os indivíduos a respeito de se o prêmiorenúncia à liquidez, isto é, o juro, deve ou não elevar-se num futuro próinduzindo alguns deles a protelar a sua renúncia até este futuro no qualocorrer a esperada elevação do prêmio. De que a incerteza foi eliminadaquanto possível por Ackley em sua exposição, nós temos o indício, aliáfato de que ao tratar dos determinantes da demanda de moeda, ele consapenas a existência dos motivos transacional e especulativo, ignorandomesmo na determinação do encaixe de moeda destinado a transações

produtos a incerteza insere componente mais instável e capaz de afet

11TG, p. 157, cap. 12, seção VI.

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velocidade da circulação: os encaixes mantidos pelo ipotivo precaucional, que,segundo Keynes, destinam-se (além de garantir o pagamento de dívidas) a“atender às contingências que requerem despesas inesperadas e às oportunidades imprevistas de realizar compras vantajosas...”12

Se a análise anterior de Ackley fosse correta, num mundo sem bolsa de

valores, uma diminuição súbita da propensão a consumir desviaria fluxo demoeda correspondente à poupança adicional do mercado de bens de consumo para a compra de títulos, provocando a queda da taxa de juros necessária paraincrementar o investimento na medida suficiente. Por intermédio deste acréscimo, a moeda seria devolvida novamente à esfera das transações de mercadorias. Mas, se os pressupostos keynesianos são válidos mesmo neste mundo,assim que se produzisse alguma queda na taxa de juros, ao menos uma parcelados poupadores (tomados mais frugais mas não menos interessados em seusrendimentos- futuros) passaria a pensar que a taxa estava abaixo de seu nível

normal. Em algum ponto a queda da taxa de juros seria então interrompida pela disposição dos poupadores “altistas” a reterem a poupança sob formalíquida. O investimento não chegaria a equilibrar a poupança desejada e fração do estoque de moeda seria desviada do mercado de bens. Desencadear-se--ia a queda do nível de preços e (se os salários nominais fossem rígidos) aredução do emprego e da renda, que se prolongaria até que a poupançadesejada igualasse o investimento. Ter-se-ia atingido neste ponto posição desubemprego estável (tão estável quanto o pode ser a própria posição da curvakeynesiana de preferência pela liquidez).

Neste universo que estamos considerando, a impossibilidade de transferir para terceiro, o título adquirido faz com que mal se diferencie a posição deseu comprador da posição do próprio empresário que adquire novos meios de produção, no que se refere ao risco incorrido pela transformação irreversívelde um ativo líquido num ativo que promete apenas rendimentos incertos nofuturo. Isto sugere também que os processos descritos acima ocorreriam deforma substancialmente idêntica numa economia onde todo investimento fosse autofinanCiado, e onde toda a poupança fosse realizada por empresárioscom o objetivo de aplicá-la a seus negócios individuais. Basta evocar umdentre os inúmeros motivos de incerteza que podem preocupar o empresário,quando se trata de decidir a forma e o tempo oportuno de uma imobilizaçãode riqueza em bens de capital. O rendimento esperado é o critério decisivo aeste respeito, e o empresário pode, por exemplo, se chegou a ele a sugestão denovo invento suscetível de se difundir em seu ramo nos próximos anos, protelar a ampliação de suas instalações durante o tempo necessário para aperfeiçoar e tomar tecnicamente viável o desenho da nova máquina. A perda imediata de lucros em que ele incorre por este motivo pode estar mais do quecontrabalançada, em suas previsões, pela situação que lhe acarretaria o investimento precipitado num equipamento destinado a tomar-se obsoleto, e pelo

12TG, p. 190, cap. 15, seção I.

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perigo de compressão das margens de lucro se nos anos seguintes a inovaçintroduzida pelos concorrentes, arrastasse para baixo o preço de seus pdutos. Assim, na hipótese admitida de início (isto é, se não há um mercadocapitais), os fundos necessários para a construção do equipamento novo pmanecerão retidos em forma liquida, enquanto a inovação amadurece, e edecisão individual provocará a pequena queda do nível de preços e do emgo no conjunto da economia.

O exemplo em pauta foi escolhido deliberadamente para sugerir qumesmo na economia ricardiana a que se faz alusão no início do texto, em um único bem é produzido (e onde, por definição, não existem sequer tranções monetárias com mercadorias), não está garantido um equilíbrio de plemprego. Aparentemente a demanda não pode ser insuficiente, pois só produz o que se deseja; não se produz paratroca, mas para uso dos própriosagentes de produção. Se os capitalistas estão interessados em multiplicar capital-trigo, e se este é suficiente para distribuir sementes e meios de subtência para todos os trabalhadores disponíveis, não há razão para que nrealizem a produção máxima. No entanto, basta que, à semelhança do ex plo acima, os capitalistas esperem receber de agrónomo contratado, dentroduas semanas, conclusões claras a respeito de novo método de preparo do sque se encontra em estudo, para que se disponham a retardar pelo pranecessário a época da semeadura. O desperdício temporário de certo númde sementes que não poderá ser aproveitado neste ano pode ser mais do compensado se se prevê que o novo método em gestação pode duplicarrendimentos físicos do estoque restante. A riqueza dos capitalistas rurais sconservada em forma “líquida” nos celeiros, pois neste caso o investimereal e a decisão irreversível consistem em lançar os grãos à terra. O grãtambémreserva de valor , embora com ele nada se compre a não ser força dtrabalho. E enquanto se espera, a produção é suspensa e os trabalhado permanecem sem emprego. Se nem todos sobreviverem, os capitalistas terão de imediato grandes problemas, duas semanas mais tarde, pois, um nor número de homens será necessário neste ano para a semeadura.

Se esta manipulação de universos econômicos imaginários tem'algu

sentido, o que ela nos indica é que as conclusões essenciais da teoria keynessão aplicáveis a qualquer mundo possível onde a decisão de investir cabuma minoria de proprietários não-trahalb.adores, e tem o caráter de decisãovada e autônoma, movida pelo objetivo de lucro e perturbada pela incerteEm particular, a vigência destas conclusões não exige como hipóteses necessánem a separação entre poupadores e investidores, nem mesmo que o sisteeconômico considerado seja uma economiamonetária no sentido convencional da palavra. O aparente exagero desta última afirmativa não pode ter nde surpreendente se nos recordarmos que o próprio Keyne escreveu:

“A moeda, considerada em seus atributos mais significativos, é sobtudo um processo sutil de ligar o presente ao futuro, e sem ela nsequer poderíamos iniciar o estudo dos efeitos das previsões mutáv

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sobre as atividades correntes. Debalde tentaríamos libertar-nos déla,mesmo abolindo o ouro, a prata e os meios legais de pagamento. Enquanto subsistir algum bem durável, ele poderá possuir os atributosmonetários, e portanto dar origem aos problemas característicos de urnaeconomia monetária.” 13

A eficiência marginal do capital

O investimento pode ser concebido como acréscimo ao estoque de meios de produção existente que não envolve nenhuma modificação em suascaracterísticas físicas, exigindo, em conseqüência, um aumento na quantidadede trabalho empregada quando o novo equipamento é posto em uso. Mas

pode-se entendê-lo também como aumento do valor do capital utilizado poruma mão-de-obra dada, implicando na passagem para novas técnicas que tornam mais eficientes o trabalho humano. Em diversas passagens de seu capítulo sobre “A Natureza do Capital”, Keynes refere-se ao processo de acumulação tendo em mente a segunda alternativa: a passagem para métodos cada vezmais indiretos de produção (com uma mão-de-obra estável) produz acréscimossucessivamente menores no produto e o estágio final do processo, segundo suavisão, assume a forma de problemática versão neoclássica (wickselliana) doestado estacionário: a eficiência marginal do capital reduzida a zero impossibilita a realização de novos investimentos que compensem o desejo de pouparinevitável numa comunidade rica. Sugestões desta ordem facilitaram o caminho da reinscrição da teoria keynesiana do investimento no corpo da doutrina marginalista, segundo a qual o incremento da dotação de capital é movimento que se realiza ao longo da função de produção em busca do nível deequilíbrio na razão c apitai /trabalho, e em resposta à variação dos preços relativos destes “fatores”.

Assim, no compêndio de Ackley, o juro é encarado como a remuneração de um fator de produção, o capital; o efeito positivo da queda da taxade juros sobre o investimento resulta de que este declínio toma rentáveismétodos mais capital-intensivos. Para efetuar esta passagem “da teoria docapital à teoria do investimento” (usando a expressão que serve de título a

uma subseção de seu livro), Ackley estabelece a ponte entre o conceitotradicional de produtividade marginal do capital (que deve igualar-se à taxa de juros na concepção neoclássica) e o conceito deeficiência marginal do capitalque Keynes define como a “taxa de desconto que, aplicada à série de anuidades constituída pelas rendas prováveis desse capital durante toda a sua existência, tornaria o valor presente dessas anuidades igual ao preço de oferta docapital.”14 0 que está implícito na exposição de Ackley é a idéia de que ouso de aparato essencialmente neoclássico faz sentido desde que a produtivi

13TG, p. 283, cap. 21, seção I.14TG, p. 135, cap. 11, seção I.

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dade física dos meios de produção esteja de algum modo associada e tuma incidência direta sobre o valor dos rendimentos futuros que se porazoavelmente esperar.

A maneira como Ackley explica o efeito da taxa de juros sobrinvestimento pode ser facilmente apreendida com o auxílio de uma repr

tação geométrica que ele utiliza, reproduzida na figura l .15 A parte A dodiagrama representa a eficiência marginal do capital (i) como função decente do estoque (K) de capital acumulado. A parte C mostra o custo crete de produção dos bens de capital para cada nível de oferta desses bassociado a um nível de investimento; o preço x , em particular, corresponde auma produção de bens de capitalOA destinada exclusivamente a repor oequipamento desgastado, isto é, a um investimento líquido nulo. Na pado diagrama, pode-se traçar uma curvaEMI para cada estoque de capital jáacumulado (representado na parte A) e para cada valor correspondenteficiência marginal do capital (it , im, etc.); esta curva indica o que Ac

1STM, p. 511.

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denomina a “eficiência marginal do investimento”, ou seja, a relação entre osrendimentos esperados dos novos bens de capital que são atualmente produzidos e o valor destes bens (usando a fórmula já conhecida da taxa de desconto); esta relação declina quanto mais elevado for o nível de investimento emconseqüência do aumento do preço de oferta dos bens de capital.

Suponhamos agora que o estoque de capital existente na economia sejaigual aK 0, com a eficiência marginal correspondente ao nível ii, e que a taxade juros tenha se reduzido a r 0. A que ritmo o investimento conduzirá osistema a ajustar-se a seu novo ponto de equilíbrio, com uma dotação decapital mais elevada? Segundo Ackley:

“Se na parte A a taxa de juros for dada ao nívelr0 e o estoque decapital existente forK 0, haverá então um hiato entre o estoque corrente e o estoque ótimo, K. Isto torna o investimento lucrativo, mas aque nível de produção? Obtemos na parte B a resposta. Traçamos uma

curva denominada EMI (“eficiência marginal do investimento”). Estacurva começa no nível i i , sendo este o nível de rendimento dos bens decapital quando o estoque corrente forK 0 (vide parte A) e quando ocusto de produção dos bens de capital estiver no nível x AEMI, porém,declina à medida que a velocidade do investimento cresce, refletindo ofato de que taxas maiores de investimento aumentarão o custo de produção dos bens de capital (...) Qual será então a taxa de investimento?Será, é evidente, I0. A esta taxa o custo dos bens de capital foi elevadoa um nível suficientemente alto para que um aumento adicional da tgxade investimento reduza o rendimento percentual dos bens de capital aum ponto abaixo da taxa de juros. I0 é, portanto, a taxa de equilíbrio acurto prazo do investimento”.16Ackley explica em seguida que, assim que os bens de capital novos são

incorporados ao estoque existente, a eficiência marginal do capital deve declinar. Assim, quando o estoque de capital alcança o nívelK m, na parte A dafigura, a eficiência marginal do capital reduz-se a im e a curva de “eficiênciamarginal do investimento” deve deslocar-se para a posição representada pelalinha pontilhadaEMI’. Se a taxa de juros permanece em seu nível r0, o novonível de equilíbrio a curto prazo do investimento será agora Im ao invés de I0.Deste modo, um declínio da taxa de juros faz com que o estoque de capitalcomece a se aproximar, a uma velocidade cada vez menor, de seu nível ótimo.

Trata-se, sem dúvida, de construção engenhosa e pode-se mesmo admitirque Keynes talvez reconhecesse nela uma representação adequada de seu próprio pensamento. Mas, podemos perguntar também se esta interpretaçãonão toma mais vulnerável a base em que se assenta a relação keynesiana entrea taxa de juros e a demanda de investimento. Afinal de contas, o ato deinvestir não implica necessariamente numa modificação de técnicas, nem é

16TM, p. 511.

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claro que a passagem para técnicas mais capital-intensivas implique nomente em um decréscimo da produtividade do capital (a não ocorrência última possibilidade é aliás racionalizada na teoria neoclássica medianidéia de um deslocamento da função de produção agregada). 0 argummaior, no entanto, reside em que a produtividade marginal decrescentecapital não constitui, de modo algum, elemento essencial à teoria keynedo investimento. Um pouco de reflexão nos mostra que a parte A do diagrama de Acldey é inteiramente supérflua. Quaisquer que sejam os efeitosmos de aumento do estoque de capital sobre a produtividade deste estoqefeito imediato do declínio na taxa de juros é a elevação do valor de demdos bens de capital, o que incentiva a expansão da produção destes benmedida em que esta se eleva, eleva-se também o preço de oferta, até que equilíbrio seja alcançado. Se a eficiência marginal do capital é a taxadesconto que iguala a série dos rendimentos esperados ao valor dos meio

produção, o preço de oferta destes deve aumentar para nivelar a eficimarginal do capital com a taxa de juros. A curva de eficiência marginacapital imaginada por Keynes corresponde ao que Acldey denomina a fude “eficiência marginal do investimento”. A eficiência marginal do capitaeficiência de umacréscimo ao estoque de capital, aeficiência do investimento. No capítulo 11 daTeoria Geral, onde se explica o seu significado, nãé posto em destaque o fato de que o valor desta variável depende, atravnível de investimento, de um preço de oferta dos bens de capital qtambémvariável no curto prazo; Keynes está mais preocupado, neste catulo, em enfatizar a incerteza das previsões empresariais sobre os rendimfuturos. Mas num artigo de síntese publicado ano após aTeoria Geral, eledeixa explícito como o essencial de sua concepção está contido nas parte B eC do diagrama de Ackley:

“O proprietário de riqueza, que foi induzido a não guardar a sua riqsob a forma de dinheiro entesourado, ainda tem duas alternativas as quais escolher. Ele pode emprestar seu dinheiro à taxa corrent

juros monetários ou pode adquirir alguma espécie de bem de capitclaro que em equilíbrio estas duas alternativas devem oferecer vantagem igual ao investidor marginal em cada uma delas. Isto é cguido por deslocamentos nos preços monetários dos bens de carelativamente aos preços dos empréstimos em dinheiro.(...) Esta, então, é a primeira repercussão da taxa de juros, tal cfixada pela quantidade de dinheiro e pela propensão a entesourasaber: sobre os preços dos bens de capital (...)Os bens de capital são suscetíveis, em geral, de serem novamente pzidos. A escala em que eles são produzidos depende, naturalmentrelação entre seus custos de produção e os preços que se espera querealizem no mercado. Assim, se o nível da taxa de juros, combicom as opiniões sobre seu rendimento prospectivo, eleva os preço bens de capital, o volume do investimento corrente... será aumen

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enquanto se, por outro lado, estas influências reduzem os preços dos bens de capital, o volume do investimento corrente será diminuído”.17

o o o

Existe um outró aspecto do problema em discussão que ultrapassa a

questão de saber qual é a interpretação mais adequada do pensamento keyne-siano. Ao vincular o efeito da taxa de juros à escolha da técnica mais rentável,Ackley trata a remuneração do capital como umcusto, a ser minimizado, queo empresário deve pagar pelo uso de um fator de produção cedido por terceiros. Numa outra perspectiva, no entanto, independentemente do fato de queo capital em operação numa firma tenha sido acumulado com urna importante contribuição de financiamento externo, é possível encarar o empresáriocomo representante dos interesses gerais desta unidade de riqueza capitalistaque constitui a firma. Se é esta a posição do empresário, sua conduta deveestar orientada no sentido de maximizar a remuneração do capital como umtodo. Pode-se mostrar que em determinadas circunstâncias os dois critériosalternativos não conduzem a escolhas de técnicas coincidentes.

Imaginemos um sistema econômico estacionário cujo produto líquidoconsista emP unidades de um único bem de consumo homogêneo, repartidoentre capitalistas e trabalhadores, e para cuja produção existam como alternativas duas técnicas conhecidas,a e b. Se em qualquer caso as proporções emque se combinam equipamentos e trabalhadores são iguais no setor que produz equipamentos e no setor produtor do bem de consumo, as característicasfundamentais de cada técnica podem ser representadas geometricamente poruma “fronteira” retilínea de lucros e salários como a linha AB, na figura 2,

17J. M. Keynes, “The General Theory: Fundamental C.omcepts and Ideas”, in MonetaryTheory, R. W. Clower, ed., Penguin Books. 1969, p. 220.

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associada à técnicaa. Esta fronteira exibe a relação inversa entre a taxa dsalário real e a taxa de lucro que se observará desde que o sistema manteem uso a técnica em questão, quaisquer que sejam as modificações devariáveis. Para a técnicaa, OA é a taxa máxima de salário (wma) medida emunidades de produto, idêntica à produtividade do trabalho (P/L). E OB taxa máxima de lucro (P/K ou rma), correspondente a um salário real nuSendo AB um segmento retilíneo, sua inclinação OA/OB mede a razão cap por homem, uma vez que = K/L.

P/K Se a função dos empresários é tomar máxima a taxa de lucro sobre

capital como um todo, devem adotar, a cada taxa de salário real, a técnica oferece a taxa de lucro mais alta. No exemplo que consideramos, a elevada taxa de salário acima de OE, na figura 2, faz com que se passe da técnia

para a técnicab, elevando a razão K/L.Suponhamos, no entanto, que os empresários, investidos da função

combinar “fatores” do modo mais eficiente, estejam interessados não maximizar a taxa de lucro sobre o capital, mas em reduzir ao mínimo o cude produção unitário, incluído neste o juro sobre o capital, que é integralmte fornecido por rentistas estranhos ao negócio. O prêmio que cabe ao emsário pela seleção correta da técnica cpnsiste na diferença, elevada ao máxique eventualmente pode existir entre o preço e o custo de produção. Ecritério de seleção de técnicas pode ser formulado como a busca, pelo emsário, não da maiortaxa de lucro sobre o capital, mas da maiormargem líquida unitária de lucro, ou damassa mais elevada de lucros para uma produção dada.

Se a letrar significa agora a taxa de juros sobre o capital externo, custo unitário de produção da técnicaa pode ser escrito como

/_C\ _wL + rK _ w + _r _ ' P a P wma rma

Dado o objetivo de minimizar o custo unitário, a condição para quc c

técnicaa seja a mais rentável é ( ^ ) a < ( p)bou ...w..... . _x_ < !w , r

wma rma wmb rmb

Transformando esta desigualdade, obtemos:

(1) w C r r wma. wmb (rma - rmb) i ' rma. rmb (wmb —wma)

A condição (1) determina um número infinito de pares de valores dw e r (combinações de taxas de salário e taxas de juros) com os quais o emprda técnicaa é preferível, para os empresários, ao emprego deb.

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Especifiquemos agora os parâmetros de nossa economia imaginária, su pondo que

o que corresponde à posição das fronteirasa e b, representadas na figura 3.A condição para que a técnicaa seja preferível à técnicab, neste caso,

segundo a desigualdade (1), transforma-se em(1)’ w < 5r.

Como se pode verificar na figura 3, qualquer ponto acima e à esquerdada linha OB representa uma combinação de taxa de salário e taxa de juros quetoma mais interessante para o empresário a adoção da técnicab em lugar dea. Isto significa que agora a transição para a técnica mais capital-intensiva podeocorrer antes que o salário real ultrapasse o valor limite de 0,333..., ao contrário do que ocorria quando o critério de escolha consistia em encontrar a taxade lucro máxima sobre o capital. Com efeito, qualquer ponto interior aotriângulo OAB (como o ponto C, onde de w = 0,25 e r = 0,03) representauma combinação de preços de “fatores” que justifica, do ponto de vista doempresário minimizador de custos, o abandono da técnica mais utilizadora demão-de-obra. Basta, portanto, que a taxa de juros possa ser inferior à taxa delucro sobre o capital para que se tome possível que o critério da minimizaçãodos custos adotado por Ackley conduza a uma escolha de técnicas divergenteda que se efetuaria com base no critério de maximização da taxa de lucro.

Pode-se demonstrar, é verdade, que estas divergências desaparecem se ataxa de juros tende a coincidir com a taxa de lucro,18 pressuposto válido

18Na figura 3, a linha OB representa o conjunto de combinações de "preços de fatores” para o qual é indiferente a escolha entre as técnicas a e b, segundo o critério de minimi-

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no nível de abstração em que é construído o modelo neoclássico e assumid pelo próprio Keynes, sob uma nova forma. Mas efetivamente não é isto quocorre, e na realidade concreta as taxas de lucro são superiores à remuneraçãdo capital de empréstimo. É mais realista considerar que a influência da taxde juros sobre o nível de investimento se processa por mecanismos distintodos invocados pelo próprio Keynes. A preferência pelo autofinanciament parece prevalecer na moderna empresa capitalista, e a taxa de individamentolimitada por considerações de segurança financeira: uma taxa de juros ma baixa pode estar associada, deste modo, a um incremento do investimentdesejado por reduzir o risco envolvido numa taxa de endividamento mais altMas estas considerações apenas reforçam a idéia de que Joan Robinson devestar certa ao afirmar nas Heresias Econômicas, que a importância da taxa de

juros não tem nenhuma conexão com o problema da escolha de técnicas. Nverdade, a taxa de lucro sobre o conjunto do capital individual da empresa évariável dominante na orientação desta escolha. Este é, aliás, motivo entr

zação de custos, e o ponto B, por sua vez, representa o único par salário-lucro que tornindiferente esta escolha segundo o critério de maximização da taxa de lucro. O fato dque a linha OB atravesse o ponto B significa então que, se for dada a condição de quetaxa de juros é idêntica à taxa de lucro, ambos os critérios conduzirão à opção pela mema técnica. Pode-se demonstrar que não se trata de uma coincidência válida apenas nexemplo numérico escolhido, mas que esta igualdade de resultados ocorrerá sempre qfor dada aquela condição.

A condição para que o critério de minimização de custos faça com que se prefira técnicaa expressa-se na desigualdade (1) já deduz ida:

w < r [ wma . wmb ( rma - rmb) jv ' rma . r m b (wmb - wma)

onde r éataxa de juros. Mas se supusermos que: 1) a economia usa atualmente a técnica; 2) r é igual àtaxa de lucro (e se W representar a parte d o p rod uto P que cabe aos asslariados), pode-se escrever:

r = P—— = rma - — . — = rma - (w ^ ? ) = rma - w . -525K L K v K/P wma

=> r = rma (1 - ), ou:wma(2) r = JE L ( wma - w )wma

Substituindo (2) em (1), temos:w _ < wmb _ (rma - rmb), de onda resuha

wma —w rmb (wmb - wma)(3) w (wma . wmb) . (rma —rmb)(wmb) (rma) —(rmb) (wma)

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outros a justificar a importância privilegiada atribuída por Marx, na análise docapitalismo, à repartição primária do produto entre o trabalho e o capital, emdetrimento da questão de saber de que forma o excedente extraído se distri bui em lucro, juro e renda, entre as várias frações da classe proprietária.

Fevereiro de 1975.

Esta última desigualdade expressa assim a condição para que a técnica a seja a mais rentável segundo o critério de minimização dos custos, com inclusão da hipótese de que a taxa de juros é igual à taxa de lucro. Precisamos agora encontrar uma desigualdade que expresse o valor máximo de w, abaixo do qual a técnica a é a escolhida segundo o critério de maximização da taxa de lucro. A equação (2), como vimos,é a fórmula da taxa de lucro r quando se adota a técnica a. Construindo por analogia a equação de r quando se

adota a técnica b, pode-se dizer que a taxa de lucro será superior ao se escolher a técnica a se for satisfeita a desigualdade abaixo:

.. rma (wma - w) > JZjtò (wmb - w),wma wmbde onda se obtém a condição

(4) w < (wma • wmb) . (rma - rmb)(wmb . rma) —(rmb . wma)

que é idêntica à desigualdade (3). O conjunto de valores da taxa de salário que faz com que a técnica a seja preferível a b é, portanto, o mesmo, segundo os dois critérios de seleção de técnicas, desde que a taxa de juros coincida com a taxa de lucro.

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Desta maneira, repete-se o processo, como'a expansão é ameaçada pelas restrições à importação de bens de produção, o que se manifesta através da tendência à elevação de seus preços, há uma pressão no sentido de que ela sejatambém gradualmente substituída pela produção interna. Desta forma, a uma primeira etapa em que predomina o desenvolvimento das indústrias de bensde consumo, segue-se uma segunda etapa em que se promove, principalmente,o desenvolvimento da produção de bens de capital. A respeito disto, escrevePaul Singer:

“A 2? etapa do desenvolvimento se inicia quando o país começa afabricar os bens de produção necessários ao Setor de Mercado Interno.É claro que não existe um limite nítido entre a1? e a2? etapa eê mais

provável até que um país em desenvolvimento já comece a produzircerta quantidade de máquinas e matérias-primas industriais antes mesmo que seu excedente potencial se tenha transformado integralmenteem excedente real (isto é, antes que todas3Sexportações sejam empregadas na aquisição de equipamentos e matérias-primas industriais — E.P.). Mas embora a 2? etapa possa iniciar-se antes que a 1? tenha seesgotado, é inegável que o fabrico de bens de produção industriaissomente pode surgir após a criação de um mercado para tais bens, oqual é constituído pela indústria nacional.” ' (o grifo é nosso —E.P.).

Paul Singer tem razão ao afirmar que o desenvolvimento da produção deartigos de consumo deve proceder o da produção de meios de produção, masnão está inteiramente certo ao afirmar que é apenas provável que esta segundaetapa se desencadeie antes de esgotada a primeira. Da análise feita por Mariada Conceição Tavares sobre esta questão depreende-se que é inconcebível ahipótese de que se começasse a substituir a importação de equipamentosapenas a partir do momento em que a limitação da capacidade de importá-losse tivesse tomado um impecilho absoluto à expansão da indústria de artigosde consumo. Isto é o que ocorreria se fosse atingido um ponto do processoem que a substituição de artigos de consumo estivesse completa; o valor totaldas importações, dificilmente suscetível de ampliação, consistiria, então, naaquisição de meios de produção para a indústria de artigos de consumo. Emtais circunstâncias, para ceder lugar á importação de meios de produção destinados à produção interna de meios de produção, seria preciso diminuir osuprimento de meios de produção das indústrias de bens de consumo, comprimindo com isto a taxa de crescimento e, possivelmente, o próprio nívelabsoluto de produção já alcançado por este setor.

“Se, por exemplo, só se continuasse substituindo as categorias de bensfinais do consumo, a gama (de importações —E.P.) poderia chegar aficar praticamente limitada às importações necessárias para a manutenção da produção corrente, sem deixar margem suficiente para a entrada

1Paut SINGER, Desenvolvimento e Crise, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1968,

p. 54

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de novos produtos e, sobretudo, dos bens de capital indispensáveis pa expansão da capacidade de produção. Para evitar tal coisa, é indissável que se comece bastante cedo a substituição em categorias noespecialmente em produtos intermediários e bens de capital, antes qurigidez excessiva da gama comprometa a própria continuidade do p

cesso.”2Em conseqüência, é preciso dizer, à diferença de Singer, que a “seguetapa” deve começar não apenas provavelmente, mas necessariamente, ada conclusão da primeira:

“Resumindo, pode-se dizer que, nas condições do modelo de substção de importações, é praticamente impossível que o processo de intrialização se dê da base para o ápice da pirâmide produtiva, isto é, parta dos bens de consumo menos elaborados e avance lentamentechegar aos bens de capital. É necessário (usando uma linguagem fig

da) que o “edifício” seja construído simultaneamente em vários anres, mudando só o grau de concentração em cada um deles de período a outro.”3Para que se possa periodizar o processo de industrialização no Br

segundo a categoria de produtos cuja substituição predomina em cada etap preciso, por outro lado, atentar para a ambigüidade da noção de “substitu

' 1 de importações”. Segundo M. C. Tavares4, deve-se diferenciar a substitu“visível”, ou seja, a diminuição absoluta ou relativa do valor de certo itemgama de importações, e a substituição real, que consiste no aumento

participação da produção nacional numa oferta interna crescente deste mo item. O segundo processo não acompanha necessariamente o primassim, fortes restrições aduaneiras podem provocar a supressão de determdo produto na pauta de importações sem que esteja ocorrendo aument

produção interna deste produto; ou então, pode ocorrer intervalo de teconsiderável até que se desenvolva a produção interna substitutiva. Por olado, pode dar-se o caso de que um aumento acelerado da produção nacide determinada categoria, satisfazendo frações crescentes do consumo ino, não impeça que na pauta de importações o valor correspondente a

categoria se avolume absoluta ou relativamente.Tem-se chamado atenção de preferência, no primeiro período da intrialização brasileira após 30, para a substituição de importações de benconsumo não-duráveis. De fato, de 1929 a 1948, a participação desta caria na pauta de importações declina de11,2 para 10%s ; naquele último

2Maria da Conceição TAVARES, Auge e Declínio do Processo de Substituição, no lDa Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro, Zahar, Rio de Janeiro, 1

p. 45.3 Idem, p.46.

4Idem, p. 39 e 40.5Idem, p. 69.

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ano, a participação das importações na oferta interna está reduzida a um nivelinsignificante no que tange aos tecidos (6,2%) e aos alimentos '(3,8%).6. Não obstante, não são estes dois ramos de produção que se expandem commaior velocidade na década de 30: de 1930 a 1940, enquanto apenas duplicaa' produção de tecidos, multiplica-se por 5 a produção física de ferro-gusa e

aço laminado, e o volume da produção de cimento aumenta mais de oitovezes7. De 1939 a 1950, aumenta em cerca de 70% a produção têxtil e decalçados, enquanto há um aumento de 494% para a metalurgia e de 267% para o material de transporte. A produção de aço quadruplica apenas no período de 1945 a 1951, enquanto multiplica-se por 2,8 a de ferro gusa8. -

Se o processo substitutivo de bens não duráveis praticamente se completa nesta primeira etapa, antecipando-se a outras categorias, malgrado as menores taxas de crescimento que se observam no setor, isto se deve, por um lado,no fato de que a trajetória que este tem a percorrer é por definição menoslonga, pelo lugar relativamente pequeno que ele ocupa na estrutura da produção industrial de uma economia desenvolvida, e, por outro lado, ao fato deque a produção de bens não duráveis já se encontrava relativamente desenvolvida no período anterior a 1929. Examinando-se a evolução da pauta de im portações de 1929 a 1948, verifica-se, ao lado da relativa estabilidade dos bensde consumo ebens de capital, e da expansão dos combustíveis e lubrificantes,que o período se caracteriza por uma substituição mais acentuada das matérias-primas e produtos intermediários; a substituição “visível” confirma, neste caso, a conclusão que se impõe a partir das taxas de crescimento do setor:

Porcentagem s/o valor total das importações91929 1948

Bens de Consumo 18,7 21,3Combustíveis e Lubrificantes 8,4 14,4Matérias-Primas e

Produtos Intermediários 46,2 35,2Bens de Capital 26,7 29,1

Segundo os mesmos critérios, isto é, valorizando-se os dados referentes

à substituição “visível”, os setores de concentração do processo substitutivono período seguinte são os bens de consumo final e os bens de capital. Asubstituição de importações no que se refere a estes últimos concerne, emsubstância, as partes complementares:

6Idem, p. 92 e 93 (Quadro 6).

7Heitor FERREIRA LIMA, História Político-Econômica e Industrial do Brasil, Companhia Ed itora Nacional, S. Paulo, 1970, p. 358.8Idem, p. 376.

9M. C. TAVARES, op cit., p. 69.

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Percentagem s/o valor total das importações10

1948 1961Bens de Consumo Final(inclui partes complementares)17,3 7,4Combustíveis e Lubrificantes13,0 22,7Materiais e Matérias-Primas 30,4 38,0Bens de Capital(inclui partes complementares)39,3 31,6Bens de Capital(exclui partes

complementares) 30,5 30,3 Na expansão da produção de bens de consumo, nesta segunda fas

predomina os bens de consumo duráveis (eletro-domésticos, automóveetc.). A rígida expansão da oferta interna destes itens reflete-se no compormento de dois setores excepcionalmente dinâmicos em fins dos anos 50: o material de transporte, e o de material elétrico e de comunicações, que tivram respectivamente aumento de 700% e 377% no período de 1955 a 19611 Neste mesmo período, eleva-se em cerca de 40% apenas a produção de tecidalimentos e bebidas12. Entre estes dois extremos, temos indústrias comoquímica e farmacêutica, e a indústria metalúrgica, com crescimentos, respetivamente, de 105,3 e 67%13. A produção de aço, por outro lado, mais

que triplica durante a década de 5014. Do mesmo modo, há um progressensível da produção de petróleo; a produção em 1.000 barris passa de 4.0em 1956 para 29.613 em 196015. Em conseqüência, a participação das i portações na oferta interna total de combustíveis líquidos decai de100% para 31% de 1954 para 1960; neste caso, como se vê, a substituição real é masrada pelo crescimento da importância relativa do item na pauta de importaçõ

As transformações ocorridas durante este último período do processde substituição de importações permitem opor os ramos de produção qutiveram crescimento mais acelerado, tendendo a absorver uma parcela crescte da demanda interna, que são considerados indústriasdinâmicas, às indústrias tradicionais, que, tendo completado o processo substitutivo, passamcrescer num ritmo mais moderado, que corresponde à expansão do mercainterno de seus respectivos produtos. Entre estas últimas, denominadasvege-

10Idem, p. 83.11 Idem.12 Idem.13 Idem.14 Idem.15H. F. LIMA, op cit., pi. 390.

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tativas, e as primeiras, situa-se um grupo de indústriasintermédias (transformação de minerais não metálicos, papel, borracha)16. Durante a década de50, a estrutura da produção industrial alterou-se profundamente, modificandoa participação relativa destes três grupos de indústrias. De 1949 a 1961, a

participação das indústrias dinâmicas no produto industrial sobe de 22 a 41%,

enquanto as vegetativas caem de 70 para 49%. As intermédias, por sua vez,têm sua participação modificada de8 para 10%17.Depois de três decênios de acelerado crescimento, durante os quais a

produção industrial multiplicou-se por10 aproximadamente, em princípiosda década de 60 a substituição de bens de consumo realizou-se de formaintegral; em 1961 o valor desta categoria de bens adquirido no exterior corres ponde a menos de 1% do consumo interno total. Nesta mesma data, a importação de bens de capital está ao nível de 19% do investimento bruto fixo. Ocoeficiente geral de importações da economia, que era de 11% em 1929,encontra-se reduzido a 7%. A partir de então, ocorre um sensível declínio nataxa de crescimento. Esta perda de dinamismo do sistema, aparte os fatoresconjunturais que contribuem para agravá-la, pode ser atribuída, basicamente,ao esgotamento dos estímulos derivados do processo de substituição de im portações.

O prosseguimento do processo substitutivo implicaria, nestas circunstâncias, que se desenvolvessem com maior intensidade as indústrias de bens decapital, como por exemplo a indústria mecânica, cuja participação na ofertainterna total estava por volta de apenas 53,7% em 1961. Mas como são setoresde atividade exigindo volumosos investimentos e de elevada relação capital/

produto, a manutenção da mesma taxa de investimento orientada nesta direção envolveria necessariamente, a curto prazo, um declínio da taxa de crescimento. Quanto a este ponto, a explicação de Maria da Conceição Tavarescoincide com a oferecida por Celso Furtado emSubdesenvolvimento e Estagnação na América Latina. Mas M. C. Tavares está interessada, principalmente,em averiguar sob que impulsos dinâmicos poderiam ter lugar tais investimentos. A desaceleração tem sua raiz imediata na não realização deste tipo deinvestimento, ou no fato de que eles não são sustentados a um nível satisfatório18. Os bens de capital são bens de demanda derivada, “cuja substituição

não se justifica por si mesma” 19.16É a seguinte a classificação adotada: 1) Indústrias Tradicioanais: alimentos, bebidas, fumo, couros e peles, têxtil, vestuário, madeira, mobiliário e editorial; 2) Indústrias intermediárias: minerais não metálicos, papel, papelão e borracha; 3) Indústrias Dinâmicas: mecânica, metalúrgica, material de transporte, material elétrico e química.17M. C. TAVARES, op cit., p. 92.18A diferença entre as duas abordagens da crise dos anos 60 está explicitada na crítica endereçada a Celso Furtado por M. C. Tavares em trabalho mais recente (Além da Estagnação), onde se dá ênfase (por oposição à queda da relação produto/capital invocada por Furtado) ao problema da demanda, incluindo aí a retração do investimento público e privado.19M. C. TAVARES, op. cit., p. 118.

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“De onde provirá a demanda que incita a realizar esta substituiçãoComo se viu, a expansão das industrias mais dinâmicas de bens dconsumo perdeu sua aceleração inicial (uma vez esgotada a reserva mercado) e chegou ao ponto no qual seu crescimento tenderá a girar etorno da taxa de crescimento da renda. Trata-se, ademais, de industrinovas, cuja demanda de reposição de bens de capital não se fará sentircurto prazo”20.A hipótese sugere espontaneamente uma outra: a demanda de reposiç

de equipamentos far-se-á sentir novamente, com toda probabilidade, dez anmais tarde; este deve ser um elemento significativo na recuperação da ecomia que se observa pouco antes de 1970, a qual seria, parcialmente, um “ecdo auge de 196021. Mas M.C. Tavares ocupa-se, no momento, do problemimediato, o declínio da taxa de crescimento inscrito na dinâmica do modeuma vez que esta se completa. Segundo ela, somente uma demanda autônode bens de capital pode manter o dinamismo do sistema, forçando a contindade do processo de substituição. Mas a intervenção governamental comfator dinâmico implica numa mutação do modelo:

“O fato de que o investimento autônomo do governo se traduzna prática numa substituição de importações, não implica numa reprdução do antigo modelo. Na realidade, o processo de desenvolvimenque ocorreria neste período de transição não estaria determinado bacamente pelo estrangulamento externo, mas repousaria principalmenno impulso que lhe imprimisse o próprio investimento do governo, cujo montante e composição dependeria o ritmo de crescimento a cur prazo, e sobretudo, a orientação do sistema a longo prazo”22.Este texto caracteriza a diferença entre dois modelos de desenvolvime

to, o que se esgotou por volta de 1964 e o novo modelo que desenvolverdinamismo ao sistema alguns anos mais tarde. A expressão “industrializa

por substituição de importações” não designa apenas um processo expansão industrial que conduz, como resultado, a reduzir a participação importações na oferta interna, e sim um processo de expansão industrial qtem seu fator dinâmico no declínio da capacidade de importar e na pr

-existência de demanda antes voltada para o exterior. Não obstante, é precimesmo sem abandonar o elevado nível de abstração em que se elaboramcaracterísticas gerais do modelo, acrescentar que a intervenção governamense faz necessária desde o início, quando se desencadeia a crise do setor exptador. Se não ocorrem outras modalidades de investimento autônomo, éaquisição, pelo governo, dos estoques de mercadoria invendáveis produzi por aquele setor que sustenta seu nível de renda nas etapas iniciais do p

^Id em , p. 118.

21 Note-se a relação entre a hipótese sugerida e a antiga teoria marxiana do ciclo dece baseada nas oscilações da dem anda de reposição dos equipamen tos desgastados.

22M. C. TAVARES, op. cit., p. 119.

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cesso, permitindo-lhe desviar para a produção interna a demanda de bens deconsumo antes satisfeita com as importações. No caso concreto da economia brasileira, estas medidas de política econômica representam uma primeiraforma de “investimento” autônomo por parte do Estado, sem a qual a demanda de bens de consumo, gerada pela cafeicultura, simplesmente se esvairiacom a crise, ao invés de desviar-se para a indústria nacional23. Sob esteaspecto, a sustentação da demanda mediante a intervenção governamental,necessária no momento do esgotamento do modelo, apenasreproduz ascaracterísticas de sua expansão inicial. Por outro lado, sabe-se da importânciado investimento estatal na última fase (e a mais dinâmica) da vigência domodelo, no último qüinqüênio da década de 50. Neste momento, o dispêndiogovernamental se orienta em parte para assegurar o fornecimento dos insumos básicos para o setor privado da economia (energia elétrica, aço, petróleo), mastambém grande parte deste dispêndio tem um caráter “perdulário” cujo único

efeito positivo, para o conjunto do sistema em expansão, está na ativação dademanda global; nesta última categoria incluem-se a construção de Brasília e oretorno dos subsídios no setor cafeeiro novamente atingido pela crise deorigem externa. Deste modo, cabe reconhecer que também aqui a “novaetapa” já inicia, de fato, no interior da antiga. É ainda durante a vigência domodelo de “substituição de importações” que se pode dizer que a “demanda prévia” de bens de consumo, que se orienta para a expansão das indústriasdinâmicas, é em grande parte criada e sustentada pela participação do Estadono conjunto dos investimentos.

