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ENSAIOS QUENTES CHARLES ODEVAN XAVIER 1

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ENSAIOS

QUENTES

CHARLES ODEVAN XAVIER

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Dedicado à Odete Xavier

E aos anarco-punks dos squatts do Ceará, Rio Grande do Norte, Rio de

Janeiro e Rio Grande do Sul.

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Agradecimentos:

A Ana Durcila, pela paciência e pelos suportes financeiros.A Maria de Fátima Geraldo Sobrinho pelo suporte financeiro.A Rosangela Barroso Oliveira pela força e pelos toques.Ao Alexandre K-lango, Ziane e João Felipe pelo companhia nos momentos de angustia.

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CHARLES ODEVAN XAVIERNasceu em Fortaleza – Ceará e mora no subúrbio da capital cearense.É graduado em Letras pela UFC e foi matriculado no Mestrado em Literatura Brasileira pela UFC, o qual abandonou por não conseguir bolsa da CAPES nem da FUNCAP, provando que a Universidade Pública ainda é para os poderososProfessor desempregado, prefere ministrar Oficinas de Video-poesia ou de Afro-religiosidade em comunidades carentes e pro terceiro setor, desde que não tenha de cumprir jornadas extenuantes de trabalho.Poeta, contista, ensaísta, oficineiro, blogueiro, videomaker; quer viver de Literatura ou ensaísmo cultural.Possui página de curtas-metragens no www.youtube.com/charlesodevanE possui dois sites de crítica cultural e criação poética: www.florfutura.jex.com.br e www.charlesodevanxavier-escritas.blogspot.com

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ÍNDICEDedicatóriaAgradecimentosDados do AutorNordeste (Des)figuradoNordestinos talhados em madeira e barroFotografias do NordesteA Arte Pós-modernaO Cinema Alucinado de Glauber Rocha

Biblioteca e Cânone de UmbandaConcepção de Deus em Diversos Pontos de Vista FilosóficosDorival Caymmi e a afro-religiosidadeOs Vissungos, Clementina de Jesus e um pouco de Filologia NegraO samba ‘macho-man’ de Roberto SilvaA Carta do Povo de Terreiros à Dilma CandidataO Problema do Destino na Ciência, na Cultura Iorubá e na AstrologiaEtnografia da Sala de Bate-papo de CandombléO Problema Queer, O Fim do Sistema de Gêneros, SexualidadesFiguração e identidades pós-modernas no Estorvo de Chico BuarqueNovos proletários, Toyotismo e RebeliãoA Revolta LudditaAlta voltagem lírica de João Gilberto NollDossiê Guy DebordEtnografia de um Disque Amizade GLSHomenagem Mal Feita a Tom ZéCrítica ao 59º Salão de Abril no Terminal do SiqueiraA Padaria Espiritual Segundo Gleudson PassosKarl Marx: Dobradiça, Esquizofrenia ou Polifonia?O Ocultismo segundo Fernando PessoaEscrita de Culhões: uma literatura mal educadaO corpo grita e pulsa: a obra da coreógrafa Sílvia MouraProcura da Poesia: uma anti-receita de fazer poemaO Sertão Polifônico de Euclides da CunhaContratos de LeituraA Literatura FuturistaO Choque Cultural em O Mandarim de Eça de QueirósMobilidade e Identidade em O Cortiço

O Metapoema em Drummond

Luzia-homem: Abordagem de GêneroProvérbios do Inferno: A perversão em William BlakePaúlismo, Homoerotismo e Metatextualidade em Sá-CarneiroEstratégias de Legitimação em Livros de Umbanda

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Bibliografia

NORDESTE (DES)FIGURADOEste texto pretende analisar a Exposição "Nordeste: Fronteiras, fluxos e personas"

em cartaz no Centro Cultural Banco do Nordeste de 03 de Fevereiro a 15 de Março

de 2005.

A exposição tem curadoria de Luiza Interlenghi, reúne trabalhos em desenho, fotografia, têmpera, objeto, xilogravura, instalação e multimídia e artistas como: Rosana Ricalde, Martinho Patrício, Leonilson, Antonio Dias, Hilal Sami Hilal, Gil Vicente, José Rufino, Grupo Rasura, Nazareno, Euzébio Slocowick, Caetano Dias, Luiz Hermano, Marcone Moreira, Tunga e Transição Listrada.Para efetuarmos a nossa investigação, nos valemos das legendas expostas ao lado dos trabalhos apresentados e da breve sinopse acerca da exposição presente no folder "Agenda Cultural" do mês de Fevereiro do corrente ano.Foi interessante perceber nesta exposição, uma necessidade que os museus e galerias de equipamentos públicos como o Banco do Nordeste têm de explicar ao público as obras de expostos. As instituições (Museu de Arte Contemporânea, Memorial da Cultura Cearense etc.) utilizam uma gama de recursos para, no entender deles, tornar os trabalhos mais "digeríveis" pelo público. Deste modo, temos nossa contemplação e fruição da obra interrompida por monitores chatos que "irão explicar" (sim, é esse o verbo utilizado) a obra contemplada; como se não bastasse, as legendas impressas que esgotam as obras que comentam ao seu lado. Ou seja, o público contribuinte, que financia estes eventos com seus impostos, é burro.Esta constatação serve de mote para entender a arte contemporânea e a exposição citada propriamente dita.O mote da exposição, que Luiza Interlenghi fez curadoria, é a ausência de mote da arte contemporânea. Ainda que as prolíficas legendas e sinopses assegurem de uma intenção enunciativa ou de uma unidade discursiva comum aos trabalhos apresentados; o folder fala em "mapeamento do modo como os fluxos culturais questionam limites territoriais e reúne obras de artistas, com passagem pelo Nordeste, que transitam ou se fixaram em diferentes estados: CE, PE, PB, AL, MA, ES, RJ e SP".Ou seja, o que se intui de uma varredura é a própria perplexidade do artista contemporâneo, seja nordestino ou não.Esta perplexidade se traduz pictoricamente em desespero, cinismo e humor. Assim, no vídeo "Quimera" (2004) de Tunga realizado em super 16, temos o lado mais sombrio da exposição; em que imagens desconexas, fragmentadas, desfocadas de gatos "pé-duro" (ou "vira-latas" no dizer do leitor do Sudeste) sem valor, superpostas ou justapostas à imagem de um rosto masculino fazendo a barba,

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embalados numa trilha-sonora angustiante de ruídos captados em ruas de cidade grande, rosnar de gatos, berimbaus, escola de samba, automóveis, fraseados de teclado psicodélicos etc. Não vemos o homem que faz a barba por inteiro (não há plano americano), o mesmo comparece no vídeo em closes labirínticos, fiapos furtivos e sobreposições de manchas de luz saturada. Tudo a sugerir o sujeito contemporâneo sem corpo, sem identidade, sem propósito, sem utopia, perdido num tumulto de estímulos visuais e sonoros fugazes e poluidores das grandes metrópoles.Entretanto, eu sei disso porque fiquei até o final dos 16 minutos da projeção, enquanto o público ansioso e impaciente não se permitia a ficar três minutos na sala. O que sinaliza o espectador frívolo da pós-modernidade: superficial e desejante de imagens cada vez mais frenéticas, que na expectativa de consumir o máximo de imagens possíveis acaba sendo consumido por elas, como diria Guy Debord (A Sociedade do Espetáculo).Contudo, se a intenção de Tunga é angustiar, o mesmo não ocorre com o vídeo-instalação do grupo "Transição Listrada"; em que vemos monitores de TV colocados sobre escadas-cavaletes, exibindo um vídeo feito pelo grupo que consiste em pequenas seqüências de membros que chegam em diversos muros da cidade com a escada debaixo do braço, abrem-na e sobem nela para ver o que há do outro lado do muro.À medida que o tempo passa, a mesma "cena" se repete diversas vezes, mudando os "atores" e os "cenários" filmados "ad nauseam".O minimalismo permutacional do empreendimento dos rapazes faz lembrar o cinzento "Koyani.qaa.tsi", que o minimalista Phillip Glass musicou na década de 80, mas o tom é outro: é leve e engraçado, até pela ausência de áudio. Lá pelas tantas percebemos que as escadas do vídeo são as mesmas que sustentam os monitores de TV. Configurando um divertido jogo metonímico auto-referencial.Assim como os personagens que sobem na escada para ver o que há do outro lado do muro, são interceptados por uma nova seqüência; o espectador de arte contemporânea também não consegue fechar as inúmeras "gestalts" abertas por jornais, revistas e outdoors lidos a esmo no vertiginoso "habitat" urbano.Da leve esterilidade do vídeo-instalação do "Transição Listrada", vamos para o vídeo-instalação "Piquenique" do grupo Rasura. Nela um ambiente simula um piquenique no meio do mato. Em cima de uma toalha branca é projetado um recipiente "tupperweare" de comida que vai desaparecendo. A obra pretende evocar "o tradicional encontro de farofeiros", espécimes que vem desaparecendo com o crescimento urbano e a eventual substituição pelas praças de alimentação dos shoppings.É das obras apresentadas: a mais explicitamente engajada. Engajamento entendido no sentido das "micropolíticas" do cotidiano de Félix Guatarri e Michel Foucault.Mário de Andrade (O Baile das quatro artes) diz que o artista tem de ser, antes de tudo, um artesão. Assim, vemos engenho técnico na obra "Sem título" (2004) de Hilal Sami Hilal que pegou uma chapa de cobre trabalhado com verniz e ácido, compondo um delicado e rendilhado arabesco metálico suspenso no ar, a desafiar a lei da gravidade. O efeito icônico é maravilhoso.Também vale à pena conferir o virtuosismo técnico das minúsculas cadeiras e

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objetos de prata de Nazareno; assim como, as mandalas gigantes, coloridas e vibrantes de plástico e arame de Luiz Hermano.

A plasticidade folclórica típica do Nordeste é retomada e subvertida nas garrafinhas permutacionais de areia colorida de Rosana Ricalde ou nos penduricalhos armoriais das "Ledas" de Marinho Patrício.

O problema colocado na e pela exposição é, como diz Gil Vicente - "Remontagem da Escultura" (98) " nanquim sobre papel, o "embaralhamento" discursivo, a arbitrariedade da arte contemporânea e sua crise de representação; cujo interseccionismo plástico " as monotipias de José Rufino que de longe lembram radiografias de sistemas sanguíneos ou nervosos e de perto sugerem esfinges " é puro sintoma.O artista contemporâneo é obrigado a representar, a fazer uma mimese naturalista pelo público comum, presente na exposição, o qual se queixava de nada "entender". Como se tivesse a obrigação de figurar tudo claramente e sem liquidar a linguagem, quando este mesmo público chega em casa e assiste a uma liquidação da linguagem diária em Programas como Big Brother, Ratinho, sem nada reclamar.São as contradições de nossa época.O Nordeste "retratado" pela exposição, não é o Nordeste estereotipado e clichê da "Central do Brasil" do Walter Salles embalado para ganhar prêmios em Cannes; mas um Nordeste desfigurado pela mundialização do capital, suas tecnologias da informação e pela dissolução de fronteiras territoriais (globalização).O Nordeste "retratado" pela exposição, não é o Nordeste estereotipado e clichê da "Central do Brasil" do Walter Salles embalado para ganhar prêmios em Cannes; mas um Nordeste desfigurado pela mundialização do capital, suas tecnologias da informação e pela dissolução de fronteiras territoriais (globalização).NORDESTINOS TALHADOS EM MADEIRA E BARRO

Este estudo pretende analisar a exposição "Mestres do Artesanato Nordestino" que

está em cartaz no Centro Cultural Banco do Nordeste no período de 01 de Fevereiro

a 30 de Abril de 2005.

A exposição tem curadoria e textos de Jacqueline Medeiros.Este estudo parte de um esforço de minha parte, no sentido da elaboração do que venho nomeando de "Teoria da Plasticidade Nordestina", a qual se instaura no diálogo com a obra do sociólogo francês Pierre Francastel ("A Realidade Figurativa" -2ª edição. São Paulo:Editora Perspectiva, 1993) e a obra do Jornalista e Professor cearense Gilmar de Carvalho - particularmente com os livros "Mestres Santeiros: Retábulos do Ceará" - Fortaleza : Museu do Ceará: Secretaria da Cultura do Estado Ceará, 2004 e "Xilogravura: doze escritos na madeira" - Fortaleza : Museu do Ceará : Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001. Ambas as obras mencionadas fazem parte da Coleção Outras Histórias, coordenada pelo Professor do Curso de História da Universidade Federal do Ceará Francisco Régis Lopes.

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Toda crítica de arte pressupõe o estabelecimento de critérios de aferição da obra examinada e sua relação com as demais da exposição em que está inserida; o diálogo e/ou confronto com o cânone e a tradição acadêmica ou popular tomada em questão.

A exposição é de artesanato e não do que a academia chamou de belas artes. Portanto, é dentro desse território epistemológico, que o mercado editorial de artes convencionou chamar de artes aplicadas ( arquitetura, "design", mobiliário, vestuário, decoração, gastronomia etc.) que devemos considerar as realizações da Família Candido, residente na casa da rua Boa Vista, n° 49, em Juazeiro do Norte -Ceará (a fértil e abençoada região do Cariri) e o seu repertório modelado em barro cozido e inspirado na cultura nordestina: bandas de música, reisados, lapinhas, presépios, romarias, quadrilhas e fases da vida de Pe. Cícero, para citar alguns.

Que tipo de modelos estéticos são postos pelos filhos do mestre Seu Américo em Fazenda Nova - Ceará, quando empregam instrumentos de trabalho como faca, estilete usado para os detalhes de acabamento, tábua de madeira e as mãos firmes e agéis?

Que elementos afetivos e simbólicos estão em jogo, quando a matriarca Dona Maria de Lourdes junto com as filhas sentam no terreiro da casa, como se brincassem feito criança e em jorros de criatividade inventam outros materiais ou reutilizam o que se encontra no seu cotidiano, como os índios cariris feitos de cerâmica que possuem adornos de palha e pena de capote encontrados no munturo do quintal.

A exposição apresenta duas categorias de artistas populares: os consagrados e os anônimos.

Deste modo, vemos uma intencionalidade racionada no rigor geométrico construtivista das esculturas do cearense Zenon Barreto, feitas com materiais ordinários do cotidiano sertanejo: os estribos pretos oxidados e imprestáveis para a cavalaria, precisamente montados, formando composições equilibradas; os chocalhos pretos enferrujados em lances alternados; os pares de lamparinas de flandre estanhado.

Também o "Dom Quixote", feito de sucata de ferro automobilístico pintado de preto pelo cearense Zé Pinto com nítidos traços cubistas e estilizados ou o "Gari" esculpido em ferro comum do potiguar Dimauri, revelam uma seriedade serialista que em nada lembram as vibrantes miniaturas de papelão do cearense Willi de Carvalho, representando carrosséis de parques de diversões com fitas e bandeirinhas coloridas de São João ou as quermesses nas praças dos vilarejos interioranos com seus carros de boi.

O elemento religioso se faz presente na escultura de barro "Artesão encenando (sic) ao menino Jesus o ofício de carpinteiro" do pernambucano Antonio José da Silva; na qual aparece um carpinteiro de cabelos lisos com serrote fazendo tamborete e um

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menino Jesus com um martelo na mão e traços europeus. O panejamento das roupas medievais, a precisão dos traços e a cor marrom fazem a obra parecer de madeira.

Também no "São Francisco" em barro cozido do pernambucano Geminário André da Silva, em que o panejamento do manto e a graciosiade dos pombos sobre seu corpo dão a ilusão da obra também ter sido feita em madeira.

Assim como o "Santuário" em madeira serrada feito pelos artesãos cearenses da Associação Padre Cícero que dosa uma urdidura mourisca, a imponência gótica de suas torres apontadas para o céu e o excesso barrôco do seu verniz. Ou ainda a surpreendente "Nossa Senhora Coração de Maria" esculpida em madeira pelo cearense Expedito B. S., que pintou a santa de uma forma patinada que lembra o bronze.

Entretanto, os artistas populares dentro da diversidade étnica da cultura nordestina, podem mostrar olhares menos devotos sobre os temas e figuras caros ao cristianismo medieval dos santinhos expeditos distribuídos nas novenas feitos em gráficas rápidas ou "lan houses", em sua feição ibérica; como uma "santa ceia" esculpida em relêvo na madeira, cujo os rostos dos apóstolos evocam máscaras africanas ( a obra não tinha legenda, por isso não posso informar ao leitor dados como o título, o autor nem a procedência). Ou os simpáticos "Anjos Cangaceiros" feitos em barro cozido pelo pernambucano José do Carmo. Nos quais vemos um anjo com atabaque, um Corisco alado com viola e um Virgulino alado com acordeão de oito baixos.

Outro percurso temático da exposição, no dizer da semiótica greimasiana, é o dos ofícios populares. Desde o caçador sertanejo esculpido em madeira pelo alagoano Mestre Camilo. O qual apresenta um vestuário típico com chapéu e chinelos de couro, pitando um cigarro de palha, com uma espingarda do lado e um "veado" morto empendurrado no ombro; tem traços caboclos (mestiço de ameríndio e caucasiano); aquele cansaço e desolamento característico do sol do semi-árido que envelhece os trabalhadores rurais antes do tempo.

A "Florista" feita em estôpa pela paraibana Espedita da Costa Medeiros; o "Tocador de flauta" feito em cerâmica por um artesão cearense desconhecido ou a "Rendeira" velha fumando cachimbo e sentada com uma almofada de bilro feita em barro cozido por um artesão desconhecido do Rio Grande do Norte e a diversidade de materiais e técnicas empregados sugere às autoridades competentes das inúmeras possibilidades de geração de emprego e renda, num contexto geográfico marcado pela sazonalidade das chuvas, por técnicas agropecuárias predatórias e pelo advento da lucrativa indústria do lazer e do entretenimento - vide Hollywood - na era da Informação.

Se os orgãos governamentais - de economia mista - e a iniciativa privada se juntassem e discutissem com seriedade e responsabilidade pública; cenas esculpidas

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em barro cru pelo sergipano José Freitas ("Retirantes") onde meninos negros, buchudos, raquíticos e de pés-descalços carregam balaios, cestos de palha, lenha e potes desfigurados (pés e mãos enormes e grotescas)pelo cansaço e fome, seriam apenas uma deformação estética de fundo estilístico e não o que são na dura realidade nordestina: um caso de polícia.

A quantidade de vezes em que intrumentos musicais são apresentados na exposição das mais diversas formas - matracas de madeira do maranhense Pedro Piauí; a banda cabaçal talhada em madeira colorida pelo cearense Diomar da Associação Padre Cícero sugerem que essa poderia ser a saída para a geração de emprego na região, através do incentivo às bandas e fanfarras municipais, no aperfeiçoamento de maestros e regentes mais experientes e a formação continuada de músicos aprendizes. Seria muito bom que as políticas públicas de cultura contassem com a parceria da milionária indústria fonográfica.

Se vivêssemos num país sério, artistas como a alagoana Rita Aparecida Rosendo poderia continuar talhando em madeira seus gatos do mato - que de tão bem feitos - só faltam avançar na jugular de quem se abaixa para vê-los na vitrine. Ela receberia uma bolsa de algum CDL para aperfeiçoar e ensinar o que sabe para os adolescentes do seu quarteirão no ateliê comprado pelas milionárias e predatórias madeireiras do Pará.

O terceiro milênio apresenta um desafio para as universidades públicas ou particulares: como aproveitar o tempo livre compulsório do desemprego estrutural e os humores incostantes da economia informal e do sub-emprego?FOTOGRAFIAS DO NORDESTE

Este estudo pretende analisar a exposição "Poéticas Urbanas", que está em cartaz

no Centro Cultural Banco do Nordeste de Fortaleza, do dia 22 de Março ao dia 7 de

Maio de 2005.

A exposição tem curadoria de Solon Ribeiro e tem como artistas participantes: Roberto Galvão, Márcio Lima e Ticiano Monteiro. Reúne fotografias e projeções em vídeo e película.A nossa análise conta com a sinopse da exposição, divulgada na agenda cultural do Mês de Março; como também se vale das legendas de Solon Ribeiro, expostas ao lado das obras.O nosso estudo dialoga com a teoria fotográfica de Ivan Lima do livro "A fotografia é a sua linguagem" - 2ª edição - Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.A obra "Do caos à luz" de Roberto Galvão compõe-se de uma série de fotografias, cujo objeto de descrição é a arquitetura de Fortaleza. Como também faz parte da composição, um vídeo com imagens da mesma arquitetura. Entretanto, no dia em que fomos fazer a resenha da exposição, o monitor de TV tinha sido tirado por problemas técnicos. Assim, nossa análise recairá apenas sobre os fotogramas estáticos.Como cada parte isolada da obra não foi nomeada, iremos fornecer algumas pistas

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para a identificação do leitor.A obra começa na parede externa, em que vemos uma seqüência de fotografias marinhas, provavelmente tiradas na Praia do Futuro. Um mar rebelde e selvagem (diferente da Praia do Mucuripe: cheia de barcos, sinaleiros, "containers" - signos da presença humana) em fotos justapostas do mesmo cenário matizado em azul e verde. A cena pode ser um amanhecer ou um crepúsculo desolado e belo.Nas paredes internas da galeria, Roberto Galvão distribuiu pares de fotografias de habitações de Fortaleza, em detalhes insólitos e panorâmicas cheias de um grafismo concreto e minimalista.Como sílabas icônicas de uma gramática visual, vemos "palimpsestos" de cartazes do "Chitão de Baturité", arrancados de muros e sobrepostos por placas de anúncio de cartomante, ao lado de detalhes de edifícios luxuosos da capital cearense. A impressão que temos é a de que Roberto Galvão intentou revelar os contrastes sociais de Fortaleza, nos seus pares de fotos justapostas. Assim, temos de um lado a sujeira dos resíduos de propaganda política, de todo tipo de poluição visual; as taipas e papelões das favelas, munturos de lixo e sucata, a miséria, a barbárie, o Centro da Cidade, o Bom Jardim, o Lagamar, o Beco da Poeira. Do outro lado, a urbanização, o aformoseamento da capital cearense, a assepsia, os azulejos da Aldeota, as superfícies esmaltadas da Beira-Mar, o "glamour", o luxo, a opulência e a ostentação da Fortaleza rica. Um rico painel disjuntivo e assimétrico das contradições sociais, que só se juntam dentro do museu, pois na Fortaleza real, os ricos e os miseráveis conhecem e sabem em que lugares estão, por quais espaços podem circular e que não podem misturar-se. Quando Roberto Galvão junta habitações miseráveis e luxuosas, é no sentido de que a aparente ordem e apartação espacial pode explodir a qualquer momento. Ou seja, no Condomínio rico da Praia do Náutico trabalha o porteiro do bairro Pirambú e a babá do Jangurussú.Na obra "Da cor à Imagem" do fotógrafo pernambucano Márcio Lima, há um conjunto de 30 fotografias realizadas entre 1995 e 2000. Lima, que reside em Salvador desde 1989, registra nessas imagens o cotidiano do povo soteropolitano e do interior da Bahia.Márcio Lima revela um profundo domínio da cor e da luz. Do exuberante cromatismo vermelho da foto do menino jogando sinuca ao cromatismo violeta da foto da bicicleta.Lima explora artefatos em ambientes humildes como bares, casas, restaurantes, cabarés, em naturezas-mortas surpreendentes. Vale conferir o contraste plástico de um cesto de pregadores de roupa num canto de parede com um céu crepuscular ao fundo ou a genial contraposição de uma cadeira metálica branca enferrujada e um vaso de flores artificiais banhados por uma luz marrom.No vídeo-projeção "O mundo bate do outro lado de minha porta" de Ticiano Monteiro, o espectador vê um "quarto de dormir" dentro da lagoa da Precabura.Os elementos visuais são simples: uma cama, um cabide e uma cômoda cheia de objetos pessoais como gravador, livros, cadernos; e um homem deitado na cama.Durante 22 minutos, o personagem mexerá com os poucos elementos do cenário surreal ou ficará mergulhando a mão na superfície da lagoa. Como sugestão de que o homem pode viver com o pouco que tem.

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A cena combina lirismo e melancolia, auxiliada por um áudio que captou toda a ventania do lugar. Não há como não pensar na parábola do "olhai os lírios do campo" das escrituras, pelo despojamento da situação. Um homem solitário dentro de um quarto sem paredes, numa lagoa deserta a sugerir um jogo utópico de reconciliação com a natureza, rompendo com a idéia de propriedade privada. A sensação causada no espectador é, simultaneamente, de mal " estar e liberdade, por esse homem que, tal feito uma ave aquática, consegue viver e dormir num lugar que não interessa a especulação imobiliária.A exposição "Poéticas urbanas" revela olhares múltiplos sobre a paisagem cearense e nordestina. É uma oportunidade de rever aquilo que nos rodeia e não nos damos conta.A ARTE PÓS-MODERNA

Este texto tem como mote a composição "Bienal" de Zeca Baleiro do Cd "Vô Imbolá" (MZA).Nela o compositor maranhense disserta com ironia e bom humor sobre a temática da 23ª Bienal Internacional das Artes Plásticas de São Paulo (1996): "Desmaterialização da obra de arte no fim do milênio". Ou seja, em que medida o quadro contemporâneo transcende a limitação da moldura. Ou o que sinaliza a crítica ao suporte tradicional. Assim, a pintura pode sair da tela e/ou o espectador é convidado a entrar na escultura.A arte moderna tendia à militância política. Procurava cantar as glórias da tecnociência como no caso do Futurismo Italiano, ou, pelo contrário, procurava denunciar o cenário caótico da modernidade urbana do capitalismo industrial, como nas cores fortes do cubismo e do fauvismo ou na cinzenta deformação da realidade do expressionismo alemão.A arte pós - moderna " chamada, acertadamente, por alguns teóricos de "arte pós -vanguarda"- renuncia a qualquer messianismo. Não quer salvar a raça humana do colapso da modernização como disse Robert Kurz ou propor qualquer utopia capaz de suplantar a barbárie resultante desse colapso. Desse modo, o artista pós -moderno vê-se num pêndulo entre o niilismo sinistro da morte de Deus e o narcisismo hedonista e cínico da apologia do consumo. Isso se traduz pictoricamente em negativos fotográficos corroídos por ácido justapostos na parede ou nas latas de sopa Campbells de Andy Wahrol.A arte pós - moderna aponta para um impasse do homem pós - moderno: que caminho iremos tomar daqui para frente? Num contexto em que cada vez mais pessoas se tornam coisas e coisas se tornam pessoas, como Marx previa na sua crítica ao fetichismo da mercadoria, o que propor para raça humana? Será que ainda existem propostas plausíveis ou viáveis? A impressão que se tem ao visitar as exposições do Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar (Fortaleza -Brasil) é de que o homem não tem mais nenhum projeto aglutinante e de que a arte atual é, ou seria, a própria celebração desse atomismo.Há um aspecto, entretanto, que tem de ser evidenciado na arte contemporânea e sua tendência à ruptura com o suporte. Seria o caráter não - comercial desta arte. Qual burguês irá comprar as esponjas de aço enferrujadas da artista - plástica

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gaúcha Elida Tessler? E isso é muito bom, numa época em que os executivos americanos dizem tudo estar à venda, inclusive, a dignidade humana.Portanto, percebo um potencial subversivo na arte atual. Que é o de revelar a insustentabilidade do projeto civilizatório moderno. Negando a sociedade produtora de mercadorias e sua sociabilidade viciada quando produz "trambolhos" que não podem ser empendurados na parede ou que sujariam as estantes dos apartamentos burgueses.

O CINEMA ALUCINADO DE GLAUBER ROCHA

Para escrever esse estudo da obra de Glauber Rocha, eu li Dicionário Teórico e Critico de

Cinema de Jacques Aumont e Michel Marie; O Cinema brasileiro moderno de Ismail Xavier e

Brasil em Tempo de Cinema: ensaios sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966 de Jean-

Claude Bernardet.

Apesar de falar da obra de Glauber Rocha, na verdade este estudo foca o filme Dragão da

Maldade contra o santo guerreiro transmitido recentemente na programação domingueira

da TV SENADO, no mês de Agosto de 2011, na chamada Mostra Glauber Rocha.

Não sou um profundo conhecedor da obra de Glauber Rocha. Não vi seu filme de estreia (Barravento de 1962), vi apenas o começo de Deus e Diabo na Terra do Sol de 1964, não vi o comentado Terra em Transe de 1967 - citado com louvor por Caetano Veloso no seuVerdade Tropical e nem vi o ultimo filme A idade da terra de 1980.

Mas como fiquei impactado pelo colorido de Dragão da Maldade, resolvi escrever sobre o cinema de Glauber Rocha a partir deste filme.

Dragão da Maldade e um filme não linear, descontinuo, modernista, brasilianista. Nele um enredo mínimo revela toda a ação focada na invasão de um grupo de camponeses e de cangaceiros a um povoado do sertão nordestino.

O latifundiário do lugar e o delegado local conversam sobre a necessidade de um jagunço para matar Coirama, o líder dos cangaceiros. Contrata-se o pistoleiro Antônio das Mortes (Mauricio do Vale) para fazer o serviço sujo sem chamar a atenção da imprensa e da policia.

Na mise-en-scène do conflito entre o cangaceiro e o pistoleiro, Glauber Rocha cria um tom de farsa e reisado, onde Coirama e Antônio das Mortes duelam com facões recitando cordéis típicos nordestinos metrificados. O que tira o realismo, imprimindo um ar teatral e jogralizado à cena. A cantoria dos camponeses e brincantes de reisado perturba o coronel-latifundiário e no final do duelo Antônio das Mortes esfaqueia o cangaceiro.

Noutra cena, o cangaceiro moribundo é levado para um bar, onde o professor e o padre locais tentam acalmar o moribundo. Nesse bar o professor e o pistoleiro dividem uma cachaça.

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O personagem do professor vivido por Othon Bastos é extremamente interessante na diegese do filme. Inicialmente é um intelectual vindo da cidade grande que recebe salario atrasado e se embebeda no bar, com tiradas cínicas e risadas cheias de sarcasmo ao longo das cenas aparenta estar ao lado dos poderosos, como em suas conversas com o corrupto delegado local.

Antônio das Mortes, o pistoleiro, também é um personagem forte e marcante. Interpretado pelo excelente Mauricio do Vale, o pistoleiro estranha ainda existir cangaceiros para matar e próximo do final do filme, ao ver uma figurante do reisado de camponeses, lembra de um antigo amor.

A figurante, que ele chama de santa, mas que a meu ver esta vestida de orixá, dialoga com Antônio das Mortes e este pede perdão pela morte dos ancestrais da "santa".

Este se sentindo culpado vai à igreja, conversa com o padre e pede para que este chame o delegado.

O delegado vem e o pistoleiro pede para que o delegado convença ao coronel-latifundiário de ceder parte de suas terras para o grupo de camponeses. Nesse momento, o espectador começa a perceber que o pistoleiro mudou de lado: passou para o lado dos pobres, dos vencidos da Historia.

O delegado, que tem um caso com a mulher do latifundiário, tenta convencer o pistoleiro para este matar o latifundiário e como recompensa lhe dará uma fazendinha longe dali.

O delegado vai ate a casa do latifundiário. Trama a morte do mesmo com a esposa deste. Mas não tem coragem de executar o coronel-latifundiário.

Outras cenas de conversa entre o pistoleiro e a "santa"...

Para não ficar apenas ao nível do enredo, cabe agora analisar os elementos fílmicos utilizados por Glauber Rocha neste filme.

O estilo glauberiano já foi chamado de estética da fome e em parte ha razão nesta rotulação. No Dragão da Maldade e no Deus e o Diabo na Terra do Sol - pelo menos ate onde puder ver, já que a copia que a TV SENADO exibiu, tinha terríveis problemas no áudio, por isso não assisti ao segundo todo - o universo do autor de Terra em Transe comparece com paisagens áridas do sertão nordestino, caatinga, camponeses, cangaceiros, animais esquálidos pastando e tudo o que se pode representar como a zona rural da América Latina e do Terceiro Mundo.

Deus e o Diabo na Terra do Sol pareceu-me um filme muito duro de ver: preto e branco, longos silêncios... E com certeza o áudio prejudicou a minha audiência. Já Dragão da Maldade, colorido e com um ótimo áudio, revelou um Glauber Rocha mais seguro como cineasta, por se tratar de seu quarto filme.

A utilização da musica no filme e surpreendente. Chamou-me atenção a maneira como o folclore baiano aparece no filme. Os camponeses cantando seus reisados e o professor rindo alucinado foi um contraponto plasticamente bem resolvido.

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Nas cenas em que o corpo do delegado e arrastado pela catinga, Glauber escolheu canto lírico atonal, criando uma atmosfera perturbadora.

Também gosto das pontuações em que cantorias aparecem na trilha-sonora, principalmente no plano aberto em que os jagunços afilhados do latifundiário o carregam junto com a esposa numa tabua, revelando a subserviência característica dos homens pobres no sertão nordestino.

Os personagens não são planos. O professor do cinismo inicial acaba aderindo à militância camponesa. O pistoleiro inicial vira o defensor dos camponeses. Até o padre, que aparece ao longo do filme subserviente e bajulador do latifundiário e ao poder local do povoado, no final do filme adere ao "bandoleirismo revolucionário".

A despeito de Bernardet ter chamado o ciclo do cinema do cangaço de versão brasileira do western americano, o filme de Glauber Rocha exibe uma violência surreal: o cangaceiro, por exemplo, esfaqueado no começo do filme, não morre e aparece monologando até quase o final, onde finalmente "morre"; nos tiroteios entre os jagunços do coronel-latifundiário e o professor e o Antônio das Mortes, embora os jagunços estejam em maioria, todos morrem e o professor e o pistoleiro não levam nenhum tiro. Este ar farsesco, cria no espectador um clima de irracionalismo e inverossimilhança.

Até aquela cena já relatada do duelo entre Coirama e Antônio das Mortes, o gênero western e subvertido, pois no faroeste americano jamais dois duelantes iriam disputar a faca, cantando versos de cordel.

Glauber Rocha bebeu no cordel nordestino, nos sambas-de-roda, nos reisados, no atonalismo, no dodecafonismo, viu Eisenstein, Bunuel, Rosselini, Godard, leu Marx para produzir o seu cinema controvertido e complexo. E eu percebi acentos glauberianos no Corisco e Dada do cearense Rosemberg Cariri.

Este breve estudo não pretende esgotar o Dragão da Maldade, mas ser um convite ao leitor para ver esta obra criativa e seminal. Talvez na internet o leitor consiga dar o download do filme e se não consegui-lo inteiro, talvez consiga ver fragmentos no Youtube.com.

BIBLIOTECA E CÂNONE DA UMBANDA

Este estudo pretende analisar o acervo da Biblioteca da Cabana Luz do Congo -situada na Rua Gonçalves Ledo, 1779 no bairro Piedade em Fortaleza - no sentido de buscar saber quais são os livros canônicos e quais seriam os livros proscritos da Umbanda, se é que eles existem.

SOBRE O ACERVO

O acervo da Cabana Luz do Congo foi organizado pelo pai de Santo da casa, Francisco Antonio dos Santos (pai Didi), hoje falecido, no ano de 1968. Parte do acervo foi comprado e outra parte foi doada ao longo dos anos, segundo informou o filho, Julio Francisco dos Santos, responsável pelo espólio do pai e pela administração executiva e financeira do Centro.

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Seu Júlio informou que não há uma estatística de quantos pessoas utilizaram ou utilizam o acervo ao longo dos anos, que este tipo de informação se perdeu com a morte do pai. O que ele sabe informar com absoluta certeza, é de que o acervo atrai mais a atenção de pesquisadores das Universidades, do que propriamente aos frequentadores e dirigentes da casa. Este dado é grave, quando pensamos no perfil sócio-econômico dos frequentadores e dirigentes da casa: pessoas escolarizadas da classe média, funcionários públicos, profissionais liberais, comerciantes e empresários. Ou seja, os umbandistas cearenses não gostam de ler, pelo menos, na maioria dos casos.

Diante desse dado perguntei qual era a função de uma biblioteca que não desperta interesse. Seu Júlio respondeu que a intenção do seu pai ao comprar do próprio bolso, reunir e organizar o acervo, era a de difundir uma umbanda esotérica iniciática em Fortaleza - corrente da qual a Cabana Luz do Congo é o único lugar na capital cearense, que professa este tipo de umbanda.

O acervo se divide por assuntos, sendo eles: Umbanda, Quimbanda, Kardecismo, Esoterismo, Racionalismo Cristão, Pietro Ubaldo, Budismo, História, Rosa Cruz, Filosofia, Chama Sagrada, Yoga, Diversos e duas prateleiras cheias de livros protestantes e católicos.

É interessante perceber a presença de livros do cânone protestante e católico numa casa de Umbanda. Pude conferir nas duas prateleiras obras evangélicas da Bible Students Association, dos Girões e da Casa Publicadora Brasileira, em títulos como as traduções de João Ferreira de Almeida do Novo Testamento e exegetas como E. G. White; como também, pude conferir títulos de duas importantes editoras católicas: Vozes e Paulinas.

Tal informação nos leva a supor que Pai Didi queria promover um diálogo inter-religioso, antes mesmo da moda ecumenista da década de 70 e um debate científico, que houve enquanto o mesmo dirigiu grupos de estudos, antes de ser vitimado pela velhice e doença.

PARA QUE SERVE UM LIVRO DE UMBANDA?

Muitos poderão perguntar qual é a utilidade de um livro umbandista, como por exemplo, um amigo da faculdade a me ver com um livro, cuja capa tinha impresso a palavra "umbanda", perguntou se era um manual de feitiços.

É curioso de que alguém ao ver um indivíduo com a Bíblia Sagrada, não faz a mesma pergunta, mesmo que o Antigo Testamento tenha uma coleção de feitiços feitos por Moisés para destruir os povos inimigos.

Assim, somos levados a perceber o caráter eminentemente prático do culto umbandista no imaginário da população brasileira, pois como mais de uma vez

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afirmaram certas autoridades do espiritismo kardecista, a Umbanda seria um mediunismo sem doutrina.

Analisando o acervo da Cabana Luz do Congo, podemos responder parte das perguntas feitas por leitores que nunca leram livros de Umbanda.

Na obra A Cartilha de Umbanda de Candido Emanuel Felix,publicada no Rio de Janeiro em 1965 pela editora Eco, temos perguntas do tipo: o que é umbanda? Pode-se aceitar Umbanda como religião? Como definir o médium de incorporação? Como pode o médium trabalhar numa tenda? Entre outras. Deste modo, um livro de umbanda serve para divulgar aspectos doutrinários e não apenas limitar-se a conjuntos de descrições de feitiços ou de oferendas e receitas culinárias para este ou aquele orixá. Ou seja, a Umbanda, contrariando o diagnóstico de espíritas kardecistas apressados e desinformados, tem doutrina sim.

QUAL O CARÁTER DA “DOUTRINA” UMBANDISTA?

A doutrina umbandista existe e foi reunida por WW da Matta e Silva, em dez livros publicados pela Editora Freitas Bastos entre os anos das décadas de 60, 70 e 80. E pode ser conferida também nas obras do pai de santo e médico F. Rivas Neto e do poeta Roger Feraudy.

Entretanto, é bom vermos sobre a visão de que se há uma doutrina padrão umbandista ou não, nas palavras de Dandara e Zeca Ligiéro em Iniciação à umbanda:

“A Umbanda é uma religião em processo, autoconstruindo-se a partir da sua própria prática religiosa dentro da dinâmica de uma tradição oral multicultural. A enorme e contraditória bibliografia de escritores umbandistas apenas atesta a impossibilidade de transformar esse universo múltiplo, em algo unívoco estritamente dogmático e doutrinário.”

O leitor mais atento perceberá o caráter mestiço da, vamos chamar, doutrina umbandista, ao reunir influências afrodescendentes, indígenas, católicas, judaicas, islâmicas, kardecistas, rosa-cruzes, maçônicas e da Teosofia de Madame Blavatsky. Pois como o culto, a doutrina umbandista é uma espécie de síntese religiosa de todos os povos que existem na terra. E por ser síntese, ela é complexa e profunda. Tal fato talvez afastem os leitores umbandistas, que receosos de nada entenderem ou acabarem confusos com esse cipoal de referências, acabam não lendo as obras que com tanto esforço Matta e Silva e seus discípulos sistematizaram.

EXISTE UM CÂNONE UMBANDISTA?

Geralmente quando se pensa em livros da tradição cristã a noção de cânone pode vir à baila. Pois se sabe que os livros canônicos seriam aqueles aceitos e reconhecidos pelas altas hierarquias da Igreja Cristã. Já os apócrifos ou proscritos

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seriam aqueles livros que circularam na época de Cristo e foram - parte deles -descobertos nas cavernas salgadas de Qumram no Mar Morto em 1948. Estes livros foram e são mal vistos pela Igreja Cristã por revelarem dados e narrativas inconvenientes, como a suposta personalidade travessa e malvada da infância de Jesus Cristo ou o seu suposto casamento cheio de filhos com Maria Madalena.

Entretanto, hoje parte da Igreja já sabe conviver com os conteúdos estranhos e extravagantes desses livros. Tanto que já é possível encontrá-los nas livrarias católicas.

Em se tratando da Umbanda, a noção de cânone teria mais um fundo literário do que propriamente teológico, pois ao contrário da Igreja Cristã, a Umbanda não dispõe de um clero organizado e hierarquizado a policiar seus escritores. Assim, os livros do médium WW da Matta e Silva seriam canônicos no sentido de bem escritos e sistematizados.

Por isso, fica difícil de estabelecer um critério semelhante ao da Igreja Cristã, para tratar de supostos livros proscritos dentro do universo editorial umbandista.

Entretanto, como venho lendo o acervo da Cabana Luz do Congo desde o ano de 2002, posso falar não propriamente em livros proscritos, mas em livros toscos e mal escritos em profusão.

São livros com baixa fundamentação teórica, hesitantes e confusos.

Seriam aquelas obras que a partir do índice ou da ausência dele, dedicam-se mais aos aspectos litúrgicos ou ritualísticos da umbanda, do que propriamente em devassar suas origens e estabelecer parâmetros doutrinários.

Porém, tudo aqui é novo como sabiamente comentou o ogã da Cabana Luz do Congo. Ele mesmo nunca tinha parado para pensar na possibilidade de livros proscritos, até pelo fato inegável de que os praticantes de Umbanda não se interessam nem mesmo pelos livros bem feitos.

Assim, para concluir percebemos que nossa investigação apenas começou e partindo da constatação de que o público leitor umbandista prefere mais, quando se dispõe, a ler pontos cantados no intuito de decorá-los ou receitas de banhos de descarga, estaremos mexendo não apenas com problemas de uma comunidade religiosa específica, mas com o terrível hábito brasileiro de não gostar de ler.

