ENSAIOS SOBRE A ARTE DA PALAVRA

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ENSAIOS SOBREA ARTE DA PALAVRA

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ensaios sobre a arte da palavra

© 2002 by Paulo Cezar Konzen

Edunioeste

Universidade Estadual do Oeste do ParanáRua Universitária, 1619

Jardim Universitário Cascavel - PR

CEP: 85814-110 - Caixa Postal 801Tel.: (45) 220-3000Fax: (45) 225-4590

[email protected]

Coleção Thésis

DiretoresMarcos Antônio Lopes

Pery Francisco A. Shikida

Capa e projeto gráficoMarcos Antônio Lopes

Paulo Cezar Konzen

Revisão técnicaMarcos Antônio Lopes

Preparação de originaisPaulo Cezar Konzen

Apoio editorialLuis Cesar Yanzer Portela

Apoio técnicoAntonio da Silva JúniorDouglas L. S. Ganança

Joaquim Moita dos Santos

Ficha catalográficaMarilene de Fátima Donadel (CRB 9/924)

Imagem da capa(Antrum Platonicum)

Konzen, Paulo CezarK82e Ensaios sobre a arte da palavra / Paulo Cezar Konzen. -- Cascavel : Edunioeste, 2002.

164 p. -- (Coleção Thésis)

ISBN : 85-86571-64-4

1. Teoria Literária 2. Crônica 3. Comicidade 4. Literatura brasileira-Crônica 5. Literatura brasileira-Sátira e humor 6. Cultura pós-moderna I. T.

CDD-20.ed. 801.95 B869.8

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Paulo Cezar Konzen

ENSAIOS SOBREA ARTE DA PALAVRA

EdunioesteCascavel

2002

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Para Nani:presença, paciência e paixão.

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SUMÁRIO

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PREFÁCIO .................................................................................. 11

INTRODUÇÃO............................................................................. 15

I RETRATOS DA CRÔNICA ........................................................... 21

MOMENTOS REPRESENTATIVOS: CRONISTAS BRASILEIROS ......... 26 APONTAMENTOS DIVERSOS ............................................................... 41

II FORMAS E EFEITOS DA COMICIDADE ...................................... 45

ANATOMIA DA COMICIDADE .............................................................. 46 Intertexto cômico: aproximações e deslocamentos ........................... 49 Outras formas de instauração da comicidade ................................... 54 DEGRAUS DO RISO .............................................................................. 59 Carnaval e riso ................................................................................... 60 A seriedade do riso ............................................................................ 64

III SOBRE O PÓS-MODERNISMO................................................... 73

QUESTIONAMENTOS, INICIATIVAS E PERSPECTIVAS ..................... 74 SABORES DAS CULTURAS PÓS-MODERNAS ..................................... 82 Dissabores .......................................................................................... 87 Saberes ............................................................................................... 90

IV CENAS E LEITURAS DE UM MESTRE DA PALAVRA .................... 95

COMENTÁRIOS PANORÂMICOS .......................................................... 97 A APROXIMAÇÃO DO OLHAR: NARRATIVAS EM FOCO .................... 116 “Criaturas” .......................................................................................... 116 “Nova carta de intenções” .................................................................. 122 “Racismo” ............................................................................................ 127 “Apraga” .............................................................................................. 132 “O ator” ............................................................................................... 137 “A verdade” ......................................................................................... 141

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................... 153

REFERÊNCIAS ............................................................................ 157

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AGRADECIMENTOS

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Este livro foi escrito, originalmente, como dissertação de mestrado,defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadualde Londrina. A releitura deu origem a uma série de alterações no trabalho,resultado de pesquisas posteriores ao curso. Além disso, o texto foi lido poralgumas pessoas que contribuíram para diminuir seus equívocos. Esta páginatem, portanto, a finalidade de fazer o registro dos agradecimentos àqueles quecolaboraram para a sua realização.

Inicialmente, gostaria de registrar meus sinceros agradecimentos aoProf. Dr. Luiz Carlos Santos Simon pela indicação de caminhos seguros a seremseguidos no trajeto da pesquisa; ao Prof. Dr. Marcos Antônio Lopes, leitor atentoe perspicaz destes ensaios; à Universidade Estadual do Oeste do Paraná pelaconcessão de licença com vencimentos, passo fundamental para o custeio doprimeiro ano do curso; aos professores do Departamento de Letras Clássicas eVernáculas dessa instituição; à CAPES pela concessão de bolsa de estudos na fasede redação da dissertação; à Universidade Estadual de Londrina; à FundaçãoAraucária pelo auxílio para a publicação desta obra.

Quero ressaltar ainda a atuação sempre prestimosa dos funcionáriosda Biblioteca, tanto da UEL quanto da Unioeste; da Coordenação do Programa deMestrado em Letras, representada nos nomes de Vanderci de Andrade Aguilerae Américo Kato. Um registro especial deve ser feito também à atuação de todosos professores e colegas do Programa de Mestrado em Letras, Área deConcentração em Estudos Literários. Em especial, agradeço à Profa. Dra. AdelaideCésar, à Profa. Dra. Gizêlda do Nascimento e à Profa. Dra. Beatriz Resende, pelaargüições instigantes e pelas valiosas sugestões de aprimoramento do trabalho.

Aos meus pais, Oswaldo e Valéria, pelo amor e dedicação aos seus muitosfilhos de forma reconhecidamente igualitária; aos meus irmãos Henrique, Ana,Maria, Jorge, Janete, João e Marcelo; à Eliane, Cecília, Janete, Cláudio, Marjoriee Stephanie, minha segunda família; e, finalmente, aos amigos — é ocioso dizerque as omissões são pecados a serem perdoados — Alex Larsen, ClaércioSchneider, Claídes Schneider, Evaldo dos Santos, Iara Dahmer, Josias Penna,Jucenei Frandoloso, Luis Portela, Antônio Benatte, Neiva Kern Maccari, RóbiSchmidt e Rovilson Silva.

Obrigado a todos.

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PREFÁCIO

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O que desperta a atenção já no índice desta obra de PauloCezar Konzen é o conjunto de aspectos pouco favorecidos no debateacadêmico brasileiro. Crônica, comicidade, pós-modernismo, LuisFernando Verissimo: de todos estes temas a Academia ou passalonge ou se abstém de verificar as especificidades. Neste momento,o leitor que pular do índice ou desta apresentação para asreferências bibliográficas no mínimo suspeitará de contradições eexageros. Como explicar, por exemplo, a fartura de títulos reunidosna bibliografia? Pode-se adiantar uma das qualidades deste livro:o tino de pesquisador que o autor demonstra ter. De qualquer modo,vale retomar o fio da distância entre os estudos universitários e ospontos explorados neste livro.

A crônica já deu ao Brasil grandes obras e autores. Ninguémousa questionar a excelência de Rubem Braga, que se destacou naliteratura brasileira quase exclusivamente pelo valor de suascrônicas. No entanto, o material sobre o gênero poucas vezes éencontrado fora de artigos isolados em livros e revistas. Maiscomplicado ainda que localizar a produção bibliográfica sobre acrônica é constatar o descompasso entre seu lugar nos currículosde graduação dos cursos de Letras e sua projeção nos livrosdidáticos do ensino fundamental. O resultado na escola tende aser uma abordagem simplória dos textos ⎯ realizada por professorespouco habituados a lidar criticamente com a crônica ⎯ que nãopoderia ser confundida com o ideal de simplicidade expresso nosmesmos.

O cômico parece continuar ocupando um patamar inferiorno que diz respeito à eleição de objetos de estudo. Quandotransferimos nosso olhar da literatura para o cinema, que temobviamente outra história e outros propósitos mais próximos daidéia de entretenimento, podemos detectar alguns sintomas. O

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Globo de Ouro, premiação do cinema norte-americano, estabelececategorias diferenciadas para os trabalhos indicados: melhor drama,melhor comédia, melhor ator de drama, melhor ator de comédia,etc. Outra associação cinematográfica, o Oscar, já não prevêdistinções: destina sistematicamente os prêmios às produções mais“sérias”, reservando o cômico apenas para as piadas infames nacerimônia de apresentação dos filmes e artistas candidatos. Se nocinema o quadro é este, na literatura, então...

Quanto ao pós-modernismo, é preciso fazer ressalvas. Não épossível sustentar que o assunto é ignorado no meio acadêmico.Aliás, pode-se dizer que há mais de duas décadas surgem seguidaspublicações, propiciando uma febre pós-moderna, especialmenteno ambiente universitário norte-americano. E no Brasil? No Brasil,o termo se encontra cercado de estigmas. De um lado, o estigma deter sido cunhado em terra estrangeira, o que, para alguns,inviabilizaria uma apropriação para discutir nossas produçõesculturais ou representaria uma importação equivocada. Do outro,o estigma da vulgarização: o termo aparece na mídia comassiduidade e sem critérios. Seus significados são muito diversos,embora desponte com certa regularidade em meio a comentáriosirônicos e depreciativos.

Luis Fernando Verissimo publica livros há mais de vinte anos,parte deles figurando em listas de mais vendidos. Tal condição nãoé bastante para transformá-lo em objeto de grande atenção nosestudos literários. Alguns fatores contribuem para isso: trata-sede um autor contemporâneo, de quem algumas parcelas dasinstituições universitárias insistem em manter distância; o espaçode atuação de Verissimo também inibe uma aproximação maisconvicta (as gargalhadas que ele nos proporciona em seus artigosde jornais e revistas e em suas adaptações para televisão, parecemvulgarizá-lo, colocando-o à margem do circuito acadêmico). Sinaisdisso podem ser verificados nos congressos de literatura: é muitomais comum ver trabalhos sobre Rubem Fonseca, um escritorcoetâneo e com trajetória semelhante, do que sobre Luis FernandoVerissimo.

Antes que surja nova suspeita ⎯ a de estar sendo traçadoum quadro excessivamente sombrio dos estudos literários ⎯ énecessário reconhecer que há uma movimentação para mudar a

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face da pesquisa literária nas universidades. Tais movimentos,influenciados sobretudo pela efervescência dos Estudos Culturais,incorporam novos objetos e métodos, propondo o acréscimo dediferentes direcionamentos e a revisão do cânone para a área dasLetras.

Este livro de Konzen integra-se a este processo de renovação.Com méritos. Deve-se ressaltar a coragem com que o pesquisadorencara o desafio de se debruçar sobre todos os aspectoscomentados: crônica, comicidade, pós-modernismo. Além disso,elege um autor como Luis Fernando Verissimo, muito lido porémpouco analisado academicamente. Tudo isso com umafundamentação teórica e crítica atualizada e sem resvalar em“impressionismos” e preconceitos. Neste sentido, é importante quese continue lendo Verissimo com toda a graça que sempreencontramos em seus textos. É saudável também que se possaagora, com a presente obra, ler e refletir sobre o autor e suascorrelações com os aspectos analisados. Para isso, não é precisoempilhar mais tijolos nos muros da Academia e sim torná-los maispermeáveis, como faz Konzen, ampliando o acesso para secompreender melhor a contemporaneidade.