Para que se possa situar corretamente os obstáculos potenciais que osistema enfrenta no que tange às deficiências de procura, é preciso indicarsuas características estruturais. Deste ponto de vista, o fator que tem o maior peso determinante se encontra no tipo de tecnologia adotada no setor secundário. Desenvolvendo-se no quadro da economia capitalista dependente e re-

23 Este aspecto da questão foi posto em destaque pela conhecida análise de Celso Furtado a respeito dos momentos iniciais do processo de industrialização após 1929. A complexidade do processo não aparece em abordagens anteriores, como a de Caio Prado Jr., que se limita a observar que o declínio das exportações, restringindo o poder de compra do país no exterior, tendia a reorientar a demanda para a indústria local: “O consumo do país sofria assim grande desfalque, o que naturalmente estimulará a produção interna” (História Econômica do Brasil, Editora Brasiliense, S. Paulo, 1970, p. 292). O que é posto implicitamente em questão pelo estudo de Celso Furtado é este “naturalmente”, o caráter aparentemente espontâneo do processo. Ao expor os mecanismos da anterior expansão baseada no sistema agroexportador, Furtado explicava que a expansão das exportações, gerando um incremento inicial fda renda, tinha efeitos multiplicadores sobre a produção interna. Esta abordagem põe como problemático o processo subseqüente de reo- rientação dademandade importações paraa produção interna, queé apresentada por Caio Prado como natural. Este só pode se dar através da aquisição dos estoques de café in- vendáveis por parte do Estudo, sustentando o nível de renda monetária no setor exportador e garantindo com isto a preservação de uma demanda de bens de consumo que be- ficia a indústria nacional, em vez de dissipar-se com a crise (Formação Histórica do Brasil, Editora Fundo de Cultura S. A., Rio de Janeiro, 1959, p. 224).

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tardatária, a indústria brasileira, no esforço de equiparar-se em eficiência aosconcorrentes externos cuja produção substituía, tendeu a assimilar técnicas de produção mais ou menos contemporâneas às empregadas nas economias centrais. Isto sucedia tanto mais naturalmente porquanto a tecnologia em questão se encontrava materializada nos próprios equipamentos que ela eraobrigada a adquirir no exterior para garantir sua própria expansão. Em conseqüência, difunde-se no setor industrial o uso de um elevado volume de capitalfixo por homem empregado, o que faz com que o crescimento acelerado destesetor tenha efeito relativamente moderado na criação de empregos. Os volumosos contingentes de mão-de-obra de que dispõe uma economia subdesenvolvida como a brasileira, afluindo às cidades em busca de melhores condiçõesde trabalho, não são absorvidos pela indústria, ficando bloqueados no amplosetor terciário urbano, onde abundam atividades tecnicamente primitivas e de baixa rentabilidade. Por outro lado, a tecnologia moderna empregada na indústria, ou a elevada composição orgânica do capital industrial, fazem comque a remuneração do capital apareça como a parte do leão do valor produzido no setor, em comparação com a fração correspondente aos salários, quesão deprimidos em virtude do excesso de oferta de mão-de-obra. Estas condições atuam no sentido de produzir uma extrema desigualdade na distribuição

í' da renda, da qual são beneficiarios a classe proprietária (urbana e rural) e amassa dos especialistas (técnicos, administradores, profissionais liberais) quenão efetuam trabalho manual e participam da apropriação do excedente produzido pela classe trabalhadora. Estas desigualdades se refletem, por outrolado, na composição da demanda de artigos de consumo; à medida em que arenda se eleva e é açambarcada por uma minoria privilegiada da população,ganha um peso crescente a procura de bens de consumo duráveis, enquanto o

^ bens não duráveis, de consumo popular, tem seu mercado aumentado apenasa um ritmo aproximado ao do crescimento da população urbana. Os consumidores de alta renda exigem, por outro lado, a diversificação crescente de seusgastos de consumo, à medida em que sua renda se expande; os ramos de produção mais dinâmicos passam a ser aqueles que suprem tais exigênciasrenovando, num processo de sofisticação crescente, os modelos de seus produtos. Numa etapa do crescimento em que a grande maioria da população, destituída de poder de compra, não alcançou satisfazer ainda suas necessidadeessenciais, a produção de bens de consumo expande-se verticalmente, e acriação de artigos de luxo novos (real ou aparentemente) se transforma numanecessidade estratégica para evitar o declínio da propensão a consumir dosgrupos privilegiados. Este padrão de desenvolvimento, por outro lado, incentiva o afã de modernização da indústria; os bens de consumo mais atraentestípicos do capitalismo desenvolvido, que a indústria nacional deve por à dis posição de sua clientela, somente podem ser fabricados com as técnicas maiavançadas importadas do centro, e, com freqüência, pelas próprias filiais de

empresas estrangeiras instaladas no país. Perpetua-se, deste modo, a falta dedinamismo do setor industrial na criação de empregos. Há uma causação

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circular segundo a qual se reforçam rrtutuamente os processos de incorporaçãoda tecnologia moderna, a concentração da renda e a diversificação e o requinte crescentes da oferta de bens de consumo.

Estas observações resumem a natureza dos impasses do capitalismo periférico. Existem fortes obstáculos estruturais ao crescimentohorizontal domercado, através da incorporação de uma massa crescente de indivíduos aosetor mais moderno da economia, o que permitiria à indústria expandir-seatravés da ampliação da produção de um número limitado de itens de artigosde consumo de uso corrente. O aumento do número de indivíduos integradosno mercado moderno não é expressivo; a renda cresce quase inteiramente nointerior de círculo já limitado que dificilmente ultrapassa um quinto da população. Malgrado o baixo nível de renda per capita que se constata ao levar emconta apenas a média nacional, deve manifestar-se de forma precoce a tendência ao subconsumo; o sistema precisa providenciar para que os acréscimos da

renda individual no estrato privilegiado sejam prontamente canalizados para aaquisição de novos tipos de produtos (televisão a cores, novos modelos deautomóveis, etc.). Caso contrário, o declínio imediato da propensão a consumir provocaria o surgimento de excedente não absorvido na produção, que seexpande a ritmo regular. A tendência à insuficiência da demanda global, característica do capitalismo maduro, se manifesta já, ainda que modestamente, naimportância que tem para o sistema o investimento estatal, sob a forma, porexemplo, da construção rodoviária em regiões distantes do país. Ainda quetais empreendimentos ocupem uma fração relativamente pequena do produto

nacional24, concorrem a seu modo paracompletar a demanda global e sustentar o pleno emprego no setor moderno da economia. Desta perspectiva,a tendência à estagnação que se esboça no início dos anos 60 não é fenômenotemporário mas característica permanente do sistema, e o investimento estatalse impõe não apenas como medida de curto prazo, mas para garantir permanentemente a manutenção do crescimento.

Num ensaio intitulado Agricultura e Desenvolvimento no Brasil, Antonio Castro procura identificar as raízes do caráter excludente do desenvolvimento industrial no próprio universo agroexportador no interior do qual elese inicia. Com este fim, contrapõe dois tipos teóricos de modelo agroexportador, procurando definir as diferenças que suas características imprimem nossubseqüentes processos de industrialização.

O primeiro caso é o de agricultura de alimentos para exportação, mas baseada na pequena propriedade familiar e altamente produtiva. À medida emque se expande o setor urbano da economia, este é estimulado a atenderdemanda ampla e pouco diversificada, restrita a alguns artigos de consumo deuso universal. As melhores condições de vida no campo fazem com que osagricultores só emigrem para a cidade se efetivamente conseguirem nela níveis

240 mesmo não é verdade no que se refere à relação global entre o gasto do setor público e o P.I.B., que está por volta de 28%.

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superiores de remuneração, o que impede a inundação do mercado urbano dmão-de-obra por contingentes excessivos de trabalhadores miseráveis. As tendências à concentração da renda são evitadas, por outro lado. pelas pequenadimensões das unidades produtivas: as fábricas, produtoras de bens de consumo simples, são montadas com pequenos capitais e geridas por um grandnúmero de pequenos proprietários25.Outras são as condições em que se processa o desenvolvimento industrial quando o quadro da economia agrária, inicialmente, é o da grande lavoura exportadora, movida originariamente “pelo trabalho escravo e, a seguir

pelo ex-escravo em situação pouco melhorada...”26. O mercado interno d produtos industriais está dissociado. Os trabalhadores consomem um mínimde artigos essenciais, e a concentração da renda nas mãos da classe proprietária cria um mercado significativo de bens de consumo “de qualidade”Quando se desencadeia, na cidade, o desenvolvimento da indústria,

“Na medida do possível, (a indústria) deverá buscar na permanente diversificação de seus produtos o mercado que não encontra no poder aquisitivo das massas. O homem do campo emigra para as cidadeem busca de quaisquer oportunidades que possam livrá-lo das indizíveicondições imperantes no meio rural. Obviamente, o trabalhador ruralnão traz consigo economias ou mesmo habilidades que lhe permitamconstituir um negócio próprio, o que aponta no sentido de maior concentração da propriedade industriai. Não sendo a emigração rural detid pela saturação do mercado urbano de trabalho, tendem a reproduzir-se

nas cidades os padrões de miséria originários do campo. Conseqüentemente, a camada de mais baixas rendas é, por toda parte, mantida praticamente fora do mercado de produtos industrializados, o que confirma a diversificação como saída para o desenvolvimento manufatureiroEsta tendência, acarretando a adoção de formas tecnológicas de com plexidade crescente, estimula a monopolização precoce e favorece oavanço das empresas internacionais. As disparidades distributivas, ocaráter excludente, etc., do universo rural estariam, como vemos, tendendo a reproduzir-se no próprio processo de industrialização”27.

“A industrialização, na medida em que superava os traços maisevidentes do nossostatus colonial, era considerada a própria negação detudo aquilo que o fundamentava; mais precisamente, deveria entrar emchoque e definitivamente suplantar as características maiores de sua base interna —o universo rural. O que se depreende de nossa análise que, muito pelo contrário, o setor agrícola projetou sua imagem sobre omundo urbano industrial”28.

25Antonio BARROS DE CASTRO, Agricultura e Desenvolvimento no Brasil, em 7 Ensaios sobre a Economia Brasileira, Vol. 1, Forense, Rio de Janeiro, 1969, p. 141.

26Idem, p. 142.27Idem,p. 142, 143.28Idem, p. 144.

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Há um nível de generalidade no qual é preciso reconhecer, de imediato,a iegiumidade da tese de Castro. Se os parâmetros estruturais da velha economia agrária sereproduzem no interior da economia urbano-industrial, é porque o desenvolvimento desta última representa apenas nova etapa do capitalismo brasileiro; a desigualdade fundamental implicada nas relações capitalistas

de produção não se modifica quando o pólo dinâmico do desenvolvimento sedesloca do campo para a cidade. É significativo que Castro confronte o modelo correspondente ao caso brasileiro com a hipótese da indústria nascendo nointerior da agricultura de pequena propriedade, isto é, desenvolvendo-se noquadro prévio da produção simples de mercadorias. Quando, ao contrário, aagricultura de exportação está organizada em moldes capitalistas, o trabalhador agrícola está destituído da propriedade dos meio? de produção. O fato deque a grande massa destes trabalhadores, ao emigrarem para as cidades, nãotenha acesso à propriedade das fábricas e oficinas, significa apenas areprodução histórica das relações capitalistas de produção, que opõe ao proprietário do capital o trabalhador privado de propriedade e compelido a vender,no mercado, sua força de trabalho; sabe-se que o funcionamento da economiacapitalista perpetua incessantemente a existência destes dois personagens sociais antagónicos.

Mas Castro pretende dizer mais do que isto. Existe, antes de mais nada,um aspecto quantitativo em sua tese que precisa ser julgado empiricamente.Segundo ele, o poder aquisitivo dos trabalhadores agrícolas seria tão reduzidoque não chegaria a constituir mercado de massas suficientemente importante

para orientar em sua direção o desenvolvimento industrial em sua primeiraetapa. Castro não nega que a agricultura de exportação brasileira, em suaúltima fase dedesarrollo hacia afuera, era altamente absorvedora de mão-de-obra. A inexistência original do mercado de massas afirmada por ele deveestar ligada por conseguinte ao nivel de vida extremamente baixo atribuido aesta massa trabalhadora. Castro chega a dizer expressamente que a situação do“ex-escravo” era “pouco melhorada” com relação à dos próprios escravos emetapa anterior. Não obstante, não é este o aspecto relevante do problema.Sabe-se que a expansão da lavoura cafeeira teve por base o emprego emgrande escala não dos ex-escravos mas de trabalhadores de origem européia.Estes, tais como os trabalhadores “marchands” do primeiro modelo de Castro, podiam também exigir como condição para que se dispusessem a emigrarum nível de vida ao menos equivalente ao que poderiam obter em seus paísesde origem; sabe-se que utilizaram a conjuntura de escassez de mão-de-obra esua própria condição de estrangeiros em sua luta por melhores contratos detrabalho com a oligarquia cafeeira. A absorção em massa de mão-de-obraemigrante representou efetivamente a criação de um mercado de consumo popular, para a indústria brasileira na época, sem o qual não se pode com

preender a industrialização primitiva que se concentra em artigos de consumo

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corrente, como tecidos e alimentos, já desde fins do século XIX29. A tureza dos bens ofertados por este parque industrial incipiente e as dimsões das empresas não permitem que se forme a imagem de um desenvomento industrial concentrador de renda e baseado num mercado restritoelite. Em 1920, a indústria brasileira conta com 13.336 estabelecimento

emprega 275.512 trabalhadores, o que dá uma média de apenas 20 operáraproximadamente, por estabelecimento. E predomina, com 40% do valor produção industrial, a indústria de alimentos30.

Pode-se pretender, no entanto, circunscrever a validade da tese de Ctro ao período posterior a 1930. Todavia, cabe assinalar que existe u primeira e importante etapa do desenvolvimento industrial após esta datqual não se manifestam ainda as tendências excludentes do sistema. Durandepressão mundial dos anos 30, a expansão manufatureira interna baseouamplamente na super-utilização da capacidade produtiva instalada e no

intensivo de mão-de-obra. A queda da capacidade de importar, no primedecênio, e posteriormente a concentração das economias centrais no esfode guerra, na primeira metade dos anos 40, criaram obstáculos à aquisiçãoequipamentos modernos no exterior, cerceando por longo período as posslidades de absorção de tecnologia. O uso intensivo do fator mão-de-obraconseqüente expansão de mercado de consumo popular se reflete no fatoque, entre os bens de consumo, é a produção dos não-duráveis, de uso genlizado, que se expande predominantemente durante este período. É someno após-guerra que o dinamismo renovado do setor exportador criará nocondições para intensificar a importação de bens de capital. Em conseqüênna década de 50, apenas um ramo industrial, a metalurgia, criou empregouma taxa superior ao crescimento demográfico31. Ocorreu a diminuiabsoluta do número de empregos na indústria química e mesmo em indús“tradicionais” como a têxtil, a de artigos de madeira e produtos alimentícAs próprias indústrias tradicionais contribuem, portanto (ao lado da sofisção teconológica inerente às indústrias dinâmicas), para desfalcar o merc popular que as sustenta. Durante a década de 50, mantém-se estacionárianível de 13%, a participação do setor secundário no total da população ecmicamente ativa. Nesse mesmo período, a concentração da renda faz sefinalmente, os seus efeitos sobre o perfil da demanda, incerftivando o crmento mais acelerado das indústrias de bens de consumo duráveis (eletrmésticos, automóveis, etc.)32.

29Esta industrialização primitiva é estudada pelo próprio Castro em outro trabalho, A Industrialização Descentralizada no Brasil.30Caio PRADO JUNIOR, op cit., p. 261.31M. O. Tavares, op cit., p. 108.

32 Luciano Martins distingue igualmente duas fases no processo recente de industrializção, com características distintas no que se refere à generalização dos benefícios do dsenvolvimento:

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Segundo a tese de Castro, a agricultura de exportação teria desempenhado a função de “matriz” estrutural do posterior desenvolvimento industrial; ademanda de renda concentrada originária daquele setor teria impelido a indústria no sentido da produção prematura de bens de consumo sofisticados através do emprego de uma tecnologia não absorvedora de mão-de-obra. Desta

forma, a excludência social e as extremas desigualdades na distribuição darenda teriam se transmitido ao novo setor urbano em expansão. Esta teserepresenta o corolário mais radical da noção segundo a qual a industrialização

por substituição de importações se efetua sob o impulso de uma demanda previamente formada pela anterior expansão primário-exportadora. Naturalmente, nenhum economista pode interpretar literalmente a idéia de pré--existência da demanda ou da “reserva de mercado” garantida à produçãoindustrial. Em cada momento de um processo de crescimento, a demanda e aoferta surgem simultaneamente; é a própria expansão da oferta, na medida emque supõe necessariamente o recebimento de salários e lucros incrementados por parte dos agentes da produção, que contribui para suscitar a demandaadicional capaz de absorvê-la. Desta maneira, é a demandaatual do setorexportador, na medida em que este preserva mesmo durante o período decrise seu peso dominante no sistema, que condiciona a evolução da produçãoindustrial. Ora, a tese de Castro se mostra indefensável se compreendemosdesta maneira o papel determinante da composição da procura pré-industrial, pois este deveria fazer-se sentir predominantemente nas etapas iniciais do processo, quando aquele setor contribui ainda com uma parcela significativado produto nacional. Não é o que ocorre, no entanto; na década de 50,quando começam a se manifestar as características excludentes do processode desenvolvimento industrial, grande parte da demanda de produtos manufaturados já provém do próprio setor industrial, que está em vias de ultrapassar

“Na primeira fase da industrialização, entretanto, a introdução destes padrões não é ainda de molde a economicamente produzir as limitações que mais tarde irá acarretar. O tipo de teconologja empregada, por exemplo, ainda é predominantemente de caráter labor intensiva (; ? .) Nesta etapa, portanto, em que perdominam as indústrias hoje geralmente designadas como “tradicionais” (tecidos, alimentos, etc.), incorporam-se novas camadas ao processo econômico e amplia-se a área de circulação da riqueza (Industrialização, Burguesia Nacional e Desenvolvimento, Editora Saga, Rio de Janeiro, 1968, p.50).

“É na etapa seguinte da substituição de importações que começam a se fazer sentir os efeitos regressivos, na medida em que eles se combinam a outras circunstâncias que trabalham na mesma direção.

Tal etapa se caracteriza pela diversificação da estrutura industrial, nos termos da dinâmica que é própria ao processo de substituição. Essa diversificação implica no emprego de recursos tecnológicos cada vez menos absorvedores de mão-de-obra, e que serão tanto mais difundidos quanto maior for o transplante para o país de empresas subsidiárias do “capitalismo central”. ( . . . ) A circunstância anteriormente mencionada, aliada ao fenômeno da urbanização acelerada e do êxodo rural, atua no sentido de uma compressão do montante relativo de salários urbanos na renda gerada pela indústria, com as conseqüentes repercussões sobre a capacidade de consumo da população empregada no con junto de atividades ligadas à produção local. . .” (Op. cit., p. 51).

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a agricultura no que se refere ao valor de sua produção. Por outrodeve-se considerar que as tendências à concentração da renda operammuito maior intensidade no setor secundário; o uso de dose maior d pital” por homem empregado eleva a “produtividade em valor” da fotrabalho, permitindo que se estabeleça, entre os salários e as rendas de p

dade, a diferença superior à que é possível na agricultura. Desta f pode-se dizer que mesmo na etapa inicial, quando a agricultura ainda énante no sistema, é no seio do próprio setor urbano-industrial que sógestando com todo o vigor as desigualdades da repartição que servirão d para a expansão da indústria de artigos de luxo nos anos 50.

O caráter excludente do processo de desenvolvimento inddeve ser compreendido como vício de origem, pela influência deformadvelha agricultura de exportação. Ele tem suas raízes na naturezadependente ecapitalista da economia brasileira. Sua inserção como subsistema perifé

retardatário na ordem capitalista internacional está na base do uso difde uma tecnologia inadequada às disponibilidades internas de força balho. Mas são as relações de produção capitalistas vigentes no intesistema que possibilitam as repercussões deste fato na distribuição dacomo o valor da força de trabalho é determinado no mercado, o exrelativo de sua oferta faz com que se deprima ao mínimo necessário o nrenda das grandes massas. Não é preciso invocar outros determinantesmentais para compreender o “círculo vicioso da riqueza” típico do camo periférico.

Há cerca de dez anos atrás os teóricos de esquerda apontavam natura latifundiária da agricultura um dos obstáculos maiores ao prosseguda expansão industrial e à generalização de seus benefícios. O atraso t

, ii gico e a subutilização das terras eram responsabilizados pelas deficiêij abastecimento de alimentos e matérias-primas necessários à economia

Por outro lado, segundo esta concepção, a produção de auto-consumformas não monetárias de remuneração e o nível de vida extremamentedos camponeses privariam a indústria do mercado de massas potencial ela precisava para continuar a crescer. Era sobretudo para a agricultur

pré-capitalista, que se voltava o clamor da crítica social, nela localiza bom grado a raiz de todos os impasses e iniquidades do desenvolvimenocultava, decerto, um parti-pris reformista, uma visão consciente ou inconentemente apologética do capitalismo urbano. Antonio Castro concom seu ensaio Agricultura e Desenvolvimento no Brasil para desmistificaresta visão. Mostrou, por um lado, que a produção agrícola não se excom maior velocidade porque ela própria carecia de mercados: a paupedas massas nas cidades desfalcava a demanda urbana de alimentos. outro lado, permitiu compreender que o mercado de massas aberto no

pela reforma agrária, se esta fosse levada a cabo, só beneficiaria os mais tradicionais da indústria; os ramos de vanguarda já tinham se or para um mercado de altas rendas que seria torpedeado pelo redistribu

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da reforma. Deste modo, Castro estabeleceu a proposição de que funçõesclássicas atribuídas à agricultura (como liberação de mão-de-obra, abastecimento urbano e criação de mercados) teriam se tornado relativamente supérfluas pela própria estrutura deformada do capitalismo industrial. Mas ao pro

por que estas deformações dever-se-iam a um marca de nascença, ao preferiruma explicação pela origem à explicação estrutural que predomina no conjunto de sua obra, Castro estabeleceu inadvertidamente um último compromissocom as representações ideológicas que ajudou a superar.

Maio de 1973.

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ECONOMIA MONETÁRIA E FINANCEIRA (MINUTA PARA DESENVOLVER)

1? QUESTÃO

O motivo “transação” é um dos arrolados por Keyhes para explicaretenção de ativos em moeda por parte dos individuos. Dado o lapsotempo normalmente existente entre a obtenção de uma receita e a realizados gastos, ou inversamente, o intervalo existente entre a realização de

pesas mercantis e seu reembolso através das vendas, consumidores e homde negocios conservarão em seu poder, normalmente, um certo montant

| ,¡ moeda. Keynes concebia este componente da demanda total de moeda c jji í! sujeito a variações na mesma direção que a renda nacional (e possivelm

1 proporcionais às da renda, no curto prazo).Hicks põe em questão a existencia desta categoria basicamente por d

razões: 1) a demanda transacional não seria “voluntária”;2) não corresponderia, por outro lado, a um fenômeno de “equilíbrio”.

0 contexto onde se constrói a objeção de Hicks é o de uma anáwalrasiana do equilíbrio geral. Durante o período de um “dia”, acorremmercado detentores das mais diversas mercadorias, que passam a transacilas até o momento em que todos estejam satisfeitos com seus quinhões. Hconsidera três maneiras de “lubrificar” a atividade da troca num tal merc1) a realização de transações intermediárias (onde determinada mercadorigrupo de mercadorias pode chegar a ter aceitação geral em sua funçãointermediário nas trocas ou de meio de circulação);2) transações realizadascom títulos representativos de mercadorias particulares, para tornar mcômoda a sua transferência, sujeitos estes títulos a processo de compens

geral no fim do dia; 3) a emissão de forma transitória de dinheiro banc por banco que abre créditos aos comerciantes à medida em que vão szendo necessárias determinadas quantias para a realização das trocas.

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O argumento de Hicks toma por base esta terceira e última hipótese. A peculiaridade do dinheiro ai descrito consiste em que ele não existe no começo do “dia” e desaparece no fim, quando os comerciantes cancelam todos osdébitos e créditos que eles têm com relação ao banco, retendo consigo apenasos bens reais que são, estes, efetivamente desejados.

Suponhamos que eu recebo Cr$ 2.000 no início do mês e, desejandoempregar inteiramente minha renda mensal em gastos de consumo, vou diminuindo gradualmente meus ativos em dinheiro até que atinjam o nível zero nofim do mês. Isto significa que decidi reter comigo, em média, Cr$ 1.000durante o mês. Hicks diria que a manutenção deste estoque não corresponde auma demanda de moeda, pois ocorre apenas que sou obrigado a reter moedadurante certo tempo, num mundo onde sua posse é condição para a aquisiçãode bens e onde o salário é pago em dinheiro. Hicks diria também que, enquanto não se chega ao fim do mês, não estou efetivamente numa situação de

equilíbrio, ou seja, a riqueza que eu tenho em mão não adquiriu ainda paramim a forma efetivamente desejada, e o dinheiro estéril não se transformouainda no conjunto de bens capaz de satisfazer a gama de necessidades de quesou portador.

Esta argumentação é artificiosa. Em primeiro lugar, pode-se afirmar queà demanda transacional de moeda corresponde alguma função utilidade análoga à que é aplicada à análise da demanda de bens. Mesmo que não se ponha para mim (dada minha pequena renda) a alternativa de reter minha riquezasob a forma de moeda ou títulos durante o mês, põe-se a alternativa decomprar ou não comprar imediatamente o conjunto de bens que me vá sernecessário. Sabe-se a importância deste tipo de escolha em conjunturas hiper-inflacionárias. E basta que o porão de minha casa seja bastante exíguo, ou queeu tema ser assaltado, ou espere queda nos preços, para que eu considere maiscômodo e seguro reter em média a metade do meu salário mensal sob formade depósitos bancários em vez de retê-lo sob forma de estoque de bens. Eexiste claramente uma consideração de utilidade envolvida nesta questão. Emsegundo lugar, deve-se lembrar que, ainda que Keynes ao formalizar suateoria tenha escrito M1 e M2 para distinguir as demandas nâo-especulativa eespeculativa de moeda (porsimplificação, como ele mesmo adverte) não falou

propriamente de uma demanda transacional, mas de ummotivo transação para reter dinheiro. “El dinero guardado para cada uno de los tres objetosforma, sin embargo, un mismo depósito, que el tenedor no necesita dividir entres compartimientos estancos, porque no requieren ser separados en formatajante, ni siquiera mentalmente, y puede conservarse la misma suma principalmente para un fin, y de modo secundário para otro objeto. Por eso podemosconsiderar la demanda total de dinero del individuo em determinadas circunstancias como una decisión única, aunque el compuesto resulte formado poruna série de motivos diferentes.” (Teoria Geral, cap. 15,1). Se isto é verdade, pode-se dizer que (ao menos em se tratando de somas importantes que urnagrande empresa conserva em caixa para as despesas a curto prazo) mesmo a

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moeda retida predominantemente pelo “motivo transação” tem sua posse jeita à cálculo racional, onde a alternativa de conservar (por exemplo) títua curto prazo pode-se colocar, sendo portanto esta decisão sujeita à influên

da taxa de juros, a qual, quanto mais alta for, mais compensará os custos ministrativos ou o incômodo da dupla conversão de moeda em títulos e títulos em moeda).

Exercitando, como Hicks, a nossa fantasia, ao considerarmos como fucionaria o universo walrasiano por ele descrito, podemos nos perguntar ta bém se não é irracional a decisão de seus comerciantes de não conservareconsigo nenhuma quantidade de moeda bancária de um “dia” para o outrPor que não tomar emprestada uma quantia bastante grande para cobrir gastos necessários por vários períodos de negociações, em vez de ter qurecorrer ao banco incessantemente, a cada oportunidade em que se faz necsário o dinheiro para realizar uma compra? Ponho-me a pensar nos pobrcomerciantes desta feira imaginária, gastando seu tempo em filas interminveis diante do guichê do banco, e no próprio banqueiro aborrecido com ocustos de contabilidade envolvidos por esta forma de criar depósitos gotagota. Pode-se imaginar que, se isto lhes fosse sugerido, tais indivíduos aceitriam “voluntariamente” a retenção de maiores estoques de moeda como u

^ , modo de se livrarem de tais incômodos, e os registrçs dos bancos não fech jí riam a zero a conta de seus clientes ao fim de cada “dia”.

2? QUESTÃOSabe-se o que Marx diria da fórmula físheriana MV = PT (interpretad

como expressando a determinação de P por M, dados T e V) a partir de ji jf trechos do Cap. III do livro I do Capital: “La ilusión de que son... los precio

de las mercancías los que dependen de la masa-de los medios de circulación ésta, a su vez, de la masa del material dinero existente dentro de un país, euna ilusión alimentada en sus primitivos mantenedores por la absurda hipótesis de nue lasmercancías se lanzan al proceso circulatoriosin precio yel dinero sin valor . . E na nota 32: ”Lo que no se compreende en modoalguno <-.s cómo una masa devalores de uso incomensurables entre sí va a poder cambiarse por la masa de oro y plata existente en un país.” A soluçãde Marx nío consistirá em construir números índices de T e P (tomando po base os preços de mercado empiricamente acessíveis), mas consistirá em substância em reduzir os múltiplos componentes de T ao tempo de trabalhosocialmente necessário neles materiaUzado, tornando-os deste modo comensuráveis com ov a lo r- trabalho materializado na massa (M) de moeda metálica oude bilhetes querepresentam um quantum de metal, num sistema de padrão-ouro.

Assim, nío seria talvez abusivo expressar o ponto de vista de Marxusando a onipresente equação das trocas escrita no parágrafo anterior dizendo que, ao expressar T e M em tempo de trabalho, teríamos necessaria-

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mente P = 1 (um), reduzindo-se a equação a MV = T. Uma maneira alternativa de formular a posição marxiana consistiria em dizer que, expresso M emquantidade física (e T em valor-trabalho), teríamos a equação M = PT/Vsignificando que, dado V, M é determinado por T e P, onde P é o valormonetário de1 unidade de trabalho, ou a quantidade de metal precioso

produzida numa unidade de trabalho. Mas para a validade da fórmula, naconcepção de Marx, é preciso que M inclua unicamente a moeda queefetivamente circula, excluindo-se a moeda ociosa ou entesourada.0 entesoura-mento tem precisamente a função, em Marx, de manter a equação supra,expulsando da circulação a quantidade excedente de moeda. Não é portanto oquantum total de M que determina o nível absoluto de preços. Marx teorizasobre esta função objetiva do entesouramento, sem penetrar, como Keynesmais tarde, numa análise dos determinantes psicológicos que fazem daquantidade entesourada uma função da taxa de juros, embora tenha percebidoclaramente, mais de meio século antes de Keynes, a naturezamonetária dataxa de juros em suas análises do livro III do Capital.

Marx não pode ser tido a rigor como teórico quantitativista. Não procura explicar o nível de preços pela quantidade de moeda. E tampouco caberianuma formulação mais sofisticada deste ponto de vista teórico, segundo aqual “a teoria quantitativa é em primeiro lugar uma teoria dádemanda demoeda” (Milton Friedman).

Em seu conhecido artigo sobre a “nova apresentação” da teoria quantitativa, Friedman desenvolve uma equação da demanda de moeda onde M/Y, oinverso da velocidade-renda da circulação da moeda, aparece como função das

taxas de juros sobre obrigações e ações, da taxa de variação do nível geral de preços, da renda real, da razão entre riqueza humana e não humana e dosistema de preferências dos indivíduos. Esta formulação é bastante geral paraincluir diversas teorias, inclusive a keynesiana. Mas nas análises empíricasrealizadas por Friedman sobre a evolução secular de M/Y nos E.U.A., a maior parte destas variáveis é menosprezada e a elevação de M/Y é atribuída basicamente a uma alta elasticidade-renda da demanda de moeda. Ou seja, a moedaseria um bem de luxo cujos “serviços” teriam sua demanda incrementada maisdo que proporcionalmente à medida em que a renda permanente dos indivíduos se eleva. Friedman não é muito explícito em seu artigo teórico principalsobre a natureza destes “serviços” e não explica bem em que consiste a“utilidade” da moeda, para justificara priori esta elevada elasticidade-renda.E, no plano empírico, deve-se observar que: a) a alta secular de M/Y para osE.U.A. também se explicaria satisfatoriamente, conforme os resultados obtidos por H. Latané, por um declínio das taxas de juros a longo prazo; b) a partir de meados dos anos 50, M/Y começa a declinar, fato que se ajusta perfeitamente à explicação de Latané, mas contradiz a teoria de Friedman (v.Friedman, Latané e H. Johnson, in Thorn, Teoria Monetária). Há um certofetichismo da moeda nos teóricos de Chicago; ela é dotada de propriedadesmisteriosas e perturbadoras, mas os mecanismos através dos quais elas se

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tornariam efetivas não são claramente explicados. Assim, segundo Friedmo aumento imoderado da oferta de moeda pode gerar um aumento da manda por bens, no curto prazo, que é ummúltiplo daquele aumento de M,tendendo a provocar uma perigosa explosão de preços (o “multiplicador netário” de Friedman). Mas não se especifica de que modo se supõe qumoeda entraria em circulação e como e por que isto afetaria o compomento de consumidores e investidores.

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NOTAS SOBRE O PROBLEMA DA TRANSIÇÃODO FEUDALISMO AO CAPITALISMO

O presente trabalho tem como objetivo submeter a uma breve discussãoalgumas abordagens teóricas e investigações históricas concretas a respeito do período de gestação do modo de produção capitalista na Europa Ocidental. A problemática geral da transição entre modos de produção se inscreve no âmbi

to de umaciência da história

que, segundo a posição aqui adotada, teria emMarx o seu fundador. Especificamente, nossa análise tem como ponto de partida, a interpretação da obra de Marx (e do significado do materialismohistórico) que está presente nos trabalhos de Althusser e seus colaboradores.Tomamos como referência básica o trabaiho de Etienne BalibarSobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico. Ainda que a seguir sejamlevantadas algumas ressalvas críticas à sua abordagem, a estruturação geral do presente trabalho obedece a uma distinção estabelecida por Balibar (que consideramos válida) entre a questão dasorigens e a questão dosinícios do modode produção capitalista. O primeiro problema se refere àdecomposição domodo de produção preexistente (o feudalismo), processo no qual são liberados os elementos que virão compor a estrutura daquele modo de produção(Balibar, p. 218). A esta problemática pertencem a discussão sobre a crise dofeudalismo e as análises de Marx a respeito da acumulação primitiva, entendida basicamente como processo histórico de separação entre o trabalhador eos meios de produção. O segundo problema diz respeito à história interna donovo modo de produção em formação, ou à sua pré-história interna, na qual oaspecto mais relevante é a passagem da manufatura à indústria fabril, processodurante o qual se constitui e organiza em sua plenitude a estrutura caracterís

tica do capitalismo. Como a cronologia dos acontecimentos não tem nenhumarelação com a ordem lógica das questões, começaremos com a segunda.

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MANUFATURA E GRANDE INDÚSTRIA

“Um modo de produção determinado se caracteriza por combinaç particulares que se estabelecem entre elementos invariantes e comuns a quer forma histórica de organização da vida econômica e social”. A destes elementos pode ser encontrada na análise geral de Marx sobre o processo de trabalho, o qual envolve necessariamente a presença1) do trabalhador, 2) do objeto do trabalho e 3) dos instrumentos de trabalho. As relaque podem ser estabelecidas entre o trabalhador e os meios de produçãrepartem, na interpretação althusseriana, em dois registros distintos (Bal p. 94 e sgs.): o dasrelações de produção e o das forças produtivas. Ao níveldas relações de produção, definem-se como possibidades a propriedade ou anão-propriedade dos meios de produção por parte do trabalhador (Dada

segunda alternativa, isto é, se o trabalhador está destituído de propriedsurge a presença de um quarto elemento, o não-trabalhador, proprietáriomeios de produção que, em virtude desta condição, apropria-se do excedou do produto do sobre-trabalho realizado pelo trabalhador). Ao nível forças produtivas, defrontamos também com duas possibilidades antitétise as características técnicas da produção são relativamente rudimenta

podem permitir ao trabalhador individual a plena autonomia na conduçã processo de trabalho; uma técnica mais complexa, inversamente, pode sudinar o trabalhador individual a processo de trabalho coletivo e articul

cuja lógica é dificilmente inteligível e sobre a qual ele não tem mais nendomínio. No primeiro caso, há a relação deapropriação real dos meios de produção pelo trabalhador, ou ocontrole material exercido por ele sobre o processo de trabalho. No segundo caso, inexiste esta relação de aproprireal ou de controle, e o trabalhador individual é apenas elo de mecaniglobal cujos movimentos lhe são impostos.

A estrutura de um modo de produção é definida, na interpretação Balibar, como a combinação das duas relações definidas acima. Dadas e

possibilidades lógicas, vê-se que umacombinatoria elementar (ainda que Bali

bar rejeite o termo por suas ressonâncias estruturalistas) permite desdobr plano conceituai, certo número de variantes que constitui o inventáriomodos de produção possíveis. No que interessa a nossa discussão: o mod produção feudal é definido pela discordância entre as duas relações, no tido de que há relação de apropriação real entre o trabalhador e os meio produção, ao nível das forças produtivas (o servo feudal, ou o artesãomaterialmente autônomos no interior do processo de trabalho, dado o ptivismo da técnica) e há, por outro lado, a ausência de propriedade dos mde produção por parte do trabalhador, ao nível das relações de produção.

discordância implica em que o proprietário dos meios de produção nãosempenha nenhuma função econômica; constitui personagem inessenccondução das atividades produtivas. A extração do excedente só podegarantida, por conseguinte, através de coação extema, extra-econômica, à

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Marx faz referência como característica (entre outros) do modo de produçãofeudal. Ainda que a violência político-militar desempenhe aqui papel explícito e dominante, e que seja necessária a intervenção do político sobre oeconómico para garantir a apropriação do trabalho excedente pelo senhorfeudal, é a estrutura “econômica” do modo de produção que, comodeterminante em última instância, fixa e exige, por sua estrutura própria, esta dominância da instância política. No modo de produção capitalista, o trabalhador também está destituído de propriedade (ao nível das relações de produção), mas estaseparação entre trabalhador e meios de produção ao nível dasrelações de produção é duplicada por uma separação análoga ao nível dasforças produtivas. Na produção fabril, típica do capitalismo desenvolvido, adivisão do trabalho complexa no interior das unidades produtivas e a aplicação da ciência ao processo de produção criam a estrutura onde o trabalhadorestá subordinadomaterialmente a um mecanismo objetivo que ele não controla e a um poder gerencial do proprietário que intervém no próprio processode produção. Para usar os termos de Marx retomados por Balibar: a subordinação formal do trabalhador ao capital é completada por sua subordinaçãoreal. A não-intervenção do Estado (e a não-dominância da instância política)está ligada, segundo Balibar, a esta dupla subordinação, isto é, ao fato de quea dominação de classe assume uma forma diretamente econômica (Balibar, p.109).

Nós nos afastaríamos dos objetivos limitados deste trabalho se entrássemos mais detidamente na discussão dos méritos e insuficiências da inter pretação do materialismo histórico e do conceito de modo de produção ofere

cidos por Balibar. Assinalemos de passagem, que um dos aspectos mais problemáticos consiste em que seu critério diferenciador não permite distinguir,num nível teórico abstrato, modos de produção particulares entre os quaisexiste a heterogeneidade marcante, como o escravismo e o feudalismo. Na própria análise de Balibar, atinge-se o resultado singular de que formalmente aestrutura do modo de produção asiático coincide com a do modo de produção capitalista (pois também no modo de produção asiático a classe proprietária, através do Estado despótico, desempenha a função econômica essencial aoorganizar os grandes trabalhos de irrigação indispensáveis à produção agrícola). Dificuldades como esta não escaparam à percepção de crítico severo comoAndré Glucksmann (v. Glucksmann, p. 106, 107). No que nos interessa,ver-se-á mais adiante (principalmente quando nos referimos à crise do feudalismo) que a análise das contradições internas e do processo de decomposiçãode um modo de produção exige que se dê importância a outras característicasestruturais além das incluídas na combinatória de Balibar.

Os conceitos acima expostos são usados por Balibar para a caracterização teórica da manufatura como forma ainda não-plenamente capitalista de produção, no sentido de que, embora asrelações de produção sejam já capitalistas (o trabalhador não é proprietário dos meios de produção; é um assalariado cujo trabalho excedente é açambarcado pela classe capitalista) o trabalha-

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dor ainda preserva, ao nível das forças produtivas, a relação deunião com os meios de produção, pois subsiste certo controle, por parte dele, sobre o ritmo

e os movimentos do processo de produção, cuja realização plena tem como

prerrequisito básico sua própria perícia manual. Nesta ótica, a manufatura é

estruturalmente assimilada ao artesanato, por oposição à indústria fabril onde

estaria presente a estrutura típica do capitalismo plenamente constituída:“Todas as vantagens da divisão manufatureira do trabalho provêm

da racionalização que permite, para cada operação parcial, seu isolamento e a especialização do trabalhador: melhoria dos gestos e das ferramentas, rapidez aumentada etc. É preciso pois que esta especialização

seja efetivamente possível, que cada operação, tão simples quanto possível, seja individualizada. Em lugar de um corte, nós descobrimos, portanto, uma continuidade entre o artesanato e a manufatura: a divisão manufatureira do trabalho aparece como o prolongamento de um movimento analítico de especialização próprio do artesanato...”