CONCEPÇÃO DE DEUS EM DIVERSOS PONTOS DE VISTA FILOSÓFICOS

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DEUS NO TEÍSMO JUDAICO-CRISTÃO

O Conceito de Deus aqui é pessoal. Deus seria uma pessoa que teria os atributos de onipotência (todo poderoso), onisciência (sabe tudo e sonda todos os corações e pensamentos) e onipresença (ocupa todos os lugares do universo e do espaço).

Esta concepção de Deus foi enunciada nos cinco primeiros livros da Bíblia Sagrada pelo profeta Moisés. Como Moisés era um líder tribal patriarcalista, Deus aqui aparece como um estadista implacável, extremamente autoritário, misógino (basta ver como as mulheres são tratadas na Bíblia), intransigente com os credos de outros povos (basta ver as passagens bíblicas em que Moisés passa pelo fio da espada até crianças e velhos de um vilarejo que não cultua o seu Jeová) e intransigente com os homossexuais masculinos e femininos (basta ver as passagens referentes a destruição de Sodoma e Gomorra), intransigente com práticas espiritualistas que dispersassem o povo judeu ( astrólogos, adivinhos, feiticeiros não herdarão o reino dos céus – vide Deuteronômio).

Deus aqui seria o criador do universo e o universo seria sua propriedade, assim como o mundo natural pertenceria a sua máxima criação: o homem; por isso o homem deveria submeter todos os animais e seres ao seu comando.

DEUS NO TEÍSMO NAGÔ-YORUBANO DO SUL DA NIGÉRIA

O conceito de Deus aqui é pessoal. Deus seria o criador do universo e seria o governante máximo ( oni, oba), porém não governaria o universo sozinho.Residiria no seu palácio no Orum ( o além, o céu yorubano) e de lá reuniria de vez em quando os orixás, com os quais divide o reino do universo.Ao contrário do Jeová de Moisés, Olorum tem um temperamento estável, moderado, calmo.Não interfere no destino dos homens, pois criou o mundo (o Ayê) mas desgostoso se retirou dele e foi viver no Orum. Para não deixar os homens desamparados, deixou-os sob proteção dos Orixás. Alguns pesquisadores sustentam a hipótese, de que esse Olorum excessivamente antropormofizado seria influência das religiões monoteístas e patricarcalistas (Cristianismo e Islã) no território Yorubá.

Já Ronaldo Senna e Maria José de Souza – Titã no livro A Remissão de Lúcifer: o resgate e a ressignificação em diferentes contextos afro-brasileiros – Editora UEFS, 2002 apresentam uma versão menos sincrética:

“Oludamaré é a manifestação de tudo o que existe, o universo e todos os seus componentes. A ele nada se pede e não é possível contata-lo. É indecifrável, a pronúncia do seu nome deve ser seguida de uma reverência, tocando-se a terra com os dedos. O espírito primal que sustenta a forma como elemento da criação. Pode ser entendido como o arquétipo ou o repositório de todas as formas que dão configuração à matéria; um símbolo universal da substância” p.84-85

DEUS NO DEÍSMO

Deus aqui aparece apenas como um ser supremo, criador do universo, porém desinteressado com a criação. Um Deus distante e ausente, que tal como um relojoeiro criou o universo como uma máquina autônoma e auto-regulada, que funciona sozinha sem sua constante intervenção. Nesta concepção filosófica não faz sentido o hábito da prece, posto que o universo seja governado por leis fixas, regulares e inexoráveis.

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DEUS NO BUDISMO

O Budismo é uma religião atéia. É religião apenas no sentido horizontal: religar os homens e não no sentido vertical: religar o homem a Deus - ser este que para o Budismo oriental não existe.Os Budistas são religiosos no sentido que cultuam valores éticos como: compaixão, bondade, não matar nenhum ser vivo, não roubar e não usar drogas ou substâncias que embotem a mente.

DEUS EM SIGMUND FREUD

O Criador da Psicanálise aborda o fenômeno religioso em várias de suas obras. Freud era judeu, porém não religioso.Em O Futuro de uma ilusão ele concebe Deus como uma ilusão, fruto do desejo infantil do ser humano de ver na natureza a projeção de um pai. Na ânsia de se ver desamparado e desprotegido o ser humano teria criado Deus para reconfortá-lo nas horas de perigo e tribulação.

DEUS NO ATEÍSMO DE MIKHAIL BAKUNIN

O anarquista russo - na sua obra Deus e o Estado – extremamente iconoclasta concebe Deus como um tirano, opressor, que se existisse precisaria ser abolido.

DEUS EM MIRCEA ELIADE

Na obra do historiador romeno Mircea Eliade a Religião aparece como o numinoso. O universo seria numinoso ou sagrado.E segundo ele, o espiritualista tende a sacralizar o universo, enquanto o materialista tende a profaná-lo. O filósofo francês Michel Onfray em seu Tratado de Ateologia fornece um esquema interessante para entender a questão. Segundo ele, o materialista afirma: -sou feito de átomos, enquanto o espiritualista afirma: -sou feito de alma

DEUS EM RICHARD DAWKINS

Richard Dawkins, o ilustre biólogo evolucionista, é tido pela crítica como líder do movimento neo-ateísta e é autor da obra Deus, um Delírio – Tradução de Fernanda Ravagnani – São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Na obra de 520 páginas, Dawkins afirma categoricamente que além de Deus não existir, a religião é nociva à humanidade, por ser geradora de guerras, ataques terroristas e outras insustentabilidades.Segundo ele, ninguém precisa de Deus para ter princípios morais, para fazer o bem, para apreciar a natureza.O livro propõe o orgulho ateu, assim como existe o orgulho gay.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Feito originalmente para ser discutido numa oficina de afro-religiosidade este breve estudo não teve a intenção de esgotar o assunto. Reconhece que muitas concepções ficaram de fora como a de Spinoza, a de Marx, a de Nietzsche, de Debord a e a de Jung, entre outros (a lista é quase interminável na história da Filosofia).

A minha concepção atual é de que não há um Deus pessoal, mas há o sagrado, o numinoso. Talvez minha concepção tente juntar elementos dos cultos de matriz afrodescendente com

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a espiritualidade naturalizada de Robert C. Solomon no seu Espiritualidade para Céticos: Paixão, verdade cósmica e racionalidade no século XXI – Tradução Maria Luiza X. A. Borges –Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.Quem sou eu para provar que Deus existe ou deixa de existir? Que cada um faça suas pesquisas e tire suas conclusões.

DORIVAL CAYMMI E A AFRO-RELIGIOSIDADE

Este estudo visa analisar a obra do compositor e cantor baiano Dorival Caymmi e suas relações com a afro-religiosidade.

Dorival Caymmi compôs inspirado pelos hábitos, costumes e as tradições do povo baiano. Tendo como forte influência a música negra, desenvolveu um estilo pessoal de compor e cantar, demonstrando espontaneidade nos versos, sensualidade e riqueza melódica. Morreu em 16 de agosto de 2008, aos 94 anos, em casa, às seis horas da manhã, por conta de insuficiência renal e falência múltipla dos órgãos em consequência de um câncer renal que possuía há 9 anos.. Permanecia em internação domiciliar desde dezembro de 2007. Poeta popular, compôs obras como Saudade de Bahia, Samba da minha Terra, Doralice, Marina, Modinha para Gabriela, Maracangalha, Saudade de Itapuã, O Dengo que a Nega Tem, Rosa Morena.

Caymmi era descendente de italianos pelo lado paterno, as gerações da Bahia começaram com o seu bisavô, que chegou ao Brasil para trabalhar no reparo do Elevador Lacerda e cujo nome era grafado Caimmi. Ainda criança, iniciou sua atividade como músico, ouvindo parentes ao piano. Seu pai era funcionário público e músico amador, tocava, além de piano, violão e bandolim. A mãe, dona de casa, mestiça de portugueses e africanos, cantava apenas no lar. Ouvindo o fonógrafo e depois a vitrola, cresceu sua vontade de compor. Cantava, ainda menino, em um coro de igreja, como baixo-cantante. Com treze anos, interrompe os estudos e começa a trabalhar em uma redação de jornal O Imparcial, como auxiliar. Com o fechamento do jornal, em 1929, torna-se vendedor de bebidas. Em 1930 escreveu sua primeira música: No Sertão e aos vinte anos estreou como cantor e violonista em programas da Rádio Clube da Bahia. Já em 1935, passou a apresentar o musical Caymmi e Suas Canções Praieiras. Com 22 anos, venceu, como compositor, o concurso de músicas de carnaval com o samba A Bahia também dá. Gilberto Martins, um diretor da Rádio Clube da Bahia, o incentiva a seguir uma carreira no sul do país. Em abril de 1938, aos 23 anos, Dorival, viaja de ita (navio que cruza o norte até o sul do Brasil) para cidade do Rio de Janeiro, para conseguir um emprego como jornalista e realizar o curso preparatório de Direito. Com a ajuda de parentes e amigos, fez alguns pequenos trabalhos na imprensa, exercendo a profissão no jornal Diários Associados, ainda assim, continuava a compor e a cantar. Conheceu, nessa época, Carlos Lacerda e Samuel Wainer..

Foi apresentado ao diretor da Rádio Tupi, e, em 24 de junho de 1938, estreou na rádio cantando duas composições, embora ainda sem contrato. Saiu-se bem como calouro e iniciou a cantar dois dias por semana, além de participar do programa Dragão da Rua Larga. Neste programa, interpretou O Que é Que a Baiana Tem, composta em 1938. Com a canção, fez com que Carmen Miranda tivesse uma carreira no exterior, a partir do filme Banana da Terra, de 1938. Sua obra invoca principalmente a tragédia de negros e pescadores da Bahia: O Mar, História de Pescadores, É Doce Morrer no Mar, A Jangada Voltou Só, Canoeiro, Pescaria, entre outras. Filho de santo de Mãe Menininha do Gantois, para quem escreveu

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em 1972 a canção em sua homenagem: Oração de Mãe Menininha gravado por grandes nomes como Gal Costa e Maria Bethânia.

Nas composições de Caymmi (Maracangalha - 1956; Saudade de Bahia - 1957), a Bahia surge como um local exótico com um discurso típico que estabelecera-se nas primeiras décadas do século XX. Referências à cultura africana, à comida, às danças, à roupa, e, principalmente à religião. Com a Primeira Guerra Mundial, um lundu de autoria anônima, com o nome de A Farofa, trata não tão somente do conflito como também de dendê e vatapá, na canção O Vatapá. O compositor José Luís de Moraes, chamado Caninha, utilizou, ainda em 1921, o vocábulo balangandã, no samba Quem vem atrás fecha a porta. A culinária baiana foi consagrada no maxixe Cristo nasceu na Bahia, lançado em 1926. No final da década de 1920, é associado à Bahia a mulher que ginga, rebola, requebra, remexe e mexe as cadeiras quando está sambando, o que surpreende na linguística, tendo em vista que o autor não era nativo do Brasil. O primeiro grande sucesso O que é que a baiana tem?cantada por Carmen Miranda em 1939 não só marca o começo da carreira internacional da Pequena Notável vestida de baiana, mas influenciou também a música popular dentro do Brasil, tornou-se conhecida a ponto de ser imitada e parodiada, como no choro O que é que tem a baiana de Pedro Caetano e Joel de Almeida ou na canção A baiana diz que tem de Raul Torres. Apesar das produções anteriores, as composições de Caymmi são as mais lembradas sobre a cultura baiana.Na composição A Jangada voltou só vemos o componente místico e católico do povo baiano:“A jangada saiuCom Chico Ferreira e BentoA jangada voltou sóCom certeza foi lá fora, algum pé de ventoA jangada voltou só...Chico era o boi do ranchoNas festa de NatarChico era o boi do ranchoNas festa de NatáNão se ensaiava o ranchoSem com Chico se contáE agora que não tem ChicoQue graça é que pode terSe Chico foi na jangada...E a jangada voltou só... a jangada saiuCom Chico Ferreira e BentoA jangada voltou sóCom certeza foi lá fora, algum pé de ventoA jangada voltou só...Bento cantando modasMuita figura fez Bento tinha bom peitoE pra cantar não tinha vez

As moça de JaguaripeChoraram de fazê dóSeu Bento foi na jangadaE a jangada voltou só “

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Na composição A Lenda do Abaeté o cantor e compositor baiano fala de um lugar assombrado:

“No Abaeté tem uma lagoa escura Arrodeada de areia branca Ô de areia branca Ô de areia branca De manhã cedo Se uma lavadeira Vai lavar roupa no Abaeté Vai se benzendo Porque diz que ouve Ouve a zoada Do batucajé O pescador Deixa que seu filhinho Tome jangada Faça o que quisé Mas dá pancada se o seu filhinho brinca Perto da Lagoa do Abaeté Do Abaeté A noite tá que é um dia Diz alguém olhando a lua Pela praia as criancinhas Brincam à luz do luar O luar prateia tudo Coqueiral, areia e mar A gente imagina quanta a lagoa linda é A lua se enamorando Nas águas do Abaeté Credo, Cruz Te desconjuro Quem falou de Abaeté No Abaeté tem uma lagoa escura”

O Batucaje e uma referencia ao candomble, que se acreditava ter no fundo da lagoa.

Na composição Dois de Fevereiro Caymmi deixa patente sua filiação religiosa ao candomblé baiano:

“Dia dois de fevereiroDia de festa no marEu quero ser o primeiroA saudar IemanjáDia dois de fevereiroDia de festa no marEu quero ser o primeiroA saudar Iemanjá

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Escrevi um bilhete a ela Pedindo pra ela me ajudarEla então me respondeuQue eu tivesse paciência de esperarO presente que eu mandei pra elaDe cravos e rosas vingouChegou, chegou, chegouAfinal que o dia dela chegouChegou, chegou, chegouAfinal que o dia dela chegou”

Nesta composição Caymmi, assim como boa parte do fervoroso povo baiano, demonstra sua confiança na Rainha do mar.

E na composição Rainha do Mar Caymmi revela o que pensa e sabe sobre Yemanjá:

“Minha sereia é rainha do marMinha sereia é rainha do marO canto dela faz admirarO canto dela faz admirarMinha sereia é a moça bonitaMinha sereia é a moça bonitaNas ondas do mar aonde ela habitaNas ondas do mar aonde ela habitaAi, tem dó de ver o meu penarAi, tem dó de ver o meu penar”

E sempre há um sentimento de rogar um pedido a deidade aquática, mostrando como o povo negro e pobre é carente no campo material, não tendo muito para quem apelar.

Caymmi também falou das baianas na sua obra, como se vê na composição No tabuleiro da baiana:

“No tabuleiro da Baiana tem Vatapá, Carurú, Mungunzá tem Ungu pra io ioSe eu pedir você me dao seu coração,seu amor de ia iaNo coração da Baiana também temSedução, cangerê, ilusão, candomblé Pra vocêJuro por Deus,pelo senhor do Bonfimquero você Baianinha inteirinha pra mimE depois o que será de nós dois?Seu amor é tão Fulgás enganadorTudo já fiz, fui até no canjerêPra ser feliz, meus trapinhos juntar com vocêE depois vai ser mais uma ilusãono amor que governa o coração”

Mostrando a preferência do compositor pela gente simples da Bahia.

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Caymmi também cantou com perfeição a beleza da mulher negra, na composição A Preta do Acarajé:

“Dez horas da noiteNa rua desertaA preta mercandoParece um lamentoÊ o abaráNa sua gamela Tem molho e cheirosoPimenta da costaTem acarajéÔ acarajé é corÔ la lá ioVem benzerTá quentinhoTodo mundo gosta de acarajéO trabalho que dá pra fazer que éTodo mundo gosta de acarajéTodo mundo gosta de abaráNinguém quer saber o trabalho que dáTodo mundo gosta de acarajéO trabalho que dá pra fazer que éTodo mundo gosta de acarajéTodo mundo gosta de abaráNinguém quer saber o trabalho que dáTodo mundo gosta de abaráTodo mundo gosta de acarajéDez horas da noite Na rua desertaQuanto mais distanteMais triste o lamentoÊ o abará”

A ligação de Caymmi com os cultos afros é realçada nas composições em que fala das comidas votivas dos orixás negros, como em Vatapá:

“Quem quiser vatapá, ôQue procure fazerPrimeiro o fubáDepois o dendêProcure uma nêga baiana, ôQue saiba mexerQue saiba mexerQue saiba mexerProcure uma nêga baiana, ôQue saiba mexerQue saiba mexerQue saiba mexer

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Bota castanha de cajuUm bocadinho maisPimenta malaguetaUm bocadinho maisBota castanha de cajuUm bocadinho maisPimenta malaguetaUm bocadinho maisAmendoim, camarão, rala um cocoNa hora de machucarSal com gengibre e cebola, iaiáNa hora de temperarNão para de mexer, ôQue é pra não embolarPanela no fogoNão deixa queimarCom qualquer dez mil réis e uma nêga ôSe faz um vatapáSe faz um vatapáQue bom vatapáBota castanha de cajuUm bocadinho maisPimenta malaguetaUm bocadinho maisBota castanha de cajuUm bocadinho maisPimenta malaguetaUm bocadinho maisAmendoim, camarão, rala um cocoNa hora de machucarSal com gengibre e cebola”

Ou em Acaçá:

“Acaçá de milho bem-feitoE o jeito?E o modo dela mercar?Sorrindo com dentes alvosA bata caindo do ombroCaindo pro peitoAcaçá de milho bem-feitoE o jeito?E o modo dela mercar?Bem-feito é o acaçá de leiteBem-feito é o acaçáBem-feito é o corpinho delaBem-feito como acaçá”

As duas composições a rigor para os desavisados parecem singelas receitas culinárias,

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quando na verdade revelam todo o fundamento do rito dos orixás.Caymmi falou do céu na perspectiva da umbanda em Aruanda de Geraldo Vandré e Carlos Lyra:

“Vai, vai, vai pra AruandaVem, vem, vem de LuandaDeixa tudo o que é tristeVai, vai, vai, vai pra AruandaLá não tem mais tristezaVai que tudo é belezaOuve essa voz que te chamaVai, vai, vai”

Caymmi definiu a capital da Bahia em São Salvador:

“São Salvador, Bahia de São SalvadorA terra de Nosso Senhor Pedaço de terra que é meu São Salvador, Bahia de São Salvador A terra do branco mulato A terra do preto doutor São Salvador, Bahia de São Salvador A terra do Nosso Senhor Do Nosso Senhor do Bonfim Oh Bahia, Bahia cidade de São Salvador Bahia oh, Bahia, Bahia cidade de São Salvador”

O Senhor do Bonfim citado na música representa o curioso sincretismo do povo baiano, pois o povo entra na Igreja católica pensando que está lidando com Cristo, enquanto nos terreiros dão oferendas para o orixá Oxalá, o ancião da cultura iorubá.

E na composição Oração a Mãe Menininha Caymmi refere-se a sua filiação ao axè do Gantois:

“Ai! Minha mãeMinha mãe MenininhaAi! Minha mãeMenininha do GantoiseA estrela mais linda, heinTá no gantoiseE o sol mais brilhante, heinTá no gantoiseA beleza do mundo, heinTá no gantoiseE a mão da doçura, heinTá no gantoiseO consolo da gente, aiTá no gantoiseE a Oxum mais bonita hein

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Tá no gantoiseOlorum quem mandou essa filha de OxumTomar conta da gente e de tudo cuidarOlorum quem mandou eô ora iê iê ô”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo é um convite para que os leitores conheçam a obra de Dorival Caymmi.Uma obra marcada pelo suor dos pescadores baianos e pelos aromas apetitosos da negras baianas.

OS VISSUNGOS, CLEMENTINA DE JESUS E UM POUCO DE FILOLOGIA NEGRA

Este estudo visa analisar o gênero musical ‘vissungo’ e sua relação com a obra da sambista carioca Clementina de Jesus.Para tanto nos baseamos no Suplemento Literário de Minas Gerais “Cantos Afrodescendentes: Vissungos” publicado em BELO HORIZONTE, OUTUBRO DE 2008. EDIÇÃO ESPECIAL. SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DE MINAS GERAIS.

Também pesquisamos o verbete ‘Clementina de Jesus’ no site Wikipédia, como também consultamos os sites: “Samba & Choro” e “Brazilianmusic.com”.

DEFINIÇÃO DE VISSUNGO

“Os vissungos estão quase desaparecendo. Estão morrendo os poucos que sabiam. Os moços que aprenderam por necessidade ou por curiosidade vão se esquecendo.’ – assim já nos alertava Aires da Mata Machado Filho, por volta de 1938, quando terminava o manuscrito de seu estudo intitulado ‘ O negro e o garimpo em Minas Gerais.”

Camila Diniz

Os Vissungos são segundo a poeta e pesquisadora Sônia Queiroz:

“(...)cantigas em língua africana ouvidas outrora nos serviços de mineração”, foram identificados pelo pesquisador Aires da Mata Machado Filho em 1928 nos povoados de São João da Chapada e Quartel do Indaiá, no município de Diamantina, em Minas Gerais.”

E aprofunda a definição:

“Entre 1939 e 1940, Aires publicou em capítulos, na importante Revista do Arquivo Municipal, de São Paulo, o resultado de sua pesquisa sobre esses cantos de tradição banto: 65 cantigas, com “letra, música e tradução, ou antes fundamento’”, além de dois glossários da “língua banguela” – um deles extraído dos cantos e o outro, do linguajar local; e ainda 8 capítulos de estudo sobre a cultura afro-brasileira no contexto do trabalho da mineração de diamantes. A primeira edição em livro saiu em 1943 pela José Olympio, na coleção Documentos Brasileiros, ao lado de títulos da maior relevância, como os clássicos Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Casa grande e

senzala, de Gilberto Freyre. Outra marca do prestígio dessa edição: conforme nota no verso da folha de rosto, “foram tirados, fora do comércio, vinte exemplares em papel Vergé, numerados e assinados pelo autor”. A segunda edição foi publicada pela

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também prestigiosa Civilização Brasileira, em 1964. Em 1985, a Itatiaia, a mais antiga editora mineira, publicou com a edusp, na coleção Reconquista do Brasil, uma edição que (agora sem a parceria da edusp) ainda se encontra no mercado.”

E como o filólogo Aires da Mata Machado Filho classificava os Vissungos?

“Segundo Aires da Mata Machado Filho, “dividem-se os vissungos em boiado, que é o solo, tirado pelo mestre sem acompanhamento nenhum, e o dobrado, que é a resposta dos outros em coro, às vezes com acompanhamento de ruídos feitos com os próprios instrumentos usados na tarefa”. No capítulo 9, os vissungos foram agrupados em: padre-nossos, cantos da manhã (ou: ao nascer do dia), canto do meio-dia, cantigas de multa, cantigas de caminho, cantigas de rede e de caminho, pedindo licença para cantar, gabando qualidades (talvez equivalente

banto do oriki da tradição iorubá), cantos de negro enfeitiçado, cantiga de ninar, canto do companheiro manhoso e, ainda, um grupo de cantigas diversas.”

Há uma conotação religiosa nos Vissungos?

“Alguns vissungos “parecem cantos religiosos adaptados à ocasião”, talvez pelo esquecimento de seu significado original, observa o pesquisador. Mas outros conservam seu sentido místico-religioso: “Há cantigas especiais para conduzir defuntos a cemitérios distantes” (das quais ele recolheu três exemplos) e há cantigas, como os padrenossos, usadas na mineração e também nas cerimônias de

levantamento do mastro, nas festas religiosas.”

É um vissungo mineiro uma forma de ‘work song’ parecida com o ‘spirituals’ e o blues negro americano? De uma certa maneira sim, como podemos ver no estudo da poeta e pesquisadora Sônia Queiroz:

“No capítulo 8, dedicado ao estudo das cantigas, Aires ressalta “a necessidade universal de trabalhar cantando”. E associa à prática dos negros de São João da Chapada e Quartel do Indaiá os cantos das colheitas de uvas em Portugal, das fiandeiras, dos capinadores de roça e dos mutirões. “Muito interessante era a multa. Quando alguma pessoa chegava à lavra, era logo multada pelos mineradores, com uma cantiga apropriada”: pediam alguma coisa ao recém-chegado. “Uma vez satisfeito o pedido, seguia-se à multa o agradecimento com danças, ritmo de carumbés e enxadas”.

E qual a relação da sambista carioca Clementina de Jesus com os Vissungos?

“Com o desenvolvimento das tecnologias de gravação sonora na segunda metade do século XX, catorze dos 65 vissungos escritos pelo Prof. Aires foram gravados, em 1982, nas vozes de Clementina de Jesus, Doca e Geraldo Filme, no LP O canto dos escravos, da Eldorado. Nessa gravação, hoje disponível em CD, percebe-se uma leitura nagô-iorubá dos cantos de tradição banto. Segundo o musicólogo José Jorge de Carvalho, em Um panorama da música afro-brasileira, “a base rítmica escolhida não repetiu o padrão rítmico original, mas usou um tipo de ritmos binários generalizados de umbanda, tais como o barravento, que ouvimos em casas de umbanda, macumba e jurema por todo o país”. Cerca de quinze anos depois, em Minas Gerais, o músico Gil Amâncio e

o poeta e músico Ricardo Aleixo incluíram um desses catorze vissungos no espetáculo e CD Quilombos urbanos: Muriquinho piquinino, o canto 62 do livro de

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Aires. Também na releitura dos Quilombos urbanos, os tambores não choram como pede o coro, mas se aceleram num ritmo que deságua no carnavalesco de Maracangalha, canção que se segue ao vissungo, em pot-pourri, na mesma faixa do CD.”

Através da argumentação de Sônia Queiroz percebemos o quanto é difícil resgatar gêneros musicais quase esquecidos.

E atualmente há algum grupo musical que trabalhe parte desse repertório cultural e musical?

“Ao final da década de 90, a Associação Cultural Cachuera! gravou, na voz de Ivo Silvério da Rocha, contramestre do Catopê de Milho Verde (distrito do Serro), três “cantos para carregar defuntos em redes”, que constituem a primeira faixa do CD Congado Mineiro, lançado pela Itaú Cultural, na série Documentos Sonoros Brasileiros. Juntamente com as gravações que constituem as faixas 12 a 17 do CD Festa do Rosário – Serro, lançado por Caxi Rajão em 2002, esses são os únicos registros sonoros dos Catopês de Milho Verde, grupo que mantém vivos ainda hoje, em seu repertório ritual, alguns

desses cantos da tradição banto.”

E qual a importância do catopê do Milho Verde?

“Dentre os membros do catopê de Milho Verde, a pesquisadora Lúcia Valéria Nascimento, que investigou a sobrevivência dos vissungos na região de Diamantina e Serrro no início do século XXI, identificou, além do contramestre, outro cantador proficiente: Antônio Crispim Verísssimo, que demonstrava ainda algum conhecimento ativo da “língua banguela” ou “língua d’Angola”, como a designavam os falantes à época dos registros feitos por Aires da Mata Machado Filho. É notável a força do canto e da dança na preservação do patrimônio lingüístico e cultural. Em outras palavras:

desaparecido o ritual dos funerais feitos a pé e o trabalho coletivo, as festas religiosas de cronograma fixo especialmente a festa de N. S. do Rosário) passam a desempenhar um papel essencial na preservação dos cantos de tradição africana em Minas.”

E há algum interesse atual na preservação desse patrimônio histórico?

“O interesse na preservação desse patrimônio histórico e cultural brasileiro e o reconhecimento do papel relevante da Arte nesse processo têm levado alguns artistas e pesquisadores a desenvolver estratégias de valorização e revitalização das línguas e culturas africanas que foram vivas em Minas no período da mineração, reduzindo-se a vestígios esparsos a partir sobretudo do século XX. O Festival de Inverno da UFMG tem se constituído num espaço de experiências poéticas transculturais que contemplam a cultura afro-brasileira: em 2002, reuniram-se em Diamantina os dois cantadores de vissungos do Serro e o grupo Tambolelê, de Belo Horizonte – constituído por músicos negros que trabalham com a poética afro-brasileira – numa proposta de criação coletiva integrando tradição e experimentação, que resultou no espetáculo Macuco Canengue, apresentado no adro da igreja do Rosário, em Diamantina; e no documentário de mesmo título, produzido pelo antropólogo e videomaker Pedro Guimarães, e mostrado ao grande público em Belo Horizonte, no Centro Cultural Tambolelê e na sala Humberto Mauro, no Palácio das Artes, e no largo da igreja do Rosário, no

encerramento do 4º Encontro Cultural de Milho Verde, distrito do Serro; em 2004,

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foi realizada uma oficina de transcriação de vissungos, articulada a outra, de Etnomusicologia, com a participação dos dois cantadores de Milho Verde e de estudantes angolanos falantes de quimbundo e umbundo – línguas banto faladas em Angola que estão na base desses cantos afro-brasileiros; em 2008, nos 40 anos do Festival de Inverno da UFMG, os vissungos foram tema da instalação montada pelo Núcleo

Avançado de Criação Intermidiático, que reuniu profissionais das cinco artes envolvidas.”

A DIMENSÃO LINGUÍSTICA DOS VISSUNGOS

Os Vissungos são cânticos filiados a tradição lingüística bantófone.E sobre essa tradição a etnolingüista Yeda Pessoa de Castro diz:

“Nos anos 70, porém, inicia-se uma nova fase nos estudos afro-brasileiros com a redescoberta da importância do mundo banto e de suas recriações no Brasil, então revelados através da descentralização da pesquisa da cidade de Salvador que, na África, foi estendida da região iorubá nagô do Golfo do Benin ao Congo e Angola. Seus resultados foram analisados na tese de doutoramento que defendemos na Universidade Nacional do Zaire em 1976 e recentemente se encontram no livro Falares africanos na Bahia, publicado em 2001, já em segunda tiragem em 2005. Naquele ano, o Centro de Estudos Afro- Orientais da Bahia, através de intercâmbio com a Universidade Nacional do Zaire, inaugura o ensino de línguas do grupo banto no Brasil com o curso de quicongo ministrado pelo professor congolês Nlandu Ntotila. Em 1980, e por dez anos, esse

curso ficou sob a responsabilidade docente de um de seus alunos, Tata Raimundo Pires, que era membro da comunidade religiosa de tradição congo-angola. Atualmente esse curso é oferecido pelo ACBANTU, entidade afro-baiana dedicada aos estudos das tradições do mundo banto no Brasil.”

Qual a dimensão demográfica da tradição bantófone? A lingüista afirma:

“Levando em consideração que a língua viva de um povo é o testemunho mais antigo da história desse povo, os dados obtidos no domínio da língua, da religião e das tradições orais no Brasil revelaram a presença banto como a mais antiga e superior em número e em distribuição geográfica no território brasileiro por mais de três séculos consecutivos. Testemunho deste fato é a antroponímia de Palmares no século XVII, Ganga Zumba, Zumbi, Dandara, sua toponímia, Dembo, Macaco, Osengo, Cafuxi, e o vocabulário associado à escravidão, tais como: quilombo, senzala, mocambo, libambo, bangüê,mucama. Ao final desse mesmo século é publicada, em Lisboa, A arte da língua de Angola, uma gramática do quimbundo escrita na Bahia pelo missionário Pedro Dias com a finalidade de fornecer subsídios para a catequese do grande contingente negro-africano que se encontrava naquela cidade sem falar português. No domínio da religião, predominam os vocábulos de origem banto para nomear práticas diferentes de matriz negro-africana e os locais onde se realizam. No Brasil, a mais antiga de que se tem notícia é calundu, registrada no século XVII na poesia satírica de Gregório de Matos e descrita, no século seguinte, em 1728, por Nuno Pereira em O peregrino das Américas. Entre as mais conhecidas estão candomblé, umbanda, catimbó e macumba. Por sua vez, a importância histórica do Reino do Congo se reflete nos autos populares

denominados congos e congadas, onde a figura do Manicongo (senhor do Congo) é sempre lembrada em versos como Cabinda velha chegou / e rei do Congo falou. A mesma lembrança se registra para a Rainha Jinga ou Nzinga, do antigo Reino de

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Matamba, em Angola atual.”

A tradição bantófone influenciou de alguma maneira a cultura brasileira?

“A antigüidade dessa presença favorecida pelo número superior do elemento banto na composição demográfica do Brasil colonial, tanto quanto por sua concentração em zonas rurais, isoladas e naturalmente conservadoras, onde o recurso de liberdade era a fuga para os quilombos, foram importantes fatores de ordem sócio-histórica que tornaram a participação banto tão extensa e penetrante na configuração da cultura e da língua representativas do Brasil que aportes de matriz banto, como o samba e a capoeira, terminaram integrados ao patrimônio nacional como símbolos de brasilidade.”

E quais seriam os exemplos de sobrevivência bantófone na nossa cultura?

“Ainda hoje há registro de falares isolados em comunidades rurais, provavelmente vestígios de antigos quilombos, que preservam um sistema lexical banto, a exemplo da linguagem do Cafundó em São Paulo (cf. Vogt e Fry, 1996), do negro da costa em Tabatinga, Minas Gerais (cf. Queiroz, 1998) e nos vissungos recolhidos por Aires da Mata Machado Filho em São João da Chapada e mais recentemente por Lúcia Nascimento no município de Serro, também em Minas Gerais (cf. Machado Filho, 1964; Nascimento, 2002). Importante notar que se trata de falares de base portuguesa lexicalizados por línguas do grupo banto, assinalando-se, no entanto, a evidência de lexemas da zona lingüística R, na classificação de Guthrie, onde o umbundo, falado em Benguela, no Centro-Sul de Angola, é majoritário.”

E para a etnolinguista Yeda Pessoa de Castro o que representa os vissungos?

“os vissungos são identificados pelos seus falantes como língua banguela. Em seu vocabulário predominam substantivos prefixados pela vogal o-, um antigo demonstrativo que os bantuístas chamam de aumento, entre eles, o umbundo onjo, casa, mas que ocorre com o termo quimbundo njo na conhecida brincadeira infantil brasileira dos escravos de jó (os escravos domésticos) que jogavam caxangá (cf. Pessoa de Castro, 2007). A própria denominação vissungo corresponde ao substantivo umbundo ovisungo, plural de ocisungo, que significa louvores e ocorre geralmente na

expressão imba ovisungo, cantar, louvar, exaltar (cf. Daniel, 2002, s/v.).”

E como a etnolinguista entende o processo de influência dos falares africanos na língua portuguesa?

“Quanto ao influxo de línguas africanas no português do Brasil, sem dúvida, a parte dos falares de base banto foi a mais significativa no processo de configuração das diferenças que afastaram o português do Brasil da sua matriz falada em Portugal. À medida que a profundeza sincrônica revela uma antiguidade diacrônica, essa influência torna-se mais evidente pelo grande número de palavras do banto completamente integradas ao sistema lingüístico do português e de derivados portugueses formados de uma mesma raiz banto por meio de prefixos ou sufixos, tais como em nleeke, menino, jovem, que derivou em moleque,e depois amolecar, molequinho, molecote. Em

outros casos, o lexema banto chega a substituir completamente a palavra portuguesa

equivalente, como caçula por benjamim,corcunda por giba, moringa por bilha,

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marimbondo por vespa, cochilar por dormitar, bunda por traseiro.”

E como ela vê o processo de “iorubacentrização” dos estudos negros brasileiros?

“Sendo assim, embora seja verdadeiro que esse processo de africanização se deva em grande parte à extensão e ocupação territorial, densidade demográfica e antiguidade do povo banto em território colonial brasileiro, não se deve chegar ao extremo de querer “bantuizar” o Brasil como forma de contrapor o “iorubacentrismo” que tem prevalecido nos estudos afro-brasileiros. Uma correta interpretação das culturas negro-africanas, de seus códigos, seu conseqüente resgate do âmbito meramente folclórico ou lúdico, sua valorização e adequada difusão permitirão que o avanço do entendimento da parte do legado banto para a formação e sentido do Brasil passe a ser visível e explícito, revertendo os estereótipos vigentes em nossa academia. Além do mais, o estudo

lingüístico desses falares afro-brasileiros, apoiado pelas informações históricas existentes sobre o período do tráfico transatlântico, trazem subsídios importantes para a configuração do mapa etnolingüístico africano do Brasil. Aqui está a prova do que nos dizem os vissungos sobre a presença dos ovimbundos, povo originário de territórios do antigo reino de Benguela, em terras de Minas Gerais.”

BREVE PANORAMA DA OBRA DE CLEMENTINA DE JESUS

A sambista carioca Clementina de Jesus nasceu em Valença em 7 de Feveiro de 1901 e morreu em Rio de Janeiro em 1987 aos 86 anos.Também era conhecida como Tina ou Quelé.

Nascida na comunidade do Carambita, bairro da periferia de Valença, no sul do Rio de Janeiro, mudou-se com a família para a capital aos oito anos de idade, radicando-se no bairro de Osvaldo Cruz. Lá acompanhou de perto o surgimento e desenvolvimento da escola de samba Portela, frequentando desde cedo as rodas de samba da região. Em 1940 casou-se e mudou para a Mangueira. Trabalhou como doméstica por mais de 20 anos, até ser "descoberta" pelo compositor Hermínio Bello de Carvalho em 1963, que a levou para participar do show Rosa de Ouro, que rodou algumas das capitais mais importantes do Brasil e virou disco pela Odeon, incluindo, entre outros, o jongo Benguelê. Devota da Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, participava de festas das igrejas da Penha e de São Jorge, cantando canções de romaria. Considerada rainha do partido alto, com seu timbre de voz inconfundível, foi homenageada por Elton Medeiros com o partido Clementina, Cadê Você? e foi cantada por Clara Nunes com o P.C.J, Partido Clementina de Jesus, em 1977, de autoria do compositor da Portela Candeia.

Além deste gênero gravou corimás, jongos, cantos de trabalho etc., recuperando a memória da conexão afro-brasileira. Em 1968, com a produção de Hermínio Bello de Carvalho, registrou o histórico LP Gente da Antiga ao lado de Pixinguinha e João da Baiana. Gravou cinco discos solo (dois com o título Clementina de Jesus,Clementina, Cadê Você? e Marinheiro Só) e fez diversas participações, como nos discos Rosa de Ouro, Cantos de Escravos, Clementina e convidados e Milagre dos Peixes, de Milton Nascimento, em que interpretou a faixa Escravos de Jó. Em 1983 foi homenageada por um espetáculo no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com a participação de Paulinho da Viola, João Nogueira, Elizeth Cardoso e outros nomes do samba.

Rainha Ginga. Quelé. Duas maneiras de chamar Clementina de Jesus, com a imponência do

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título de realeza e com a corruptela carinhosa de seu nome. Clementina evocava tais sentimentos aparentemente contraditórios. A ternura e o profundo respeito.

A ternura de negra velha sorridente. Todos com quem se envolvia tinham a compulsão de chamá-la Mãe, como a chamavam os músicos do musical Rosa de Ouro. Uma pessoa capaz de interromper um depoimento dado à televisão para discutir sobre o café com a moça que o servia. Um brilho especial nos olhos que cativou desde os mais humildes ao imperador Haile Selassié. Talvez por ter trabalhado tantos anos como empregada doméstica e ter começado a carreira artística aos 63 anos, descoberta pelo poeta Hermínio Bello de Carvalho, nunca tratava de forma diferente devido à posição social.

O respeito ao peso ancestral de sua voz: uma África que estava diluída em nossa cultura é evocada subitamente na voz e nos cânticos que Clementina aprendeu com sua mãe, filha de escravos. Clementina surgiu como o elo perdido entre a moderna cultura negra brasileira e a África Mãe.

Clementina causou uma fascinação em boa parte da MPB. Artistas tão diferentes como João Bosco, Milton Nascimento e Alceu Valença fizeram questão de registrar sua voz em seus álbuns. Apesar disso Clementina nunca foi um grande sucesso em vendagem de discos. Talvez por ter gravado quase que somente temas folclóricos, ou por sua voz não obedecer aos padrões estéticos tradicionais. O que realmente impressionavaeram suas aparições no palco, onde tinha um contato direto com seu público.

Clementina, mesmo tendo iniciado tardiamente sua vida artística e com uma curta carreira, é sem dúvida uma das mais importantes artistas brasileiras. Faleceu em função de um derrame na Vila Santo André - Inhaúma - Rio de Janeiro, em 19 de julho de 1987 e apesar disso, hoje em dia apenas o disco Clementina e Convidados existe em catálogo.

Discografia:Discos-solo• 1966 - Clementina de Jesus (Odeon MOFB 3463) • 1970 - Clementina, cadê você? (MIS 013) • 1973 - Marinheiro Só (Odeon SMOFB 3087) • 1976 - Clementina de Jesus - convidado especial: Carlos Cachaça (EMI-Odeon SMOFB 3899) • 1979 - Clementina e convidados (EMI-Odeon 064 422846) Participações• 1965 - Rosa de Ouro - Clementina de Jesus, Araci Cortes e Conjunto Rosa de Ouro (Odeon MOFB 3430) • 1967 - Rosa de Ouro nº 2 - Clementina de Jesus, Araci Cortes e Conjunto Rosa de Ouro (Odeon MOFB 3494) • 1968 - Gente da Antiga - Pixinguinha, Clementina de Jesus e João da Baiana (Odeon MOFB 3527) • 1968 - Mudando de Conversa - Cyro Monteiro, Nora Ney, Clementina de Jesus e Conjunto Rosa de Ouro (Odeon MOFB 3534) • 1968 - Fala Mangueira! - Carlos Cachaça, Cartola, Clementina de Jesus, Nélson Cavaquinho e Odete Amaral (Odeon MOFB 3568) Coletâneas• 1999 - Raízes do Samba - Clementina de Jesus (EMI 522659-2)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não foi objetivo deste estudo substituir a consulta à obra do filólogo Aires da Mata Machado Filho “O Negro e o garimpo em Minas Gerais” nem substituir a escuta do CD “O Canto dos Escravos” de Clementina de Jesus, Doca e Geraldo Filme da Gravadora Eldorado.Mas ser um convite para que o leitor conheça essas obras e mergulhe na riqueza da contribuição musical e linguistica do povo negro brasileiro.

O SAMBA ‘MACHO-MAN’ DE ROBERTO SILVA

Este estudo é uma análise da obra do sambista carioca Roberto Silva. E foi inteiramente

baseado numa coletânea segmentada lançada pela Gravadora EMI, cujo título é “Raízes do

Samba – Roberto Silva”.

Tal projeto de coletânea foi coordenada por Sonia Antunes e Maurício Dias. E o repertório

foi uma seleção de Carlos Savalla.

Roberto Silva não é compositor, mas intérprete de sambas urbanos. Pelo menos se compôs

algo na vida, Carlos Savalla deixou de fora da coletânea ou talvez se quer foi gravado no seu

potente vozeirão.

Roberto Silva é um sambista nonagenário da velha guarda e que na capa da coletânea

revela como seu imaginário está ligado à boêmia carioca, já que na capa o sambista aparece

numa foto vestido socialmente (como diziam os mais antigos : vestido decentemente). Na

foto tirada provavelmente na meia idade – quem sabe até mais moço, o problema é que

esses homens de antigamente se vestiam com tanta formalidade e solenidade, que a roupa

acabava os envelhecendo nas fotos – Roberto Silva posa tendo o bonde e o Arco da Lapa

por trás.