Prof. Dr. Luiz Carlos Santos SimonUniversidade Estadual de Londrina

prefácio

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INTRODUÇÃO

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As visões polimorfas obtidas através dos olhos e da alma encontram-se contidasnas linhas uniformes de caracteres minúsculos e maiúsculos, de pontos, devírgulas, de parênteses; páginas inteiras de sinais alinhados, encostados unsaos outros como grãos de areia, representando o espetáculo variegado do mundonuma superfície sempre igual e sempre diversa, como as dunas impelidas pelovento do deserto.

Italo Calvino

O crítico literário Terry Eagleton argumenta que as tentativasde definir a literatura não podem ser realizadas de maneira objetiva,pois qualquer definição está baseada em juízos de valorhistoricamente variáveis, devido ao fato de estarem intimamenteirmanados às ideologias sociais. As ideologias são compreendidaspelo autor como a forma como aquilo que dizemos e no queacreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relaçõesde poder da sociedade em que vivemos. Estas relações, por suavez, são definidas como crenças (profundamente enraizadas e,muitas vezes, inconscientes) e modos de sentir, avaliar, perceber eacreditar que se relacionam de alguma forma com a manutenção ereprodução desta estrutura do poder (Cf. EAGLETON, 1997). Se o autordemonstra as dificuldades em definir o que é literatura, esteproblema não ocorre quando se propõe a definir o que não éliteratura. Terry Eagleton apresenta um inventário minucioso dasdefinições existentes, para, a seguir, questioná-las quanto àpretensão de aceitabilidade. Seus apontamentos classificam comoprecárias as definições que concebem a literatura como produtoda imaginação, emprego de uma linguagem peculiar, discurso não-pragmático, desvio da norma, e escrita altamente valorizada. Entresuas críticas, destacam-se aquelas que se referem ao processo,realizado pelos estruturalistas, de adaptação pura e simples para

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o texto literário das análises realizadas pela área de estudoslingüísticos. Para Eagleton, a literatura, por não possuir essência,não pode ser definida objetivamente e, sendo assim, só pode serconceituada historicamente, a partir dos juízos de valorrelacionados às ideologias sociais. Em outros termos, de acordo como autor, a pergunta “O que é literatura?” — a partir da qual grandeparte dos manuais de teoria literária inicia suas discussões —deve ser substituída por outra: “Quando é literatura?”.

Antonio Candido parece discordar da natureza provisória dadefinição de literatura, pois a apresenta como “transposição doreal para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõeum tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos”(1973: 53). O autor de Literatura e sociedade elenca três elementosinterdependentes para a efetiva caracterização da literatura: 1)vinculação à realidade natural ou social; 2) manipulação técnica;3) atitude de gratuidade (tanto do criador quanto do receptor). Alémde apontar para algumas transformações sofridas pelo texto literárioquando submetido à institucionalização escolar, o autor discuteainda a literatura como forma de satisfação da necessidadeuniversal de fantasia por parte do ser humano, a partir da análiseda função formadora da literatura. Para ele, a literatura “humanizaem sentido profundo (...) ao facultar uma maior inteligibilidade deuma dada realidade social e humana, da qual constituirepresentação” (CANDIDO, 1972: 804). A definição de Antonio Candidoé mais abrangente por apresentar aspectos tanto estruturalistasquanto histórico-sociológicos, fazendo com que o autor conquistemaior permanência em termos de teorização acerca da literatura.

Este parece ser o motivo pelo qual esta definição exerceinfluência sobre as análises de outros estudiosos. Regina Zilberman,por exemplo, compreende a literatura como forma de expressãoque, utilizando-se da linguagem verbal, incorpora a particularidadedessa de construir um mundo coerente e compreensível, logo,racional. Para Zilberman, é a partir da fantasia que o autor elaborasuas imagens interiores para estabelecer a comunicação com oleitor. O texto concilia a racionalidade da linguagem, de que étestemunha sua estrutura gramatical, com a invenção nascida naintimidade de um indivíduo, e pode lidar com a ficção maisexacerbada, sem perder o contato com a realidade, pois precisa

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condicionar a imaginação à ordem sintática da língua (Cf. ZILBERMAN,1991: 18). Esta concepção faz crer que a literatura talvez não ensinenada. Mas seu consumo leva a práticas socializantes. Pode-secogitar numa certa afinidade teórica entre as concepções deAntonio Candido e Regina Zilberman na medida em que ambosabordam a conjugação existente, por meio da manipulação técnica,entre fantasia e realidade, visando a construção de experiênciassocialmente relevantes, diferentemente de autores que definem aleitura proveitosa pelo trabalho de desautomatização da linguagem,na medida em que ocasionaria um efeito de estranhamento no leitor.

Pode-se inferir dessas abordagens o conceito de leiturasubjacente às teorias apresentadas: por ser uma atividade quepropicia uma experiência única com o texto literário, a leitura podeser concebida como instrumento de interação social, na qual autore leitores mantêm um diálogo aberto sobre experiências, tentandoresponder às necessidades de auto-afirmação e identificação dosseres em seu mundo. Como resposta a este diálogo, a literatura é omeio pelo qual o indivíduo encontra subsídios para a leitura domundo, possibilitando a elaboração de imagens subjetivas e oconhecimento do outro na estrutura social, devido àsespecificidades do texto literário: resultado de um movimentocriativo que se serve da linguagem não só para retratar a realidadesocial existente, mas também para acrescentar à realidade históricaalgo inexistente até então.

Nesse sentido, as reflexões reunidas neste livro seapresentam, sobretudo, como espaço analítico que objetiva mostraraspectos da literatura de hoje e de sempre. Compreender a literaturacomo arte da palavra empresta ao termo um vínculo fundamentalcom sua matéria-prima: na era da civilização da imagem, destacaro papel da palavra é de suma importância já que é a partir dela quea literatura procura preservar uma posição privilegiada para aformação cultural de seus leitores.1

Num primeiro momento, é realizada a abordagem de textosligados ao gênero crônica e à comicidade, pois tais textos são, emmuitos casos, desconsiderados pelos estudos literários e sua análisepretende evidenciar a importância que assumem na sociedade.Desse modo, discutir questões relacionadas à crônica é a pretensãodo primeiro ensaio, intitulado Retratos da crônica. Busca-se enfatizar

introdução

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o fato de que apesar de muitos autores escreverem suas crônicaspara serem publicadas em jornais ou revistas, isto não impede suadivulgação em coletâneas, marcando assim a presença expressivado gênero no quadro da literatura brasileira. Devido à suasemelhança com a reportagem, a crônica muitas vezes écontaminada pela fugacidade do evento que narra. Contudo, ospróprios cronistas pretendem fazer valer a natureza literária desua criação quando selecionam certos textos para posteriorpublicação em livro, conferindo-lhes um estatuto de maiorpermanência, pelo menos não inferior à de outras obras de ficção.

Analisar a utilização da comicidade como forma de persuasãodo interlocutor nas narrativas literárias é o objetivo de Formas eefeitos da comicidade. O texto tem por objetivo indicar aquelascaracterísticas que fazem da comicidade um dos elementosfundamentais na configuração temática e formal de determinadasproduções literárias. Procura-se inventariar de que maneira o usoda comicidade como forma de contestação social revela apreocupação da literatura em mostrar como os paradigmas dedeterminadas épocas podem ser questionados pela problematizaçãode estruturas forjadoras de realidades sociais.

Sobre o pós-modernismo é uma exposição de elementosvinculados ao pós-modernismo, concebido como conjunto demanifestações que interferem decisivamente nas atividadesculturais contemporâneas, o que passa a ser demonstrado commaior ênfase nas últimas décadas do século XX. O texto procurainvestigar caminhos percorridos pelo movimento e tal prática visaapontar alguns caracteres presentes na literatura brasileira.

Como lugar de destino, Cenas e leituras de um mestre dapalavra procura realizar uma apreciação crítica da obra produzidapelo escritor Luis Fernando Verissimo. As narrativas do autor sãoapresentadas como exemplo significativo da literatura brasileiracontemporânea. Sua escrita pode ser inserida no conjunto daquelasproduções literárias que visam à problematização e aoaprofundamento crítico de seus leitores, ao contrário de parteconsiderável dos empreendimentos relacionados aos meios decomunicação de massa. Contribui para isto a autoconsciência sobresua herança literária e sobre os limites da linguagem. Apesar disso,o autor busca refazer o vínculo entre seus leitores e o mundo

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exterior à página. Ou seja, mesmo sendo marcadamente auto-reflexivas, as narrativas de Luis Fernando Verissimo inscrevemsituações e formas que visam sinalizar para elementos relevantesde seu contexto histórico, político e social.

Ao eleger temas da atualidade, tais como o pós-modernismoe a obra de um autor contemporâneo, é preciso esclarecer algumasquestões relacionadas à suposta necessidade de distanciamentopor parte do pesquisador com relação ao objeto de estudo, atitudeprescrita para uma análise científica. A imparcialidade é, em muitoscasos, sugerida pelo simples distanciamento “cronológico”, fazendocom que as análises de acontecimentos e manifestaçõesrelativamente recentes sejam alvos de questionamentos.Procurando validar estas análises, é utilizado, como caso exemplar,o trajeto dos estudos sobre a obra machadiana.

A importância que Machado de Assis assumiu na culturaliterária brasileira explica-se pela riqueza expressiva de seus textos.Contudo, é preciso considerar que parte significativa do sucessode sua canonização deve-se à fortuna crítica levada a termo pordiversos estudiosos de sua obra. Em outras palavras, pode-seassinalar que Machado de Assis é famoso tanto pelo que escreveuquanto pelo que escreveram sobre suas obras.

Dentre seus estudiosos, figura o nome de José Veríssimo,crítico literário contemporâneo de Machado de Assis, e, por talmotivo, acusado de realizar leituras limitadas de seus escritos.Assim, sob vários aspectos, o valor de suas análises é consideradobastante discutível. No entanto, seus apontamentos foramimportantes para a elaboração de análises posteriores — tais comoa diferenciação entre fase romântica e fase realista da obramachadiana — e é nisto que reside seu grande trunfo: sua críticaconfigurou-se como uma interpretação preliminar que suscitoupossibilidades de abordagem.

A relevância assumida pelos estudos de José Veríssimo sobreos escritos de Machado de Assis sinaliza, sobretudo, para areconhecida lição de que é fácil ser mestre das obras feitas. O difícilé se aventurar por caminhos não trilhados ou ainda poucoiluminados, revelando que é da incerteza que nasce, em muitoscasos, a obsessão pelos acertos.2

introdução

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Notas

1. A definição da literatura como arte da palavra é de Afrânio Coutinho (Notasde Teoria Literária. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978a).