“Com efeito, a manufatura não faz senão radicalizar ao extremo o

caráter distintivo do artesanato que é a unidade da força de trabalho e

do meio de trabalho . ” (Balibar, p. 130).A relativa autonomia material do trabalhador, ao nível do processo

produtivo, deve exigir a intervenção política externa para subordiná-lo ao

proprietário, ao nível das relações de produção. Nesta direção, Balibar será

conduzido a encarar a monarquia absolutista dos séculos XIV ao XVIII como

um Estado característico da transição do capitalismo e, mais do que isto, a

caracterizá-lo de modo que sugere implicitamente que este Estado poderia ser

visto unilateralmente como agente histórico da instauração do modo de produção capitalista. (Balibar, p.222,223). Esta sugestão está contida nas referências ao conjunto de políticas contemporâneas da “acumulação primitiva”:

a legislação sanguinária contra os pobres, o apoio dado à compressão do

salário e à extensão da jornada de trabalho etc. que contrastam com a

legislação fabril posterior à Revolução Industrial. Neste último período,

tendo-se completado a estrutura do capitalismo, o trabalhador está subordinado formal e materialmente ao capitalista, retraindo-se a plano secundário a

intervenção repressiva do Estado para garantir a dominação de classe, e tornando-se politicamente viável satisfazer dentro de certos limites, sob pressão dos trabalhadores, algumas de suas reivindicações, como a da redução da

jornada de trabalho.Confrontemos estas sugestões teóricas (que, sublinhemos, estãoimplíci

tas no texto cauteloso de Balibar) com o próprio Marx, em quem elas se

inspiram. De saída, deve-se observar, com relação ao último ponto, que a

possibilidade de redução da jornada de trabalho (sem comprometer a acumulação de capital) tem sua base, segundo Marx, não nas características estruturais valorizadas por Balibar, mas no fato de que, com a subversão tecnológica

desencadeada desde o advento da indústria fabril, a produção de mais-valia absoluta cede terreno à produção de mais-valia relativa. A jornada pode ser

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comprimida sem afetar a mais-valia extraída pelos capitalistas porque o progresso técnico reduz, permanentemente, o tempo de trabalho necessário para

produzir os meios de susbsistência dos trabalhadores, reduzindo com isto o

valor da força de trabalho.Mas a questão mais imortante, aqui, para julgar Balibar enquanto intér

prete de Marx, é: os capítulos doCapital sobre Divisão do Trabalho e Manufa tura e Maquinaria e Grande Indústria, no Livro I, fornecem algum apoio à

concepção da manufatura como prolongamento do artesanato? É possível, de

fato, encontrar textos nesta direção. Assim diz Marx da indisciplina característica do trabalhador manufatureiro:

“Como a pericia manual do operário é a base da manufatura e o mecanismo total em que ela funciona não possui um esqueleto objetivo

independente dos próprios trabalhadores, o capital tem que lutar constantemente com a insubordinação dos assalariados”. (Marx, p.407).

E passagem mais geral enfatiza a descontinuidade entre manufatura e indústria, e a continuidade entre artesanato e manufatura:

“Na manufatura, a divisão e articulação do processo social de

trabalho é puramente subjetiva, uma simples combinação de trabalhadores parciais; no sistema baseado na maquinaria, a grande indústria possui

um organismo perfeitamente objetivo de produção com o qual o operário se encontra como uma condição material de produção pronta e

acabada. Na cooperação simples, e inclusive na cooperação especificada

pela divisão do trabalho, a substituição do trabalhadorisolado pelo

trabalhador coletivo se apresenta sempre como algo mais ou menos

casual. A maquinaria... .só funciona em mãos do trabalho diretamente

socializado ou coletivo .” (Marx, p. 425).Não obstante, em oposição ao corte nítido estabelecido por Balibar

entre a produção fabril e a pré-fabril, podem-se invocar passagens em que

Marx enfatiza o processo histórico gradual de perda do controle material do

trabalhador sobre o processo de produção, à medida em que se desenvolve a

divisão do trabalho:

“O que os trabalhadores parciais perdem se concentra, defrontan- do-se com eles, no capital. É um fruto da divisão manufatureira do

trabalho erigir diante deles, como propriedade alheia e poder domina dor, as forças espirituais do processo material de produção. Este pro cesso de dissociação começa com a cooperação simples, onde o capitalista representa, diante dos trabalhadores individuais, a unidade e a

vontade do corpo social do trabalho. O processo continua avançando na

manufatura, que mutila o trabalhador ao convertê-lo em trabalhador

parcial. E se arremata na grande indústria, onde a ciência é separada do trabalho como força independente de produção e encadeada a serviço do capital”. (Marx, p. 400).

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Num texto que se refere aos primórdios da manufatura (no capítulCooperação), Marx é explícito em afirmar a existência de subordinação real do trabalho ao capital, definindo a função econômica do capitalista comorganizador do processo de produção:

“A princípio, o mando do capital sobre o trabalho aparecia

também como uma conseqüência puramente fo rm al do fato de que otrabalhador, em vez de trabalhar para si, trabalhava para o capitalista, e, portanto, sob sua direção. Com a cooperação de muitos trabalhadores assalariados, o mando do capital se converte em requisito indispensáveldo próprio processo de trabalho, em uma verdadeira condiçáo materide produção...”

“Todo trabalho diretamente social ou coletivo em grande escalarequer em maior ou menor medida uma direção que estabeleça umligação harmônica entre as diversas atividades individuais e sxecute

funções gerais que brotam dos movimentos do organismo produtivo, àdiferença dos movimentos realizados pelos órgãòs individuais... Esfunção de direção, de vigilância e ligação se converte em função do capital assim que o trabalho a ele submetido se reveste de caráter cooperativo.” (Marx, p. 368).É inequívoco, à luz destes textos, que, do ponto de vista de Marx,

subordinação real do trabalho ao capital antecede a Revolução Industrial.Deste modo, se tomarmos como referência para julgar as concepçães de Blibar, o texto clássico do qual ele pretende nos oferecer uma hitura, suainterpretação deve ser descartada. Não obstante, é possível atribuir algumforça a esta elaboração teórica se confrontarmos as proposições de MarxBalibar com a própria pré-história real do capitalismo, pondo em questãoexistência de período manufatureiro na evolução deste modo de produção, período este que, segundo Marx, se estenderia do século XVI ai) final dséculo XVIII (ao menos no que se refere ao caso concreto do capitalisminglês). Se nos referirmos a sínteses históricas (como o livro de Dobb, A Evolução do Capitalismo), verificaremos que, na Inglaterra, existe a variedadede formas de organização das atividades não-agrícolas (produtivas) noséculos que antecedem a Revolução Industrial. E há também desconpasso ritmo de evolução dos diversos ramos industriais. Na metalurgia,ió s encontramos mesmo num período bastante remoto formas de organijação coelevado grau de mecanização e, neste sentido, similares à indústria fabril. Nconjunto das atividades de fabrico de bens de consumo, verificase tanto

persistência da produção artesanal urbana dentro da estrutura das tiadicioncorporações de ofício como a existência do chamado sistema doméstico ndistritos rurais, desenvolvido, este último, justamente como tentativa de e

capar à regulamentação restritiva das corporações. É este último sistema qnos interessa em particular, pois é o que predomina na indústriai têxtil naetapa que precede a Revolução Industrial (Ashton, p.52 e sgs.),i a importância deste ramo está ligada a dois fatos: 1) Numa sociedade agrária, pred

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minantemente, os tecidos e o vestuário constituem as categorias mais importantes de bens de consumo manufaturados, com grande peso relativo na restrita pauta de consumo da população e na distribuição do tempo de trabalhototal alocado fora da agricultura (mesmo em 1896, na Inglaterra, após séculode desenvolvimento industrial, a quantidade de homens empregada na indústria têxtil e de vestuário era cerca de três vezes superior à quantidade ocupada em metalurgia e fabricações metálicas.) (V. Bairoch, p. 384); 2) É daindústria têxtil, como sabemos, que arranca a Revolução Industrial, ou sedesencadeiam seus processos mais importantes (não no sentido de que enormes progressos não estariam sendo realizados em outros setores como a produção de ferro, a extração de carvão, a agricultura e os transportes fluviais eterrestres, mas no sentido de que, como aponta Hobsbawn, a produção têxtil,contando com amplo mercado e mobilizando fração importante da força detrabalho total, teria, com seu processo de transformação, impacto global mais

decisivo).Assim, é possível que se possa considerar como forma típica do período(por predominar entre as novas formas originais em gestação) não a manufatura propriamente dita, mas a indústria doméstica. A suspeita desta possibilidade nasce da própria leitura dos capítulos pertinentes de Marx, onde eleapresenta como exemplos de produção manufatureira atividades relativamente secundárias como a fabricação de relógios, carruagens ou alfinetes. Ena indústria doméstica, a subordinação do trabalho ao capital é predominantemente formal: o capitalista-comerciante fornece a matéria-prima e coloca o produto acabado em mercados distantes, auferindo lucro, mas o trabalhadorrealiza o trabalho em sua própria casa, isolado, manejando um instrumentorudimentar sobre o qual,materialmente, ele tem pleno controle. Se as formas

predominantes do período são, de um lado, esta indústria caseira, de outro, oartesanato tradicional sediado nas cidades, é verdade que antes da segundametade do século XVIII a estrutura do modo de produção capitalista nãoestaria ainda completa segundo a definição de Balibar.

Não nos interessa entrar aqui nanarrativa mil vezes feita dos eventos daRevolução Industrial. Vamos nos limitar, para encerrar este tópico, apenas auma observação geral. A constituição debase técnica adequada ao capitalismo, neste processo, toma possível, de um lado, a produção de mais-valiarelativa (potenciando as possibilidades de acumulação de capital) e estabelece, por outro lado, a subordinaçãoreal do trabalho ao capital, consolidando adominação de classe inscrita na estrutura deste modo de produção. Mas estesdois efeitos são antes resultado estrutural da revolução técnica, e não objetivodeliberadamente atingido, a intenção consciente dos agentes capitalistas queintroduziram as transformações (como Marx não deixou de assinalar) (v.Marx, p. 351).) Na explicação da própria Revolução Industrial surge o pro blema histórico do por que estas transformações se produziram. Não se trata

apenas de explicar por que processo acumulativo de experimentação e aquisição de conhecimentos práticos foram obtidos, finalmente, determinados

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inventos. Trata-se de saber por que, na Inglaterra, em fins do século XVIIestes inventos foram aplicados e difundidos emmassa? Isto é:é preciso expcar por que razão, numa sociedade predominantemente agrária e caracterizad

por ritmo extremamente suave de mudança (a julgar pelos padrões atuaisnúmero expressivo de empresários capitalistas foi compelido a enfrentar oriscos e a aventura de subversão radical dos métodos de produção. Acredtamos que Hobsbawn está certo ao valorizar, na explicação do fenómeno, imensa pressão da demanda em expansão, atuando sobre a industria têxticomo resultado do virtual monopolio do comércio mundial estabelecido peInglaterra na segunda metade do século XVIII (v. Hobsbawn, p. 93 e 104sgs.).

ASPECTOS DA CRISE DO FEUDALISMO E DA ACUMULAÇÃO PRIMITIVA

Nesta parte do trabalho, limitamo-nos a fazer alguns comentários arespeito da polêmica sobre o processo de transição na Europa Ocidental cotida no livro Do Feudalismo ao Capitalismo. A discussão é aberta com críticade Sweezy à posição de Dobb, e está centrada em torno destes dois autore(que são antes economistas do que historiadores profissionais), embora contnha intervenções importantes de especialistas como Hilton, Hill e Takahash(As referências são feitas ao livro supracitado).

Sweezy não admite a definição de feudalismo de Dobb, segundo a quaeste modo de produção seria caracterizado em substância pela condição servdo trabalhador. Segundo Sweezy, este traço da situação do trabalhador não suficiente para definir umsistema de produção; o sistema feudal teria comocaracterística crucial o fato de ser um sistema de produção para uso e não d produção para troca. À luz desta definição, é a expansão do comércio noúltimos séculos da Idade Média européia que deve ser vista como o fato principal de desagregação da economia feudal, processo cujo desenlace é, paSweezy, a formação de um modo de produção simples de mercadorias: umsociedade de pequenos produtores camponeses independentes. Deste modo,decomposição do feudalismo seria atribuível, em última análise, à ação corrsiva de fator aparentemente exterior ao sistema.

Mas Sweezy se engana ao desvalorizar, contra Dobb, o que este chamde contradiçõesinternas do modo de produção feudal, no processo de suadesagregação. Dobb salientou o papel das guerras entre senhores feudais, quimplicavam em destruição de forças produtivas e no crescimento, para fortalecimento militar dos suseranos, do número de cavaleiros a seu serviçsobrecarregando progressivamente a classe trabalhadora. É errôneo negacomo faz Sweezy, que este estado de guerra perpétua atue para a transformção da sociedade feudal (p .23,24). O aspecto mais contestável e frágil d posição de Dobb está na afirmação de declínio da produtividade da terra

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medida em que aumentava a população, tornando mais difícil a obtenção deexcedente para o sustento da classe parasitária. O próprio livro de Dobbcontém, incidentalmente, indicações de que isto não deve ter ocorrido (Dobb, p. 62). Mas mostra claramente que a intensificação da exploração (pelainflação do número de indivíduos improdutivos) conduz a revoltas campo

nesas e à deserção da mão-de-obra. (Note-se a importância do elemento valorizado por Balibar, a autonomia material do trabalhador, como precondição para este última manifestação de revolta: como o senhor não tem funçãoeconômica, os camponesesse separam dele, emigrando para regiões despovoadas). Sweezy compreende estas reações da classe dominada como função daexpansão comercial que, simultaneamente, criaria para os senhores necessidades novas (com a oferta de produtos exóticos) e para os servos a possibilidade de fuga para as cidades (p. 30,31). Esquece ele que a reserva de mão-de-obra flui também para a fronteira agrícola (v. os exemplos russos citados

por Dobb, (Dobb, p. 78) e é dizimada pelas guerras e pelas pestes (cujadisseminação é favorecida pelas más condições de vida). Sweezy erra igualmente ao negar que a guerra, o banditismo e o desprezo pelos interesses dosservos sejam inerentes ao feudalismo (p. 28).

Por outro lado, Dobb parece não compreender o que Sweezy quer dizercom o termosistema econômico, quando afirma que osistema feudal não poderia ser suficientemente caracterizado pelo fato da servidão. O texto deSweezy, diz Dobb, “indica que o termo pretende incluir as relações entre o

produtor e o seu mercado.” (p. 62) Dobb não compreendeu que por istoSweezy qúer dizer que não se pode deduzir a dinâmica da sociedade feudal,como uma totalidade, das relações entre proprietário e trabalhador, definidas pela servidão; isto não é suficiente, segundo ele, para compreender o modo defuncionamento e de desenvolvimento deste todo, ou seu “primeiro motor”,como diz ele na “tréplica”. E neste ponto tem razão. A discussão entreSweezy e Dobb está mal posta por este último quando contrapõe a diferenteênfase a ser dada a fatoresinternos ou externos na decomposição do feudalismo. Esta diferenciação só tem sentido quando se isola omanor como aunidade pertinente cuja dinâmica deve ser apreendida na análise. Com isto se perde de vista a sociedade feudal como um todo, e as relações entremanors (políticas e econômicas) no interior de um continente inteiro onde o modo de produção feudal está estabelecido. As relações “externas” entre feudos, eentre feudos e cidades, são essenciais à dinâmica do feudalismo. Aí se incluemas relações comerciais assim como as relações político-militares.

O traço decisivo deste modo de produção parece-nos ser ainda o poem relevo por Balibar: a ausência de funçãoeconômica do proprietário daterra e o controle material do trabalhador sobre os meios dè produção. Éneste traço estrutural que estão fundados1) o consumismo dos senhoresfeudais (pois se estes não têm função econômica, o excedente deve ser usadoimprodutivamente),2) a atividade guerreira a que eles se dedicam (pois se aclasse dominante não tem função econômica, é preciso que tenha alguma

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outra função, política, militar ou religiosa) e 3) a condição servil do trabalhador (pelo fato já mencionado de que a subtração do excedente requer acoação extra-econômica).

A expansão do comércio se integrava perfeitamente na ordem feudal nosentido de que o aumento da disponibilidade de bens de consumo de luxo erafavorecido pelo apetite consumista da classe proprietária. Do mesmo modo aguerra perpétua se inscreve como característica inerente à sociedade feudal.Ambos os fenômenos não têm nada de exteriores, neste sentido, e desencadeiam a dinâmica que transforma profundamente a sociedade feudal e conduzem última análise à sua superação. O resultado das guerras feudais é, nãoapenas intensificar as contradições entre a classe trabalhadora e a classe pro prietária, como conduzir progressivamente à unificação política, decorrendoesta dos conflitos senhoriais, em parte como umresultado e em parte comoreação à anarquia que eles provocavam e suas conseqüências. Paralelamente à

consolidação do poder real opera-se a unificação dos mercados nacionais, oflorescimento das cidades como centros manufatureiros e mercantis e a consolidação da burguesia como nova fração da classe dominante. Pode-se admitirque exista interdependência entre os dois processos, dado o fracasso da unificação política prematura sob o Império Carolíngio no século IX. Não obstante, a monarquia absolutista dos tempos modernos pode ser encarada como o prolongamento da ordem feudal primitiva, malgrado o desenvolvimento comercial e manufatureiro que ela chega a promover. O que se preserva, na novaorganização política da nobreza, são dois elementos contraditórios: a regulamentação tradicionalista (elementoordenador) e o arbítrio e o privilégio nasrelações econômicas (elementoirracional). As corporações de ofício sãofeudais, ou antes, constituem a superestrutura de instituções feudais se sobre

pondo ao modo de produção simples de mercadorias, no sentido de quetendem a congelar a atividade econômica em múltiplos aspectos, determinando compulsoriamente as condições em que se produz e se vende, equem tem, por privilégio, o direito de produzir e vender tal produto (assim como o servono feudo primitivo estava ligado perpetuamente à sua condição e sujeito ainúmeras prescrições costumeiras relativas ao processo de trabalho). O mesmo pode ser dito das companhias monopolistas de comércio, que obstaculizavammenos o progresso técnico do que a mobilidade social pela detenção de privilégio outorgado. A própria monarquia, malgrado a centralização política, conserva sua essência feudal na irracionalidade do processo de seleção dos governantes e em sua legitimação mística, no elemento parasitário das cortes e nosistema anárquico e iníquo de tributação que é utilizado para financiar os seusgastos Neste sentido, pode-se sustentar com Hill (p. 165) e Dobb que asrevoluções inglesas do século XVII e a revolução francesa do século XVIII sãorevoluções burguesas, que tiveram como função histórica demolir os remanescentes das relações de produção feudais e a superestrutura característica da

velha ordem. É errôneo sugerir unilateralmente, como faz Balibar, que amonarquia absolutista é uma forma de Estado de transição que intervém no

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plano econômico (através da legislação sanguinária contra os pobres) paraassegurar a implantação das relações capitalistas de produção. Ela promove aexpansão manufatureira e mercantil, mas torna-se, subseqüentemente, obstáculo à mesma, cerceando, através de sua legislação e seus privilégios outorgados, as vias espontâneas da acumulação de capital.

Sweezy caracteriza o modo de produção (agrário) resultante da decom posição do feudalismo como produção simples de mercadorias, o que é basicamente correto desde que se acrescente a subsistência de relações feudais noarrendamento e na superestrutura jurídico-política da monarquia. À questãocolocada por Dobb (“Qual era a classe dominante nos séculos XV e XVI naInglaterra? ”) Sweezy está errado em responder que houve a dominação simultânea de duas classes, burguesia e nobreza. Na rçalidade, as classes dominantes eram a grande nobreza e os capitalistas manufatureiros e mercantisdotados de privilégios pela Coroa. Em seu livro, Dobb dá importância à classe

capitalista em ascensão na revolução cromwelliana, mas, esquecendo o papel predominante da agricultura na sociedade inglesa da época, vê esta classe dos yeomen como composta principalmente pelos capitalistas-comerciantes dosistema doméstico e não pelos pequenos e médios proprietários que introduziam relações capitalistas no campo. Esta minimização do peso econômico esocial do setor agrícola por parte de Dobb, além de dar origem às dificuldadesde sua tese sobre a acumulação primitiva (que comentaremos a seguir), marcatambém sua compreensão dos resultados da revolução burguesa na Inglaterra:ele enfatiza a eliminação dos privilégios monopolistas das grandes companhiasde comércio e não asenclosures promovidas pelo Parlamento no séculoXVIII.

Para Dobb, a acumulação primitiva é não apenas o processo de surgimento do trabalho “livre”, destituído de propriedade e obrigado a vender suaforça de trabalho; é também, literalmente, o processo de surgimento do pró

prio capital. Segundo sua concepção (criticada por Sweezy), teria existido um período inicial de aquisição de propriedades senhoriais a baixo preço porelementos oriundos da burguesia, seguida mais tarde de transferência de recursos da agricultura para a indústria, com a venda destas terras, a preço elevado,

para os aristocratas (Dobb, p.224), ou como sugere Dobb na última páginade sua polêmica com Sweezy, para nababos de regresso das índias (séc.XVIII). Assim, depois de ter corretamente vinculado os processos de formação da riqueza capitalista e a expropriação do campesinato como dois aspectos essenciais e ligados da acumulação primitiva, Dobb pretende tambémsugerir a existência de processo de expropriação da própria nobreza e do cleroem benefício da burguesia. Existem grandes problemas de comprovação empírica para este ponto de vista; pode-se mencionar, por exemplo, com relação acaso concreto de desapropriação em detrimento das velhas classes invocado

por Dobb, que as terras confiscadas durante a primeira revolução inglesa parecem ter sidogrosso modo recuperadas pelos seus antigos proprietários(Barrington Moore, p. 28). E, o que é mais importante, Dobb ignora as

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possibilidades, por parte da burguesia, da pequena nobreza e dos camponesesricos, de acumulação de capital nas próprias propriedades rurais, no contextoda revolução agrícola que precedeu, no século XVIII, a revolução industrial.Por outro lado, deve ter sido de pequena importância a transferência de recursos da agricultura para a irtdústria, na revolução industrial, dadas as quanti

dades de capital relativamente pequenas exigidas pela técnica da época paraimplantar uma unidade de produção. Segundo Bairoch, “um investimento dequatro meses de salário bastava, em média, para pôr para trabalhar um operário em 1812 (na Inglaterra —E.P.). Considerada a evolução técnica, esta razãodevia ser ainda mais baixa nos primeiros anos da industrialização”. (Bairoch,

p. 60)

h

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1ASHTON, T. S., A Revolução Industrial, Publicações Europa-América, Lisboa, 1971.2BAIROCH, Paul, Revolución Industrial y Subdesarollo, Siglo XXI, México, 1967.3BALIBAR) Etienne, Sur les concepts fondamentaux du matérialisme historique, in Lire le Capital, vol. II, Maspero, Paris, 1968 (edição de bolso).4BARRINGTON MOORE, Jr., Les origines sociales de la dictature et de la démocratie, Maspero, Paris, 1969.sDOBB, Maurice, A Evolução do Capitalismo, Zahar, Rio de Janeiro, 1971,.

6DOBB, SWEEZY e outros, Do Feudalismo ao Capitalismo, Publicações Dom Quixote, li Lisboa, 1971.7GLUCKSMANN, André, Um Estruturalismo ventríloquo, Revista Tempo Brasileiro n° 25 (Abril-Junho de 1970). Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro.®HOBSBAWN, Eric, En torno a los origenes de la revolución industrial, Siglo Veintiuno, Buenos Aires, 1972.9MARX, Karl, El Capital, Livro I, volume I, Fondo de Cultura Econômica, México, 1946.

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PROBLEMAS ATUAIS DO CAPITALISMO MUNDIAL

I —Características da expansão mundial das multinacionais no pós-guerra.A partir das últimas décadas do século passado, à medida que se proces

sava a passagem do capitalismo da etapa competitiva para a etapa monopolista, surgiram os primeiros exemplares de grandes empresas oligopólicas que,além de serem responsáveis por proporção apreciável das vendas nas indústriasem que operavam, em seus países de origem, implantavam no territorio deoutras nações, unidades produtivas sob seu controle. No entanto, é apenasapós a Segunda Grande Guerra que a empresa multinacional passa a constituir

o canal privilegiado, através do qual se efetuam as transferências de capital privado de longo prazo entre as diversas economias nacionais que compõem osistema capitalista mundial. No período anterior, a expansão das exportaçõesde capital assumiu, predominantemente, a forma institucional de investimentos puramente financeiros, consistindo na aquisição de títulos de governos ou empresas no exterior, sem envolver, por parte dos investidores, umcontrole sobre o capital produtivo eventualmente criado, no outro país, com base nestes recursos. Assim, “em 1914, 90% dos movimentos internacionais decapital entre países se faziam sob forma de investimentos de carteira por

indivíduos e instituições financeiras, enquanto que hoje em dia 75% das saídas de capital dos países industriais mais importantes se fazem sob forma deinvestimentos diretos por empresas.”1

Entre as condições de ordem mais geral qu*? tomaram possível este papel decisivo das empresas multinacionais no período mais recente (aindaque não o expliquem por completo) deve-se mencionar, em primeiro lugar,uma conseqüência do processo de concentração e centralização do capital queacompanha o desenvolvimento do capitalismo: o aumento do tamanho médiodas empresas, e as novas possibilidades criadas por este fenômeno: o alarga

' t UGENDHAI, Christopher, Las Empresas Multinacionales, Alianza Editorial, Madri, 19 73 ,p. 35.

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mento do horizonte temporal e espacial da empresa e a dilatação e aperfeiçoamento de seu “cérebro5’, isto é, de sua superestrutura administrativa, tornando possível às empresas de maior porte ultrapassar as fronteiras nacionais e

planejar sua própria expansão, numa perspectiva de longo prazo, em escala planetária. Desenvolvimentos tecnológicos recentes, como o uso da computação eletrônica para processar grande volume de informações, assim como aimplantação de sistema internacional eficiente de telecomunicações e detransporte por via aérea também constituem pré-requisitos criados nas últimasdécadas, viabilizando, para as grandes empresas, a coordenação das atividadesde filiais distribuídas por todos os continentes.

Estimada em termos absolutos, esta expansão sem precedentes das em presas multinacionais no pós-guerra é, predominantemente, fenômeno nor-te-americano e, em segundo lugar, britânico, ainda que as dimensões do investimento direto estrangeiro sejam relativamente mais importantes (em com paração com seu PNB) para pequenos países europeus como a Holanda ea Suíça, e para a própria Grã-Bretanha, do que para os Estados Unidos. Em1966, 56% do capital total de subsidiárias de empresas no exterior pertencia asociedades norte-americanas, enquanto 19% deste total era propriedade deempresas britânicas.2 Enquanto¡os investimentos britânicos (excluídos os desetores de petróleo, banco e seguros) passam de 8,3 a 11,8 bilhões de dólares1960 a 1965, o montante do investimento direto dos Estados Unidos no exterior cresce de 32,8 bilhões em 1960 para 59,3 bilhões de dólares em 1967,3Pode-se contrastar estas últimas cifras com a situação ao término da Segunda Grande Guerra: em 1946, o capital das empresas americanas investido no

exterior alcançava 7,2 bilhões de dólares, montante levemente inferior ao doano de 1929.4A expansão internacional das sociedades norte-americanas no pós-

guerra poderia ser dividida em duas etapas, segundo os setores para os quais secanaliza predominantemente o fluxo de investimentos. Assim, “a evoluçãocaracterizou-se, de 1946 a 1957, por um crescimento rápido da parte dosinvestimentos petrolíferos em detrimento dos investimentos em serviços pú blicos; de 1957 a 1967, em compensação, a parte das indústrias manufatureiras progrediu vivamente em detrimento dos serviços públicos e da indústria

petrolífera, de modo que em 1967 os investimentos diretos nas indústriasmanufatureiras representavam mais de 40% do total”.5 Paralelamente a estaevolução, processou-se um deslocamento da repartição geográfica destes investimentos diretos (podendo-se discernir uma tendência análoga no caso doReino Unido): enquanto a participação do Canadá no investimento acumulado americano se mantinha a nível pouco inferior a um terço do total, de 1950

2DUNNING, John H., Capital Movements in the Twentieh Century, in International In- vestiment, Penguin Books, Middlesex, Engl. 1972, p. 79.3OCDE - Ia Croissance de la Production (1960 -1980) , p. 77.4BARAN P. e SWEEZY P., O Capitalismo Monopolista, Zahar, Rio, 1966, p. 197,198. sOCDE, op. cit. p. 78.

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a 1967, a participação da Europa elevou-se de 14% a 30%, e a da AméricaLatina declinou de 39 a 20%.6

Em conformidade com o que seria de se esperar, com base nas interpretações mais recentes a respeito da natureza e das motivações deste processo demultinacionalização das empresas, a evidência empírica manifesta o papel

preponderante que nele assume número restrito (algumas centenas) de sociedades anônimas gigantes que operam, em seus países de origem e no exteriorem mercados oligopólicos. As indústrias onde o processo se verifica commaior vigor são ramos de produção dominados por pequeno número degrandes empresas. Se a percentagem dos investimentos industriais que se realizam no estrangeiro é de20% para a indústria de transformação norte-americana em conjunto, verificam-se percentagens superiores a esta no casodas indústrias elétrica, química, da borracha e dos meios de transporte (elevando-se a 29,5% no caso deste último ramo). Por outro lado, apenas 20

sociedades anônimas norte-americanas controlam 2/3 dos investimentos diretos dos EUA na França, Alemanha e Grã-Bretanha, cabendo a apenas 3 destas empresas (Esso, Ford e General Motors) 40% daquele total.7

Estes fatos —o deslocamento relativo dos fluxos de investimento diretoamericano em direção à indústria manufatureira e ao continente europeu,assim como o papel central do grande capital monopolista norte-americanocomo agente deste processo —encontram explicação satisfatória na-tese deHymer e Rowthom, no artigoThe Non-American Challenge, a respeito dasmotivações do investimento direto norte-americano no exterior. Segundo

estes autores, as taxas de crescimento mais elevadas dos países do MercadoComum Europeu (assim como do Japão), em comparação com a taxa decrescimento dos Estados Unidos, teria confrontado as grandes corporaçõesdeste país com a ameaça de ver declinar sua participação relativa no mercadomundial, enquanto cresceria o peso relativo das concorrentes japonesas eeuropéias. Esta ameaça (o “desafio não-americano”) conduziu a esforço de

penetração nos mercados europeus, via investimento direto. O resultado provisório deste movimento, na década que se seguiu à instituição do MercadoComum Europeu (1957-1967), para as 500 maiores corporações industriais

dos Estados Unidos e as 200 maiores não-americanas poderia ser sintetizadonestes termos, segundo Hymer e Rowthom: a taxa de crescimento das filiaisnorte-americanas no exterior foi superior à das firmas não-americanas, enquanto a taxa de crescimento destas últimas foi maior ou igual à das firmasnorte-americanas como um todo (somando-se as vendas da matriz e de suassubsidiárias).®

6 Idem, p. 78.7JALÉE, Pierre, El Imperialismo en 1970, Siglo XXI, México, 1 970,pg. 105,106.®HYMER S. e ROWTHORN R., Multinational Corporations and International Oligopoly: The Non-American Challenge, in algun livro cujo título, editora etc. é impossível saber por não se constumar anotar tais referências nas apostilas da biblioteca da UNICAMP.

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A “invasão” da Europa pelas multinacionais de origem norte-americanaconduziu a uma participação crescente, mas ainda relativamente limitada, desuas filiais na produção industrial total e nos investimentos no continenteeuropeu. “A parte dos investimentos diretos americanos na formação bruta de capital no Mercado Comum passou de 4,5% em 1958 para 6,3% em 1964.” 9O perigo representado por esta penetração americana e a queda das barreiras alfandegárias no interior da Comunidade criaram a necessidade dearmar os capitalistas de cada pais diante de seus novos e poderosos concorrentes, o que precipitou um grande movimento de fusões de empresas durante adécada de 60. Este processo foi decididamente estimulado pelos respectivosgovernos, em contraste com a hostilidade tradicional no outro lado do Atlántico diante da formação de posições de monopolio. A centralização do capitaleuropeu processou-se paralelamente à absorção de empresas européias por parte de sociedades americanas e a expansão externa, mais limitada, dos monopolios de matriz sediada na Europa. No que se refere ao Mercado Comum,“entre 1961 e a primeira parte de 1969, inclusive, tiveram lugar 1.861 fusõese absoições dentro dos países membros, e... 257 entre empresas de paísesmembros diferentes. Neste mesmo período, empresas que não pertenciam àComunidade eletuaram 820 aquisições de empresas da Comunidade, enquanto que as empresas da Comunidade, por sua vez, efetuaram 215 aquisições fora do Mercado Comum.” 10 Expandiram-se a um ritmo acelerado osinvestimentos diretos externos de países como a Alemanha, o Japão e a Itália(predominantemente fora dos EUA), ainda que a participação destes países

em rápido crescimento no total dos investimentos acumulados permanecesse bastante reduzida e persistisse, por parte de suas empresas, o uso predominante das exportações como via de acesso aos mercados exteriores.11

O peso crescente das empresas multinacionais na economia mundialcapitalista suscita certo número de desequil íbrios e contradições em seu funcionamento. Os imensos saldos líquidos retidos por estas empresas, e o poderde previsão de que elas dispõem, provocam violentos movimentos de venda demoedas ameaçadas de desvalorização, comprometendo a capacidade dos governos de manter estáveis as taxas de câmbio. Seu poder de decisão quanto à

escolha da localização de suas fábricas debilita o poder de barganha de governos e sindicatos cerceando estes centros de poder de base nacional em suacapacidade de impor determinada carga tributária às empresas ou de pressionar pela elevação dos salários. Mesmo os países onde se situam as matrizesdestas empresas podem ser vítimas de suas decisões: a implantação de filiaisno exterior tende a desequilibrar o balanço de pagamentos na medida em que

9MANDEL, Ernest, La réponse socialiste au de'fi ame'ricain, Maspero, Paris, 1970, p. 25.

10TUGENDHAT, C. op. cit., p. 107.n ROWTHORN, Bob, Imperialismo: Unidade ou Rivalidade, Publ. Escorpião, Porto,1973,p. 18e 27.

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a produção externasubstitui exportações e a matriz pode ver vantagens emimportar para o país de origem produtos fornecidos por subsidiárias no exterior, dadas as vantagens competitivas de que estas se beneficiam (comosalários mais baixos etc.). Num plano mais geral, como mostrou Hymer, o peso crescente das corporações multinacionais na produção mundial e a estru

turação do sistema capitalista internacional à imagem e semelhança da organização hierárquica interna destas empresas (com a divisão geográfica do tra balho que ela implica) tendem a consolidar a desigualdade de desenvolvimento entre as nações: as atividades mais altamente qualificadas de direção, plane

jamento e pesquisa se concentram nas matrizes, garantindo aos que dela participam, nas grandes metrópoles imperialistas, níveis de renda, status e poderinalcançáveis para seus subalternos da periferia.

II — Determinantes do investimento estrangeiro direto e de portfolio: as principais interpretações e contraste com explicações tradicionais da teoria do comércio internacional.

O investimento externo de portfolio consiste na aquisição de títulosemitidos por governos ou firmas estrangeiras. O investimento estrangeiro direto, na definição de G. Ragazzi, “é o montante investido por residentes deum país numa empresa estrangeira sobre a qual eles têm controle efetivo.”1Ao analizar os determinantes destes dois tipos de investimento, Ragazzi parte do pressuposto de que o primeiro é realizado predominantemente porindivíduos e o segundo por corporações. Em conseqüência, segundo ele, os“determinantes dos dois tipos de fluxo de capital... podem diferir na medidaem que os objetivos e restrições dos dois tipos de investidor são diferentes.”2

Esta proposição inicial —que vincula a desigualdade entre os determinantes dos dois tipos de investimento à diferente natureza dosagentes que os promovem —levanta objeção secundária que não afeta o essencial das conclusões de Ragazzi. As empresas efetuam, também, investimentos puramente financeiros, e na medida em que destinam parte de seus recursos líquidos a esta

finalidade, elas devem atuar segundo as mesmas restrições e objetivos que seaplicam aos indivíduos. O investimento de portfolio é atraído basicamente pelo incentivo de taxas de retomo mais elevadas, vigentes no país receptor,fazendo-se a comparação internacional destas taxas de retomo entre ativosfinanceiros com o mesmo grau de risco. Não há razão para se esperar que asempresas se comportem essencialmente de modo diverso que os indivíduos ao

1RAGAZZI, Giorgio, Theories of the Determinants of Direct Foreign,p. 471 de algum livro desconhecido, porque a referência ao livro de onde se extraiu este artigo (e as refe

rências à editora etc.) não constam, como de costume, na apostila disponível na biblioteca (Unicamp).2Idem, p. 471.

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se decidirem sobre de que modo aplicar fundos destinados ao investimento de portfolio. É verdade, apenas, que a maior parte dos fundos disponíveis paraurna empresa não-financeira se destina“em última instância e normalmente, isto é, por período de expansão continuada” a aumentar o estoque de capital produtivo sob seu controle; os recursos líquidos temporariamente não utilizados para este fim são objeto de complexa gestão financeira à qual se aplicamas mesmas considerações, válidas para os investidores individuais, relativas ataxas de retorno e riscos de variação do valor dos ativos.

A realização de investimentos estrangeiros diretos decorre, paraRagazzi, do fato de que as condições reais em que operam as empresas seafastam do modelo ideal da concorrência perfeita. “Os requisitos principais

para condições perfeitamente competitivas neste contexto podem ser resumidos como se segue: (a) a taxa de retorno e risco das ações externas efetivamente reflete a taxa de lucro e risco das empresas estrangeiras; (b) empresasde um país não têm nenhuma vantagem especial que lhes permita operarsubsidiárias em outro, de modo mais lucrativo do que as empresas locais; (c) oobjetivo, tanto de indivíduos como de empresas, é a maximização do lucro emmercados competitivos; e (d) indivíduos e empresas atribuem o mesmo prêmio a riscos de câmbio e estão igualmente aptos para se protegerem contratais riscos”.3 Ragazzi tem razão ao afirmar que, na medida em que prevalecessem tais condições, todos os fluxos internacionais de capital assumiriam aforma de investimentos de carteira.4

Este sumário de hipóteses é útil por permitir diferenciar as várias explicações a respeito do investimento estrangeiro direto a partir da hipótese es pecífica que é rejeitada por cada teoria. O abandono da hipótesec estána base da análise de Hymer e Rowthorn sobre a expansão das grandes em presas oligopólicas americanas na Europa. As taxas de crescimento mais baixas da economia americana em comparação com as vigentes no continenteeuropeu (e, pode-se acrescentar, o fato destacado por Balassa: dificuldade deas grandes empresas incrementarem suas quotas no mercado nacional americano já altamente concentrado em cada indústria) conduz ao investimentodireto nas economias mais dinâmicas do sistema capitalista, onde as subsidiárias conquistam participação crescente em seus respectivos ramos de produção. Esta análise supõe que o objetivo da empresa oligopólica está não namaximização dos lucros mas na maximização da sua taxa de crescimento emescala mundial. O tamanho da empresa opera comorestrição neste movimento de expansão através de fronteiras: um tamanho mínimo é exigido para

3Idem,p .478 .40 predomínio dos investimentos de carteira nas exportações de capital antes da Primeira Grande Guerra constitui, portanto, üm indício adicional daquilo de que nós sus

peitamos já, por outras razões, a saber: que, ao contrário das teses clássicas sobre o assunto, a transição da etapa competitiva para a etapa monopolista do capitalismo não se tinhaconsumado ainda no início deste século.

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que a empresa desenvolva seu “cérebro” administrativo de modo a tornar-secapaz de controlar a rede de subsidiárias em outros países, e para que dis ponha de recursos financeiros e conquiste (via exportações, inicialmente)fração do mercado nacional externo bastante grande para poder implantar suafilial com uma escala eficiente.

Outro grupo de teorias tem como ponto de partida o abandono dahipóteseb acima mencionada. Segundo uma destas teorias, a subsidiária estrangeira disporia potencialmente de vantagens competitivas com relação àsfirmas locais, pelo fato da matriz lhes transmitir, a custo virtualmente nulo,um “conhecimento” tecnológico de natureza especial. Na decisão de realizaro investimento direto, as vantagens da subsidiária diante das concorrenteslocais (que precisariam incorrer em dispêndios de pesquisa e desenvolvimento para terem acesso a este “ativo” tecnológico) devem ser pesadas contra assupostas desvantagens a que a empresa estaria sujeita pelo fato de atuar num

ambiente econômico que lhe é estranho. Para que o investimento direto estrangeiro se imponha como preferível, em face da alternativa de conceder licença a uma empresa local, é necessário, também que anatureza do “conhecimento” em questão dificulte acordo sobre os termos de um contrato destetipo, ou exija para seu pleno aproveitamento um contato direto da empresacom seus clientes.

A teoria do próprio Ragazzi baseia-se na rejeição da hipótesea. Asmenores dimensões dos mercados de títulos na Europa ocidental provocamflutuações mais amplas no preço de mercado destes ativos, em cmparação

com as observadas nos Estados Unidos. Além disto, a maior dificuldade por parte dos investidores de conseguirem informações sobre as empresas (devidoa ineficiências na organização destes mercados na Europa) acentua o riscorelativo envolvido na aquisição destes títulos e impede que a rentabilidade dasempresas européias possa se traduzir plenamente nos atrativos oferecidos porsuas ações. A alternativa do investidor estrangeiro potencial consiste, em conseqüência, em realizar aquele tipo de investimento que garante um controlesobre o capital produtivo em operação nestes países. De onde a conclusão deRagazzi: ‘“Mesmo na ausência de comportamento oligopólico ou de vantagens

tecnológicas das firmas domésticas, fluxos de capital podem, portanto, ocorrersob a forma de investimento direto num país estrangeiro onde a taxa médiade lucro é mais alta, mas onde os influxos de capital de portfolio são impedidos por ineficiências no mercado de títulos.”5 Esta tese, plausível por razões apriorísticas, tem a confirmação empírica impossibilitada pelo fato deque aqueles dois outros determinantes do investimento direto não estão, defato, ausentes no mundo real. E a restrição invocada por Hymer e Rowthorn — o tamanho mínimo da empresa que torna viável o investimento direto —deveria prevalecer mesmo que a motivação destes investimentos fosse determi

nada segundo a explicação de Ragazzi. Pode-se acrescentar ainda, finalmente,5Idem,p. 479.

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o fato de que o acesso a este tamanho mínimo está intimamente ligado, narealidade, à conquista de vantagens tecnológicas e à formação de mercadooligopólicos.