O sambista de Risoleta (Raul Marques/Moacyr Bernardino) começou a gravar na década de

60 e a maioria dos sambas da coletânea citada são setentistas.Mas mesmo tendo gravado

nos anos 60, o samba de Roberto Silva tem um sabor nostálgico e um cheiro ligeiramente

envelhecido.Talvez isso se dê pelo fato do intérprete ter escolhido compositores das década

iniciais do século XX.Ou por uma certa fixação nos anos 40 e 50.Época em que a música

popular brasileira é conhecida pelo povão como “música de dor de cotovelo”, ou, mais

pejorativamente, o povão se refere a esse período musical como “música de corno”.

Quais são as temáticas cantadas pelo sambista carioca? Roberto Silva escolheu cantar os

males e dores do amor. Nelas há muito espaço para desilusões, desencontros amorosos ou

conquistas do tipo machão galanteador.

A obra interpretada por Roberto Silva exibe um painel do velho macho latino ocidental, mas

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com um quesito peculiar que o diferencia de um Nelson Gonçalves ou um Francisco Alves: o

fato de ser um negro pobre e trabalhador, lidando com negras ou mulatas malvadas – A

Mulher que eu gosto (Ciro de Souza/Wilson Batista) e a endiabrada Risoleta.

Roberto Silva em sua época foi um dos poucos negros que conseguiu atingir o público

branco pelo enorme potencial de sua voz. E também porque cantava aquilo que os machões

brancos queriam ouvir.

E se o leitor quer provas do machismo de Roberto Silva, que tal esses versos dos

compositores Haroldo Lobo e Wilson Batista, “Emília”:

“Eu quero uma mulher/que saiba lavar e cozinhar/que de manhã cedo me acorde

na hora de trabalhar/Só existe uma e sem ela eu não vivo em paz:

Emília/Emília/Emília/Não Posso mais/Ninguém sabe igual a ela/Preparar meu café/Não

desfazendo das outras:/Emília é mulher/Papai do Céu é quem sabe/A falta que ela

me faz/Emília/Emília/Emília/ Não Posso mais”.

Os leitores podem retrucar dizendo que o machismo não é dele, mas dos compositores.Isso

seria uma forma de tangenciar o machismo do intérprete.De tangenciar o intangenciável.É

claro que se sou intérprete eu canto aquilo com que concordo ou afino

ideologicamente.Jamais a cantora gospel Aline Barros cantaria um ponto de umbanda ou

um hardcore anticapitalista anarquista.

Assim, não só nessa faixa “Emília” como em outras o sambista exibe todo o seu machismo

de fundo patriarcal. Mas isso diminui sua obra enquanto artista? Aí entramos numa seara

muito complexa. Há excelentes artistas que foram reacionários em política e ideologia,

como por exemplo o poeta americano Ezra Pound e o contista argentino Jorge Luis Borges.

Não podemos deixar de reconhecer que mesmo gravando na década de 70, pelo menos 10

ou 15 anos depois das explosões dos movimentos feministas da década hippie, Roberto

Silva poderia ter escolhido gravar sambistas mais esquerdizados e arejados como Paulinho

da Viola, Wilson Moreira e Nei Lopes.

Se não optou só uma pesquisa mais profunda na biografia do intérprete daria conta de

explicar o “porque” desse machismo tão anacrônico e démodé. Não podemos esquecer que

o intérprete gravou nos anos da ditadura militar e o patriarcalismo era incentivado

vívidamente pelos militares, como o é até hoje pelas forças armadas.

ROBERTO SILVA E OS CULTOS AFROS

O sambista como bom carioca também gravou uma música reveladora de sua ligação com

os cultos afros. Senão vejamos o que pensar desses versos de “Pisei num Despacho”

(Geraldo Pereira/Elpídio Vianna):

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“Desde o dia que passei/numa esquina/e pisei num despacho/entro no samba/meu

corpo tá duro/bem que procuro a cadência/e não acho/meu samba e meu verso/não

fazem sucesso/há sempre um porém com a gafieira/fico a noite inteira/ no fim não

dou sorte com ninguém/mas eu vou num canto/vou num pai de santo/pedir

qualquer dia/que me dê uns passes/uns banhos de ervas/e uma guia/está aqui um

endereço/um senhor que eu conheço/me deu há três dias/o mais velho é batata/ diz

tudo nas atas/ é uma casa em Caxias”

Na composição que não é de Roberto Silva, não se sabe claramente que tipo de culto o

personagem vai se consultar. Não conseguimos saber textualmente se está falando da

umbanda, da quimbanda ou do candomblé.Mas como se trata do Rio de Janeiro há uma

grande probabilidade que os compositores estejam se referindo a uma casa de umbanda,

que é um culto tipicamente carioca que se espalhou para o resto do país e sofrendo

adaptações onde chegou pelo País.Tanto que aqui no Ceará, que majoritariamente cultua o

catimbó, depois de um certo tempo os catimbozeiros passaram a usar o termo umbanda

como uma tentativa de assustar menos os fregueses e vizinhos. Já que na variedade dialetal

cearense “catimbó” quer dizer feitiçaria, magia negra pesada.

A obra do cineasta Roberto Moura Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro – 2ª edição

– Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão

de Editoração, 1995 – é um excelente roteiro para se entender como se deu o surgimento

da umbanda carioca no contato com babalorixás e yalorixás vindas da diáspora baiana. Vale

a pena ser lida, pois é uma obra que esmiúça bem os aspectos religiosos,

políticos,antropológicos e musicais daquele período.

Mas e quanto ao samba “Pisei num Despacho”? Bem. Despacho é um termo muito próprio

da umbanda ou macumba carioca pré-umbandista (Não podemos esquecer que a umbanda

surgiu somente nos anos 10 do século XX). Anteriormente a isso os descendentes de

escravos cariocas já se reuniam subterrânea e marginalmente num culto mágico conhecido

como macumba. Se os compositores fossem ligados ao candomblé teriam usado o termo

ebó, o que acaba automaticamente filiando a canção ao imaginário mesmo da

umbanda.Nela se cruzam dois universos: o secular, o profano(freqüentar cabarés e

gafieiras) e o sagrado (freqüentar pai de santo), como é típico das populações pobres

brasileiras.O personagem resolve procurar o sagrado apenas porque começa a se dar mal

no campo do profano.Ou como dizem os moralistas kardecistas: o homem nunca procura o

espiritual pelo amor, mas pela dor.O personagem espera do pai de santo uma terapêutica

que já deve ter usado anteriormente e tido bons resultados(tomar uns passes, um banho de

ervas e usar uma guia preparada), se não tivesse dado certo com certeza o personagem da

canção não buscaria este tipo de recurso, o que talvez sinalize que ele funcione.Aliás,

qualquer atenção dada por um homem ou mulher mais velhos sempre funciona.E na música

a senioridade do pai de santo é realçada e valorizada, como acontece no continente

africano e é reproduzido também nos ‘locus’ religiosos da diáspora negra.

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Mas para dizer mais coisas eu deveria ser carioca, afinal tendo ido ao Rio de Janeiro uma

única vez na vida, não dá para analisar com propriedade se essa faixa revela mesmo um

jeito carioca de ser ou se falha em alguma coisa. A minha suposição é de Pisei num

Despacho não só define bem essa “carioquicidade” que eu conheço na prática

superficialmente - quando fui no Rio fiquei apenas 10 dias lá e muito dentro de onde estava

sendo realizado um evento estudantil universitário, eu por exemplo não conheci a “noite

boêmia” carioca – mas define muito bem a chamada brasilidade. E a peculiaridade do

chamado “jeitinho brasileiro” tem muito a ver com essa constante sensação de viver na

corda bamba ou no fio da navalha.Pois o Brasil é um país pobre em termos de distribuição

de renda e riquíssimo em termos de renda concentrada.Assim, a experiência de ser

brasileiro passa quase sempre pela escassez material e pela enorme criatividade espiritual. É

quando se faz perceber um Estado ausente no atendimento da penúria dos mais pobres e

presente apenas na criminalização de quando esses mais pobres se organizam e também

numa iniciativa privada mesquinha e elitista, que define o jeito brasileiro de ser e pertencer.

Roberto Silva representa muito bem o imaginário masculino, negro e pobre do Brasil de

uma certa época, que talvez ainda sobreviva com força na roda de conversas de velhos

aposentados jogando cartas, dominó e “porrinha”. O trabalho do sambista merece ser

ouvido, a voz dele é potente, os arranjos são interessantes e são uma forma de mergulhar

na história negra brasileira.

A CARTA DO POVO DE TERREIROS À DILMA CANDIDATA

“Se apetece ao PT/ter poder”Tom Zé em “Jardim da Política” no ano de 1985

Este texto pretende analisar a Carta do Povo Tradicional de Terreiros endereçada a ainda candidata Dilma Russeff, datada de 18 de Outubro de 2010, Brasília.

No começo da carta o enunciador avisa que a carta é fruto de consulta a lideranças nacionais do Povo Tradicional de Terreiros e que o objetivo da mesma é expressar o sentimento dominante do Povo Tradicional de Terreiro, ainda que o enunciador reconheça que a mesma não seja um consenso.

O enunciador diz:

“Inegavelmente sua candidatura à presidência da República é o quehá de mais seguro para o Povo Tradicional de Terreiro.”

Embora o texto não cite, talvez o enunciador estivesse se referindo indiretamente à candidatura da evangélica Marina Silva.

No terceiro parágrafo o enunciador situa o Povo Tradicional de Terreiro em relação à candidatura de Dilma Russeff:

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“Nosso Povo de Terreiro efetivamente se movimentou no primeiro turno a seu favor, mas sem receber nenhum apóio oficial dos comitês responsáveis por sua campanha; em poucas cidades especialmente nas capitais, esse processo se deu de forma diferenciada, mas o que predominou foram situação como a de Manaus, o material de divulgação voltado a População Negra só chegou as mãos das lideranças de Terreiro três dias antes da votação, um completo e total descaso para conosco.”

E a partir da alfinetada nos organizadores da campanha da então candidata do Partido dos Trabalhadores, o enunciador revela a baixa auto-estima histórica da população negra do Brasil.

O enunciador compara o uso midiático que a campanha fez junto ao segmento católico e evangélico e ao segmento do Povo Tradicional de Terreiros:

“Vimos com muita preocupação que nos últimos dias um esforço concentrado de sua coordenação de campanha, em mudar a imagem negativa forjada junto aos cristãos católicos e, principalmente, evangélicos. Também observamos com pesar que durante toda a campanha do primeiro turno os seus encontros com as comunidades evangélicas e católicas ganharam grande espaço junto à mídia.

Se o mesmo tipo de encontro se deu junto ao Povo de Terreiro no primeiro turno ou agora no segundo, isso se fez de forma muito tímida, sem nenhuma divulgação ou destaque. É corrente o pensamento de que um encontro da senhora conosco lhe tiraria votos de evangélicos radicais.”

O enunciador emite o seu parecer sobre um encontro apenas com lideranças evangélicas da então candidata:

“O seu recente encontro com pastores evangélicos no nosso entendimento foi um infeliz episódio. Com toda a certeza seu compromisso com o grupo lhe renderá votos, mas com toda a certeza lhe fez perder muitos votos do Povo Tradicional de Terreiro, do Movimento LGBT católicos e a sociedade em geral por conta de ter sido um encontro com apenas e tão somente com evangélicos.”

Assim, o Enunciador situa o Povo Tradicional de Terreiros com outro segmento populacional também discriminado na nossa cultura: os LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros).

E o enunciador conclui o resultado lógico de tal estratégia da direção da campanha da candidata Dilma Russeff:

“O resultado de tal iniciativa foi um significativo e crescente número de manifestações via internet conclamando a população a votar em branco ou no seu opositor. Manifestações essas que respeitamos enquanto direito de livre manifestação, mas não concordamos.”

O enunciador emite o seu parecer sobre o conceito de Estado Laico:

“Acreditamos na sua proposta de um Estado laico. Temos presente pelo seu histórico pessoal e político que, se eleita, a senhora se empenhará na execução dessa

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demanda social.”

O enunciador emite o seu parecer sobre a inclinação de Dilma a ceder sob a pressão dos setores evangélicos em relação à questão do Aborto e da Parceria Civil entre pessoas do mesmo sexo:

“A partir do momento em que a candidata assinalou pactuar com o pensamento dos pastores evangélicos, em questões altamente delicadas como o aborto e a parceria civil, nos preocupa o empoderamento que seu ato proporcionou as religiões hebraico-cristãs especialmente o seguimento neopetencostal, em detrimento das demais religiões.”

O enunciador emite o seu parecer sobre os mecanismos mafiosos do segmento evangélico:

“Em todo o Brasil é tido como fato concreto que os religiosos evangélicos jogaram a eleição presidencial para o segundo turno, que a candidata do governo, já considerada eleita, teve que se curvar diante do poder e ditames dos pastores evangélicos para poder garantir a eleição. Pelo que até o momento pudemos vir de sua conduta pessoal esse deve ter sido um momento extremamente difícil na sua história de vida.”

E o enunciador esmiúça um pouco mais a forma de atuação da máfia evangélica:

“Admitimos que o grupo evangélico está cumprindo, muitíssimo bem, o objetivo de chegar ao poder; estão organizados social e politicamente, os currais eleitorais garantem o voto de cabresto em nome de Jesus e das penas do inferno para quem não seguir as diretrizes dos pastores. A significativa bancada federal de evangélicos no Congresso Nacional lhe obriga a dialogar politicamente com o grupo como um todo, a fazer concessões e a pactuar.

As caminhadas, marchas e encontros com milhares de fiéis evangélicos são manifestações incontestes de força e poder. Força e poder conquistado com substancial ajuda dos governos passados e atuais. A prova maior disso é que a cada dia surgem denúncias e mais denúncias junto aos Tribunais de Contas de Municípios, Estado e União de repasse de verbas, convênios e parcerias de governos municipais, estaduais e federal com o seguimento evangélico que não foram cumpridos e ou foram usados de forma indevida, criminosa até.”

O enunciador fala do potencial eleitoral do Povo Tradicional de Terreiro:

“Em contra posição qual é o potencial de voto do Povo de Terreiro?

Com certeza somos milhões, mas não dispomos da mesma estrutura que dispõem os evangélicos. Não nos foi possível criar hegemonia por conta do preconceito e racismo institucional. Foi graças ao Governo Lula que o Povo Tradicional de Terreiro passou a ser tratado com alguma distinção, mas as ações estruturantes do governo federal ainda não chegaram até nós como deviam. A grande maioria ficou fora, não consegue escrever projetos na linguagem oficial do governo, faltou investimento na capacitação de nosso Povo.”

Dessa forma, o enunciador reconhece a precariedade do Protagonismo político do Povo

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Tradicional de Terreiros.E o que é pior atribui ao Estado à culpa por essa pobreza política no sentido que fala a obra de Pedro Demo.

O enunciador emite o seu parecer sobre um possível impasse eleitoral para o Povo Tradicional de Terreiros:

“Todo esse quadro acima descrito aumentou nossa apreensão e dificultou a busca de votos no meio do Povo Tradicional de Terreiro, temos ouvido argumentos de que em sendo a senhora eleita, isso decerto, alavancará o prestígio dos evangélicos junto a população bem como junto ao próprio governo. O que para as demais religiões restantes seria extremamente danoso, haja vista o processo de intolerância vigente no país.

Há poucos dias da eleição entendemos que seria difícil articular uma única reunião da Senhora com lideranças religiosas nacionais do Povo Tradicional de Terreiro; entendemos que nesse momento precisamos lhe blindar. Qualquer movimento poderá ser mal interpretado.”

O enunciador faz um balanço da chamada “Era PT” para a população negra brasileira:

“Nosso apóio a sua candidatura é fato concreto, acreditamos que a Senhora é a melhor opção de continuidade das ações afirmativas do governo federal que deram a População Negra o que lhe foi secularmente negado desde a chegada do primeiro negro escravo ao Brasil, entre as que mais se destacam está a criação da SEPPIR, a Saúde Integral da População Negra, a Lei 10.639 e o polêmico Estatuto da Igualdade Racial que não é o que nós quereríamos, mas que é um ponto de partida para novas conquistas.”

O enunciador da carta propõe uma plataforma caso a candidata seja a eleita:

“Como estamos tratando de Política que reflete o desejo do Coletivo há alguns aspectos que precisam ser pactuados entre o Povo Tradicional de Terreiro e seu futuro governo.

Com base em tudo o que acima destacamos queremos pactuar com a Senhora o que abaixo segue:

1 – Após as eleições, onde a senhora com a ajuda dos Vòdún’s, Nkices, Òrisá’s, Encantados, Caboclos, Catiços e Exús será vitoriosa, um encontro dos representantes nacionais do Povo Tradicional de Terreiro e a presidente eleita.

2 – Que seja firmado o pacto interreligioso e a presidente eleita de uma maior ênfase na proposta da promoção do Estado laico e do tratamento equânime às religiões como um todo.

3 – A realização da Primeira Conferência Nacional da Equanimidade Religiosa com ampla participação dos vários segmentos religiosos existentes no país.

4 – Encaminhar ao Congresso Nacional o Plano Nacional Contra a Intolerância Religiosa

5 – A continuidade, ampliação e Efetivação do mapeamento do Povo Tradicional de

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Terreiro no âmbito dos Estados, de forma censitária, identificando as matrizes culturais.

6 – A revisão do Estatuto da Igualdade Racial onde seja ouvida a População Negra e suas demandas.”

Nessa altura da análise começamos a perceber o que é valorizado pelo Povo Tradicional de Terreiros a saber: interreligiosidade, laicidade, equanimidade religiosa e combate a intolerância religiosa, ou seja, tudo aquilo que o Pastor Silas Malafaia odeia. Além disso os signatários da carta parecem não terem receio político nenhum do povo negro ser mapeado e rastreado pelo Estado.

A carta teve vários signatários.Entre eles citaríamos o primeiro que deve ser do culto da nação Djedje: Dr. Alberto Jorge Rodrigues da Silva - Vodunsi Re Rohsovi - Que é responsável pela Coordenação Amazônica da Religião de Matriz Africana e Ameríndia – Carma e também representante da Federação Nacional da Religião de Matriz Afro-brasileira – FENAREMA.

Mas também não poderíamos deixar de destacar que, entre números representantes de diversos segmentos afro-brasileiros, a carta contou com o apoio do Sindicato dos Psicólogos do Amazonas e da Federação Nacional dos Psicólogos (entidade filiada à CUT).Sendo assim tal apoio funciona como uma espécie de legitimação científica aos credos afro-brasileiros, algo como dissesse que ir para macumba faz bem a mente.

Quais são os problemas que identificamos nessa carta? Vamos a eles.O que fica patente é que o Povo Tradicional de Terreiros sempre foi subserviente à Política, ao Estado burguês.E basta lembrar nos tempos da ditadura militar no Ceará, a relação promíscua de pais de santo umbandistas com a Luiza Távora(do finado PDS) uma relação de subserviêcia política sem dúvida.Como se o povo de santo não pudesse caminhar com as próprias pernas e precisasse dos favores clientelistas dos políticos, criando uma relação de dependência totalmente nociva.

Se o povo de santo fosse realmente organizado deveria lutar não por se integrar a lógica da máquina governamental, mas de prescindir da mesma.

“Povo organizado, luta sem partido e vive sem estado”Diz a palavra de ordem anarquista.E eu concordo com isso.

Como esperar um verdadeiro protagonismo político enquanto se espera por tutelas governamentais? Será a população negra tão eternamente coitadinha e vitimizada a depender sempre dos favores do sistema governamental? Não poderá nunca essa mesma população lutar com suas próprias forças?

Entretanto, reconheço que se vivemos num sistema capitalista mediado por taxas e pagamentos de impostos compulsórios, temos de saber o que acontece com o erário público. E saber que esse erário pode parar nas mãos da máfia evangélica é realmente preocupante.E nisso me solidarizo com os signatários da carta.

Mas é extremamente incômoda essa grau de expectativa e ansiedade em relação ao PT.E eu vou explicar por que, embora eu seja um pouco suspeito porque eu já fui filiado a esse partido e fiz parte do grupo político Democracia Socialista, da qual a

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Prefeita de Fortaleza Luiziane Lins fez ou faz parte (digo isso porque como me afastei desse grupo, não sei dizer se o mesmo ainda existe com esse nome e seguindo o paradigma do mandelismo ou se o grupo se reconfigurou politicamente ou se fundiu a outras correntes do PT, realmente não sei informar isso).O que sei informar é que já em 2000 rompi com o PT porque queria algo mais radical e fui parar no campo da chamada esquerda não-oficial.Se o meu nome ainda estiver oficialmente nos arquivos do partido não sei dizer, já que não me importei nem em rasgar a ficha de filiação partidária.Simplesmente me afastei e pronto.

Nós anarquistas temos um parecer contrário à Política institucional, pois como diziam os ativistas da Internacional Situacionista no Maio Francês: “Política é subalternidade.Escolher política é estupidez!”. Desse modo, o anarquista é livre para não comparecer no dia da eleição ou votar nulo. Mas pode dependendo da conjuntura escolher votar num candidato menos ruim e vou explicar quando isso aconteceu e o motivo.

Num dos pleitos eleitorais franceses, havia uma grande probabilidade de ser eleito o representante da extrema direita, Jospein. Assim, alguns anarquistas franceses que já conheciam os horrores das prisões francesas , resolveram votar no candidato da esquerda burguesa da época.

Sendo assim, devo confessar que depois que me tornei anarquista nunca mais fiz campanha para nenhum candidato, mas só votei nulo no primeiro turno da primeira eleição vitoriosa de Lula.De lá para cá tem sempre havido no pleito presidencial ou no pleito municipal uma polarização entre a extrema direita e a esquerda burguesa.Como tenho receio de um “facho” (fascista) no poder, seja ele Geraldo Alckmin ou Moroni Torgan, acabo mesmo sem fazer campanha, votando na candidatura da esquerda burguesa.Desse modo, em 2004 eu votei em Luiziane Lins e voltei a votar nela novamente em 2008.Pois temia ver a cidade governada por um xerife evangélico e homofóbico, que tem na fetichização da questão da segurança pública o seu carro chefe ideológico-partidário.

Em 2010, eu votei mas não fiz campanha para Dilma Rosseff e cheguei até a falar nisso para os meus decepcionados amigos anarco-punks.Não me agradava de jeito nenhum ver um José Serra, ligado aos setores mais conservadores e reacionários do momento, governando o país e prendendo ou criminalizando barbaramente ativistas anarquistas.Ainda que essas criminalizações também ocorram dentro da denominada “Era PT” só que sem a mesma intensidade.Além disso, o tal do José Serra contou com o apoio do mega empresário evangélico, Silas Malafaia.Sim, o conhecido Malafaia que gosta de humilhar homossexuais e outras minorias sexuais identitárias nas suas pregações midiáticas com tom zangado e histérico.

Não posso exigir do Povo Tradicional de Terreiros uma guinada anti-estatista ou anticapitalista radical. Já que a maioria dos líderes desse segmento populacional se vêem como prestadores de serviços religiosos e não como lideranças comunitárias.Se houvesse uma consciência da inegável dimensão política de um Ilê, de um Nzo ou de um Terreiro eu poderia esperar mais coisa, mas como essas pessoas se vêm apenas como empresas concorrentes no nem sempre civilizado mercado religioso (conferir a obra do sociólogo Reginaldo Prandi),é de se esperar isso mesmo: uma vontade danada

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de ser tutelado seja lá por quem for, seja um governo de direita ou de esquerda.

Embora os signatários da carta usem a categoria ‘empoderamento’, o que menos acontece na prática é isso.Ocorre justamente o contrário: cada vez mais a sociedade civil desempoderada e o Estado e as instituições burguesas cada vez mais poderosas.

Eu poderia aprofundar um pouco mais o que penso da chamada “Era PT” iniciada em 2002 e continuada em 2011 por Dilma Russeff.Mas vou só dar umas pinceladas.Desde 2002 que não espero muito coisa do Partido dos Trabalhadores e isso ficou muito claro quando o Lula fez aliança com Edir Macedo e sua empresa Universal e teve como vice um burguês da marca do José Alencar.Naquele momento para mim ficou selado os rumos burgueses do PT, que como diz a música do Tom Zé sempre quis poder seja ao lado de quem fosse.

O PT no poder beneficiou os banqueiros e penalizou o funcionalismo público federal. O PT no poder tem o T de Transgênico, já que o paradigma agrícola do Partido é a segurança alimentar a qualquer custo, ainda que signifique um custo ambiental.O PT no poder não combateu o “agro-business” e nem a prática da monocultura –visivelmente responsáveis pelo envenenamento e empobrecimento dos solos.O PT no poder tem uma enorme simpatia por mega-projetos estruturantes que podem penalizar vilas de pescadores, aldeias quilombolas, povos indígenas, comunidades ribeirinhas como a Transposição do Rio São Francisco, as Hidrovias, as Hidroelétricas, as Siderúrgicas, as Refinarias e principalmente o poluidor Pré-Sal, a menina dos olhos do governo Dilma Russeff.

Eu poderia continuar a lista, mas aí fugiria um pouco do tema e cansaria o leitor que já entendeu claramente onde quero chegar

O PROBLEMA DO DESTINO NA CIÊNCIA, NA CULTURA IORUBÁ E NA ASTROLOGIA

“DESTINO (gr. £ÍLIAPLIÉVR|; lat. Fatum; in. Destiny,fr. Destin; ai. Geschick, Schicksal; it. Destino).Ação necessitante que a ordem do mundoexerce sobre cada um de seus seres singulares.Na sua formulação tradicional, esse conceitoimplica: Iª necessidade, quase sempre desconhecidae por isso cega, que domina cadaindivíduo do mundo enquanto parte da ordemtotal; 2ª adaptação perfeita de cada indivíduoao seu lugar, ao seu papel ou à suafunção no mundo, visto que, como engrenagemda ordem total, cada ser efeito para aquiloque faz.0 conceito de D. é antiquíssimo e bastantedifundido, porque compartilhado por todas asfilosofias que, de algum modo, admitem umaordem necessária do mundo. Aqui só faremosalusão às que designam explicitamente essaordem com o termo em questão. O D. é noçãodominante na filosofia estóica. Crisipo, Posidônio,Zenão, Boeto o reconheceram como a"causa necessária" de tudo ou a "razão" pela

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qual o mundo é dirigido. Identificavam-no coma providência (DiÓG. L., VII, 149). Os estóicoslatinos retomam essa noção e apontam seus reflexosmorais (SÊNECA, Natur. quaest., II, 36, 45;MARCO AURÉLIO, Memórias, IX, 15). SegundoPlotino, ao D. que domina todas as coisas exterioressó escapa a alma que toma como guia"a razão pura e impassível que lhe pertence depleno direito", que haure em si, e não no exterior,o princípio de sua própria ação (Enn., III,1,9). Para Plotino, a providência é uma só: nascoisas inferiores chama-se D.; nas superiores,providência {ibid., III, 3, 5). De modo análogo,para Boécio (que com a Consolação da filosofiatransmitia esses problemas à Escolástica latina),D. e providência só se distinguem porquea providência é a ordem do mundo vista pelainteligência divina e o D. é essa mesma ordemdesdobrada no tempo. Mas no fundo a ordemdo D. depende da providência (Phil. cons., IV,6,10). O livre-arbítrio humano subtrai-se da providênciae do D. só porque as ações a que dáorigem se incluem, exatamente em sua liberdade,na ordem do D. (Ibid., V, 6). Essa soluçãodeveria inspirar todas as soluções análogas daEscolástica, que conserva o mesmo conceitode D. e de providência (cf., p. ex., S. TOMÁS, S.Th., I, q. 116, a. 2). Em sua Teodicéia, Leibnizrepropunha a mesma solução (Théod., I, § 62).Na filosofia do Romantismo, enquanto Schopenhauerconsidera o D. como ação determinante,no homem e na história, da Vontadede vida na sua natureza dilacerante e dolorosa(Die Welt, II, cap. 38), Hegel limita o D. à necessidademecânica. "À potência", diz ele,"como universalidade objetiva e violência contrao objeto, dá-se o nome de D.: conceito quese inclui no mecanicismo porquanto o D. échamado de cego, ou seja, sua universalidadeobjetiva não é conhecida pelo sujeito em suapropriedade ou particularidade específica"(WissenschqftderLogik, III, II, 1, B, b; trad. it.,III, p. 199). Nesse sentido, o D. é a própria necessidaderacional do mundo, mas enquantoignorante de si mesma e, portanto, "cega". Masdurante esse mesmo período, do ponto de vistade necessidade "puramente racional", tantointerpretada como dialética, quanto como determinismocausal, a palavra D. começou a parecerfantástica ou mítica demais para designaressa necessidade. Foi então abandonada esubstituída por termos que exprimem a naturezaobjetiva e causal da necessidade, como p.ex. necessidade, dialética, determinismo, causalidade;no domínio da ciência, é regida pelas"leis eternas e imutáveis da natureza".Quando a palavra D. volta, em Nietzsche eno existencialismo alemão, tem novo significado:exprime a aceitação e a voliçâo da necessidade,o amorfati. Nietzsche foi o primeiro aexpressar esse conceito tão característico decerta tendência da filosofia contemporânea. Ele

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interpreta a necessidade do devir cósmicocomo vontade de reafirmação: desde a eternidadeo mundo aceita-se e quer-se a si mesmo,por isso repete-se eternamente. Mas o homemdeve fazer algo mais que aceitar esse pensamento:deve ele próprio prometer-se ao aneldos anéis: "É preciso fazer o voto do retorno desi mesmo com o anel da eterna bênção de si eda eterna afirmação de si; é preciso atingir avontade de querer retrospectivamente tudoo que aconteceu, de querer para a frente tudoo que acontecerá" (Wille zurMacht, ed. 1901,§ 385). Esse é o amorfati, no qual Nietzsche vêa "fórmula da grandeza do homem". Heideggernão fez senão exprimir o mesmo conceito aofalar do D. como decisão autêntica do homem.D. é a decisão de retornar a si mesmo, de transmitir-se a si mesmo e de assumir a herança daspossibilidades passadas. "A repetição é a transmissãoexplícita, ou seja, o retorno a possibilidadesdo ser-aí que já foram" (Seín und Zeit,§ 74). Nesse sentido, o D. é "a historicidadeautêntica": consiste em escolher o que já foiescolhido, em projetar o que já foi projetado,em reapresentar para o futuro possibilidadesque já foram apresentadas. É, em outros termos,a vontade da repetição, o reconhecimentoe a aceitação da necessidade. Esse conceitovolta em Jaspers, que, no entanto, expressa-ocom referência à identidade estabelecida entreo eu e sua situação no mundo. O D. é a aceitaçãodessa identidade: "Amo-o como me amoporque só nele estou cônscio de meu existir".Aqui também o D. nada mais é que a aceitaçãoe o reconhecimento da própria natureza danecessidade, que, para Jaspers, é a identidade dohomem com sua situação (Phil, II, p. 218 ss.).Essa última noção de D. exprime bem certastendências da filosofia contemporânea. Na origemde sua longa tradição, essa noção implicava:l9 uma ordem total que age sobre o indivíduo,determinando-o; 2- o indivíduo não seapercebe necessariamente da ordem total nemde sua força necessitante: o D. é cego. O conceitocontemporâneo eliminou ambas as características.Para ele: ls a determinação necessitantenão é a de uma ordem (nem mesmopara Nietzsche), mas a de uma situação, a repetição;e 2S o D. não é cego porque é o reconhecimentoe a aceitação deliberada da situaçãonecessitante.”

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. - 5ª edição – Tradução: Ivone Castilho Benedetti – São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Este estudo é muito complexo porque pretende dar conta do problema conceitual do ‘Destino’ nas ciências, na Filosofia, na sabedoria dos povos iorubanos da África e na sabedoria dos inúmeros povos que desenvolveram a Astrologia (dos mesopotâmicos aos

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gregos em particular). E isso pode tornar o texto extremamente denso ao tentar articular conceituações tão díspares: ora antagônicas (como no caso do confronto entre a Astronomia moderna e a Astrologia babilônica antiga) e ora complementares – como no caso dos saberes enunciados por babalawos iorubanos africanos e os saberes astrológicos. Esse é o risco que corremos e então vamos a eles.

Este estudo surgiu por acaso quando lia a obra “Astrologia do Destino” da psicoterapeuta junguiana e astróloga Liz Greene – 10 ª edição – Tradução: Carmen Youssef – São Paulo: Cultrix Pensamento, 1995. Quando li a exaustiva introdução, tive um insight de produzir um estudo filosófico e epistemológico sobre a questão do Destino.

A principal pergunta de Liz Greene é: “Somos predestinados ou livres?”E é com essa pergunta que iremos nortear toda a nossa investigação através dos diversos campos do saber oficial e não oficial citados.

Para não ficar inteiramente à mercê das especulações da psicoterapeuta junguiana e astróloga, checamos o parecer contrário às pretensões astrológicas enunciado pelo astrônomo Carlos Alexandre Wuensche no dossiê de seis páginas da Revista Ciência Hojeintitulado Astronomia versus Astrologia – v.43, Nº. 256, 2009.

Para a autora de “Saturno: un nuevo enfoque de un viejo diablo” (Ediciones Obelisco) o Destino é a moira, como entendida pelos gregos antigos. E a autora salienta que o filósofo ateu, Bertrand Russell, considera o fatalismo e seus inevitáveis ramos criativos – as artes mânticas ou divinatórias – como uma nódoa produzida por Pitágoras e Platão sobre o pensamento puro e racional, uma mancha que ofuscou o brilho da construção, não fosse isso, da mente clássica grega.

O conceito de moira pressupõe um cosmo ordenado, interligado e as astrologia por sua vez seria produto deste tipo de cosmo. Porém tal concepção é refutada pela filosofia moderna representada por Bertrand Russell.

A teologia cristã medieval renegou o conceito de moira. Pois para a escolástica Destino é coisa pagã. Moira, como a Deusa do destino, representava para essa teologia um insulto a supremacia divina. O argumento teológico trocou a Deusa do Destino, a Moira, pela Providência Divina. Os calvinistas, por sua vez, acreditavam na salvação predestinada aos eleitos.

Os mais científicos preferem à Moira, ao Destino, o conceito de ‘lei natural’. Entretanto, lei natural na concepção de Anaximandro e da escola jônica - que Bertrand Russell simpatiza - é elevada à condição de divindade.

A moira é uma força moral, ninguém precisa fingir, contudo, que ela é exclusivamente benévola, ou que tivesse alguma consideração por interesses paroquianos ou pelos anseios do gênero humano. Os gregos não lhe atribuíam nenhum mérito de previsão, desígnio ou finalidade, pois esses méritos pertencem aos seres humanos e supostamente aos deuses humanizados.

Moira é a força cega e automática que permite que seus propósitos secundários e desejos ajam livremente dentro de suas próprias e legítimas esferas, porém reage com certa turbulência contra eles quando atravessam suas fronteiras.

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Anaximandro e seus companheiros imaginavam o universo como que dividido, dentro de um plano geral, em províncias compartimentadas ou esferas de poder. O universo era originalmente uma massa primária e indiferenciada; quando os quatro elementos surgiram eles receberam seu quinhão não de uma deusa personificada, mas do eterno movimento no interior do cosmo, o que era considerado não menos divino.

A psicologia inventou também uma terminologia mais atraente para lidar com a questão do Destino. Ela fala da predisposição hereditária, de padrões de condicionamento, de complexos e de arquétipos.

COSMO OU UNIVERSO?

“Na astrologia, o ser humano pensa que o firmamento foi feito para ele”.Friedrich Nietzsche em “Humano, Demasiado Humano”.

Uma boa pergunta que podemos fazer para nos situar em relação à conceituação de Destino é saber: onde estamos?

Estamos num cosmos ou num universo? O cosmos é assunto das religiões, o universo é assunto das ciências. Cosmos pressupõe um conjunto ordenado, interligado e criado por uma potência fora dele. Universo pressupõe um todo indiferente à experiência humana e sem intencionalidade transcendente.

O Cosmos é transcendente, o universo é imanente. A ciência estuda o funcionamento do espaço, a religião estuda como ir para o Céu.

Eu particularmente sou ateu, mas como em tudo na vida sou um ateu bem heterodoxo. Sou ateu por negar a criação do universo. Para mim o universo se auto-originou de estruturas bem simples (um ponto geométrico que explodiu em algum momento) até chegar em estruturas mais complexas (estrelas, planetas, rochas...). O universo não teve e não tem intencionalidade até hoje. Também não há um Deus a nos policiar, sondar, controlar, comandar, fiscalizar, seja esse Deus, o implacável e autoritário, Javé de Moisés ou o benévolo e suave, Olorum dos iorubanos da África.

Desse modo, como não somos policiados por um suposto Deus a nos bisbilhotar de sua prefeitura nos confins do Universo, então penso que somos (o deveríamos ser) inteiramente livres para escolher o que bem entendêssemos nas nossas vidas.

Sou um ateu heterodoxo porque eu dou atenção aos babalaôs e a sua forma particular de entender a noção de Destino. Vamos a ela, portanto.

ODU, O DESTINO NA CULTURA AFRICANA

Segundo o sociólogo Reginaldo Prandi no seu “Os príncipes do destino: histórias da mitologia afro-brasileira” – 2ª edição – São Paulo: Cosac Naify, 2005 – o tradicional povo ioruba acreditava que tudo na vida se repete. Assim, o que acontece e acontecerá na vida de alguém já aconteceu muito antes à outra pessoa. Saber as histórias já acontecidas, as histórias do passado, significava para eles saber o que vai acontecer na vida daqueles que

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vivem o presente.

Então qual o fundamento de se procurar um babalaô e consultar o jogo de búzios? Segundo Ronilda Yakemi Ribeiro em seu “Alma Africana no Brasil: os iorubas” - São Paulo: Editora Oduduwa, 1996. Cada ser criado escolhe livremente o “Ori” e o “Odu” – signo regente de seu destino. Desse modo, o babalaô, o olhador do búzio, poderá dizer qual o odu do indivíduo que está consultando.

A narrativa mítica diz que Oxalá e Ajalá são entidades modeladoras dos ‘oris’. Ijalá, embora notável em sua habilidade, não é muito responsável, e por isso, muitas vezes modela cabeças defeituosas: pode esquecer de colocar alguns acabamentos ou detalhes necessários, como pode, ao levá-las ao forno para queimar, deixá-las por tempo demasiado ou insuficiente. Tais cabeças tornam-se assim potencialmente fracas, incapazes de empreender a longa jornada para a terra, sem prejuízos. Se, desafortunadamente, um homem escolhe uma dessas cabeças mal modeladas, estará destinado a fracassar na vida. Durante sua jornada para a terra, a cabeça que permaneceu por tempo insuficiente ou demasiado no forno, poderá não resistir à ação de uma chuva forte e chegará mais danificada ainda. Todo o esforço empreendido para obter sucesso na vida terrena terá grande parte de seus efeitos desviada para reparar tais estragos. Pelo contrário, um homem tem a sorte de escolher uma das cabeças realmente boas, tornar-se-á próspero e bem sucedido na terra, uma vez que sua cabeça chega intacta e seus esforços redundam em construção real de tudo aquilo que se proponha a realizar.

Assim a consulta aos búzios é basicamente para saber sobre nossa cabeça (ori) ou a cabeça de outrem. Pode um homem conhecer as potencialidades da própria cabeça ou de outrem? A resposta do livro de Ronilda Yakemi Ribeiro vem em forma de outra narrativa mítica. Ao atravessar o portal que conduz do céu a terra, o porteiro do céu ( Onibode Orun) pede ao homem que declare seu destino. Este é então selado e, embora a lembrança disso no homem se apague, Ori retém integralmente a memória de tudo. Baseado nesse conhecimento guia seus passos na terra. Segundo o mito, a única testemunha desse encontro entre Onibode Orun e Ori é Orumilá, uma das divindades primordiais. Por isso Orumilá conhece todos os destinos humanos e procura ajudar os homens a trilhar seus verdadeiros caminhos. Nos momentos de crise, a consulta ao oráculo de Ifá permite acesso a instruções a respeito dos procedimentos desejáveis, sendo considerados bons procedimentos os que não entram em desacordo com os propósitos do ori.

O destino ou Ipin ori – sina do ori – pode sofrer alterações em decorrência de pessoas más chamadas omo araye – filhos do mundo, também chamadas aye – o mundo ou ainda, elenini – implacáveis (amargos, sádicos, inexoráveis) inimigos das pessoas. Entre estes se encontram as aje – bruxas, ou os oso – feiticeiros, os envenenadores e todos aqueles que se dedicam a práticas malignas com o intuito de estragar qualquer oportunidade de sucesso humano.

O destino também pode ser afetado, de modo adverso, pelo caráter da própria pessoa. Um bom destino deve ser sustentado por um bom caráter. Este é como uma divindade: se bem cultuado concede sua proteção. Assim, o destino humano pode ser arruinado pela ação do homem.

E como é o mecanismo do oráculo de Ifá? O recurso divinatório de Ifá, associado ao culto de Orumilá, é o mais desenvolvido dos sistemas divinatórios iorubás. Fazendo uso do obi de

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quatro partes, do opele, de areia, água, búzios, ikin, etc. Ao ser feita a consulta ao oráculo de Ifá, a queda dos dezesseis frutos de palmeira chamados ikin ou do opele, a corrente divinatória, define determinada configuração. De 16 figuras básicas e 256 derivadas chamadas Odu, decorrem 4096 variantes possíveis, cada qual com seu nome. A cada configuração corresponde uma série de parábolas, significativamente coincidentes (sincrônicas) com a circunstância existencial do consulente. A conduta do(s) herói(s) da parábola sugere o procedimento adequado para a superação da crise e realização do próprio destino.

Reginaldo Prandi, no seu “Segredos Guardados: orixás na alma brasileira” – São Paulo: Companhia das Letras, 2005 – nos informa que Na África Tradicional Iorubá, dias depois do nascimento da criança iorubá, ocorre a cerimônia na qual se dá o nome ao nascido, quando o babalaô consulta o oráculo para desvendar a origem da criança. É quando se descobre, por exemplo, se ela é um ente querido renascido. Os nomes iorubas sempre designam a origem mítica da pessoa, que pode se referir ao orixá pessoal, geralmente o da família, determinado patrilinearmente, ou à condição em que se deu o nascimento, tipo de gestação e parto, sua posição na sequência dos irmãos, quando se trata, por exemplo, daquele que nasce depois dos gêmeos, a própria condição de ‘abicu’ e assim por diante. A partir do momento em que se dá um nome à criança, desencadeia-se uma sucessão de ritos de passagem associados não só aos papéis sociais, como a entrada na idade adulta e o casamento, mas também à própria construção da pessoa, que se dá através da integração, em diversos momentos da vida, dos múltiplos componentes do espírito. Com a morte, os ritos são refeitos, agora com intenção de liberar essas unidades espirituais, de modo a levar cada uma ao destino certo, restituindo, assim, o equilíbrio rompido com a morte.