2. Alguns depoimentos que atestam tais acertos: em 1956, para marcar oquadragésimo aniversário da morte de José Veríssimo, Manuel Bandeira registrao seguinte comentário: “Quarenta anos são passados e estamos constatandoque o seu nome vem crescendo sempre. ‘Só a posteridade teve bastanteisenção para apreciar-lhe bem a probidade’, escreveu a propósito dele mestreOtto Maria Carpeaux na Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira” (1986a:12); confirmando os depoimentos dos “mestres” citados, Lúcia Miguel Pereiradestaca que “embora não infalível, já que humano, o senso crítico de JoséVeríssimo muito raramente o traiu; em regra, ao contrário, constitui para todosos que se ocupam da história literária um guia, um orientador firme e damaior probidade” (apud Montenegro, 1958: 115).

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CAPÍTULO I

RETRATOS DA CRÔNICA

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A crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisase das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivose períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ousingularidade insuspeitadas (...). Na sua despretensão, humaniza; e esta humanizaçãolhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certaprofundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podemfazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição.

Antonio Candido

O presente texto aborda alguns momentos importantes dopercurso da crônica. Este percurso inclui reflexões de críticos eescritores que realizaram a exposição de características relevantesda escrita da crônica. Contudo, antes de entrar nesses temas, énecessário apresentar algumas considerações sobre a noção degênero literário adotada neste trabalho e que servirá de suportepara demonstrar alguns traços importantes em torno dos quais acrônica se consolida.

Em texto considerado como uma das iniciativas dosformalistas russos de incluir em seus estudos alguns aspectosrelacionados ao campo extraliterário — já que foram acusados derestringirem suas análises à imanência das obras — Jurij Tynianov,um dos mais destacados teóricos da escola formalista, discute aconceituação de literatura como processo linear e continuado,embutida na noção clássica de “tradição”, contrapondo à mesma oprincípio dinâmico de evolução literária. Este é caracterizado entãocomo um processo no qual ocorrem rupturas, revoltas de novasescolas e conflitos entre gêneros concorrentes, já que em toda épocaexistem simultaneamente várias escolas literárias: o que ocorre éque uma delas representa o ápice canonizado da literatura.

Diante disso, o autor enfatiza que a canonização de uma formaliterária conduz à automatização, provocando, na camada inferior,a construção de novas formas, as quais conquistam o lugar das

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antigas, adquirindo a dimensão de um fenômeno de massa e, porfim, são elas próprias compelidas de volta à periferia. Assim, para oautor o que marca a natureza artística de uma obra é a sua função(construtiva, literária, verbal), entendida como sistema, quepossibilita correlacionar-se com outros elementos do mesmosistema, e, por conseguinte, com todo o sistema (Cf. TYNIANOV, 1987:130).

A relevância dessas teorizações está no fato de estabeleceremrelações tanto entre as séries fechadas em si mesmas quanto entreas séries de diferentes gêneros, intentando destacar a “interaçãoevolutiva das funções e das formas (...) [pois] nunca se consideramos fenômenos literários fora de suas correlações, tanto estéticasquanto históricas” (TYNIANOV, 1987: 134). O autor toma como exemploos problemas advindos das definições de prosa e poesia: devido àsfunções e formas comuns que integram, só poderiam ser definidasa partir de suas correlações. Assim, “a variabilidade da função deum ou de outro elemento formal, o aparecimento de uma ou deoutra função num elemento formal, a sua associação com umafunção, são problemas importantes da evolução literária” (TYNIANOV,1987: 136).

Apesar de a noção de evolução ser problemática, por implicarem juízos de valor amplamente discutíveis, o estudo do autoradquire relevância devido às considerações importantes acerca dasmudanças ocorridas no desenvolvimento da criação literária.Tynianov empreende, assim, uma abordagem mais ampla doprocesso de surgimento, canonização e decadência dos gêneros,definindo-os como sucessão histórica de sistemas estético-formaisque estabelecem relações tanto internas quanto externas entre asobras literárias.

Contrariando Benedetto Croce, que enxergava nos gênerosapenas um simples nome, Austin Warren e René Wellek classificamos gêneros como: instituições imperativas que exercem pressãosobre o escritor e são por ele também pressionadas e modificadas;princípios de ordem e classificação, segundo os quais a literatura édividida em tipos literários de organização e estrutura; artifíciosestéticos, à disposição do escritor e inteligíveis ao leitor; convençõesestéticas de que a obra participa, modelando-lhes a forma e o caráter(WARREN; WELLEK, 1971: 285-293). Em conclusão, o gênero, segundo os

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autores, “deve ser concebido como um agrupamento de obrasliterárias, baseado teoricamente tanto sobre a forma exterior(métrica ou estrutura específica), quanto sobre a forma interna(atitude, tom, propósito)” (WARREN; WELLEK, 1971: 294).

A partir dessas considerações, a noção de gênero pode sercompreendida como complexo de símbolos que fornece direçõespara encontrar uma imagem das estruturas narrativas registradasna tradição literária. Este complexo procura orientar os passos naconstrução e/ou na leitura das obras literárias: o que ele faz éinformar, tanto aos autores como aos leitores, alguns traçoscaracterísticos que assumem o papel de familiarizá-los, ou seja,fornecer parâmetros para a compreensão das estruturas narrativascontidas nos artefatos literários.

Essas características não implicam necessariamente numafunção normalizadora, o que impossibilitaria “as relações entre osdiversos gêneros, os gêneros mistos, as obras que incluem os váriosgêneros, a flexibilidade das fronteiras dos gêneros, a suatransformação e morte, o seu reaparecimento, a adequação melhorde certos gêneros a épocas estilísticas e às preferências dos autores,a sua modificação e enriquecimento por certos autores” (COUTINHO,1978a: 29). Dessa maneira, a adoção do gênero como conceitopoliédrico, multiforme e, portanto, suscetível de mutabilidade,procura evitar uma concepção tanto absolutista quanto nominalista,fazendo da noção uma aliada na análise dos caracteres das obrasliterárias e não um elemento estanque que defina compromissosapriorísticos com relação aos estudos literários.

Feita essa ressalva, pode-se então iniciar o trabalho deapresentação de caminhos percorridos pela crônica até se afirmarcomo gênero literário, tentanto evidenciar que tais momentosrevelam os diferentes matizes impressos na crônica ao longo deseu itinerário. Cabe assinalar que essa descrição será realizadapor meio de “crônicas-fotografias”, entendidas como possibilidadesde retorno textual a determinadas experiências, tal como ocorrecom o trabalho fotográfico. Ao eleger apenas alguns autores, busca-se revelar algumas nuanças panorâmicas do fazer cronístico, sendoque este exercício procura sua validade nos entretons que podemser visualizados em meio ao cotejo de textos de diversos autoresque escrevem em tempos também diversos.

retratos da crônica

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A palavra crônica, e suas variantes chronica, caronica, cronicãoe cronicon, está etimologicamente ligada ao termo Chronos, deusda mitologia grega que representa o tempo.1 Com a tradução parao latim — de Chronos para Saturnus, ou seja, “saturado de anos” —o termo passou a significar o registro dos fatos atuais. Esta podeser considerada uma forma “ingênua” de crônica, porquanto ascategorias “tempo” e “espaço” serviram apenas de princípiosinterpretativos inspiradores. Nessa acepção, a crônica assume opapel de registrar os fatos reais ao longo de sua evolução no tempo.Tal sentido pode ser facilmente identificado nas crônicas medievaisportuguesas já que estas visam, primordialmente, a apresentardeterminadas seqüências de fatos organizados na ordem temporalde sua ocorrência original.

Cronistas como Fernão Lopes, Gomes Eanes de Zurara, Ruyde Pina, entre outros, procuraram desenvolver um trabalho decompilação de situações e temas relacionados, principalmente, aopaço real e aos caminhos e descaminhos da expansão ultramarinade Portugal a partir do século XIV. Em tal conjuntura, esses escritosassumem uma dimensão pedagógica, na medida em que seinscrevem no circuito das manifestações dos Espelhos de Príncipesda nação portuguesa, entendidos como manuais para a educaçãodos membros da corte real pelos exempla dos feitos grandiososretidos pela pena dos cronistas. O cronista-mor da casa realportuguesa, Gomes Eanes de Zurara, procurava confirmar aimportância dos exemplos na formação das gerações futuras,sinalizando a prescrição de ações nobilitantes dos reis ante seussúditos. Deste modo, um rei “não pode dar herança de maiorriqueza, nem jóia de maior valor a qualquer nobre, e excelente, quesua imagem pintada de virtudes, na qual, como um espelho, sepossa guardar o lume de seus feitos ante a presença de todos”(ZURARA apud QUEIRÓZ, 1997: 75).

Agindo de tal forma, o cronista conclui que as pessoaspassariam a adotar a conduta do rei como modelo, pois “vendo-sehomens como aqueles, por vergonha poderão contar usarem demenos virtude que os outros” (ZURARA apud QUEIRÓZ, 1997: 75). Se asvirtudes e atitudes dos reis são exemplos para os que “hão de vir”,acrescidas da natureza oficial desses documentos, os cronistas são

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os responsáveis pela permanência de tais exemplos, construindoassim “a grandeza futura de Portugal para os que descenderem desuas linhagens, pois “sempre terão razão de se lembrarem detamanhos feitos” porque terão tido escritores capazes de escreverseus feitos para ensinamento e exemplo dos pósteros” (QUEIRÓZ, 1997:78).

Além da crônica medieval, que empresta, sobretudo, o nomeao gênero, outros moldes de narrativas européias, ligadas aosurgimento da imprensa como divulgadora de textos literários,principalmente a partir do século XVIII, são extremamenteimportantes para a construção da crônica. É por intermédio dojornal que se notabilizam, por exemplo, o ensaio inglês e o folhetimfrancês. Na crônica brasileira, pode-se cogitar que ocorre umaespécie de fusão desses dois tipos de textos. A partir do ensaio, acrônica adota a noção de tentativa (“essay”), desprezando, emgrande parte, os apelos do rigor acadêmico e levando a umtratamento mais informal dos assuntos abordados. Do folhetimabsorve a dimensão “ficcional” dos eventos e temas descritos nestaforma literária.

Com relação ao ensaio, Afrânio Coutinho sinaliza para aoriginalidade de Montaigne, escritor francês que, em seus Essais(1596), teria inspirado vários autores ingleses na escrita dedissertações breves, concisas e em linguagem familiar. O críticoenfatiza ainda a oposição entre o ensaio inglês e o sentido que apalavra assumiu no Brasil: estudo crítico, histórico, político oufilosófico, comumente publicado em livros e revistas científicasligadas geralmente à academia (COUTINHO, 1978: 247-249). No que serefere ao folhetim, pode-se destacar que a crônica guarda afinidadescom este gênero devido principalmente à destinação para o consumoimediato. Mas se distingue dele uma vez que não possui qualquercompromisso com a sucessividade ou com o movimento diacrônico(PORTELLA, 1998: 34). Como resultado, a crônica se afirma como espaçoheterogêneo em que convivem, por exemplo, o pequeno ensaio, oconto ou o poema em prosa e sua identidade resulta também dessadiferença.