A explicação baseada no “ciclo do produto”, de Vemon, parte da idéiade que as inovações são desenvolvidas pelas empresas como resposta às nece

sidades dos consumidores com os quais elas mantêm contato imediato e comunicação mais fácil, por razões de proximidade geográfica. Por esta razãosão empresas dos Estados Unidos —país onde a renda per capita e a razãocapital/trabalho são mais elevadas do que no resto do mundo —que aproveitam em primeiro lugar as oportunidades de criar e desenvolver novos bens dconsumo destinados a mercados de altas rendas ou bens de capital que incor poram novas técnicas poupadoras de mão-de-obra. Com a expansão da demanda nacional e o amadurecimento da inovação, fixam-se as característicaessenciais do novo produto. Numa etapa subseqüente, a elevação da renda per

capita em outros países faz crescer o mercado externo e as exportações. A partir de certo ponto, toma-se compensador estabelecer unidades produtivanos países estrangeiros. Quando as economias de escala chegam a ser plenamente aproveitadas pelas subsidiárias, as principais diferenças entre os doilocais de produção consistem nos desníveis entre os custos de mão-de-obr(certamente inferiores no país de renda per capita mais baixa). Chega assim omomento em que se torna lucrativo, para a matriz, promover a importação d produto fabricado na filial estrangeira.

A teona de Vemon encaixa-se mal na classificação de Ragazzi por uma

razão aue se toma explícita na crítica que este lhe dirige: “As teorias baseadas no ciclo do produto não podem explicar per se o investimento direto porque elas não explicam porque quando a produção no exterior se tomamais vantajosa, as firmas americanas estabelecem subsidiárias no exterior ainvés de vender a licença para produtores locais mais eficientes. Para explicaisto, deve-se considerar de novo as imperfeições no mercado de licenças ousupor que existe comportamento oligopólico por parte das firmas”.6

Outros fatores invocados na explicação do investimento direto estrangeiro, como as tarifas, que criam obstáculos a uma “expansão para fora” da

empresas através de exportações, não permitem explicar este tipo de investmento na ausência de outros determinantes ou pré-requisitos já mencionadosSó podem constituir, portanto, elementos parciais de alguma das teorias resumidas acima.

(É difícil responder ao último tópico desta pergunta. A teoria tradicional docomércio internacional não contém nenhuma explicação a respeito dofluxo internacional de capitais por ter entre suas hipóteses fundamentais anão-mobilidade do capital através das fronteiras entre países. A teoria convencional do mecanismo de ajuste do balanço de pagamentos num sistema de padrão-ouro, por sua vez, supõe que a elevação da taxa de juros nos paíse

6Idem, {¿4 87 ,488.

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deficitários provoca um fluxo compensatório de capital proveniente dos países superavitários —sendo esta elevação da taxa de juros um efeito da evasãodo ouro e da contração da oferta de moeda ou uma medida deliberada quetende a evitar, justamente, a cobertura do déficit através de transferências deouro para países. Esta teoria diz respeito, apenas, aos investimentos de cartei

ra. As teorias do investimento direto acima resumidas se diferenciam em seus pressupostos de explicações que assumem a hipótesec da lista de Ragazzi esegundo as quais os investimentos externos partem de países onde o capital é“abundante” —e a taxa de lucro é mais baixa —e se dirigem para países ondeo capital é “escasso” —e a taxa de lucro é mais alta —. A idéia fundamentalque está na base destas explicações pode ser posta em duas molduras teóricasigualmente contestáveis —por razões que não se podem discutir aqui: a concepção neoclássica que associa uma razão capital/trabalho mais elevada a umataxa de retomo mais baixa para o “fator” capital e a concepção, marxiana

segundo a qual a elevação da composição orgânica do capital tende a setraduzir num declínio da taxa de lucro).

III —Resumo e comentários do artigo de Richard Caves: “Corporações Internacionais: A Economia Industrial do Investimento Estrangeiro.

O objeto do artigo de Caves é o investimento estrangeiro direto promovido pelas corporações internacionais; na análise deste fenômeno, ele pretendedar especial destaque a dois aspectos: a transferência líquida de capital entre países geralmente envolvida no investimento direto e o fato de que ele acarreta a entrada, à indústria de determinado país, de uma empresa estrangeira.Antes de entrar no coração de sua tese, é preciso que nos entendamos sobre asdefinições empregadas pelo autor.

Embora as estatísticas internacionais definam o investimento estrangeiro direto pela simples aquisição do controle de uma firma por pessoas quenão são cidadãos do país onde esta se encontra estabelecida, Caves limita suadefiniçãoao caso empiricamente predominante em que este tipo de investimento envolve a existência decorporação estrangeira matriz. Dada esta restrição preliminar, o investimento estrangeiro direto se classifica em dois tiposdistintos:horizontal (em que a empresa se expande para produzir artigosidênticos ou similares aos da matriz no exterior) evertical (em que a subsidiária fornece matérias-primas processadas em outras unidades da empresa). Amaioria esmagadora do investimento direto estrangeiro enquadra-se em umadestas luas categorias. “A diversificação de produto através de fronteirasnacionais é quase desconhecida”.1

A parte maisoriginal (embora discutível) da tese de Caves refere-se aosdeterminantes doinvestimento extemo horizontal. Seu ponto de vista enqua-

' CAVES, Richard E. International Corporations; The Industrial Economics of Foreign Investiment, in international Investiment, Penguin Books, p. 268.

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dra-se como um caso particular da concepção mais geral sustentada porHymer, segundo a qual se reveste de uma importância dominante, neste contexto a posse pela empresa investidora de classe especial de ativo (uma inovação patenteada ou um produto diferenciado) que pode ser explorado atravéda produção no exterior sem nenhum custo adicional de pesquisa e desenvovimento (dispêndios já realizados com vistas à sua exploração no mercado dorigem). O conhecimento é o protótipo do “ativo” dotado de tais característcas. Mas Caves supõe, também, que a empresa operando no exterior deve sofra desvantagem, diante das concorrentes locais, de atuar em um ambiente qulhe é desconhecido em suas características “econômicas, sociais, legais e culturais”.2 Esta desvantagem pode, eventualmente, fazer a firma preferir, comoalternativa ao investimento estrangeiro, explorar seu “conhecimento” privilegiado através da venda de licença ou de exportações.

A “desvantagem de informação” decorrente, para a empresa, de suacondição de estrangeira,3 invocada neste argumento de Caves, é dificilmente compreensível como hipótese realista quando se pensa na natureza eno porte das empresas que realizam este tipo de investimento. A grandeempresa, nacional ou estrangeira, apropria-se das informações essenciais sobro “meio” em que atua contratando pessoas que a elas têm acesso por su própria qualificação profissional. Para ficar apenas num aspecto da questão:vital para uma grande empresa o conhecimento da legislação fiscal e trabalhista do país em que ela se acha estabelecida, mas pode-se imaginar que subsidiária de grande empresa estrangeira teria maiores dificuldades do que oconcorrentes locais para contratar advogados altamente competentes parlidar com estas questões?

Caves, em seguida, diferenciando o próprio produto, explicita a restrição que particulariza sua tese e a distingue da posição de Hymer; o “conhecmento” a ser economicamente explorado via investimento externo pertencede fato, a uma categoria especial: “Estes requisitos, tomados em conjuntoapontam para um traço particular das estruturas de mercado —a diferenciação de produto —como uma característica necessária das indústrias em quocorre um investimento direto substancial” .* “Aqui está o elo para a basdo investimento direto: a firma bem sucedida produzindo um produto diferenciado controla um conhecimento sobre como servir o mercado que podser transferido para outros mercados nacionais para este produto com pequeno ou nenhum custo.”5 Mas este certamente é um elo dos mais frágeis, pois justamente existe uma gama mais ampla de “conhecimentos” tecnolgicos que desfrutam das mesmas propriedades. A argumentação subseqüen

2Id e m , p . 2 7 0 .

3Id e m , p , 2 7 0 .

4 Id e m , p. 2 7 0 .

5Id e m , p . 2 7 1 .

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de Caves, aliás, faz aparecer algumas razões para relaxar a restrição que constitui adifferentia specifica de sua teoria.

Assim, argumenta ele que a disposição, por parte da firma, de uma“one-shot innovation” de técnica ou produto (como o ingrediente de umrefrigerante) induz antes à venda de licença do que ao investimento direto noexterior, pois neste caso “a informação na qual se baseia a empresa pode serfacilmente transferida intacta para a firma estrangeira”.6 Ora, podemos nos perguntar, diante dos inúmeros casos de diferenciaçãoimaginária de produtos,que maiores dificuldades existiriam para a venda de licença para utilização demarca ou de desenho dotados de certo prestígio internacional, a uma empresaestrangeira? Note-se, com relação a isto, que Caves admite, como casos dediferenciação de produto aos quais se aplicaria sua teoria, aquelas formas dediferenciação que resultam exclusivamente da propaganda, e observa de passagem que os efeitos desta última transbordam as fronteiras nacionais.7Sua argumentação ganha mais consistência quando ele se refere à diferenciação que existe também entre os bens de produção, pois neste caso osuprimento através de importações cria, efetivamente, risco para as empresasclientes8 (riscos que podem consistir na possível interrupção do suprimentode peças, elevação de tarifas etc.); por esta razão, é plausível que fornecedores de bens de produção tenham as vendas aumentadas, ao situarem a produção destes bens no mercado nacional de seus clientes. A incerteza sobrea validade geral da tese de Caves se acentua quando ele conclui a seção sobre oinvestimento direto horizontal reconhecendo explicitamente que o oligopólio,sem diferenciação de produto, pode criar impulsos suficientes para o investimento direto estrangeiro. Imagine-se o caso de grande empresa operando nummercado deste tipo e dispondo de capacidade de autofinandamento queexcede as possibilidades de expansão lucrativa em seu mercado nacional e emsua indústria (possivelmente pela presença de concorrentes de igual porte, queteriam condições de defender eficazmente suas quotas neste mercado). Excluída a alternativa da conglomeração no país natal, o investimento direto poderá apresentar-se como saída, como reconhece Caves, malgrado a inexistência de diferenciação de produto.9

No que se refere aos determinantes do investimento direto vertical (queempiricamente assume, no caso mais geral, a forma de implantação de subsidiárias produtoras de matérias-primas), seus motivos consistem, basicamente,segundo Caves, em evitar a “incerteza oligopólica” e em erigir “barreiras àentrada de novos rivais.10 “Ambos os grupos de motivos apontam para os

6Id e m ,p . 2 7 1 .

7Id e m , p . 2 7 1 .

8I d e m , p . 2 7 2 .

9I d e m , p . 2 7 6 .10Id e m ,p . 2 7 7 .

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mesmos determinantes da incidência de investimentos diretos verticais eas indústrias. A alta concentração das vendas parece ser crítica no estágio produção a partir do qual o investimento estrangeiro é iniciado” .11

Passando da análise dos determinantes do investimento estrangeiro pade seus efeitos no comportamento das firmas no mercado “invadido” pfiliais, Caves concentra a discussão sobre o caso particular dos investimehorizontais. Segundo ele, as “barreiras à entrada” num mercado oligopóexterno são basicamente as mesmas para a firma estrangeira e para concorte potencial local. Não obstante, “a firma internacional tem vantagens cocada uma das fontes principais de barreiras à entrada” .12 As barreiras dvadas das economias de escala podem ser contornadas especializando a sidiária, por exemplo, em operações de montagem, enquanto os outestágios da produção seriam retidos pela matriz. As barreiras baseadasdiferenciação de produto são por definição eliminadas, na hipótese de quvantagem da firma internacional consiste precisamente na disposição um produto diferenciado. Finalmente, determinadas barreiras de “custo aluto” (como as financeiras) podem ser superadas pela capacidade de autnanciamento e pelo crédito a que tem acesso a nova concorrente. Quantoefeitos do surgimento desta concorrente na estrutura do mercado e no c portamento das demais firmas, Caves admite cautelosamente tanto a poslidade de que se intensifique a concorrência entre as empresas como a de se chegue rapidamente à acomodação mútua.13

A mobilidade do capital entre países, restrita no entanto a uma mesindústria, conduz segundo Caves à tendência à equalização internacionaltaxas de lucro no interior de cada uma destas indústrias. Um modelo formé apresentado exibindo este resultado. Supõe-se a existência de dois países eduas indústrias; o trabalho se desloca entre as indústrias, dentro de cada penquanto o capital se desloca entre países, mas não há transferências capital entre indústrias. Este modelo padece, no entanto, da inconsistênciasupor condições de oligopólio e tratar as remunerações dos “fatores” coequivalentes à sua produtividade marginal, quando esta equivalência é estlecida como válida, pela teoria neoclássica, apenas quando se satisfazemcondições da concorrência perfeita.

A seção dedicada à “inter-relação dos fluxos de comércio e dos momentos de capital” explora alguns desenvolvimentos teóricos similares à tedo ciclo do produto de Vernon. A última parte do artigo, finalmentededicada a “algumas implicações de bem estar” associadas à visão do asobre o investimento direto estrangeiro, sendo discutidas principalmente possíveis benefícios extraídos destes investimentos pelo país receptor. N

11 Idem, p. 278.12Idem, p. 279.13 Idem, p. 282,283.

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linha, uma das conclusões principais de Caves reside na afirmação de que“além das rendas tributárias, os benefícios do investimento direto para o paísreceptor dependem da incapacidade da subsidiária estrangeira em capturar atotalidade do produto social que resulta do capital, das qualificações gerenciaise do conhecimento tecnológico que ele transplanta para o país anfitrião. Duasfontes de vazamento exigem particular interesse: o treinamento da mão-de-

obra e os ganhos de produtividade das firmas domésticas induzidos pelo com portamento de mercado da subsidiária.” 14

14Idem, p. 294.

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BREVE RECAPrrULAÇAODAHISTORIA ECONOMICA DO BRASIL

Hoje, em meados do século XX, a situação de extremapobrezaem qencontra a maior parte da população do planeta, e a luta no sentido de srá-la, adquiriram urgância e uma importância histórica universalmente reccidas. Em conseqüência, o esforço de análise volta-se abundantemente ptema do “subdesenvolvimento”, multiplicando as tentativas de definição.tas páginas que pretendem ser uma introdução a “uma breve recapitulaçãlêmica da história econômica do Brasil, nação que seria classifícad.a comodesenvolvida segundo a maior parte dos critérios disponíveis, n3o nos demos excessivamente na caracterização desta noção. Retemos apenas o essedo fenômeno geralmente designado por este termo: a desigualdade do gradesenvolvimento econômico entre as nações. Como medida deste grau de dvolvimento, pode-se recorrer acertonúmero de indicadores, colocando nostos mais baixos da escala uma sociedade quanto maior for a taxa de analfamo, de mortalidade infantil, a participação da agricultura no produto total,ou quanto menor for o consumo de calorias e sobretudo, como critério mairente, quanto mais baixa for a renda anual por habitante. Deste modo, ncom renda anual per capita acima de 1.000 dólares será considerada inequivcamente desenvolvida, enquanto uma outra cuja renda per capita se situe abaixo de 500 dólares será com certeza classificada como subesen volvi da; enttas duas balizas, no entanto, a fixação de limite preciso entre os dois grupmais ou menos arbitrária. O termo “subdesenvolvimento” se refere tãomente à indicaçãoempírica da desigualdade do desenvolvimento das forç produtivas no plano internacional. Decerto, existe também uma linha dtores que procura ultrapassar a mera comparação quantitativa entre sdades ricas e pobres, caracterizando a sociedade subdesenvolvida por característica estrutural interna; odualismo, ou seja, a coexistência de setormoderno com um setoratrasado no interior destas sociedades. Em sua formmenos elaborada, a afirmação do dualismo se prende à constatação dasdife

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renças identificáveis entre estas duas partes da sociedade subdesenvolvida(normalmente, o setor urbano-industrial por oposição ao rural, ou o setorexportador por oposição à economia de subsistência do interior). Neste sentido, não fazem mais do que prolongar a outra perspectiva da análise: enquanto esta consiste em definir o subdesenvolvimento pelas manifestações dainferioridade relativa da produção e da renda de determinados países nocontexto internacional, os analistas do “dualismo” localizam, como essênciado subdesenvolvimento, estas mesmas desigualdades no próprio interior danação dita subdesenvolvida.

No entanto, estas noções dificilmente permanecem circunscritas aomero levantamento empírico dasdiferenças nos graus de desenvolvimento(que precisariam ser explicadas), mas transbordam quase inevitavelmentedeste plano para assumirem o significado de uma teoria explicativa de subdesenvolvimento. Assim, na tese dualista, existem relações dinâmicas entre osdois setores, e são as estruturas internas arcaicas do setor atrasado, impermeáveis por sua própria natureza ao progresso, que explicam a impossibilidade desua difusão e, deste modo, a manutenção do estado de subdesenvolvimento.Assim, Jacques Lambert, um dos principais defensores da “tese dualista” naAmérica Latina, escreve, sobre o processo modemizador que se desencadeianum ponto do sistema:

“A própria rapidez do movimento impede sua difusão imediata e representa, em seu transcorrer, uma das causas do atraso cultural das regiõesdistanciadas dos pólos de desenvolvimento industrial. Freqüentemente também, tais atrasos culturais regionais se acham afetados por deter

minados estilos de povoamento ou condições da estrutura social quetomam difícil a difusão dos efeitos do progresso técnico além dos poiosde desenvolvimento”.1Enquanto a primeira frase apresenta a desigualdade regional como fato

empírico e possivelmente transitório, decorrente apenas de ter o processoinovador se desencadeado recentemente a partir de um foco localizado, acontinuação do texto identifica no interior do setor atrasado os obstáculos àsua propagação. A forma mais extrema desta teoria, é a tese do caráter feudalda agricultura latino-americana, segundo a qual a natureza essencialmentedistinta das relações sociais (e, em conseqüência, das formas de comportamento) vigentes no campo, tomaria a classe dos proprietários rurais impermeável aos incentivos tipicamente capitalistas às inovações na esfera da produção. Deste modo, num curto circuito perfeito da “explicação” ideológica, aconstatação empírica das diferenças entre atraâo e modernização se transforma na teoria explicativa destas diferenças (que são, deste modo, sua própria causa); é o arcaismoessencial do setor atrasado que responde pela perpetuação do atraso.

Ja cq u e s L am ber t , Obs tácu los ao desenvo lv im en to decorren te da fo rmação de um a soc iedade dua l is t a , i n Soc io log ia do D esenvo lv im en to , Zahar E d i to res , R io , 1969 , p . 69 .

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Em outra direção, a noção quantitativa do subdesenvolvimento, nida pelo baixo nível da renda per capita de determinados países, tendeigualmente a ultrapassar o plano da pura caracterização empírica, arrastconsigo o contexto teórico onde ela se insere. Segundo explicação basdifundida, o baixo nível da renda por habitante determina nos países pob

baixa taxa de poupança e, em conseqüência, uma baixa taxa de investimimpedindo um crescimento rápido do produto; por outro lado, como omento da população se dá geralmente em ritmo acelerado nos países poo produto por habitante não pode elevar-se e tende mesmo a baixar; “círculo vicioso da pobreza” seria a razão pela qual o subdesenvolvimen

perpetua. Mesmo as premissas quantitativas deste raciocínio são extremate discutíveis; pode-se afirmar, ao contrário, que as nações pobres dispõeexcedente potencial em volume suficiente para suas necessidades de crmento acelerado, e que este é realizável na medida em que se eliminem

obstáculos não materiais, massociais,

que se opõem a este processo, quer n plano internacional como no âmbito interno das nações pobres.2 O argumento supracitado preenche a função ideológica de justificar a expansãograndes corporações dos países capitalistas mais avançados no mundo ssenvolvido, a pretexto de que este não poderia elevar-se de seu estágio de pobreza sem a contribuição dos investimentos externos.

Dados estes vínculos da noção com determinadas interpretações idgicas, é compreensível que um autor como Charles Bettelheim tenha cluído que:

. .de um ponto de vista científicoé necessário... substituir a expressão “países subdesenvolvidos pela expressão mais exata de “paíse plorados, dominados e de economia deformada”.3Á crítica de Bettelheim visa particularmente a teoria do “círculo

cioso” da pobreza. Com a substituição proposta, ele pretende abandonarnoção ideológica em favor de um conceito científico que traz embutido a teoria correta do fenômeno: a desigualdade do desenvolvimento das f

produtivas em escala mundial resulta do modo de funcionamento do sicapitalista, da dominação e da exploração exercida por um grupo de p

sobre outros. Mas mesmo a adesão a esta perspectiva teórica não nos ob banir a noção de “subdesenvolvimento” da ciência social, desde que a pojemos pela crítica de todas as suas implicações teóricas ilegítimas, regindo-a a seu sentido estritamente descritivo. O termo “subdesenvolvimdesigna justamente o atraso das forças produtivas num conjunto de paíssistema capitalista, assim como as desigualdades do desenvolvimento n paço interno das nações subdesenvolvidas. Como tal, é noção que se reum efeito, ao objeto empírico que deve ser explicado pela teoria; a conção teórica deve mostrar justamente de que modo o desenvolvimento se

2Pau l B a r an , E c o n om ic P o l it ique de l a cro is s ance , Maspe ro , Pa r is , 1 9 6 7 , p . 27 1 ,2 8 9 .3

Char le s B e t t e l he i m , P l an i fi c a ç ão e c r e sc im en to ace le r ado , Zah a i , R io , p .

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do capitalismo em escala mundial produz e reproduz a expansão das forças produtivas num dos poios do sistema e sua atrofia relativa em outro. Nestesentido, a noção de subdesenvolvimento envolve dois componentes: de umlado, a idéia deatraso econômico relativo, de outro, a idéia de uma deformação interna da economia, traduzindo-se em fenômenos estruturais como o baixo nível tecnológico da produção agrícola, a “inchação” do emprego nosetor terciário e (como conseqüência) as extremas desigualdades na distribuição da renda. Assim, mesmo se abstrairmos o fato de que os países capitalistashoje desenvolvidos jamais foram dependentes e explorados na época de seudesenvolvimento original, pode-se compreender que, ainda de p onto de visteestritamentematerial, o desenvolvimento retardado das forças produtivas nos países pobres não reproduz exatamente o percurso já realizado anteriormente pelos países mais adiantados. Por outro lado, é até certo ponto irrelevantecaracterizar precisamente omomento da história a partir do qual os paísesdependentes do capitalismo mundial passam a se caracterizarem como paísessubdesenvolvidos; esta expressão surgiu só recentemente, quando o abismoentre nações avançadas e atrasadas atingiu proporções alarmantes. Mas a situação atual tem suas raízes em épocas mais remotas. No período de desenvolvimento da manufatura e da acumulação capitalista primitiva, quando aAmérica Latina se encontrava sob o domínio colonial de nações européias,não se observava ainda aquela disparidade de forma visível. Mas a sociedadelatino-americana já está sesubdesenvolvendo, para usar a expressão de GunderFrank, tendo seu desenvolvimento orientado e limitado em função dos interesses metropolitanos.

O desenvolvimento do capitalismo se processa desde seus começos, noséculo XVI, em escala planetária, estruturando-se o sistema em dois pólos: umgrupo de países “centrais” ou “metropolitanos” e um grupo de países “periféricos” ou “satélites”.

As relações entre os dois pólos consistem essencialmente na dominaçãoe na exploração da periferia pelas classes dominantes do centro, submetendo aeconomia periférica, em cada etapa, aos interesses fundamentais da acumulação de capital que se processa nos países centrais. A integração da nação periférica no sistema capitalista mundial se dá com apoio nas classes domi

nantes locais, co-benefíciárias desta integração. Em cada etapa, a periferia seamolda ao sistema de divisão internacional do trabalho imposto pela dinâmicae pelas necessidades da acumulação “central”, ocupando determinado lugarno processo degeração e de absorção do excedente em benefício das economias centrais. Esta estrutura polar do capitalismo no plano mundial é, aomesmo tempo, complexa e cambiante: determinadas nações podem ocupar posições intermediárias na cadeia de exploração e dominação (Portugal noséculo XVIII, metrópole em relação ao Brasil mas “satelitizado” por sua vez pela Inglaterra) ou podem deslocar-se, ao longo tempo, de uma posição peri

férica para o lugar hegemônico no pólo central (evolução das colônias inglesasda América do Norte do século XVIII ao século XX).

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A desigualdade do desenvolvimento das forças produtivas é resultadohistórico da acumulação de capital em escala mundial, eefeito que sere

produz incessantemente no funcionamento atual do modo de produção capitalista. Por conseguinte, para tomar inteligível o que se designa pelo termo“subdesenvolvimento” é preciso compreender as formas que assumem, na

periferia, o que Charles Bettelheim denomina a dependência, a exploração e o bloqueio das forças produtivas.O conceito de exploração não comporta em si mesmo nenhum equí

voco: significa simplesmente que o excedente produzido pelos trabalhadoresda periferia e apropriado pela classe proprietária local é parcialmente transferido, através de diversos mecanismos, para os países dominantes, reforçando, aí, as potencialidades da acumulação. O conceito de bloqueio dasforças produtivas, embora tenha por conteúdo precisamente o efeito históricoque se trata de elucidar através de todo um conjunto complexo de causasinternas e externas, é em si mesmo transparente. Em contrapartida, o conceito de dependência mostra-se problemático. Quando se apela para a dominação (política ou econômica) de interesses estrangeiros como fator de subdesenvolvimento, que se supõe em atividade em qualquer período da históriadas economias periféricas, está-se mobilizando implicitamente a idéia de que ocrescimento econômico e o progresso técnico constituem impulsos permanentes e interesses essenciais à própria Nação enquanto tal. No período posteriorà segunda guerra mundial, em muitos países latino-americanos, o desenvolvimento industrial, como meio adequado de se alcançar os níveis mais elevados de bem-estar característicos dos países adiantados, podede fato assumir

as características de verdadeiro objetivo nacional, dando base a uma verdadeira aliança política entre as classes trabalhadoras urbanas e frações da burguesia. Não se pode pretender, no entanto, que este consenso historicamente transitório constitua a revelação definitiva do próprio conteúdo daidéia de Nação, através do qual se poderia iluminar a significação profunda denossa história passada. Deste modo, quando atribuímos ao domínio portuguêso débil desenvolvimento das manufaturas no período colonial, estamos implicitamente projetando no passado estas aspirações desenvolvimentistas, e fazendo a conjetura altamente questionável segundo a qual, na ausência daqueladominação política, o país teria encontrado “espontaneamente” o caminhodo desenvolvimento manufatureiro. Na realidade, são as estruturas internas dasociedade periférica, e os interesses da classe dominante, que são reconhecidosou impostos, em cada etapa, como os objetivos genuinamente “nacionais”, eestes não são necessariamente nem habitualmente conflitantes com os dosgrupos dominantes no centro. Neste sentido, é difícil distinguir a dominaçãoexterna das formas internas de domínio. É nossa “dependência comercial”com relação à Inglaterra que obstrui o desenvolvimento fabril no século XIXou simplesmente a hegemonia interna das classes proprietárias ligadas ao desenvolvimento do esquema agro-exportador? Francisco Weffort percebeu

estas dificuldades do conceito de dependência:

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“Concordo que a existência de países (nações) economicamente dependentes e politicamente independentes constitui uma “problemática sociológica” importante. Mas tenho minhas dúvidas se a reprodução do

problema no plano doconceito ajuda a resolvê-lo. Por exemplo, teráexistido na quase completa integração argentina no mercado internacional no século XIX uma contradição real entre Estado Nacional e mercado internacional? Não foi o próprio Estado Nacional argentino, no pleno uso de seus atributos de soberania um dos fatores desta incorporação?Para estender um pouco mais o exemplo: é vidente que a oligarquia controlava o Estado mas quem dava à Argentina desta época seu sentido como Nação, senão a própria oligarquia? A existencia do Estado-Nação,com seus atributos políticos de autonomia e soberania, não é razão suficiente para pensarmos que se instaure uma contradição Nação-merca-do no país que integra o sistema económico internacional.”4 No entanto, mesmo se recuamos para momentos bastante remotos da

história brasileira ou latino-americana, antes mesmo da Independencia, sur preendemos a existencia de movimentos e de forças históricas nas quais identificamos, ainda que muitas vezes de forma mais inconsciente ou germinal, um“sentido” idêntico ao nosso projeto atual. Nosso interesse por elas éobviamente guiado por nossas preocupações presentes, porque nos damosconta de que se por um acaso as circunstancias históricas pudessem ter estimulado o desabrochar truncado ou relativamente fraco da produção manufa-

tureira, nos séculos passados, não nos encontraríamos talvez entre as naçõesmais pobres do planeta. Assim, ao percorrer certas etapas da historia passadanão nos concentramos no que constituiu talvez seus verdadeiros problemasnão nos atemos objetivamente às contradições de interesses que exerceramuma influência mais decisiva no processo histórico desta época, mas fixamos aatenção sobre o “destino” dos surtos de expansão manufatureira, determinados por forças mais débeis nas quais nos reconhecemos. Apesar disto, se permitimos com plena consciência, que nossas preocupações ideológicas, ancoradas em nossa situação presente, orientem a seleção dos temas da análisenão podemos permitir que elas decidam do significado dos conceitos empregados. Deste modo, reteremos a idéia dedependência na medida ém que nosfor possível depurá-la de todas as implicações ideológicas que explicitamosEla não significará, para nós, o poder de “veto” dos interesses estrangeirossobre uma hipotética política desenvolvimentista (que não poderia ter ganhoconsistência durante a maior parte de nossa história), mas significará estritamente ocontrole das classes dominantes centrais sobre os meios de produçãode setores importantes da economia periférica, ou sobre o mercado (internacional) ao qual se destinam seus produtos.

4F ranc i s co C . W effo r t , N o ta s s /a “ Te o r i a da Depend ênc i a ; Te o r i a de C la sse ou Ide o log ia N a c i o n a l ” , i n E s t u d o s I ( C e b r a p ) , e d iç õ e s C e b r a p , S. P a u lo , 1 9 7 1 , p . 1 3 .

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Esta caracter Ética sc refere, evidentemente, à dependênciaeconômica, ou seja, o poder que é conferido aos interesses “centrais” pela sua capacidadimediata de atuar sobre determinados pontos vitais do sistema econômic periférico. No período colonial, este poder assume uma forma mais radicauma vez que inexiste um Estado Nacional autônomo, dispondo as classe

dominantes na metrópole, a capacidade praticamente ilimitada de legislasobre todos os aspectos da economia colonial que afetam seus interesses. caracterização acima concerne, por conseguinte, às modalidades que podassumir a dependência externa, nos países da América Latina, a partir dIndependência, conquistada no início do século XIX. E coincide, por outrlado (ainda que este autor jamais nos ofereça uma “definição” sintética), coa compreensão do fenômeno que está presente na teoria da dependêncelaborada por Fernando Henrique Cardoso, como cenceptualização deste príodo da história do continente.

Na obra de Cardoso, daquele conceito implícito de dependência, acimformulado, como um invariante estrutural, se desdobra através de combintória exaustiva, um número limitado de modalidades particulares da depedência, que podem caracterizar a situação histórica de determinada naçãComo o controle estrangeiro pode exercer-se sobre o mercado a que sdirigem os produtos, ou sobre a própria produção, existem quatro possibilidades lógicas suscetíveis de serem combinadas: o controle domercado ao qualse destinam os produtos é externo (ME) ou interno (MI); o controle d

produção, do mesmo modo, éexterno (PE) ou interno (PI). Conjugando detodos os modos possíveis estas duas alternativas, obtemos três tipos abstratde situações de dependências:

1) Dependência I: PI/ME2) Dependência II: PE/ME3) Dependência III PE/MIA quarta possibilidade lógica, PI/MI, não constitui uma situação d

dependência; neste “tipo”, os meios de produção nos setores dominantes economia são controlados pela classe proprietária interna, e os produtos, psua vez, destinam-se a consumidores nacionais; estas condições caracterizauma situação de autonomia própria de economia capitalista “central”. Nmedida em que a formalização acima não existe nos textos de Cardoso, possibilidade do “quarto tipo” não é sequer mencionada.

As duas primeiras modalidades da dependência caracterizam as econmias latino-americanas na fase de “desenvolvimento para fora” ou primáriexportador que vigora da Independência até a crise mundial de 1929. N primeiro caso (do qual o Brasil neste período é um exemplo característicoexiste um controle do sistema produtivo exportador por proprietários nacinais.

“Neste caso, as burguesias agrárias e mercantis, em coalizão com o

setores latifundistas de baixa produtividade, organizam sistema internde dominação e se vinculam externamente com o mercado mundial (o

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seja, com as burguesias correspondentes dos países dominantes) mantendo sua própria capacidade de formar capitais”.5

Na dependência II, típica dos “enclaves” petrolíferos e mineiros daAmérica Latina, o setor produtivo exportador, mais capitalizado, em regrageral, cai sob o controle direto de empresas estrangeiras.

“Neste tipo de estrutura os grupos dominantes locais se retraem economicamente e, tipicamente, retiram suas rendas da capacidade políticaque demonstram para organizar internamente o sistema de poder e, portanto, para garantir aos inversores estrangeiros concessões de exploração. Os grupos dominantes locais, neste caso, mais que empreendedores são coletores de impostos”6Ao esgotarem-se as possibilidades do desenvolvimento “para fora”, com

a deterioração secular dos termos de troca que afeta os produtos primários e,finalmente, com a desorganização do mercado mundial em virtude da grandedepressão dos anos 30, abre-se a possibilidade histórica de implantação de umnovo “modelo” de desenvolvimento, baseado na expansão da produção industrial para o mercado interno. Esta reorientação do processo de crescimentorequer, evidentemente, transformações políticas. A diferenciação dos doistipos de dependência descritos por Cardoso, permite compreender como estesmarcos estruturais impõem formas particulares de transição e ruptura com osantigos esquemas de dominação. Enquanto na dependência II, o processorevolucionário assume implicações mais radicais, ao romper com o padrãoestrutural vigente, e ao substituir as velhas oligarquias parasitárias por gruposmodernizantes, na dependência I as classes hegemônicas no esquema anterior poderão de algum modo participar (político e economicamente) do processode acumulação que agora se reorienta para os setores urbanos. Também nadependência II a ação do Estado (suprindo a carência de uma burguesiaempresarial préexistente) é decisiva no “arranco” inicial do processo de crescimento para dentro, enquanto no outro caso a intervenção estatal se realizaapós desencadeada a industrialização.

— Em o Modelo Histórico Latino-Americano, Antonio Castro7 apresenta uma tipologia das economias primário-exportadoras do século XIX baseada em outros critérios.

“As regiões exportadoras de produtos primários têm no fator exógeno,demanda externa, a variável que as mobiliza e determina o ritmo a quecrescem. Aestrutura interna de tais regiões é determinada, primordialmente, pelascaracterísticas maiores de sua atividade exportadora e condicionada por fatores vários, de natureza histórico-geográfica” . (p .25).

5F. H. Cardozo , Mudanças Soc ia i s na Amér ica La t ina , Di fusão Europe ia do Livro , S .

Pau lo , p . 19 .6 I d e m , p . 2 0 .

7 A n t o n i o B a i r o s d e C a s t ro , 7 E n s a i o s s /a E c o n o m i a B r a si le i ra , F o r e n s e , 1 9 6 9 .

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Segundo Castro, é amacro-função de produção do setor exportador quetem o papel decisivo. Ela explica a configuraçãoespacial (p. 28) e também aestruturasocial da nação exportadora:

“O exame da estruturasocial e de seus desequilíbrios deve ser também

realizado a partir do exame da macro-função de produção da atividadeexportadora. Sua constituição fatorial (em particular o uso relativamente maior ou menor de capital por trabalhador) e, além disto, aexistência e destino de populações não absorvidas pelas atividades diretae indiretamente ligadas às exportações, são, efetivamente, os fenômenosde maior poder explicativo no estudo da estrutura social (p. 31).”A estrutura do setor exportador, definida através destes critérios, tem

também uma função determinante no que se refere ao grau de vulnerabilidadeda economia às crises externas (p. 33 e sgs.) e, indusive, as suas possibilidades de reação a esta situação através do desenvolvimento industrial.

Sem entrar nos detalhes da tipologia de Castro, podem-se distinguir trêsgrandes modalidades de produção primário-exportadora, que correspondemao predomínio de um fator de produção: a mão-de-obra (como algodão), aterra (pecuária) ou o capital (mineração).

O critério utilizado por Castro mostra-se importante, inclusive na explicação das diferenças assinaladas na tipologia Francisco H. Cardoso. Assim, onecessário predomínio do fator^çapital na exploração das minas atua comoum elemento condicionante ponderável na formação da dependência, tipo“enclave”; é difícil para a classe proprietária nacional, a obtenção da tecno

logia moderna e a realização de vultosos investimentos. (Vide as consideraçõesde F. H. Cardoso s/e cap. Chileno —Mudanças Sodais, p. 64 e 65).O processo de industrializáção que ganhou ímpeto em países como o

Brasil na década de 30 (em outros mais tardiamente) parecia ter o significadode conduzir de um dos dois tipos de dependência já descritos em direção àsituação de autonomia (ou o tipo 4 de nossa combinatória). No entanto, osobstáculos antepostos pelo mercado mundial ao desenvolvimento nacionalindependente (principalmentè através da contradição entre a necessidade deimportar equipamentos e a deterioração dos preços dos produtos primários) produziram o resultado de recapturar estas nações nas malhas da dominaçãoimperialista, fazendo as mais avançadas desembocarem em seu percurso naterceira modalidade .assinalada de dependência, na década de 50. (Àqui certo,falta a idéia da indústria restringida). Inaugurou-se, deste modo, a etapa denominada por Fernando Henrique Cardoso de “internadonalização do mercado”, na qual os setores mais avançados e dinâmicos da produção industrial para mercado interno são controlados pelo capital estrangeiro.

Estas indicações sumárias permitem compreender o quanto a compreensão objetiva da dependênda por Cardoso, na medida em que não supõe demodo algum a permanência de interesses nacionais abstratos, escapa completamente às objeções críticas levantadas por Weffort e, de resto, o que Cardoso,tendo sido incluído na crítica, assinala em sua resposta. No entanto certos as-

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pectos desta resposta nos parecem contestáveis, na medida em que o autor procura desmentir o caráterteórico de sua análise da dependência.

Se algum progresso houve na análise da dependência foi a de se haver particularizadosituações de dependência, constituídas sempre consi

derando-se a relação interno/externo: economias de enclave, produtorese exportadores nacionais, internacionalização do mercado, por um lado,e, por outro capitalismo competitivo, capitalismo monopólico. Entretanto, outra vez aqui essas determinações não foram tomadas sob formageral, mas, ao contrário, segundo o modo como se foram constituindoem cada país”.8Cardoso nega, deste modo (como se se tratasse.de uma característica

ilegítima), o elevado nível de abstração em que é elaborado inicialmente seuconceito de dependência; a construção do objeto teórico “sociedade dependente” conduz àdedução a priori de suasvariantes e de modo necessário detransição e de transformação de uma variante em outra; neste nível de generalidade, os “tipos” de dependência não se identificam com a realidade concreta (muito mais complexa) de nenhum país latino-americano em algum momento de sua história; mas a diversidade e a mobilidade do objeto real, nosseus aspectos mais essenciais, já se encontram prefiguradas no conceito, cujaeficácia se manifesta como fio condutor, nas análises concretas realizadas por F. H. Cardoso.

No entanto, não nos parece que tenhamos apreendido todos os aspectosdo fenômeno da dependência. Voltemos por um momento para esteintermezzo da dominação imperialista no qual ocorre a tentativa de industrialização autônoma, da década de 30 até a “re-satelitização” (G. Frank) dos anos50.

Em nações como o Brasil, o setor mais dinâmico da economia está basicamente sob a direção de empresários nacionais, e a produção está voltada para o mercado interno. Não obstante esta internalização das decisões de produção e de consumo, pode-se verificar que, ao se realizarem, elas estão dealgum modo marcadas, em seu conteúdo, pela coexistência e pela “abertura”da sociedade periférica com relação às sociedades capitalistas mais adiantadas.Os teóricos do “efeito-demonstração” assinalam que as exigências dos consumidores (principalmente nas classes de renda mais alta) se orientam no sentido de alcançar os padrões de consumo vigentes nas economias centrais,incentivando a indústria nacional a penetrar bastante cedo na produção deartigos mais sofisticados, antes que o desenvolvimento do aparelho produtivoatinja a capacidade de satisfazer as necessidades mais elementares da grandemaioria.

Por outro lado, é bastante provável que o espetáculo do requinte alcançado pelos hábitos de consumo nas sociedades desenvolvidas (veiculado pelos

8F ranc isco H . Ca rdo zo , “ Te or ia da Dep end ênc ia” ou aná l ise concre ta de s i tuações dedepen dênc ia? - Es tud os Cebrap , I , p . 35 .

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meios de comunicação) potencie a insatisfação das classes mais desfavorecidasda população, o que não deixa de ter repercussões relevantes na história política recente dos países periféricos. Mas de importância ainda maior nos parece a influência análoga exercida pelos padrões dominantes no centro nãosobre as decisões de consumo, mas sobre as decisões de produção na peri teria. Na escolha da tecnologia a ser utilizada, o empresário nacional será compelidoa dar preferência às técnicas vigentes no centro, que poupam mão-de-obra,usando uma dose relativamente grande de “capital” por homem empregado.