O DESTINO NA ASTROLOGIA E NA ASTRONOMIA

“ Há alguma evidência científica de que os astros podem revelar aspectos ocultos de nossa personalidade ou influenciar nosso comportamento, cotidiano e destino? A astrologia pode ser considerada uma ciência, no sentido moderno dessa palavra? É possível testar, sob condições controladas, as previsões feitas por horóscopos e mapas astrais? Se sim, o que dizem os resultados desses experimentos?”

Carlos Alexandre Wuensche

“O ato de olhar o céu e buscar simbolismos e associações é algo intrínseco ao ser humano e ocorre há milênios. Essa busca vem do tempo em que pouco se conhecia sobre o comportamento da natureza e no qual o animismo era uma tentativa de compreender e domesticar o desconhecido. Muitas culturas antigas têm registros sistemáticos da esfera celeste que remontam a dois mil anos antes da era cristã. Desde essa época, padrões de repetição de movimento e agrupamento de astros já eram conhecidos, levando à separação entre estrelas e planetas (‘astros errantes’) – na

época, eram conhecidos apenas Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno. A ideia de constelações também surgiu naturalmente, sendo que a idealização do que era ‘visto’ no agrupamento de estrelas sempre sofreu uma forte influência da mitologia local. Porém, ainda hoje, um fato acontece com vários de nós, astrônomos profissionais ou amadores: basta comentar sobre nossa profissão ou interesse pelos céus e rapidamente vem a pergunta: “E se eu te disser que sou Sagitário com ascendente em Touro? “É surpreendente que, mesmo neste início de século, um número enorme de pessoas ainda leva a sério uma crença que remonta a mais de dois milênios: a de que os astros influenciam o cotidiano, o comportamento e o destino das pessoas.”

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Desse modo, o astrônomo responsável pela Coordenação de Ciências Espaciais e Atmosféricas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais inicia o seu Dossiê “Astronomia versus Astrologia”.

Astronomia e astrologia são palavras derivadas do grego. Nessa língua, astron significa ‘estrela’ e o sufixo 'nomos' (escrito, em português, como ‘nomia’), ‘regra’ ou ‘lei’. A astronomia é a ciência que trata da constituição, posição relativa, movimento e, mais recentemente, dos processos físicos que ocorrem nos astros (neste último caso, sendo denominada astrofísica, cujo nascimento se deu no século 19). Por sua vez, a astrologia aglutina astron e logos (em português, ‘logia’), que significa ‘palavra’ e que pode ser entendido como ‘estudo’ ou ‘disciplina’. De forma geral, a astrologia trata do estudo da influência dos astros, especialmente dos signos do zodíaco, no destino e no comportamento humano. Os fundamentos da astrologia foram estabelecidos pelos babilônios, por volta de 1500 a.C. A origem comum da astronomia e da astrologia remonta a essa época e, apesar de ambas se basearem no estudo dos astros, suas versões modernas são inteiramente distintas.

A astrologia baseia suas previsões no movimento relativo dos planetas do sistema solar, não fazendo uso da informação trazida pela radiação eletromagnética (ondas de rádio, infravermelho, luz visível, raios X etc.) emitida por eles. Praticantes e estudiosos da astrologia consideram-na uma linguagem simbólica, forma de arte, adivinhação ou até ciência, com capacidade de prever o futuro ou aspectos ocultos da personalidade. Os astrólogos defendem sua área de estudo com base na ideia de que a ciência moderna não entende o que eles dizem e que, mesmo sob teste, a astrologia será sempre avaliada segundo os paradigmas científicos, desconsiderando outras formas de testes e de pensamento.

São características básicas da astronomia, ser baseada em leis conhecidas da física, sendo que os resultados obtidos com base nessas leis deverão ser os mesmos para qualquer pessoa que conheça os métodos empregados no experimento, bem como as leis em questão. O estudo de astros distantes também é feito com base na radiação eletromagnética emitida por esses corpos celestes, incluindo ondas de rádio, micro-ondas, ultravioleta, raios X e raios gama. Isso permite não só a reconstrução dos processos físicos que produzem essa radiação, mas também o estudo da estrutura e do estado evolutivo do astro.

Críticos da astrologia – incluindo a própria comunidade científica –, consideram-na uma forma de pseudociência ou superstição, devido à sua incapacidade de demonstrar o que afirma, o que até agora tem sido corroborado em grande número de estudos científicos controlados. Por sua vez, astrólogos contestam testes propostos pela ciência para validar a astrologia nesse sentido. E, quando não se recusam a participar deles, rejeitam seus resultados, apesar de estes serem baseados em testes estatísticos e em leis da natureza amplamente validadas.

Portanto, como a astrologia não se enquadra no paradigma do que é entendido como ciência, ela perde o direito de reivindicar esse status quando lhe é conveniente.

Breve histórico

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A observação e nomenclatura dos céus, adotadas até hoje pela civilização ocidental, remontam aos babilônios, egípcios, gregos e romanos. Pode-se dizer que a primeira grande sistematização do estudo dos céus com fins astrológicos está em Tetrabiblos, texto escrito pelo astrônomo greco-egípcio Claudius Ptolomeu, que viveu no século 2 a.C.. Essa obra, dividida em quatro livros, sistematiza e propõe explicações para o modelo geocêntrico (aquele em que a Terra é o centro do universo), defendendo-o com hipóteses que duraram cerca de 1,5 mil anos – vale ressaltar que o modelo geocêntrico é a base do princípio astrológico.

Tetrabiblos é também um tratado de astrologia, talvez o mais importante da Antiguidade. Seu ‘Livro I’ afirma que as influências dos corpos celestes são inteiramente físicas e, nos ‘Livros III’ e ‘IV’, descreve como os céus interferem nas atividades humanas (embora Ptolomeu não tenha apresentado a matemática necessária para elaborar horóscopos, desenvolvida por seus antecessores). A contrapartida astronômica de Tetrabiblos é Almagesto, também de Ptolomeu, um grande tratado sobre astronomia com 13 livros.

Na Idade Média, com sua atmosfera de intensa religiosidade, a possibilidade de fazer e verificar previsões baseadas nos astros era questionada. O padre e filósofo católico Aurélio Agostinho (354-430) – mais conhecido como Santo Agostinho – levantou o famoso problema do “fatalismo astrológico”, um arrazoado no qual argumentava que, “se o futuro já estava previsto por Deus, ou pela influência previsível dos movimentos planetários, para todos, como poderiam ser livres os humanos”? A resposta, dada por ele mesmo, apontava para a “sugestão, mas não obrigação”, de que seguir as estrelas e as orações ajuda a resistir aos desvios...

Nessa época, eram conhecidos três tipos de astrologia, descritos pelo filósofo francês Nicolas Oresme (1320-1382), crítico da astrologia e astrônomo ‘mecanicista’ da corte de Carlos V: i) a astrologia matemática (ou astronomia); ii) astrologia natural (relacionada com a física); iii) a astrologia espiritual (ligada à previsão do futuro e à elaboração de horóscopos). Na Idade Média, portanto, já era feita uma diferenciação entre a astronomia e a astrologia.

Até o final do Renascimento, a astrologia foi uma atividade essencialmente acadêmica, exercida inclusive por médicos. Por uma questão de justiça, deve ser sempre mencionado que o dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), o alemão Johannes Kepler (1571-1630) e o italiano Galileu Galilei (1564-1642), além de cientistas (no sentido moderno do termo), foram também competentes astrólogos nos sentidos ‘i’ e ‘ii’ do parágrafo anterior. Kepler, porém, foi um crítico ferrenho da astrologia divinatória.

No século 17, o interesse acadêmico pelo prognóstico astrológico transferiu-se para a nova medicina e para a meteorologia, e, nessa época, a astrologia saiu da academia, estimulando novamente o aparecimento do tipo de astrólogo usualmente conhecido na Antiguidade, mais dedicado às práticas divinatórias. Em linhas gerais, esse é o quadro que permanece até os dias de hoje.

Qual é a probabilidade de que 1/12 da população da Terra esteja tendo o mesmo tipo de dia? Mesmo levando em conta todos os detalhes astrológicos (ascendentes, quadraturas, oposições etc.), os horóscopos deveriam apresentar alguma semelhança, pois o signo ‘solar’ é a principal referência. Uma simples divisão mostra que, nesse caso, as mesmas previsões seriam, ainda que superficialmente, adequadas a cerca de 400 milhões de pessoas em todo

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o mundo, todos os dias!

Estavam errados os horóscopos feitos antes das descobertas de Urano, Netuno e Plutão, ocorridas em 1781, 1846 e 1930, respectivamente? Deveríamos refazer esses horóscopos? Além disso, existe uma associação entre nomes de planetas, personalidades mitológicas e características astrológicas, portanto há que se pensar agora como nomear e incluir a influência dos mais de 300 planetas extrassolares descobertos desde 1995.

E quais objetos celestes devem ou não ser incluídos nas previsões? O astrônomo francês Jean-Claude Pecker lembra que os astrólogos parecem ter uma visão bastante curta, por limitarem sua atividade ao nosso sistema solar. Bilhões de corpos em todos os confins do universo poderiam somar a sua influência àquela proporcionada pelo Sol, pela Lua e pelos planetas. Será que uma pessoa cujo horóscopo omite os efeitos do pulsar do Caranguejo e de Andrômeda realmente recebe uma interpretação completa?

A distância até esses objetos é importante? Para a astrologia, parece que não. Por exemplo, mesmo que Saturno seja importante para caracterizar um mapa astral (e esteja fisicamente o mais próximo possível da Terra, em termos de suas órbitas), Marte e Vênus sempre estarão mais perto de nós do que Saturno, independentemente de nossa posição relativa a eles. No entanto, a importância de ambos nas previsões é variável.

Essa discussão conduz a que tipo de força define as interações astrológicas. A força gravitacional está descartada, pois aquela exercida sobre a criança pelo médico que faz um parto é seis vezes maior do que a de Marte. Já a força de maré do médico é aproximadamente dois trilhões de vezes maior que a de Marte. Deveríamos incluir a personalidade do médico no horóscopo, assim como incluímos as características de Marte?

Como as influências astrológicas parecem não depender completamente da distância entre os corpos, isso traz a questão de que tipo de força é essa, não detectada, até agora, por nenhum experimento, em nenhum laboratório, terrestre ou espacial.

Colocando termos astrológicos no contexto astronômico, expressões como “Urano entrou em Aquário...” ou “Plutão ficará 13 anos em Sagitário...” não fazem o menor sentido. Do ponto de vista das constelações, elas não são reais, como um planeta, mas apenas um arranjo de estrelas que nem estão fisicamente próximas, como sua projeção do céu faz parecer. Se o leitor experimentar olhar para o céu em uma noite clara, notará que existem infinitas possibilidades de ‘ligar os pontos’ e imaginar figuras. E foi isso que os antigos fizeram e popularizaram, ao criar as constelações. Elas não estão na mesma posição na eclíptica (plano da órbita da Terra ao redor do Sol) em que foram concebidas há mais de 3 mil anos. E, certamente, não estarão nessa mesma posição relativa, formando o padrão que vemos hoje, daqui a 2 mil anos.

Do ponto de vista simbólico, a mesma associação de estrelas que representa a cauda do ‘Escorpião’, em nosso zodíaco, representa a constelação do Anzol, na mitologia polinésia. Atribuir um determinado significado a um ou outro símbolo implica atribuir interpretações e, em consequência, influências diferentes a um mesmo ‘objeto’. Assim, como explicar que o mesmo ‘objeto’, à mesma distância da Terra, tenha efeitos diferentes, dependendo do símbolo a ele associado? A definição de pseudociência é ampla e pode incluir, além da astrologia, qualquer conjunto de procedimentos e ‘teorias’ que tentem se disfarçar como ciência sem realmente sê-la. A discussão dos limites entre ciência e pseudociência inclui a

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questão do que é ciência e como defini-la. Entretanto, vale a pena discutir porque devemos nos preocupar com as pseudociências.

Diversas formas de pseudociência nasceram de superstições antigas, assim como vários ramos da ciência ortodoxa. Medicina, química e a própria astronomia são bons exemplos, de modo que suas origens não são o problema. A questão, no caso da astrologia, é saber se suas previsões são verificáveis, dentro dos parâmetros científicos, já que muitas vezes astrólogos vestem suas explicações com termos e jargão científicos, de modo a lhes emprestar maior credibilidade. A inexistência de um mecanismo cientificamente aceito para explicar previsões astrológicas seria irrelevante se, pelo menos estatisticamente, a astrologia fizesse o que ela diz que pode fazer, e esses feitos pudessem ser validados entre seus próprios pares e aceitos, além de uma dúvida razoável, por cientistas.

Pode-se apontar, muitas vezes, que existem explicações mais simples e menos fantasiosas –por vezes, até corriqueiras ou prosaicas – para uma previsão astrológica que tenha se mostrado correta. Além disso, o acerto não garante que a ‘teoria astrológica’ funcione sempre (mesmo porque já foi amplamente mostrado que, estatisticamente, ela não funciona). Também não prova que o método de previsão será reprodutível por outros astrólogos na mesma situação ou em situações semelhantes. Astrônomos devem se pronunciar sempre que a ocasião for adequada para mostrar as falhas da astrologia sob o ponto de vista científico e encorajar um interesse no cosmo real. Um cosmo de astros remotos que são impiedosamente indiferentes às vidas e aos desejos das criaturas da Terra, muito antes dos tempos em que os seres humanos se aconchegavam junto às fogueiras, com medo da noite.

Bem até aqui eu reproduzi de uma certa forma os argumentos do astrônomo Carlos Alexandre Wuensche e tenho que concordar que são argumentos pertinentes e inteligentes.

Mas e o que os astrólogos têm a dizer sobre tudo isso? A psicoterapeuta junguiana e astróloga Liz Greene afirma sobre o Destino:

“ O destino significa: isso estava escrito. É terrível pensar em algo escrito comtamanha determinação por uma mão totalmente invisível. Esse fato implica não só

impotência, como ainda o obscuro mecanismo de alguma enorme e impessoal Roda ou de um Deus bastante ambíguo que tem menos consideração do que gostaríamos para com nossas esperanças, sonhos, desejos, afeições, méritos ou até mesmo pecados. De que valem os esforços da pessoa, seus conflitos morais, seus simples atos de amor e de coragem, seu empenho para o aperfeiçoamento de si próprio, de sua família e de seu mundo, se tudo, no final das contas, é tornado vão pelo que já foi escrito?

Temos sido nutridos, nos últimos dois séculos, num pábulo bastante suspeito de autodeterminação racional, e essa visão do destino nos ameaça com uma

experiência de desespero real ou de caótica catarse na qual a coluna dorsal do homem ético e moral desmorona. Existe igualmente uma dificuldade com relação à abordagem mais mística do destino, pois ao romper a unidade do corpo e do espírito com a finalidade de buscar refúgio contra os estreitamentos da sorte, a pessoa cria uma dissociação artificial de sua própria lei natural e poderá conjurar no mundo exterior o que está evitando no íntimo.

Entretanto, para a mente grega, como para a mente da Renascença, a visão dodestino não destruiu a dignidade da moralidade ou do espírito humanos. Se algo

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aconteceu, foi o oposto. O primeiro poeta religioso da Grécia, Hesíodo, dizsimplesmente que o curso da Natureza não é senão indiferente ao certo e ao

errado. Ele conclui que há uma definida e simpática relação entre a conduta humana e a lei ordenada da Natureza. Quando um pecado é cometido — tal como o incesto inconsciente de Édipo — toda a Natureza é envenenada pelo delito do homem, e Moira revida fazendo recair imediatamente uma grande desgraça sobre a cabeça do transgressor. O destino, para Hesíodo, é o guardião da justiça e da lei, e não a fortuita e predeterminante força que dita cada ação de um homem. Esse guardião fixou os

limites da original ordem da Natureza, dentro dos quais o homem deve viver porque é parte desta; e ele aguarda para cobrar a penalidade por cada transgressão. E a morte, visto ser

a declaração definitiva de Moira, o "quinhão" ou o limite circunscrito além do qual os seres mortais não podem transpor, não é uma indignidade, porém uma necessidade que deriva de uma fonte divina”.

O que Liz Greene diz sobre o ceticismo do homem moderno?

“ Eu, no entanto, não acho que tenhamos perdido o medo do destino, apesar de zombarmos dele; pois, se o homem moderno fosse realmente tão esclarecido a ponto de superar esse conceito "pagão", não teria o hábito de ler furtivamente a seção de astrologia no jornal, nem de mostrar compulsão a ridicularizar, sempre que possível, os porta-vozes do destino. Tampouco ficaria tão fascinado pelas profecias, que são as criadas da sorte. As Centúrias de

Nostradamus, essas fantásticas visões do futuro do mundo, jamais deixaram de ser impressas, e cada nova edição vende uma quantidade astronômica de exemplares. Quanto ao ridículo, sou de opinião de que o medo, quando não admitido, disfarça-se muitas vezes de desprezo agressivo, e de tentativas um tanto forçadas para desaprovar ou denegrir a coisa que causa ameaça. Todo quiromante, astrólogo, cartomante ou vidente já se deparou com esta peculiar, mas inequívoca ofensiva dos 'céticos'.”

O que a autora pensa do fenômeno da vidência?

“A astrologia, ao lado do tarô, da quiromancia, da cristalomancia e talvez também do I Ching que agora se estabeleceu firmemente no Ocidente, são os modernos mensageiros da antiga e digna função de vidência. Essa tem sido, desde tempos imemoriais, a arte de interpretar as intenções obscuras e ambíguas dos deuses, embora possamos chamar isso agora de intenções obscuras e ambíguas do inconsciente, e está voltada para a apreensão de kairos, o "momento certo". Jung usou o termo sincronicidade com relação a essas coisas, como um meio de tentar lançar luz sobre o

mistério da coincidência significativa — quer se trate da coincidência de um acontecimento externo aparentemente não relacionado com um sonho ou estado subjetivo, ou de um acontecimento com o esquema de cartas, de planetas, de moedas. Mas seja qual for a linguagem que usemos, a psicológica ou mítica, a religiosa ou "científica", no cerne da adivinhação está o esforço para interpretar o que está sendo ou foi escrito, quer expliquemos esse mistério pelo conceito psicológico de sincronicidade ou pela muito mais antiga crença no destino. ”

Agora mais uma vez nos vem a pergunta: “Somos predestinados ou livres?”Já que nessa altura do estudo, mencionou-se o suposto papel dos deuses na nossa vida.

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Liz Greene diz que somos os dois ao mesmo tempo. Mas ela é um pouco suspeita, afinal a obra “Astrologia do Destino” demonstra que ela crê piamente que somos influenciados pelos deuses do zodíaco. Há nas suas páginas todo um determinismo que chega a incomodar. E por isso penso que se formos seguir a trilha de Liz Greene, chegaremos a um universo de pessoas rigidamente controladas por forças desconhecidas. E sendo assim haveria pouca ou nenhuma liberdade nos nossos atos e decisões.

Nessa altura do texto considero pertinente expor a minha compreensão do problema, ainda que seja obrigado a reconhecer que os leitores podem não compartilhar dos mesmos interesses e inclinações que eu.

Vou me colocar esclarecendo como é que um ateu, ou seja, alguém que nega a criação do universo por um ser, inteligência, policial, ditador, prefeito ou seja, lá o que for, consegue ler livros de astrologia e consegue frequentar ilês de candomblé.

Penso que sou livre para fazer escolhas. Escolhi o ateísmo como sistema de explicação da realidade. Assim, nego o sistema de explicação da realidade bíblico que afirma ter sido o universo criado em 6 dias apenas. Quando na verdade o universo não foi criado por nada e nem ninguém. Surgiu espontaneamente de um ponto geométrico que explodiu sabe-se lá por que e quando. Ou seja, nego a intencionalidade do universo.Nego a teleologia do universo. O universo é um conglomerado de regularidades(leis) cegas e indiferentes ao homem, suas rezas e pedidos. O mundo natural é indiferente ao homem como se viu na obra do psicanalista Sigmund Freud O Futuro de uma ilusão. E o homem tem a tendência de querer subornar o mundo natural, tentar domesticá-lo e humanizá-lo com rezas, súplicas e, no caso da religião tradicional africana e seus derivados (candomblé), com oferendas cruentas.

Somos livres? É claro que somos, principalmente se não formos bíblicos. Mas não somos sozinhos. Não somos ilhas. Vivemos em comunidade. Às vezes compartilhando valores e crenças comuns com essa comunidade. Outras vezes negando esses valores e crenças, mas sempre num processo de relação e interação.

Quando eu comecei a aprender a ler e passei a devorar os livros que minha mãe professora trazia da escola onde ela ensinava, eu comecei a questionar tudo. E passei a questionar a Igreja católica que minha mãe nos obrigava a freqüentar. Nunca gostei de missa, até hoje. E chegou um momento que eu comuniquei a ela que não faria primeira comunhão e que não mais frequentaria a igreja. E assim foi. Como eu era muito adolescente nessa época e morava no subúrbio, não posso dizer que entrei no ateísmo por convicção intelectual, até porque os livros que minha mãe trazia eram muito tolos e fracos.

No restante do meu adolescimento eu fui tendo contato com livros mais espessos e consistentes. Além disso, o meu ingresso no movimento estudantil secundarista abriu para mim um universo de inquietação intelectual, que só morar no subúrbio não me daria nunca.

No movimento estudantil secundarista eu convivi com religiosos de diversas tendências e principalmente com ateus e materialistas ortodoxos.

Tudo iria bem se eu não tivesse passado por uma estranha fenomenologia a partir de 1993. Eu, criado no ceticismo, comecei a ver um homem dentro do meu quarto tarde da noite e a

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sair correndo com medo, gritando.

Inicialmente busquei a Psiquiatria e a Psicoterapia, pois estava convencido de que estava realmente ficando louco. Como a medicação e a psicoterapia não funcionaram (e não funcionam muito até hoje) eu busquei estudar as chamadas religiões mediúnicas.

Minha porta de entrada nesse mundo foi pelo catimbó, embora eu nem soubesse que o lugar onde fui parar no meu próprio bairro professava esse tipo de doutrina. Eu pensava que tinha entrado numa casa de umbanda. E tal confusão demonstra o quanto o sacerdote dessa casa era despreparado para lidar com intelectuais.

Depois de um tempo eu me afastei dessa casa, porque eu não via por parte de seus membros e frequentadores interesses intelectualistas.

Aí busquei a Raja-Yoga através da organização Brahma Kumaris. Mas como era num bairro bem elitizado, acabei demorando pouco também. Aproveitei e passei também no mesmo bairro elitizado pela Bahkti-Yoga dos Hare Krsnas.

E a fenomenologia continuava quase toda noite, com ou sem medicação supressiva.E como era e sou pobre, acabei conhecendo e experimentando um Centro Espírita Kardecista do meu bairro. Lá eu permaneci por 9 anos conflituosos, já que eu tinha uma herança marxista indisfarçável.

E os fenômenos estranhos continuavam me incomodando a noite do mesmo jeito.

Depois, em 2002 finalmente conheci uma casa umbandista decente, a Cabana Luz do Congo (mais conhecida como Pai Didi). Nessa época, O pai Didi ainda era vivo mas já estava bem debilitado e pouco contato tive com ele. Tive longas conversas com o filho dele e administrador do Centro de Umbanda, o seu Júlio.

Mas os fenômenos continuavam...

Foi um processo muito rico ter conhecido essa casa de umbanda. Afinal, ela é praticamente o único centro umbandista a possuir uma biblioteca rica e variada. Passei de 2002 a 2008, lendo boa parte do acervo dessa biblioteca cedido pelo seu Júlio.

Aprendi muita coisa sobre umbanda, quimbanda, esoterismo, mas pouca coisa sobre candomblé.

Em 2008, um amigo anarco-punk me leva numa festa de um ilê de candomblé keto na Regional VI. E lá vejo a diferença entre a liturgia da umbanda, do catimbó e do candomblé keto que esse ilê pratica.

No início fiquei encantado com esse ilê e com o pessoal dele. Mas depois de um tempo fui observando os vícios burgueses da casa. E acabei me afastando.

Hoje em dia continuo vendo os vultos e sentindo presenças estranhas no meu quarto mais com menos intensidade.

Ah! Quase ia me esquecendo de que nessa peregrinação religiosa eu também frequentei

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escolas dominicais pentecostalistas e tradicionalistas. E os fenômenos continuaram do mesmo jeito. Só que nessas igrejas evangélicas eu fui mais com intenções etnográficas e antropológicas e não com intenções devotas ou religiosas. E pelo menos deixei isso claro para eles.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ser humano é livre ou deveria ser para fazer escolhas. Os orixás, nkices e voduns não condicionam o ser humano rigidamente. Eles, como são arquétipos, apenas servem de modelos de conduta a ser imitados ou evitados.

Ser filho de Omulu não é uma predestinação rígida e inflexível no meu entender. É apenas um modo como uma cultura ancestral e arcaica resolveu criar um elemento de inspiração. Assim sendo, o orixá não condiciona nem determina rigidamente ninguém, apenas inspira. E inspira só aqueles que estiverem dispostos a ouvir suas prédicas e para tanto se faz necessário consultar o babalaô para sabê-las

ETNOGRAFIA DA SALA DE BATE-PAPO DE CANDOMBLÉ

Este estudo pretende fazer uma aproximação etnográfica da Sala de Bate-Papo de Candomblé da UOL. Aproximação bem entendida porque não sou etnógrafo nem antropólogo de formação. Sou graduado em Letras pela UFC e fui aluno regular do Mestrado em Literatura da UFC, mas abandonei o Mestrado por uma série de problemas pessoais (entre eles o fato de não ter bolsa da CAPES). Também é uma aproximação porque o corpus do estudo é fluido por excelência: uma sala de bate-papo da Internet.

Fazer etnografia de uma sala de bate-papo parece não ser algo muito concreto e controlável do ponto de vista científico, por inúmeras razões.

Vamos a elas.Primeiro.A sala fica na categoria ‘religiões’ do Bate-papo UOL.Mas cabe perguntar: será realmente o candomblé uma religião como as outras? O que teria o culto de orixás, nkices e voduns de peculiar?

Para Durkheim e para Mircea Eliade, a religião é passiva. O homem religioso se submete candidamente aos caprichos da divindade. E o candomblé é assim? Claro que não. O candomblecista não tem uma relação passiva ou contemplativa com o sagrado, com o divino, muito pelo contrário, o candomblecista manipula através de práticas mágicas o numinoso, o sagrado, o divino. Assim, o Candomblé não se parece com uma religião tradicional como as religiões de salvação, mas seria uma religião mágica na definição de Reginaldo Prandi, ainda que para Luis Nicolau Parés o candomblé não deixe de perder seu aspecto conventual.

Segundo. Como formar um corpus de pesquisa definível e controlável se a cada instante os informantes saem da sala e aparecem novos informantes? Outro problema: os informantes podem assumir identidades postiças ou pouco confiáveis. Assim quem usa o nick de babalorixá pode revelar depois de 20 minutos de conversa

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talvez não ser nem iniciado no culto ou ser até um cristão ou umbandista (o que a rigor é muito parecido um com o outro), como muitas vezes presenciei.

Terceiro. A presença chata de evangélicos pentecostais que entram na sala para evangelizar o pessoal é uma verdadeira conversa de surdos. Porque eles partem do pressuposto de que o candomblecista é um servo do tal de Satanás, enquanto no Candomblé Satanás não existe ou não tem nenhuma função. Já que o candomblé se inspira em matrizes africanas e portanto pré-cristãs e pré-mosaicas e sendo assim não faz e não faria sentido para um candomblecista autêntico e esclarecido acreditar em Satanás ou no dualismo judaico-cristão.

Quarto. A presença incômoda de quimbandeiros ou do que chamo ironicamente de satanistas cristãos. São aquelas pessoas que usam nicks idiotas do tipo ‘Joana Capeta’ ou‘Zé encapetado’. Eu nunca tive muita paciência de puxar conversa com esses tipos, mas como as conversas são abertas para todos lerem, poderemos flagrar pérolas do tipo: “Satanás existe!” ou “Fiz o pacto com o Diabo!” que parece mesmo conversa de psicopatas ou pastores pentecostais (que a rigor são muito parecidos).

Mas para quem quiser conhecer a sala imagino que seja a única do gênero de portais grandes de Bate-papo. São duas salas de candomblé mas geralmente só uma fica com internautas, a segunda fica vazia na maioria dos casos. O que supõe o número pequeno de praticantes autênticos do candomblé puro no país ou então é uma pista de que talvez o número de candomblecistas no país seja expressivo, mas poucos são aqueles que estão incluídos no mundo digital. Só uma pesquisa estatística daria conta de responder tal questão. A obra do sociólogo Reginaldo Prandi talvez responda bem sobre os aspectos demográficos do candomblé.

Gostaria de entender o que leva os evangélicos a entrarem autoritariamente numa sala em que não dominam o assunto nem sua terminologia e que revelam através de versículos fora de contextos repetidos ad nauseam, que não estão nenhum um pouco interessados em interagir mas sim em impor o tal do Jesus Cristo e o tal do Diabo e sua visão de mundo simplista e binária; que tende a resumir o grande universo em apenas dois princípios excludentes: o Bem absoluto (Deus) e o Mal absoluto (Satanás).

Eu já tentei conversar com esses cristãos insistentes e chatos, mas eles são impenetráveis a argumentos lógicos e científicos já que sua visão fundamentalista não consegue enxergar nuances nas coisas, mas apenas o preto ou o branco.

E sobre o que conversam as pessoas que pelos nicks revelam ser iniciadas no culto? Não há uma padronização. Há uma diversidade de temáticas conforme o cargo no santo ou a nação que a pessoa pertence. Mas o que pude perceber é que os mais esclarecidos tem receio de compartilhar fundamentos mais profundos do culto, por medo de estarem difundido irresponsavelmente segredos que só devem ser compartilhados entre o adepto e seu zelador de santo.

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Uma forma que estes têm de saber se a pessoa é realmente do santo ou não é perguntar: Qual o seu axé? O leigo ficará boiando, pois axé é um termo que tem vários significados. Mas entre eles há um que remeteria a tradição que a pessoa foi iniciada, ou seja, a qual axé da Bahia a pessoa ou o pai de santo da pessoa pertence. Como essa informação é muito técnica e específica, é uma estratégia que o povo de santo usa para isolar aquele internauta leigo que pode só confundir as coisas intencionalmente ou não.

E para encerrar vou dizer como me apresento nessas salas. Utilizo diversos nicks mas sempre deixo claro que não sou iniciado no culto, sou honesto. Mas sou um pesquisador das matrizes da chamada África continental e da África da diáspora. E por isso acontecem coisas díspares: posso ser bem tratado ou desprezado, dependendo da pessoa. Afinal o povo de santo tem uma relação ambígua com pesquisadores, que segundo eles publicam muitas besteiras sobre o culto dos orixás, ainda que com seu trabalho de pesquisa acabem legitimando o candomblé como uma coisa séria.

O PROBLEMA QUEER, O FIM DO SISTEMA DE GÊNEROS, SEXUALIDADES

Este estudo é muito ambicioso começando pelo próprio título. E para tal me amparei numa

bibliografia que inclui o estudo Teses pelo fim do sistema de gênero da ativista cearense

Ilana Amaral (publicada na Revista Contraacorrente Nº. 10 Maio-Agosto de 2000), no zine

Incógnito: pós-identidade queer do ativista paraibano Lucas Altamar e também no livro

Preconceito contra homossexualidades: a hierarquia da invisibilidade de Marco Aurélio

Máximo Prado e Frederico Viana Machado publicado pela Editora Cortez em 2008.

Mas é lógico que para falar de queers, gênero, sexualidades; a bibliografia não pode só se

resumir aos citados. Também vale à pena ler a obra ensaística de João Silvério Trevisan

(como também sua excelente obra ficcional); assim como, valeriam ver os contos, romances

de autores como Silviano Santiago, Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll.

Outro problema desse meu estudo é que ele tem como destinatário principal a militância

anarquista ou libertária que lê meu Blog. E esse público não gosta muito do academicismo

ou intelectualismo pedante. Por outro lado, não terei culpa se o texto trair aqui e ali um ou

outro academicismo, que pode ser interpretado como beletrismo preciosista ou

pedantismo esnobe. Minha intenção foi a de fazer um texto mais claro e acessível possível,

um texto militante sem dúvida. Espero ter conseguido.

AS TESES PELO FIM DO SISTEMA DE GÊNEROS

“ Toda a vida humana foi em nosso tempo, submetida ao domínio da economia através do desenvolvimento

histórico do sistema de produção de valores.”

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Ilana Viana Amaral

O texto Teses pelo fim do sistema de gêneros é um texto de 2000. E como tal reflete aquele

momento de efervescência em torno da agenda dos chamados movimentos de

Antiglobalização, da AGP(Aliança Global dos Povos) e das agitações dos manifestantes

contra a reunião da OMC em Seattle em 1999.

Ilana Amaral, na revista, apresenta o texto como uma primeira versão de um conjunto de

teses apresentadas como contribuição ao debate, ao Seminário Internacional Sobre Gênero

em San Cristobal de las Casas, Chiapas, México, em Maio/Junho de 2000.

O texto é longo, denso e apresenta em 16 longas teses um vigor crítico e cáustico

impressionante. Talvez o leitor encontre uma versão virtual na Internet, basta colocar o

título nos buscadores da internet que talvez recupere alguma coisa.

Inclusão ou exclusão do mercado? Trata-se assim de uma completa economização da vida,

da redução da vida à economia. Eis a constatação inicial de Ilana.

“O mercado é a supressão radical do indivíduo”. Isso significa que enquanto sou

trabalhador, proprietário – ou negativamente, uma desempregada, uma despossuída –

(é sempre desse modo que um indivíduo existe para e no mercado), não sou um indivíduo,

ou seja, não sou alguém dotado de existência, sentimentos, aspirações, desejos

próprios e únicos, mas sou precisamente um mais de uma espécie, ou seja, um

trabalhador, um proprietário, um desempregado. ”

“A negação da individualidade que se realiza sob o domínio do mercado se

apresenta, contraditoriamente, como aparição do indivíduo.”

“É assim que os movimentos sociais que manifestam a explosão da reivindicação da

diferença são continuamente integrados na lógica mercantil: mulheres – trabalhadoras,

consumidoras, nicho de mercado que se abre com a explosão da luta em torno do

direito feminino; GLS – consumidores, nicho de mercado, e mercado potencialmente

abundante, dizem os analistas, nicho de alta rentabilidade, de alta expectativa de

consumo. Negros – consumidores, nicho de mercado: “Negro classe A também consome”.

O “politicamente correto” é a expressão mais visível, na esfera dos direitos, da

tentativa de captura pela lógica mercantil, da explosão da diferença; todas as formas

discriminação são passíveis da intervenção de um advogado litigante em busca de

indenizações. ”

Ilana Amaral fala na estetização que “transforma movimentos autônomos de reivindicação

do direito à diferença em ‘nichos de mercado’ é apenas a sua face mais visível: “um novo

modo de ser mulher”, “Negro é lindo”...assim, os mass media, incorporam cotidianamente,

os apelos da diferença como apelos de consumo”.

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Ilana Amaral fala do que entende por inclusão social: “trata-se da inclusão social do

diferente pelo e no mercado. Redução, portanto, da diferença, à identidade abstrata de

‘consumidores’.

Ilana Amaral é radical e propõe a destruição do Mercado:

“Destruir o mercado é condição sine qua da constituição da individualidade, da aparição real das diferenças negadas pela universalização da forma mercadoria. Se não nos contentamos em ser portadores (ou em nossa maioria, nas condições do capitalismo atual, não portadores) de mercadorias, é preciso pôr no lugar das relações mediadas pelo dinheiro, relações diretas entre os indivíduos. Sem compreender a centralidade da necessidade da destruição do mercado, não é possível sequer falar de vida: estaremos sempre na esfera do simulacro, na esfera da pura representação da vida. ”

Na tese 9, llana Amaral define o que entende por Gênero: “O gênero é uma invenção histórica da humanidade, um modo de identidade, de

supressão da diferença que se origina numa dada diferença/identidade naturais, a amplifica e institui a partir dela todo um sistema hierárquico e classificatório."

Ilana Amaral é contra a naturalização do Gênero: “O gênero não é, pois, um dado natural, mas um modo historicamente determinado

de classificar os indivíduos da espécie humana com base numa dada identidade/diferença biológicas, apenas uma entre tantas possíveis.”.

Ilana Amaral questiona o papel da tradição: “Se a tradição, se a herança patriarcal é já fundamento de tal naturalização do

sistema de gêneros, a introdução das relações mercantis, mais que reforçar a naturalização aprofunda, amplia e universaliza tal naturalização. ”

Ilana Amaral dimensiona o papel da hierarquização: “O Gênero – como todo sistema classificatório – implicou, historicamente, uma

classificação, uma normatização e uma hierarquização. É a partir da identidade de gênero que se instituem as representações próprias à ‘natureza’ do Masculino e do Feminino: o macho caçador – provedor, a fêmea reprodutora; o masculino, ativo e o feminino, receptivo.”

Algo permanece: “uma permanência central: a hierarquização dos papéis e o lugar da subalternidade

do Feminino.”.

A ativista cearense dimensiona o patriarcado: “Foi do ponto de vista de sua gênese histórica, o patriarcado que inaugurou o poder

nas relações humanas. A dominação de gênero é, assim, historicamente, fundadora –anterior, portanto à dominação étnica, à dominação de classe.”.

E Ilana Amaral recomenda que na negação do sistema capitalista: “Se a negação do sistema, como foi dito acima, encontra o seu lugar privilegiado,

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quanto ao sistema de gêneros, nas mulheres e homossexuais, pela sua condição de subalternidade, que seja no combate à subalternidade submetendo ao combate mesmo a idéia de gênero enquanto tal, ou seja, que o combate à subalternidade do feminino e à exclusão possa ir à raiz do problema compreendendo que a crítica à situação de opressão feminina ou contra a homofobia só se realiza, na radicalidade, como crítica ao sistema de gêneros em sua totalidade, ou seja, como crítica ao sistema enquanto tal.”.

Em tom ligeiramente diferente é o texto do ativista paraibano Lucas Altamar Incógnito: pós-identidade queer. Lucas começa o texto com bom humor e ironia dizendo não achar agradável fazer um “dossiê de estudos queer”. E se assume como um queer falando da perspectiva de dentro, enquanto os acadêmicos falam do queer bacharelisticamente.

Diferente de Ilana Amaral, que por ser professora universitária, imprime um tom de seriedade ao texto, Lucas tem um estilo que comporta digressões pessoais e narrativas, uso de gíria juvenil, entre outros recursos estilísticos.

Tanto que diz ser seu estudo “uma produção marginal queer”.

MAS O QUE DIABO É QUEER MESMO?

“Paradoxalmente, admitimos mais uma vez que a pós-identidade queer exprime uma recusa em levar a sério as identidades, que há um século, serviriam para designar e mais frequentemente que outra coisa, em ostracizar os indivíduos em razão de seu sexo, de seu gênero ou de suas diferenças eróticas”.

Lucas Altamar

Segundo as pesquisas filológicas que Lucas fez, Queer (kui’r) vem de uma etimologia confusa que tanto registra o termo literal “bizarro”, mas que pode ser também, mas atualmente entendido como “original, excêntrico, singular, raro, infrequente”. Pelo que entendi da explicação de Lucas Altamar, o termo vem do coloquial inglês, seria a gíria mais próxima de “estranho” em português, parecendo ser a superposição do significado da palavra queen “rainha”. Assim o significado desta confusa gíria seria usado para fazer alusão a um ser masculino bastante efeminado, pois este seria ao mesmo tempo uma rainha e algo masculinamente excêntrico.

Em sua pesquisa, o ativista paraibano diz que o termo foi variando de época para época e de lugar para lugar.

A HISTÓRIA DO QUEER

Enquanto Ilana Amaral centra sua munição discursiva no Mercado, Lucas vê o Estado como inimigo máximo. E vê o queer como uma movimentação que surge da necessidade de uma libertação dos separatistas e excludentes reivindicações dos movimentos que anteriormente tinha o status de oprimidos e que, na sua avaliação, acabaram sendo absorvidos pelo Estado.

Lucas entende identidade como “contíguo de caracteres próprios e exclusivos de determinada pessoa. Este conceito, entretanto, está ligado a atividades da pessoa, à sua biografia, ao amanhã, sonhos, mitos, características de originalidade e outras características relativas ao sujeito.”

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Segundo o autor do CD Verborreia, o movimento gay identitário hoje gosta datar seu ponto de início a partir do final dos anos sessenta, e, em particular é claro, dos motins de Stonewall em 1969.

QUAL A PROPOSTA DE LUCAS ALTAMAR?

“Nós queers chamamos a uma segunda revolução sexual, mas, uma liberação que transformaria mesmo o modo de pensar a sexualidade e de compor com ela, e assim compreender sobre os planos social e político”.

Em suma, o “queer compreende, portanto, rejeitar diretamente as identidades dicotômicas

homem/mulher, masculino/feminino, hetero/homo.”.

O autor se reconhece tributário do legado do movimento LGBT e feminista, mas pretende ser mais radical.

Lucas diz que feministas, lésbicas e gays ortodoxos não se cansam de criticar a perspectiva queer,

“em razão de sua vontade reunida que terminaria por minimizar ou apagar, acreditam eles, a especificidade de uns e outros.”

“Não exigimos que cada um negue seus pertences, mas antes que percebam seu caráter contingente, arbitrário e político”.

“Nossa vontade é de emancipação e até de subversão em matéria de sexualidade”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando os dois autores, Ilana Viana Amaral e Lucas Altamar, perceberemos que dois estilos de apreensão da realidade se antagonizam em alguns momentos e enquanto em outros são complementares.

Ilana Amaral, professora de Filosofia e leitora da crítica da economia política de Marx, referencia sua tese do fim do sistema de gêneros, dentro do esquema conceitual da teoria do valor e do fetichismo da mercadoria.

Lucas Altamar, poeta multimídia e ativista anarco-punk queer, procura destruir a noção de movimentos identitários a partir de sua vivência contracultural, respalda sua crítica dentro das lides do anarquismo contemporâneo.

Eu vejo um problema na tese Queer. Trata-se de uma crítica aos movimentos identitários –negro, feminista, LGBT - que propõe, no final das contas, outro movimento identitário: o queer. Ou seja, eu não posso ser homem, ser mulher, ser homo, ser hetero, ser bi, mas posso ser queer. Então o que parece a rigor ser uma tentativa de livrar o ser humano de etiquetas ou gavetas classificatórias, acaba criando uma nova gaveta classificatória: o queer.

Mas eu posso estar equivocado e talvez não tenha entendido o queer em toda sua potência ou latência revolucionária. Um outro texto de outro zineiro, ativista e realizador audiovisual,

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Rui, já acrescenta mais dados à questão; utilizando-se de uma categoria teórica que eu não conhecia – heteronormatização.

Parece que a questão queer embora tenha começado no underground da contracultura homoafetiva americana na década de 60, pode ainda suscitar várias interpretações divergentes ou convergentes.