A caracterização da crônica como espaço heterogêneo podeser definida então como uma decorrência da variedade de tipos emque pode ser escrita: crônica poema-em-prosa, que apresenta

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conteúdo lírico; crônica-comentário, na qual se apreciam osacontecimentos, acumulando assuntos diferentes; crônicametafísica, que promove reflexões de conteúdo filosófico; crônicanarrativa, que tem por eixo uma história ou episódio; crônica-informação, que divulga fatos, tecendo sobre eles comentáriosligeiros. 2

Esta combinação de gêneros é uma das característicasprimordiais da crônica brasileira. Contudo, a escrita da crônica noBrasil não se resume a este aspecto. Ela possui uma longa históriae esta história apresenta personagens considerados fundamentaisno contexto da literatura brasileira.

MOMENTOS REPRESENTATIVOS: CRONISTAS BRASILEIROS

Um dos principais enfoques desse momento do percurso dacrônica talvez deva ser direcionado ao alastramento do jornal apartir da segunda metade do século XIX, quando ocorre a aberturade espaço para a publicação de textos curtos. É desse movimentoda imprensa escrita no século XIX que se afirma no Brasil apublicação de contos traduzidos e o folhetim — compreendido emsuas acepções mais correntes: tanto como romance em capítulosquanto como crônica. Assim, como outro momento importantedessa trajetória, agora em solo brasileiro, merece destaque o papeldesempenhado por alguns escritores no trabalho de “elevação” dacrônica à arte literária.

Nomes como os de José de Alencar, Joaquim Manuel deMacedo, França Júnior, Machado de Assis, Raul Pompéia, JúliaLopes de Almeida, João do Rio, Lima Barreto, entre outros, figuramna lista daqueles escritores que passaram a desenvolver o“exercício” da crônica cada vez mais preocupados em alcançar umadimensão “poética” quando do registro jornalístico dos fatos quemarcaram sua época. No entanto, na maioria desses autoresbrasileiros, a crônica apresenta

um ar de aprendizado de uma matéria literária nova e complicada,pelo grau de heterogeneidade e discrepância de seus componentes,exigindo também novos meios lingüísticos de penetração eorganização artística: é que nela afloravam, em meio ao materialdo passado, (...) as novidades burguesas trazidas pelo processo demodernização do país, de que o jornal era um dos instrumentos(ARRIGUCCI JR., 1987: 57).

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Um dos nomes citados acima merece destaque para mostraralgumas características da crônica brasileira produzida na segundametade do século XIX. Trata-se de José de Alencar, escritorromântico marcado pelo esforço de mapeamento dos caracteresnacionais por meio de obras que visam retratar a “realidadebrasileira” presente em alguns elementos considerados expressivosno que se refere à verdadeira nacionalidade. Entre estes elementos,o Romantismo irá privilegiar a identificação do índio como heróinacional, a descrição das relações sociais oriundas da crescenteurbanização e modernização da sociedade carioca, as facetasregionais de um Brasil ainda a ser descrito, entre outros. Apesardas críticas direcionadas a este “instinto de nacionalidade”, devidoà ingênua noção de pureza nacional, sua produção literária possuium valor incontestável no que se refere principalmente à valorizaçãodos temas brasileiros por meio do fazer literário.

Como cronista, Alencar escreve no tempo em que a crônicaainda era denominada de folhetim ou, em outras palavras, aqueleespaço no rodapé da primeira página dos jornais que tinha comofunção primordial passar em revista os principais fatos da semana,além de ser dedicado à publicação de capítulos de romances. Nesseespaço, geralmente utilizado aos domingos, cabiam as informaçõesmais diversificadas, resultando, por exemplo, na reunião, em umúnico texto, de apreciações sobre as estréias de espetáculos teatrais,comentários sobre os bailes e as festividades religiosas maisconcorridas, críticas às especulações na bolsa, entre outros fatosque marcavam as semanas cariocas. Enfim, “é toda a fisionomia deuma cidade vivendo o seu primeiro grande momento de progressoe modernização em moldes capitalistas, embora incipientes, quese desenha nas páginas de Alencar” (FARIA, 1995: 12). Em texto de19 de novembro de 1854, espécie de mitologia folhetinística, Alencarsugere:

Se a mitologia dos povos antigos tivesse dado formas de mulher, defada ou ninfa, às semanas, como o fez com as horas, não me veriaàs vezes em tão sérios embaraços para escrever esta revista.[Dessa maneira] (...) em lugar de estar a cogitar idéias, a parafusarnovidades, e a lembrar-me de fatos e coisas passadas, pediriaemprestado a algum dos tipos da grande galeria feminina as feiçõese traços para desenhar o meu original (ALENCAR, 1995: 53).

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O trabalho do escritor, portanto, seria facilitado com apersonificação das semanas, pois teria apenas o trabalho dequalificá-las de acordo com sua índole: “alegre e risonha” ou “calmae tranqüila”. Já que não é assim, não resta outra alternativa aoescritor “senão deixar as comparações e voltar ao positivo dacrônica, desfiando fato por fato, dia por dia” (ALENCAR, 1995: 53).Característica visível no trecho transcrito, esse tipo de crônica podeser qualificado como uma espécie de relato sociocultural dasociedade carioca na medida em que se prende intimamente aosacontecimentos semanais, tendo a relação semana/crônicafundamental importância para a construção do texto, já que estarelação parece ser encarada como uma espécie de exigência,restringindo em certa medida a liberdade temática de seu autor.Sendo assim, a crônica-folhetim é muito mais noticiosa do quepropriamente literária, apesar dos esforços de Alencar – nas suas“conversas, ao correr da pena, com leitores e leitoras” – em conferiraos seus textos determinadas características ligadas ao mundofictício, por meio do recurso à fantasia, ao humor, ao sonho, aodevaneio, acrescentando à crônica, além da informação, as funçõesde entretenimento e de diversão.

Outro escritor ligado ao século XIX merece menção honrosa.Para Valentim Faccioli, no Brasil deste século “a crônica nasce, naprática da escritura cotidiana, com o surgimento dos primeirosjornais e revistas. Depois de 1860 passa a existir um númeroproporcionalmente grande de jornalistas e escritores que praticama crônica moderna e lhe dão dignidade de gênero literário” (1982:139). Esta dignidade, de acordo com o crítico, é acentuada porMachado de Assis, que “ultrapassou amplamente sua característicainicial de simples amenidade, de comentário descompromissadodos pequenos sucessos do cotidiano” (FACCIOLI, 1982: 139). Numaentrevista, o escritor Carlos Drummond de Andrade, enfatiza que,devido à sua natureza “fugitiva e fugidia”, a crônica passa depressa.No entanto, o autor alerta que, não obstante, deve-se reconhecerque:

Crônicas escritas há mais de cem anos por um cidadão chamadoMachado de Assis estão hoje vivas como naquele tempo. Osacontecimentos perderam a atualidade, mas a crônica não perdeu,

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porque ela traduz uma visão tão sutil, tão maliciosa, tão viva darealidade, que o acontecimento fica valendo pela interpretação queMachado de Assis deu (D. ANDRADE, 1999: 13).

Como forma de comprovar as palavras de Drummondapresenta-se fragmento de uma crônica de 06 de setembro de 1892,na qual, através do diálogo com seu leitor, Machado adverte que “olivro da semana foi um obituário, e não terás lido outra cousa, foradaqui, senão mortes e mais mortes” (ASSIS, 1994: 51). O tema é amorte e a narrativa se estende através da apresentação dos nomesdas pessoas que “partiram” naquela semana. No entanto, apesarde estes nomes perderem a atualidade, a introdução do texto éextremamente interessante devido à alusão do autor à morte comprazo determinado:

Qualquer de nós teria organizado este mundo melhor do que saiu.A morte, por exemplo, bem podia ser tão-somente a aposentadoriada vida, com prazo certo. Ninguém iria por moléstia ou desastre,mas por natural invalidez; a velhice, tornando a pessoa incapaz,não a poria a cargo dos seus ou dos outros. Como isto andariaassim desde o princípio das cousas, ninguém sentiria dor nem temor,nem os que se fossem, nem os que ficassem. Podia ser umacerimônia doméstica ou pública; entraria nos costumes uma refeiçãode despedida, frugal, não triste, em que os que iam morrer dissessemas saudades que levavam, fizessem recomendações, dessemconselhos, e se fossem alegres, contassem anedotas alegres. Muitasflores, não perpétuas, nem dessas outras de cores carregadas, masclaras e vivas, como de núpcias. E melhor seria não haver nada,além das despedidas verbais e amigas... (ASSIS, 1994: 49-51).

Estas linhas apresentam um encanto que permanece atravésdos tempos, pois as conjeturas inusitadas presentes no texto levamo leitor à reflexão sobre a fugacidade da vida, tema que não perdea atualidade em nenhuma época da “comédia humana”. Além disso,a morte geralmente é retratada como algo doloroso e traumático,aspecto que o escritor procura relativizar com a sugestão da mortenão apenas como perda, mas, devido à previsibilidade, como algoprogramado e, de tal forma, isento de surpresas. Alguns estudosrecentes investigam nas crônicas machadianas alguns dos traçoscaracterísticos de seus romances e contos, narrativas através dasquais se notabilizou.3 Desse modo, nas crônicas machadianas serianotável a “arte da desconversa: refinada, alusiva, muitas vezes

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maldosa e sempre irresistível. Ninguém escapa a tantamovimentação e humor, mesmo depois de todos esses anos dodesaparecimento dos fatos que motivaram aquelas páginasextraordinárias” (ARRIGUCCI JR., 1987: 59).

Como se vê, Machado de Assis, apesar de ter como pré-requisito o comentário dos fatos semanais, investe suas impressõessobre estes fatos de uma “literariedade” mais expressiva na medidaem que, parafraseando Drummond, o fato fica em segundo plano eo que prevalece é a interpretação dada ao mesmo. Nesse sentido,Machado procura desvencilhar-se da obrigatoriedade de retrataras semanas, qualidade que evita que se tornem datadas e situadas,já que este pode ser compreendido como um dos empecilhos paraa permanência da crônica. Além disso, outra característicafundamental da produção machadiana encontra-se na provocaçãodo leitor, pois, em suas páginas, o leitor está sempre presente,como visto nos fragmentos acima citados. O leitor é então “ointerlocutor assíduo e participativo que tanto pode ser aliado ouadversário, personagem principal ou simples coadjuvante, sempre,porém, referência destacada. Daí resulta uma infatigávelcumplicidade entre escritor e leitor, porque as provocações doprimeiro estimulam, no segundo, um estado de vigília permanente”(PORTELLA, 1998: 31). Tais circunstâncias podem ser identificadastambém em suas crônicas, nas quais o diálogo constante com seusleitores estabelece uma maior aproximação entre os interlocutores.