Isto se deve não apenas ao fato de que esta tecnologia se encontra jáincorporada nos equipamentos industriais que a nação periférica é obrigada aadquirir no exterior, mas principalmente ao fato de ela propiciar custos de produção mais reduzidos, malgrado a relativa abundância, e, em conseqüência, o baixo preço da força de trabalho na periferia. Ao contrário do quesupõe a teoria econômica marginalista, os salários não podem cair até o pontoem que todo o excedente de mão-de-obra seja absorvido pelo aparelho produtivo sem perda para os empresários; na pior hipótese, ele deve fixar-se um pouco- acima do mínimo vital, ou os contingentes de força de trabalho ficarãoretidos na agricultura, onde a sobrevivência do trabalhador é garantida, aindaque precariamente, pelo dispêndio de grande parte de seu tempo de trabalhona economia de subsistência anexa à produção para o mercado, ou no setorurbano de serviços, que absorve intensamente mão-de-obra. Deste modo,ainda na ausência do exercício de um poder externo sobre o espaço econômico periférico, a lógica interna do interesse capitalista conduz o empresárioindustrial a absorver as técnicas mais avançadas do centro, o que acarreta,como resultado, profundas disparidades tecnológicas entre os setores da economia e, em conseqüência, uma distribuição da renda extremamente desigual.Este último resultado permite, por sua vez, a incidência do “efeito-demonstração” ao nível do consumo, e suas repercussõeseconômicas imediatas, uma vez que as classes abastadas exigem ser supridas com a gama de bens correspondente ao nível de vida alcançado pelos países centrais. Éneste sentido que nos parece aceitável o modo pelo qual Luciano Martins completaa caracterização da dependência, acrescentando ao “nível das decisões” (controle de mercados e investimentos por interesses externos), já tematizado porFernando H. Cardoso, o que ele chama o “nível da demonstração”, incluindonesta noção os “padrões de consumo e produção” transmitidos do centro à periferia, embora não' fique perfeitamente claro se ao referir-se aos “padrõesde produção”, Luciano Martins tem em mente a incidência direta do modelotecnológico externo sobre a composição orgânica do capital na indústria, ouse, ao contrário, pretende apenas levar em conta a adaptação da estrutura daoferta interna à estrutura da demanda provocada pelo efeito-demonstração 9.

Lu ciano M art ins , Indu str ia l izaçã o burguesa na cional e desenvo lvim ento, Ed i tora Vozes ,Rio , 1968 . Luc iano Mar t ins ac rescen ta t ambém um te rce i ro n íve l ao fenômeno da dependência , o que e le chama o nível d e situação. Mas o que designa por essa expressão são os“ dese qu i l íb r ios es t ru tu ra i s do co m érc io e x te r io r” , que cons t ituem meros e fe i tos da de-

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Deste modo, poderíamos explicitar o conceito de dependência, dizendo quese trata do controle externo sobre os meios de produção e/ou sobre os mercados a que se destinam os produtos dos setores dominantes da economia periférica, ou , quando as decisões de produção e consumo são internalizadas,ficando a cargo de agentes econômicos nacionais, o fato de que estas “decisões” sãosobre determinadas pela coexistência do capitalismo periféricocom o capitalismo central, fazendo com que o primeiro deforme sua estruturaeconômica ao absorver padrões de consumo e produção próprios a um graumais avançado de desenvolvimento das forças produtivas.

Podemos agora caracterizar sumariamente as modalidades que assumema dependência, a exploração e o bloqueio das forças produtivas ao longo dodesenvolvimento do capitalismo. Para tanto, sua evolução pode ser divididaem três grandes períodos: na etapamercantilista, o modo de produção capita

lista ainda não é o dominante nas sociedades centrais e o capital comercial predomina sobre a manufatura. A expansão ultramarina destes setores capitalistas das economias centrais conduz à formação no continente americano deeconomias coloniais complementares e politicamente subordinadas às metró poles européias. As relações econômicas entre o centro e a periferia latino-americana consistem basicamente no monopólio legal exercido pela metró

pole sobre o comércio externo das colônias. Este tipo de relação perduradurante os séculos XVI, XVII e XVIII. Após a Revolução Industrial, as economias centrais ingressam na etapacompetitiva do capitalismo; a indústriafabril, sob regime de livre concorrência, passa a constituir o setor política eeconomicamente dominante nos países centrais. Nesta etapa, as nações periféricas da América Latina, tendo adquirido a independência política, se integram no sistema da divisão internacional do trabalho, constituindo-se, do ponto de vista econômico, em fornecedoras de produtos primários e compradoras de artigos industrializados dos países centrais. A etapa contemporâneado capitalismo, finalmente, é a etapamonopolista; nos países centrais, osramos de produção mais importantes do sistema econômico são controlados por um número reduzido de grandes empresas e multiplicam-se as formas deintervenção do Estado na esfera econômica. Na periferia latino-americana, ésuperada a fase primário exportadora e, conquanto se mantenham os vínculosanteriores com o mercado internacional, desencadeia-se na maior parte dos países um processo de industrialização por substituição de importações. Alémdas relações comerciais, investimentos externos trazem a penetração do ca pital monopolista dos países centrais nos ramos mais rentáveis não apenas dossetores minerador, agrícola e de serviços, mas também na indústria dos países periféricos. Adiando os problemas relativos a uma periodização mais precisa das transformações nos dois pólos do sistema capitalista, pode-se dizerque esta última etapa corresponde ao século atual, enquanto a etapa competitiva do capitalismo abrange o século XIX.

pend ênc ia com erc ia i , não se t rata , por tan to , de um aspec to au tônom o e i r red u t íve l dasreiações de dependência.

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f

No período colonial, a dependência, tem um caráter imediato; é a de pendência política, que consiste na inexistência de um Estado nacional autônomo na sociedade periférica. Assim, é a intervenção políticadireta doEstado metropolitano que produz e garante a integração da economia perifé

rica na divisão internacional do trabalho, e sua exploração econômica em benefício da metrópole. A legislação metropolitana exclui o desenvolvimento,na colônia, de ramos de atividade que impliquem em criar concorrência paraos produtores metropolitanos; t á critério pode conduzir, como no caso doBrasil no século XVIII, não apenas à proibição das manufaturas de tecidos,como também à exclusão de determinadas atividades agrícolas, como o plantio de vinhas e oliveiras. O bloqueio das forças produtivas advém, emcertos aspectos, de intervenção política do centro sobre a periferia, exercendo-se no sentido de amoldar a economia periférica aos interesses centrais e preservar seu caráter,complementar. A supremacia da metrópole não têmsuas raízes, neste momento, na superioridade marcada do desenvolvimentodas forças produtivas; tem, ao contrário, bases políticas, e estas são mobilizadas para produzir, historicamente, aquele resultado, isto é, o desenvolvimentolimitado da sociedade colonial. Após a Revolução Industrial no centro, aocontrário, o imenso progresso realizado no desenvolvimento das forças produtivas permite que sua dominação (e a exploração econômica) se estruturem deforma mais ou menosespontânea sobre a periferia. É a superioridade tecnológica da indústria metropolitana (principalmente inglesa) que dificulta o surgimento de concorrentes periféricos, não sendo necessária em princípionenhuma intervenção violenta para que as economias periféricas da AméricaLatina se integram naturalmente na divisão intemaciçnal do trabalho como primário-exportadoras. Deste modo, malgrado sua independência política e aestruturação do Estado nacional, a sociedade periférica continua a conformar-se, por outros canais, às necessidades do processo de acumulação industrial que se realiza no centro. A dependência assume então o caráter dedependênciacomercial; o poder dos interesses dominantes no centro sobre aeconomia periférica tem seu alicerce, no controle dosmercados a que sedestinam os produtos. (Em certos países, como vimos, este controle podeestender-se à apropriação dos meios de produção da economia de exportação,através dos investimentos externos no setor primário típicos do imperialismode fins do século XIX). A dependência financeira surge também nesta etapa;as necessidades crescentes de empréstimos externos por parte da periferiaconferem a seus credores internacionais, certo poder deveto sobre as diretrizes da política econômica. Mas esta última modalidade de dependência éapenas uma decorrência da primeira; é a deterioração dos preços dos produtos

primários no mercado internacional que traz a necessidade de recorrer aofinanciamento externo.

Há uma analogia entre a estruturação da economia internacional docapitalismo competitivo e a gestação das estruturas internas do capitalismo nointerior das próprias sociedades centrais. Na etapa mercantilista, a unidade de

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produção característica do capitalismo europeu é a manufatura. Balibar 10mostrou, explorando as análises de Marx noCapital, que, neste período, ocaráter da técnica, fundado na divisão do trabalho no interior da unidade produtiva e na habilidade do trabalhador especializado, confere ao trabalhador direto um controle material sobre a condução do processo produtivo;ora, esta autonomia do trabalhador é negada ao n ível das relações de produção, pois outro agente social que não o trabalhador, o capitalista, é pro

prietário dos meios de produção e do produto do trabalho. Para que estadiscordância entre o nível das forças produtivas e o das relações de produção

possa sustentar-se estruturalmente, é preciso a pressão externa, a violênciaexplícita, para assegurar a submissão do trabalho ao comando do capital; o período da “acumulação primitiva” no capitalismo central é marcado assim pela “legislação sanguinária” contra os desocupados, pelo trabalho forçado,etc., o que é um dos aspectos vitais daintervenção do Estado mercantilista naesfera econômica. A Revolução Industrial, ao introduzir complexos rnaqui-nismos movidos por uma energia não humana, produz a perda de autonomia ea submissão do trabalhador já ao nívelmaterial das forças produtivas; com pleta, desta forma, a estrutura do modo de produção capitalista, sanando sobeste aspecto sua discordância interna; cria, desta forma, as condições para asuperação da monarquia absolutista, abrindo o caminho ao amadurecimentodo liberalismo, não apenas no sentido político, mas também no sentido econômico de não-intervenção do Estado na esfera da produção. De maneiraanáloga, conforme indicamos, é a mutação sofrida pelas forças produtivas nocentro, durante a Revolução Industrial, que toma dispensável a intervençãodo Estado metropolitano em escala mundial para estruturar e garantir adivisão internacional do trabalho que dá ao centro o monopólio da indústriafabril; é o funcionamento da concorrrência no comércio internacional queelimina os rivais potenciais na periferia e deste modo produz “espontaneamente” sob este aspecto, o bloqueio das forças produtivas.

No que se refere à dependência, resta-nos caracterizar a forma que elaassume na etapa contemporânea do desenvolvimento das economias periféricas na América Latina.As basescomerciais da dependência econômica (controle dos mercadosde exportação) permanecem e seus corolários financeiros assumem maior im

portância; a centralização da maior parte dos empréstimos aos países subdesenvolvidos, que passam através de número reduzido de organismos internacionais (Banco Mundial, F.M.I., B.I.D., etc.), reforça o poder de retaliaçãoeconômica do imperialismo diante de políticas adotadas nos países periféricosem contradição com seus interesses. Mas além destes alicerces tradicionais dadependência, gera-se a forma historicamente nova de enclave, ,a penetração docapital estrangeiro na produção industrial voltada para o mercado intemo. Eassim como o capitalismo competitivo deu origem à burguesia agrária e mer

10Et ienne Ba l iba i , Sur l es concep ts fondamentaux du mate r ia l i sme h i s to r ique , in L i re l eC a p i t a l I I , P e tit e C o l le c t i o n M a s p e r o , 1 9 6 8 , p . 2 2 3 , 2 2 4 e 2 2 5 .

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cantil ligada à economia de exportação, cujos interesses se voltavam para asustentação do “desarrollo hacia afuera”, a estrutura atual produz igualmentea classe de empresários industriais interessados na associação com o capitalestrangeiro como meio de promover a acumulação de capital de modo maiseficiente, absorvendo a tecnologia gerada nas economias centrais. Na etapacolonial, a dependência advinha da implantação no território periférico dosórgãos de poder político da metrópole; a estrutura atual gera dependência nosentido de implicar na presença, no espaço econômico interno, das empresasestrangeiras, órgãos do poder econômico da metrópole. Em diversos aspectos, portanto, a forma mais recente e complexa da dependência reproduz características de modalidades de dependências típicas de etapas anteriores. Umaquestão que se encontra em aberto é a de saber se (a parte o fluxo habitual delucros eroyalties remetidos para o exterior) existe alguma diferença estrutural

entre a empresa nacional e a estrangeira, no que se refere à sua dinâmicainterna e o tipo de interesse e objetivo que as orientam, a ponto de se poderatribuir a esta diferença de “nacionalidade” uma importância particular. Ouseja, pode-se perguntar se, sendo o objetivo comum a aceleração da acumulação de capital (e a preservação do capitalismo), e sendo praticáveis diversasformas de associação e repartição dos ganhos, haveria alguma contradiçãoentre a burguesia autóctone e o capital estrangeiro? Deve-se procurar a res posta a esta questão na verificação do quanto as filiais de empresas estrangeiras, levando em conta os interesses da matriz, sâo moldáveis a determinadas

pol íticas postas em prática pelo Estado nacional periférico (e. os setores burocráticos e militares que o controlam diretamente) para criar condições ao prosseguimento do desenvolvimento capitalista. Sob este aspecto, o atual esforço de expandir a exportação de manufaturados por parte do governo brasileiro oferece campo de provas significativo.

Não falaremos de dependência tecnológica. Se esta expressão significaque as nações periféricas, para promoverem na etapa atual a recuperação deseu atraso com relação às nações centrais, devem imperativamente importarconhecimentos tecnológicos estrangeiros (e, mais do que isto, pagar por elesum preço), trata-se de idéia errônea, pois minimiza, de um lado, outras possi bilidades de criação interna ou de absorção de tecnologia, e de outro, o fatode que as economias capitalistas centrais desperdiçam em alto grau as virtualidades de crescimento que lhe são abertas pela posse de tecnologias maisavançadas. A expressão poderia designar também o “efeito-demonstração” aonível da produção de que falamos acima, ou seja, o simples fa to estrutural e permanente de que a influência externa se exerce no processo de adoção detécnicas pelos empresários nacionais. O adjetivotecnológica especificariaentãoo ponto de incidência da “dominação” externa, definiria em que articulação do espaço econômico interno ela exerce seus efeitos. Mas os adjetivosque qualificam as diversas formas da dependência no modo como os empregamos, indicam apenas abase a partir de qual se exefce um poder externosobre a economia periférica, e não este ponto de incidência. A dependência

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comercial não está em que necessitemos adquirir ou vender determinadasmercadorias dos países centrais (pois sob este aspecto eles são, do mesmomodo, dependentes), nem exatamente o poder que eles têm de afetar, em particular, o nosso comércio, mas o poder de qué eles dispõem de atuar sobrenossaeconomia como um todo mediante o controle que detêm sobre nossocomércio. Do mesmo modo, a dependência financeira não consiste na necessidade (discutível) que teriam as economias periféricas de recorrer a empréstimos externos, e sim, uma vez que estes empréstimos são realizados, o poderde que dispõem os interesses hegemônicos no centro, de intervir sobre qualquer aspecto da política econômica interna de um país periférico, prevalecendo-se de sua condição de credores.

A exploração internacional consiste na drenagem, em direção ao centrode uma parte doexcedente econômico produzido na periferia, compreen-dendo-se porexcedente a parcela da produção que ultrapassa as necessidadesde subsistência da força de trabalho e de reposição dos meios de produção, eque por conseguinte poderia, em princípio, ser apropriada pelas classes dominantes periféricas, destinando-se a seu consumo ou à acumulação.

Existe uma forma visível de exploração, quese manifesta no fato de queo valor total dos produtos enviados ao centro supera o valor total dos produtosrecebidos pela economia periférica; este superavit da balança comercial podeindicar o montante de tributos remetidos à metrópole (na etapa colonial), o pagamento de amortização e de juros sobre empréstimos (a partir da Independência), deroyalties pelo uso de tecnologia externa e a remessa de lucrosrealizada por empresas estrangeiras (a partir da etapa “imperialista” do capitalismo, em fins do século XIX).

Por outro lado existe também uma forma de exploração internacionalinvisível, a troca desigual em sentido lato, que permanece através de todas asetapas do desenvolvimento capitalista e se realiza através das relações de preçoentre mercadorias exportadas e importadas; as mercadorias enviadas da periferia ao centro representam uma quantidade de trabalho superior a que está contida nas mercadorias enviadas do centro à periferia. O que difere, de umaetapa a outra, é o mecanismo através do qual se produz este efeito. Na etapacolonial, ele pode resultar dostributos impostos pela metrópole, que acarretam um fluxo sem contrapartida de trabalho realizado da colônia para oexterior, não apenas de forma explícita, através de um superavit da balançacomercial, mas também de modo camuflado, através da supertributação dosartigos metropolitanos que a colônia deve compulsoriamente comprar. A

partir da etapa competitiva do capitalismo, a troca desigual pode realizar-semediante o funcionamento espontâneo da lei do valor em escala internacional.

A “venda acima do valor” dos produtos manufaturados do centro resulta, então, ou do fato de que eles são produzidos por capitais de composição orgânica superior (e o maior peso de capital fixo por homem empregadofaz com que o preço ultrapasse o valor “fixado” pelo tempo de trabalho), ou

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do fato de que os ramos de produção para exportação na periferia, apesar detão intensamente capitalizados como as indústrias centrais, utilizam mão-de-obra mais barata (ou seja, empregam uma força de trabalho cujo preço éaviltado pela coexistência deste setor com outros setores menos produtivos da

economia periférica, onde a remuneração da força de trabalho se fixa ao níveldo mínimo de subsistência). A primeira hipótese caracteriza a troca de manufaturados do centro por produtos agrícolas, a segunda, por produtos mineraisou até mesmo industrializados da periferia.

É preciso prevenir alguns equívocos a respeito da exploração internacional. Em primeiro lugar, seria indevido atribuir a este processo a responsa bilidade principal na desigualdade do desenvolvimento das forças produtivasentre centro e periferia. No que se refere à importância do excedente extraídoda periferia para a acumulação central, deve-se ter em conta que, mesmo naetapa da “acumulação primitiva” no centro, esta deve ter sido financiada emsua maior parte com recursos internos.

É certo que nesta etapa a parcela mais significativa do capital em expansão se encontra concentrada na esfera do comércio e dos transportes, atravésdas grandes companhias de comércio colonial. Mas a ação do comerciante,como intermediário, se exerce no sentido de explorar ambos os extremos datroca; neste sentido, as companhias utilizavam como fundo de acumulaçãonão apenas uma parcela de valor extraída da periferia, mas também a parte do produto da própria economia metropolitana, por eles apropriada. Quanto aos

tributos, cabe observar que as nações ibéricas, que utilizaram mais pesadamente esta modalidade de espoliação das colônias, não foram as que tomarama dianteira no processo de desenvolvimento capitalista. Pode-se argumentar igualmente sobre o que teria se passado no outro pólo do sistema; na

periferia, o bloqueio das forças produtivas, muito mais do que à extração doexcedente, deve ser atribuído em primeiro lugar a fatores internos e, namedida em que resulta também das relações externas da economia, se processa de modo mais direto através de outros mecanismos já assinalados, comoa legislação restritiva da metrópole, na etapa colonial, ou a concorrência da

indústria “central”, após a Revolução Industrial.Há também outra observação importante. No século passado, quando seinstaura nos países da América Latina o modelo de “desenvolvimento parafora”, ampliam-se as possibilidades da exploração comercial destas nações por parte do “centro” , através da troca desigual. Mas é preciso não esquecertambém que, conforme ensina a teoria do comércio internacional, este graucrescente de abertura externa implica na elevação da renda real nas economias periféricas. Quando se desenvolve a divisão internacional do trabalho, e os paises se especializam em tipos de produção para6s quais dispõem de maior

eficiência relativa, aumenta a produtividade do trabalho em escala mundial;em princípio, todos os parceiros do comércio internacional (dependendo dostermos de troca) são suscetíveis de se beneficiarem destas vantagens. O aspecto ilegítimo da teoria dos custos comparativos do comércio exterior está em

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se representar as condições que determinam a especialização de um país comocondições naturais e permanentes, sem perceber seu caráter histórico e transitorio. Assim, a abundância de terra e a carência de “capital” que votam urnanação à condição de primário-exportadora (para receber em troca produtosmanufaturados) são vistos como um dado absoluto, ponto de partida daanálise, e não como umresultado de um desenvolvimento histórico determinado. Malgrado este aspecto ideológico da teoria, ela explica perfeitamenteo modo pelo qual a inserção no mercado mundial pode representar no planoimediato uma forma efetiva de desenvolvimento para a nação periférica. Ten-do rejeitado radicalmente as explicações oferecidas pela economia burguesaGunder Frank, autor que utiliza abundantemente a idéia de drenagem doexcedente como causa do atraso dos países satélites, se vê em dificuldades para explicar o interesse que teriam as burguesias agrárias e mercantis daAmérica Latina, no século passado, em promover o modelo de desenvolvimento primario-exportador. No quadro de sua teoria, a única razão que se pode encontrar está no fato de que estas classes se compensam da espoliaçãoexterna pelo fato de que também se apropriam do excedente produzido pormineiros e camponeses de seus próprios países. Assim, diz Gunder Frank arespeito dos interesses mineiros, agroexportador e comercial que orientaram “para fora” a economia chilena no século XIX: “A razão pela qualaceitaram e defenderam sua própria exploração é que assim podiam continuaexplorando o povo da periferia chilena que era explorada pela própria metró pole chilena11 (p. 102). Sim, mas por que motivo não se reservariam seu próprio povo para explorá-lo sem sócios, se não fosse pela razão de as expotações abrirem ao país (e principalmente à classe dominante) a possibilidadede acesso, via importações, de um sem número de artigos manufaturados queteria sido impossível obter tão facilmente a curto prazo? Omitindo esteaspecto da questão, Frank é levado, na seqüência do parágrafo, a sugerir quehá uma intensificação da exploração interna para compensar o saque externoSegundo ele, o povo chileno “consumia cada vez menos das matérias primas dos víveres que ele mesmo produzia” (p. 102). Isto pode ter sido real (dada escassez de recursos naturais no país estudado), mas de modo algum é necessário para o que se pretende explicar. Pode ocorrer que, simultaneamente, sejexpropriado um excedente crescente emvalor, através da troca desigual, masque a renda real, isto é, a massa devalores de uso de que a sociedade dispõe setorne maior, pela utilização das vantagens comparativas no comércio exteriorIsto significa que a teoria clássica do comércio exterior, combinada com acompreensão teórica da exploração internacional, nos permite compreendeao mesmo tempo os benefícios extraídos pelas economias centrais com o“desenvolvimento para fora” dos países latino-americanos, e o fato de queeste consitu ía efetivamente uma forma de desenvolvimento; com isto se torn

u André Gunder Frank, Capitalismo y Subdessarrollo en América Latina, Ediciones Signos, B. Aires, 1970.

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compreensível, inclusive, a relativa facilidade com que os comerciantes e fazendeiros ligados ao esquema primário-exportador conseguem impor sua hegemonia e orientar a economia nacional segundo seus interesses.

Até agora temo-nos ocupado em indicar brevemente, como cada etapado desenvolvimento capitalista em escala mundial se caracteriza por umadeterminada forma de dependência e mecanismos específicos de exploraçãoda periferia pelo centro do sistema, contribuindo, em conjunto, para produziroomoresultado histórico um desenvolvimento mais avançado das forças produtivas no pólo central. Já desenvolvemos algumas considerações sobre a

passagem do capitalismo mercantilista para o capitalismo competitivo, e suasrepercussões na periferia latino-americana. Resta-nos abordar o problema datransição do estágio competitivo para o estágio monopolista do capitalismocentral, ao qual deveria corresponder a passagem do “desenvolvimento parafora” para a industrialização substitutiva na periferia. A tradição leninistasitua a abertura da etapa imperialista do capitalismo em fins do século XIX, evincula esta mutação à transformação do capitalismo competitivo em capitalismo monopolista; as economias centrais teriam passado (pelo processo deconcentração e centralização do capital) a serem dominadas por grandes trus-tes e cartéis, sob a direção do capital financeiro; para responder à conseqüentefalta de oportunidades de investimento e à tendência à estagnação resultantesdo domínio dos monopólios, os capitais “centrais” seriam exportados emvolume cada vez maior em direção às economias periféricas.

No entanto, se se caracteriza o imperialismo pela exportação de capitaise pelo investimento estrangeiro, ele existiu desde a época da Independência,no setor comercial, e desde meados do século XIX, no setor de transportesferroviários, não só no Brasil, mas também em outros países da AméricaLatina, como a Argentina e o Chile. É verdade que, senão do ponto de vistade certos países latino-americanos, ao menos da perspectiva da metrópole (naqual se colocava Lenin) o volume subitamente crescente de aplicações externas de capital, em fins do século XIX, caracteriza fenômeno historicamentenovo. Poder-se-ia, levando em conta estes fatos, situar o início do capitalismoliberd na Revolução Industrial e seu término nas últimas décadas do século passado, quando então começaria a etapa imperialista. Mas deve-se observar, por ouro lado, que a livre concorrência somente se estende em âmbito mundial com a liquidação do protecionismo agrícola da Inglaterra, em meados doséculo XIX; o período ‘liberal” fica assim cindido por esta data, que temmuitas características de verdadeiro início, pois marca, em muitos países daAmérica Latina, o fim do período da “anarquia” e instaura,com todo o vigoro “desarrollo hacia .afuera”. É verdade que o protecionismo inglês já tinhauma exceção importante, em período anterior, no que dizia respeito às importações de algodão dos E.U.A.; mas a abertura definitiva do comércio inglêsteve uma importância decisiva para o destino da agricultura e da pecuária em países como a Argentina e o Uruguai. E se o liberalismointernacional começaefetivamente por volta de 1850, talvez ele seja contemporâneo do imperia

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lismo; não demorarão muito as ferrovias, o apossamento do nitrato chileno, a penetração do mercado chinês, etc. A passagem do século não marca a etaparadicalmente nova para os países latino-americanos (a não ser para o cobrechileno ou o petróleo mexicano).

Abordando a mesma questão por um outro aspecto, pode-se dizer que édiscutível (como assinalam estudos mais recentes) o caráter monopolista daseconomias capitalistas da Europa e dos E.U.A. em 1900; esta caracterizaçãosó é inequívoca a partir da grande depressão na década de trinta. Mesmo emtextos clássicos como o de Lenine, a argumentação empírica para identificarnaquela primeira data uma tal mutação no capitalismo central se revela extremamente débil.12 Em virtude disto, parece mais indicado seguir a tendênciaatual dos historiadores, e ver na expansão dos investimentos de ultramar,meio através do qual se garantiu o desenvolvimento, na periferia do sistema,

da produção de alimentos e matérias primas necessários à metrópole. Assim(como já tinha percebido Bukárin em seu opúsculo sobre o tema, contem porâneo do de Lenin, apesar de subscrever a mesma tese central deste último)o incremento dos investimentos externos se deve, mais do que à concentraçãomonopolista na metrópole, à expansão necessária do comércio mundial, aodesenvolvimento dadivisão internacional do trabalho no sistema capitalista.13 Na periferia situamos a ruptura com o anterior modelo de desenvolvimentona década de 1930, quando então se desencadearia o processo de industrialização por substituição de importações. Não poderíamos, por um movimento

crítico inverso ao precedente, recuar esta data, reconhecendo que os primórdios da industrialização no continente e encontra em fins de século XIX esão contemporâneos, portanto, da transição do centro para o estágio imperialista, conforme a concepção de Lenin? Assim, a sincronia entre as transiçõesno centro e na periferia também se encontraria, de outra forma, confirmada.(Causação não exigeanterioridade da causa). Não obstante, é preferível situara cesura histórica nos anos trinta deste século. As quatro décadas que osantecedem são, sem dúvida, período de importantes transformações emambos os pólos do sistema. Não se pode negar que está em marcha no centro,

o processo de formação dos grandes monopólios (sem falar das manifestações políticas mais espetaculares do imperialismo). Do mesmo modo, em países daAmérica Latina como a Argentina, o Brasil e o México, a expansão das exportações dinamiza igualmente um setor industrial voltado para o mercado interno. Mas, no centro, a emergência dos monopólios ainda não produziu a totalidade de seus efeitos, ou seja, a impossibilidade da economia capitalista funcionar sem a intervenção do Estado para sustentar, com seus gastos, o nível dademanda global. Daí, como ele pensava então, (Baran) a exportação do exce-

12 V . I . L en in , E l im per ia l ism o, e tapa supe r io r de i cap i t a l ism o, E d i to r ia l A nteo , B . Ai res ,1 9 7 2 , p . 1 8 , 1 9 e 2 0 .

13N . B u k a r i n , O im p e r ia l is m o e a E c o n o m i a M u n d i a l , E d i t . M e ls o S / A , R i o .

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■‘0 afrouxamento, debilitamento ou ausencia de vínculos entre metró pole e satélite levará este último a uma volta para si mesmo, umanvolução que pode tomar uma de duas formas:

a) Uma involuçãò capitalista passiva para uma economia de subsistência, aparentemente isolada e de extremo subdesenvolvimento, comoa do Norte e o Nordeste do Brasil.

b) Um debilitamento dos laços, unido a uma involução capitalistaativa, que podem conduzir a um desenvolvimento ou industrializaçãomais ou menos autônomos do satélite, e que se fundamentam nas relações metrópole-satélite do colonialismo ou imperialismo interno. Comoexemplos de tal involução capitalista ativa podem bitar-se os impulsosde industrialização do Brasil, México, Argentina, India e outras naçõesdurante a grande depressão da década de 30 e a segunda guerra mundial,enquanto a metrópole se ocupava em outras coisas. Assim, pois, o desenvolvimento dos satélites não se produz como resultado de vínculosmais fortes com a metrópole, tal como sugere o modelo dualista, mas,ao contrário, em virtude do afrouxamento de tais laços.”14Esta formulação geral aparece na introdução de um artigo de Frank

sobre o “desenvolvimento do subdesenvolvimento capitalista no Brasil” e,além de incorporar os resultados de seu estudo sobre a história chilena, estávisivelmente motivada por sua entrada em contato com a historia económica

do Brasil e, particularmente, com a obra de Celso Furtado. Mas este último níosubscreveria a conclusão final de Frank, segundo a qual o desenvolvimento dosatélite está necessariamente vinculado ao seudistanciamento com relação ametrópole. E isto por dua razões:

1) Para Celso Furtado, um processo de crescente abertura externa economia periférica, sua integração acelerada na divisão internacional do tra balho, representamtambém uma forma de desenvolvimento. E isto é verdadeiro na medida em que a especialização eleva a produtividade do trabalho eocorre uma elevação efetiva da renda interna como conseqüência do uso mais

intensivo dos “fatores” que são mobilizados para atender a demanda exterior.Gunder Frank ignora este aspecto da questão, representando-se a expansão dosetor externo da economia como mera intensificação da exploração internacional (expropriação, pela metrópole, do excedente produzido pela periferia).

Neste sentido, sua visão é parcial e errônea. Assim, sob o aspecto estritamentequantitativo (mas também importante) da questão, Celso Furtado temrazão ao afirmar que o Brasil atrasou-se decisivamente na “corrida” internacional para o desenvolvimento (em comparação, por exemplo, com os EstadosUnidos), no período que vai de 1775 a 1850, que é uma fase de depressão dosvínculos comerciais externos, (p. 178). Não obstante, se bem o entendermos, o “desenvolvimento para fora” pode ser encarado realmente como a modalidade de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, por tratar-se de tipo de desenvolvimento unilateral e a longo

prazo ruinoso, uma vez que concentra imenso volume dos recursos internos na

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obtenção de produtos primários que se depreciam internacionalmente, o queaprofunda a distância entre metrópole e satélites.

2) A conclusão de Gunder Frank está em contradição com o conjude seu texto, pois este começa por afirmar precisamente que uma das formas

possíveis de reação da periferia ao distanciamento do centro é não o desenvolvimento, mas a “involução passiva” para a economia de subsistência, todo o problema está justamente em saber o que decide a concretização histórica deuma ou de outra destas duas possibilidades. Uma vez que se trata do mesmofenômeno externo produzindo na economia periférica dois efeitos opostos, aexplicação de porque, numa época determinada, um deles deve predominarnão pode encontrar-se nas relaçõesexternas do sistema periférico com a metrópole; são as estruturasinternas que determinam suas potencialidades dedesenvolvimento.

Assim, os instrumentos teóricos manipulados por Gunder Frank se revelam marcadamente impotentes para resolver esta questão implicitamente levantada por seu próprio texto. Pois Frank dá ênfase, em sua teoria de subdesenvolvimento, ao fato de que este resultaria das relaçõesinternacionais deexploração no interior do sistema capitalista mundial; quando se trata dedefinir as articulações do espaço econômico interno da nação satélite, ele asdescreve como consistindo igualmente numa teia de relações do tipo metró- pole-satélite; além de explorar (satelitizar) seus próprios trabalhadores, aclasse dominante do setor exportador ou industrial satelitiza e explora sua periferia rural, assim como as regiões mais desenvolvidas do país drenam emseu benefício o excedente produzido nas regiões mais atrasadas; deste modo,através de cadeia complexa de vínculos de sateletização e exploração, ocamponês mais longínquo contribui com sua quota para a acumulação dariqueza na metrópole interior. Frank concebe o espaço interno do satélite,deste modo, à imagem e semelhança do capitalismo mundial. Ele atribui,deste modo, uma importância exagerada às relações econômicas internas entreregiões ou setores da economia.

Quanto à Celso Furtado, um dos grandes méritos de sua obra consiste precisamente numa exploração penetrante da estrutura interna da economia periférica — no caso o Brasil — e na exposição das razões pelas quais o Nordeste do século XVII reage ao fechamento do mercado exterior por umainvolução para a economia de subsistência, enquanto a mesma causa, noséculo XX, desencadeia o processo de industrialização na região cafeeira.

A correlação entre integração no mercado mundial e desenvolvimentoi ntemo, para a economia periférica é, de fato, ambígua. De um lado, a demanda exterior atua como fator dinâmico, elevando o produto por trabalhador nointerior do país, e a abertura externa preserva as possibilidades de modernização pela importação de novas técnicas da metrópole. De outro, a especialização nas atividades primário-exportadoras deforma (espontânea ou plane-

jadamente) a estrutura interna da produção, adaptando-a às necessidades momentâneas do desenvolvimento no centro. Na obra de Celso Furtado, a preo-

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cupação mais explícita se dirige para os efeitos positivos da expansão do setorexterno sobre o crescimento da economia.

Em circunstâncias históricas determinadas, a economia pode conseguirreestruturar-se diante de uma contração da demanda externa, expandindo a produção para o mercado interno. Mas a relação causal mais imediata se dáquando o aumento (ou a diminuição) das exportações provocam no produtointerno uma variação no mesmo sentido.

Pode-se mostrar que existe no livro de Celso Furtado uma caracterização implícita das sucessivas formas de nossa dependência comercial, atravésdos distintos efeitos que as variações no valor exportado tem sobre a rendainterna do país.

A economia açucareira nordestina (que atinge seu ápice na primeirametade do século XVII), sendo então o setor mais próspero da colônia) estáorganizada sob uma base escravista em unidades de produção quase autárquicas e possui vínculos relativamente débeis com outras regiões; a pecuáriaque se expande nohinterland fornece apenas uma certa quantidade de animais de tração, insumo de diminuto valor em comparação com a produçãodos engenhos. Uma parte também relativamente pequena da renda gerada pelas exportações de açúcar constitui reserva destinada à compra (reposição)de escravos africanos ou equipamentos no exterior, redundando, portanto, emimportações. A quase totalidade do valor exportado assume a forma de lucrodo proprietário, empregado de modo passivo na aquisição de artigos de con

sumo importados.“Como os fatores de produção em sua quase totalidade pertenciam aoempresário, a renda monetária gerada no processo produtivo revertia emsua quase totalidade às mãos desse empresário. Essa renda... expressava-se no valor das exportações. É fácil compreender que, se a quase totalidade da renda monetária estava dada pelo valor das exportações, aquase totalidade do dispêndio monetário teria que expressar-se no valordas importações. (...) O -fluxo de renda se estabelecia, portanto, entre aunidade produtiva, considerada em conjunto, e o exterior.” ls

Isto significa que a expansão das exportações implica num aumentoquase exatamenteigual da produção interna comercializável, que se destinaquase que integralmente ao exteripr. O aumento da renda no setor exportadoraçucareiro não se propaga em direção aohinterland, através de gastos internosaumentados, pois estes são relativamente inexpressivos. Quando a extração do

- ouro ganha impulso na região mineira, no século XVIII, modifica-se o padrãode relacionamento entre o setor externo dinâmico e o resto da economia. Adistribuição menos desigual da renda e as dificuldades de transportes nesteterritório montanhoso criam uma importante demanda de alimentos e de

animais de tração dirigida às regiões vizinhas (principalmente ao sul).

15 —Celso Furtado - F. Econ. Brasil, Editora Fundos de Cultura S/A, Rio, 1959, p. 65.

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Do mesmo modo, a expansão da economia cafeeira na região Centro-Sula partir de meados do século XIX provocará o surgimento de importante

procura de produtos oriundos de outros Estados. É a propósito desta últimaconfiguração do sistema agroexportador que C. F., desenvolve com mais vagara compreensão do processo.

“A expansão anterior se fizera, seja através do crescimento do setor escravista, seja pela multiplicação dos núcleos de subsistência. Em um eoutro caso o fluxo de renda, real ou virtual, circunscrevia-se a unidaderelativamente pequenas, cujos contatos externos assumiam caráter internacional no primeiro caso e eram de limitadíssimo alcance no segundo.A nova expansão tem lugar no setor que se baseia no trabalho assalariado. O mecanismo desse novo sistema, cuja importância relativa crescerapidamente, apresenta diferenças profundas com respeito à antiga economia baseada no trabalho escravo ou limitada a atividades quase exclusivamente de subsistência. ( . . . ) (p. 179).Isto ocorre porque, em oposição ao comportamento do antigo senhor

de engenho, a procura de bens de consumo por parte dos assalariados do setorexportador volta-se em parte para a produção interna.

“Vejamos como se propaga o fluxo de renda criado pelas exportações.Os gastos de consumo —compra de alimentos, roupas, serviços, etc. —vêm a constituir a renda dos pequenos produtores, comerciantes, etc.Estes últimos támbém transformam grande parte de sua própria rendaem gastos de consumo. Destarte, a soma de todos estes gastos teránecessariamente que exceder de muito a renda monetária criada pelaatividade exportadora. Suponhamos agora que ocorre um aumento doimpulso externo. Crescendo a massa de salários pagos, aumentará automaticamente a procura de artigos de consumo. A produção de partedestes últimos, por seu lado, pode ser expandida com relativa facilidade,dada a existência de mão-de-obra e terras subjutilizadas, particularmente em certas regiões onde predomina a atividade de subsistência.”(p. 180).Trata-se do mecanismo clássico do multiplicador descrito por Keynes. O

aumento da demanda externa é análogo ao investimento keynesiano; a produção de café para exportação tem isto em comum com a produção de meiosde produção: em ambos os casos o produto não será consumido (ao menos nointerior do país). Mas os indivíduos que participam deste tipo de produçãousarão a renda que recebem em dinheiro para adquirir bens de consumo produzidos em outros pontos do sistema. Deste modo, quando elevam-se asexportações, cria-se uma corrente adicional de gastos no espaço interno daeconomia; esta demanda monetária em expansão estimula a utilização maisintensa de “fatores” (força de trabalho e terra) que se encontravam parcialmente desocupados na economia de subsistência. A expansão da produçãointerna é ummúltiplo do aumento das exportações, e nãoequivalente a esteaumento, como ocorria na economia açucareira.

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Para completar esta tipologia, deve-se acrescentar a definição da funçãodas exportações para o sistema na fase contemporânea, que se processa odesenvolvimento industrial por substituição de importações.

Na medida em que uma economia se desenvolve, o papel que nela

desempenha o comércio exterior se vai modificando. Na primeira etapaa indução externa constitui o fator dinâmico principal na determinaçãodo nível da procura efetiva. Numa segunda etapa do desenvolvimento,reduz-se progressivamente o papel do comércio exterior como fatordeterminante do nível de renda mas, concomitantemente, aumenta suaimportância como elemento estratégico no processo de formação decapital.” (p. 269 e 270).Esta importância estratégica se explica pela natureza do processo de

industrialização; uma vez que este é desencadeado sob o impulso da demandafinal que anteriormente era abastecida a partir do exterior, o desenvolvimentodo fabrico de bens de consumo antecede o desenvolvimento da indústriainterna de bens de capital. Em conseqüência, durante um longo período, osmeios de produção essenciais ao aumento da capacidade produtiva no interiordo país são obtidos através das importações. A contração da capacidade deimportar pode criar obstáculos à continuidade do crescimento.

“Desta forma, se uma redução da procura externa jánSo afeta necessariamente o nível de emprego no país, seu efeito na taxa de crescimentoé imediato.” (p. 272).Em resumo, a forma pela qual o desempenho interno do sistema econô

mico periférico depende das vicissitudes do setor exportador varia segundo aetapa considerada de seu desenvolvimento:

1) Na economia escravista açucareira,as variações da capacidade de importar exercem seus efeitos sobre o

nível de renda interna (Y). E a baixa (ou alta) do nível de renda éequivalente à queda (ou alta) do valor das exportações. Ou seja,

Y = f (E), e, em última análise Y = E, se designamos por Y a rendamonetária, e E a parcela comercializada da produção interna.

2) Na economia cafeeira com trabalho assalariado,a modificação do valor das exportações também atua sobre onível de

renda interno (Y), mas através do multiplicador do comércio exterior, k = 1:Y = f ( E ), o que significa Y = k. E

3) Na economia em processo de industrialização por substituição de im portações (de bens de consumo),

a variação do valor das exportações não atua sobre o nível de renda, masdefine o limite de sua taxa de crescimento:

Y/Y = f (E).Mas aqui evidentemente, a relação funcional estabelecida na formali

zação assumiu novo significado: o nível das exportações não tem mais uma'unção determinante; apenas estabelece teto para a taxa de crescimento.