E caso o leitor se interesse, no site de downloads www.4shared.com há uma versão eletrônica do texto de Lucas Altamar.

FIGURAÇÃO E IDENTIDADES PÓS-MODERNAS NO ESTORVO DE CHICO BUARQUE

A figuração ou representação artística é uma forma de apreensão da realidade. E toda apreensão pressupõe intelecção, seleção ou redução do material capturado no real que circunda o artista.

Figurar é recortar um estrato da realidade e traduzi-lo em signo.

Muitos foram as concepções de representação artística na história da humanidade.

Para Sócrates, a arte idealizaria o objeto representado; enquanto para o seu discípulo Platão, a arte simularia o objeto, simularia o real.

Aristóteles, dissonante de ambos, dirá que a Arte nem duplica e nem copia o real, o objeto. Ela procura o essencial. Não é, portanto nem completamente verdadeira nem cabal ilusão. Ela busca o verossímil.

Na Renascença, com a apoteose matemática de Giordano Bruno e Galileu Galilei, Leonardo da Vinci entenderá a representação artística como meio de analisar a Natureza e de traduzi-la em linguagem matemática. Deste modo, a arte perde o caráter servil que tinha na Idade Média e passa a ter um 'status' paralelo à Ciência e à Filosofia. Assim, a Pintura ganha uma dignidade teórica.

Diderot verá na Arte simultaneamente uma reprodução de fatos comuns com a escolha dos excepcionais e os traços exteriores da Natureza com aqueles que a fantasia inventa.

Segundo Diderot, enquanto que na Ciência, a verdade é sempre geral, reduzindo a realidade a determinadas formas abstratas, nas quais se dissolvem os aspectos singulares dos fenômenos; na Arte, por sua vez, há predominância tanto do individual como o do sensível. Diante de uma representação artística não nos interessa saber se o objeto representado existe ou não, mas se o artista, respeitando as leis da Natureza, o tornou possível.

A partir de Kant, em vez de se especular acerca da natureza das coisas, dos fins morais da conduta e da essência do Belo, ou seja, de se buscar a ontologia das coisas; o estudioso deve esquecer Deus, finalidade e contemplar os objetos independente de sua existência ou não. Deste modo, a experiência estética, possui valor autônomo, independendo de qualquer finalidade exterior; é um fim em si mesma.

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Para Imanuell Kant, a representação artística sugere e veicula o real.

Em Schiller, a representação artística enfeita e configura o objeto, o real, o mundo. Ou seja, o jogo estético é um ornamento, não está na esfera das necessidades naturais da vida e independe dos interesses práticos.

Para Hegel, a arte pertence juntamente com a Religião e a Filosofia, ao domínio do Espírito Absoluto.

A partir do voluntarismo de Schompenhauer e Nietzsche, a premissa mimética da Arte e seu compromisso com a Razão será dinamitada por uma suspeita contra o totalitarismo da racionalidade ocidental. Assim, somos levados ao lado sombrio e irracional da Modernidade.

Nietzsche criará dois impulsos para a apreensão da realidade: o dionisíaco e o apolíneo. O primeiro descrito como a inclinação do ser humano para o êxtase, a embriaguez, o transbordamento emocional e o segundo descrito como a inclinação à contemplação e sobriedade.

Henri Bérgson a partir da trilha aberta por Schompenhauer e Nietzsche, fará uma analogia entre o processo de conhecimento e da criação artística, pois ambos revelam a capacidade inerente do homem organizar a sua experiência por meio de símbolos, que são ao mesmo tempo, formas de sentir e conceber.

A expressão artística, segundo Benedetto Croce, não existe sem que os conteúdos de consciência, os estados sentimentais ou emotivos experimentados, as vivências, enfim, se concretizem numa forma, termo final do processo de criação, quando as intuições convertem-se em imagens.

Depois desse preâmbulo, começamos a indagar sobre o modo de figuração pós-moderno e somos levados à década de 90 intuída na diegese de "Estorvo" de Chico Buarque.

Se a figuração da realidade assume matizes sombrios a partir do pessimismo schompenhaueriano e do niilismo nietzschiano, como se produto de uma ressaca dos anos de apologia à tecnociência e à racionalidade intrumentalizante do ser humano pelos pensadores iluministas e seus discípulos positivistas; cabe indagar se há alguma diferença entre a figuração moderna e figuração pós-moderna da realidade.

Quem figura também se revela e se pronuncia no que figurou, assim, perguntamos também pela natureza, pela identidade do sujeito pós-moderno.

Vejamos as marcas pós-modernas descritas pelos estudiosos: fragmentação, superficialidade, perda da ideia de identidade una e estável, como resultado do deslocamento da subjetividade, resultando na descrença às metanarrativas e à unicidade subjetiva (Hall, in: Identidades culturais na Pós-modernidade).

Narrado em primeira pessoa, "Estorvo" revela a história de um indivíduo sem nome, sem direção, sem propósito e sem utopia numa cidade grande não nomeada, ocorrida provavelmente nas décadas de 80 e 90.

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O livro é uma série de narrações descontínuas, desterritorializadas e circulares desse personagem amoral, frívolo e superficial, sem demarcações claras de espaço e tempo, que perambula a esmo por uma cidade, movido apenas por instintos primários e com vínculos pessoais esgarçados.

O aleatório sempre presente no romance dá uma configuração onírica, perto do pesadelo à obra:

" Vou regulando a vista, e começo a achar que conheço aquele rosto de um tempo distante e confuso. Ou senão cheguei dormindo ao olho mágico, e conheço aquele rosto de quando ele ainda pertencia ao sonho" p.11

A sensorialidade alucinada cria uma atmosfera nauseante:

"Recuo cautelosamente, andando no apartamento como dentro de água" p.12

A influência intersemiótica de outros códigos de linguagem levando a estetização do real:

"Assim ele me viu chegar, grudar o olho no buraco e tenta decifrá-lo, me viu fugir em câmera lenta" p.12

"para refrescar os ambientes, volto à sala com tonturas, e tenho a impressão de que ela está invertida" p.47

"(...)porém, mais tarde penduramos por toda a parte cortinas brancas, pretas, azuis, vermelhas e amarelas, substituindo o horizonte por um enorme painel abstrato." p.15

"Eu sempre achei que aquela arquitetura premiada preferia habitar outro espaço" p.15

"Fixo o olhar no muro, ouço a bola que pipoca no piso sintético(...) a voz do meu cunhado cada vez mais remota, e parece que estou sendo alçado aos poucos, como se se minha cadeira estivesse numa grua." p.116

"No meio do quarto, a cama de casal me apareceu como uma instalação insensata" p.59

Em "Estorvo" um certo interseccionismo temporal-espacial, cria uma cronologia confusa e paroxística, como no capítulo Dois em que o narrador-protagonista retoma ao sítio da família onde morara cinco anos antes, ao deitar-se na cama ele se obsidia com a presença de um estranho do outro lado do olho mágico do apartamento. Aí o leitor embaralha-se por não saber em que território exato se encontra o personagem: no sítio ou no apartamento?

CAPÍTULO 3

O rapaz negro grande, corpulento e gordo de sunga de borracha, vem empurrado pelos guardas, os pulsos algemados e o corpo curvado repete-se em outro capítulo mais a frente.

A obsessão paranoide do personagem lhe atormenta:

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" Não adianta ficar aqui parado. Eu não posso me esconder eternamente de um homem que não sei quem é. Preciso saber se ele pretende continuar me perseguindo." p.51

OLHAR DE SUPERFÍCIE

O narrador passa pelas coisas com extrema indiferença e alienação, como se os fatos não guardassem em si significações profundas. Que se desdobra na relação com o outro marcada pelo afastamento e pela indiferença.

" Pensei que ela fosse dizer 'tá satisfeito?', mas não diz mais nada, fica deitada de bruços, soluça com o corpo inteiro, e não sei o que fazer. Só posso olhar o corpo dela se deitando, o lado esquerdo bem mais que o direito e, olhando aquilo, de repente me vem um forte desejo. Eu mesmo não entendo esse desejo, é contra mime um contrassenso, pois se ela agora me chamasse, e com a boca molhada dissesse 'vem', ou 'sou tua', ou 'faz comigo o que der prazer', talvez eu não sentisse desejo algum." p.53

A FALTA DE Propósito

"Paro no meio-fio e faço de conta que espero um táxi. Um táxi freia e eu saio andando com a mala, fingindo conferir a numeração dos edifícios. Dobro a esquina e tomo uma rua sem movimento; talvez um assaltante me livre da mala.Com o sono em dia e de banho tomado, poderia andar por aí até amanhã, sem compromisso. Mas um homem sem compromisso, como uma mala na mão, está comprometido com o destino da mala" p.53

A PERDA DE IDENTIDADE UNA E ESTÁVEL DO NARRADOR:

"Teria escolhido uma roupa adequada, se bem que ali haja gente de tudo que é jeito; jeito de banqueiro, jeito de playboy, de embaixador, de cantor, de adolescente, de arquiteto, de paisagista, de psicanalista, de bailarina, de atriz, de miliar, de estrangeiro, de colunista, de juiz, de filantropo, de ministro, de jogador, de construtor, de economista, de figurinista, de literato, de astrólogo, de fotógrafo, de cineasta, de político, e meu nome não estava na lista" p.53

"Meu cunhado me alcança com o amigo grisalho, a quem apresenta dizendo 'é esse’. O grisalho diz que é sempre assim, que toda família que se preze existe um porra-louca' p.57

CAPÍTULO 4

O narrador, escondido dentro de um closet, esbarra numa bolsa e, ao enfiar a mão, toca nas joias da irmã. Num parágrafo ele diz que deixou as joias no lugar que encontrou; no outro ele pega as joias e deposita nos bolsos da calça.

CAPÍTULO 5

" Ando na relva para lá e para cá, e para qualquer lado que eu vá o morto me olha de frente, mesmo sem virar o rosto, parecendo um locutor de telejornal mudo." p.67

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O narrador protagonista negocia as joias da irmã que roubou no cap. 04 com o submundo do crime.

"Há um videogame parado na televisão, carros de fórmula 1 no grid de largada" p.72

"O céu amanhece encarnado, e vem por aí um sol rancoroso" p.75

VÍNCULOS PESSOAIS ESGARÇADOS

"Meu amigo bebia comigo na piscina, e àquela altura a sua conversa já não fluía. Acho que falava da literatura russa, mas não tenho certeza, pois as palavras saíam enroladas e se perderam. Mas a sua imagem me volta cada vez mais nítida; lá está a correntinha de ouro no pescoço, meio embaraçada, a pinta cabeluda logo abaixo do cotovelo, as costelas saltada no flanco feito um teclado, o calção branco com três listas verdes verticais. Só não consigo me lembrar dos pés do meu amigo. Vivíamos descalços, e não me ocorre ter olhado alguma vez aqueles pés. Nunca reparei se eram grandes ou bonitos. Não sei dizer se os pés do meu amigo eram enormes, como os dos professores de ginástica assassinado." p.76.

IMPRECISÂO

No cap.06 o leitor é informado que o professor de ginástica assassinado pelo michê e um amigo poeta do narrador-protagonista não são a mesma pessoa.(p.76)

Já na p.77 e no paragrafo seguinte passar a ser a mesma pessoa através do recurso à imaginação, reminiscência.

"Imagino meu amigo recebendo rapazes no apartamento. Meu amigo no sofá da sala, tomando Campari e dizendo poesia para os rapazes. Com os pés descalços no sofá, mas disfarçados entre as almofadas, meu amigo passando os cabelos por trás da orelha, e imagino algum rapaz se irritando com coisa toda. Meu amigo abrindo o álbum dos poetas franceses, e o rapaz se encolhendo no sofá. E enchendo-se de ódio, e sofrendo de um outro ódio por não entender que ódio cruzado é aquele que o domina, e que é feito de muita humilhação e que é desprezo ao mesmo tempo.

Imagino a poesia sendo interminável e o rapaz enlouquecendo, indo buscar uma corda no varal, ou uma faca na cozinha, mas daí pra frente já dá mais pra imaginar, porque o meu amigo nunca seria professor de ginástica" p.79.

O único índice textual que intersecciona o amigo poeta e o professor de ginástica num só personagem é a ideia-fixa que o narrador-protagonista tem pelos pés de ambos.

OLHAR DESARMADO QUE NADA ESPERA

Este olhar "abandona os combates". Nada espera, não distingue oposições e não crê em militância.

"E disse que eu devia fazer igual ao escritor russo que renunciou a tudo, que andava vestido de camponês, que cozinhava seu arroz, que abandonou suas terras e morreu

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numa estação de trem. Disse que eu também devia renunciar às terras, mesmo que pra isso tivesse de enfrentar minha família, que era outra bosta. Também eram bosta toda lei vigente e todos os governos; e o eu amigo começou a se inflamar na varanda, gritando frases, atirando pratos e cadeiras no pátio, num escarcéu que acabou juntando o povo do sítio para ver. Ele gritava 'venham os camponeses' e os

camponeses que vinham eram os jardineiros, o homem dos cavalos, o caseiro velho e sua mulher cozinheira, mais os filhos e filhas e genros e noras dessa gente, com as crianças de colo. Várias vezes o meu amigo gritou ' a terra é dos camponeses!' e aquele pessoal achou diferente". p.78

A RECUSA DE DAR SIGNIFICADO À EXPERIÊNCIA

" Dessa noite eu não me esqueço porque terminou na cidade, num apartamento de cobertura perto da praia, onde uns estudantes de antropologia comemoravam a formatura. Não conhecíamos ninguém, e não sei como fomos parar naquele lugar" p.78

FALTA DE PROJETO

"Penso que, quando o ruivo vender as joias, o meu quinhão dê para vier o que, oito meses, um ano, talvez mais. Talvez dê para viajar, conhecer o Egito, ir para a Europa e andar no metrô onde as mulheres usam joias. (...)Não me desagrada estar assim suspenso no tempo, contando os azulejos da piscina, chupando as mangas que o velho me trouxe" p.80

DESORIENTAÇÃO TEMPORAL

"Acordo sem saber se dormi pouco ou demais. É um meio de tarde, mas não sei de que dia" p.83

" Sei que passa um pouco do meio-dia porque o movimento dos carros é intenso por igual nos dois sentidos" p.99

CAPÍTULO 8

Quando o narrador-protagonista tenta deixar a mala de maconha (trocada pelas joias da irmã) no apartamento do amigo, ao sair do lugar ele vê o negro gigante e gordo de sunga de borracha com estampa imitando onça, vindo gingando na avenida no meio do engarrafamento, dirigindo-se ao edifício do amigo com um canivete na mão, que descascava uma laranja. O leitor pode perceber algo de familiar nesta cena e ela é antecessora da cena em que o mesmo negro gigante de sunga saí do apartamento algemado pela polícia. Só que no cap.03 ela é a conclusão de uma sequência que iniciou no Cap.08, ou seja, a enunciação dissolve e inverte a causalidade temporal.

CONSIDERAÇOES FINAIS

O proposito deste ensaio foi esmiuçar a estreia do compositor e cantor Chico Buarque como romancista. E no nosso entender foi uma estreia promissora, que situa o sexagenário sambista carioca como um excelente realizador de literatura contemporânea.

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NOVOS PROLETÁRIOS, TOYOTISMO E REBELIÃO

Este ensaio parte, sobretudo, de duas obras: uma de Ricardo Antunes Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho – 3ª edição – São Paulo: Boitempo, 2000 e uma de Anselm Jappe As aventuras da mercadoria; para uma nova crítica do valor – Tradução: José Miranda Justo – Lisboa: Antígona, 2006; também lemos uma entrevista de István Mészáros; assim como, alguns artigos de Robert Kurz da versão online em português da Revista EXIT!

O propósito deste ensaio é refletir sobre a configuração do chamado novo proletariado, em face do advento do toyotismo e suas implicações para uma transformação ou ruptura com a sociedade mercantil.

Em Ricardo Antunes constata-se que o velho proletariado – que se consolidou com o modelo de otimização taylorista/fordista e na política com o keynesianismo (Jappe;2006) – já não existe mais.

Mas o que é proletário? Deve ser a pergunta inicial para nortear nosso ensaio. Proletário é quem despossuído do meio de produção ( a lavoura, a fábrica, a prestadora de serviços) é obrigado a vender sua força de trabalho em troca de um salário.

Então já não há quem venda sua força de trabalho? Lendo Antunes não é bem isso que se conclui. Há proletários ainda mas estes ganharam novos predicados.

Para não ficarmos no campo da abstração, vamos dar um exemplo tirado da política brasileira. O próprio Luís Inácio Lula da Silva constata que na época de sua juventude, bastava ao migrante nordestino como ele, fazer um curso de torneiro mecânico no SENAI, que o mercado de trabalho lhe acenava com o pleno emprego, enquanto que hoje um engenheiro mecânico formado pode ficar desempregado.

Para esmiuçar o que aconteceu nesse processo aqui, cabe buscar-se em Marx. Para o autor de O capital, Antunes diz que ele tratou o proletariado e a classe trabalhadora como sinônimos.

No século XIX, os trabalhadores assalariados eram centralmente proletários industriais.

Hoje a classe trabalhadora é o conjunto do que Marx chamou de ‘trabalhadores produtivos’. Desse modo, a classe trabalhadora hoje não se restringe somente aos trabalhadores manuais diretos, incorpora a totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo que vende sua força de trabalho em troca de salário. Contudo, ela é hoje centralmente composta pelo conjunto de trabalhadores produtivos que são aqueles que produzem diretamente mais-valia e que participam também diretamente do processo de valorização do capital.

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Antunes afirma que a classe trabalhadora hoje, engloba também o conjunto dos ‘trabalhadores improdutivos’. Aqueles cujas formas de trabalho são utilizadas como serviços, seja para uso público, como os serviços públicos tradicionais, seja para uso capitalista. O trabalho improdutivo seria aquele que não se constitui como elemento vivo no processo direto da valorização do capital e da mais-valia.

O capital também depende fortemente de atividades improdutivas para que as suas atividades produtivas se efetivem. Mas aquelas atividades improdutivas que o capital pode eliminar, ele assim tem feito, transferindo muitas delas para o universo dos trabalhadores produtivos.

Antunes constata um paradoxo do capitalismo atual: dado que a todo trabalho produtivo é assalariado mas nem todo trabalhador assalariado é produtivo, uma noção de classe trabalhadora deve incorporar a totalidade dos trabalhadores assalariados. Assim, a classe trabalhadora hoje é mais ampla do que o proletariado industrial do século passado, embora o proletariado industrial moderno se constitua no núcleo fundamental dos assalariados. Quer esses assalariados executem atividades materiais ou imateriais, quer atuando numa atividade manual direta, quer nos polos mais avançados das fábricas modernas, exercendo atividades mais “intelectualizadas” (que num número reduzido), trabalhadores esses caracterizados por Marx como “supervisor e vigia do processo de produção” (Grudrisses).

Antunes incorpora na classe trabalhadora o que denomina de proletariado rural, que vende sua força de trabalho para o capital, os chamados boias-frias das regiões agroindustriais.

Mas o ponto de maior relevo, no ensaio de Antunes, é quando ele incorpora o proletariado precarizado, o qual ele denomina de subproletariado moderno, fabril e de serviços, que é ‘part time’, que é caracterizado pelo trabalho temporário, pelo trabalho precarizado, como são os trabalhadores dos Mc Donald’s, dos setores de serviços, dos ‘fast foods’, que o sociólogo do trabalho inglês Huw Beyon denominou de operários hifenizados, são operários em trabalho-parcial, trabalho-precário, trabalho-por-tempo, por-hora.

Nesta altura do ensaio de Antunes é que estão criados os desafios para as esquerdas, desde aquelas que querem administrar o capital, quanto aquelas que pretendem superá-lo.

O mundo que criou Lula não existe mais.

A primeira tendência que vem ocorrendo no mundo do trabalho hoje é uma redução do operariado manual, fabril, estável, típico da fase taylorista e fordista do pleno emprego. O proletariado industrial brasileiro teve um crescimento enorme nos anos 60 e fins de 70. O ABC paulista tinha cerca de 240 mil operários em 80, hoje tem pouco mais de 110, 120 mil[aqui utilizo dados estatísticos de Antunes,

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como o livro já tem 10 anos de publicação, pode ser que tenha havido uma redução ainda maior.]Se a Volkswagen tinha 40 mil operários hoje têm menos de 20 mil, produzindo, entretanto, muito mais.

André Gorz percebeu que há uma tendência marcada pelo enorme aumento do assalariamento e do proletariado precarizado em escala mundial. Assim, paralelamente à redução de empregos estáveis, aumentou em escala insustentável o número de trabalhadores em regimes de tempo parcial, em trabalhos assalariados temporários.

Antunes diz que o capital reconfigurou uma nova divisão sexual do trabalho. Nas áreas onde é maior a presença do capital intensivo, de maquinário mais avançado, predominam os homens. E nas áreas de maior trabalho intensivo, onde é maior a exploração do trabalho manual, trabalham mulheres.

E o toyotismo onde fica nisso tudo? O toyotismo ou modelo japonês de gestão da cadeia produtiva é o principal responsável pelo surgimento desse novo proletariado. Não esquecendo é claro que a toyotização da produção não é causa, mas efeito da grande crise do capital com a revolução microeletrônica e com a falência do modelo keynesiano da década de 70 (Jappe;2006).

O Toyotismo, criado pela indústria automobilística japonesa, caracteriza-se pelo que seus executivos empolgados chamam de “redução do desperdício” e curiosamente os capitalistas japoneses se inspiraram no modelo norte-americano de gestão de supermercados, da indústria têxtil. Assim, com a intensificação do tempo e do ritmo de trabalho criam-se níveis insuportáveis de exploração do trabalho. A jornada de trabalho pode até reduzir-se, com a pressão de operários mais radicalizados, enquanto o ritmo se intensifica.

Desse modo, o processo toyotista de gestão da cadeia produtiva traduz-se pelo fato de que é um operário ou uma operária trabalhando em média com quatro, com cinco, ou mais máquinas. Enquanto no modelo fordista e taylorista havia uma especialização de tarefas. Além disso, esses trabalhadores, sob o modelo japonês, são desprovidos de direitos (a chamada flexibilização do trabalho) – como se vê no polo industrial do município de Horizonte, tão enaltecido pelo Governo das Mudanças de Tasso Jereissati e continuado pelo Governo Cid Gomes – seu trabalho é desprovido de sentido, em conformidade com o caráter destrutivo do capital, pelo qual relações metabólicas sob controle do capital não só degradam a natureza levando o mundo à beira da catástrofe ambiental ( como o Estaleiro que Cid Gomes queria no Serviluz indiferente a um forte impacto socioambiental), também precarizando a força humana que trabalha, desempregando ou subempregando-a, além de intensificar os níveis de exploração.

Desta forma, Antunes conclui que a classe trabalhadora atual é mais explorada, mais fragmentada, mais heterogênea, mais complexa.

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Ainda que não houvesse uma homogeneização total no taylorismo/fordismo do século XX (trabalhadores homens, mulheres, qualificados e não qualificados, nacionais e imigrantes, jovens etc.) deu-se uma enorme intensificação desse processo, que alterou sua qualidade, aumentando e intensificando em muito as clivagens anteriores.

E como fica a consciência de classe em face da tayotização da cadeia produtiva? A antiga solidariedade operária (de que se falava Bakunim) fica completamente prejudicada, pois o trabalhador passa a introjetar os valores do proprietário da empresa. Deste modo, qualquer resistência, rebeldia, recusa, sabotagem são completamente rejeitadas como atitudes contrárias “ao bom desempenho da empresa”, tornando o trabalhador um déspota de si mesmo. Deste modo, o trabalhador é instigado a se auto recriminar e se punir, se a sua produção não atingir a chamada “qualidade total”. Assim, o trabalhador é levado a só pensar na produtividade, na competitividade, em como melhorar a produção da empresa, considerada sua “outra família”.

LIMITES DE RICARDO ANTUNES

Ainda que no ensaio de Antunes sejam levantados elementos extremamente inteligentes e pertinentes, é na parte final do livro que o pensamento do autor de Adeus ao trabalho? encontra seus maiores problemas.

Embora forneça um diagnóstico interessante sobre o novo proletariado e suas implicações para a transformação social, Antunes erra no remédio: ao propor o socialismo como solução para alienação desse novo proletariado no contexto da sociedade produtora de mercadorias.

Mas iremos esmiuçar bem essa parte para não cometer injustiças.

Antunes não quer o modelo de ‘socialismo num só país’ implantado pela stalinização do movimento operário. Ele quer um “projeto que tenha como horizonte uma organização societal socialista de novo tipo, renovada e radical”.

Em países emergentes dotados de significativo parque industrial como Brasil, México e Argentina Antunes vê um início possível de seu projeto.

Antunes acerta, parcialmente, ao ver na rebelião Zapatista do México como algo próximo de seu projeto – ainda que seja bom frisarmos que os Zapatistas não reivindiquem para si o termo socialismo; acerta ao identificar um potencial revolucionário nos movimentos dos trabalhadores desempregados e erra feio ao identificar o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) como nova forma de organização que se rebela contra o sentido destrutivo do capital.

E para ilustrar nosso argumento, vamos citar o caso, conhecido entre anticapitalistas autênticos, ocorrido no interior do Estado do Ceará.

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No município de Acarape há um assentamento de trabalhadores rurais ligados ao MST.

O Assentamento era dividido em dois grupos antagônicos: um majoritário, composto por trabalhadores rurais evangélicos, ligado à cúpula do MST e um grupo minoritário, autodenominado de trabalhadores autônomos, que discordavam do modelo produtivista hegemônico do MST.

O grupo majoritário predominantemente evangélico, dentro dos moldes produtivistas, chegou a desmatar criminosamente uma mata ciliar de madeira sabiá para vender lenha e desenvolveu uma monocultura de cana-de-açúcar para empresa Ypióca em regime de trabalho precarizado, enquanto o grupo minoritário passou a ser perseguido por ter denunciado o majoritário ao IBAMA e por ter recusado o crédito do BANCO DO NORDESTE para não endividar-se. O grupo minoritário era discriminado pelos trabalhadores evangélicos por não fazer queimadas e por adotarem princípios não invasivos da agroecologia e da permacultura.

Toda essa longa ilustração foi para demonstrarmos que o MST não representa nenhuma ameaça ao modelo poluidor e concentrador de renda do ‘agro-business’ e que seus trabalhadores longe de quererem se emancipar da lógica perversa do capital, querem desesperadamente se integrar a ela.

O ensaio de Antunes é tremendamente feliz em mostrar um contexto proporcionado pela toyotização da produção e da reestruturação do capital e o impacto da subcontratação. Pois hoje empresas como a BENETTON e a NIKE em vez de concentrarem sua produção no interior da fábrica, parcelizam o trabalho pelo mundo todo, criando aberrações como as facções onde pessoas trabalham em residências sem direitos trabalhistas em jornadas estafantes.

Antunes aposta demais num suposto caráter anticapitalista do sindicalismo brasileiro. Fornece elementos para entender a gênese e o desenvolvimento da CUT e suas acomodações socialdemocratas, contratualistas; a partir da Articulação Sindical, entendidas nas políticas de parcerias, nas negociações com o patronato, nas câmeras setoriais, com vistas “ao crescimento do país” e sua cada vez maior atrelação à burocracia do Estado.

Antunes espera que no interior do sindicalismo brasileiro se controle fortemente os monopólios.

A nosso ver, Antunes espera demais por partidos e sindicatos mergulhados até a raiz dos cabelos na reprodução do capital e não em sua superação.

Antunes espera até que os sindicatos passem a promover uma auto-organização classista dos desempregados. Quando vemos os sindicatos cada vez mais presos a

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política de migalhas para os filiados empregados e até incentivando práticas xenófobas, ultranacionalistas contra os trabalhadores e subproletários imigrantes ou com hesitações antissemitas. (Robert Kurz)

A NOSSA PROPOSTA

É muito difícil uma emancipação social radical enquanto se insistir em categorias imanentes à lógica do capital: estado, mercadoria, trabalho, dinheiro, valor, política, partidos, sindicatos, nos.

Anselm Jappe nos ajuda em muito a desenvolver uma proposta consistente e transcendente à sociedade mercantil. Enquanto Antunes propõe uma emancipação no trabalho e pelo trabalho, propomos a emancipação do trabalho, a abolição do trabalho. Nas situações em que o trabalho já desapareceu ou nunca chegou a estar presente condenando um terço da humanidade à lata de lixo social, só a emancipação do trabalho pode sacudir a sociedade mercantil.

Parafraseando Jappe se o capitalismo foi uma ‘expropriação de recursos’ agora é necessário organizar a ‘reapropriação dos recursos’. Desse modo, para finalizar, propomos o controle social da produção em escala transnacional.

A REVOLTA LUDDITA

Este artigo pretende analisar o Movimento Luddita que ocorreu na Inglaterra nas primeiras décadas do século XIX.O movimento foi organizado pelos operários ingleses, revoltados por terem sido expulsos do campo, onde tinham pequenas propriedades rurais e passaram a adotar técnicas radicais de sabotagem de máquinas ou até de destruição do maquinário fabril e têxtil, no que resultou numa dura reação por parte do governo inglês: vários operários foram enforcados por quebrarem máquinas. Ou seja, o capitalismo urbano-industrial nascente mostrava a todos os cidadãos precarizados das urbes quem era mais importante para ele: a máquina, o lucro, o bem-estar do patrão.

O operário não era importante. Sua subjetividade, seus sonhos, desejos não contava. O que contava era que ele acordasse cedo com escuro e chegasse tarde em casa. Dormisse no máximo cinco horas por noite apenas para recuperar as forças físicas, para no dia seguinte voltar a um trabalho estafante, num ambiente sujo, empoeirado, úmido, escuro, sufocante. No início da industrialização da produção urbana e fabril, os fabricantes obrigavam os pais até a trazerem os filhos para as fábricas. E além das constantes mutilações nas máquinas por parte dos adultos cansados e mal alimentados, as crianças também foram vítimas de mutilações além de castigos corporais dados pelos capatazes das fábricas.

Ou seja, todo esse contexto foi gerando um espírito de revolta na classe operária

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inglesa da época. E os operários passaram a fazer a coisa mais lógica: destruir o maquinário que os oprimia.

A historiografia burguesa ou marxista mostra os revoltosos ludditas como um movimento desorganizado e espontaneísta. Mas a historiografia de orientação anarquista, como a obra "Os destruidores de Máquinas: In Memorian" de Cristian Ferrer, editada pelo selo anarquista Imprensa Marginal ( Caixa Postal 665 Cep 01059-970 Sp -Sp - [email protected]) revela dados impressionantes sobre o tipo de estratégias utilizadas pelos operários daquela época. A organização não era rígida nem burocrática, mas era extremamente eficiente e solidária.

Várias vezes a polícia inglesa tentou cooptar a classe operária oferecendo recompensas para quem delatasse os líderes revoltosos. As pessoas iam à delegacia, faziam delações falsas, recolhiam o dinheiro e iam para outra delegacia pagar a fiança de líderes presos. Ou seja, demonstrando o grau de consciência de classe e consciência política do operariado inglês. Ainda que essa consciência não fosse fruto de uma elaboração intelectual muito sólida ou respaldada num saber livresco. Muito pelo contrário, a classe operária inglesa não era muito escolarizada até pelo fato de terem vindo da zona rural onde o acesso à escola era muito difícil. O que prova que o chamado "povão" só é otário quando quer. Ou seja, as pessoas de baixo poder aquisitivo, de pouca escolaridade, quando sentem na pele que estão sendo oprimidas e humilhadas pelos poderosos tem a total capacidade de se organizar e botar o opressor para correr.

Mas um dado surpreendente para mim do livro de Christian Ferrer: a maioria desses revoltosos ingleses eram camponeses da igreja metodista. Ou seja, mostrando que a religião evangélica inglesa daquela época em nada se parece com a igreja evangélica brasileira de hoje, totalmente bajuladora dos poderosos.

Os operários ingleses estavam acostumados com uma vida tranquila no campo, onde não havia luxo, mas todos tinham o de comer e não precisavam pagar aluguel. Pagavam apenas uma parte do que produziam para o dono do feudo. Ser expulso para a cidade grande, para servir de mão-de-obra quase escrava, morando em bairros péssimos e tendo que trabalhar o tempo todo, foi uma experiência traumática para esses ingleses pobres. Porque no feudalismo os camponeses trabalhavam poucas horas por dia, dependendo da sazonalidade das safras, indo dormir quando o dia escurecia enquanto na cidade grande as pessoas acordavam cedo e não paravam de trabalhar, pois com a eletrificação urbana o patrão raciocinava que não havia motivo para ir para casa.

É lógico que isso agredia a saúde física e psíquica desses trabalhadores e a solução não foi ficar rezando por dias melhores ou esperando o repouso no céu. Os trabalhadores ingleses partiram para ação e resolveram radicalizar. Identificaram no maquinário uma forma de manutenção de uma sociabilidade nociva, insana. Identificaram no maquinário a simbologia de uma cultura de instrumentalização do

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ser humano. Ou seja, o ser humano reduzido a sua dimensão mais utilitária. E toda vez que um operário perdia um braço ou um dedo no maquinário e era sumariamente demitido sem nenhum direito ou indenização, ficava claro para a classe operária inglesa como os patrões os encaravam: como coisas e não como gente. Ou seja, como força de trabalho, como algo que dá lucro ou prejuízo e nada mais.

Ou seja, num sistema social brutal e odioso como esse, só havia uma forma de impedi-lo de perpetuar-se: destruindo o maquinário têxtil que o reproduzia. Destruir a máquina era um gesto de recusa a uma vida absurda e alienada. Ou seja, o que os operários queriam eram se desapropriar de suas vidas. Ter o total controle sobre ela. É lógico que a reação dos patrões, do governo e da polícia foi brutal: quem eram esses "caipiras", esses analfabetos que ousam se rebelar contra nossa tirania? Vamos enforcar todos os líderes desse movimento.

O movimento luddita foi esmagado pela classe dominante e suas técnicas assassinas, mas por outro lado foi vitorioso, porque obrigou o governo inglês a conceder alguns direitos à classe operária. Como, aliás, sempre o Estado capitalista faz: para não perder tudo e produzir uma situação incontrolável de convulsão social, os gestores públicos acabam fazendo pequenas concessões ao povo. E é nisso que a classe dominada pode acabar sendo enfraquecida por acomodação, passividade e por uma falsa ilusão de que participa da sociedade de consumo quando o seu poder de compra aumenta, ainda que de forma insignificante. Contudo, os ludditas mostraram para os patrões que os trabalhadores não são os "carneirinhos" dóceis e mansos que eles incentivam com toda uma indústria da passividade. Mostraram que a qualquer momento o germe da revolta pode se espalhar novamente.

ALTA VOLTAGEM LÍRICA DE JOÃO GILBERTO NOLL

A obra do romancista gaúcho João Gilberto Noll vale pela poligrafia. Produziu desde contos (Ex.: Máquina do Ser), passou por um livro de fragmentos (Mínimos, múltiplos, comuns) até romances caudalosos e barrocos (como Fúria do Corpo); assim como escreveu um romance curto veladamente autobiográfico (Berkelley em Bellagio).

No livro “Berkelley em Bellagio” as instâncias de enunciação se revezam entre a primeira pessoa e terceira pessoa. A impressão que se tem é de que Noll queria ficar invisível na narrativa através do recurso da terceira pessoa, mas em outros momentos o romancista utiliza marcas verbais da primeira, principalmente quando ele (o narrador) se entrega aos prazeres da carne com outros homens

Através das marcas verbais pode-se inferir que em alguns momentos luxuriosos da narrativa, Noll tenta se esconder através dos pronomes, de terceira pessoa, mas em outros ele assume a sexualidade agônica através dos pronomes oblíquos .

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Noll ficcionaliza a sua autobiografia, de escritor pobre e sem recursos no Brasil, ele resolve descrever as suas estadias no estrangeiro - dando aulas em universidade americana ou recebendo prêmios num congresso de escritores na Itália.

As mudanças espaciais na narrativa são feitas sem maiores sinalizações para o leitor,deixando a obra confusa e delirante. Noll em alguns momentos não deixa claro se está nos Estados Unidos ou na Itália ou em Porto Alegre, tal é o simultaneísmo narrativo. Algo que chamou a atenção de Ítalo Morriconi visto como “literatura de superposição entre narrador ficcional e alter ego de autor ”

Berkeley em Bellagio é uma prosa poética de alta voltagem lírica. Em que seus personagens errantes passeiam por paisagens urbanas cheias de tédio, angústia, tudo embalado numa carga erótica que chega ao brutal.

DOSSIÊ GUY DEBORD

Nesse estudo pretendo dialogar com duas importantes fontes bibliograficas. Uma é a obra Guy Debord de Anselm Jappe, em tradução portuguesa por Iraci P. Poleti e Carla da Silva Pereira, editada em Portugal pela Editora Antígona em Abril de 2008.E a outra é a obra A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo de Guy Debord em tradução brasileira por Estela dos Santos Abreu, editada no Brasil pela Editora Contraponto.

Falar da obra do francês Guy Debord não é uma tarefa muito fácil, como também não é nada fácil falar do que chamo de marxismo sofisticado. Dentro dessa estirpe estariam arrolados autores como Georg Lucács, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamim, Karl Korsch, Jürgen Habermas, Herbert Marcuse.

Se fala num suposto marxismo sofisticado ou até mesmo num marxismo sombrio, como se depreende da obra da filósofa brasileira Olgária Matos, a maior estudiosa dos frankfurtianianos e seus tributários em terras brasileiras, poderíamos também falar num oposto: um marxismo vulgar.

Nesse marxismo vulgar arrolaríamos autores como Vladimir Lênim, Leon Trotsky, Joseph Stálin que em suas obras reduziam todo a carga dialética e multiforme do filósofo alemão Karl Marx a um bê-á-bás simplista, como estivessem a fornecer kits de revolução pré-fabricados para qualquer país ou contexto geográfico. No fundo a obra de Lênin, Trotsky e Stálin apenas esmiúçam mexericos, intrigas e fracassos da revolução de modelo bolchevique implantada na União Soviética, sem contudo aprofundá-los de forma mais crítica ou estendem o que havia sido dito por Marx e Engels em O manifesto comunista. E decididamente o Manifesto é uma obra menor, é apenas um panfleto encomendado pelos operários da A.I.T. (Associação Internacional dos Trabalhadores) dentro da bibliografia marxiana. Bem diferente do Marx vigoroso, rigoroso e exaustivo de O capital, Manuscritos econômicos filosóficos, Crítica ao programa de Gotha e o controvertido Grundrisses.

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O chamado marxismo sofisticado diferente de propor soluções fáceis ou receitas prontas de revolução, faz aquilo que Daniel Bensaid apropriadamente chamou de aposta melancólica. Ou seja, a aposta na revolução, mas sem a garantia da vitória.

E é compreensível da parte desses teóricos uma postura se não pessimista, pelo menos cética no potencial revolucionário da classe trabalhadora.

E todo esse suposto pessimismo ou ceticismo tem a ver com as denúncias do fracasso das revoluções de modelo bolchevique que foram criadas no território soviético e exportadas para lugares como a China, a Albânia, a Coréia, o Vietnam, a Tchecoslováquia, Angola, Moçambique, Cuba e até a vacilante experiência socialista na Nicarágua.

E não é só a postura desconfiada com esses governos supostamente operários-camponeses, autores como Lucács e principalmente os frankfurtinianos passaram a desconfiar até do potencial humano para qualquer emancipação desreificante, principalmente depois da 2ª guerra mundial.

Enquanto no século XIX parte da classe média letrada e identificada com as reinvindicações operárias via na ciência e na técnica a emancipação possível da espécie humana, já no século XX a decepção da intelectualidade mais à esquerda com os rumos utilitaristas e desumanos da ciência e da tecnologia, provocaram uma ressaca e um certo mal estar dentro do campo da esquerda.

Quando se soube que as conquistas mais modernas da Medicina e da Engenharia estavam sendo usadas nos campos de concentração nazista para exterminar pessoas, isso provocou uma espécie de trauma insuperável em autores como Adorno e Benjamim.

Dessa forma, estaria criado o que venho chamando de impasse civilizacional.

E dentro desse cenário sombrio e de perplexidade crítica como se situa o pensamento de Guy Debord?

Guy Debord se for um marxista é um marxista bem herético. Para começo de tudo negava a organização em estruturas partidárias verticalizadas, sua Internacional Situacionista mais se parece uma rede espontânea de grupos de afinidade à maneira anarquista. Aliás, a relação com o anarquismo em Debord não para por aí. Debord esforçou-se por reunir e traduzir a obra completa do anarquista russo Mikhail Bakunim. Mas se certos interesses e certos métodos utilizados por Debord e os militantes da IS se pareciam com anarquismo, não se pode afirmar que Debord e a IS fossem anarquistas. Pelo simples fato de que os anarquistas, ou parte considerável deles, não se preocupam em esmiuçar a crítica da economia política, a forma-valor e o fetichismo da mercadoria como faziam os membros da I. S.

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Alias, segundo Anselm Jappe e Robert Kurz até os anarquistas (mesmo em versões radicalizadas como as experiências zapatistas no território mexicano de Chiapas) cometeriam o erro de querer libertar-se pela economia, do que querer libertar-se da economia. Ou seja, segundo esses autores articulistas da revista EXIT!, os anarquistas, assim como os verdes, os neoliberais, os democratas cristãos, os comunistas dos PC's, os socialistas mandelistas do Le Monde Diplomatique, os trotskistas, os republicanos, todos eles reinvindicam dinheiro ou distribuição de dinheiro, quando o conveniente seria a eliminação do dinheiro.

A Internacional Situacionista foi um coletivo também editorial, que editou uma revista chamada Internacionale Situacioniste. O grupo surgiu a partir de 1957 e reuniu elementos que provinham da Internacionale Letriste, do grupo COBRA e do Movimento Internacional para uma Bauhaus imaginista.

Segundo Jappe, quando esses diversos grupos pré-existentes se reuniram num novo é porque demonstravam estarem fartos da arte, enquanto esfera separada da vida. Eles queriam a partir dali uma espécie de fusão entre arte e vida. Arte e cotidiano. Ou radicalizar a arte, a tal ponto de superá-la.

Debord critica as vanguardas artísticas como o futurismo, o dadaísmo e especialmente o surrealismo e seu elogio à irracionalidade, quando passou a perceber que o elogio surrealista do irracional foi recuperado pela burguesia para embelezar ou justificar a completa irracionalidade do seu mundo. Debord vê que após 1945 o que antes era um protesto contra o vazio da sociedade burguesa, encontra-se agora fragmentado e dissolvido

“no comércio estético corrente, como uma afirmação positiva desse vazio.”

Assim, não poupará críticas ao existencialismo e sua "dissimulação do nada' ou pela alegre afirmação de uma perfeita "nulidade mental" na obra do dramaturgo irlandez Samuel Beckett ou do romancista francês Robbe-Grillet.