Adquirindo fama a partir do início do século XX, outro autorque merece ser mencionado é João do Rio — pseudônimo de JoãoPaulo Alberto Coelho Barreto — por fazer também o registro deaspectos relevantes da sociedade brasileira daquele período. Valedestacar em João do Rio seu papel na estruturação da crônica nosmoldes atuais: comentário aparentemente banal sobre determinadasituação, com injeção de elementos ficcionais, numa fusão entrereportagem de jornal e conto. Dessa forma, o narrador de suascrônicas pode ser definido como “narrador-repórter”, por fazer aaliança entre ficção e realidade, de tal maneira que leva aodesenvolvimento de um gênero híbrido (SÁ, 1985: 07-10).

Este narrador se transforma em flâneur — palavra de origemfrancesa ligada ao verbo flanar, ou seja, nas palavras do próprioautor, “perambular com inteligência” —, podendo assim contemplar

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elementos que fazem da então capital do Brasil um espaço singular,onde convivem as mais diferentes profissões, crenças religiosas,festas, vícios e virtudes, ligados, com certa freqüência, às camadaspopulares.

Os textos produzidos pelo autor, notadamente aquelesreunidos em obras como A alma encantadora das ruas, podem serdescritos como uma homenagem à cidade, em que o acento tônicorecai sobre a rua, personagem principal em grande parte do registrode acontecimentos, à primeira vista, sem importância. Comoprotagonista, a rua aparece personificada por imagens que revelama dimensão poética inscrita nas narrativas do autor. Em uma desuas crônicas mais famosas, ao procurar nos dicionários elementospara definir sua personagem, o narrador declara que a rua apareceali apenas como “um alinhado de fachadas, por onde se anda naspovoações...” (RIO, 1987: 04). Afirma então que essa definição pecapor não captar a essência da rua: “Ora, a rua é mais do que isso, arua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!” (RIO, 1987: 04).É o caso da Rua da Misericórdia, descrita como palco no qualaparecem marcas expressivas da história brasileira:

Com as suas hospedarias lôbregas, a miséria, a desgraça das casasvelhas e a cair, os corredores bafientos, é perpetuamente lamentável.Foi a primeira rua do Rio. Dela partimos todos nós, nela passaramos vice-reis malandros, os gananciosos, os escravos nus, os senhoresem redes; nela vicejou a imundície, nela desabotoou a flor dainfluência jesuítica. Índios batidos, negros presos a ferros, domínioignorante e bestial, o primeiro balbucio da cidade foi um grito demisericórdia, foi um estertor, um ai! tremendo atirado aos céus.Dela brotou a cidade no antigo esplendor do Largo do Paço, deladecorreram, como de um corpo que sangra, os becos humildes e oscoalhos de sangue, que são as praças, ribeirinhas do mar. Mas,soluço de espancado, primeiro esforço de uma porção de infelizes,ela continuou pelos séculos afora sempre lamentável, e tãoaugustiosa e franca e verdadeira na sua dor que os patriotaslisonjeiros e os governos, ninguém, ninguém se lembrou nunca delhe tirar das esquinas aquela muda prece, aquele grito de mendigavelha: — Misericórdia! (RIO, 1987: 08).

O Rio de Janeiro que aparece nas páginas do autor é umacidade que se modernizava. Entretanto, o autor registra facetasinusitadas que emergem nesse processo. Assim, a cidade mostra-se em palavras por intermédio de um procedimento incomum,operado pelo autor em relação à matéria real que se fazia crônica:

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Em lugar de permanecer na redação, esperando que os informeschegassem até ele, João do Rio saía às ruas, procurava o fato diverso,o ângulo diferenciado. Assim, seus textos revelam o movimento dacidade, comentando fatos e pessoas que antes eram meramentetransplantados para o jornal (OLIVEIRA; GENS, 1987: XII).

É com este procedimento que seus textos irão incorporar falase imagens curiosas da cidade. Destaca-se a profissão dos caçadoresde gatos: “São os apanhadores de gatos para matar e levar aosrestaurants, já sem pele, onde passam por coelho. Cada gato valedez tostões no máximo. Uma só das costelas que os freguesesrendosos trincam, à noite, nas salas iluminadas dos hotéis, valemuito mais” (RIO, 1987: 25). Caso curioso é ainda o das pessoas quemarcam seus corpos com tatuagens:

Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, dedesprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas. Avida no seu feroz egoísmo é o que mais nitidamente ideografa atatuagem. As meretrizes e os criminosos nesse meio de becos e defacadas têm indeléveis idéias de perversidade e de amor. Um corpodesses, nu, é um estudo social. As mulheres mandam marcarcorações com o nome dos amantes, brigam, desmancham atatuagem (...), e marcam o mesmo no pé, no calcanhar.— Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano. Tenho-teaqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, oseu nome odiado.É a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira,amassado por todo o peso da mulher... (RIO, 1987: 33).

Tatuadores, mendigos, pivettes, cantores e versos populares,cordões carnavalescos, presidiários, modinhas, pintores, meretrizes,consumidores de ópio, lundus, músicos ambulantes, orações,velhos cocheiros, mercadores de livros, entre outros tipos emanifestações humanas-urbanas, compõem o universo dascrônicas de João do Rio, mostrando assim um painel proteiformede situações que desembocam ou se originam da “alma encantadoradas ruas”.

Outro momento marcante na história da crônica brasileira,como não poderia deixar de ser, está ligado à escola que alterariasubstancialmente a linguagem e os temas abordados pela literaturabrasileira a partir das primeiras décadas do século XX: omodernismo, demarcado cronologicamente pelo advento da Semana

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de Arte Moderna de 1922. Esta escola iria primar pela incorporaçãode elementos ligados à linguagem coloquial na busca de uma artemais próxima do povo e, desse modo, influenciaria decisivamenteem alguns traços da escrita da crônica literária: “Voltada para asmiudezas do cotidiano, as fraturas expostas da vida social, a finurados perfis psicológicos, o quadro de costumes, o ridículo de cadadia e até a poesia mais alta que ela chega alcançar” (ARRIGUCCI JR.,1987: 59).

O momento modernista caracteriza-se pela difusão aindamaior da já expressiva produção jornalística do século XIX, auxiliadatambém pela publicação de diversas revistas literárias que iriamdefender e disseminar as propostas do movimento. Em tal cenário,é preciso ressaltar aquelas características de contestação domodernismo que libertaram os escritores brasileiros de umaimemorial e voluntária subordinação aos cânones clássicos dePortugal, “permitindo-lhes adotar uma linguagem mais livre, maissolta, mais natural, de inspiração regional e popular, o querepresentou sem dúvida um enriquecimento e uma libertação paraa nossa língua literária, tornando realidade aquilo que os românticos(...) apenas tentaram fazer” (PEREGRINO JR. apud COUTINHO, 1978: 275).

Como movimento, o modernismo se apresenta comoconcepção de vida, “gerando um estilo novo de enfrentar a realidadebrasileira, fosse nos processos de dominá-la, fosse nas formas derepresentá-la artisticamente” (COUTINHO, 1978: 280). Como figuramodelar da crônica modernista é selecionado aqui o nome de Máriode Andrade, um dos defensores mais destacados das bandeirasmodernistas, de tal forma que:

Se um movimento deve a uma grande personalidade partesignificativa de seu êxito, é inegável que, no caso do Modernismo,assim na fase demolidora e heróica, que também em seu períodomais construtivo, essa personalidade dirigente foi a de Mário deAndrade, que, no conto, na epopéia do Macunaíma, na poesia, nacrítica e teoria literárias, na linguagem, nos estudos folclóricos, paranão referir os vários outros setores onde sua ação se fez sentir,deixou o sinete de sua capacidade criadora e inovadora emconquistas definitivas para a inteligência brasileira, conquistas tãoimportantes como realizações positivas quanto como lições eexemplos da genuína e correta atitude do espírito brasileiro, deagora em diante, no que concerne à literatura, seja no aspectotemático ou formal, na inspiração ou na técnica (COUTINHO, 1978:281-282).

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A crônica escolhida, intitulada “Esquina” e publicada em 17de dezembro de 1939, retrata exemplarmente uma dascaracterísticas relevantes da prosa do modernismo, entrevista naabordagem de temas ligados ao cotidiano, quando a arte imita avida de maneira mais plural, adicionando elementos obscurecidosem outras obras. Sem prender-se necessariamente aos fatos dasemana, o narrador do texto faz a descrição de todo o emaranhadode relações que se estabelecem em torno de uma esquina da Ruado Catete, no Rio de Janeiro, mostrando a visão crítica com que oautor absorve os detalhes mais recônditos da vida urbana brasileira.

Primeiramente, merece destaque a direção do olhar que oescritor procura focalizar em sua descrição: a esquina, espaço decruzamentos, encontros e interseções de pessoas e situações. Comoforma de identificar seu endereço, o narrador descreve a quaisclasses pertencem os transeuntes que “habitam” a esquina. Aprimeira é a pequena burguesia, na qual o autor identifica “umlento exército de infiéis, que fazem todos os esforços imagináveispara não pertencer à classe operária” (M. ANDRADE, 1991: 68). Numareferência ao preconceito disseminado de que o trabalho é encaradoainda como coisa de escravo, o autor ilustra com alguns exemploso mascaramento da condição social. Após a descrição dessespersonagens pequeno-burgueses, o narrador acrescenta que “(...)há o caso da gorda, o do paralítico a quem morreu a mulher que otratava, o das duas irmãs, mas tenho que descer para o andar térreo.Na rua quem vive são os operários. Este operariado do Catete, quemora por aqui mesmo, nos fundos da casa, no oco dos quarteirões,ou nos vários cortiços que se arriscam a desembocar na própriarua” (M. ANDRADE, 1991: 71).

Nesse texto, o narrador compara a sociedade brasileira aoprédio onde reside: as classes abastadas vivem nos andaressuperiores, os operários no andar térreo. Dessa maneira, faz desfilardiante de seus leitores uma galeria de figuras representativas dessasclasses sociais. De início, o olhar é direcionado à frente e, comoestá num prédio, focaliza as classes que “moram no alto”. Depois,o olhar vai para o “térreo”, mostrando a dinâmica do cotidiano dooperariado:

Gente do povo, sempre em mangas de camisa ou nas mais ralascamisas de meia e tamancos de pau batucando. Muitos vivem de

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pé no chão, mesmo aqui, bem junto da sublime Praça Paris... Nãoé uma gente triste, embora todos inalteravelmente sejam de físicotristonho. O nível de vida é baixíssimo, só as mocinhas se disfarçammais. Os outros, mesmo os jovens, mesmo os lusíadas resistentes,mostram sempre qualquer ruga, qualquer ombro tombado ou peitofundo, marca de imperfeição. Deles, a vida não é instável, pelocontrário, graniticamente imóvel (...). Esta gente não viaja, não semovimenta, é gente que vem até a esquina. De noite após a janta,ou então aos domingos de camisa limpa, eles têm que descansar ese divertir um bocado. Então vêm até a esquina, se encostam noslampiões, nas árvores, ou se ajuntam, na porta dos botequins,conversandinho. Os bondes passam cheios do futebol que nos fazesquecer de nós mesmos. Mas estes homens, nem de futebolprecisam. Só conseguem é vir até a esquina, reumáticos de misériae embolorados de inconsciência (M. ANDRADE, 1991: 71).