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Deste modo, Celso Furtado utiliza de forma inusitada os conceitos“a-liistóricos” da economia keynesiana, valendo-se deles precisamente paracaracterizar diferenças históricas entre sistemas econômicos; a característica peculiar da economia canavieira colonial está na ausência do multiplicador do

comércio exterior, ou, dizendo de outra forma, no fato de que, nela, o multi plicador é igual a 1. Mas estas diferenças no modo de funcionamento globalda economia periférica, quando se passa de uma etapa a outra de sua história,encontram seu fundamento nos diferentes modos de articulação (ou não-articulação) entre os setores, e, em última análise, no estatuto da força detrabalho como propriedade do senhor ou como mercadoria “livremente” vendida no mercado (ainda que a análise subseqüente relativize a importânciadeterminante deste último fator).

o o oEm fins do século XVI, a agroindústria do açúcar é implantada no

Nordeste brasileiro, transformando-o em pouco tempo, na mais próspera dasregiões ocupadas pelos portugueses na América. Isto se deveu não apenas àcombinação feliz de série de fatores préexistentes namontagem da estrutura produtiva (tecnologia italiana, apropriada pelos portugueses e ensaiada nasilhas do Atlântico), mão-de-obra escrava de origem africana, financiamentoholandês), mas também à especial fortuna do produto nos mercados euro peus; o açúcar constitui neste tempo um dos principais artigos de luxo deorigem colonial; a ascenção de seus preços, começa no início do século XVI(antecedida por um breve período de declínio) e se prolonga até meados doséculo XVII. Entre 1629 e 1654, a Holanda, em virtude de rivalidades com aEspanha (à qual estava temporariamente vinculada a coroa portuguesa), invade e ocupa a metade do território açucareiro no Nordeste. Após sua expulsão, transplantam para suas colónias nas Antilhas a produção do açúcar. Aconcorrência destes novos produtores (e a perda do intermediário holandês,essencial para o acesso aos mercados do velho mundo) mostrar-se-á fatal paraa economia canavieira. Desde fins do século XVII, inicia-se um processo dedecadência do qual ela jamais chegará a recuperar-se por completo.

Este sistema econômico colonial representa uma projeção do capitalismo mercantil europeu. Num período anterior, o capital comercial restringe-se à função de intermediário nas trocas, recolhendo no litoral o pau- brasil extraído pelos indígenas; agora, intervém na esfera da produção, financiando a montagem dos engenhos e controlando o nível de produção afim devalorizar a especiaria no mercado europeu. O caráter capitalista da produçãoestá marcado por seu objetivo mercantil, a obtenção do lucro através da vendados produtos.

Segundo Alberto Passos Guimarães16 o comércio pacífico com as populações indígenas nos princípios do século XVI, corresponderia aos in-

16 - “Quatro Séculos de Latifúndio”, Editora Paz e Terra, Rio, 1968, p. 12 e 43.

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teresses da classe mercantil portuguesa, enquanto a implantação de economiaagrícola na base do trabalho servil resultaria das ambições territoriais da no breza feudal (o que exigia a escravização e extermínio dos indígenas, com aconseqüente destruição de sua economia comunista primitiva). Passos Guimarães interpreta a decisão da Coroa portuguesa no sentido de desenvolver acolonização permanente, como um indício do predomínio dos interessesfeudais sobre os comerciais do Estado português. Com isto, deixa de ladooutros motivos que poderiam explicar esta virada na política colonial, como ointeresse de proteger a posse de território contra a cobiça de outras nações,contando com a possibilidade de encontrar aí, mais tarde, minas de metais preciosos (vide Caio Prado Junior, pag. 33, História Econômica do Brasil,Editora Brasiliense, S. Paulo, 1970). Não há base maior para o ponto de vistade Guimarães, a não ser a idéia abstrata de que é da essência do comerciantefazer comércio e é da essência do senhor feudal explorar a terra. Ele ignora afluidez destas essências ao não considerar a hipótese de que mesmo elementosda nobreza, amparados pela Coroa, se mobilizassem por ambições mercantis.

Helio Jaguaribe17 chama a atenção para as características não-feudais(mas mercantilistas) do Reino português. A Reconquista consolidou prematuramente o poder central, ao mesmo tempo em que liberava em grande parteos camponeses dos laços de servidão. Jaguaribe sugere o predomínio de umanobreza não rural, aglutinada em tomo da Coroa e controladora do centrodinâmico da economia portuguesa (ou empreendimentos coloniais).

Por esta razão, é insuficiente caracterizá-la simplesmente comoescra

vista. Uma vez definido o objetivo da produção, as condições institucionaissob as quais será assegurada a submissão da força de trabalho ao capitalrepresentam um aspectoderivado do problema. Conferir jao trabalhador oestatuto de escravo, propriedade de seu senhor, possui, sob este aspecto, umasignificação semelhante à legislação repressiva aplicada aos camponeses arrancados da terra e que constituirão a massa dos “assalariados” na fase de “acumulação primitiva” na manufatura inglesa. Em ambos os casos, a condiçãolegal do trabalhador, longe de ser um elemento característico e determinanteda estrutura do sistema, representa ummeio para se alcançar osobjetivos

especificamente capitalistas em função dos quais a produção é organizada.As características técnicas da produção de açúcar excluem a hipótese da pequena propriedade; por outro lado, as limitações do reservatório demográfico português impedem que se possa conseguir por esta via a solução completa para o problema. A escravização do indígena é ensaiada sem sucesso; é provável que isto se deva, como explica N.W. Sodré18 à incompatibilidade cultural entre o índio (acostumado ao trabalho para subsistência dentro de seu mo

1 7 - “ D e s e n v ol vim e n t o E c o n ô m i c o e D e s e n v o lv im e n t o P o l í t ic o ” , E d i t o r a P a z e Te r ra ,

1 9 6 9 , p . 1 2 3 a 1 4 0 .18 - Ne l son W erneck Sodré , p . 69 , Forma ção H is tó r ica do Bras i l , Ed i to ra Brasi li ense ,S . Pau lo , 1970 .

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do de produção comunista primitiva) e a natureza da atividade e das relaçõesde produção que lhe pretendia impor o colonizador. Diante disto, a utilizaçãoda mão-de-obra escrava de origem africana se apresenta como a solução maisfácil ou mais natural, dada a preexistência do tráfico negreiro, e “pela coação

ao deslocamento que a situação de escravo trazia implícita.19Com efeito, submeter o trabalhador ao proprietário neste caso, implicava num deslocamento forçado para uma região inóspita, sem nenhuma re-

19 - Idem p. 62.20 - Sobre a política mercantilista portuguesa, conforme Fernando A. Novais, Estrutura e Dinâmica do Antigo Sistema Colonial (século XVI-XVIII) Cadernos Cobrap. n. 17, 1973 (S.Paulo).Idem, p. 14 —século dos 400 (sécilo XV: “A exploração do comércio da costa Atlântica africana foi apanagio do rei, isto é, do estado monárquico absolutista; este podia delegá- lo a outros órgãos, à Ordem de Cristo na pessoa do seu grão mestre, o infante D. Henrique arrendá-lo a empresários particulares mesmo estrangeiros..Descoberta a organização da rota do Cabo (depois de 1497). Debilidade de acumulação capitalista em Portugal, leva a Coroa a recorrer ao capital estrangeiro, sobretudo de Flan- dres, intermediações de Antuórpia com a comercialização de produtos do Oriente. “O recuo português facilitou a penetração holandesa no início do século XVII. Apesar da guerra da Independência (1579), antes de Utroch e da União Ibérica (1580), continuava ainda a participação decisiva de Flandres no comércio oriental através de Lisboa. Em 1585, porém, ano da tomada de Antuérpia pelos espanhões, navios holandeses são apreendidos na capital portuguesa. Sob Filipe II, contudo, procurou-se ainda (p. 15) evitar a ruptura das relações comerciais, tal era a grande vinculação e a importância dos entrepostos da Flandres para a comercialização dos produtos do oriente. Em 1598, enfim, todo o comércio com a Holanda é proibido. .É desta perspectiva que se deve compreender também a luta de classes desenvolvida pelos senhores de engenho contra a pequena produção, durante o período colonial. “Em tal capítulo constituem episódios dos mais ilustrativos da nossa história, os obstáculos legais opostos a culturas e produções mais ao alcance dos minguados recursos de modestos lavradores. É assim com a aguardente que se fabricava em simples molinetes os engenhocas do reduzido custo. Caso análogo dá-se com o algodão. Como o seu cultivo desviava esforços do plantio da cana em prejuízo dos engenhos, foi igualmente proibido. ” Caio Prado Júnior, Evolução Política do Brasil, p. 21, Editora Brasiliense, S. Paulo, 1969). Superprodução do açúcar (F. A. Novais) no último quartel do século XV, Dom Manoel fixa, em 1498, a produção em 120 mil arrobas anuais (das quais 40 mil iam para Flandres. 1482, reclamação nas Cortes de Évora (burguesia mercantil do reino) contra presença de comerciantes estrangeiros. Conseqüência: o rei dá prazo de 1 ano para que os estrangeiros saiam das ilhas colonizadas. No Brasil, o escambo de pau-brasil com os aborígenes é logo considerado “estanco” da Coroa, que o aprendeu ao empresário Fernando de Noronha (pág. 43, conforme F. Manso, Le Portual et 1’Atlantique on XVII siécle, Paris, 1960, pág. 256: preço do açúcar no Brasil, entre 1570 e 1610, se mantém em 800 réis por arroba, em Lisboa flutua de 1400 a 2020 réis). Pág. 18) Restauração (1640) começa recuo do exclusivismo português. Concessões comerciais à Inglaterra (1654, 1661) e Holanda (1641). 1672: representação de mercadorias portuguesas: já encontram o Brasil abastecido quando chegam com seus navios. Alvará de 27/nov/1684:

navios saídos do Brasil devem ir a portor portugueses. 1772, proibição do comércio inter-colonial. Pág. 32, escravidão e tráfico negreiro: “o tráfico negreiro. . . abriu um nova e importante setor do comércio colonial. . . Possivelmente é a partir do tráfico negreiro que se pode entender a escravidão africana colonial, e não o contrário.”

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compensa significativa viável; esta violência só era compatível com a escravização. Mas deve-se entender com isto que existe não apenas aviolência inicial envolvida no tranporte da mão-de-obra para outro continente; é necessário que exista também uma coação permanente no sentido de fixar nolugar de trabalho esta mão-de-obra. Pois assim como existe escassez de forçade trabalho, ocorre no continente americano a suberabundância de meios de produçãonaturais (a terra), com as quais o trabalhador poderia sobreviversem submeter-se às penosas condições de trabalho da cultura canavieira. Nestas circunstâncias, somente a coação poderia reter no engenho os contingentes de força de trabalho. Deve-se entender nesta perspectiva o sentido dasfugas de escravos e da formação e destruição de quilombos que marcam todaa história da escravidão colonial: o trabalhador, potencialmente, é independente do ponto de vistamaterial com relação ao proprietário; a submissãoabsoluta implicada na escravização visa negar esta independência para viabilização da exploração colonial.Por outro lado, outras circunstâncias facilitam a degradação absoluta dotrabalhador: o fato de ser este de uma outra raça torna possível recusar no plano ideológico, sua condição de ser humano, evitando desta forma os obstáculos à escravização que poderiam ser levantados pela ideologia religiosa.Deste modo, a condição do trabalhador não é dado fundamental; é um as pecto derivado da estrutura econômica; resulta da conjunção do objetivo quese dá à produção (ou o modo de utilização do excedente) com as pré-condições materiais dentro das quais ela deve ser organizada.

o o o

Em sua análise da estrutura interna da economia canavieira, Celso Furtado2 1"nega seu caráter pré-capitalista. Ainda que não exista fluxo dedinheiro no interior da unidade produtiva, nas relações entre proprietário etrabalhador, a produção está integralmente orientada para o mercado externo.Isto faz com que exista uma contabilidade capitalista implícita nas relaçcesentre senhor e escravo, malgrado a ausência de fluxos monetários.0 escravo éadquirido por dinheiro e destina-se a produzir algo comercializável. Destemodo, seu desgaste biológico (como reservatório de força de trabalho) é com putado pelo proprietário como se se tratasse de uma máquina. Dir-se-ia queo tempo de vida do escravo representa um patrimônio que pode ser consumido ou aproveitado produtivamente. Existem quatro usos possíveis destetempo: 1) deixar o escravo entregue ao lazer ou ocupando-se de sua própriasubsistência; 2) empregá-lo em serviços pessoais; 3) empregá-lo na produçãodo açúcar; 4) ocupá-lo na preparação da produção futura (limpeza de novasterras, confecção de meios de trabalho,r c) O primeiro uso constitui oequivalente a uma forma de pagamento ac escravo. (Se este “pagamento”

21 - Celso Furtado - Form. Econ. Brasil, p. 62 a 69.

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supera o mínimo necessário, constitui desperdício do ponto de vista do pro prietário; trata-se de parcela do seu tempo de vida devolvida “inutilmente” ao próprio escravo). O segundo uso representa um consumo improdutivo doativo do empresário; transforma-se o escravo (que deve ser um meio de produção), num bem de consumo durável.0 terceiro e o quarto usos constituememprego produtivo; conduzem ao resultado contábil de repor o valor doescravo (que se desgasta) através de seu trabalho e gerar, ao mesmo tempo,um valor excedente, que redunda em lucro para o proprietário.

Mas a extrema especialização da unidade produtiva faz com que não existanenhum outro emprego produtivo possível para os fatores.

Na eventualidade de redução da procura externa, o engenho não se encontra necessariamente numa situação de crise, pois a mão-de-obra “desempregada” nas atividades diretamente ligadas à produção de açúcar pode ser deslocada para a tarefa de construir novas instalações, ou para a prestação deserviços pessoais ao proprietário, que se compensa desta forma pelo decréscimo da parte monetária de sua renda (p.68). Não obstante, existem limites para estas alternativas; a solução mais satisfatória para o proprietário consistirá em sustentar o nível da oferta.

“A economia escravista dependia, assim, em forma praticamente exclusiva, da procura externa. Se se enfraquecia essa procura, tinha início um processo de decadência, com atrofiamento do setor monetário. Esse processo, entretanto, não apresentava de nenhuma maneira as características catastráficas das crises econômicas. A renda monetária da unidade

exportadora, praticamente a constituíam os lucros do empresário, sendo sempre vantajoso para este continuar operando qualquer que fossea redução ocasional dos preços. Como o custo estava virtualmente constituído de gastos fixos, qualquer redução na utilização da capacidade produtiva redundava em perda para o empresário.” (p .68).

O capítulo sobreFluxo de Renda e Crescimento (na economia canavieira)desemboca neste resultado: a caracterização da relativa invulnerabilidade daestrutura escravista canavieira ao influxo depressivo proveniente do exteriorIsto indica que aquestão não explicitada que preside toda a análise de CelsoFurtado é precisamente aquela posta por Antonio Castro na abertura de seuensaio sem a Herança Regional no Desenvolvimento Brasileiro: trata-se deaveriguar o“potencial de transformação ” inerente a uma determinada estrutura primário-exportadora, seu padrão característico dereação a uma crise deorigem externa22 A economia canavieira está destinada a resistir.longamente, preservando suas características essenciais, sem engendrar nenhuma alternativa positiva de desenvolvimento sobre outras bases.

Não obstante, existe também limite quantitativo à capacidade de auto- preservação da estrutura escravista:

22 — 7 Ensaios sobre a Economia Brasileira, vol. II, Forense, Rio de Janeiro, 1971, p. 12 e 13.

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“Sempre havia vantagem em utilizar a capacidade plenamente. Contudo,se se reduziam os preços abaixo de certo nível, o empresário não poderiaenfrentar os gastos de reposição de sua força de trabalho e de seu equi pamento importado. Em tal caso, a unidade tendia a perder capacidade.Essa redução de capacidade teria, entretanto, de ser um processo muito lento, dadas as razões já expostas. A unidade exportadora estavaassim capacitada para preservar a sua estrutura. A economia açucareirado nordeste brasileiro, com efeito, resistiu mais de três séculos às mais

prolongadas depressões. . . sem sofrer nenhuma modificação estruturalsignificativa.”

No entanto, os limites quantitativos à sobrevivência do sistema não teriam pouca importância se na realidade, a situação inicial em que ele se encontrava,antes de ser atingido pela contração da demanda externa, não fosse excep

cionalmente favorável. Celso Furtado pode minimizá-los por ter indicado nocapítulo anterior, (Capitalização e Nivel de Renda na Economia Açucareira)com base nos dados reunidos por Roberto Simonsen, que o excedente produzido pela indústria açucareira em sua época mais próspera (início do séculoXVII) era extremamente elevado. Parte do valor das exportações deveria corresponder às inevitáveis despesas ligadas à produção e à exportação: aquisiçãode insumos (bois e lenha), pagamento de salários aos trabalhadores especializados no refino do açúcar, armazenagem, etc. Do mesmo modo, uma parceladeveria destinar-se à reposição dos equipamentos e à mão-de-obra escrava. Mas

a soma de todos estes itens não ultrapassava10% do valor exportado.“Tudo indica... que pelo menos 90 por cento da renda gerada pela economia açucareira dentro do país se concentrava nas mãos da classe de proprietários de engenhos e de plantações de cana.” (FEB, p. 59).

Pode-se questionar a exatidão de tal estimativa, que implica na suposiçãode uma taxa de lucro extremamente elevada mesmo levando em conta quegrande parte de tais rendimentos eram apropriados por agentes estrangeiros,não devendo ficar integralmente, na posse da classe proprietária local. Nãoobstante, é necessário admitir que a empresa açucareira tenha sido de fatoextraordinariamente lucrativa em sua melhor época, dispondo com isto demargem de resistência bastante ampla em face da crise externa; caso contrário, não se pode compreender como ela não ter-se-ia decomposta em facedo declínio secular dos preços que se desencadeia a partir de meados doséculo XVII. Os dados de Roberto Simonsen permitem calcular que o preçoem libras do açúcar exportado reduz-se praticamente à metade de 1650 a1710, e cai em mais de 50% desta última data até 1806. (Hélio Jaguaribe, op.cit., p. 128). Não obstante, neste período, verifica-se a expansão do númerode engenhos: 300 em 1650 (cf. Simonsen), cerca de 600 em 1711 (HeitorFerreira Lima,23 e em fins do século XVIII, conforme Caio Prado Jr. (Heitor

23 - Heitor Ferreira Lima, História Política, Econômica e Industrial do Brasil, Cia. Editora Nacional, S. Paulo, 1970, p. 29 acusado em Calógeras).

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F. Lima, pp. cit. p. 30), quase 1500 engenhos em todo o país, dos quais 806computados na região norte. As cifras são significativas, malgrado sua inevitável imprecisão: em mais de século de depressão de preços, a economiaaçucareira, em vez de desarticular-se, não apenas sobrevive, mas ainda seexpande lentamente. Se o descenso dos preços não os arrasta abaixo doscustos de produção, é porque se encontravam, inicialmente, muitíssimo acimadaquele limiar.

A elevada taxa de lucro que se deve atribuir à produção canavieira em suaépoca áurea encontra sua explicação no simples fato de se tratar de um gêneromonopolizado; sua oferta era habilmente restringida enquanto crescia a procura no continente europeu. É esta a explicação (ouuma das explicações) aque chega Nelson Wemeck Sodré para tomar inteligível o fato de que arentabilidade da empresa açucareira possa ao menosequiparar-se à de outro

empreendimento na metrópole. (Formação Histórica do Brasil, p. 77). Masele chega a esta resposta adequada a partir de uma posição falsa do problema.Tendo procurado localizar na história do Brasil a sucessão supostamente

necessária dos modos de produção segundo a concepção evolucionista domaterialismo histórico, caracteriza comoescravista a agroindústria canavieira.Mas esta escolha teórica engendra-lhe uma perplexidade: como podem oscolonizadores provenientes de uma Europa “feudal” (e portanto mais avançada) regredirem ao escravismo na montagem da economia colonial?

“Os modos de produção sucedem-se uns aos outros, e impõem-se uns aosoutros, na medida em que a produtividade do anterior se mostra insuficiente e a do novo abre perspectivas ao desenvolvimento material. Como

poderia, numa etapa em que preponderava o modo feudal e começava aapontar o modo capitalista em largo esforço, alinhar-se o modo escravista, e encontrar um lugar, se era mais atrasado, se a sua produtividade erainferior?”

É inegável que a produtividade do trabalho escravo era baixa...” (p. 77).Que significado tem a afirmar, como pressuposto, que o trabalho escravo é

necessariamente menos produtivo que o trabalho não-escravo? O trabalho na plantation é brutal, mas, tal como o artesanato medieval europeu, está essencialmente baseado no esforço manual do homem. A diferença entre os doisdeve residir no fato de que o tipo de valor de uso produzido pelo artesão émais elaborado e exige aprendizado maior, por um lado, e menor esforçofísico, por outro. Como se pode comparar a produtividade destes dois tiposde trabalho se não há homogeneidade entre os produtos? Não há uma produção “feudal” de açúcar na Europa deste tempo, que possa ser confrontadacom a produção “escravista” na América. Se o “feudalismo” e o “escravismo”designassem aqui dois sistemas fechados em si mesmos e separados no tempo,a comparação da produtividade do trabalho (ou do grau de desenvolvimentodas forças produtivas) poderia ainda ser efetuada por sua capacidade maior oumenor de gerar excedente além das necessidades de consumo do trabalhador.Ora, no caso do escravo do engenho, esta comparação pura da produtividade

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física não tem sentido; sabemos que o excedente em valor gerado por seutrabalho é elevadíssimo, mas isto não está de modo algum vinculado às condições materiais de produção, e sim ao mecanismo (monopolista) de comercialização do produto no mercado exterior.

Vejamos a solução de W. Sodré:“A produtividade inequivocamente baixa de modo escravista aqui estabelecido consegue alinhar-se com a de outros modos ecompetir, ou figurar no mercado, com o que produz, na realidade, porque é colonial, istoé, porque se exerce:

—numa área complementar, subsidiária, etc... —numa área em que o valor da terra, numa atividade agrícola, era inicial

mente nulo, não entrava em linha de conta; —num gênero monopolizado.” (p. 77 —o 19 grifo é nosso - EP)O curioso neste texto é que, sem que Sodré perceba, aresposta ao pro

blema enuncia-o de uma forma que desmente seus pressupostos iniciais. Tantonão se trata da comparação de dois “modos de produção” distintos e tomadosem si mesmos (com suas características próprias, incluindo aí a maior oumenor “produtividade do trabalho”), que ele se pergunta pelas condições emque o “escravismo” pode enfrentarem condições de concorrência o “feuda

lismo”no mercado internacional. Ora, é precisamente este mercado internacional, a totalidade que engloba os dois poios distintos que Sodré concebecomo “modos de produção” o problema posto é o da competitividade damão-de-obra escrava com a não-escrava naconcorrência capitalista em escalamundial. É o mercado mundial capitalista tal como se encontra estruturadonesse tempo que qualifica como basicamente capitalistas os dois pólos (colonial e metropolitano) da relação de trocas, e é a organização comercial mono polista deste mercadó que confere ao trabalho colonial (escravo ou não) uma produtividade determinada, isto é, uma capacidade maior ou menor de fornecer umexcedente para a classe proprietária.

A partir de 1700, o eixo dinâmico da economia colonial brasileira desloca--se do Nordeste para a região de Minas Gerais, onde a descoberta de ouro e dediamantes provoca um intenso fluxo imigratório, decuplicando a populaçãodurante o século XVIII; a metrópole portuguesa reforça, neste período, osmecanismos de controle sobre a economia colonial; parte ponderável da riqueza proporcionada pela atividade mineradora é drenada sem contrapartida paraPortugal, através de um pesado sistema de impostos. As exportações de ouroatingem seu ponto máximo em 1760: 2,5 milhões delibras (Celso Furtado, p.97). A partir deste momento precipita-se a decadência. Em 1780, as exportações estão reduzidas a menos de 1 milhão de libras. Paralelamente ao esgotamento das minas e ao empobrecimento geral da região, intensificam-se asmedidas repressivas e a pressão fiscal por parte das autoridades portuguesas.

A Inconfidência Mineira, em 1789, assinala a primeira manifestação importante do antagonismo de interesses entre metrópole e colônia. Mas a Independência política, obtida finalmente em 1822, não devolverá a prosperidade a

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esta última. Somente a partir de meados do século XIX, com a expansão daeconomia cafeeira, desencadear-se-á com todo o vigor o processo de “desenvolvimento para fora”. Deste modo, o período que abrange o último quarteldo século XVIII e se estende até por volta de 1850 constitui, em seu con

junto, um período de crise; a passagem da condição de colonia para a denação politicamente autônoma se efetua num período de declínio do valordas exportações e com as dificuldades suscitadas pela conseqüente com pressão geral do nível de renda interno.

Estas características gerais do período são negadas por Caio Prado Jr.,segundo o qual, ao término do período colonial, as forças produtivas seencontrariam em plena expansão. (Historia, 125,6). Por implicar na exploração pela metrópole e nas restrições à produção interna e ao comércio, o pacto colonial precisava, por conseguinte, ser rompido, sob pressão daqueledesenvolvimento. Em apoio à sua tese, Caio Prado menciona o incremento docomércio exterior que se segue à abertura dos portos em 1810. Com efeito, ovalor total das exportações em libras esterlinas-ouro quase quadruplica numdecênio, passando de 1.233.000, em 1812 para 4.030.000,00 em 1822. (História, p. 132).

Esta tese, afirmada na História Econômica do Brasil (1949), já se encontranuma obra anterior de Caio Prado Jr., publicada em 1933, aEvolução Política do Brasil:2 4

“... A emancipação política do Brasil resultou do desenvolvimento econômico do país, incompatível com o regime de colônia que o pesava, e que por conseguinte, sob sua pressão, tinha de ceder. Em outras palavras, é asuperestrutura política do Brasil-Colônia que, já não correspondendo aoestado das forças produtivas e à infra-estrutura econômica do país, serompe, para dar lugar a outras formas mais adequadas, às novas condiçõeseconômicas e capazes de conter a sua evolução. A repercussão deste fatono terreno político —a revolução da Independência —não é mais que otermo final do processo de diferenciação de interesses nacionais, ligados aodesenvolvimento econômico do país, e por isso mesmo distintos dos dametrópole e contrários a a eles.23

Se a explicação de Caio Prado fosse verdadeira, seria de se esperar que aemancipação política, ao liberar as forças produtivas das peias do regimecolonial, intensificasse seu ritmo do desenvolvimento, com reflexos na expansão acelerada das exportações. Ora, na História Econômica. Caio Prado vale-sede dados referentes à década que precede à Independência. É apenas numanexo de seu livro que descobrimos informações a respeito do comércio exterior após aquele evento; o valor total exportado (em mil libras ouro)eleva-se de 39.097 no decênio 1821-1830 para 54.680 no decênio 1841-1850.(História p. 347). A taxa de crescimento não é, de modo algum, significativa.

24 - Evolução Política do Brasil, Edit. Brasiliense, S. Paulo, 1969, p. 47/8.

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Além disto, a média anual no decênio que se segue à Independência é inferiorao valor exportado no ano de 1822.

A razão pela qual Caio Prado sustenta sua tese não se encontra, portanto,na carência de dados estatísticos, e sim num parti-pris teórico que o conduz a

selecioná-los de modo mais ou menos arbitrário.Seu desvio resulta da aplicação sem crítica, a esta fase da história brasileira, da tese marxista geral segundo a qual os períodos revolucionários são períodos em que as forças produtivas em expansão se chocam com as instituições vigentes, as quais precisam ser transformadas em profundidade para permitir o posterior desenvolvimento. Pode-se observar, no entanto, que o processo de “diferenciação de interesses” entre metrópole e colônia, característico da última fase do período colonial, deriva muito mais do empobrecimento da colônia e do conseqüente endurecimento da pressão fiscalista dametrópole portuguesa. É verdade que, após a abertura dos portos, o nacionalismo brasileiro ganha impulso pelo efeito-demonstração desencadeado pela presença local dos comerciantes ingleses; esta mostra-se mais vantajosa do quea manutenção do pacto colonial, no mesmo momento em que se sofisticam oshábitos de consumo da classe dominante local, que se volta para os produtosmais baratos e de qualidade superior que a Inglaterra pode fornecer.

É ilusório ater-se, como faz Caio Prado, às manifestações de prosperidade da economia colonial durante o período anterior à emancipação pol í-tica, uma vez que decorrem de conjunturas excepcionais no mercado mundial, beneficiando determinadas produtos. Assim, a guerra de Independência nascolônias inglesas da América do Norte favorece a produção de arroz no Maranhão; o açúcar conhece também momento de prosperidade na última década do século XVIII, em virtude da desorganização da produção francesa nasAntilhas (revolta dos escravos no Haiti, 1792); esta conjuntura favorável re-

petir-se-á após 1810. A Revolução Industrial inglesa incrementa igualmente ademanda de algodão, beneficiando deste modo as regiões produtoras no Norteda colônia brasileira, mas nos primeiros anos do século XIX estas são decisivamente suplantadas pelos E.U.A. 15. A revolução dos preços ilustra bem a precariedade desses surtos exportadores. Assim, o açúcar brasileiro está cotado a 0,33 guilders na Bolsa de Amsterdã, em 1790; esta cotação eleva-se0,81 em 1799, para retornar ao nível de 0,35 em 1807 (Virgilio Noya Pinto,Balanço das Transformações Econômicas do Século XIX, in Brasil em Pers pectiva, Difusão Européia do Livro, 1971, p. 128). Em 1813, o preço du plica estando ao nível de 0,65 guilders, mas em 1820 já retoma a 0,30. (Idem, p. 132). As guerras napoleónicas também marcam a oscilação dos preços doalgodão: 31400 réis em 1809, subindo para8$000 réis em 1816/18, mas baixando novamente para 4$500 réis em 1821. (Idem p. 132).

25 - W. Sodré: Sacas de algodão importadas pela Inglaterra: 1800: Brasil 30.500 - EUA 40.300 - 1807: B. 18.900 - E. 171.200 - p. 209.

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No que se refere ao período posterior à conquista da autonomia política, a situação no mercado internacional é francamente desfavorável. Segundo Celso Furtado, “a baixa nos preços das exportações brasileiras, entre1821-30 e 1841-50 foi de cerca de 40 por cento” , (p. 131). Pode-se calcularo esforço da expansão da oferta, que precisou duplicar para que fosse possívelobter, não obstante aquela*depreciação, um leve aumento do valor total ex portado. Mas as perdas foram distintas conforme o setor ou a região daeconomia exportadora. Entre 1821-30 e 1841-50,

“Os exportadores de açúcar, para receber 24 por cento mais emvalor, mais do que dobraram a quantidade exportada; os de algodãoreceberam a metade do valor, exportando apenas10 por cento menos eos de couro e peles mais que dobraram a quantidade para receber umvalor em 12 por cento inferior.” (Celso, p. 131).Esta conjuntura depressiva deve com certeza constituir fator importante

para explicar a série de revoltas regionais que tumultuam as três primeirasdécadas que se seguem à autonomia. Talvez não seja por acaso que o mais prolongado destes movimentos, a Revolução Farroupilha, tenha explodido naregião pecuária do sul do país, que teria sido a mais prejudicada pela desvalorização externa de seus produtos, segundo as estimativas de Celso Furtado.

Um dos méritos de Caio Prado como historiador consiste precisamenteem ter pela primeira vez posto em destaque as revoltas regionais deste per iodoe tê-las submetido à análise científica, rejeitando a abordagem “heróica” quefaz a apologia das expedições repressivas, e compreendendo-as a partir de seus

fundamentos sociais. Não obstante, o preconceito teórico que o obriga a verno entorno de 1822 um período de expansão das forças produtivas priva-o deum fator decisivo de explicação. Não poderia referir-se ao empobrecimentodas populações provinciais sem desmentir sua tese fundamental sobre estaetapa de nossa história. Em vista disto, Caio Prado invocará (sem proyasempíricas), outro processo para explicar o descontentamento das camadas populares. Como se sabe, a abertura dos portos e a transferência, para acolônia, da Corte portuguesa, modificaram os costumes da classe dominantelocal:

“Com isto sobre um profundo golpe a tradicional vida semi-

patriarcal dos grandes domínios. As novas exigências dos senhores ruraisfazem com que abandonem as produções invendáveis, os gêneros deconsumo interno dos domínios, por outros que servissem para abastecer o comércio exterior. Transformam-se assim as explorações ruraiscada vez mais em empresas essencialmente mercantis, votadas exclusivamente à produção para a venda. Com isto substitui-se cada vez emmaior escala o trabalho livre pelo trabalho mais econômico do escravo,assumindo o tráfico africano proporções nunca vistas. Tal processo vainaturalmente agravando a situação das classes pobres, que já não encon

tram nos domínios o acolhimento outrora desfrutados” (...)... A posição das classes pobres na revolução da Independência é por isso radical ao extremo.” (Evolução, p. 54).

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Caio Prado alude, deste modo,, a um mecanismo através do qual aexpansão da oferta agrícola da exportação conduziria ao desemprego do tra balhador livre (e possivelmente à queda da produção de subsistência), o que éverossímil, em particular, em regiões como o Nordeste do país, onde háescassez de terra cultivável. Também a expansão da oferta na citação de CelsoFurtado, atrás. Trata-se de um processo paralelo que conduziria, igualmente,ao descenso do nível de vida das camadas mais pobres da população. CaioPrado deixa de lado contudo a hipótese de que uma expansão tão acentuadada produção para exportação se fazia necessária para compensar a queda donível de preços.

O equívoco de Caio Prado decorre do fato de ter ele se fixado noaspecto meramente quantitativo do desenvolvimento das forças produtivas. Na concepção original de Marx, expressa na Ideologia Alemã, este desenvolvimento é associado ao progresso da divisão social do trabalho, ou seja, ácomplexificaçâo da estrutura econômica e social, que implica na emergênciade novas classes ou grupos sociais com interesses específicos. Esta “diferenciação de interesses” produz efeitos, em última análise, no equilíbrio do poder.Ora, não se pode identificar tampouco um processo desta ordem na etapa que precede nossa independência política; uma vez constituído o Estado nacionalautônomo, é a tradicional oligarquia rural que assumirá seu controle.

Na realidade, as forças produtivas cujo desenvolvimento pressiona paraa ruptura do pacto colonial não são nacionais; estão localizadas na Inglaterra,nação hegemônica, nesta época, do sistema capitalista mundial. As necessidades de maiores mercados para sua indústria em plena revolução tecnológicalevam aquele país a uma colaboração diplomática, financeira (e mesmo militar) na consolidação de um Estado brasileiro autônomo; e com isto, afastava--se o incômodo intermediário português nas relações comerciais ao passo quese fortaleciam os laços de dependência que uniam a nova nação à potênciahegemônica.26

Uma questão importante é a de saber por que razões, a decadência damineração, em fins do século XVIII, não estimulou (ao contrário do queocorreria em época mais recente) um desenvolvimento manufatureiro significativo na colônia, para substituir o abastecimento externo de artigos de consumo, que se tornava mais difícil. Quando se indaga pela ausência ou presença, na economia colonial, de determinados ramos de atividade, sabe-se que parte importante da explicação, na generalidade dos casos, deve encontrar-sena própria política metropolitana. Esta teve, globalmente, o efeito de moldar

26 - “Dados referentes a 1812 revelam que a exportação para o Brasil representava 4/5 do total das exportações inglesas para a América”.(Emília Viotti da Costa, In trodu çã o ao Estado de Emancipação Polític a do Brasil, in Brasil em Perspectiva, Divisão Européia do Livro, SP, 1971, p. 108).Em 1796, as exportações portuguesas estavam acima de 7500 contos; deste total 9/10 se destinavam ao Brasil. Mas apenas 1753 contos representavam produtos fabricados em Portugal (1300 contos eram de tecidos) FHC p. 59/60).

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a economia colonial como um sistema económico especializado e complementar ao da metrópole, estimulando basicamente o desenvolvimento da produção primário-exportadora. Com isto, reservava-se à metrópole a função desupri-la com artigos manufaturados. Mas a política da metrópole não operou

sempre, indistintamente, neste sentido. O critério seletivo consistia em restringirqualquer atividade que fizesse concorrência a algum ramo de produçãometropolitano, incluindo-se aí certas atividades agrícolas, como o plantio devinhas, amoreiras e oliveiras. Por outro lado, certos ramos manufatureiroscontaram com o interesse da metrópole para seu desenvolvimento. Assim, aadministração colonial tentou desenvolver a produção de ferro em São Paulo,na segunda metade do século XVII, o que se explica por imperativos militares' edefesa do território. (H.F.L. - 43,4). Na mesma época, procura-se estimular a

produção têxtil no Pará e em outras províncias do Norte, pelos benefícios queisto traria à Fazenda Real (HFL, 49). A indústria de construção naval, valendo-se da disponibilidade local de matérias-primas, chegou a desenvolver-seigualmente no período colonial, com apoio das autoridades portuguesas, (p.68, HFL)

Todavia, predomina o aspecto repressivo da política portuguesa comrelação à manufatura colonial. Assim, interdita-se o fabrico de hidromel,vinho produzido com o mel e de preço mais baixo, que servia ao consumo popular, uma vez que fazia concorrência aos produtos importados de Portugal. (p. 83 e 121 —HFL). Em 1785, um alvará da Rainha proibe a produção de tecidos, a ourivesaria, e a construção naval no território da colônia,com exceção de panos grossos para uso dos escravos. Ê proibido também, em1665, o consumo do sal de Cabo Frio, por estar este concorrendo com o produto das salinas de Setúbal, Alverca e da Figueira (HFL, p.88).

Em certos casos, a legislação restritiva faz transparecer que autoridades portuguesas estavam também preocupadas com a alocação ordenada dos recursos produtivos nas diversas regiões, de modo que não ocorresse emnenhum lugar concorrência na utilização dos fatores em prejuízo de determinada atividade de interesse da metrópole. Deste modo, proibe-se o fabricodo açúcar no Maraijhão em 1761 e proibe-se a plantação de canaviais nas

regiões mineiras (HFL-66). É um motivo desta ordem o invocado pela Rainhano Alvará de 1785, que proscreveu a tecelagem; esta estaria desviando a forçade trabalho das minas. Mas sabemos também que o que estava sendo atingidonão era apenas a extíação dos metais preciosos, mas também a função dacolônia comomercado para a metrópole; a manufatura têxtil em Minas estavafazendo declinar a procura destinada às fábricas de tecidos em Portugal.

A decadência da mineração, em fins do século XVIII, fez refluir grande parte da população para a produção agrícola de subsistência; o surto manufa-tureiro desencadeado, como tentativa de suprir as deficiências do abasteci

mento externo na região mineira, foi relativamente débil. Ao explicar asdificuldades desta “industrialização” primitiva, Gunder Frank atribui importância decisiva à legislação restritiva de 1785, (FRANK, p. 163). Caio Prado,

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por sua vez, assinala a insignificância da produção industrial brasileira ao fimdo período colonial, e, como fatores determinantes desta situação, põe em relevo a política repressiva de Portugal e o baixo nível técnico e cultural doshabitantes das colônias (p. 108). Esta última circunstância é apresentada,

aliás, como conseqüência da primeira. No que se refere à pobreza tecnológica,Caio Prado oferece exemplos no setor agrícola: não-aproveitamento da forçamotriz dos rios nos engenhos de açúcar, desprezo do bagaço de cana comocombustível, etc. (p.88, 89). Quanto a Celso Furtado, dentro da perspectivaque caracteriza a etapa primitiva do desenvolvimento latino-americano comode “desarrollo hacia afuera”, mal menciona a existência de manufaturas noBrasil nesta época, ao contrário de Caio Prado que as descreve com certodetalhe. Atribui pouca importância a este setor e dá ênfase ao obstáculotecnológico, que se prende menos â política obtusa por parte da metrópole doque à inexistência de tradição industrialista e de experiência técnica acumulada em Portugal. Argumenta que o decreto proibindo as manufaturas no fimdo século XVIII não parece ter suscitado grande reação. (Celso, p. 99). Esteargumento é de valor duvidoso, pois, justamente, a atividade manufatureiradeveria ter adquirido suficiente importância para suscitar na metrópole areação repressiva materializada no decreto. No que diz respeito à evolução do

problema no período posterior à independência, C. Furtado critica RobertoSimonsen numa nota, rejeitando sua opinião segundo a qual foram as baixastarifas vigentes até meados do século que sufocaram a débil indústria nacional(p. 122); segundo Furtado, os desequilíbrios do balanço de pagamentos e assucessivas desvalorizações cambiais teriam tido efeito protecionista superior auma eventual tarifa de 50%ad valorem sobre as importações.

Juízo adequado a respeito da questão exige que se leve em conta amutação sofrida pelo capitalismo mundial, em seu pólo central, em fins doséculo XVIII. Em meados deste século, encontramo-nos ainda no períodomanufatureiro, que atravessa seus últimos momentos. Nesta etapa, não há em

princípio nenhum abismo tecnológico entre centro e periferia; fundada nahabilidade manual do trabalhador e na divisão do trabalho no interior daunidade produtiva, as técnicas manufatureiras mantém ainda uma relativasimplicidade e não existem obstáculos realmente importantes para sua transmissão de nação a outra. Deste modo, o enfoque de Celso Furtado, dandoênfase à pobreza tecnológica da colônia para explicar nosso subdesenvolvimento manufatureiro na época da mineração, sofre de um anacronismoessencial. Esta conclusão se impõe com mais força ao levar-se em consideraçãoa existência, por exemplo, da produção têxtil em Portugal, e por conseguinte,a disponibilidade, na metrópole, de mão de obra qualificada. Mesmo na metalurgia, o obstáculo tecnológico não é, como veremos, decisivo. A legislaçãorestritiva tem, portanto, um importante papel no fato de não terem sidoaproveitadas as possibilidades de transmissão das técnicas. Não obstante, éverdade que, ao procurar as causas que dificultaram a expansão da manufatura na colônia, os autores estão implicitamente em busca das razões de nosso

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atual subdesenvolvimento industrial. Se o problema é abordado nesta pers pectiva, a análise de Celso Furtado recupera sua validade. Pois foi na primeirametade do século passado, isto é, logo após o desencadear-se da RevóluçãoIndustrial na Inglaterra, que as nações hoje desenvolvidas tomaram uma decisiva dianteira sobre as nações coloniais como o Brasil. Neste período, cria-seefetivamente um abismo tecnológico dificilmente transponível entre o centroe a periferia. Mesmo que a manufatura de tecidos tivesse podido expandir-selivremente antes da abertura dos portos, não resistiria, subseqüentemente, àcompetição da produção fabril de origem inglesa. É preciso não exagerar, portanto, a importância da repressão ao desenvolvimento manufatureiro, nacolônia, para o futuro da economia nacional. Seu atraso se define historicamente nas décadas que antecedem 1850. De 1822 a 1841, fundaram-seapenas 14 estabelecimentos fabris e apenas duas sociedades anônimas nacionais (HFL, p. 203). As potencialidades de um desenvolvimento industrial

autóctone são eliminadas tanto pela concorrência inglesa, pela esmagadorasuperioridade tecnológica que toma os produtos britânicos competitivos malgrado o encarecimento provocado pelas desvalorizações cambiais, como pelaestagnação do próprio setor exportador, incapaz de gerar demanda dinâmica para a produção interna e garantir o necessário suprimento de equipamentosimportados. Neste sentido, é correta a comparação de Celso Furtado entre oscasos do Brasil e dos E.U.A.: o dinamismo das exportações de algodão desteúltimo para a Inglaterra, na primeira metade do século XIX, foi um fatordecisivo para seu desenvolvimento econômico neste período (Celso p. 127).