E quais seriam então as metas situacionistas? À Arte já não deve expressar as paixões do velho mundo, mas contribuir para inventar novas paixões: em vez de traduzir a vida, deve ampliá-la.

Os situacionistas vão conviver com uma dualidade quase sempre tensionada entre propor uma revolução puramente política ou propor uma revolução cultural. E nessa dissonância interna eles projetavam a criação de uma nova civilização e de uma real mutação antropológica.

No iníco a IS apostou muito no signo da experimentação, que vai desde a prática do détournement - reproduzir trechos de histórias em quadrinhos da cultura de massa nas páginas da Internacionale Situacioniste, porém com as falas alteradas nos balões ditos por personagens como Capitão América ou Tio Patinhas, que acabavam citando trechos irônicos ou paródicos com certas ocorrências do cotidiano sindical francês. Outras coisas também foram experimentadas como a pintura industrial de

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Pinot Gallizio produzida em grande escala sobre longos rolos vendidos a metro, para ironizar a produção em série da tecnologia de modelo fordista. O arquiteto Constant elaborou a planta de uma cidade utópica A New Babylon, que simplesmente propõe a destruição da grande metrópole.

Debord passa a fazer experiências na área cinematográfica. Em algumas ele resolve testar as expectativas tradicionais do espectador acostumado com a sintaxe mastigada do cinema americano, fazendo justamente o oposto. Num de seus filmes, o espectador fica mais de meia hora na sala de projeção em total breu, em que Debord que provocar ou eliminar a passividade do espectador dentro daquilo que ele passou a chamar de Sociedade do espetáculo. E consegue, o público pagante sai indignado com o cineasta. Em outros, a única coisa que o espectador vê na tela é um fundo branco, enquanto Debord recita fragmentos da Sociedade do Espetáculo,trechos da revista Internacionale Situacioniste, num tom enfadonho e com uma voz esganiçada.

As realizações cinematográficas mais bem realizadas do ponto de vista fílmico são aquelas em que Debord abandona a necessidade juvenil de chocar o espectador e passa a mostrar filmes baseados em trechos de publicidade da TV Francesa, em que Debord comenta em off certos hábitos vazios da sociedade de consumo. E isso só vai acontecer já na maturidade do Debord cineasta, quando o autor de Sociedade do Espetáculo já parece dominar melhor os ritmos entre som e imagem e a demonstrar mais experiência com a ilha de edição.

No início da década de 60 enquanto membros da IS como Debord, o belga R. Vaneigem e o húngaro A. Kotanyi vão radicalizar suas posições estéticas, no sentido de entender que a esfera da expressão e está realmente superada, tendo a libertação da arte sido "a destruição da própria expressão, parte desse grupo até entenderá que 'a nossa época já não precisa de escrever instruções poéticas, mas de as realizar". Já outros membros não querem abandonar a concepção tradicional do artista nem estão dispostos a aceitar a disciplina exigida.

Nesse contexto quase todos os artistas da IS declaram-se céticos quanto à vocação revolucionária do proletariado e prefeririam confiar aos intelectuais e aos artistas a tarefa de contestar a cultura atual.

E do ponto de vista da sobrevivência desse membros enquanto artistas, as coisas vão se complicando cada vez mais com a crescente rejeição aso apelos e seduções para que se insiram nas teias da indústria cultural. Um dos membros Pinot Gallizio, é expulso do grupo quando não consegue resistir a uma carreira pessoal nas galerias de arte.

Com o tempo os poucos membros restantes da IS dada a radicalidade de ser um grupo de artistas que não produz "obras", numa autêntica crítica à sociedade de consumo e à indústria cultural - sua maior produtora; a IS acabaria progressivamente abandonando o campo artístico e passando a fazer uma crítica

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social furiosa e aglutinante que acabariam deflagrando a greve dos 100 mil e as barricadas do Maio francês.

E como falamos da experiência da revista Internacionale Situacioniste, achamos oportuno comentar como era a produção do mercado editorial francês da época mercado editorial francês era ou é bem diferente do brasileiro. Enquanto aqui, a classe média consome revistas como Contigo, Caras e Guia Astral João Bidu. O público francês no século XX levava a sério revistas de debates e discussão.

Assim, podia-se encontrar o órgão dos existencialistas A les temps moderne. Uma certa kierkegaardização e heideggeriarização de Marx na revista Arguments.

A revista Critique em que Michel Foucault publicava seus artigos sobre psiquiatria, penalização e biopolítica.

A revista Tel Quel que divulgava teses estruturalistas ou estudos sobre erotismo de Bataille.A revista Socialisme ou Barbarie liderada por Cornelio Castoriades que apesar da crítica à União Soviética, não se aprofundava na forma-valor, no fetichismo da mercadoria e assimilava de forma acrítica antropologia e psicologia.

No mercado editorial francês havia até espaço para a revista Oulipo, esquisito veículo liderado pelo poeta Raymond Queneau mais interessado em pirotecnias estilísticas (palíndromos, reescrituras, pastichos e misturas de poesia com análise combinatória) do que na crítica social ou comportamental.

Debord deve ter arranjado muitos inimigos no meio da intelectualidade francesa, com sua conhecida ironia ferina e ranzinza. Criticava a apologia do nada em existencialistas como Merleau-Ponty, ridicularizava a tese da morte do homem, da história sem sujeito do estruturalismo vista por ele como a principal ideologia apologética do espetáculo ao negar a história e ao querer fixar as condições atuais da sociedade como estruturas imutáveis.

Com um grupo de afinidade jogou tomates numa conferência do ciberneticista Abraham Molles.

Gozava da mistura indigesta de marxismo e estruturalismo feito por Louis Althusser, zombava do Noveau roman e do cinema de Godard.

Fica muito difícil resumir um pensamento complexo como é o de Guy Debord. O livro de Jappe, apesar do nome, não é uma biografia e pouco podemos deduzir de como Guy Debord conseguiu sobreviver, pagar suas contas e pelo final que teve (o suicídio) podemos inferir que a radicalidade do autor de Panegírico deve ter criado muitos problemas de ordem prática, a despeito de no fim da vida, o pensador francês ter arranjado uma amizade com um controvertido empresário que financiou seus últimos filmes e bancou seus livros.

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ETNOGRAFIA DE UM DISQUE AMIZADE GLS

Com este ensaio pretendo analisar um Disque Amizade GLS da cidade de Fortaleza. No caso falo do serviço telefônico 3468 3000, criado para atender ao público de gays, lésbicas e simpatizantes da capital do Ceará.

A Etnografia foi criada originalmente para descrever povos e etnias indígenas e só mais tarde também foi utilizada para descrever os hábitos e códigos culturais de outras comunidades.

Descrever os hábitos, gestos, símbolos, ritos e mitos de uma comunidade exige que o pesquisador se disponha até ir ao seu lócus de pesquisa. Mas e quando se trata de observar os hábitos e representações de uma comunidade de falantes como de uma sala de bate-papo gols telefônico? Aqui a tarefa pode se tornar temerária e difícil, pois uma coisa é o pesquisador ir até um ilê de candomblé ou uma igreja evangélica ou a sede de um coletivo de anarco-punks observar e registrar o que percebe nesse lugar. Mas quando se trata de uma comunidade fluida como é uma sala de bate-papo? Como observar regularidades e recorrências quando a cada cinco minutos a sala se preenche de novas pessoas e sem falar que essas pessoas podem assumir personalidades que não são as suas?

Qual a relevância de observar gays, lésbicas e bissexuais conversando num serviço telefônico? Esse estudo pode fornecer dados para pesquisadores em etnografia e psicologia social, pois ao dar ouvidos ao que esses indivíduos conversam somos confrontados com suas crenças e cosmovisões particulares.

No serviço não há só pessoas que ligam da cidade de Fortaleza, mas também usuários que ligam da região Metropolitana, de cidades mais afastadas como Juazeiro e eu já conversei com um rapaz que falava de Pernambuco.

A questão da identidade numa sala como essa é bem curiosa. Muitas pessoas usam nomes falsos e até criam personalidades postiças. Homens, originalmente másculos no seu cotidiano, na sala atendem pelo nome de Panela Skylab e usam gíria do universo das drag-queens e das travestis.

Os objetivos de quem liga varia muito. Vai desde homens casados que ligam para marcar um encontro sexual e furtivo com outro usuário enquanto a esposa enfermeira foi dar um plantão até rapazes que ligam apenas para ouvir os amigos que participaram do show da Alanis Morisseti.

As representações que esses usuários têm da comunidade homossexual, assim como a cosmovisão gls é bem peculiar. Revela uma comunidade, um pertencimento populacional de hábitos culturais bem específicos.

Ao ouvir essas pessoas o pesquisador pode identificar o preconceito e a

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desigualdade social que também existe no universo ideológico da comunidade de homoafetivos. Várias vezes presenciei homens gays da Aldeota perguntando se havia gays do mesmo bairro na sala, pois segundo eles não queriam conversar com os gays das regiões mais pobres de Fortaleza. Isso se evidencia ou em afirmações explícitas ou em comentários jocosos sobre o que esses gays endinheirados denominam de bichas pão-com-ovo.

O preconceito e a elitização econômica também ficam evidenciados: quando se ouve os gays que foram para o show da Alanis Morisseti fazerem questão de frisar o quanto gastaram no preço do ingresso, no consumo de bebidas e iguarias caras durante o show e no retorno para casa tarde da madrugada em carros caros e importados.

As representações desses indivíduos revelam porque a indústria do entretenimento investe tanto nesses gays endinheirados e revela também a lucratividade de apostar nesse "nicho de mercado".

Certa vez foi interessante ouvir de uma drag-queen como ela compreende o relacionamento homossexual. Basta ver o filme americano O segredo de brokeback mountain, pois lá há a explicação de como termina todo relacionamento entre gays: um morto e outro: olhando para uma jaqueta.

O que se pode perceber nos usuários desse serviço é de que há um queixa comum: a da solidão.E dá para se concluir o motivo, pois na pós-modernidade a tônica dos relacionamentos e dos vínculos é o esgarçamento, a superficialidade dos contatos. As pessoas vivem um paradoxo de não quererem fidelizar relações e ao mesmo tempo quererem estabilidade. Como posso ter estabilidade se não me fidelizo ou não me ligo profundamente a ninguém?

Uma coisa que merece menção é a participação lésbica na sala: pequena e contida. E outra menção é a grande quantidade de bissexuais que ligam para o serviço com intenções apenas de satisfazer genitalmente seus instintos sem maiores vínculos.

HOMENAGEM MAL FEITA A TOM ZÉ

Este texto tem todos os defeitos da minha prática escritural: não serão informadas as fontes, não serão informados os nomes certos das faixas fonográficas analisadas, não serão informados os créditos da faixa técnica do encarte do CD, porque ouvi o material fonográfico, o "corpus" de um arquivo de MP3 baixado "criminosamente" da internet.

Esse texto tem outros defeitos recorrentes de minha prática escritural: esse exercício auto referencial obsessivo de ficar explicando os defeitos da minha prática escritural. Ou seja, a minha prática escritural tem algo de fagocitose sobre si mesma, como uma ameba que resolvesse devorar a si mesma num gesto desesperado de

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quem procura comida na geladeira ou na dispensa e não encontra.

E o que realmente fará a "porra" desse texto, desse maldito e vaidoso texto?

Esse texto pretende, eu disse pretende, repito, analisar a obra do compositor baiano, filho do município de Irará: TOM ZÉ.

Quem foi TOM ZÉ, eu disse TOM ZÉ e não TOM JOBIM. Quem foi?

TOM ZÉ foi e é um compositor nascido no território brasileiro e que começou a se destacar na mídia na época do finado TROPICALISMO.

Sua música São São Paulo deve ter ganhado algum prêmio ou colocação em algum festival da RECORD.

E também TOM ZÉ está na capa do disco-manifesto da Tropicália. Onde tem um finado ilustre lá no meio: TORQUATO NETO.

A obra de TOM ZÉ consegue juntar dois inimigos jurados de morte: O Ariano Suassuna armorial e o atonalismo de KOELLREUTER.

E isso fica patente em sua trilha-sonora de um balé de um grupo de dança, que deve ter sido o balé CORPO. Falo de Parabelo em parceria com Jose Miguel Wisnik.

Tom Zé gosta de brincar com o passado como no cd ESTUDANDO O SAMBA, elogiado pelo desagradável e cacofônico KOELLREUTER. O genial e experimental KOELLREUTER. E num espírito paródico Tom Zé acabou gravando o cd Estudando o Pagode, como se houvesse algo a estudar no Alexandre Pires ou no Exalta Samba. Cada um que estude o que quiser, tendo a bolsa da CAPES ou não. Cada doido com suas manias. E que doido genial é o Tom Zé.

A Tropicália teve o seu lado A, genial e midiático: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, mas também teve seu lado B: Wally Salomão, Jards Macalé e o suicida Torquato Neto. Tom Zé sempre foi do lado B da tropicália, embora tivesse amizade com o lado A.

E chegou a fazer sucesso por causa da repercussão sobre sua música cantando as ruas sujas de São Paulo. Mas na década de 70, Tom Zé resolveu sabotar o seu próprio sucesso: lançando o esquisitíssimo cd 'Todos os olhos', onde há um ânus com uma bila dentro. E a capa irritou os censores da ditadura, que não lembro agora se era apenas uma ditadura de aparato militar ou também de aparato econômico. Que importa, ditadura é sempre ditadura. Seja a ditadura de Fidel Castro, de George W. Bush, Saddam Hussein, Mikhail Gorbatchov, Stálin, Trotsky. Ditadura é sempre ditadura.

E em seguida conseguiu juntar seus trocados de professor da faculdade de música

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da Bahia e ficar gravando os seus próximos discos sem despertar o interesse do programa Flávio Cavalcanti.

Só que suas contas foram se acumulando e a esposa dele começou a ficar preocupada com a dispensa da casa, enquanto seu marido perdia tempo com compassos, harmonia, melodia, ritmo, tonal, modal e todas essas besteiras que não interessam aos programadores das FM's forrozeiras da cidade de Fortaleza.

Tom Zé estava ficando tão desesperado com a magreza de sua esposa fiel, que começou a pensar em aceitar o convite de ser frentista num posto de gasolina oferecido gentilmente por seu primo frentista de um posto de gasolina.

Só que em algum lugar do planeta, mas precisamente numa loja de discos de alguma capital brasileira, o compositor americano David Byrne, topou com um disco estranhíssimo na seção de samba de uma loja de discos do Brasil. O disco lhe chamou a atenção, um daqueles vinis grandes, que dá pra ver a capa de papelão, toma espaço, arranha, exige um pick-up que preste e uma agulha de alta sensibilidade. Pois bem, David Byrne tinha esse hábito de comprar esses vinis velhos, esses bolachões aposentados pela indústria fonográfica, até porque como ele é americano, ele tem dinheiro para comprar pick-ups e agulhas de alta sensibilidade para ouvir discos de vinil ou até de cera ou acetato ou sei lá. Talvez o professor Cristiano Câmera possa nos explicar melhor qual a diferença entre um disco de acetato, de um gramofone, de um disco de cera, embora, ao contrário de David Byrne, o professor Cristiano Câmera não receba nenhum centavo para essas pesquisas, nem ele, nem o NIREZ, nem ninguém no Brasil. O Brasil prefere investir em coisas, mas úteis, como por exemplo, a melhor maneira de poluir os rios, os lençóis freáticos, os povos ribeirinhos, o povo sertanejo naqueles megaprojetos de que eu falei antes, não percamos tempo com o que já foi falado.

Sim. Mas o que chamou tanto a atenção do americano David Byrne naquele disco do Tom Zé numa seção de samba?

A capa.

Uma capa de disco de samba cheia de arames farpados. Que coisa estranha para se pôr na capa de um disco de samba. E isso levou David Byrne a comprar o disco. Ele nem sabia quem era Tom Zé. Ele conhecia o lado A da tropicália. Mas o lado B, não.

E ficou maravilhado com o que ouviu. Era algo novo, esquisito, fora do prumo. Era samba mas tinha compassos novos, era algo timbrístico.Muito esquisito.

E Tom Zé lá estava coitado, professor da faculdade de música, a atender clientes endinheirados que chegavam ao posto de gasolina. Quando de repente David Byrne entra em contato com ele.

Resumo: por causa de David Byrne e do seu selo musical, hoje Tom Zé é ouvido no

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mundo todo.

A música de Tom Zé é irônica, paródica, auto referencial, metalinguística, metamusical. E por isso jamais tocará no programa do Faustão, mais interessado no ADO ADO CADA UM NO SEU QUADRADO.

Mas Tom Zé tem seu público. Faz seus shows. E tem dinheiro para regar suas plantas e alimentar sua esposa.

CRÍTICA AO 59º SALÃO DE ABRIL NO TERMINAL DO SIQUEIRA

"No dia em que os teares tecerem sozinhos

e as cítaras tocarem sozinhas, o homem será livre”Aristóteles, filósofo da Grécia Antiga.

Esta resenha pretende analisar as obras do 59º Salão de Abril - Mostra Nacional de Artes Visuais - Arte: Desejo e Resistência, realizado de 14/Out/08 a 23/Nov/08 dentro do Terminal de ônibus do Siqueira. O evento foi promovido pela SECULTFOR, órgão da Prefeitura Municipal de Fortaleza.

Teve a curadoria de Andrés I. M. Hérnandez, Ricardo Resende e Siegbert Franklin.

Esta resenha não intenta cobrir o evento como um todo, que se realizou em três lugares: o terminal de ônibus do Siqueira (na região sul de Fortaleza, área extremamente pobre), no terminal do ônibus do Papicú (na região leste de Fortaleza, a chamada área nobre da cidade) e no Centro de Referência do Professor (que fica no Centro da capital cearense).Pretende-se aqui apenas analisar as obras expostas no Terminal de ônibus do Siqueira.Fazer crítica de artes-plásticas é uma tarefa quase ingrata e quase inútil, quando se parte do pressuposto de que o crítico seria uma espécie de relações públicas a divulgar artistas (Terry Eagleton). A Tarefa se torna inútil, porque muitas vezes quando finalmente o leitor tem acesso à crítica, a exposição já tem saído de cartaz. Diferentemente da crítica literária. Quando examino a obra do poeta paulista Roberto Piva, por mais marginal que ele tenha sido um dia, rabiscando poemas em guardanapos de papel nos bares infectos da boêmia de São Paulo, hoje se pode encontrar a obra do poeta transgressor quase toda editada ou relançada nas livrarias pela Editora Globo.Já em se tratando de crítica de artes-plásticas temos uma série de problemas.

O primeiro deles: se a crítica não vier acompanhada de ilustrações, tudo ficará muito no plano da abstração. Além disso, no caso da arte contemporânea não basta apenas a crítica vir acompanhada de suas respectivas reproduções fotográficas. Já que na contemporaneidade as condições ambientais, ou até a ausência delas, faz parte do gesto artístico. Assim, não basta reproduzir os pôsteres fotográficos que ficaram fixados nas paredes de uma parte do terminal (Não informo o nome da artista porque não havia folder nem o monitor tinha o catálogo com o nome da

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mesma), pois quem sabe se o fato do deslocamento dos ônibus no interior do terminal, proporcionando momentos em que os pôsteres eram vistos e outros em que eram tapados pelos ônibus, não faz parte da intenção da artista? Ou seja, não seria aí também os motoristas de ônibus uma espécie de co-autores das obras? Seria difícil reproduzir isso em fotos.

Outro problema de se fazer crítica de artes-plásticas em comparação com a crítica literária: é que na crítica literária conto com o sossego de um escritório, de um quarto e de um livro que tiro ou recoloco na estante conforme a conveniência.Já a crítica de artes-plásticas é extremamente desconfortável. Uma vez para cobrir uma exposição do Centro Cultural Banco do Nordeste, tive de ficar agachado ou sentado no chão enquanto preenchia meu caderno de anotações, pois as obras que estava analisando foram dispostas numa vitrine rente ao chão.

Nessa exposição em particular, no 1º dia em que fui vê-la, fui num horário próximo do rush e o terminal estava ficando muito cheio, esfumaçado e barulhento. No 2º dia em que fui num horário mais cedo, uma das vídeos-instalações apresentou problemas técnicos. E o vídeo não foi exibido e o monitor de TV estava desligado.

Tudo isso são imprevistos que o crítico literário, no conforto de sua casa e tomando seu café, nunca terá.

A 1ª obra analisada é do cearense Luiz Sales, cujo título é 8. É uma instalação usando a técnica da fotografia.

Num suporte de 200x400 cm, vemos duas fotografias justapostas. Numa delas é um clique fotográfico sobre uma cena banal no centro da cidade de Fortaleza: pessoas atravessando uma rua em frente ao Edifício Sulamérica. Tudo isso seria banal aqui, se o fotógrafo por um processo digital (tipo Photoshop) não tivesse tirado as cabeças e rostos dessas pessoas atravessando a rua. Causando um visível efeito de estranhamento. E na foto ao lado há um esboço de rosto feito em negro sobre fundo branco.Quando vi os homens sem cabeça e sem rosto atravessando a rua, lembrei do conceito sociológico do sujeito sem rosto, sem identidade da pós-modernidade. E o esboço de rosto ao lado dessa foto, sugere um rosto sem traços identitários definidos, pois o rosto não exibe marcas de classe social, poder aquisitivo, faixa-etária, etnia e até gênero, o que nos sugere o conceito das identidades fluidas e líquidas de Zigmunt Bauman.

A 2ª obra analisada é Sem Título do cearense Caio Danieli. A técnica utilizada é a fotografia e impressão digital sobre tecido.

O monitor da exposição me informou algo curioso: a fotografia foi tirada numa câmera tipo pinhole, que são aquelas câmeras artesanais muito rudimentares, utilizadas por oficineiros para dar aulas de fotografia para alunos carentes que não tem dinheiro para comprar uma câmera profissional.

O efeito plástico dessa foto foi muito bom. Devido à baixa qualidade e a baixa resolução, a imagem ficou com um efeito poroso, granulado.

E o que se vê é uma paisagem marinha bem comum aos fortalezenses. Nela aparece

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um pedaço da ponte dos Ingleses, também conhecida por Ponte Metálica. Justamente aquele pedaço em que o acesso do público é proibido; a ferrugem, a maresia, buracos na argamassa deixaram a edificação em ruínas.Há algo de metáfora aqui. Trazer parte do oceano atlântico para dentro da região mais afastada do litoral de Fortaleza. Seria uma brincadeira do artista com aquela profecia de que o mar em 2012 vai atingir até a Serra do Maranguape, devido a um suposto cataclismo geológico, previsto por um pai-de-santo e que já faz parte do anedotário da cidade?Pode também ser uma alusão a questão dos deslocamentos e das desterritorializações proporcionadas pela tecnologia. Pois os usuários do Terminal do Siqueira, que estão vendo a réplica daquela paisagem, poderão vê-la pessoalmente, pois do terminal há itinerários de ônibus que levam para Praia de Iracema.

Isso não seria possível antes do advento da civilização do automóvel, dos ônibus coletivos e da rodoviarização forçada da paisagem brasileira, depois do Governo Juscelino Kubitschek, totalmente submisso à indústria automobilística.

Enquanto na Europa as pessoas vão para o trabalho ou para o lazer através do transporte ferroviário, que polui bem menos e mata bem menos também.

A 3ª obra é do paranaense Charles Klitze: Revestimento/Reinvestimento em

desenho de gênero II. Intervenção feita através da impressão de cartazes off-set.

Na obra vários cartazes com o mesmo motivo foram colados. Neles há um pugilista desferindo socos. Pode estar fazendo uma crítica à violência urbana que se multiplicou no cenário caótico das cidades. Sinalizando que vivemos numa era tensionada de conflitos.

Pode ser também uma paródia com o modismo do Muay-Thay, praticado tanto por gente séria, como por doidinhos que querem sair por aí dando porradas em homossexuais e empregadas domésticas, que esperam a condução na parada de ônibus. Falo em paródia, porque o traço utilizado nos remete ao universo das histórias em quadrinhos.

A 4ª obra analisada é a da cearense Cláudia Sampaio, que usou técnicas diversas como pintura direta na parede com pincel atômico, lápis, guache, colagens de recortes, detalhes fotográficos e objetos do cotidiano colados na parede.

A obra possui um texto verbal que sugere uma leitura, mas devido à disposição caótica intencional, o espectador fica sem a indicação de um percurso de leitura específico. Pois a cada momento que se tenta ler, a frase é interrompida por um desenho, ou por outra frase superposta em outra cor, a sugerir o estado emocional perturbado da artista.A monitora explicou que a artista sofreu recentemente a experiência do luto com um parente e que parece ter havido violência sexual nesse homicídio.A obra mostra elementos icônicos que sugerem cortes, rupturas, perdas, sobreposições. Há beleza nesse caos, mas também há dor.

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A 5ª obra analisada é dos cearenses do Themis Memória: Uni-forme. É uma instalação em que há um relógio de ponto antigo, TV e DVD.

No primeiro dia em que fui ver a obra, o vídeo funcionava.

O que é a obra? Aparentemente um relógio de ponto, só que no lugar do relógio, foi colocado um monitor de TV que fica exibindo uma video-arte.No 1º dia que fui consegui ver a vídeo-arte. E no 2º dia que fui com o caderno de anotações, o vídeo estava desligado por problemas técnicos.Pelo que entendi Themis Memória não é uma pessoa, mas um grupo de artistas. O vídeo foi editado por Frederico Benevides e contou com a performance do seguinte elenco: David da Paz, Taya Lópis, Balbucio. Contou ainda com a parceria de João Paulo Ribeiro e Luiz Pratti.A trilha-sonora é assinada por Narcílio Grud.As fotografias presentes no vídeo são de João Wilke, Reginaldo Freitas e Haroldo Sabóia.Vou descrever o que acontece com o espectador nessa obra. Ele chega e vê um relógio de ponto antigo analógico e um pequeno fichário antigo cheio de cartões de ponto usados.No cartão está escrito: - Bata Ponto.O verbo no imperativo sugere a atmosfera autoritária do mundo do trabalho.Como o relógio de ponto é antigo, talvez a obra queira sugerir que estamos num mundo marcado pelo desemprego e que assim como o relógio de ponto, o trabalho é uma relíquia do passado.

Então se não temos mais o pelourinho moderno que é o relógio de ponto para nos atanazar, então seria o momento de comemorar a liberdade de um mundo sem trabalho e marcado pelo ócio? (Bob Black em Abolição do Trabalho). Errado. Não é o que sugere o tom e a trilha-sonora da vídeo-arte. Nela pessoas se movimentam em cima de um palco repetindo movimentos mecânicos, como se batessem ponto, com uma iluminação sombria a sugerir o ambiente insalubre das fábricas, que um dia o homem foi condenado a suportar e que hoje foi expulso delas pelas inovações tecnológicas, pela automação do trabalho e por certos modelos de gestão da cadeia produtiva, como o toyotismo, que provocaram o enxugamento do quadro de pessoal.

A vídeo-arte tem interferências de fotografias e recortes de anúncios publicitários, sugerindo que esse homem pós-moderno está angustiado não por ter perdido o trabalho ou por nunca ter conseguido se inserir no mercado de trabalho, mas por não ter como consumir as mercadorias que lhe são oferecidas diariamente pela publicidade e que ele desesperado não tem poder aquisitivo para comprá-las.

Outras reflexões também são sugeridas aqui. Mesmo que o homem pós-moderno esteja desempregado em grandes contingentes urbanos ou rurais, será que sua psique está desempregada? Ou para ser mais claro, depois dos 200 anos da Revolução Industrial, que trouxe outro uso do tempo e do espaço terrestres, que trouxe outros ritmos e pulsações... pois o homem que passou 200 anos cumprindo horários, prazos, obedecendo ordens e produzindo mercadorias nos ritmos

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frenéticos ditados pelas leis implacáveis da economia de mercado, estaria esse homem preparado para esse repentino e compulsório excesso de tempo livre, provocado pelo desemprego estrutural?

Vamos esmiuçar mais este raciocínio. Há 200 anos que o homem vinha sendo usado como engrenagem de uma grande máquina de produção. Sendo controlado pela produção, ao invés de controlá-la como tentaram fazer na revolução de caráter anarquista na Espanha de 1936 ou como sugere a crítica do fetichismo da mercadoria da obra do filósofo alemão Karl Marx. O homem se via pautado pelos ritmos cadenciados e militarizados do trabalho, ora no taylorismo ora no fordismo. De uma certa forma, a instrumentalização do ser humano provocada pelas necessidades do produtivismo capitalista marcou também a subjetividade do ser humano. Tanto que o ser humano trouxe certos hábitos da fábrica ou do escritório para sua vida pessoal.

Hoje, por exemplo, quando alguém termina um namoro com outro pessoa, há até a expressão: AH! Eu dei as contas de fulano ontem na festa

O conceito cínico networking, que consiste na necessidade das pessoas atualmente serem sempre simpáticas, ficarem mostrando os dentes o tempo todo e evitarem certos atritos ou conversas mais profundas com os colegas e amigos, no intuito de que esse colega ou amigo não pode ser descartado, porque pode estar nele a dica ou a indicação do próximo emprego ou do próximo bico ou trabalho temporário, que levará a comprar aquela TV de 29 polegadas de Plasma, que está cientificamente comprovada que ninguém pode passar sem ela. Assim, o networking difundido por conceitos como DATA-MARKETING, veiculados por revistas idiotas como a Você S.A., nada mais é do que Roberto Kurz chamou sarcasticamente de relações de freguesia. Então, o que seriam as amizades hoje em dia? Oportunidades de negócio.Assim, insistimos, o homem pode até estar desempregado, mas sua psique continua batendo cartões de ponto em todos os lugares.Para terminar a análise da obra do relógio de ponto, vale ainda destacar que de cada lado do relógio de ponto há uma gravura de uma mulher nua pintada em branco sobre fundo azul. Eletrodos de uma máquina foram instalados em sua vagina e em seu cérebro, constituindo uma sinistra simbiose homem-máquina, sugerida por certos modelos de gestão de trabalho como o toyotismo, que liquidou totalmente a vida familiar dos trabalhadores, que ainda permanecem empregados -falo aqui da nefasta prática da folga cinco por um.A mulher na gravura parece emitir um espasmo de dor e os traços lembram algo da ficção-científica Blade Runner ou do artista Moebius, nesse pequeno quadro sádico em que se tornou o capitalismo transnacional vitorioso com as bênçãos das esquerdas e direitas administradoras.Na 6ª obra analisada, a paulista Heloísa Etelvina: Filatelista, feita com gravura -1,92x3, 10 cm, selos fictícios, tipografias e carimbos compõe um painel que de longe lembraria algo na confluência entre o rigor do construtivismo geométrico e o abstracionismo. De perto, o espectador ao se aproximar percebe que há selos que tem letras, sílabas, que remeteriam a uma língua que tivesse fonética, morfologia e até sintaxe, mas que não tem semântica. Posto que as letras e sílabas não formem

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frases nem textos. Ou formam palavras de uma língua inexistente.

Talvez Etelvina queira referir-se a uma época, em que o bombardeio de informações diárias proporcionado pelos meios de comunicação de massa, mais tumultuam a mente do receptor, do que informam. Ou então, seria uma alusão a partir do significante do selo fictício de que as comunicações atualmente estão mais cheias de ruído, do que de sentido.

Na 7ª obra Antonio Rocha: Seres Naturais (o monitor não soube informar a naturalidade do artista) feita de gravuras com tinta serigráfica num suporte de tecido. As cores utilizadas foram jogadas em jorros furiosos e explosivos sobre a tela num fundo branco. Os matizes foram o preto, o branco, o cinza e o magenta. E o efeito plástico produzido nos remete a um expressionismo abstrato que resolve cantar o disforme, o grotesco, o feio e o sujo realçado pelo excesso de preto, a simular talvez a fuligem presente em terminais de ônibus.

Na 8ª obra da cearense Ivanize, a artista usou a técnica de lambe-lambe, pintura sobre papel.

Foram coladas nas paredes do terminal. Há uma adolescente colegial. Há uma concha gigante de que saem pernas femininas e há uma mulher com mala querendo sair, migrar para algum lugar, mas dos seus pés brotam raízes que a impedem de sair.Que percurso de leituras podemos fazer desses significantes? A associação com o universo feminino é automática. A mulher-menina adolescente na escola, que deve ir à escola para aprender a ser uma mãe ou trabalhadora eficiente e submissa. A mulher escondida numa concha gigante que poderia ser o útero, mas também pode ser o ostracismo imposto à mulher durante muitos anos e uma mulher que finalmente resolve deixar a casa do pai, do marido, do companheiro que a oprime, mas que ao mesmo tempo, já se enraizou no que é familiar, ainda que ruim e teme a insegurança e a imprevisibilidade do desconhecido.

E por último a obra do cearense Gentil Barreira: Espelho Meu II. Fotografia - 200x 90, impressão espelhada adesivada sobre PVC.

Em duas fotos um homem e uma mulher de corpos inteiros vestidos e mal iluminados.

A iluminação é suficiente apenas para mostrar os contornos do corpo e certas partes do colorido das roupas. A impressão que se tem é de que estão num provador de roupas dessas lojas de departamento.Os rostos de ambos estão escurecidos.

A pergunta que a obra de Gentil Barreira nos faz é: qual o contorno do homem e da mulher contemporâneos? E se o refletor se acendesse sobre seus rostos, o que veríamos? Que tipo de homem e que tipo de mulher a pós-modernidade produziu em meio ao patriarcado judaico-cristão agonizante, como se depreende da obra de João Silvério Trevisan (Seis balas num buraco só: A Crise do masculino - Ed. Record), da feminista alemã Roswita Scholz e as seduções da sociedade de consumo, da indústria de comésticos como se depreende da obra de Gilles Lipovetsky?

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Termino aqui minha contribuição crítica. Não quiz com ela encerrar um debate, mas provocar seu início.

A PADARIA ESPIRITUAL SEGUNDO GLEUDON PASSOS

Este texto é uma resenha do livro "Padaria Espiritual: Biscoito fino e travoso" de

autoria do historiador Gleudson Passos Cardoso, faz parte da Coleção Outras

Histórias editada pelo Museu do Ceará e Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará.

Gleudson Passos Cardoso, nascido em Fortaleza, graduado em História pela UFC e mestre em História Social pela PUC-SP, é professor de História da Unifor e do Projeto Magister/UFC. Membro atuante da Sociedade de Belas Letras & Artes Academia da Incerteza. É poeta, tendo se especializado na arte do soneto. Autor do livro "Fraya Zamargad: Sonetos de Amor e Melancolia".

O livro "Padaria Espiritual: Biscoito fino e travoso" é uma espécie de resumo de sua dissertação de mestrado cujo título é "As Repúblicas das Letras Cearenses: Literatura, Imprensa e Política (1873-1904)". A obra traça um panorama do contexto peculiar da Fortaleza do Séc.XIX que gerou a singular confraria de escritores da Padaria Espiritual.

A Padaria Espiritual foi um grupo eclético em atuações e tendências literárias. Liderada pelo escritor Antônio Sales, tinha como principal propósito alfinetar a burguesia ignara. Gleudson Passos revela no primeiro capítulo a constituição dos grêmios literários que antecederam os escritores do Jornal "O Pão". A Academia Francesa, segundo o autor, em muito difere do grupo de Antônio Sales. Enquanto Rocha Lima, Capistrano de Abreu, Araripe Júnior e outros surgiram para combater a Igreja Católica, nas páginas do órgão maçônico "Fraternidade", como estandartes da sociedade industrial-civilizatória, entendido como culto ao progresso, a tecnologia e a ciência; o grupo dos padeiros, por sua vez, revestia-se de certo saudosismo em relação a uma cidade que perdia seus encantos brejeiros e assumia terríveis ares de metrópole. O autor informa que enquanto outras agremiações como o Centro Literário e a Academia Cearense procuravam disseminar a ideologia do progresso, seja relacionada ao regime republicano ou ao conhecimento científico-tecnológico, a Padaria Espiritual optou por interpretar a realidade nacional de acordo com a realidade popular que compunha a nação brasileira. Isso se traduz numa certa aversão aos estrangeirismos, tão comuns à moda e ao "mundanismo" que os produtos fabricados nos países industrializados trouxeram aos centros comerciais e áreas de influência mais recônditas. Desse modo, o historiador identifica alguns traços de teor nacionalista. Entretanto, a Padaria Espiritual não era um grupo homogêneo. Gleudson Passos comunica que as posturas variavam bastante. Na paleta dos "forneiros" podiam-se perceber desde as cores alegres da filosofia do progresso com Antônio Sales e Álvaro Martins até os tons escuros do pessimismo

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satânico e a descrença na civilização industrial com Lívio Barreto, Lopes Filho e Cabral de Alencar. Com base nisso, o historiador pinça trechos de crônicas em Antônio Sales e o republicano exaltado Álvaro Martins revelam a crença de que a normalização dos espaços p[públicos e a correção de comportamentos transgressores à ordem urbana contribuiriam para o progresso, o bem-estar social e a moralidade.

Por outro lado, membros do grupo como Adolfo Caminha identificava nos regeneradores da ordem sócio-urbana (médicos, higienistas, urbanistas, engenheiros), nas classes urbanas emergentes e nas facções políticas oligárquicas, os agentes de imposição de uma violenta disciplina urbana, a reproduzir o consumismo selvagem, bem como concentrar poder político com mandonismo, violência física e atos ilícitos, nepóticos e clientelistas.

No segundo capítulo, Gleudson Passos compõe o painel da formação da Padaria Espiritual. Segundo o autor o grupo era formado por rapazes oriundos dos setores médios e baixos da cidade e do interior. Eram, portanto, funcionários da alfândega, caixeiros, escritores menores, sem filiação com as facções político-oligárquicas e buscavam ascensão pública e social.

No terceiro capítulo o historiador recupera a importância do fundador do grupo, Antônio Sales. Gleudson Passos mostra em que medida a atuação publicitária do autor de "Trovas do Norte" projetou o grupo não só no Ceará, como nos grandes centros. Antônio Sales enviava o "Programa de Instalação" para vários escritores do eixo Rio - São Paulo e pedia colaboradores para o Jornal "O Pão" em todo o país. Com esta estratégia a Padaria Espiritual passou a ser referência de literatura feita no Ceará.

No quarto capítulo, Gleudson Passos mergulha nos meandros da chamada "literatura menor" do Ceará, isto é, feita por apreciadores da estética simbolista. Assim, os padeiros "nephelibatas" beberam nas fontes de Baudelaire, Verlaine, Antero de Quental e Antônio Nobre. O autor entende que o trabalho de Lopes Filho, Lívio Barreto e Cabral de Alencar está calcado no estilo dionisíaco, herdeiro do barroco e, sobretudo do romantismo, em que deram-se por rebelar contra as estratégias de controle simbólico, como a crença ortodoxa na ciência, no progresso técnico-industrial e na democracia liberal.

No último e breve capítulo, o autor procura estabelecer uma relação nem sempre amigável entre os escritores e a imprensa local.

Padaria Espiritual: Biscoito fino e travoso é uma obra curta (93 páginas) e bem urdida, feita com apuro e lucidez crítica. O texto de Gleudson Passos é saboroso e fluido. O autor não faz crítica literária e nem é esse o objetivo de um historiador, mas procura investigar em que medida o literário pode ser uma porta de acesso a um tempo esquecido.

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KARL MARX: DOBRADIÇA, ESQUIZOFRENIA OU POLIFONIA?

Este texto é mais um brainstorming sobre a questão, do que propriamente um ensaio científico seguindo todas as regras do cânon metodológico.

Parte da perplexidade perante o contato com a afirmação da existência de um ‘duplo Marx’, anunciada aos quatro ventos por um imenso tecido conceptual auto-proclamado como Teoria Crítica Radical.

Busca ver as implicações deste Marx duplicado e procura - a partir do conceito da polifonia elaborado pelo lingüista russo Mikhail Bahktin - colocar o problema em outros termos.

O DUPLO MARX

A tese do ‘duplo Marx’ é defendida por um organismo internacional denominado Movimento pela Teoria Crítica Radical ou Internacional Emancipacionista. Tal instituição é composta por uma gama heterogênea de pensadores e atores do que vem sendo chamada de esquerda não-oficial.

Quando se diz heterogênea, é porque parece não haver uma homogeneidade conceptual entre seus membros. E isto fica claro, às vezes, num único documento lançado pelo grupo. Por exemplo, na brochura O Eterno Sexo Frágil? de autoria de Robert Kurz e Roswitha Scholz, publicada no Ceará pela União das Mulheres Cearenses, é patente a discordância entre esposo e companheira (os autores são casados), em que a feminista alemã dá alfinetadas no grupo/revista liderado pelo marido, a saber: o (a) controvertido(a) movimento/revista Krisis. E isto é ruim? Pensamos que não, pois olhando retrospectivamente, percebemos que a falta de homogeneidade é que produziu as coisas mais interessantes do pensamento humano: desde a experiência fundadora da Padaria Espiritual no Ceará do século XIX até a Teoria Crítica de Frankfurt.

Quem são os outros atores deste Movimento Pela Teoria Crítica Radical? A resposta conduz a idiossincrasia heterogênea da origem de seus membros. Entre eles citaríamos o ensaísta Jorge Paiva, brasileiro maoísta que lia Guy Debord em 68; Anselm Japp, um ensaísta alemão que mora na Itália e escreve em italiano; Enrique Dussel, professor universitário mexicano; Ruy Fausto, filósofo, professor da USP;

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Moishe Postone, professor da Universidade de Chicago; Ernst Lohoff, co-editor da Revista Krisis; entre outros. Segundo Jorge Paiva, o movimento também se espalha pela Áustria, Portugal, Espanha e África do Sul. O que permeia estes teóricos de origens tão díspares é o conceito capital do ‘duplo Marx’, categoria basilar geradora de outras categorias.

A Lingüística diz que toda palavra ou signo ativam esquemas cognitivos prévios. Esmiuçando no Dicionário, o termo ‘duplo’ quer dizer dobrado, duplicado; que contêm duas vezes a mesma quantidade. O adjetivo ‘duplicado’ nos remete a outro adjetivo, ‘dúplice’ e somos surpreendidos por uma definição dicionarizada que registra um aspecto pejorativo da coisa, pois dúplice é o que é duplicado, duplo, mas é também o que tem fingimento ou dobrez. Assim, seríamos levados a existência de dois Marx: um verdadeiro e outro falso. Aqui acabamos entrando no perigoso terreno do juízo de valor. Pois quem teria capacidade de julgar e apontar o Marx verdadeiro e o Marx falso construídos pelo movimento operário? E para piorar as coisas, lembramos daquele episódio em que o próprio Marx disse categoricamente: - Não sou marxista.