Em suma, Mário de Andrade opera com uma espécie de“alegoria formal” ao descrever as relações que ocorrem em tornodo prédio onde mora: quando olha para frente, enfatiza elementosligados às pessoas da pequena burguesia; quando “desce ao térreo”faz a leitura do cotidiano dos operários transeuntes que vêm até àesquina. Esta atitude alegórica pode ser problematizada como umadas estratégias modernistas para inscrever, por meio da literatura,aspectos da realidade social brasileira daquele momento histórico.A crônica modernista, seguindo a tendência da época e de outrosgêneros:

(...) se convertia num meio de mapear e descobrir um paísheterogêneo e complexo, largamente desconhecido de seus próprioshabitantes, caracterizado pelo desenvolvimento histórico desigual,de modo que o processo de modernização podia ser acompanhadopelos contrastes entre bolsões de prosperidade e vastas áreas demistura com traços remanescentes de velhas estruturas dasociedade tradicional. (...) Provinciana e moderna a uma só vez, acrônica modernista revela uma tensão contínua entre temposdiversos e espaços heterogêneos, fundindo numa liga complexacomponentes discrepantes, provenientes de formas de vida distintas,mas mescladas (ARRIGUCCI JR., 1987: 63).

A crônica de Mário de Andrade pode ser entendida, portanto,como amostra importante do percurso do movimento modernistabrasileiro. A inserção de temas e linguagem ligados às classespopulares parece ser a chave para a compreensão de uma dascaracterísticas essenciais da releitura da realidade brasileirapreconizada pelo modernismo: tentativa, bem sucedida, de alargar

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os horizontes da literatura a partir de uma maior abertura, tantotemática quanto formal, aos vários aspectos que colaboram para aformação da “brasilidade”, possibilitando a revelação de elementospoucas vezes registrados pelos escritores brasileiros.

As relações entre o jornal e a crônica apresentam-se comouma das características fundamentais dessa atividade literária. Taisrelações são expostas de forma pormenorizada por CarlosDrummond de Andrade:

A crônica é fruto do jornal, onde aparece entre notícias efêmeras.Trata-se de um gênero literário que se caracteriza por estar pertodo dia-a-dia, seja nos temas, ligados à vida cotidiana, seja nalinguagem despojada e coloquial do jornalismo. Mais do que isso,surge inesperadamente como um instante de pausa para o leitorfatigado com a frieza da objetividade jornalística. De extensãolimitada, essa pausa se caracteriza exatamente por ir contra astendências fundamentais do meio em que aparece (...). Se a notíciadeve ser sempre objetiva e impessoal, a crônica é subjetiva e pessoal.Se a linguagem jornalística deve ser precisa e enxuta, a crônica éimpressionista e lírica. Se o jornalista deve ser metódico e claro, ocronista costuma escrever pelo método da conversa fiada, doassunto-puxa-assunto, estabelecendo uma atmosfera de intimidadecom o leitor (D. ANDRADE, 1999: 13).

Desse modo, apesar de “ser no e para o jornal” (MOISÉS, 1983:247), a crônica não respira os mesmos ares de objetividade comunsao discurso jornalístico, pois este “assenta-se em técnicas decomposição, montagem, texto e ilustração que asseguram umestatuto de verdade —objetiva e imparcial — ao fato relatado. Ouseja, à medida que [o jornal] se torna cada vez mais moderno, maisperfeito, consegue promover a ilusão de uma acessibilidade imediataao real” (HOLLANDA, 1979-1980: 68).

De forma diversa do que ocorre com o discurso jornalístico, acrônica caracteriza-se como “pausa subjetivizada” que procura fugirdo simples registro dos acontecimentos, possibilidade para ainstauração do lírico e do lúdico em meio à necessidade da “verdade”jornalística. Apesar de sua fugacidade, ainda de acordo com omesmo Drummond, a crônica não é assim tão passageira. Falandoespecificamente de suas crônicas, o escritor enfatiza que elas nãoperderam a atualidade porque nem sempre comentam um fato dodia, ou, quando comentam, procuram dar outra dimensão a essefato e fazer uma reflexão qualquer sobre a vida, sobre os costumes,

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sobre a política, sobre os homens, à margem de um acontecimentotransitório. “Sendo assim, a crônica tem uma certa chance depermanecer” (D. ANDRADE, 1999: 13).

Como se vê, um dos ingredientes fundamentais para apermanência da crônica parece estar nesse jogo de estender aanálise não apenas aos fatos, mas procurar transmitir ao textoqualidades que levem o leitor à reflexão. Esta receita já erareconhecida pelos cronistas do século XIX. Cabe então a pergunta:o que muda na configuração da crônica a partir da segunda metadedo século XX?

Uma abordagem possível pode ser visualizada quando aresposta não for procurada apenas na produção e sim na recepçãodesses textos, pois, a partir desse período, a crônica, além de ganharadeptos que a praticam com certa exclusividade — tais como RubemBraga, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Luis FernandoVerissimo, entre outros — passa a ser publicada em livro com maiorregularidade que em décadas anteriores.

Nesse cenário, pode-se sugerir que a crônica da segundametade do século XX apresenta mudanças no que se refereprincipalmente à atitude do leitor diante do texto, já que, quandoreunida em antologias, possibilita a leitura de diversas crônicas deum mesmo autor — ou até de autores diferentes quando da reuniãode diversos cronistas em uma mesma obra —, levando a uma maiorexclusividade na leitura. A partir desse momento, a crônica nãodisputa mais espaço com as notícias do jornal devido à ampliaçãode seu espaço de divulgação, resultante do maior número depublicações em forma de livro.

Assim, outro aspecto importante do percurso da crônicabrasileira refere-se às possibilidades de mudança de suporteocorridas com essas narrativas nas últimas décadas, na medidaem que vários escritores têm seus textos publicados não maissomente em periódicos, mas também a partir da reunião emantologias. Novamente é Carlos Drummond de Andrade quemesclarece algumas questões ligadas ao processo de transposiçãoda crônica publicada na imprensa periódica para o livro:

Eu devo reconhecer que muitas das crônicas escritas por mim nãopodem perdurar porque, em primeiro lugar, eu não as acheiadequadas a formarem um livro, e depois porque o jornal, que étão vivo no dia, é uma sepultura no dia seguinte. Então, essas

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coisas escritas ao sabor do tempo perdem completamente não só aatualidade como o sabor, o sentido, a significação (...). Então acrônica que aborda um fato ou circunstância de vida de determinadapessoa perdeu completamente o sentido, porque essa própria pessoaperdeu o sentido. Então não é propriamente a crônica, é oacontecimento que ela reflete que perdeu a significação (D. ANDRADE,1999: 13).

As considerações de Drummond são extremamenteimportantes no que se refere ao processo de seleção efetuado peloescritor — ou por outra pessoa encarregada de organizar a seleção— quando da passagem da crônica do jornal ou revista para o livro.Tendo como suporte o livro, esses textos procuram adquirir maiorpermanência, além de possibilitar maiores cuidados quando de suaavaliação crítica.

A reunião de crônicas em antologias guarda afinidades comum percurso tradicional de difusão de obras literárias no Brasil:muitos romances do final do século XIX tiveram sua publicaçãorealizada inicialmente por meio do jornal, usando como recurso adivulgação em forma de capítulos. Após esta publicação prévia,essas obras passaram a ser divulgadas em forma de livro, como é ocaso de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antôniode Almeida (publicada no suplemento “A Pacotilha” do jornal CorreioMercantil de 27 de junho de 1852 a 31 de julho de 1853); Memóriaspóstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (publicada na RevistaBrasileira de 15 de março de 1879 a 15 de dezembro de 1880), entreoutras. A diferença fundamental entre estes romances e as crônicasestá relacionado ao conjunto, pois os romances são construídoscom base na ligação existente entre os diversos capítulos, levandoa uma maior unidade temática dos mesmos.

O que parece unir as crônicas de autores diversos é o fato deestarem relacionadas aos comentários da vida cotidiana. Assim,falar sobre os costumes, a política, as manifestações culturais maisdiversificadas parece caracterizar-se como fio condutor dessasnarrativas.

Na obra A crônica Jorge de Sá busca desenvolver um trabalhode levantamento dos escritores que praticam a crônica como umde seus gêneros literários prediletos. O autor procura identificaras características que fazem desse exercício um momento dereflexão, a pausa necessária diante da conturbada relação com a

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alteridade. Seu estudo envereda pela análise de narrativas dediversos cronistas contemporâneos, com destaque para RubemBraga, Fernando Sabino, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta),Lourenço Diaféria, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony,Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes. Analisando otrabalho de Rubem Braga, Jorge de Sá enfatiza alguns aspectosrelacionados à transitoriedade da crônica. Segundo o crítico, essegênero literário “(...) é uma tenda de cigano enquanto consciênciada nossa transitoriedade; no entanto é casa — e bem sólida até —quando reunida em livro, onde se percebe com maior nitidez a buscada coerência no traçado da vida, a fim de torná-la mais gratificantee, somente assim, mais perene” (SÁ, 1985: 17). Dessa maneira, sãorelevantes as reflexões de Jorge de Sá, pois corroboram asconsiderações de Drummond apresentadas em linhas anterioressobre alguns aspectos que envolvem a transposição da crônica dojornal para o livro, principalmente quando afirma que:

Nessa transposição, é claro que o escritor está buscando fazer datenda precária e cigana uma casa sólida e mais duradoura. Mas eleprocura selecionar seus melhores textos, atribuindo-lhes umaseqüência cronológica e temática capaz de mostrar ao leitor umpainel que se fragmentara nas páginas jornalísticas, ou cujaunicidade não fora percebida por nós. Nessa seleção, que é feitacomo se a própria vida estivesse sendo passada a limpo, o cronistaelimina as crônicas que envelheceram porque ficaramexcessivamente ligadas a um acontecimento datado e situado, hojesem nenhuma importância, agrupando na coletânea aquelas queconservam o seu poder de provocar a nossa reflexão (1985: 19).

Ligada à transitoriedade do jornal, a crônica é direcionadainicialmente aos leitores apressados desse veículo de informaçãodiária, cuja elaboração tem como característica primordial aurgência, pois os acontecimentos são extremamente rápidos, e ocronista precisa de um ritmo ágil para poder acompanhá-los. Portais motivos, sua sintaxe parece muitas vezes estar desestruturada,muito mais próxima da conversa entre dois amigos do quepropriamente do texto escrito (SÁ, 1985: 10). Essa característica levaa uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e daoralidade. O dialogismo, assim, equilibra o coloquial e o literário,permitindo que o lado espontâneo e sensível permaneça comoelemento provocador de outras visões do tema e subtemas que estãosendo tratados numa determinada crônica.