Antônio Castro27 aponta igualmente, como obstáculo mais importante para o desenvolvimento manufatureiro da região de Minas Gerais, em fins doséculo XVIII, a carência de mão-de-obra qualificada, (p. 42). Mas endereça por outro lado critica a Celso Furtado por negar a importância da ação re pressiva de metrópole, (p. 44). A análise de Castro concentra-se também nascondições que favoreciam o surto industrial mineiro (p. 40). Entre estas pode-se enumerar a proximidade das matérias primas (algodão e minério deferro), a concentração da população, os pesados impostos que encareciam asmercadorias de origem portuguesa 27a e as dificuldades de transporte para aregião montanhosa das minas, que criavam barreira natural à penetração dasimportações. Veremos que este último fator, apesar desta influência positiva,constitui também, de outra forma, um obstáculo à consolidação de atividadeindustrial tão importànte como a siderurgia.

Entre as causas que impediram nosso avanço industrial durante a dominação portuguesa, Heitor Ferreira Lima cita, de um lado, a ação política

27 - Antonio Barros de Castro, A Herança Regional no Desenvolvimento Brasileiro, em 7 Ensaios sobre a Economia Brasileira, Forense, 1971), Rio.27?—W. Sodré, p. 203. Conforme comerciante inglês, estabelecido na praça do Rio de Janeiro, na época de D. João VÍ, os impostos cobrados por Portugal oneravam em mais 150%o preço das mercadorias importadas pela colônia.

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direta (legislação restritiva), e os efeitos da exploração econômica (tributaçãoopressiva e escassez de capitais), e, de outro, um conjunto de obstáculosinternos:1) obstáculos ao progresso técnico;2) limitação do mercado interno;3) dispersão demográfica; 4) deficiência dos meios de transporte (HFL, 121)*Se explorarmos as informações que este mesmo autor nos fornece sobre osempreendimentos siderúrgicos da época de D. João VI, verificamos que ostrês últimos fatores mencionados têm importância decisiva e estão essencialmente vinculados entre si: a barreira fundamental para a consolidação destaatividade fabril se encontra na limitação do mercado nacional; esta tem sua base não simplesmente nas pequenas dimensões absolutas da população, masem sua dispersão por território desarticulado em virtude da ausência de meiosde transporte eficientes.

Segundo Ferreira lima, desde a chegada da Corte portuguesa até o

momento da Independência, contam-se três tentativas importantes de implantação da produção de ferro no Brasil:1) A Fábrica de Pilar, operada com o auxilio de técnico alemão e

, dirigida por Câmara, Intendente Geral das Minas e Diamantes. Contava c.om 3fomos baixos (sistema catalão), auxiliando o forno alto de vasar. Teve produção anual média de quase 1.000 arrobas de 1815 a 1821. Deu prejuízos, em

parte pela baixa que se verificou nos preços do ferro.” (HFL, p. 159).2) A Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, dirigida por

Vamhagen. Tinha dois altos-fornos. Funcionou da 1815 a 1821. Teve uma

despesa total de100 contos e uma produção total mais de sete vezes superiorà da fábrica de Pilar. Deu prejuízos.3) A Fábrica Patriótica, de Eschwege, perto de Congonhas do Campo;

Contava com 4 pequenos fornos e produziu 5.326 arrobas, uma quantidade bem menor do que a obtida pelas duas outras fábricas. Segundo o próprioEschwege, a despesa foi de pouco mais de dois contos de reis, deixando lucrolíquido de um conto. (HFL, p. 162).

É significativo o sucesso, ao menos relativo, da menor das três fábricas.É preciso matizar a afirmação de Celso Furtado conforme a qual não haviamercado para â indústria siderúrgica. É claro que em todo o território nacional e nas mais variadas atividades faziam-se necessários instrumentos deferro. O próprio Ferreira lima dá interpretação anacrônica ao mencionarcomo obstáculo à indústria nacional a estreiteza do mercado interno, associada por ele à escassez da população e ao peso dos escravos, com baixíssimonível de consumo, no contingente demográfico. Ao atribuir importância gerala este fator, não percebe que ela é relativa e que talvez se tratasse de elemento irrelevante para os estabelecimentos fabris de pequenas dimensõesda época. (p. 122, 212). Em princípio, as dificuldades ligadas às economiasde escalá não deveriam se manifestar neste momento. A não ser que se estejaanalisando o caso particular de ramo de produção que requer o emprego deequipamento mais volumoso e complexo, mesmo neste tempo, como a siderurgia, e se considere adispersão do mercado interno, o isolamento dos nú-

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cleos demográficos regionais, em virtude da ausência de adequada infra-estrutura de transportes. Na primeira metade do século XIX, as estradas eram péssimas e todo o transporte se fazia no lombo de burros. Daí o caráterregional da primitiva siderurgia brasileira e as pequenas dimensões exigidas para o sucesso de tais empreendimentos. Em Minas Gerais, “Eschewege menciona a existência de 16 pequenos fomos, número que ia sempre crescendo.”(p. 163). “As forjas do Bom Fim, que foram o mais belo estabelecimento nogênero visto por Saint-Hilaire em peregrinação pela província de Minas Gerais,-3odia fundir de 40 a 50 arrobas de ferro por dia, não o fazendo, porém, por

fa lta de vias de comunicação que dessem escoadouro aos produtos” (p.1 6 3 ,4 -o grifo é nosso —E.P.).

Referindo-se à período imediatamente posterior, o reinado de Pedro I,escreve ainda Ferreira lima: “Uma das maiores deficiências de nosso processomanufatureiro de então consistia na pouca difusão do uso do ferro. Embora jáo fabricássemos desde o tempo de D. João VI, sua localização era imprópria, pois ficava muito distante dos principais centros consumidores de então,como o Rio de Janeiro, Bahia, e Recife, as cidades mais desenvolvidas que possuíamos. E o transporte era difícil e caro, em lombo de burros, como jádissemos. A usina de ferro de Sorocaba durou mais, porque tinha uma fábricade armas a que alimentava igualmente vários instrumentos para um mercado,embóra restrito, como era o de São Paulo daquele tempo.” (p. 211). São

justamente estas mesmas dificuldades de transporte que tomam problemáticaa rentabilidade dos empreendimentos siderúrgicos, que explicam seu surgi

mento na região montanhosa das minas, assim como o florescimento da produção têxtil nesta regiãoapesar do liberalismo vigente à época de D. João VI,no que se refere às importações. Nesta mesma época, as lojas inglesas do Riode Janeiro e do Recife estavam repletas de tecidos e ferragens de origemeuropéia.

o o o

A partir de meados do século XIX, o café passa a adquirir uma importância crescente na pauta de exportações: sob o estímulo de demanda externa

em expansão, e valendo-se da grande disponibilidade de terras na região Cen-tro-Sul, as plantações se expandem e emigram em busca de solos mais férteis,seguindo trajetória secular que vai da Zona montanhosa do Rio de Janeiro edo sul de Minas Gerais ao oeste paulista. A prosperidade da cafeicultura vaisuperar a conjuntura depressiva da primeira metade do século e inverter atendência da balança comercial, que passará a apresentar, desde então, constantes superavits. Segundo Celso Furtado, o aumento do preço do café é daordem de 91% do decênio dos 40 ao decênio dos 90; neste período, o volumedas exportações do produto cresce em 341%.

A primeira crise de superprodução eclode na passagem do século. Todavia, com altos e baixos, a cafeicultura continuará sendo, até a grande catástrofe de 1929, o centro dinâmico da economia brasileira.

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Não tomaremos, como objeto central da análise, a expansão da economia cafeeira considerada em si mesma; interessa-nos, ao contrário, osefeitos que teve tal expansão,, com as características que assumiu, na produção para o mercado interno. Mais especificamente: a questão que se coloca,

para nós, é a de saber em que medida e de que forma a redinamização dosetor exportador da economia tornava a abrir perspectivas para que sedesencadeasse um processo de industrialização no interior do país.

Reconhece-se geralmente que fator importante deste ponto de vista estána passagem do trabalho servil para o trabalho assalariado; precedida por sériede leis que a antecipavam parcialmente (conquanto pudessem também refletirtentativa de protelar a solução final do problema), esta transformação é formalizada em sua plenitude, com a abolição da escravatura inscrita na LeiÁurea de 1888. Desde então, a massa de força de trabalho empregada na

economia devia ser composta de consumidores autônomos, constituindo destaforma, mercado potencial para a produção nacional de artigos de consumo.Mas a Lei de' 1888 apenas sanciona ao nível jurídico uma situação que já setinha criado de fato; em 1850, o Brasil tinha proscrito, através da Lei Eusébiode Queiroz, a importação de escravos para o território nacional, cedendofinalmente às pressões da Inglaterra neste sentido. Em virtude do crescimentovegetativo negativo da massa escrava, diminui gradualmente a oferta de braçosno interior do país, justamente no período em que se intensifica sua demanda pelo dinamismo da lavoura cafeeira. O recurso à imigração européia vai incrementar o uso da mão-de-obra livre em detrimento do escravismo. Em 1850, amassa escrava ainda constitui 31% da população do país, mas em 1887, àsvésperas da Abolição, esta percentagem está reduzida a 5%. (Caio, Evolução, p. 87).

Caio Prado Jr. enuncia deste modo as contradições envolvidas na “questão do elemento servil”:

“Depois de 1865, ela quase monopoliza a atenção política do Império.Constituía já então o braço escravo o maior obstáculo ao desenvovi-mento do país. Não somente sua reconhecida improdutividade impediao progresso da nossa economia, além da grosseira exploração agrícolaque então possuíamos, como também, e principalmente, degradando otrabalho em geral, afugentava o braço livre de que carecíamos. É esta a principal causa da reduzida imigração estrangeira que tivemos até aAbolição.” (Evolução, p.86).A primeira parte da explicação é a mais contestável, pois se baseia no

pressuposto duvidoso da “improdutividade” inerente à mão-de-obra escrava.Ela entra em contradição, inclusive, com as razões alegadas pelo próprio CaioPrado para explicar a oposição da Inglaterra ao escravismo brasileiro; segundoele, os ingleses eram movidos em parte por “seus interesses nas colônias nasíndias ocidentais, que produziram, como nós, o açúcar e sofriam por isso aconcorrência do Brasil,avantajado pelo emprego do braço escravo”, (Evolução, p. 81, grifado por nós). Se o uso de escravos estava se tornando pouco

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rentável na conjuntura pré-abolicionista (ao contrário do que ocorria antes de1850), isto se devia à escassez da oferta e ao alto preço das “peças”, e nao àscaracterísticas inerentes à própria natureza servil do regime de trabalho. Mas o próprio Caio Prado reconhece que os motivos mais fortes para a Abolição

residiam nos obstáculos que o escravismo criava para a sustentação de fortefluxo imigratório a partir da Europa. É esta explicação que é valorizada naHistória Econômica, além da circunstância de que os escravos eram impró

prios para o trabalho nas manufaturas, (p. 175, História).É preciso não exagerar, por outro lado, a importância da Abolição

tomada em si mesma para a formação de mercado para artigos de consumo. O próprio Marx nos chama a atenção para a ilusão segundo a qual, no escravismo, a totalidade do trabalho realizado parece ser apropriado pelo senhor,como se o consumo do escravo pudesse ser nulo. Na realidade, o escravo é

também um consumidor, ainda que não autônomo, ou seja, é um consumidorapesar do fato de que o próprio senhor realiza em seu nome os gastos deconsumo. Deste modo, a transformação do escravo em trabalhador assalariadonão aumenta por si só o mercado para artigos de consumo. Este efeito só pode verificar-se se a transformação é acompanhada de elevação da renda realdos ex-escravos. Dada a relativa escassez de mão-de-obra, na região cafeeira, aabolição provocou efetivamente uma redistribuição da renda em seu favor,mas segundo Celso Furtado isto conduziu ao subemprego espontâneo dosantigos escravos: uma vez obtido o suficiente para a satisfação de suas neces

sidades, estes manifestavam de modo geral uma intensa preferência pelo lazer;deste modo, aproveitavam, sua libertação submetendo-se agora ao trabalhoapenas em tempo parcial (p. 167).

“Observada a abolição de uma perspectiva ampla, comprova-se que amesma constituiu uma medida de caráter mais político do que econômico. A escravidão tinha mais importância como base de um sistemaregional de poder que como forma de organização da produção. Abolido o trabalho escravo, praticamente em nenhuma parte houve modificações de real significação na forma de organização da produção e mesmo

na distribuição da renda.” (p. 168).Deste modo, a modificação legal das relações de trabalho, ainda queimportante sob outros aspectos nas transformações da sociedade brasileira naépoca, teve, em si mesma, reduzidos efeitos econômicos. Sua incidência maissignificativa neste plano se dá de forma indireta: na medida em que permitesuperar algumas das dificuldades que entravavam a corrente imigratória. Poisos trabalhadores assalariados de origem européia terão condições de aproveitar-se da conjuntura favorável no mercado de força de trabalho. Sua capacidade reivindicatoría é reforçada por seu nível cultural mais elevado e mesmo

pelo apoio dos Governos de seus países de origem quando se rebelavam diantede eventuais abusos a que eram submetidos. Estas características do trabalhador imigrante se manifestam já desde as primeiras experiências de-importação de mão-de-obra na região cafeeira, nos conflitos entre os colonos

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alemães contratados pela fazenda da Ibicaba e seu proprietário, o SenadorVergueiro, durante os anos 50. (v. Alberto Passos Guimarães, p. 97).

Dadas estas transformações estruturais, resta-nos compreender por quemecanismos a expansão do setor exportador poderia dinamizar a produçãoindustrial voltada para o mercado ihtemo. Quanto a este ponto, encontramosimpressionante lacuna na obra de Celso Furtado. Seu livroFormação Econômica de Brasil leva às últimas conseqüências a periodização da históriaeconômica latino-americana, segundo a qual o período anterior a 1930 seriadominantemente de “desenvolvimento para fora” e somente após aquela datadesencadear-se-ia o processo de “industrialização por substituição de importações”. Já se viu de que modo Celso Furtado minimiza a importância e as possibilidades dos empreendimentos manufatureiros na época colonial. Aodiscorrer sobre o ciclo cafeeiro, silencia completamente a expansão fabril quelhe é contemporânea. Tudo se passa, nestes capítulos de sua obra, como senão tivesse havido indústria no Brasil nas quatro décadas que antecedem1930. Isto gera um desequilíbrio interno, para não dizer inconsistência, naseqüência de sua exposição. Pois quando se trata de elucidar o que tornou possível o processo de industrialização na década de 30, numa conjuntura deextrema compressão da capacidade de importar, Celso Furtado precisa invocar, com razão, a preexistência de um setor industrial no país: o desenvolvimento manufatureiro foi possível nestas circunstâncias, malgrado a dificuldade de adquirir no exterior equipamentos adicionais porque, por um lado,utilizou-se de forma mais intensiva a capacidade produtiva já instalada nosetor de bens de consumo, e por outro lado, recorreu-se ao setor interno produtor de bens de capital. A elucidação integral das origens de nosso desenvolvimento industrial requereria, por conseguinte, que se mostrasse como segestaram estes dois setores no período anterior de expansão agroexportadora,em vez de introduzi-los de • repente como realidades já dadas, inexplicavelmente, em período posterior, como Celso Furtado faz em sua exposição.

Pode-se ver, nosilêncio de Celso Furtado sobre os surtos industriais queo país conheceu em outras épocas, a marca inconsciente de preocupaçãoideológica. Na posição nacional-desenvolvimentista assumida pelo autor, aexpansão industrial que se desencadeia após 30 representa a superação de um passado de dependência econômica, ou ao menos sua possibilidade próxima.A distinção radical e absoluta estabelecida entre esta nova etapa e aquelas emque o desenvolvimento se orientava para o exterior representa a afirmaçãoimplícita de uma ruptura irreversível. Em seu passado de dependência, o país não dispôs de indústrias dignas de nota; no momento atual, em que asindústrias se expandem, este passado se encontra sepultado. Isto é o que nossugere insensivelmente a obra de Furtado. Na realidade, houve importantesatividades manufatureiras no fim do período colonial; foram sufocadas pelaobstrução legal da metrópole e subseqüentemente pela concorrência inglesa.Do mesmo modo, a indústria fabril desenvolveu-se no coração mesmo daeconomia cafeeira, tendo por base a produção de artigos de consumo, mas às

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vésperas da crise de 1929 nossa indústria têxtil estava em crise diante daconcorrência externa trazida pela recente euforia exportadora. Desde modo,recordar os surtos industriais na fase do “desenvolvimento para fora” é recordar também sua vulnerabilidade diante das possibilidades de asfixia externa, éfazer presente, implicitamente, a própria fragilidade do desenvolvimentoatual, que ainda não desembaraçou o país de seus laços de dependência. Porum artifício ideológico inconsciente, Celso Furtado suprime esta perspectivaameaçadora, apresentando como novidade histórica absoluta, a idade da indústria na economia brasileira.

Pode-se objetar que o capítulo XXVI do livro de Furtado, entituladoO Fluxo de Renda na Economia de Trabalho Assalariado, ocupa-se justamenteem mostrar de que modo o aumento das exportações desencadeia a elevaçãoda produção para o mercado interno. Há, de fato, quem entenda esta última,na exposição de Furtado, como abrangendo a produção industrial.2 8 Masesta interpretação é indefensável. Furtado refere-se explicitamente ao processo multiplicador da renda; quando esta aumenta no setor exportador, osgastos de consumo dos indivíduos empregados neste setor voltam-se, em parte, para o mercado interno, desencadeando sucessivas correntes de gastosque, ao elevar a demanda para a produção interna, estimulam seu aumento.Mas esta elevação da produção se dá através da mobilização de fatores antessubutilizados. Diz Celso Furtado a respeito dos “artigos de consumo” :

“A produção de parte destes últimos, por seu lado, pode serexpandida com relativa facilidade, dada a existência de mão-de-obra eterras subutilizadas, particularmente em certas regiões em que predomina a atividade de subsistência. Desta forma o aumento do impulsoexterno —atuando sobre um setor da economia organizado à base detrabalho assalariado —determina melhor utilização de fatores já existentes no país.” (Formação, p. 180).É óbvio que esta descrição se refere unicamente à expansão da pro

duçãoagrícola para consumo interno. Celso Furtado está, neste texto, explicitando o mecanismo geral através do qual as exportações de café promoveram a integração econômica nacional, incentivando a produção de came,

erva-mate, vinho, etc., na região sul do país, conforme explicou com maioresdetalhes no capítulo anterior, (v. Nível de Renda e Ritmo de Crescimento nasegunda metade do século XIX, p. 172). A explicação não se refere à produção industrial. Para que esta se expanda, é necessário não apenas a incor

poração de fatores preexistentes, como a mão-de-obra e a terra, mas também,e principalmente, a ampliação das instalações fabris, a criação de quantidadede capital fixo que antes não existia na economia. A expansão da produçãoagrícola num período longo pode ser razoavelmente compreendida através deuma versão de multiplicador keynesiano, mas a expansão da produção fabril,

28 - Maria do Carmo Campello de Souza, o Processo Político Partidário na Primeira República, do Brasil em Perspectiva, p. 165.

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ao contrário, só pode ser compreendida em termos de acumulação de capital. No primeiro caso, o que ocorre basicamente é a absorção, na produção, dacapacidade produtiva desempregada da terra e da força de traba lho; no segundo caso, o aumento da produção tem por mediação necessária o aumento

da capacidade produtiva existente.A expansão do setor exportador cria o pré-requisito básico para o florescimento da indústria ao elevar a renda no interior do país e ao propiciar a possibilidade de im porta r equipamentos. Expande-se, com isto , o mercado deartigos de consumo. A velocidade do crescimento industrial tem por limites,de um lado, as próprias potencialidades de acumulação, dadas pela taxa delucro obtida pelos empresários, e, de outro, o ritmo em que se expande a parte da demanda que se volta para o próprio mercado in te rno, em vez deabastecer-se com produtos importados. Se nós afastamos a idéia de que

existiria escassez de fundos de acumulação, o problema decisivo para a sobrevivência e a expansão da indústria está na preservação e na expansão da procura. Em que condições, num a conjuntu ra longa de in tenso incremento novalor exportado, poderá a indústria nacional escapar à concorrência externa?Basicamente, dois fatores vão lhe reservar, neste período, uma parcela substantiva do mercado: as tarifas sobre as importações e as freqüentes desvalorizações cambiais, que encarecem as mercadorias estrangeiras.

Os acordos comerciais com a Inglaterra, estabelecidos à época da Independência, prolongaram até meados do século a situação de desproteção

aduaneira criada por D. João VI; o governo brasileiro estava impedido, poreles, de elevar acima do percentual de 15% as tarifas sobre mercadorias importadas. Somente em 1844 este limite é ultrapassado com a. tarifa Alves Branco.W. Sodré nega-lhe qualquer intenção protecionista (p. 254), enquanto HelioJaguaribe (p. 163) reconhece-lhe objetivos industrializantes. Os termos da pro posta à Assem bléia Legislativa parecem dar razão a este últim o: “O Ministro da Fazenda, Alves Branco, além de revidar ao tratamento do açúcar

brasileiro na Inglaterra visava preencher o défic it do Estado como também pro teger os capitais nacionais já empregados dentro do país em alguma indús

tria fabril, e animar outras a procurarem igual destino.29 Não obstante,sabe-se que os considerando dos textos legais não são decisivos para definir osverdadeiros móveis de seus redatores; no debate parlamentar, o legislador pode ser levado a acumular razões obje tivamente irrelevantes para aprovaçãoda lei, se com isto reforça, retoricamente, seu ponto de vista. Perguntemo-nos,antes, pelos interesses reais que representava o Governo que elaborou estalegislação. Explicando o livre-cambismo arraigada da oligarquia chilena noséculo passado, Cláudio Veliz aponta as razões evidentes pelas quais os trêssetores em que ela se subdividia não podiam estar empenhados na proteção à

indústria nacional: os importadores e exportadores, ligados ao comércio ex-

29 - Virgílio Noya Pinto, Brasil em Perspectiva, Balanço das Transformações Econômicas no Século XIX, p. 136.

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terior, estavam obviamente interessados na promoção das relações externas daeconomia; quanto aos proprietários rurais e mineiros, obtinham seus lucrosatravés do comércio exportador e não tinham nenhuma razão válida paraencarecer, com impostos, os artigos de consumo refinados que tais lucros lhes

permitiam adquirir no estrangeiro. Ora, sabemos que o Estado brasileiro noséculo passado, tanto no Império como no período republicano, é controlado pela oligarquia agroexportadora. Como atribuir aos representantes políticosdesta classe preocupação em proteger a indústria nacional?

Não obstante, a evolução da legislação tarifária até o fim do Impérionão permite rejeitar com facilidade esta hipótese. Vejamos os momentos principais desta evolução, segundo Ferreira lima. Em 1844, a tarifa Alves Brancotaxa em 30% a maioria dos itens, sendo os tecidos e bebidas os mais atingidos,com 50% e 60%. Em 1857, Souza Franco reduz para 15% o imposto sobrematérias-primas emaquinismos para indústrias. Em 1860, o ministério anti-industrialista de Silva Ferraz introduz reduções para ferragens, armamentos,ferramentas e máquinas. Novas alterações são introduzidas em 1874 (RioBranco): a tarifa é uniformizada ao nível de 40% e diversos tipos de máquinasrecebem isenção. Mais de 10 anos depois, em 1887, com Belisário de Souza,surge lei explicitamente protecionista em seu próprio enunciado, elevando osdireitos alfandegários sobre mercadorias estrangeirascom similar nacional. Finalmente, João Alfredo aumenta os direitos sobre o algodão e a juta, em1889, procurando amparar a indústria têxtil nacional (Ferreira lim a. p. 264,5, 6). O conjunto destas leis põe em relevo a orientação geral basicamentefavorável à indústria, ainda que não fosse esta a preocupação fundamental doslegisladores. Os artigos de consumo de maior importância (como tecidos e. bebidas) são os mais atingidos, propiciando o desenvolvimento dentro do paísda produção têxtil e alimentar. Mesmo as reduções de tarifas sobre máquinas

beneficiam os produtores industriais de artigos de consumo, que são em geralobrigados a importar seus equipamentos.

Quanto às tendências protecionistas no período republicano, elas sãoexplícitas, —segundo Ferreira lima —em Ruy Barbosa, Floriano Peixoto,Hermes da Fonseca, Afonso Pena. Por outro lado, em figuras como J.Murtinho, Rodrigues Alves, Leopoldo de Bulhões, etc., encontramos profissões de fé antiindustrialistas. Mas ainda que por motivos puramente fiscais,a tendência geral foi de sustentar tarifas favoráveis à indústria. Este fatocontradiz a concepção à qual Ferreira lim a tende a se identificar, embora nãose filie a ela abertamente: a tese segundo a qual a oposição entre interessesindustriais e os do latifúndio cafeeiro dominaria o cenário político da Primeira República. Este tese conduz, como conseqüência, a interpretar erroneamente a Revolução de 1930 como um movimento da burguesia industrial paradestronar a oligarquia cafeeira. Nesta direção, Ferreira lima critica a política

anti-inflacionista de Campos Sales como sendo “uma política restritiva emtodos os setores de atividade” (p. 312), e endossa Werneck Sodré, segundo,o qual “a pol ítica de Campos Sales correspondia, assim, à paralização do surto

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industrial, à submissão inteira das. atividades à economia exportadora, àobediência aos interesses do imperialismo...” (p. 313) Mas Ferreira lim a não

pode citar fatos neste sentido, a não ser falências debancos, e é obrigado areconhecer que este governo aumentou as tarifas, o que objetivamente beneficiava a indústria.A conclusão que se impõe é a de que há um protecionismo objetivo,ainda que não deliberado, no conjunto da legislação aduaneira na fase do“desenvolvamento para fora”. Se o Estado neste período é controlado pelaaristocracia rural, cabe deduzir que não há antagonismo radical entre os su postos interesses de consumo desta classe e os interesses industriais. Ao menosuma das “patas” da mesa oligárquica de que fala Qáudio Veliz não atuouhistoricamente contra a indústria. Talvez ocorresse simplesmente que, paraaqueles aristocratas responsáveis pelo bom andamento da administração pú blica e da economia em geral, se impusesse com mais força a necessidade deevitar o descalabro financeiro resultante da fraca arrecadação de impostos doque a vantagem pessoal de obter mais baratos os artigos de consumo importados. De qualquèr modo, eles tinham como ninguém o nível de renda bastante elevado para pagar o preço destes artigos, mesmo encarecidos pelosimpostos, e ter-lhes-ia custado muito mais, como alternativa, votar impostossobre a terra ou sobre a exportação. Taxar os manufaturados de uso correnteera ainda uma maneira desocializar o ônus da manutenção do aparelho deEstado. Daí que, neste período, a verdadeira polarização objetiva de interesses, em torno das tarifas, devia dar-se neste sentido: os comerciantes defendiam o livre-cambismo, com o apoio da população em geral, imediatamente interessada no baixo preço dos artigos de consumo, contra os latifundiários e os industriais.30

Paul Singer reconhece qúe o comércio externo constitui a única fontede receita para o Governo na fase do desenvolvimento para fora, conduzindo,deste modo, a uma legislação tarifária com motivações fiscais. Mas põe emquestão os efeitos positivos que tais medidas pudessem ter para a indústrianacional:

“Uma tarifa com objetivos meramente ‘fiscais’ eleva as alíquotas,mas nunca a ponto de impedir ou reduzir, em alto grau, a importação, pois se o fizesse ela evidentemente não atingiria o fim colimado, que éobter elevadas rendas aduaneiras” (Paul Singer, p. 80).Evidentemente, a elevação da tarifa, ao aumentar o preço, deve res

tringir a procura interna da mercadoria importada, comprimindo a própria base sobre a qual se assenta a arrecadação governamental. Mas o importante, para o Governo, é que a receita tributária não diminua; para tanto é suficienteque a diminuição da quantidade importada não seja percentualmente maiordo que a elevação da alíquota. Dentro deste limite, é possível jogar com as

30 — (Paul Singer, Desenvolvimento e Crise, Difusão Européia do Livro, 1968, São Paulo, p. ).

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variações da tarifa obtendo importantes reduções físicas da importação. Equalquer redução da quantidade importada, que forçosamente ocorre, favorece a indústria nacional. Supõe-se que esta se encontre numa fase inci piente de seu desenvolvimento; se, num caso extremo, a tarifa tornasse proi

bitiva a importação de determinada mercadoria, anulando-a, o prejuízo para oconsumo interno seria ponderável, mas possivelmente a vantagem para a indústria nacional não seria tão grande, pois esta não teria condições de substituir imediatamente a totalidade da oferta externa anterior.

Quaisquer que tenham sido os propósitos dos legisladores, é inegávelque as tarifas alfandegárias tiveram, objetivamente, efeito positivo sobre aevolução industrial no século passado. Exemplo sintomático é o da experiência de Mauá em meados deste século. Nesta época, o desenvolvimento dasatividades urbanas (comunicações, transportes, bancos, indústria) é estimu

lado tanto pela tarifa Alves Branco como pela extinção do tráfico em 1850,que, segundo os documentos da época (como a biografia do próprio Mauá),teria liberado capitais para estes empreendimentos31. Nesta conjuntura, Mauáimplanta a fundição de Ponta de Areia, em 1845, onde surge pouco maistarde um estaleiro (1851) (Jaguaribe, p. 164). Mas em 1861, como se viu, háuma reviravolta antiindustrialista, sendo liberada a importação de navios,máquinas e artefatos de ferro (Jag. p. 169), o que representa, potencialmente, séria ameaça às empresas de Mauá. As conseqüências daquela medida não se manifestam imediatamente em virtude do início da Guerra doParaguai em 1864, intensificando a demanda governamental de produtos metalúrgicos. O estaleiro de Mauá tinha então produzido quase um terço dosnavios a vapor que compunham a armada brasileira. (Jag. p. 164). Mas com otérmino do conflito e dentro da conjuntura livre-cambista vigente, as em presas de Mauá não poderiam resistir muito tempo. A falência ocorre em1875 (p. 169).

Atribuímos à legislação aduaneira do Império uma motivação predominantemente fiscal. São as exigências de manutenção do aparelho do Estadoque pressionam no sentido de que se onere a importação de mercadorias.Mesmo no Segundo Reinado, quando se encontrava já liberado dos entraves àsua capacidade fiscal, o Estado brasileiro viu-se com freqüência envolvido emapertos financeiros. A receita total do Segundo Reinado é de 766.333.678$,

31 - Opondo-se implicitamente a este ponto de vista, W. Sodré afirma que houve transferência de capitais do tráfico negreiro para o setor agrícola, principalmente para a expansão cafeeira —p. 194, 199, 246, 247. Sodré minimiza o surto de empreendimentos urbanos que ocorreu neste momento. A respeito da tarifa Alves Branco, afirma, por

exemplo; “A tarifa de 1844, pois, era puramente fiscal. Falar em protecionismo em 1844, era mencionar o abastrato: não havia o que proteger, nem, concretamente, a intenção de proteger.” - p. 225. Percebe-se na obra de Sodré, neste particular, uma orientação semelhante à de Celso Furtado,

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enquanto a despesa atinge 917.057.201$, o que dá como resultado umdéficit de 150.724.215$. A maior parte deste déficit foi provocado por circunstânciasexcepcionais que impunham ao Governo pesados encargos financeiros; assim,41,1% do defidt surge no período de 1865-69 (Guerra do Paraguai) e 25,6%em 1875-79 (Seca no Ceará). (H. Ferreira l im a, p. 255,6). Circunstânciasdesta ordem, além das necessidades de equipar o país com adequada infra-estrutura de portos e estradas de ferro, sem a qual seria inviável a expansãoagroexportadora, conduzem a um recurso crescente ao capital estrangeiro.Ao contrário do que ocorre na primeira metade do século, quando a cifrados empréstimos externos a partir da Independência mal ultrapassa a cifrade 2.500.000 de libras esterlinas, (Caio Prado, História, p. 169), no período de 1843 a 1889 são obtidos treze empréstimos no mercado de capitaiseuropeu, totalizando 61.896.300 libras, (p. 253, F. Lima). Por outro lado,as remessas para o exterior de 1850-51 a 1890 incluindo fretes, serviço da dívida, remessa de rendimentos, etc., alcançam o montante de 60.345.000 libras(F. Lima, p. 257).

Cerca de sexta parte dos empréstimos externos podem também seratribuídos às despesas decorrentes da Guerra do Paraguai. 6.936.000 libras em1865, 3.459.600 em 1871. (H. Lima, pj. 255,6). Em conseqüência da exploração financeira, cresce o peso do serviço da dívida no balanço de pagamentos; na década de 1861-70, 63% do superavit da balança comercial éabsorvido pelo pagamento *de juros e amortização de empréstimos; na década

de 1891-99, esta percentagem já elevou-se para 85% (W. Sodré, p.262).Após a proclamação da República, o país continuou a recorrer às fontesde financiamento externo. As operações de “valorização do café”, iniciadasna primeira década deste século, dão origem a novos empréstimos. A dívidaexterna, que alcançou trinta milhões de libras em 1889, eleva-se a 90 milhõesaté 1910 e, em 1930, atinge o montante de 250 milhões de libras. (Caio,História... 19. p. 211).

Um outro mecanismo através do qual a indústria nacional é protegidada concorrência externa é a desvalorização cambial. O encarecimento damoeda estrangeira no mercado de câmbio se intensifica principalmente naúltima década do século, em virtude das emissões monetárias desenfreadas noinício deste período e da depreciação do café. Numa conjuntura de contraçãoda demanda externa, a rigidez do serviço da dívida acarreta uma compressãoda capacidade de importar mais que proporcional ao declínio do valor exportado. Deste modo, a exploração financeira atua em última análise em benefício. da produção industrial interna, de duas maneiras. Em primeiro lugar, porque a necessidade de satisfazer os compromissos com os credores externosconduz o Governo a procurar uma fonte de receita taxando as importações; oserviço da dívida constitui, de fato, uma parcela significativa de sua despesatotal. Em segundo lugar, aqueles compromissos financeiros obrigam o Governo a reter em seu poder parte das divisas trazidas pela atividade expor-

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tadora, desfalcando deste modo, diretamente, a capacidade de importar daeconomia.

Celso Furtado rejeita a idéia de que a incompressibilidade do serviço dadívida tenha um papel importante no desequilíbrio do balanço de pagamentose na elevação da taxa de cambio. A causa destes fenômenos, segundo ele, seencontra nas particularidades do mecanismo multiplicador da renda, porefeito do aumento das exportações. Suponhamos que a totalidade da renda detodos os agentes sociais, no interior do país, seja consagrada a gastos deconsumo, inexistindo qualquer poupança. Ainda assim, a totalidade destarenda (Y) pode ser dividida em dois componentes: a parte empregada naaquisição de mercadorias produzidas(I) e a parte empregada na aquisição demercadorias produzidas no país(c). Chamemos de “propensão a importar” arazão i/Y, isto é, a percentagem da renda total que em média é empregada pelos indivíduos na aquisição de produtos estrangeiros. Realizado determinado montante de exportações, os empresários e trabalhadores do setor ex portador recebem o seu valor total sob a forma de renda monetária (salários,lucros, etc.). Em seguida, tratam de aplicar o dinheiro ganho na compra demercadorias que lhes interessam. Parte desta demanda volta-se para as mercadorias produzidas no país, dando origem a que seus vendedores recebamtambém um determinado montante de dinheiro, que continuará a circular nointerior do sistema. As exportações, uma vez realizadas, dão origem, portanto,a uma corrente de transações monetárias que estimula e sustenta a determinado nível a produção interna. Dado o aumento das exportações, estacorrente de compras e vendas acarreta, como resultado, o aumento correspondente da produção para o mercado interno. Pode-se calcular em que medidadeve elevar-se à produção para o mercado interno dado determinado aumentono valor exportado.

Aquele aumento da produção interna será logicamente tanto mais elevado quanto menor for a “propensão a importar” ; se os indivíduos consomemmuito pouco de mercadorias importadas, a corrente de gastos destinada aomercado interno, por efeito de um dado aumento da renda no setor exportador, será proporcionalmente mais volumosa. Pode-se dizer que o aumento

da renda no setor exportadorse multiplica no espaço interno da economia, eo multiplicador,k, é o inverso da propensão a importar. Suponhamos que arenda total do país (ou o produto nacional) esteja ao nível de100 e a propensão a importar seja de 1/5 (ou 20%); então as importações situam-se aonível de20, pois devem constituir exatamente20% da renda nacional, que éinteiramente consumida, em cada ano, pelos cidadãos do país em questão.Para financiar estas importações, o país deve enviar ao exterior parte equivalente de sua produção interna; o valor das exportações situa-se também, emconseqüência, no nível de 20. Suponhamos que as exportações aumentem

para 30 (A E = 10). O aumento absoluto das exportações é de 10. Como a propensão a importar é 1/5, o multiplicador é 5: o aumento da renda total Yé de 10 x 5, ou 50. Com isto, temos agora que a renda total (Y) é igual a 150,

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e o valor importado, que é de20% deste total, dada a propensão a importarda população, deve ter-se elevado igualmente de 20 para 30, igualando-sedeste modo ao valor exportado. Este resultado é necessário para manter oequilíbrio entre exportações e importações e a relação estável que existe entre

o consumo total e o consumo de produtos estrangeiros. Mas para que esteresultado se verifique, é necessário que se conceba, teoricamente, que o efeitomultiplicador é instantâneo; somente assim pode-se admitir que a renda totalnum determinado período de tempo seja determinada (como um múltiplo) pelo montante das exportaçõesneste mesmo período.

Celso Furtado, no entanto, vai interpretar a tendência ao desequilíbrioexterno como um resultado da defasagem temporal entre o aumento dasexportações e a elevação interna da renda:

“O aumento da renda se realiza, portanto, em duas etapas: em

primeiro lugar graças ao crescimento das exportações, e em segundo pelo efeito multiplicador interno. Parte desse aumento da renda terá deser satisfeito com importações, conforme uma relação relativamenteestável que existe entre o aumento da renda e o das exportações.

O mais importante a considerar, entretanto, é o seguinte: no momento em que deflagrava uma crise nos centros industriais, os preços dos produtos primários caíam bruscamente, reduzindo-se de imediato aentrada de divisas no país de economia dependente. Enquanto isso, oefeito dos aumentos anteriores do valor e do volume das exportações

continuava a propagar-se lentamente. Existia portanto uma etapa intermédia em que a procura de importações continuava crescendo se bemque a oferta de divisas já se houvesse reduzido drasticamente.” (Formação, p. 187).O desequilíbrio do balanço de pagamentos e a queda da taxa de câmbio

decorrem portanto, para Celso Furtado, da lentidão com que se processa omecanismo multiplicador. Mas se admitimos esta hipótese, em vez de considerá-lo instantâneo para efeitos práticos, deve-se desdobrar o funcionamentodo multiplicador através de vários períodos sucessivos. Ora, pode-se mostrar

facilmente que, neste caso, ainda que a renda continue aumentando a cada período (desde que as exportações não declinem novamente), a taxa de crescimento da renda é decrescente. A expansão mais intensa é a inicial, provocadadiretamente pelo aumento das exportações. Assim, no nosso exemplo acima,

podemos distinguir de saída dois períodos: o do aumento das exportações, eaquele em que os exportadores começam a gastar sua renda. No primeiromomento, a renda nacional eleva-se em10 unidades, mas no segundo oaumento é apenas de8 unidades, porque20% da demanda dos exportadoresvolta-se para o exterior, deixando de beneficiar os produtores nacionais. Deste

modo, em cada período, os sucessivos “vazamentos” da procura para fora do país fazem com que os acréscimos do produto interno se tomem progressivamente menores. Portanto, a variação do valor exportado num determinado período tem efeito muito mais sensível na demanda de importações

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neste mesmo período do que os efeitos internos de uma variação equivalentedas exportações, ocorrida em período anterior. Se determinado aumento dovalor exportado é repentinamente anulado por crise externa, a diminuição darenda interna que resulta imediatamente deste fato ultrapassa necessariamenteos aumentos simultâneos que esta renda deve estar experimentando pela pro pagação do processo multiplicador, desencadeado por aquele aumento inicialdas exportações. A procura de importações não pode, por conseguinte, continuar crescendo ao mesmo tempo em que se contrai a oferta de divisas.

O desequilíbrio do balanço de pagamentos em períodos mais curtos(como meses, em vez de anos) deve estar, de fator ligado às determinadasdefasagens temporais nos processos econômicos, mas estas defasagens concernem à própria atividade comercial ligada ao exterior. Assim, as casas im portadoras podem continuar a fazer importantes encomendas, baseadas noaumento da procura que experimentaram no período precedente, sem perceberem que esta mesma procura começará a contrair-se logo em seguida, pelofato de que as exportações estão se reduzindo.

Outra dificuldade relativa ao modelo de Furtado provém do fato de quea expansão da produção interna implicitamente suposta por ele é a expansãoda produçãoagrícola para o mercado interno. É verdade que basta incorporarà produção fatores antes subutilizados, como terra e mão-de-obra, para au-mentá-la, mas é verdade também que para este tipo de produto a oferta éinelástica a curto prazo. Há um intervalo de tempo de no mínimo algunsmeses entre a elevação da procura monetária e plantio e a colheita que permitirá a expansão da oferta interna; durante este tempo, a elevação dos preçosdos produtos agrícolas perturbará necessariamente a estabilidade da pro pensão a importar, que deverá elevar-se. Com o encarecimento da produçãoagrícola nacional, os consumidores voltam-se temporariamente para o consumo de alimentos importados.