O que significa o duplo Marx na visão da Internacional Emancipacionista? Significa a existência de dois Marx num mesmo pensador. O Marx exotérico da teoria da mais-valia e, por conseguinte, da teoria da exploração; e o Marx esotérico da teoria do valor e respectivamente da teoria da alienação. E o processo se complica, porque segundo eles não se trata de uma divisão cronológica, como por exemplo alguns teóricos insistem na existência de um Jovem Marx e um Marx maduro. O que pareceria natural e já aconteceu em outros setores: um Lacan freudiano (do início da carreira) e um Lacan lacaniano (da maturidade). O problema não é esse. É outro. Os teóricos da Crítica Radical afirmam que esse ‘duplo Marx’ coexiste numa mesma época e numa mesma cabeça. Desse modo, o 1º volume do “Capital”, dedicado à Mercadoria, nega os volumes restantes. Aliás, eles informam, baseados provavelmente em Rosdolsky e Mézáros, que a introdução do “Capital” foi escrita depois da obra “pronta”. Assim, flagramos um processo de formatação teórica “sui generis”: um pensador que começa escrevendo o final de uma obra, para depois elaborar seu início.

Uma obra muito discutida e citada pelos emancipacionistas que revelaria claramente a duplicidade de Marx é o livro “Grundrisse”. Outro fenômeno “sui generis” na trajetória intelectual de Karl Marx. Livro denso e complexo, lançado postumamente em edições precárias e reduzidas (pouco mais de 300 exemplares), o “Grundrisse” só vai aparecer em traduções francesas, espanholas e inglesas na década de 70 do século XX. E, diga-se de passagem, até pouco tempo atrás a obra não contava com uma tradução portuguesa, o que revela sintomaticamente o descaso da esquerda brasileira pelo seu conteúdo tão controvertido. Nesta altura dos acontecimentos, quando somos apresentados a um Marx duplicado ou dobradiço, vem automaticamente a associação com a esquizofrenia. Segundo João-Francisco Duarte Júnior em “O que é Realidade” – 8ª edição. São Paulo: Brasiliense,

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1991: a esquizofrenia seria a dificuldade do esquizofrênico em erigir para si mesmo uma identidade una e coerente, fragmentando-se numa multiplicidade de “eus”. Observando o alcance da Teoria de Marx, poderíamos detectar a existência de um Marx filósofo, um Marx economista, um Marx político, entre outros, num perpétuo rodízio intelectual. Desse modo, a categoria ‘duplo Marx’ mostra-se inadequada para captar a complexidade da obra de Karl Marx.

MARX: ESQUIZOFRÊNICO OU POLIFÔNICO?

A teoria da Polifonia elaborada pelo lingüista russo Mikhail Bahktin (não por acaso, um marxista) é a que parece dar melhor conta da questão. Segundo o lingüista russo a polifonia se dá através do processo da intertextualidade. Ou seja, cada texto é composto da soma de outros textos anteriores. Cada texto recupera as vozes de um texto anterior, seja confirmando ou negando-as. Desse modo, Karl Marx (aqui um metonímia) dialoga com Proudhon, Hegel, Smith, Ricardo, Aristóteles. Assim, Karl Marx seria uma espécie de palimpsesto onde estariam sobrepostas as vozes e marcas de pensadores anteriores e contemporâneos de Marx. A maior prova deste argumento seria a obra “Miséria da Filosofia” que dialoga com “Filosofia da Miséria” de Proudhon. Quando dizemos diálogo não se trata de uma alegre conversa de compadres, pois o diálogo pode ocorrer também de forma tensionada. Chegamos assim, através da teoria da polifonia, a uma discordância da idéia de um duplo Marx. Pois examinando a complexidade da obra do pensador alemão, chegaríamos à conclusão não de um duplo, mas de um quádruplo ou óctuplo Marx, ou seja, existe Marx ao gosto do freguês, ao gosto do intérprete. Ou será que o Marx do PC do B é o mesmo do PCR ou o do PT ou o da LBI? Desse modo, propomos não um duplo Marx, perdido entre os pilares da ponte que separa O Capital do Grundrisse, mas um Marx polifônico que traz em si uma babel de vozes e referências da experiência humana.

O OCULTISMO SEGUNDO FERNANDO PESSOA

Fernando Pessoa crê na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desse mundo, em graus diversos de espiritualidade, utilizando-se até chegar a umente supremo, que provavelmente criou este mundo.

Ele achava que podia haver outros entes supremos que houvessem criados outros universos coexistentes com o nosso.

A Maçonaria evita a expressão Deus, dadas as suas implicações teológicas e populares, preferindo dizer: grande arquiteto do universo, que deixa em branco se ele é Criador, ou simples governador do mundo.

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Não crê na comunicação direta com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos comunicar-se com seres cada vez mais altos.

Os três caminhos para o oculto são: o caminho mágico (espiritismo e bruxaria, extremamente perigosos); o caminho místico (não tem perigos mas é incerto e lento) e o caminho alquímico (o mais difícil e o mais perfeito, que envolve transmutação da própria personalidade).

Fernando Pessoa, poeta introspectivo, vivia de traduções da língua inglesa para o comércio e não pertencia a nenhuma ordem iniciática.

ESCRITA DE CULHÕES: UMA LITERATURA MAL EDUCADA

Este estudo tenta tecer uma reflexão sobre um tipo de literatura, de escritura, não muito estudada ou levada em consideração pela academia, pela Teoria da Literatura e ou pela crítica literária.

Estou falando e evocando a literatura escrita por homens. Houve até um jornalista que, muito apropriadamente, batizou o "corpus" que vou analisar de literatura de culhões ou escrita de culhões.E essa categoria literária eu nunca ouvi falar nos corredores do Mestrado em Literatura por exemplo, o que revela que pode ser mais uma invenção de jornalista para vender livro.Como também pode revelar que a Academia tem uma certa postura burguesa ou asséptica de torcer o nariz para autores que deliberadamente violetam a norma culta ou que no entender dela faria uso de procedimentos estilísticos e de enunciação que fugiriam do cânone literário.

Para a discussão não ficar muito no campo da abstração vou começar a evocar autores que, no meu entender, fariam totalmente ou em parte uso dessa 'escrita de culhões'.

A literatura durante algum tempo pareceu dissociada do corpo de quem a produz e de quem a enuncia.Fruto de inspiração das Musas, produto de elaboração lingüística sofisticada e enamorada do Vernáculo, a literatura não seria o lugar para expressar o corpo e suas secreções ou pulsões.O corpo até ali não era ouvido nem sentido na literatura.O corpo era negado.Produção do espírito e apenas do espírito, a literatura exilou o corpo durante muito tempo.

A literatura seria então o lugar da expressão do sublime, do puro, do inefável, do sagrado.Escritor bom era aquele que sabia ler Latim, Grego ou Hebraico.Escritor bom era aquele que conhecia e dominava a Gramática ou que na infância tivesse

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feito análise sintática de "Os Lusíadas". Poeta bom era aquele que dominava a escansão do verso, ainda que seu verso fosse chocho e insípido. Isso foi o cânone da Literatura ocidental por muitos anos.

A literatura deveria ser comportada e certinha, bonitinha.Na Grécia Antiga, a Tragédia seria o gênero literário maior.E como gênero maior teria que ter personagens maiores e cenários maiores.A Tragédia grega era o lugar dos grandes sentimentos e dos grandes homens.Leia-se aqui grandes homens como os reis, rainhas.E lugar dos grandes temas.Assim, a tragédia grega deveria falar apenas das peripécias amorosas, das mesquinharias e das disputas de poder envolvendo Reis e Rainhas ciumentas e vingativas ou de filhos querendo tomar o lugar do Rei pai.A linguagem deveria ser nobre, rebuscada.

Na Grécia Antiga os escritores que quisessem falar de pessoas menores e sentimentos menores deveriam escrever Comédias.É nas comédias que era permitido existir a plebe grega e romana, amantes escravos e soldados fanfarrões.É nas comédias que era permitido existir o calão, o palavrão, obscenidades, erotismo.Porque tudo isso era associado as classes populares, ao populacho, ao povão.Então assim, o grave, o solene era associado ao Rei e a Rainha, já o ridículo, o obsceno, o grotesco, o bizarro, o escatológico era associado ao escravo e ao soldado.

Na Idade Média com a influência da Patrística e suas elucubrações tagarelas sobre a natureza de Deus, os escritores e poetas foram tolhidos em sua expressão estilística.E muitos os que ousaram escrever coisas sobre sentimentos considerados menores ou pessoas menores foram aconselhados a usar pseudônimos.

E mesmo na chamada Modernidade, os autores que ousaram relatar pessoas fazendo coisas não muito nobres ou que descreviam o uso das partes baixas do corpo foram perseguidos e presos como Marquês de Sade ou o poeta Charles Baudelaire em seu livro seminal As flores do Mal, que ousou fazer versos sobre práticas de Lesbianismo e acabou tendo de pagar uma multa pesadíssima ao governo francês.

A literatura a partir do Romantismo da Segunda geração, também chamada de Ultra-romantismo ou geração byroniana, passou a ser transgressora e a falar das coisas que eram consideradas tabus abertamente. Fruto talvez de uma sociedade que passava da tranquilidade camponesa da vida rural e de pequenas cidades comerciais para o frenetismo das grandes cidades pautadas pelos ritmos da Revolução Industrial.

Uma nova classe social surgiu em oposição a nova classe burguesa proprietária: o proletariado urbano.E lentamente esse novo ator social começou a aparecer na literatura.

Inicialmente a figura grosseira e desagradável do operário urbano analfabeto ou

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semi-escolarizado apareceu na obra dos romancistas franceses como Flaubert, Balzac e Zola.

E na literatura inglesa começou a aparecer de forma vigorosa na obra de Charles Dickens.Ele mesmo um ex-operário que teve a infância marcada pela pobreza, pela miséria, pelos maus tratos de capatazes de fábrica que espancavam os filhos dos operários na frente deles.Esse cotidiano duro marcou como ferro em brasa o imaginário do menino Charles Dickens e isso é patente em sua obra autobiográfica, em que meninos driblam as longas jornadas de trabalho com os livros escolares.

Na Literatura brasileira, por incrível que pareça não veremos isso na obra de um Machado de Assis. Mulato pobre, gago, epilético, Machado de Assis não fala de pobres, gagos, negros ou mulatos em sua literatura.Pelo contrário, imitando José de Alencar, o autor de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" só falou dos mexericos da corte do Rio de Janeiro.Só que em José de Alencar isso fazia sentido.Afinal José de Alencar era um importante latifundiário, proprietário de terras e escravos e enamorado pela bajulação ao poder imperial de Dom Pedro II.Então José de Alencar ao falar de personagens da Corte fazia todo o sentido, porque ele era branco, rico e da Corte.Mas Machado de Assis, não.Mas gostaria de ser.E sua literatura ao falar de gente rica e branca reflete esse desejo de Machado pertencer a esse círculo de sangue azul.

Já Lima Barreto optou por outro caminho.Era mulato, pobre e alcoólatra e em sua literatura há a presença de mulatos, negros, pobres, alcoólatras e os favelados do Rio de Janeiro da época.E pagou caro por isso.Por mostrar pessoas e cenários que não deveriam ter sido mostrados Lima Barreto chegou a perder emprego, teve diversas internações em manicômios e terminou nas ruas do Rio de Janeiro molambento e cheirando a cachaça.

No Modernismo Brasileiro isso começa a mudar.Até porque o cenário político é outro.O desenvolvimento de grandes centros industriais trouxe num novo desenho urbano, em que há mais espaço para a diversidade de opiniões ou ideologias e também até para o confronto nada fraterno entre essas concepções.

Assim, enquanto havia escritores tributários de uma literatura solene, série, nobre e de personagens elevados, legado do beletrismo Parnasiano, da influência das hozanas simbolistas e da fetichização do vernáculo de um Rui Barbosa de um lado, havia também escritores comprometidos com as transgressões das vanguardas européias.

E ser transgressor nesse contexto na era só experimentar no campo lexical ou fornecendo pirotecnias sintáticas, não.A transgressão também estava em cantar o homem comum, mediano, medíocre, banal.

A literatura a partir daí passar a cantar a banalidade do cotidiano e passou a penetrar nos segredos de alcovas, nas obsessões e perversões sexuais das pessoas.

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Porque se em José de Alencar as pessoas apareciam vestidas em seus paletós, com os escritores modernistas são os operários e as pessoas de baixo poder aquisitivo que surgem em suas cozinhas preparando feijoadas ou nuas em seus quartos entre orgasmos e gases fétidos involuntários.

Estou falando de Jorge Amado que mostrou o cotidiano dos pobres e negros da Bahia. E como disse Miguel Falabela em comentário inteligente sobre o extinto Programa do Ratinho:" - O Programa do Ratinho mostra a cara do Brasil real.E é uma cara feia". Assim, Jorge Amado fala das greves dos estivadores dos portos de Salvador, fala dos coronéis cacaueiros do Ilhéus e suas taras sexuais pelas negrinhas que trabalhavam em suas fazendas, fala das macumbas, dos candomblés. Enfim, é uma literatura que fala do povo em todo o seu vigor e brutalidade, não se furtando em registrar a língua grosseira popular.E até os seus palavrões dão o colorido do rico painel do povo baiano.

Moreira Campos, na literatura cearense, também registra a grosseria vocabular do povo cearense, especialmente dos machos cearenses.Aliás seus personagens são sempre homens excitados e que pensam em sexo o tempo todo.

A "Escrita de culhões" seria a expressão desses escritores homens que fazem uma certa apologia da virilidade, da masculinidade e da força bruta.E que elege como personagens homens simples e pouco escolarizados.E como cenários botequins, cabarés, motéis, lugares onde a língua portuguesa se despe do policiamento gramatical e assume toda a rudeza do cântico aos buracos da mulher amada. Talvez até como uma manifestação de uma certa insegurança em sua orientação sexual, porque muitos associam a literatura e a poesia como coisa de mulher ou de homens emasculados, abaitolados, aqueles menininhos que em vez de ir jogar bolar, fazia todos os deveres de casa, rezava todas as rezas da avô, ou seja, um mariquinha.

E se no universo da Literatura Brasileira esse erotismo aparece viril, vigoroso mas suavizado pelo amolecimento sensual do homem latino; já na Literatura Inglesa, a "Escrita de culhões" aparece de uma forma tão crua e seca que resvala ao patológico e ao crime, devido a própria secura e rudeza da língua inglesa e da cultura anglo-saxônica que a inspira.Os americanos, os ingleses e os alemães não são muito dados a ficar desdobrando a mulher amada com poemas apaixonados ou com seduções românticas como fazem os latinos.Pelo contrário, vão logo direto ao assunto e abrindo a braguilha. Basta ver o cinema pornô produzido em países de língua inglesa. Lá as mulheres são tratadas como putas que devem ficar caladas, enquanto seus machos as violam com brutalidade, palavrões e até simulação de estrangulamento.Porque são culturas muito focadas no homem, no macho.E isso resvala também na literatura desses países.

Basta ver a grosseria de um Ernest Hemingway muito empolgado em exibições de força e virilidade gratuita em caçadas e safáris na África ou em cópulas violentas com mulheres submissas.

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Ou a literatura barra-pesada de um Charles Bukowsky mostrando homens bêbados e fedorentos roçando a barba em mulheres dentro de apartamentos de quinta categoria.

Ou ainda a obra de um Henry Miller, em que personagens fazem comentários extremamente depreciativos sobre as proezas sexuais de suas esposas gordas e que expelem gases mal-cheirosos durante a cópula.

Esse estudo poderia apontar para exaustivas análises em parâmetros psicanalistas ou dentro das premissas da crítica feminista, mas confesso que conheço pouco a aplicação da Psicanálise a esse tipo particular de expressão literária, a literatura escrita por homens, como também, não tive muito acesso a estudos feministas sobre romancistas e poetas declaradamente machistas.

Tudo isso ainda deve render estudos.Até porque a crítica feminista ficou durante muito tempo voltada para o seu próprio umbigo: a contemplação de escritoras que supostamente escrevem com o útero.

Pouco se escreveu sobre essa literatura feita por quem tem testículos.Testículos esses tão obsedantes que conseguem ficar patente na urdidura desses escritores citados e de outros que poderiam ser citados também e ficaram de fora.

O CORPO GRITA E PULSA: A OBRA DA COREÓGRAFA SILVIA MOURA

"Não é possível prostituir a ideia de teatro, que deve ter uma ligação mágica, atroz com a realidade e o perigo"

ANTONIN ARTAUD in O Teatro e seu Duplo

Este artigo não segue o cânone da crítica de dança e comete vários pecados conta o

mesmo.Irei debruçar-me sobre a obra da coreógrafa cearense Sílvia Moura.

Este artigo é ruim, do ponto de vista da crítica de dança, porque não li nada da obra do

teórico da dança Rudolf Laban . Também não tive acesso à historiografia da dança brasileira,

que inclui autores como Jacques Corseuil, Antonio Jose Faro, Suzana Braga, Nicanor

Miranda, Lineu Dias, Helena Katz e Roberto Pereira. O máximo que consegui até agora foi

ler um artigo muito esclarecedor de Marcela Benvegnu, o qual discute a dança

contemporânea.

Evocar Marcela Benvegnu no artigo sobre Sílvia Moura é conveniente, porque a coreógrafa

cearense tem um trabalho alinhado com o que há de mais forte na chamada dança

contemporânea.

Para Marcela Benvegnu a dança contemporânea se caracteriza pela estrutura não-linear, ou

seja, um espetáculo como os desenvolvidos por Sílvia Moura com os alunos do SESC é

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estruturado, é um aglomerado de signos, de significantes e significados, ainda que numa

sintaxe próxima do caos, ou assintática.

Benvegnu ainda aponta a não-narratividade como outra característica da dança produzida

por companhia como o grupo CORPO, a QUASAR companhia de dança, o BALLET CISNE

NEGRO, entre outros. Assim, entenderemos que espetáculos como Vagarezas e Súbitos

Chegares, baseados na obra da artista-plástica gaúcha Elida Tessler e da poetiza mineira

Adélia Prado, não narram, não contam absolutamente nada.

E outra característica típica da dança contemporânea: multiplicidade de significados,

discursos, temáticas, processos e produtos nos leva a contemplar um dos trabalhos de Sílvia

Moura realizado no palco do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, dentro do projeto

Quinta com Dança de formação de platéia. Nele dois planos se sucediam no palco. Um

elenco grande de bailarinos dançava todas as pulsões da grande metrópole e ao fundo um

DATA-SHOW projetava na parede Sílvia Moura entrevistando os freqüentadores da Praça do

Ferreira (que fica no Centro da capital do Ceará). O efeito produzido era o de simultaneísmo

plástico. Muitas vezes o olhar não sabia pra onde se dirigir: se para o elenco de bailarinos

ou se para o DATA-SHOW no fundo do palco. O que revela o simultaneísmo das grandes

metrópoles pós-modernas do capitalismo transnacional, em que os habitantes são quase

devorados pela poluição visual, sonora e pela avalanche de signos vomitada por fragmentos

de outdoors, outbus, faixas de clubes de forró, letreiros, placas de trânsito, cartazes,

pichações políticas e todo um frenetismo sígnico ad nauseam.

Referência ao passado é outra característica levantada por Marcela Benvegnu, que

podemos apontar nesse espetáculo de Sílvia Moura. O espetáculo começa com uma

senhora idosa que entra no auditório do teatro e começa a perguntar à platéia se todos

conhecem a história do cajueiro botador, que tinha na Praça do Ferreira. E logo começa o

DATA-SHOW mostrando Sílvia Moura entrevistando os frequentadores da Praça do Ferreira

sobre o cajueiro botador.

Multiplicidade e interdisciplinaridade das artes seria outra característica da dança

contemporânea presentes aqui.Nesse espetáculo há dança, há teatro, há cinema

documental e referência ao circo mambembe com a maquiagem de Sílvia Moura.

Comecei a conhecer a obra de Sílvia Moura ainda na década de 80, no ano de 1988, quando

ela tinha a companhia EM CRISE e os habitantes do Planeta Terra tinham a ilusão de viver

num suposto mundo Bi-polar, dividido no capitalismo de modelo americano e no

capitalismo de estado do modelo soviétic0-bolchevique, também chamado de Guerra fria.

A Companhia EM CRISE levou os princípios da dança contemporânea até as últimas

consequências.Sílvia Moura e seu elenco de bailarinos montavam os espetáculos nos

lugares mais inóspitos e improváveis: no Sindicato dos Comerciários interrompendo o forró

dos trabalhadores que vinham do comércio na sexta-feira; no Sindicato dos Bancários

dinamitando a tradicional separação espectador-artista; em cima do palanque na Praça José

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de Alencar sob vaias dos papudinhos que queriam ouvir música brega, enfim, qualquer lugar

podia ser territorializado pela dança desterritorializada de Sílvia Moura.

Outra marca da obra de Sílvia Moura é a atuação política.Ela já chegou a montar

espetáculos para conseguir alimentos e material de higiene pessoal para um amigo preso.E

agora sua última campanha é por uma amiga bailarina, que está doente e que ela quer

conseguir um benefício do INSS para a amiga.

Sílvia Moura tem atuado com e para presidiários e presidiárias, o que revela uma

preocupação micro-política no dizer de Felix Guatarri. A micro-política do cotidiano de

grupos marginalizados ou criminalizados. Ou a micro-física do poder na terminologia de

Michel Foucault.

Sílvia Moura também é habilidosa artesã e gosta de reutilizar os refugos jogados a esmo

pela sociedade de consumo, que entulha as praças de Fortaleza e entope os esgotos

provocando as enchentes nas áreas de risco.

A obra de Sílvia Moura é forte, vigorosa, pesada, carregada, densa e escorpiana.Sílvia Moura

não poupa os espectadores de entrarem no auditório e se depararem com um monte de

velas pretas e vermelhas acesas ou com o forte cheiro de pólvora exalando dos corpos dos

bailarinos.A associação com à Quimbanda, com a magia cinza e com a magia negra não é

gratuita, pois Sílvia Moura é uma feiticeira, como todas as mulheres são feiticeiras.

Num dos espetáculos para denunciar o industrialismo e o produtivismo capitalista, que tem

levado à exaustão dos recursos naturais não-renováveis do planeta; Sílvia Moura coletou

um monte de garrafas de vidro de bebida jogadas próximas dos bares e churrascarias da

cidade de Fortaleza.No espetáculo a coreógrafa cearense destrói todas as garrafas e não

poupa a plateia de levar no olho algum estilhaço de vidro quebrado.

Com esta arte visceral, viril, provocadora, criativa e destrutiva, Sílvia Moura tem levado ou

tentado levar as plateias a questionar o uso do espaço urbano, da temporalidade e do

corpo.

PROCURA DA POESIA: UMA ANTI-RECEITA DE FAZER POEMA

Ainda na série Os metapoemas de Drummond, o poema Procura da Poesia é uma das mais desnorteantes receitas para se fazer versos dentro da obra de Carlos Drummond de Andrade. Ao contrário das receitas comuns, que dão orientações de como fazer, o poema em questão começa negando o que pode ser feito.

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"Não faça versos sobre acontecimentos", o poeta diz negando a utilização de fatos notáveis em poesia.

Porém, se o poeta é contra o grandioso, também não é a favor do pequeno:

"As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais, não contam."

Quando afirma:

"Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes", o poeta se mostra

contrário à presença da raiva, do prazer ou do sofrimento em poesia. Desencoraja, entretanto, a racionalização:

" O que pensas (...), isso ainda não é poesia." Refuta o bairrismo: "Não cantes tua cidade, deixa-a em paz". E adverte:

" O canto não é o movimento das máquinas nem / o segredo das casas";

ou seja, o lirismo não é público ou privado, barulhento ou silencioso, como também

"O canto não é a natureza / nem os homens em sociedade". Desse modo, o lirismo não deve ser rural ou urbano.

Enquanto Ferreira Gular em Não há vagas, queixa-se que o preço do feijão, do gás, da luz, do pão, não cabem no poema; Drummond afirma que

"Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, / vossas mazurcas e abusões",

isto é, coisas extravagantes, luxuosas e supérfluas não devem ter espaço numa obra poética.

O poema não deve conter o passado:

"Não recomponhas/ tua sepultada e merencória infância"

nem o presente:

"Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação."

A essa altura, cria-se um impasse para o leitor/poeta que não sabe o que fazer nem como seguir o mestre Drummond, pois, se o poema não pode ser grandioso ou pequeno, público ou privado, barulhento ou silencioso, rural ou urbano, pretérito ou hodierno, o que ele pode ser? O que pode caber nele?

Na quinta estrofe, Drummond começa a desfazer o impasse. Até esta estrofe, o poema estava marcado por negações: "Não faça", "não cantes", "não dramatizes", "não invoques", "não indagues", "não recomponhas", "não osciles". Mas a partir desta estrofe, os verbos

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vêm com afirmações:" penetra", "convive", "aceita-o" indicando finalmente ao leitor/poeta o que deve ser feito.

"Penetra surdamente no reino das palavras / Lá estão os poemas que esperam ser escritos. / Estão paralisados, mas não há desespero, / Há calma e frescura na superfície intacta / Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. / Convive com teus poemas, antes de escrevê-los."

Com o que se parece esse trecho? A associação imediata é com o mundo das idéias de Platão. Em outros termos, os poemas já existem antes de irem para o papel. As palavras estão latentes, hibernadas no dicionário numa formatação denotativa, e só passarão a ter vida (conotação) quando em uso, numa alegre promiscuidade umas com as outras. O que deve fazer o poeta? Nada. Como sugerem os sememas presentes na estrofe:"surdamente", "paralisados", "não há desespero(ansiedade)", "calma", "paciência", o poeta deve deixar que as palavras se arrumem, se liguem nas mais impensáveis associações; ou seja, o que Drummond sugere é o que pode ser chamado de processo passivo de criação. Em outras palavras, o poeta não deve dirigir, conduzir, policiar as palavras, pelo contrário, deve permitir ser conduzido por elas. Cabe ao poeta, portanto, ser o medium entre o mundo das idéias, ou melhor dizendo, a esfera conceitual e o suporte material destas abstrações (a folha de papel).Esse procedimento lembra a escrita automática dos surrealistas. Um verbo sintetizará todo o poema no 46º verso:

"Chega mais perto e contempla as palavras".

"Contemplar": eis a solução proposta desde o zen-budismo. Mas é bom deixar claro que essa proposta não corresponde à totalidade da obra drummondiana. É apenas um dos momentos, pois em O Lutador, outro metapoema do mesmo livro, Drummond propõe justamente o contrário, exibindo sememas como: "luta", "rompe", "fortes", "enlaçar", "sevícia", "zanga", "sangue", "desafias", "combate", "unha", "dente", "tortura".

Em "Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra", o poeta alerta sobre o caráter polissêmico da palavra e apostando no que cada um pode captar de um poema, Drummond contempla o conceito de obra aberta de Umberto Eco. Chega-se a conclusão de que o poema não é propriedade privada do poeta, ao contrário, é propriedade do leitor e só existe na interação com este. E esta interação, por sua vez, é mediada pelo conhecimento

de mundo de quem o lê. Assim, a Odisséia de Homero fechada e empoeirada na estante não tem nenhum valor, serve apenas como alimento de ratos e baratas, é só um texto a mais, só ganha significação quando há um leitor que torne este texto discurso.

O SERTÃO POLIFÔNICO DE EUCLIDES DA CUNHA

Escrita entre 1897 e 1902, ano em que é publicada, a obra Os Sertões surgiu como um desdobramento de artigos feitos sobre a campanha de Canudos pelo autor, encomenda para o Jornal O Estado de São Paulo, quando este foi correspondente de guerra. A obra se

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divide em três partes: “A terra”, “O homem” e “A luta”.

A TERRA

Se o percurso gerativo de sentido é esburacado, na metáfora genial de Pierre Lévy (O que o Virtual), não menos íngreme é a trilha aberta para o leitor por Euclides da Cunha nos

Sertões.

A obra começa difícil e arenosa. O vigor do universo euclidiano nos faz pensar em outro escritor pré-modernista: Augusto dos Anjos. Enquanto o poeta paraibano elegeu a Química e a Biologia como musas, o jornalista carioca vai buscar na Geologia e na Antropologia as fontes inspiradoras. Em “A Terra”, Euclides da Cunha lança o leitor no solo granítico do agreste baiano. O percurso euclidiano é duro e acidentado, em que toneladas de termos técnicos, tal qual os pedregulhos, tornam a leitura cansativa e enfadonha. E os “cladódios” sucedem aos “flamívomos” e aos “heliotrópios”, exigindo leitores atentos e eruditos dicionários. No entanto, o ensaísta cede lugar ao poeta aqui e ali, em meio a metáforas dignas de um José de Alencar, e as descrições, inicialmente maçantes, vão tornando-se a força do volume, como cactos verdes se insinuando no fundo cinza e ocre da caatinga. Aliás, o caráter fortemente pictórico da obra de Euclides foi bastante explorado por autores como

a cearense Maria Inês Sales no seu Cicatrizes submersas dos Sertões: Euclides da Cunha e Descartes Gadelha em correspondência (Ed. Cone Sul).

Em "A Terra”, vários Euclides se revezam: o geólogo, o topógrafo e o meteorologista que tenta descobrir a gênese das secas e prescreve um remédio, revelando toda a sua formação em Ciências Naturais.

O HOMEM

Na parte denominada “O Homem”, outros Euclides se revezam: o etnógrafo, o historiador e o engenheiro enfezado com a arquitetura caótica do arraial de Canudos, a qual ele sentencia como se

“tudo aquilo fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma multidão de loucos”.

Euclides da Cunha constrói o sertanejo entre o seu antipático darwinismo social e a poesia dos seus oxímoros. Daí o sertanejo ser mostrado, simultaneamente, como “sub-raça” e “Hércules – Quasímodo”. E é nessa trajetória que percebe-se que, se a Sociologia superou o determinismo evolucionista das primeiras páginas, a Literatura o redimiu.

A tese defendida pelo jornalista é clara e horrorosa: o sertanejo sofre não só pelo ambiente atroz, mas pela mestiçagem de raças que lhe dá um caráter raquítico e tendências cretinas.

O militar argumenta sobre o desnível entre o Norte e o Sul. O clima ameno do Sul e o sangue indo-europeu fizeram o gaúcho: um homem forte e inteligente. A mestiçagem e a aridez do Norte deram no jagunço: um imbecil apático. O renomado sulista, no seu ufanismo, esquece, inclusive, de fenômenos destrutivos como as geadas que arruinam a agricultura dos climas temperados.

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O etnógrafo reveza-se com o historiador e vemos nessa parte, a gênese do habitante da costa brasileira (um misto de ladrões portugueses com nativas tapuias), a origem do jagunço, do feudalismo peculiar da região, da religiosidade sertaneja (mescla de catolicismo medieval com crenças afro-ameríndias) até chegar no perfil de Antônio Conselheiro e de seu Arraial.

Segundo Walnice Nogueira Galvão, Euclides da Cunha revela diversos problemas polifônicos. O Euclides da Cunha abolicionista e republicano, crente ferrenho do progresso, entendido este como uma mistura legítima de luzes com técnica, tem que conciliar o jornalista porta-voz dos oprimidos com o estrategista militar. E é nesse tensionamento de vozes que reside a beleza da obra. A seu ver, Antônio Conselheiro era simultaneamente um grande homem, enquanto líder, porém um degenerado, enquanto encarnação das piores características dos mestiços. Como resolver tal dilema ao nível do discurso? Recorrendo a figura da antítese, em que dois opostos são violentamente aproximados, ou sua forma mais extremada, o oxímoro. Isto é, resolvendo o problema não ao nível do raciocínio, mas ao nível da Literatura. Desse modo, Antônio Conselheiro, diz o autor, era tão extraordinário que cabia igualmente na História como no hospício. À medida que a obra vai sendo escrita, Euclides relativiza sua crítica e os juízos preconceituosos vão sendo abandonados. Canudos, progressivamente, torna-se o símbolo de uma raça forte, de lutadores incansáveis.

Os Sertões deve ser lido como uma obra dinâmica, dialética, em que conceitos são rapidamente superados e a escrita se faz maior do que o estreito projeto determinista que marca o livro. Caso a obra se esgotasse em acusações preconceituosas teria, seguramente, desaparecido, como tantos livros escritos no contexto sobre o tema e calcados pelo mesmo arsenal teórico positivista e evolucionista. Se ficasse restrito a visão segundo a qual a luta das raças é a força motora da história, o Conselheiro, um louco e Canudos, um homizio de bandidos, o livro estaria relegado ao esquecimento.

Nas últimas páginas da obra, Euclides afirma que o sertanejo é a “rocha viva da nacionalidade” e que a dinâmica do genocídio promovida contra Canudos fora expressão do movimento anticivilizatório revelador de crimes que as nações são capazes de praticar contra si mesmas. Assim, Euclides atravessou o longo caminho que vai da superficialidade do esquema, para a grandeza nascida de uma sensibilidade que capta a extensão e a profundidade dos acontecimentos passados às margens do rio Vaza-Barris.

A LUTA

A última parte mostra as várias expedições do Exército contra Canudos e a conseqüente resistência sertaneja. O texto ganha intensidade dramática e se torna uma sucessão de eventos nos quais se misturam a coragem, a violência e a barbárie da guerra, desse modo, a escrita euclidiana assume ares épicos.

Euclides centra sua munição discursiva na quarta expedição, comandada por Artur Oscar. Faz um balanço dos erros táticos cometidos pelos oficiais do exército: problemas de abastecimento, falta de mobilidade e adaptabilidade às condições do terreno, utilização de formas clássicas e convencionais de guerra contra um inimigo que agia segundo estratégias guerrilheiras. É o Euclides estrategista militar falando. Quando o texto se dedica a mostrar

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as covardes degolações que os militares praticavam contra os sertanejos, revelando que os civilizados de ontem se tornam os bárbaros de hoje:

“A degolação era, por isso, infinitamente mais prática, dizia-se nuamente. Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Não era a ação severa das leis, era a vingança”...

é o jornalista porta-voz dos oprimidos que fala. Quando descreve a resistência final dos conselheiristas em meio a fome, a doença, a jornada guerreira, Euclides revela que o preconceito inicial se transforma em admiração e respeito.

Ler “Os Sertões” é cruzar por uma obra polifônica, como diz Adilson Citelli, em que vários gêneros dialogam, incluindo-se o jornalismo, a poesia, a narrativa ficcional; múltiplas vozes se confrontam: a da cultura costeira e urbana, das filosofias do século XIX, a dos militares e políticos, a da Igreja. Desse modo, várias áreas do conhecimento cruzam o livro, assim como, diferentes tipos de discurso. Assim, o livro é documento enquanto registro de uma época e monumento pela beleza de sua escrita.

CONTRATOS DE LEITURA

Imagine a seguinte situação: num cinema estão sentados pais e filhos pequenos, assistindo

o filme Harry Potter. A sessão transcorre tranqüila , pais e filhos comendo pipoca e tomando

refrigerantes, olhando para a tela entre risos e suspiros de tensão. Até que de repente,

entra, no meio da trama do filme, um personagem segurando uma R15 e fuzila a cabeça do

aprendiz de bruxo, que explode em dezenas de pedaços sanguinolentos. Pânico entre os

pequenos e indignação dos adultos.

O que há de inusitado nessa situação hipotética? Ou melhor: por que tal situação é hipotética e não real? A situação descrita é hipotética, porque seria improvável pais permitindo que seus filhos assistissem um filme infantil que tivesse uma cena de extrema violência como a descrita. Também seria improvável que os exibidores colocassem uma tarjeta de censura livre no cartaz de um filme que exibisse tal teor de brutalidade, o que em decorrência acabaria direcionando o público para outra produção cinematográfica. E por fim, tal situação é hipotética, porque a autora do livro Harry Potter não permitiria que seu livro infanto-juvenil, recebesse tão deturpada adaptação.

O que faz uma pessoa ao ler um livro, ao ver um filme ou ao assistir uma peça de teatro? O que faz o autor para que seu livro, filme ou peça seja visto por uma determinada faixa de

público e não outra? A resposta para as duas questões passa pelo conceito de ‘contrato de

leitura’.

O PACTO COM O LEITOR

Partindo do conceito ‘plano de leitura’ criado por José Luiz Fiorin no seu livro Elementos de Análise do Discurso, que consiste na idéia de que a isotopia textual oferece um plano de leitura, determina um modo de ler o texto, chegamos ao conceito de contrato de leitura.

Karl Marx nos Grundrisses diz que o artista ao criar um quadro, cria um público seleto para

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olhá-lo. Da mesma forma, um autor ao fazer uma obra seleciona de antemão o leitor que deverá lê-la. E é na medida que o autor tem consciência desse fenômeno, que o sucesso ou fracasso da obra será garantido. Assim, quando escrevo um romance gótico, pretendo que meu leitor sinta medo, pavor. Não pretendo que o leitor dê risadas. Portanto, o gênero e o formato do texto já condicionam o tipo de leitura e, respectivamente, o tipo de leitor. O escritor precisa ter consciência, de que o leitor de romances góticos não quer rir, mas se

apavorar, mexer com suas adrenalinas e ter palpitações. Se ele pegasse em Drácula de Bram Stoker e tivesse um acesso de riso, com certeza ele iria se sentir logrado e pediria seu dinheiro de volta. Quem procura gargalhar vai atrás de Tchekov e Carrol, não de Horace Walpole, Stevenson e Mary Shelley. Entretanto, não estamos pregando uma norma, um padrão estanque, apenas estamos constatando o que se passa com o chamado leitor mediano. Aquele leitor avesso a experimentações e hibridismos.

É sabido que o texto possui quatro elementos: assuntos, objetivo, formato e audiência. Assim uma carta familiar se distingue de uma carta comercial. Do mesmo modo, uma bula de remédio se diferencia de um artigo de opinião do tablóide da banca de revista. Cada texto demanda um tipo específico de leitor e ativa um tipo de leitura diferente. O contrato de leitura é inevitável a qualquer texto. O assunto, o objetivo e o formato estabelecerão a audiência (o destinatário) e a forma pela qual dado texto será lido. O contrato de leitura, portanto, consiste no acordo tácito, no pacto feito entre autor e leitor no processamento do texto. Este contrato, entretanto, não é sempre consciente, pode ocorrer do autor ignorar o tipo de leitor que deseja cativar, como ocorre em autores iniciantes. Contudo, o extremo oposto também pode ocorrer: autores maduros, cientes dos contratos de leitura de suas obras, que acabam se fixando num filão para um dado nicho do mercado editorial. Assim é que ocorre com um Jorge Amado ou com um Ruben Fonseca, que descobriram um filão e se escravizaram a ele, perdendo a criatividade e o sabor originais.

Tudo parecia retilíneo, até o aparecimento do pós-modernismo na década de 50. O texto pós-moderno parece ter um fascínio por fazer e desfazer contratos de leitura na mesma velocidade que mudamos de canal. O Nome da Rosa de Umberto Eco, por exemplo. Escrito como narrativa policial, situado na Itália medieval, contando os crimes, a violência sexual e a destruição de um mosteiro em 1327. É um livro sobre outro livro – a parte perdida da Poética do filósofo Aristóteles, segundo Jair Ferreira dos Santos (“O que é Pós-moderno”). Romance policial? Romance histórico? Ensaio literário? O leitor não sabe responder, suspeita que seja tudo isso ao mesmo tempo e se submete aos diversos efeitos de sentido produzidos por cada gênero textual, inclusos em um único livro. Suspeitamos que transgredindo regras e normas de cada gênero, Umberto Eco acabou criando um novo tipo de leitor. Portanto, se o objetivo é desfazer contratos de leitura, é bom que se saiba que a cada contrato de leitura desfeito, outro será estabelecido no lugar. Dominar o mecanismo, o processo é a garantia do êxito. Ou seja, o texto que é ativado pelo leitor de uma maneira e passa a ser feito de outra, pode ser a razão para que o leitor prossiga ou não com o percurso de leitura. Por isso, se uma leitura é constantemente violentada por quebras de contratos prévios, pode ser que ela não consiga angariar um número suficiente de leitores que estejam dispostos a tais infrações, tornando-se uma leitura hermética. Cabe também discutir aqui, as noções de ‘texto artístico’ e ‘texto de entretenimento’.

O texto artístico é mais aberto a quebra deliberada de contratos, o texto de entretenimento, por sua vez, é mais preso a fórmulas consagradas e a filões editoriais. O texto artístico, por burlar normas, acaba atraindo um público leitor mais selecionado, que

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gosta de experimentações e desvios de percurso. Já o texto de entretenimento é feito sob medida para leitores preguiçosos, não menos exigentes, porém mais interessados na diversão do que na reflexão. Entretanto, em raros casos, uma obra pode pertencer as duas categorias, como no caso de “O Nome da Rosa” e ainda ser um produto de boa qualidade. Os filmes mudos de Chaplin e a obra final dos Beatles também podem ser arrolados como exemplos desta interseção.

Sendo assim, espera-se que no seriado Teletubbies não seja incluída uma cena de sexo explícito, sob a qual correr-se-ia o risco de perder um público (o infantil) e não conseguir outro (o público adulto consumidor de filmes pornôs). Caso o autor queira cometer infrações contratuais com o leitor, é bom que ele tenha absoluta consciência dos efeitos de sentido resultantes.

A LITERATURA FUTURISTA

O objetivo deste ensaio é analisar a literatura proposta pelo Futurismo Italiano através do Manifesto Técnico da Literatura Futurista publicado por F.T.Marinetti em 1912.

Engana-se quem pensa que o Futurismo foi apenas um movimento literário. O Futurismo não só produziu muitos manifestos em várias áreas estéticas (teatro, pintura, cinema, música, arquitetura), como um controvertido manifesto da religião futurista e até um

surpreendente Manifesto do Partido Político Futurista (que desmente a tão falada filiação do movimento ao Fascismo de Mussolini).

A proposta central do Manifesto da Literatura Futurista é a destruição da sintaxe através

da técnica denominada por Marinetti de palavras em liberdade que consiste, entre outras coisas, em “colocar os substantivos conforme eles vão nascendo”. Esta técnica revela a influência da “livre associação de idéias” da Psicanálise freudiana que muito impressionou os modernistas da época, como pode ser vista na “escrita automática” dos surrealistas.

Marinetti propunha a abolição do adjetivo que, segundo, ele é uma nuance inconcebível para a visão dinâmica, por sugerir pausa, meditação e a abolição do advérbio entendida como uma velha fivela que mantém as palavras unidas, conservando, na frase, uma enfadonha seriedade de tom.

O fundador do Futurismo ainda propôs a eliminação da pontuação por sugerir pausas e a substituição por sinais matemáticos e musicais, antecedendo os concretistas na mescla intersemiótica, ou seja, misturando linguagens de áreas distintas, fundindo o verbal e o não-verbal.

O poeta italiano ensina como se deve fazer a técnica das palavras em liberdade, dizendo que o substantivo deve ter seu duplo, ou seja, seguido sem conjugação. Ex.: homem-

torpedeira, mulher-baia. Algo que revela o espírito pragmático e utilitário do time is money, pois a literatura deveria conter, em sua forma e conteúdo, o dinamismo furioso e urgente desse novo tempo. Daí o uso fragmentado e telegráfico da linguagem verbal, tentando imprimir um ritmo mais agitado e violento à leitura, como espelho da realidade frenética do capitalismo urbano e industrial.