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A aparência de simplicidade da crônica não implicanecessariamente em desconhecimento das artimanhas artísticas,já que tal aparência decorre, em grande parte, do fato de que acrônica surge primeiro no jornal, “herdando a sua precariedade,esse seu lado efêmero de quem nasce no começo de uma leitura emorre antes que se acabe o dia, no instante em que o leitortransforma as páginas em papel de embrulho, ou guarda os recortesque mais lhe interessam num arquivo pessoal” (SÁ, 1985: 10). Nessesentido, a reunião de crônicas em antologias merece destaque comomomento importante do percurso histórico da crônica,principalmente devido à mudança de atitude do leitor, pois aspossibilidades de leitura crítica se tornam mais amplas, a riquezado texto, agora liberto de certas referencialidades, atua com maiorliberdade sobre o leitor — que passa a ver novas possibilidadesinterpretativas a partir de cada releitura.

Ao final desse percurso, cabe a interrogação: como falar dacrônica brasileira sem citar o trabalho de Rubem Braga?

Por meio da comparação entre literatura e movimento, pode-se qualificar algumas modalidades literárias da seguinte forma: apoesia dança com as palavras, ao “passo” que a prosa anda atravésdelas. O “cronista-m(ai)or” da literatura brasileira, Rubem Braga,parece operar uma espécie de fusão desses movimentos, já que emsuas crônicas a prosa é entrecortada constantemente por traçospoéticos, ou, se for válida a analogia, o cronista “caminhadançando”. Tal é o trabalho de Rubem Braga que, de acordo comas palavras de um de seus críticos mais atentos, está

situado numa encruzilhada entre o ambiente rural e o urbano, entrea província querida da infância e o vasto mundo moderno. Seuespírito parece encantado com os pequenos seres e coisas com quemuitas vezes tece seus relatos e, ao mesmo tempo, vaga desejoso,errante e solitário pela cidade (que são muitas cidades), semencontrar a casa em que se ajuste definitivamente, apenas iluminadopor instantes passageiros de revelação (ARRIGUCCI JR., 1987: 64).

Um exemplo significativo desse processo pode ser identificadoem uma de suas crônicas mais famosas — “O pavão” —, na qual oescritor faz o seguinte comentário: “O pavão é o arco-íris de plumas.Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximode matizes com o mínimo de elementos. De água e de luz ele faz

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seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade” (BRAGA, 1960:149-150).

O trecho pode ser lido como sincera e singela homenagem àcrônica, pois esta aparece em seu trabalho como território literárioque — mesmo de forma simples, misturando apenas água e luz —consegue dizer as coisas mais profundas, com a exposição de“instantes passageiros de revelação”, muitas vezes imperceptíveisaos simples mortais, mas que nas palavras do cronista-poetaassumem imagens que podem integrar a fragmentação das plumas,como unidades discretas, num uníssono totalizante. Por taismotivos, “é seguramente o mais subjetivo dos cronistas brasileiros.E o mais lírico. Apresentando a originalidade de uma imaginaçãopoética e erradia, Rubem Braga, em seu lirismo, escreve sem ornatose alcança às vezes a simplicidade clássica, numa língua despojada,melodiosa, direta” (COUTINHO, 1986: 133). É de Manuel Bandeira ajusta homenagem ao “taciturno cidadão de Cachoeiro deItapemirim”. Para ele, Rubem Braga é o “príncipe da crônica”. Eexplica a razão de sua superioridade sobre os outros cronistas:

Parece-me que o segredo dele é pôr sempre no que escreve o melhorde sua inefável poesia. Os outros cronistas (...) põem também poesianas suas crônicas, mas é o refugo, poesia barata (...). A boa, elesguardam para os seus poemas. Braga, poeta sem oficina montadae que faz poema uma vez na vida e outra na morte, descarrega osseus bálsamos e os seus venenos na crônica diária (BANDEIRA, 1986b:289).

APONTAMENTOS DIVERSOS

Sem pretender resolvê-la, o presente texto buscou alargar aquestão da produção do gênero crônica no Brasil. Desse modo,numa espécie de síntese, o percurso da crônica brasileira possuiuma trajetória que pode ser definida a partir dos seguintes atributos:tendo seu nome ligado aos escritos da Idade Média, a crônica podeser qualificada como “prima” do ensaio inglês e “filha” do folhetimfrancês, sendo que, a partir desse estágio, buscando inspiraçãonas artimanhas literárias, passa de simples amenidade sobre ocotidiano das semanas cariocas para obra relevante no universoda literatura brasileira, merecedora, assim, da reunião emantologias e da dedicação quase exclusiva por parte de alguns

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escritores. Nesse contexto, “(...) a fórmula moderna, onde entra umfato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis depoesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro dacrônica consigo mesma” (CANDIDO, 1992: 15).

Ressalva importante: apesar de assim parecer à primeira vista,esse percurso não indica necessariamente que a crônica do séculoXIX deva ser considerada melhor ou pior do que a crônica produzidano século XX. Ocorrem, isto sim, mudanças significativas no queconcerne aos elementos formais, ideológicos e estéticos quepassaram a integrar as obras dos escritores contemporâneos.

Vale ressaltar, ainda, o emprego do termo “narrativas”.Benedito Nunes, numa análise do Tempo na narrativa, descreveesta última como sendo uma acepção pertinente não apenas àsatividades literárias, pois, em sentido amplo, o termo pode serestendido a outras manifestações culturais. Para o autor, títulosdiferentes como o mito, a lenda e o caso, consideradas formassimples, literariamente fecundas, não são propriamente literáriascomo o conto, a novela e o romance. Contudo, podem ser definidaspelo mesmo nome. Além disso, a definição do autor surge comoreferência relevante devido ao fato de abranger tanto as:

(...) várias espécies de relatos orais e a modalidade escrita –biografias, memórias, reportagens, crônicas e historiografia – sobreeventos ou seres reais, que se excluem do nível ficcional (...) [quantoas] formas visuais, ou obtidas com meios gráficos (histórias emquadrinhos), e com meios pictóricos ou escultóricos (...) ou que sãoobtidas através da imagem cinematográfica e televisionada (1988:06).

Apesar de não incluir a crônica entre as formas literáriasfecundas, a conceituação assume um papel desmistificador namedida em que relativiza as discussões em torno dos limites entreas várias tipologias de gêneros literários, pois estes limites nuncaforam precisos, além de levarem a uma valoração desigual relativaa determinadas atividades literárias. Entender a crônica comosubgênero ou gênero menor, como fazem alguns teóricos,apresenta-se como perspectiva no mínimo redutora das virtudesdo gênero, por especificar o valor de determinadas manifestaçõesliterárias pelo seu vínculo ou não a determinadas modalidadesliterárias. Caso fosse assim, os escritores se dedicariam apenasao conto, à novela ou ao romance. “Catalogar a crônica como gênero

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menor esbarra na evidência de que não existem gêneros menores.Há grandes e pequenos romancistas, grandes e pequenos poetas,grandes e pequenos contistas. Também há bons e maus cronistas”(AMÂNCIO, 1991: 09). Sob esta perspectiva, sugere-se uma sinonímiaentre as crônicas analisadas neste artigo e o termo narrativas, porser este entendido como forma menos depreciativa, já que apresentacaracterísticas reconhecidas em diversas construções discursivas,nas quais pode ser compreendido como:

(...) dispersão sintagmática dos acontecimentos através de umasérie temporal apresentada como um discurso em prosa, de modoa mostrar sua progressiva elaboração como uma formacompreensível (...). [Dessa forma] o sentido básico de uma narrativaconsistiria, então, na desestruturação de um conjunto de eventos(reais ou imaginários) originariamente codificados num modotropológico, e na reestruturação progressiva do conjunto num outromodo tropológico (WHITE, 1994: 113).

Vista dessa maneira, a narrativa aparece como um processode decodificação e recodificação em que uma percepção original éesclarecida por achar-se vazada num modo figurativo diversodaquele em que veio a ser codificada por convenção, autoridade oucostume. Tais elementos estão presentes tanto na historiografia,no romance, no conto, na fábula etc., quanto na crônica, o queviabiliza a utilização do termo para designar esses diferentesprocessos de registro de eventos e temas.

Em síntese, percebe-se o papel exercido por trabalhos queprivilegiem estudos sobre a crônica, na medida em que lançar luzessobre esse gênero pode ser encarada como uma das possibilidadesde revisão do cânone literário, devido à condição marginal a que foisubmetida a crônica ao longo do registro feito por historiadores ecríticos literários. Entretanto, tal erro talvez não seja fruto apenasde uma atitude preconceituosa, pois é com o aumento da publicaçãoem livro — e a dedicação cada vez maior de alguns escritores —que se afirma o estudo crítico da crônica, fato que se consolidaprincipalmente a partir da metade do século XX. Contudo, há quese destacar que o “livro alarga consideravelmente o campo dedivulgação, mas é enganoso supor que o livro é que dá qualificaçãodefinitiva a qualquer escrito” (COUTINHO, 1986: 135). Dessa forma, arelação entre crônica e livro não sugere que sua permanência estejagarantida com a reunião em antologias. Sua permanência está

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inegavelmente ligada às suas qualidades literárias, que não sealteram quando muda o suporte. O que se procura enfatizar é queo trabalho de análise intertextual, um dos possíveis caminhos aserem adotados pela crítica literária, é facilitado quando dapublicação em livro.

Notas

1. De acordo com a mitologia clássica, “o deus Cronos, filho de Urano (o Céu)e de Gaia (a Terra), destronou o pai e casou com a própria irmã, Réia. Uranoe Gaia, conhecedores do futuro, predisseram-lhe, então, que ele seria, porsua vez, destronado por um dos filhos que gerasse. Para evitar a concretizaçãoda profecia, Cronos passou a devorar todos os filhos nascidos de sua uniãocom Réia. Até que esta, grávida mais uma vez, conseguiu enganar o marido,dando-lhe a comer uma pedra em vez da criança recém-nascida. E, assim, aprofecia realizou-se: Zeus, o último da prole divina, conseguindo sobreviver,deu a Cronos uma droga que o fez vomitar todos os filhos que havia devorado.E liderou uma guerra contra o pai, que acabou sendo derrotado por ele e osirmãos” (LAURITO, 1993: 10). Assim, a lenda de Cronos pode ser lida comoalegoria: a de que o tempo, em sua passagem fatal, engole a todos, tanto oscriadores como suas criaturas.