Nas fases de maior dinamismo das exportações, o afluxo de divisas no país se antecipa ao aumento da procura de produtos importados, tendendo adeclinar, por esta razão, a taxa de câmbio. Em tais circunstâncias, o barateamento dos produtos estrangeiros pode afetar igualmente a propensão a

importar de modo a ameaçar a produção industrial no país. Mais precisamente, é o aumento dataxa de crescimento do setor exportador que produztais efeitos. Se a cada ano as exportações se expandem a velocidade invariável,arrastam consigo a produção primária para o mercado interno, que deve crescer a um mesmo ritmo, ainda que o mecanismo multiplicador sofra em cada período os retardos normais numa economia agrícola. Nestas condições, ademanda de importações, função do nível da renda global, estará crescendosempre com a mesma velocidade que a disponibilidade de divisas, trazidas pelas exportações. Todavia, quando se eleva a taxa de crescimento das expor

tações, o intervalo de tempo entre este aumento e seu efeito multiplicador narenda interna faz-se sentir; a disponibilidade de moeda estrangeira aumenta a

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ainda, por algum tempo, na velocidade normal de crescimento de todas asgrandezas agregadas da economia. A queda da taxa de câmbio intervém então para readaptar a procura de divisas à sua oferta. Com isto barateiam-se os produtos industriais importados, que passam a concorrer com a produção

interna. Foi conjuntura desta ordem que colocou em sérias dificuldades aindústria têxtil nacional, nãs vésperas da crise de 1929. “...A partir de 1924,mais ou menos, cessam as emissões, a moeda se revaloriza e depois se esta biliza, o que assinala o fim da inflação de após-guerra. Por outro lado, ocomércio externo se fortalece, com o aumento das exportações. ..” (F. Lima p. 345). Como resultado, dá-se a crise têxtil de 1928. Os industriais sequeixam dedumping. “A importação nacional deste artigo (tecidos) haviacrescido de 3.913 toneladas em 1923 para 7.246 toneladas em 1927, e o valorsubira de 2.705 mil para 3.912 mil libras esterlinas, entre as duas datas.”

(H. F. Lima p. 345). Observe-se que a variação relativa do valor importado émenor do que a variação relativa da quantidade. Em outras palavras, houvequeda nos preços do produto.

A expansão da produção pelo emprego de fatores antes subutilizados érelativamente mais fácil e rápido do que a que se realiza necessariamentemediante a acumulação de capital. A produção agroexportadora e a produçãoagrícola para o mercado interno dispõem de potencialidades de crescimento ataxa mais elevada do que a produção manufatureira. Para que ocorra, nestafase primitiva do processo de industrialização, a substituição de importações

pela produção interna da indústria nacional, é necessário que este setor possacrescer a um ritmo mais acelerado do que o conjunto da renda do país, que seexpande como função do aumento das exportações. Isto só pode ocorrer a partir do momento em que as limitações da demanda externa contenham odinamismo potencial da expansão da oferta no setor agroexportador. Estareviravolta histórica se efetiva por volta de 1900, quando a cafeicultura éatingida por sua primeira crise de superprodução. A produção de café mais doque quadruplica nas últimas duas décadas do século passado: passa de 3,7milhões de sacas de 60 kg, em 1880-81, para 16,3 milhões de sacas em

1901-2. (Celso Furtado, p. 208). Mas, não obstante o aumento quase contínuo do número de cafeeiros, encontramos em 1925 praticamente o mesmonível de produção do início do século: 15,7 milhões de sacas (p. 211). É a partir desta data até o momento dá crise que a produção chegará a elevar-sequase em 100%, sob o estímulo da ascenção dos preços. Deste modo, as três primeiras décadas do século XX constituem, globalmente, um período derelativa desaceleração da expansão cafeeira. Neste mesmo período, ganha im pulso o crescimento da indústria. A produção têxtil brasileira passa de 22milhões de metros em 1885 para 242 milhões em 1905, multiplicando-se por

10 em vinte anos. (Celso Furtado, 19, 24, Um projeto para o Brasil). Os 600estabelecimentos fabris estimados em 1889 transformam-se em 3.258 no anode 1907, concentrados principalmente no Rio de Janeiro e no Distrito Federal, empregando 150.841 operários. Em 1920, temos 13.336 estabe-

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lecimentos e 275.512 operários (Caio Prado, p. ) Em 1907, o valor da produção industrial interna é 3,5 vezes superior ao montante global da importação de manufaturados (p. 325 F. Lima). A produção industrial aproximadamente duplica durante a Primeira Guerra Mundial, (F. lima, p. 329); e

triplica de 1914 a 1923 (Paul Singer, Desenvolvimento e Crise, 19.145); só a partir de então, começa o declínio, provocado pela intensificação da concorrência externa. Malgrado as irregularidades de sua trajetória, já antes 1930se processa a substituição de importações de produtos industriais; o setorsecundário da economia suplanta, em seu ritmo de crescimento, as atividadesagroexportadoras. .

A partir dos anos 30 deste século, o setor secundário passa a constituir-se de modo irreversível no setor dinâmico da economia brasileira. A crisede superprodução no setor exportador se prolonga em virtude da conjunturadepressiva que atravessam, nesta época, as economias centrais. Quando esta ésuperada, durante a 2? Guerra Mundial, a mobilização dos recursos para oesforço bélico restringe a capacidade de exportar destas economias; destamaneira, é ainda para a produção industrial interna, no Brasil, que se orientamas necessidades de consumo de artigos manufaturados. A expansão da indústria neste período transforma-se num setor suficientemente significativo noconjunto da economia nacional, para que a promoção de seu desenvolvimentose torne, doravante, num objetivo político necessário. Em 1956, finalmente, osetor secundário suplanta o setor primário, quanto à sua participação no produto nacional. Deste momento em diante, o crescimento industrial seacelera ainda, até o início dos anos 60, quando é freada pela primeira de pressão de maior amplitude experimentada pela economia brasileira desde1930.

O processo de desenvolvimento que se verificou no país durante estastrês décadas é geralmente caracterizado como um processo de “industrialização por substituição de importações”. Significa isto, basicamente, queo aumento da produção industrial tem seu impulso dinâmico numa demandade artigos de consumo que era suprida a partir do exterior e que se volta

progressivamente para a produção nacional, à medida em que a crise do setor

externo comprime a capacidade de importar da economia. Ao restringir-se osuprimento externo, eleva-se o preço das mercadorias importadas, tomandoaltamente rentável a produção interna substitutiva. É natural que o impactodeste estímulo ao aumènto da produção se verifique inicialmente na indústriade bens de consumo de uso corrente. No entanto, à medida em que estasubstitui gradativamente determinados itens da pauta de importações, fazcrescer ao mesmo tempo as importações* de matérias-primas e equipamentosnecessários à sua própria expansão. Desta maneira, repete-se o processo; comoa expansão é ameaçada pelas restrições à importação de bens de produção, e

que se manifesta através da tendência à elevação de seus preços, há uma pressão no sentido de que ela seja também gradualmente substituída pela produção interna. Desta forma, a uma primeira etapa em que predomina o

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desenvolvimento das indústrias de bens de consumo, segue-se uma segunda emque se promove, principalmente, o desenvolvimento da produção de bens decapital. A respeito disto, escreve Paul Singer:

“A 2? etapa do desenvolvimento se inicia quando o país começa a

fabricar os bens de produção necessários ao Setor de Mercado Interno.É claro que não existe um limite nítido entre a1? e 2? etapa eé mais provável até que um país em desenvolvimento já comece a produzircerta quantidade de máquinas e matérias-primas industriais antesmesmo que seu excedente potencial se tenha transformado integralmente em excedente real (isto é, antes que todas as exportações sejamempregada na aquisição de equipamentos e matérias-primas industriais.Mas embora a 2? etapa possa iniciar-se antes que a 1? tenha se esgotado, é inegável que o fabrico de bens de produção industriais somente pode surgir após a criação de um mercado para tais bens, o qual é constituído pela indústria nacional.” (Paul Singer, Desenvolvimento eCrise, p. 54).Paul Singer tem razão ao afirmar que o desenvolvimento da produção

de artigos de consumo deve preceder o da produção de meios de produção,mas não está inteiramente certo ao afirmar que é apenas provável que estasegunda etapa se desencadeie antes de esgotada a primeira. Da análise feita por Maria Conceição Tavares, sobre esta questão, depreende-se que é inconcebível a hipótese de que se começasse a substituir a importação de equi

pamentos apenas a partir do momento em que a limitação da capacidade deimportá-los tivesse tornado um impecilho absoluto à expansão da indústria deartigos de consumo. Isto é o que ocorreria se fosse atingido um ponto do processo em que a substituição de artigos de consumo estivesse completa; ovalor total das importações, dificilmente suscetível de ampliação, consistiria,então, na aquisição de meios de produção para a indústria de artigos deconsumo. Em tais circunstâncias, para ceder lugar à importação de meios de produção destinados à produção interna de meios de produção, seria precisodiminuir o suprimento de meios de produção das indústrias de bens de con

sumo, comprimindo com isto a taxa de crescimento e, possivelmente, o pró prio nível absoluto de produção já alcançado por este setor:“Se, por exemplo, só se continuasse substituindo as categorias de

bens finais de consumo, a gama (de importações —E.P.) poderia chegara ficar praticamente limitada às importações necessárias para a manutenção da produção corrente, sem deixar margem suficiente para a entrada de novos produtos e, sobretudo, dos bens de capital indispensáveis para a expansão da capacidade de produção. Para evitar que ocorra talcoisa, é indispensável que se comece bastante cedo a substituição emcategorias novas, especialmente em produtos intermediários e bens decapital, antes que a rigidez excessiva da gama comprometa a própriacontinuidade do processo” (Auge e Declínio, p. 15).

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Em conseqüência, é preciso dizer, à diferença de Singer, que a “segundaetapa” deve começar não apenas provavelmente, mas necessariamente, antesda conclusão da primeira.

“Resumindo, pode-se dizer que, nas condições do modelo desubstituição de importações, é praticamente impossível que o processode industrialização se dê da base para ápice da pirâmide produtiva, istoé, que parta dos bens de consumo menos elaborados e avance lentamente até chegar aos bens de capital. É necessário (usando uma linguagem figurada) que o “edifício” seja construído simultaneamente emváiios andares, mudando só o grau de concentração em cada um delesde um período a outro.” (Auge e Declínio, p. 16).Para que se possa periodizar o processo de industrialização no Brasil

segundo a categoria de produtos cuja substituição predomina em cada etapa, é preciso, por outro lado, atentar para a ambiguidade da noção de “substituição

de importações” . Segundo M.C. Tavares32, deve-se diferenciar a substituição“visível”, ou seja, a diminuição absoluta ou relativa do valor de determinadoitem na gama de importações, e a substituição real, que consiste no aumentoda participação da produção nacional numa oferta interna crescente destemesmo item. O segundo processo não acompanha necessariamente o primeiro;assim, fortes restrições aduaneiras podem provocar a supressão de determinado produto na pauta de importações sem que esteja ocorrendo aumentoda produção interna deste produto; ou então pode ocorrer um intervalo detempo considerável até que se desenvolva a produção interna substitutiva. Poroutro lado, pode dar-se o caso de que um aumento acelerado da produçãonacional de determinada categoria, satisfazendo frações crescentes do consumo interno, não impeça que na pauta de importações o valor corres pondente a esta categoria se avolume absoluta ou relativamente.

Tem-se chamado a atenção de preferência, no primeiro per iodo da industrialização brasileira após 30, para a substituição de importações de bensde consumo não-duráveis. De fato, de 1929 a 1948 a participação destacategoria na pauta de importações declina de 11,2 para 10% (Auge e Declínio,

p. 427 ficha); naquele último ano, a participação das importações na ofertainterna está reduzida a nível insignificante no que tange aos tecidos (6,2%) eaos alimentos (3,8%) (Auge, p. 431 ficha). Não obstante, não são estes doisramos de produção que se expandem com maior velocidade na década de 30:de 1930 a 1940, enquanto apenas duplica a produção de tecidos, multiplica-se

por 5 a produção física de ferro-gusa e aço laminado, enquanto o volume da produção de cimento aumenta mais de oito vezes (F. Lima, p. 358). De 1939a 1950, aumenta em cerca de 70% a produção têxtil e de calçados, enquantohá um aumento de 494% para a metalurgia e 267% para o material detransporte. A produção de aço quadruplica apenas no período de 1945 a1951, enquanto multiplica-se por 2,8 a de ferro gusa (F. Lima, p. 74,376).

32 - Auge e Declínio, p. 10 e ?

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Se o processo substitutivo de bens não-duráveis praticamente se com pleta nesta primeira etapa, antecipando-se a outras categorias, malgrado asmenores taxas de crescimento que se observam no setor, isto se deve, por umlado, ao fato de que a trajetória que este tem a percorrer é por definiçãomenos longa, pelo lugar relativamente pequeno que ele ocupa na estrutura da produção industrial de uma economia desenvolvida, e por outro lado, ao fatode que a produção de bens não-duráveis já se encontrava relativamente desenvolvida no período anterior a1929. Examinando-se a evolução da pauta deimportações de1929 a 1948,verifica-se, ao lado da relativa estabilidade dos bens de consumo e bens de capital, e da expansão dos combustíveis e lubrificantes, que o período se caracteriza por substituição mais acentuada dasmatérias-primas e produtos intermediários; a substituição “visível” confirma,neste caso, a conclusão de que se impõe a partir das taxas de crescimento dosetor.

Percentagem s/o valor total das importações (Auge e Bedínio, p. 427 ficha)

1929 1948Bens de Consumo 18,7 21,3Combustíveis e Lubrificantes 8,4 14,4Matérias-Primas eProdutos Intermediários 46,2 35,2

Bens de Capital 26,7 29,1

Segundo os mesmos critérios, isto é, vãlorizando-se os dados referentesà substituição “visível”, os setores de concentração do processo substitutivono período seguinte são os bens de consumo final e os bens de capital. Asubstituição de importações no que se refere a este último concerne, emsubstância, as partes complementares:

Distribuição percentual das importações (Ficha p. 428)

1948 1961Bens de ConsumoFinal (inclui partescomplementares) 17,3 7,4

Combustível e Lubrificantes 13,0 22,7Materiais e Matérias-Primas 30,4 38

Bens de Capitalinclui Partes Complem. 39,3 31,6Bens de Capital excl.Partes Complementares 30,5 30.3

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Na expansão da produção de bens de consumo, nesta fase, predominamos bens de consumo duráveis (eletrodomésticos, automóveis, etc.). A rápidaexpansão da oferta interna destes itens se reflete no comportamento de doissetores excepcionalmente dinâmicos em fins dos anos 50: o de material detransporte, e do material elétrico e de comunicações, que tiveram respectivamente aumentos de 700% e 377% no período de 1955 a 1961 (A.D. ficha p. 434). Neste mesmo período, eleva-se em cerca de 40% apenas a produçãode tecidos, alimentos e bebidas (Ficha p. 433). Entre estes dois extremos,temos indústrias como a química e farmacêutica, e a indústria metalúrgica,com crescimentos, respectivamente, de 105,3 e 67% (Ficha p. 434). A produção de aço, por outro lado, mais do que triplica durante a década de 50.(Ficha p. 435). Do mesmo modo, há um progresso sensível da produção de petróleo: a produção em 1.000 barris passa de 4.059 em 1956 para 29.613em 1960 (F. Lima, p. 390). Em conseqüência, a participação das impor

tações na oferta interna de combustíveis líquidos decai de 100% para 31% de1954 para 1960; neste caso, como se vê, a substituição real é mascarada pelocrescimento da importância relativa do item na pauta de importações.

As transformações acorridas durante este último período do processode substituição de importações permitem opor os ramos de produção quetiveram um crescimento mais acelerado, tendendo a absorver uma parcelacrescente da demanda interna, que são indústriasdinâmicas, às indústriastradicionais, que, tendo completado o processo substitutivo, passam a crescernum ritmo mais moderado, que corresponde à expansão do mercado internode seus respectivos produtos. Entre estas últimas, denominadasvegetativas, as primeiras, situa-se um grupo de indústriasintermédias (transformação deminerais não-metálicos, papel, borracha). Durante a década de 50, a estruturada produção industrial alterou-se profundamente, modificando a participaçãorelativa destes três grupos de indústrias. Seguindo a classificação do trabalhode M. C. Tavares: de 1949 a 1961, a participação das indústrias dinâmicas no

produto industrial sobe de 22 a 41%, enquanto as vegetativas caem de 70 para49%. As intermédias, por sua vez, tem sua participação modificada de8 para10%. (Ficha p. 432).

Depois de três decênios de acelerado crescimento no setor industrial,(durante as quais a produção industrial multiplicou-se por10) em princí pios da década de 60 a substituição de importações de bens de consumo realizou-se de forma intégral; em 1961 o valor desta categoria de bens adquiridos no exterior corresponde a menos de 1% do consumo interno total. Nestamesma data, a importação de bens de capital está ao nível de 19% do investimento bruto fixo. O coeficiente geral de importações da economia, que era de11% em 1929, encontra-se reduzido a 7%. A partir de então, ocorre umsensível declínio da taxa de crescimento. Esta perda de dinamismo do sistemaaparte os fatores conjunturais que contribuem para agravá-la, pode ser atri

buída, basicamente, ao esgotamento dos estímulos derivados do processo desubstituição de importações.

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O prosseguimento do processo substitutivo implicaria, nestas circunstâncias, que se desenvolvessem com maior intensidade as indústrias de bens decapital, como por exemplo, a indústria mecânica, cuja participação na ofertainterna total estava por volta de apenas 53,7% em 1961. Mas como são setoresde atividade exigindo volumosos investimentos e de elevada relação capital- produto, a manutenção de uma mesma taxa de investimento orientada nestadireção envolveria necessariamente, a curto prazo, um declínio da taxa decrescimento (Auge, p. 144). Quanto a este ponto, a explicação de MariaConceição Tavares coincide com a oferecida por Celso Furtado emSubdesenvolvimento e Estagnação na América Latina. Mas M. C. Tavares estáinteressada, principalmente, em averiguar sob que impulsos dinâmicos poderiam ter lugar tais investimentos. A desaceleração tem sua raiz imediata nanão realização deste tipo de investimento, ou no fato de que eles não sãosustentados a um nível satisfatório.

A diferença entre as duas abordagens da crise dos anos 60, está explicitada na crítica endereçada a Celso Furtado por M. C. Tavares, num trabalhomais recente (Além da Estagnação), onde se dá ênfase (por oposição à quedada relação produto/capital, invocada por Furtado) aos problemas da demanda, incluindo aí, a retração do investimento público e privado.

Os bens de capital são bens de demanda derivada, “cuja substituiçãonão se justifica por si mesma” (Auge, p. 149).

“De onde previrá a demanda que incita a realizar esta substituição?

Como se viu, a expansão das indústrias mais dinâmicas de bensde consumo perdeu sua aceleração inicial (uma vez esgotada a reserva demercado) e chegou ao ponto no qual seu crescimento tenderá a girar emtomo da taxa de crescimento da renda. Trata-se, ademais, de indústriasnovas, cuja demanda de reposição de bens de capital não se fará sentir acurto prazo” (Auge, p. 149).A hipótese suscita espontaneamente uma outra: a demanda de reposição

de equipamentos far-se-á sentir novamente, como toda probabilidade, dezanos mais tarde; este deve ser um elemento significativo na recuperação daeconomia que se observa pouco antes de 1970, esta seria parcialmente um“eco” do auge de 1960. Note-se a relação entre a hipótese sugerida e a antiga teoria marxista do ciclo decenal, baseada nas oscilações da demanda dereposições dos equipamentos desgastados.

Mas, Maria Conceição Tavares ocupa-se, no momento, do problema imediato, o declínio da taxa de crescimento inscrito na dinâmica do modelo, umavez que esta se completa. Segundo ela, somente uma demanda autônoma de

bens de capital pode manter o dinamismo do sistema, forçando a continuidade do processo de substituição. Mas a intervenção governamental comofator dinâmico implica numa mutação do modelo:

“O fato de que o investimento autônomo do govemo se traduzana prática numa substituição de importações, não implica numa repro

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dução do antigo modelo. Na realidade, o processo de desenvolvimentoque ocorreria neste período de transição não estaria determinado basicamente pelo estrangulamento externo, mas repousaria principalmente

• no impulso que lhe imprimisse o próprio investimento do governo, de

cujo montante e composição dependeria o ritmo de crescimento a curto prazo, e sobretudo, a orientação do sistema a longo prazo.” (Auge, p. 146)Este texto caracteriza com precisão a diferença entre dois modelos de

desenvolvimento, o que se esgotou por volta de 1964 e o novo modelo quedevolverá o dinamismo ao sistema alguns anos mais tarde. A expressão “industrialização por substituição de importações” não designa apenas um processode expansão industrial que conduz, como resultado, a reduzir a participaçãodas importações na oferta interna, e sim um processo de expansão industrial

que tem seu fator dinâmico no declínio da capacidade de importar e na preexistência de uma demanda antes voltada para o exterior. Não obstante, é preciso, mesmo sem abandonar o elevado nível de abstração em que se ela boram as características gerais do modelo, acrescentar que a intervenção governamental se faz necessária desde o início, quando se desencadeia a crise dosetor exportador. Se não ocorrem outras modalidades de investimento autônomo, é a aquisição pelo Governo, dos estoques de mercadorias invendáveis produzidas por aquele setor que sustenta seu nível de renda nas etapas iniciais do processo, permitindo-lhe desviar para a produção interna, a demanda

de bens de consumo antes satisfeita com as importações. No caso concreto daeconomia brasileira, estas medidas de política econômica representam uma primeira forma de “investimento” autônomo por parte do Estado, sem a quala demanda de bens de consumo, gerada pela cafeicultura, simplesmente seesvairia com a crise, ao invés de desviar-se para a indústria nacional. Esteaspecto da questão foi posto em destaque pela conhecida análise feita porCelso Furtado, a respeito dos momentos iniciais do processo de industrialização após 1929. A complexidade do processo não aparece em abordagensanteriores, como a de Caio Prado Junior, que se limita a observar que o

declínio das exportações, restringindo o poder de compra do país no exterior,tenha a reorientar a demanda para a indústria local. “O consumo do paíssofreu assim grande destaque, o que naturalmente estimulará a produçãointerna (p. 292). O que é posto implicitamente em questão pelo estudo deCelso Furtado, é estenaturalmente, o caráter aparentemente espontâneo do

processo. Ao expor os mecanismos da anterior expansão, baseado no sistemaagroexportador, Furtado explica que a expansão da exportação, gerando umincremento inicial de renda, tinha efeitos multiplicadores sobre a produçãointerna. Esta abordagem põe como problemático o processo subseqüente, de

reorientação de demanda de importações sobre a produção interna, que éapresentada por Celso Furtado comonatural. Esta só pode se dar através daaquisição dos estoques de café invendáveis, por parte do Estado, sustentandoo nível de renda monetária no setor exportador e garantindo com isto a

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preservação de uma demanda de bens de consumo que beneficia a indústrianacional, em vez de dissipar-se com a crise. (v. Formação Econômica p. 19).Sob este aspectò, a sustentação da demanda mediante a intervenção governamental, necessária no momento de esgotamento do modelo, apenasreproduz

as características de sua expansão inicial. Por outro lado, sabe-se da importância do investimento estatal na última fase (e a mais dinâmica) de vigênciado modelo, no último qüinqüênio da década de 50 Neste momento, o dis

pêndio governamental se orienta em parte para assegurar o fornecimento deinsumos básicos para o setor privado da economia (energia elétrica, aço, petróleo), mas também grande parte deste dispêndio tem um caráter “perdulário” cujo único efeito positivo, para o conjunto do sistema em expansão,está na ativação da demanda global; nesta última categoria inclui-se a construção de Brasília e o retomo dos subsídios ao setor cafeeiro, novamente

atingido pela crise de origem externa. Deste modo, cabe reconhecer que tam bém aqui a “nova etapa” já inicia, de fato, no interior da antiga. É aindadurante a vigência do modelo de “substituição de importações” que se podedizer que a “demanda prévia” de bens de consumo, que se orienta para aexpansão das indústrias dinâmicas é, em grande parte, criada e sustentada

pela participação do Estado no conjunto dos investimentos.Para que se possa, situar corretamente os obstáculos potenciais que o

sistema enfrenta no que tange às deficiências da procura, é preciso indicarsuas características estruturais. Deste ponto de vista, o fator que tem o maior peso determinante se encontra no tipo de tecnologia adotada no setor secundário. Desenvolvendo-se no quadro de uma economia capitalista dependente eretardatária, a indústria brasileira no esforço de equiparar-se em eficiência àsconcorrentes externas cuja produção substituía, tendeu a assimilar técnicas de produção mais ou menos contemporâneas às empregadas nas economias centrais. Isto sucedia tanto mais naturalmente porquanto a tecnologia em questão se encontrava materializada nos próprios equipamentos que ela era obrigada a adquirir no exterior para garantir sua expansão. Em conseqüência,difunde-se no setor industrial, o uso de elevado volume de capital fixo porhomem empregado, o que faz com que o crescimento acelerado deste setortenha um efeito relativamente moderado na criação de empregos. Os volumosos contingentes de mão-de-obra de que dispõe uma economia subdesenvolvida como a brasileira, afluindo às cidades em busca de melhores condiçõesde trabalho, não são absorvidos pela indústria, ficando bloqueados no amplosetor terciário urbano, onde abundam atividades tecnicamente primitivas e de baixa rentabilidade. Por outro lado, a tecnologia moderna empregada na indústria, ou a elevada composição orgânica do capital industrial, fazem comque a remuneração de capital apareça como a parte de leão do valor produzido no setor, em comparação com a fração correspondente aos salários,que são deprimidos em virtude do excesso da oferta de mão-de-obra. Estascondições atuam no sentido de produzir uma extrema desigualdade na distri buição da renda, da qual são beneficiários a classe proprietária (urbana e

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rural) e massa dos especialistas (tánicos, administradores, profissionais liberais) que não efetuam trabalho manual e participam da apropriação do excedente produzido pela classe trabalhadora. Estas desigualdades se refletem poroutro lado na composição da demanda de artigos de consumo; à medida em

que a renda se eleva e é açambarcada quase integralmente por uma minoria privilegiada da população, ganha um peso crescente a procura de bens deconsumo duráveis enquanto os bem não-duráveis, de consumo popular, têmseu mercado aumentado apenas a ritmo aproximado ao do crescimento da população urbana. Os consumidores de alta renda exigem, por outro lado, adiversificação crescente de seus gastos de consumo, à medida em que suarenda se expande; os ramos de produção mais dinâmicos passam a ser aquelesque suprem tais exigências, renovando, num processo de sofisticação crescente, os modelos de seus produtos. Numa etapa do crescimento em que a gran

de maioria da população, destituída de poder de compra, não alcançou satisfazer ainda suas necessidades essenciais, a produção de bens de consumo ex pande-se verticalmente, e a criação de artigos de luxo novos (real ou aparentemente) se transforma numa necessidade estratégica para evitar o declínio da propensão a consumir dos grupos privilegiados. Este padrão de desenvolvimento, por outro lado, incentiva, o afã de modernização da indústria; os bens de consumo mais atraentes, típicos do capitalismo desenvolvido, que aindústria nacional deve por à disposição de sua clientela, somente podem serfabricados com as técnicas mais avançadas importadas do centro, e, com

freqüência, pelas próprias filiais de empresas estrangeiras instaladas no país.Perpetua-se, deste modo, a falta de dinamismo do setor industrial na criaçãode empregos. Há uma causação circular segundo a qual se reforçam mutuamente os processos de incorporação de tecnologia mòdema, a concentraçãoda renda e a diversificação e o requinte crescentes da oferta de bens deconsumo.

Estas observações resumem a natureza dos impasses do capitalismo periférico. Existem fortes obstáculos estruturais ao crescimentohorizontal domercado, através da incorporação de uma massa crescente de indivíduos ao

setor mais moderno da economia, o que permitiria à indústria expandir-seatravés da ampliação da produção num número limitado de itens de artigos deconsumo de uso corrente. O aumento do número de indivíduos integrados nomercado moderno não é expressivo; a renda cresce quase inteiramente nointerior de um círculo já limitado que dificilmente ultrapassa um quinto da população. Malgrado o baixo nível de renda per capita que se constata ao selevar em conta apenas a média nacional, deve manifestar-se de forma precoceuma tendência ao subconsumo; o sistema precisa providenciar para que osacréscimos da renda individual no estrato privilegiado sejam prontamente

canalizados para a aquisição de novos tipos de produtos (televisão a cores,novos modelos de automóveis, etc.) Caso contrário, o declínio imediato na propensão a consumir provocaria o surgimento de excedente não absorvido na produção, que se expande a um ritmo regular.

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A tendência à insuficiência da demanda global característica do capitalismo maduro se manifesta já, ainda que modestamente, na importância quetem para o sistema o investimento estatal, sob a forma, por exemplo, daconstrução rodoviária em regiões distantes do país. Ainda que tais empreendimentos ocupem uma fração relativamente pequena do produto nacional, (omesmo não é verdade no que se refere à relação global entre o gasto público eo BNB) concorrem a seu modo paracompletar a demanda global e sustentar o pleno emprego no setor moderno da economia. Desta perspectiva, a tendênciaa estagnação que se esboça no início dos anos 60 não é um fenômeno temporário mas uma característica permanente do sistema, e o investimento estatalse impõe não apenas como medida de curto prazo, mas para garantir permanentemente a manutenção do crescimento.

Num ensaio intitulado Agricultura e Desenvolvimento no Brasil, Antonio Castro procura identificar as raízes do caráter excludente do desenvolvimento industrial no próprio universo agroexportador no interior do qualele se inicia. Com este fim, contrapõe dois tipos teóricos de modelo agroexportador, procurando definir as diferenças que suas características im primem nos subseqüentes processos de industrialização.

O primeiro caso é o de agricultura de alimentos para exportação, mas baseada na pequena propriedade familiar e altamente produtiva. A medida emque se expande o setor urbano da economia, este é estimulado a atender umademanda ampla e pouco diversificada, restrita a alguns artigos de consumo deuso universal. As melhores condições de vida no campo fazem com que osagricultores só emigrem para a cidade se efetivamente conseguirem nela melhores condições de vida, o que impede a inundação do mercado urbano demão-de-obra por contingentes excessivos de trabalhadores miseráveis. As tendências a concentração da renda são evitadas, por outro lado, pelas pequenasdimensões das unidades produtivas; as fábricas, produtoras de bens de consumo simples, são montadas com pequenos capitais e geridas por um grandenúmero de pequenos proprietários, (p. 141).

Outras são as condições em que se processa o desenvolvimento industrial quando o quadro da economia agrária, inicialmente, é o da grande lavoura exportadora, “movida originariamente” pelo trabalho escravo e, aseguir, pelo ex-escravo em situação econômica pouco melhorada.. . ” (p. 142).O mercado interno de produtos industriais está dissociado. Os trabalhadoresconsomem um mínimo de artigos essenciais, e a concentração da renda nasmãos da classe proprietária cria um mercado significativo de bens de consumo“de qualidade”. Quando se desencadeia, na cidade, o desenvolvimento daindústria.

“Na medida do possível, (a indústria) deverá buscar na permanente diversificação de seus produtos, o mercado que não encontra no poder aquisitivo das massas. O homem do campo emigra para as cidadesem busca de quaisquer oportunidades que possam livrá-lo das indizíveiscondições imperantes no meio rural. Obviamente, o trabalhador rural

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não traz consigo economias ou mesmo habilidades que lhe permitamconstituir um negócio próprio, o que aponta no sentido de maior concentração da propriedade industrial. Não sendo a emigração rural detida pela sa turação de mercado urbano de trabalh o, tendem a reproduzir-senas cidades os padrões de miséria originários do campo. Conseqüentemente, a camada de mais baixas rendas é, por toda parte, mantida praticamente fora do mercado de produtos industrializados, e queconfirma a diversificação como saída para o desenvolvimento manufa-tureiro. Esta tendência, acarretando a adoção de formas tecnológicas decomplexidade crescente, estimula a monopolização precoce e favorece oavanço das empresas internacionais. As disparidades distributivas, o caráter excludente, etc., do universo rural estariam, como vemos, tendendo a reproduzir-se no próprio processo de industrialização.” (Agricultura e Desenvolvimento no Brasil, em 7 ensaios sobre a economia

brasileira, p. 142,3).“A industrialização, na medida em que superava os traços maisevidentes de nosso statu s colonial, era considerada a própria negação detudo aquilo que o fundamentava; mais precisamente, deveria entrar emchoque e definitivamente suplantar as características maiores de sua base in te rna — o universo rural. O que se depreende de nossa análise éque, muito pelo contrário, o setor agrícola projetou sua imagem sobre omundo u rbano industrial.” (p. 144).Há um nível de generalidade no qual é preciso reconhecer de imediato a

legitimidade da tese de Castro. Se os parâmetros estruturais da velha economia agrária se reproduzem no interior da economia urbano-industrial, é porque o desenvolvimento des ta últim a representa apenas uma nova etapa docapitalismo brasileiro; a desigualdade fundamental implicada nas relações ca pitalistas de produção não se modifica quando o pólo dinâm ico do desenvolvimento se desloca do campo para a cidade. É significativo que Castro confronte o modelo correspondente ao caso brasileiro com a hipótese da indústria nascendo no interior da agricultura de pequena propriedade, isto é, desenvolvendo-se no quadro prévio da produção simples de mercadorias. Quando,ao contrário, a agricultura de exportação está organizada em moldes capitalistas, o trabalhador agrícola está destituído da propriedade dos meios de produção. O fato de que a grande massa destes trabalhadores, ao em igrarem para as cidades, não tènha acesso à propriedade das fábricas e oficinas significa apenas a re produção histórica das relações capitalistas de produção, queopõem ao proprietário do capital o trabalhador destituído de propriedade ecompelido a vender, no mercado, sua força de trabalho; sabe-se que o funcionam ento da econom ia capitalista perpetua incessantemente a existência destesdois personagens sociais antagônicos.

Mas Castro pretende dizer mais do que isto. Existe, antes de mais nada,

um aspecto quantitativo em sua tese que precisa ser julgado empiricamente.Segundo ele, o poder aquisitivo dos trabalhadores agrícolas seria tão reduzido

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novas condições para intensificar a importação de bens de capital. Em conseqüência, na década de 50, apenas um ramo industrial, a metalurgia, criouempregos a uma taxa superior ao crescimento demográfico (Auge, p. 140).Ocorreu uma diminuição absoluta do número de empregos na indústria quí

mica e mesmo em indústrias “tradicionais” como a têxtil, a de artigos demadeira e produtos alimentícios. As próprias indústrias tradicionaiscontribuem, portanto (ao lado da sofisticação tecnológica inerente às indústrias dinâmicas) para desfalcar o mercado popular que as sustenta. Durante adécada de 50, mantém-se estacionária, ao nível de 13%, a participação dosetor secundário no total da população economicamente ativa. Neste mesmo período, a concentração da renda faz sentir, finalmente, os seus efeitos sobreo perfil da demanda, incentivando o crescimento mais acelerado das indústriasde bens de. consumo duráveis (eletrodomésticos, automóveis, etc.).

Luciano Martins distingue igualmente duas fases no processo recente deindustrialização, com características distintas no que se refere à generalizaçãodos benefícios do desenvolvimento:

“Na primeira fase da industrialização, entretanto, a introduçãodestes padrões não é ainda de molde a economicamente produzir aslimitações que mais tarde irá acarretar. O tipo de tecnologia empregada, por exemplo, ainda é preponderantemente de caráterlabor intensivo (...) Nesta etapa, portanto, em que predominam as indústrias hoje geralmente designadas como “tradicionais” (tecidos, alimentos, etc), incor- poram-se novas camadas ao processo económico e amplia-se a área decirculação da riqueza.” (Industrialização, Burguesia Nacional e Desenvolvimento, p. 50).

“É na etapa seguinte da substituição de importações que começam a se fazer sentir os efeitos regressivos, na medida em que eles secombinam a outras circunstâncias que trabalham na mesma direção.

Tal etapa se caracteriza pela diversificação da estrutura industrial,nos termos da dinâmica que é própria ao processo de substituição. Essa

diversificação implica no emprego de recursos tecnológicos cada vezmenos absorvedores de mão-de-obra, e que serão tanto mais difundidosquanto maior for o transplante para o país de empresas subsidiárias do“capitalismo central”... A circunstância anteriormente mencionada,aliada ao fenômeno da urbanização acelerada e do êxodo rural, atua nosentido de uma compressão do montante relativo de salários urbanos narenda gerada pela indústria, com as conseqüêntes repercussões sobre acapacidade de consumo da população empregada no conjunto de atividades ligadas à produção local,...” (p. 51).

Esta tese representa o corolário mais radical da noção segundo a quá aindustrialização por substituição de importações se efetua sob o impulso deuma demanda previamente formada pela anterior expansão primário-exportadora. Naturalmente, nenhum economista pode interpretar literal

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mente a idéia de uma preexistência da demanda ou da “reserva de mercado”garantida à produção industrial. Em cada momento de um processo de crescimento, a demanda e a oferta surgem simultaneamente; é a própria expansãoda oferta, na medida em que supõe necessariamente o recebimento de salários

e lucros incrementados por parte dos agentes da produção, que contribui parasuscitar a demanda adicional capaz de absorvê-la. Desta maneira, é a demandaatual do setor exportador, na medida que este preserva mesmo durante o período de crise seu peso dominante no sistema, que condiciona a evoluçãoda produção industrial.

Segundo a tese de Castro, a agricultura exportadora teria desempenhando a função de “matriz” estrutural do posterior desenvolvimento industrial; a demanda de renda concentrada originária daquele setor teria im pelido a indústria no sentido da produção prematura de bens de consumo

sofisticados através do emprego de tecnologia não absorvedora de mão-de-obra. Desta forma, a excludência social e as extremas desigualdades na distri buição da renda teriam se transmitido ao novo setor urbano em expansão.

Ora, a tese de Castro mostra-se indefensável se compreendermosdesta maneira o papel determinante da composição da procura pré-industrial, pois este deveria fazer-se sentir predominantemente nas etapas iniciais do processo, quando aquele setor contribui ainda com uma parcela significativado produto nacional. Não é o que ocorre, no entanto; na década de 50,quando começam a manifestar-se as características excludentes do processo

de desenvolvimento industrial, grande parte da demanda de produtos manufaturados já provêm do próprio setor industrial, que está em vias de ultrapassara agricultura no que se refere ao valor de sua produção. Por outro lado,deve-se considerar que as tendências à concentração da renda operam commuito maior intensidade no setor secundário; o uso de uma dose maior de“capital” por homem empregado eleva a “produtividade em valor da força detrabalho, permitindo que se estabeleça, entre os salários e as rendas da pro

priedade, uma diferença superior à que é possível na agricultura. Desta forma, pode-se dizer que mesmo na etapa inicial, quando a agricultura ainda é domi

nante no sistema, é no seio do próprio setor industrial que se estão gestandocom todo o vigor as desigualdades da repartição que servirão de base para aexpansão da indústria de artigos de luxo nos anos 50. É o caráter excludentedo processo de desenvolvimento industrial não deve ser compreendido comoum vício de origem, pela influência deformadora da velha agricultura deexportação. Ele tem suas raízes na naturezadependente capitalista da economia brasileira. Sua inserção como subsistema periférico e retardatário naordem capitalista internacional está na base do uso difundido de tecnologiainadequada às disponibilidades internas de força de trabalho. Mas são as re

lações de produção capitalistas vigentes no interior do sistema que possi bilitam as repercussões deste fato na distribuição da renda: como o valor daforça de trabalho é determinado no mercado, o excesso relativo de sua ofertafaz com que se deprima ao mínimo necessário, o nível de renda das grandes

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massas. Não é preciso invocar outros determinantes fundamentais para com preender o “círculo vicioso da riqueza” típico do capitalismo periférico.

Há quase dez anos atrás os teóricos de esquerda apontavam na estruturalatifundiária de agricultura um dos obstáculos maiores ao prosseguimento da

expansão industrial e à generalização de seus benefícios. O atraso tecnológicoe a subutilização das terras eram responsabilizados pelas deficiências do abastecimento de alimentos e de matérias-primas necessários à economia urbana. Poroutro lado, segundo esta concepção da produção de autoconsumo, as formasnão-monetárias de remuneração e o nível de vida extremamente baixo doscamponeses privariam a indústria do mercado de massas potencial de que ela precisava para continuar a crescer. Era sobretudo para a agricultura, dita pré-capitalista. que se voltava o clamor da crítica social, nela localizando de bom grado a raiz de todos os impasses e iniquidades do desenvolvimento. Istoocultava, decerto, um parti-pris reformista, uma visão conscientemente ouinconscientemente apologética do capitalismo urbano. Antonio Castro contribuiu com seu ensaio Agricultura e Desenvolvimento no Brasil para desmistificar esta visão. Mostrou, por um lado, que a produção agrícola não seexpandia com maior velocidade porque ela própria carecia de mercados: a pauperização das massas nas cidades desfalcava a demanda urbana de alimentos. E por outro, permitiu compreender que o mercado de massas abertono campo pela reforma agrária, se esta fosse levado a cabo, só beneficiaria ossetores mais tradicionais da indústria; os ramos de vanguarda já tinham seorientado para um mercado de altas rendas que seria torpedeado pelo redistri- butivismo da reforma. Deste modo, Castro estabeleceu a proposição de quefunções clássicas atribuídas à agricultura, como liberação de mão-de-obra,abastecimento urbano e criação de mercados, teriam se tornado relativamentesupérfluas pela própria estrutura deformada do capitalismo industrial.

Mas ao propor que estas deformações dever-se-iam a uma marca de nascença, ao preferir uma explicação pela origem à explicação estrutural, que predomina no conjunto de sua obra, Castro estabeleceu inadvertidamente,um último compromisso com as representações ideológicas, que ajudou a su perar3 3

33 - Trabalho não terminado , nem revisto pelo autor.

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