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As reações às palavras em liberdade foram das mais variadas, mas quase sempre negativas, como a do modernista Mário de Andrade que sentenciou a técnica como

“um meio passageiro de expressão, sendo os trechos de palavras em liberdade intoleráveis de hermetismo, de falsidade e monotonia”.

A técnica torna o texto um aglomerado de palavras soltas e desconexas em que se quebra violentamente com a linearidade da língua, rompendo com o período canônico: sujeito, verbo e complemento. A ousadia não para por aí. Com a colocação de signos não-lingüísticos, recortes de jornal, etc., o texto futurista configura uma das características mais perturbadoras da arte moderna: o hibridismo, ou seja, a ausência de fronteiras visíveis entre a literatura e as artes-plásticas.

Dadas as características, seria difícil classificar o texto futurista na divisão tradicional em prosa ou poesia. Não é poesia, porque rompe com o verso, seja metrificado ou livre e não é prosa porque não forma frases, períodos, parágrafos.

Nessa altura cabe perguntar qual a contribuição do futurismo para a literatura e para as artes do séc. XX ? A contribuição maior do Futurismo foi ter deflagrado o modernismo. Sendo o moderno uma ruptura com a tradição, com o estabelecido, com o cânon; o Futurismo abriu novas perspectivas e novos modos de se pensar, ver e fazer o mundo. Por ser um dos primeiros movimentos de vanguarda, a proposta italiana teve todos os defeitos dos pioneiros: provocação, sectarismo, violência, gratuidades formais (o poema piada, a anedota) e outras frivolidades. Apesar disso, seria difícil imaginar o humor caótico dos dadaístas e a reconstrução onírica da realidade pelos surrealistas ou a ruptura dos limites entre arte e vida dos situacionistas franceses da decada de 60, sem o histrionismo dos seguidores de Marinetti. O Futurismo, ao romper com a lógica tradicional, vai delegar a autores como Fernando Pessoa os momentos mais ricos da poesia ocidental.

Não cabe juízo de valor em relação à qualidade das produções futuristas, mas reconhecer que, a partir delas, o homem ocidental começou a se libertar dos grilhões cartesianos-newtonianos da ciência e da racionalidade burguesa, tornando o existir mais complexo e profundo.

O CHOQUE CULTURAL EM O MANDARIM DE EÇA DE QUEIRÓS

O objetivo deste trabalho é analisar a gênese do choque cultural, presente na novela O Mandarim do escritor português Eça de Queirós, o qual, ainda que contaminado pelo socialismo anarquista, não consegue esconder seu espanto e pesar pelo funcionamento da sociedade chinesa do século passado, tempo em que se desenrola a trama da novela citada. Com olhos eurocêntricos, Eça de Queirós constrói uma personagem em 1ª pessoa, Teodoro, funcionário público da classe média e de vida medíocre, provavelmente seu alter ego, a princípio fascinado pelo exotismo e depois horrorizado no contato com a cultura chinesa.

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O que está em questão na obra citada é o choque entre a Europa capitalista, republicana(ou monarquista constitucional, na pior das hipóteses) e industrial de Teodoro/Eça de Queirós e a Ásia medieval, imperial e agrária da civilização chinesa, assim como o choque entre o positivismo cientificista e ateu da cultura européia do século passado e a religiosidade supersticiosa e milenarista chinesa. Em termos marxistas: o confronto entre o moderno representado pelo capitalismo e o arcaico representado pelo feudalismo chinês. Enfim, o confronto entre a metrópole/Portugal e a colônia/China.

Não podemos esperar de Eça de Queirós uma visão mais relativizadora da estruturação da sociedade chinesa, pois ainda se vivia no positivismo comtiano-durkeimiano e no evolucionismo darwinista, teorias em moda na época, as quais colocavam a ciência e a lógica tradicionais, sob o ponto de vista do paradigma cartesiano-newtoniano, como norma de conduta para governos e sociedades; ou seja, o que estivesse fora do padrão lógico e científico ocidental seria considerado atrasado, bárbaro e selvagem. A Antropologia da época, produto do colonialismo europeu, estava mais interessada em estudar os povos colonizados para dominá-los e submetê-los ao poderio das metrópoles, posto que era financiada por elas, do que para compreendê-los em suas estruturas. A Antropologia do século passado, feita quase que inteiramente dentro de Bibliotecas e longe do seu objeto de estudo (os povos colonizados), como se vê na escola de Sir James Frazer, ainda não

conhecia a pesquisa de campo de escolas posteriores, como o Estruturalismo de Lévi-

Strauss e o Funcionalismo de Malinowsky. Entretanto, cabe a nós darmos visibilidade ao ponto de vista metropolitano e colonizador de Eça de Queirós, quando no texto o autor se refere aos chineses como “bárbaros”.

Não é propósito nosso dizer que a sociedade chinesa é melhor ou pior que a sociedade lusitana; isso deixamos para os que gostam de juízo de valor, interessa-nos vê-la sob uma visão funcional, estrutural e relativizante.

Por mais que a burocracia e o sistema de castas chineses representados pelos mandarins nos pareçam injustos e autoritários aos nossos olhos ocidentais de hoje, e mais ainda, aos olhos do Eça de Queirós do século passado, não podemos esquecer que essas estruturas atendiam as demandas específicas daquela sociedade. Do mesmo modo se deu com a nossa legislação, produto do Direito Romano, que atende as nossas demandas, mesmo com limitações. Tanto num como noutro modelo, oriental ou ocidental, haverá sempre deficiências, posto que o homem, seja europeu ou chinês, é um ser imperfeito e mutável, o qual mais cedo ou mais tarde sente necessidades de modificações, à medida que esses modelos não dão conta de certas demandas e necessidades que surgem. E talvez, a revolução chinesa de Mao-Tse-Tung, no século seguinte, tenha sido um sinal inequívoco da necessidade de mudanças, mesmo numa sociedade estática e de valores arraigados como a chinesa.

Cada organização social ou civilização se constitui de uma forma paarticular e específica. O modo de produção material ou intelectual de uma dada sociedade pode ser eficiente e funcional para ela e um desastre para outra. Dessa forma, enquanto na China imperial cada província tinha um mandarim escolhido pelo imperador e que passava seu título para o descendente, na Europa os governadores eram escolhidos pela população mediante o sufrágio e a sucessão deixa de ser necessariamente hereditária.

É revelador saber que a palavra mandarim não é chinesa. Segundo Eça de Queirós, é

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portuguesa, vem do verbo mandar e através dela vemos o nível de interferência lusitana na cultura chinesa. Será que o caos visto por Teodoro não está diretamente relacionado com a interferência lusitana? Ou seja, não terá sido a partir da relação promíscua entre os colonizadores portugueses e a corte imperial chinesa que surgem as injustiças, o despotismo, a degradação política e econômica da China milenar? Talvez seja nesse choque de culturas, de formas de governo, de troca de interesses que a rica China - que inventou o papel, a fundição do ferro, a pólvora, a bússola, a porcelana, a cerâmica, a seda (e a industrializou), invenções e descobertas que tanto beneficiaram os colonizadores europeus, tenha se atolado na miséria e fome da maioria da população que assalta a caravana do protagonista num vilarejo afastado, fazendo com que a China não consiga mais prover de bens essenciais seus habitantes.

Eça de Queirós, como cônsul da Corte portuguesa, não consegue dar-se conta das consequências terríveis desse intercâmbio entre Portugal e China ou da responsabilidade da Corte lusitana na degradação do império chinês. Por outro lado, seria ingênuo supor um mundo após a expansão econômica provocada pelo ciclo de navegações do Renascimento, onde as civilizações pré-colombianas, africanas e asiáticas permanecessem intactas e puras, mesmo depois do contato traumático com o invasor europeu caucasiano. Podemos supor que o que realmente chocou Eça de Queirós na China do século passado, não foi o que ali havia de Chinês, mas o que lá estava pior de Portugal: a criminosa intermediação lusitana nos destinos políticos e econômicos da terra de Confúcio.

MOBILIDADE E IDENTIDADE EM O CORTIÇO

O romance O Cortiço é o livro mais representativo da obra de Aluísio de Azevedo e do realismo-naturalismo brasileiro. Quem deseja entender a identidade nacional, o Brasil atual, não pode passar sem a leitura desta obra.

Diz-se que o Naturalismo só lida com personagens planos, isto é, sem sujeitos, agentes , somente objetos, pacientes. Aluísio de Azevedo, embora seja um naturalista confesso ( a zoomorfização de personagens, o determinismo ambiental, o cientificismo das causas e efeitos não deixam mentir), constrói personagens redondos que apresentam uma mobilidade moral e/ou socio-econômica. Desse modo, João Romão, o dono do cortiço, começa como simples empregado de um vendeiro e termina como proprietário burguês; em compensação para ascender socialmente ele se escora no trabalho da sua amante Bertoleza, a escrava fugida. Até Bertoleza, ingênua, submissa, dedicada, trabalhadora e analfabeta (fato pelo qual João Romão se beneficia) se torna desconfiada e amarga quando descobre que João Romão pretende enxotá-la (depois de velha, fedorenta) para se casar com uma moça rica. O autor se utiliza de um expediente interessante: para dar brilho a uma personagem, outra terá que ser ofuscada.

Outras personagens apresentam mobilidade, contrariando os preceitos naturalistas. O português Jerônimo, trabalhador bovino (forte e manso), sério, austero, nostálgico e melancólico (gosta de tocar fados) será um vagabundo extrovertido (amante do ritmo quente do lundu) ao se amigar com a fogosa mulata Rita Baiana. Por sua vez, a sua esposa Piedade, séria e trabalhadeira, tornar-se-a alcoólatra, frívola e amante das farras após a separação. Pombinha, a menina-anjo, a queridinha escolarizada do cortiço ( que escreve

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cartas para os analfabetos) será uma habilidosa prostituta de luxo.

Diz-se, etnocentricamente, que os europeus são os civilizados e os habitantes dos trópicos, seres bestiais. No entanto, o retrato que Aluísio de Azevedo faz do estrangeiro não é nada generoso. Piedade, a portuguesa mulher do também português Jerônimo, é trocada pela asseada mulata Rita Baiana, por não estar habituada aos banhos diários (por causa do enorme calor do Brasil) e viver, como diz o marido, com um cheiro azedo e mofado.

O comerciante português João Romão, além de explorar a amante Bertoleza, deixa de pagar todas as vezes que pode, nunca deixando de receber, enganando os fregueses, desdobrando cachaça com água, roubando nos pesos e nas medidas, o que garante o seu enriquecimento ilícito. O autor não poupa também os italianos – um tipo de imigrante que dará muitas dores de cabeça aos fazendeiros brasileiros acostumados com a mao de obra negra e escrava – conhecidos no cortiço pelas cascas de melancia e laranjas entulhados na frente de seus cômodos. Revelando, surpreendentemente, que são os brasileiros os cultores da higiene.

O Cortiço é, entre o Ana em Veneza de João Silvério Trevisan e o ensaio O Povo Brasileiro de Darci Ribeiro, um guia para entender a singularidade da brasilidade.

O METAPOEMA EM DRUMMOND

A obra poética de Carlos Drummond de Andrade é um verdadeiro manancial onde se pode

abordar o social, a memória, o sensual, a infância, o patriarcalismo mineiro, a submissão

feminina...Neste ensaio, resumo de um trabalho maior, o tema escolhido foi a

metatextualidade, ou melhor dizendo: o metapoema em Drummond.

A metatextualidade, genericamente chamada de metalinguagem, é a mensagem centrada no código (definição de Samira Chalub no seu Funções da Linguagem). Desse modo, seguindo o raciocínio de Chalub, o metapoema é um poema que fala do ato criativo, da dificuldade de seu material – a palavra -, do conflito pedregoso diante da folha branca como “uma pedra no meio do caminho”, da palavra que é de uso de todos e que, no poema, necessita ser singular e exata para bem dizer-se.

Drummond revela uma forte preocupação metatextual em sua poesia, embora sem se igualar nisso, quantitativamente, a um João Cabral de Melo Neto.

Em “Mãos Dadas”, Drummond diz: “Não serei o poeta de um mundo caduco/ também não contarei o mundo futuro.”.

Isto é, o poeta não é arcaísta nem invencionista. E prossegue: “Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem da janela/ Não distribuirei

entorpecentes ou cartas de suicidas.”.

O poeta afirma que não há espaço para o lirismo contemplativo, o escapismo romântico ou o pessimismo decadentista em sua poesia.

Em “O lutador”, o poeta é mais explícito:

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“Lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos/ mal rompe a manhã./ São muitas, eu pouco./ Algumas, tão fortes/ como um javali.”.

Mostrando que o trabalho poético é uma verdadeira e suada luta corpo-a-corpo com as palavras, noite a dentro, insone; e que as palavras são tão indomáveis e autônomas como animais selvagens. Aqui, Drummond contempla aquela famosa frase que diz que o processo criativo é 10% inspiração e 90% transpiração.

Já em “Canção Amiga”, o poeta surpreende ao dizer:

“Eu preparo uma canção/ em que minha mãe se reconheça/ todas as mães se reconheçam”;

parece uma contradição para quem disse que não é o poeta de um mundo caduco ou que diz suspiros ao anoitecer, mas o poeta desfaz o problema:

“Aprendi novas palavras/ e tornei outras mais belas”

e conclui com um propósito nada modesto:

“Eu preparo uma canção/ que faça acordar os homens/ e adormecer as crianças”.

No “Poema-Orelha”, adverte aos leitores:

“Não me leias se buscas/ flamante novidade/ ou sopro de Camões”.

De uma certa forma, contempla o que disse em “Mãos dadas”, sobre o fato de não ser e nem oferecer o “antigo” ou o “moderno”; e continua:

“Aquilo que revelo/ e o mais que segue oculto/ em vítreos alçapões/ são notícias humanas”.

O que dizer do genial paradoxo: “vítreos alçapões”? Pois como um alçapão pode ter a transparência do vidro?

Conclui-se que a verdadeira filiação de Drummond é com as coisas menores, sem extravagância ou pompa, com o cotidiano ou como ele diz em “Mãos Dadas” com “o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.”.

LUZIA-HOMEM: ABORDAGEM DE GÊNERO

O conceito gênero tornou-se muito discutido depois da 2ª Guerra Mundial – quando as mulheres, na ausência de seus maridos e pais, tiveram de entrar maciçamente no mercado de trabalho- e depois da Revolução Sexual dos anos 60 – impulsionada pela invenção da pílula anticoncepcional. O gênero aponta para a questão dos papéis sexuais que variam de uma cultura para outra (espacialmente) e de uma época para outra (temporalmente).

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Em Luzia-homem de Domingos Olímpio, a trama se desenvolve no Ceará feudal, agrário e oligárquico do século passado, lidando com latifundiários, seca, fome, retirantes, abuso de autoridade (por parte de policiais) e até a presença das frentes de serviço ( comprovando a atualidade da obra).

Apesar dos preconceitos e da divisão rígida dos papéis sexuais da época, a necessidade faz com que o pai de Luzia a eduque como homem, i.é., entregando-lhe responsabilidades masculinas devido à ausência de filhos varões para cuidar da fazenda e do gado. Quando a fazenda se desfaz pela seca, o pai morre. Luzia se aventura pelo mundo, levando consigo sua mãe doente. Ela não se poupa de fazer atividades tidas como masculinas: trabalha na construção civil da frente de serviço (única fonte de renda possível devido à improdutividade agrícola com a seca) tentando garantir o seu sustento e o da mãe, numa atitude muito corajosa e audaciosa para a tônica patriarcalista da época.

O que Luzia provoca nos homens e mulheres para ter ganho o apelido pejorativo de “luzia-homem”? Nos homens: provoca desejo por ser uma mulher muito bonita e de belos cabelos longos ( como o autor gosta de salientar), mas também frustração, despeito, já que ela nunca cede aos assédios sexuais destes, principalmente aos do soldado Crapiúna ( o arquétipo do abuso de autoridade). Nas mulheres: provoca inveja, comentários maliciosos e intrigas, pois ela, sempre preocupada com a sobrevivência, não interrompe suas atividades para fuxicos, fofocas e as frivolidades típicas das mulheres de pequenos povoados. Além disso, Luzia procura sempre se isolar das mulheres do vilarejo, nas horas vagas, dando margem para que as mulheres interpretem tal atitude como pedante.

Luzia é uma fonte de assombros para os homens e mulheres ao mexer com as noções cristalizadas do que é masculino e feminino. Como uma mulher que carrega dois potes de barro, uma parede de tijolos na cabeça, salva e carrega nos braços um homem quase esmagado por um boi bravo, entre outros, quer ter o direito de amar um homem e ser sua esposa? Quem é essa que ousa sustentar-se, ter autonomia sem precisar de um homem? Eis o tensionamento da obra.

A protagonista depois de adoecer é orientada pelo administrador da frente de serviço a trabalhar com as costureiras. Luzia detesta a idéia mas é obrigada a aceitá-la, pois está visivelmente debilitada.

No ambiente das costureiras, o autor mais uma vez testará as noções pré – estabelecidas de gênero. A chefe, uma beata muito exigente, rosna para Luzia: “- Você parece que nunca viu costura, tamanha mulher, e não sabe por onde há de começar um par de ceroulas de homem”. Ou seja, para a professora uma mulher se reconhece no esmero e delicadeza das costuras que faz. Comparando os dois ambientes: o masculino (a frente de serviço) onde a solidariedade dos homens para com Luzia é maior e o feminino( o ateliê de costura) onde reina a maledicência e intolerância , pode-se concluir que as mulheres são mais machistas do que os homens. Com o tempo, mostrando o determinismo ambiental do realismo-naturalismo do autor, Luzia se adapta a nova realidade e acaba virando professora das meninas costureiras.

Cabe discutir o problema de gênero colocado pela doença da mãe de Luzia. D.Zefinha sofre de asma e insiste em não tomar o remédio de botica (farmácia) prescrito pelo médico;

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prefere o lambedor indicado por uma rezadeira, D.Seridó, feito de componentes grotescos (um pinto vivo pisado no pilão), rezas e superstições. Nesta preferencia, flagra-se o choque entre o feudalismo da medicina popular, feminina e o capitalismo da medicina convencional, masculina. Alexandre menciona perante a intransigência da velha que o saber

verdadeiro está com o médico. Tendo como referência o livro O que é feminismo (Col. Primeiros Passos), deduz-se que essa discórdia entre o saber intuitivo da rezadeira e o saber acadêmico do médico vem de longe – não se pode esquecer que a escolaridade era um privilégio dos homens, principalmente no Nordeste daquele tempo. Na Idade Média não foi só o clero católico, com medo de perder fiéis, que jogou videntes e rezadeiras, tidas como bruxas, na fogueira. A própria medicina convencional e masculina também cooperou com a Inquisição através de delações, pois queria eliminar a concorrência.

Luzia e Terezinha, que exibem comportamentos supostamente inadequados, são bem tratadas, quando vão denunciar os abusos de autoridade e assédio sexual do soldado Crapiúna, por promotores e delegados e estes tomam as devidas providências ( a transferência de posto). A pergunta é: isso é verossímil? Se ainda hoje o movimento feminista alega que mulheres se queixam dos constrangimentos em delegacias comuns composta por homens, ao ponto de terem sido criadas as delegacias das mulheres nos anos 80 para atender a demanda.

PROVÉRBIOS DO INFERNO : A PERVERSÃO EM WILLIAM BLAKE

O poeta e artista-plástico inglês William Blake (séc.XVIII) ao criar o perturbador poema Provérbios do Inferno, perverte toda a noção moralizante usual dos provérbios cristãos e projeta sua obra além do seu tempo, vindo a influenciar simbolistas e surrealistas que admiravam a ligação inusitada entre erotismo e misticismo do seus versos.

Incompreendido no seu tempo, visto como excêntrico, visionário e louco (o que acabou se tornando, tendo várias internações), William Blake tinha uma visão muito particular da libido, segundo ele os prazeres sexuais era santos e através deles se atingia uma nova pureza e inocência. Essa forma de pensar, unindo o sensual e o espiritual, é muito próxima do Tantrismo hindu ? um tipo de Yoga que professa a conexão com Deus através da energia sexual (a kundalini). Não sabemos se o poeta teve acesso a esse tipo de informação, o que sabemos é que sua visão foi chocante para a Inglaterra puritanista e pré-vitoriana da sua época, ocasionando uma série de aborrecimentos e perseguições.

O inferno exercia um enorme fascínio sobre o poeta, tanto que os seus últimos livros foram escritos imitando o estilo bíblico, constituindo uma espécie de bíblia negra que ele

denominou Bible of Hell . O seu interesse pela temática o levaria a ilustrar a Divina Comédia de Dante.

Dada essa rápida introdução, cabe agora analisar alguns versos do poema que intitula esse artigo. O poeta começa imperativo:

“Conduz o teu carro e teu arado por sobre os ossos dos / mortos.”

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Incitando o leitor a esquecer os mortos, o passado, a tradição, as raízes e seguir confiante em busca de seus objetivos. Algo que, não acidentalmente, contempla o que supostamente Cristo teria dito caso tivesse existido: “Deixai aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos? ou ?abandona pai, mãe, filhos e segui-me.”

Com “A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria” e “A prudência é uma solteirona rica e feia / cortejada pela impotência”,

o poeta condena toda forma de bom-senso. Em

“Quem deseja mas não age gera pestilência”,

antecipa o que Freud diria, dois séculos depois, sobre a natureza das doenças psicossomáticas.

Professa o narcisismo e a auto-estima: “Aquele cujo rosto não se ilumina, jamais há de / ser uma estrela”

Enquanto o Cristianismo condena a vaidade. Reprova a introspecção e a ociosidade: “A abelha atarefada não tem tempo para tristeza.”

Portanto, “os alimentos sadios não são apanhados com / armadilhas ou redes.”

Ridiculariza os fantasmas: “Um cadáver não vinga as injúrias.”

“Os tigres da ira são melhores que os cavalos / da educação.”

Blake era fascinado pelo Tigre, segundo ele, por ser o símbolo da tirania divina a qual o homem se submete; enquanto, o Cordeiro é o símbolo da bondade patriarcal de Deus. Aqui, um paradoxo que só a linguagem poética justifica, pois como um Deus pode ser tirano e bondoso ao mesmo tempo?

Em “As prisões se constróem com as pedras da lei / Os bordéis com os tijolos da religião”,

o poeta ataca a ambigüidade do clero e da justiça.

Refuta a o sentimento de culpa:

“A raposa condena a armadilha, não a si própria.”

Algo misógino ou machista em

“Que o homem use a pele do leão, a mulher / a lã da ovelha.”

Prescreve a autenticidade:

“Dize sempre o que pensa e o homem torpe / te evitará.”

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E condena a humildade : “A águia nunca perdeu tanto tempo / como quando resolveu aprender com a gralha.”

Propõe o dinamismo : “Da água estagnada espera veneno”

e conclui de forma cruel :

“A raposa provê para si, mas Deus provê para o leão”

mostrando que Deus tem preferência pelos fortes , subvertendo a velha crença de Deus preferir os fracos e humildes de coração que se deduz das contraditorias passagens do Antigo Testamento.

O vigor estilístico blakeano inspirou Nietszche (no seu ódio ao cordeiro, o rebanho humano), Baudelaire (no seu decadentismo satanista), o futurista Marinetti (no seu violento anti-clericalismo e no tom provocativo de suas composições), em Strindberg, o poema em

questão ganhou uma versão musicada pela banda de rock brasileira As Mercenárias na

década de 80. Não sabemos dizer se misticos midiáticos como Aleister Crowley do Livro da Lei e Anton Szandor LaVey da Biblia Satanica tiveram acesso a obra do poeta ingles, mas que o thelemismo e o luciferianismo parecem inspirados nessa trilha aberta por William Blake, isso sem dúvida.

PAÚLISMO, HOMOEROTISMO E METATEXTUALIDADE EM SÁ-CARNEIRO:

UM OLHAR SOBRE A CONFISSÃO DE LÚCIO

Há muita semelhança entre a estrofe de Escavação:

" Numa ânsia de ter alguma coisa, / Divago por mim mesmo a procurar, / Desço-me todo, em vão, sem nada achar, / E minh' alma perdida não repousa", com o excerto do 1º parágrafo do Cap. I de A Confissão de Lúcio:

"Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris, ou melhor, não estudando. Vagabundo da minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha vida e de todos igualmente desistido - sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande capital". Aqui notamos a personalidade vacilante, indecisa, o temperamento frouxo, sem vigor e o espírito dispersivo de Sá-Carneiro, como revelam os sememas de um de seus personagens: "não sei bem como", "achei-me", pois se ele próprio não sabe como foi parar em Paris, quem é que sabe? Um homem incapaz de assumir-se adulto, que vive da mesada do pai e que prefere desperdiçar suas energias físicas e mentais com a boêmia, do que com a faculdade de Direito; ou seja, Sá-Carneiro é um autêntico bon vivant, algo que terá um preço muito caro em sua vida.

Outro momento de A Confissão: "Acho-me tranqüilo - sem desejos, sem esperanças. Não me preocupa o futuro. O

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meu passado, ao revê-lo, surge-me como o passado de um outro. Permaneci, mas já não me sou. E até à morte real, só me resta contemplar as horas e esgueirar-se em minha face...A morte real - apenas um sonho mais denso..." coincide com o que Sá-Carneiro diz no poema Dispersão:

"Perdi-me dentro de mim, / porque eu era labirinto, / E hoje, quando me sinto, / é com saudades de mim." ou

"Não sinto o espaço que encerro / Nem as linhas que projecto: / Se me olho a um espelho, erro - / Não me acho no que projecto" ou

"Desceu-me n' alma o crepúsculo; / Eu fui alguém que passou. / Serei, mas já não me sou; / Não vivo, durmo o crepúsculo",entre outros versos, revelam a despersonalização, a inquietação ontológica e elementos paúlicos como a voluntária confusão do subjetivo e do objetivo pela associação de idéias desconexas e paradoxais; assim como, pelo vocabulário expressivo do tédio, do vazio da alma.

PAÚLISMO

O sentido mais predominante em A Confissão de Lúcio é a visão. O autor se vale de parágrafos imensos para descrever os trajes de suas personagens impregnadas de dandismo (como Gervásio Vilanova) ou para descrever os ambientes festivos de Paris. Em relação à presença do vestiário na diegese, é pertinente dizer que através dele o autor irá creditar não só a classe social e/ou o grau de instrução, mas, principalmente, a suposta preferência sexual da personagem ao nível da estereotipia, v.g.

"Perturbava o seu aspecto físico, macerado e esguio, e seu corpo de linhas quebradas tinha estilizações inquietantes de feminilismo histérico e opiado..." ( grifo nosso em relação a Gervásio Vila-Nova).

O talento de Sá-Carneiro pode ser notado na riqueza de pormenores inusitados quando descreve o traje de um americana amiga de Gervásio:

"Um deslumbramento, o trajo da americana. Envolvia-a uma túnica de um tecido muito singular, impossível de descrever. Era como que uma estreita malha de fios metálicos - mas dos metais mais diversos - a fundirem-se numa cintilação esbraseada, onde todas as cores ora se enclavinhavam ululantes, ora se dimanavam, silvando tumultos astrais de reflexos. Todas as cores enlouqueciam na sua túnica." (grifo nosso pág.30). É de perceber-se a sinestesia do silvando tumultos astrais que nos remete à hiper-sensibilidade alucinada de Rimbaud, um legado simbolista que também se constitui num elemento paúlico.

Também notamos elementos paúlicos no delírio sinestésico: "Inundava-o um perfume denso, arrepiante de êxtases, silvava-o uma brisa

misteriosa, uma brisa cinzenta com laivos amarelos” (Grifo nosso pág.30), ou "essa luz, nós sentíamo-la mais do que víamos (...) Não impressionava a nossa vista,

mas sim o nosso tato" (pág.32), ou "listas úmidas de sons se vaporizavam sutis..." (pág. 33),

mostrando percepções muito próximos das relatadas por pacientes psicóticos ou por usuários de drogas alucinógenas como a mescalina, o LSD e o Ecstasy.

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HOMOEROTISMO

A Confissão de Lúcio pode ser abordada por diversos aspectos, desde o alardeado, mas, voluntariamente velado homoerotismo, até ao caráter metatextual.

Sobre o homoerotismo particular desta obra, percebe-se que ele é permeado por sentimentos de culpa e camadas de estereotipia com fidelidade ao contexto histórico da época. Ao homossexual é vedado o amor, pois ele só poderá amar outro ser do mesmo sexo se travestir-se de mulher. Bem diferente dos gays marombeiros de hoje, um homem não pode amar outro homem enquanto homem, daí a razão dele se desdobrar, alegoricamente, em uma mulher (Marta) e relacionar-se adulteramente com Lúcio - artifício metafórico/ simbólico do autor que acaba comunicando o conflito interior da sua identidade afetiva e sexual através de personagens alter-egos. E Sá-Carneiro tinha com o que se preocupar, pois o homossexualismo era crime na maioria do países europeus de seu tempo. Portanto, seu romance não pode mostrar um relacionamento homossexual transparente, receio do qual o nosso Adolfo Caminha d´ O Bom Crioulo não compartilhou, mas que em compensação lhe rendeu uma série de aborrecimentos. Como esquecer Oscar Wilde, que foi preso e teve bens confiscados por gostar de um rapaz filho de aristocratas? Nem Freud aliviaria a vida dos homossexuais, considerando-os, no mínimo, neuróticos. Mas há uma explicação: todos os clientes homossexuais do pai da psicanálise tinham medo de ser delatados ou presos, comprometendo-se, assim, todo equilíbrio psíquico e emocional.

METATEXTUALIDADE

A narrativa de Sá-Carneiro exibe um aspecto que interessa aos artistas, sobretudo aos escritores, trata-se do metatextual.

No Cap. I, pág.22, Lúcio comenta o modismo do pedante Gervásio, que gosta de uma nova escola literária:

“(...) o Selvagismo, cuja novidade reside na impressão de seus livros sobre diversos papéis e com tintas de várias cores, numa estrambótica disposição tipográfica. Os poetas e prosadores selvagens traduzem suas emoções unicamente em jogo silábico, por onomatopéias rasgadas, bizarras: criando novas palavras que coisa alguma significavam e cuja beleza ou virtude reside justamente em não significar coisa nenhuma. Esta escola era tão inconsistente que só publicou um livro.”O autor pode estar falando do Dadaísmo de Tzara.

Lúcio assim define as escultura de Gervásio Vila-Nova:

"As suas obras eram esculturas sem pé nem cabeça, pois ele só esculpia torsos contorcidos, enclavinhados, monstruosos, onde, porém, de quando em quando, por alguns detalhes, se adivinhava um cinzel admirável." Já esta passagem tanto pode referir-se ao Expressionismo quanto ao Futurismo de Giacomo Balla.

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Falando sobre as reuniões artísticas (espécie de saraus) na casa de Ricardo e Marta, Lúcio comenta, amargo e mordaz, a literatura de um amigo de Raul Vilar :

"triste personagem tarado que hoje escreve novelas torpes desvendando as vidas íntimas dos seus companheiros, no intuito (justifica-se) de apresentar casos de psicologias estranhas e assim fazer uma arte perturbadora, intensa e original; no fundo apenas falsa e obscena."

No Cap.II, pág.39, Gervásio fala para Lúcio -"Creia, meu querido amigo, você faz muito mal em colaborar nessas revistecas lá de

baixo... em se apressar tanto a imprimir os seus volumes. O verdadeiro artista deve guardar quanto mais possível o seu inédito. Veja se eu já expus alguma vez...só compreendo que se publique um livro numa tiragem reduzida; e a 100 francos o exemplar, como fez o ...(e citava o nome do russo chefe dos "selvagens"). Ah! Eu abomino a publicidade!..."Esta passagem flagra a visão glamourizada do artista incompreendido, na torre de marfim, isolado dos demais, compartilhada por vários artistas de seu tempo e satiriza a atitude vanguardista de alguns de seus contemporâneos.

CONSIDERAÇOES FINAIS

A obra de Mario de Sa-Carneiro é uma oportunidade para quem se interessa por gay studies e sua relação com a literatura portuguesa modernista.

KARDECISMO VERSUS MACUMBA: O SURGIMENTO DA UMBANDA E DA QUIMBANDA

Este estudo tem como propósito fazer um levantamento histórico do momento em que a Macumba - culto afro-brasileiro herdeiro da Cabula de origem bantu-angolense - se dividiu em dois cultos antagônicos (Umbanda e Quimbanda) no contato com o Kardecismo.

Este estudo é um diálogo crítico com várias fontes bibliográficas, mas sobretudo com a obra África de Geoffrey Parrinder (Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 1987) e com a tese de doutorado Umbanda - Os "Seres Superiores" e os orixás/santos: um estudo sobre a fenomenologia do sincretismo umbandístico na perspectiva da Teologia Católica de Valdeli Carvalho Costa (São Paulo: Edições Loyola, 1983).

O TERMO MACUMBA

No início do século XX, o culto dos Negros bantu do Rio de Janeiro, ainda não era

conhecido com o nome de Macumba. A primeira referência ao nome só irá aparecer

no ensaio O Negro na Música Brasileira de Luciano Gallet em 1934. Depois disso, a

macumba designará o culto da etnia bantu dos negros residentes no Rio de Janeiro.

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A Macumba, segundo Valdeli Costa, desse período era ritualmente pobre e muito

próxima da estrutura do culto praticado pela etnia Bantu na África. Invocam os

mortos e os antepassados tribais, seres bem ou malfazejos. Acreditam na

transmigração das almas

"o que no Brasil, os aproximará da doutrina Kardecista - no totemismo e nas

práticas mágicas”

O TERMO UMBANDA

O grão-sacerdote da Macumba, na época, denominava-se umbanda, embora

também fosse designado como "pai de terreiro". Ele era o evocador dos "espíritos"

e o dirigente das cerimônias. O termo Umbanda ou Embanda é originário de "Ki-

mbanda", o grão-sacerdote bantu, simultaneamente curandeiro, adivinho e

feiticeiro.

O SURGIMENTO DA UMBANDA

A crescente difusão da Macumba entre a população pobre do Rio de Janeiro (negra

ou branca) se deu pela conjugação da marginalização imposta no reordenamento

urbano ("Belle-èpoque") e pela solução de problemas por parte das entidades

espirituais que a Ciência oficial e a Medicina branca não conseguiam resolver. Neste

ínterim a Macumba passa a atrair os homens brancos da classe média com maior

escolaridade, conhecimentos e práticas da doutrina kardecista. Neste momento a

estrutura ritual e doutrinária da Macumba entra em crise. Os neófitos, impregnados

de padrões mentais e valores euro-brasileiros, começaram a questionar a Macumba,

criticando e procurando esvaziá-la de seus traços africanos, de suas práticas rituais,

repugnantes à sensibilidade branca (uso de sangue animal, pólvora, punhais,

cachaça etc.).

Nesta altura cabe investigar: porque os brancos da classe média de intrusos

passaram a galgar a chefia dos terreiros de Macumba. Sabe-se que uma das formas

de poder e opressão é a alegação da escolaridade. Ou seja, em um ambiente de

provável baixa-estima que caracterizava os pobres negros e brancos não-

escolarizados, o ingresso do branco remediado que sabe usar a norma padrão da

Língua Portuguesa, resultará no branqueamento compulsório e autoritário da

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Macumba. Entretanto, à medida que os brancos escolarizados passaram a dominar

e impor seus parâmetros à Macumba suscitou-se forte resistência e oposição da

parte dos Negros fiéis às antigas tradições. O atrito entre o apego aos valores

tradicionais negros e o esforço "civilizador" e "branqueador" produziu uma cisão

interna no culto. Os negros e terreiros fiéis às tradições ancestrais da Macumba

deram origem ao que se passou a ser chamado de Quimbanda pela ala Kardecista da

antiga Macumba. E esta ala Kardecista remanescente passou a se nomear de

Umbanda. Desse modo, como não podemos esquecer a dimensão política da

linguagem, a palavra Quimbanda passou a ser utilizada para detratar a facção

oposta, com o intuito de acentuar o caráter primitivo da adversária, designando-a

com o nome arcaico do sacerdote bantu na África. Dessa forma, os umbandistas,

chefes de terreiro, dão uma conotação fortemente negativa à Quimbanda,

apresentando-a, como votada a fazer o mal, através da magia negra. Assim, a

Umbanda irá justificar sua existência como o combate à suposta ação maléfica

exercida pela Quimbanda, através de seus Exus quimbandeiros.

O FIM DA MACUMBA

O nome Macumba tende a desaparecer, devido à forte conotação depreciativa que

o termo possui. Desde 1968 que Valdeli Costa percebe a aversão dos umbandistas

dos terreiros urbanos a serem chamados de "macumbeiros". Nos subúrbios, o termo

Macumba ainda é usado. Na Cabana Espírita Maria Conga situada no Realengo (Rio

de Janeiro), o ritual ainda reflete o período de coexistência pacífica das duas formas

ritualísticas dentro do mesmo terreiro.

O SIGNIFICADO POLÍTICO DA UMBANDA

A Umbanda, entendida como a ala Kardecista da Macumba, surgiu com o intuito de

uniformizar o ritual e a doutrina afro-brasileira, refreando a tendência inventiva dos

pais de santo em seus terreiros. Ou seja, ela visou à homogeneização dos cultos

tribais brasileiros na perspectiva de poder melhor vigiá-los, controlá-los, servindo

como aliada da classe dominante no processo que os historiadores chamam de

"Bella-èpoque".

A "Belle-èpoque" (final do século XIX e começo do século XX) se caracterizou como

uma disciplinarização urbana que investiu em formas de controle social sobre as

camadas baixas da sociedade (retirantes, moradores do subúrbio, crianças

abandonadas, mendigos, doentes infecciosos) através dos asilos de mendicidade e

de alienados mentais, lazaretos, reformatórios; utilizando-se de profissionais

disciplinadores (médicos sanitaristas, bacharéis, militares e burocratas) com a

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intenção de instituir padrões comportamentais ajustados à disciplina do trabalho

indispensável para a consolidação do capitalismo industrial (GLEUDSON PASSOS

CARDOSO, 2002).

Desse modo, o Kardecismo, produto do Positivismo e do Evolucionismo, serviu como

o braço invisível do Poder. Para a classe dominante não interessava apenas dominar

o corpo dos indivíduos através da coerção policial, ela queria também dominar as

almas, as idéias através da coerção simbólica. O Kardecismo ganhará aprovação

social pelos Estados Totalitários (basta ver o crescimento das casas espíritas na

Ditadura Vargas), enquanto os cultos mais africanizados que representavam uma

ameaça aos valores do capitalismo industrial serão perseguidos e, mais tarde, em

face de sua resistência, cooptados.

Assim pensar a origem da Umbanda, é resgatar um período histórico em que a

classe dominante utilizou todos os recursos imagináveis (violentos e/ou simbólicos)

para fiscalizar e conter uma imensa maioria negra, indígena e mestiça que estava

começando a criar formas de sociabilidade completamente contrárias aos interesses

do grande capital.

ESTRATÉGIAS DE LEGITIMAÇÃO EM LIVROS DE UMBANDA

Este ensaio pretende analisar as estratégias discursivas de legitimação utilizadas por

autores umbandistas.

Utilizamos um corpus composto por cinco livros publicados nas décadas de 40, 50,

60 e 70. Para não congestionar o fluxo informacional do leitor, diremos o nome da

obra no momento em que formos analisar ou flagrar uma dada estratégia.

Este estudo justifica-se pela necessidade que temos de perceber: como certos

critérios de edição, paginação, diagramação e, principalmente, de "prefaciação"

foram utilizadas pelos autores umbandistas. E saber em que medida essa ou aquela

estratégia discursiva flagra, sinaliza ou comunica a alta ou baixa auto-estima do

escritor umbandista - o qual escreve sobre um culto popular visto pejorativamente

por autores "sérios" ou de cultos "mais nobres" em flagrantes processos de

subalternização religiosa.

Para começar nossa investigação iniciamos pela obra de Candido Emanuel Felix A

Cartilha da umbanda - Rio de Janeiro: Editora Eco, 1965. O nome da obra 'cartilha' -

um termo do universo escolar - revela a estratégia que o autor utilizou para

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legitimar sua obra. Ou seja, Candido Emanuel Felix deseja que seu pequeno, mas

substancioso livro (144 páginas) seja tomado pelo leitor culto como um micro-

manual para o adepto de Umbanda. O autor escolheu a metodologia da pergunta e

resposta, não por acaso técnica já consagrada pelo Livro dos Espíritos de Allan

Kardec ou pelo estilo do espírito Ramatis. No final de sua "cartilha" o autor

apresenta uma série de orações aos orixás, mas utilizando de nomes de santos

católicos. Nisto o escritor revela a dependência intelectual com o culto católico, que

muito se percebe até nos altares (congás) da umbanda popular ainda hoje pejada

por imagens de santos católicos.

No livro de Antonio Alves Teixeira (Neto) Umbanda e suas engiras: umbandismo -

Rio de Janeiro: Editora Espiritualista, 1969; vemos a foto do escritor (um mulato de

cabelo penteado e usando paletó); além disso o editor achou importante informar

que o escritor em questão, não só publicou opúsculos e livros de umbanda, mas

também livros sobre tabuada, noções elementares de aritmética e de que o autor é

professor diplomado e membro da Academia de Letras do Vale do Paraíba. Ou seja,

inferimos, pelo que foi enunciado, que se Antonio Alves Teixeira fosse um pedreiro

ou um engraxate o editor não teria publicado a obra.

O livro mostra também fotos dos médiuns em impecáveis trajes formais, paletós,

vestidos e cabelo cortado. Ou seja, quanto mais embranqueado, urbanizado

melhor. Nada de mostrar pessoas "incorporadas" por preto-velhos analfabetos e pés

descalços.

No livro de AB'D' Ruanda Umbanda (catecismo) - 3ª edição. Rio de Janeiro: Aurora,

1954; o próprio subtítulo já evoca o universo discursivo do qual o autor não

conseguiu se libertar: a igreja católica. O autor muito preso aos lexemas católicos

cria a partir deles extravagâncias do tipo: pontos rezados, credo, mandamentos de

umbanda e sacramentos de umbanda.

A obra de Alfredo Alcântara Umbanda em Julgamento (o original não informa os

créditos bibliográficos) é a que revela mais claramente essa insegurança, esse

problema de identidade e de subserviência do escritor umbandista. O livro é

apresentado por um escritor espírita kardecista e dois médicos kardecistas. É

interessante perceber nome de médicos julgando uma obra umbandista, pois se

sabe que por muitos anos a medicina oficial menosprezou o saber da "medicina"

umbandista, considerada como responsável por danos e enlouquecimento de

pacientes.

Para concluir, pensamos que os autores umbandistas - sejam utilizando de

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metodologias escolar-livrescas, vocabulário católico ou usando o aval kardecista -

foram e são vítimas de uma ignorância em relação ao próprio credo que professam.

A umbanda é rica e complexa (basta ler um WW da Mata e Silva ou um Rivas Neto) e

não precisa está pedindo esmolas ou apadrinhamento de ninguém.

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