2. A presente tipologia de categorias foi proposta por Afrânio Coutinho. Oautor ressalta, no entanto, que, devido à flexibilidade do gênero, “essa tentativade classificação não implica o reconhecimento de uma separação estanqueentre os vários tipos, os quais, na realidade, se encontram freqüentementefundindo traços de uns e outros” (1986: 133). Em outra passagem, o críticoenfatiza ainda que “a estrutura da crônica é uma desestrutura; a ambigüidadeé sua lei (...) [já que] os gêneros literários não se excluem; incluem-se”(1986: 271).

3. Afrânio Coutinho assinala em Machado de Assis uma articulação entre ofato jornalístico e a invenção literária, de tal maneira que “sua fidelidade àtécnica realista fazia com que ele mergulhasse no contemporâneo a fim decolher o material da vida que, atingindo o inconsciente, se transformaria numsímbolo de arte. Suas crônicas documentaram esse fato: muitos assuntosobservados no cotidiano, recolhidos na leitura do ‘fait divers’ dos jornais, iriamservir-lhe como material para crônicas, depois desdobrados em contos ouintroduzidos nos romances, perdendo-se no caminho como realidade eganhando em intangível artístico, através de diversos estratos de significado”(In: Introdução à literatura no Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1978, p. 211). Ainda sobre estes traços característicos nas crônicas de Machadode Assis, consultar: GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Trad. deSônia Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

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CAPÍTULO II

FORMAS E EFEITOS DA COMICIDADE

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Ride, ridentes!Derride, derridentes!Risonhai aos risos,rimente risandai!Derride sorrimente!Risos sobrerrisos,risadas de sorrideiros risores!Hílare esrir,risos de sobrerridores riseiros!Sorrisonhos, risonhos,Sorride, ridiculai, risando, risantes,Hilariando, riandoRide, ridentes!Derride, derridentes!

Vladimir Khlébnikov1

Nas discussões sobre a comicidade um dos enfoquesobrigatórios deve ser dirigido ao produto por ela criado: o riso. Umade suas especificidades reside no fato de que o riso ensina pelodivertimento, advertindo sobre as dificuldades impostas àquelesque pretendem, com certa freqüência, eternizar significados sobredeterminadas idéias e conceitos.

Segundo Luis Fernando Verissimo, a principal função dacomicidade “é manter viva uma idéia de irreverência (...) de quenada deve ser reverenciado, de que nada é sagrado, tudo pode serquestionado, criticado, e, sendo criticado, pode ser melhorado”(Citado em WEINHARDT, 1985: 17). Falar sobre comicidade é discutirquestões relacionadas às formas de construção de discursos quevisam, primordialmente, desestabilizar as certezas e reivindicarum lugar no espaço sociocultural por meio do riso. Nesse sentido,serão comentadas as reflexões de autores considerados expoentesda renovação dos estudos sobre “um dos mais fluidos fenômenos daarte” (BOSI, 1988: 189).

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ANATOMIA DA COMICIDADE

É preciso diferenciar os conceitos de comicidade e humor, jáque este – etimologicamente ligado ao termo latino humore – possuiacepções dicionarizadas que remetem a diferentes campos doconhecimento: para a Biologia, humor é qualquer líquido que atuenormalmente no corpo, principalmente dos vertebrados (bílis,sangue, linfa etc.); para a Medicina, humor é a substância mórbida,líquida, formada no corpo doente, como, por exemplo, o pus; emoutra acepção, a palavra designa ainda a porção líquida do globoocular. Além disso, quando ligado ao riso, o conceito está geralmenterelacionado à disposição de ânimo (bom ou mau humor) inerenteàquelas pessoas que apreciam ou expressam coisas engraçadas(MICHAELIS, 1998: 1117). Portanto, ao adotar preferencialmente o termocomicidade para estudar as atividades humanas que visamdespertar o riso, procura-se delimitar o tema no âmbito dasrealizações artísticas.

Destaca-se também o fato de que a comicidade, com certafreqüência, está intimamente ligada ao palco, compreendido comoespaço demarcado socialmente para a apresentação de cenasengraçadas. O teatro e a encenação de comédias, as cortesmedievais e modernas e as apresentações dos bufões (os chamados“bobos da corte”), os espetáculos circenses e os malabarismos eperipécias risíveis efetuadas pelos palhaços, ou ainda, maisrecentemente, alguns programas televisivos. Estes são os espaçosnos quais a comicidade aparece como elemento principal. Isto paraafirmar que a comicidade sempre esteve presente na vida cotidiana,com mais ênfase nas piadas, cuja difusão fez do riso um expressivofator de divulgação de valores culturais, notadamente aquelesligados à cultura popular. Apesar de estabelecer relações com essese outros espaços, a atenção estará direcionada aos recursos usadospara provocar o riso nas produções literárias.

Desde a Antigüidade até os dias de hoje, vários são osestudiosos que dedicam parte considerável de suas reflexões aodomínio das manifestações cômicas. Já no século IV a. C., a análisede Aristóteles faz o registro de um de seus aspectos mais evidentes:de todos os seres vivos, somente ao ser humano é dada a faculdadede rir. Dessa forma, “a capacidade de rir (excluído evidentemente o

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riso de pura alegria física das crianças) está ligada de perto àcapacidade de pensar, privativa do homem, o único animal racional”(PAES, 1993: 03).

Além disso, é de Aristóteles a formulação segundo a qual apercepção do ridículo, como causa do riso, é o elemento essencialda comédia. Ainda de acordo com o filósofo grego, contrariamenteà tragédia, na comédia ocorreria a passagem da infelicidade para afelicidade. As idéias aristotélicas parecem estar relacionadas ao“final feliz” apresentado em muitas comédias tradicionais atravésda punição e/ou conversão dos culpados em contraposição aotriunfo do amor, da pureza dos sentimentos e da virtude (Cf.ARISTÓTELES, 1982: 246-247).

No final do século XIX, em seu famoso ensaio intitulado Lerire (publicado pela primeira vez no ano de 1899), o filósofo francêsHenri Bergson (1859-1941) caracteriza o riso como manifestaçãohumana, insensível e social: é o homem que se apresenta comoespetáculo ao próprio homem; para despertar o riso é necessária“uma certa anestesia momentânea do coração”; o riso só adquiresentido quando relacionado aos costumes e valores próprios dedeterminada época ou grupo social (Cf. BERGSON, 1987: 13-14).

Para Bergson, a condição primordial para a existência do risoreside na oposição estabelecida entre o mecânico e o vivo: tudo oque é rígido, enrijecido, estereotipado e automático entra emcontradição com o que é elástico, movente, individual e irrepetível,provocando o riso (CF. BERGSON, 1987: 15-18). Os comentários desseautor revelam aspectos relacionados aos fenômenos risíveis,principalmente no que se refere às oposições utilizadas paraprovocar o riso, entendidos como desvios com relação adeterminadas normas. Por exemplo, a contradição entre aparênciae essência (um palhaço que chora); entre o ser e o dever ser (ohipócrita que prega determinadas ações, mas que não adota asmesmas em sua vida cotidiana); entre a expectativa e sua realização(como alguém que vá a uma “padaria” e não encontre pão paracomprar). Essas contradições, quando manipuladas artisticamente,podem servir de instrumentos para a instauração de cenas quedespertem o riso no leitor.

Enfatizando também a importância da revelação dascontradições, o escritor italiano Luigi Pirandello (1867-1936), num

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ensaio de 1920 intitulado L’umorismo, afirma que o riso despertadopelo humor está relacionado ao sentimento do contrário, produzidoprincipalmente pela atividade de reflexão sobre as diversassimulações da luta pela vida, percebidas pela aguda intuição doescritor.

Segundo o autor, cabe ao humorista encarnar a atitude dedemonstrar os contrastes entre o ser e o parecer, para evidenciaras fissuras de comportamento e a impotência da condição humana.Para tanto, o autor chama a atenção para o fato de que talprocedimento deva ser realizado de forma súbita, rapidamente, sobpena de atenuar, com a inoportuna demora, o berrante dascontradições (Cf. PIRANDELLO, 1968: 18-26).

Outro estudioso dos elementos da comicidade é SigmundFreud (1856-1939), que fundamenta sua análise no caráter liberador,frente às sanções sociais, presente em modalidades risíveis comoo humor, o cômico e o chiste. A perspectiva psicanalítica freudianarelaciona, com certa freqüência, essas modalidades com asexualidade e a obscenidade, procurando evidenciar o papeldesempenhado por tais fenômenos no reconhecimento e nasuperação de tabus encontrados na sociedade (Cf. FREUD, 1969: 242-247).

Fundamentais são também as considerações tecidas pelopensador russo Vladimir Propp (1895-1970), em sua obra intituladaComicidade e riso (cuja primeira edição é de 1976). O autor conduzsua pesquisa com o propósito de estabelecer uma tipologia docômico, tendo como suporte numerosos e variados exemplos decomicidade na literatura, no folclore, no teatro, no cinema, na vidadiária, além de realizar uma revisão da teoria produzida sobre oassunto.

Propp enfatiza a necessidade do trabalho empírico. Suasteorizações partem sempre de um exemplo retirado de algumaprodução artística. Fornecendo definições de diversos aspectos dacomicidade, o autor sugere uma espécie de estética do riso,elencando as categorias que podem ser usadas como recursos parasuscitar o efeito cômico. Entre os autores recorrentes em estudossobre manifestações ligadas à comicidade, os mais significativosparecem ser Vladimir Propp e Henri Bergson. O privilégio dado aquiàs análises efetuadas por Propp não indica necessariamente

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desmerecimento do trabalho de Bergson; o que ocorre é que o autorrusso, em muitas de suas incursões críticas, realiza o estudo defenômenos risíveis relacionados a empreendimentos artísticosproduzidos no decorrer do século XX, procedimento inacessívelpara Bergson, posto que a divulgação de sua obra ocorre no finaldo século XIX. Por tal motivo, privilegia-se as teorizações de VladimirPropp, apesar de reconhecer no autor certas limitações oriundasda defesa, em alguns casos bastante engajada, do uso do riso comoforma de contribuir para a “causa socialista” em voga em seu paísquando da elaboração de sua pesquisa.

Entre os recursos utilizados para provocar o riso, destacam-se a paródia, o exagero cômico, e os instrumentos lingüísticos dacomicidade. Dessa maneira, passam a ser apresentadas algumasconsiderações sobre esses mecanismos de instauração dacomicidade nos diversos textos literários, utilizando, em algunscasos, exemplos inseridos no contexto da literatura e da culturabrasileiras, bem como orientações de outros teóricos sobre o tema.

Intertexto cômico: aproximações e deslocamentos

Reconhecido como um dos elementos mais importantes dacomicidade nos vários registros de discurso, a paródia pode sercompreendida como um procedimento que pretende encarnar umaatitude depreciativa com relação ao texto citado, sendo que esteserve de veículo para o processo de ridicularização em um textonovo. Por exemplo, o provérbio “O trabalho dignifica o homem” éuma expressão usualmente associada à valorização do trabalhohumano. Mas quando esta expressão é alterada para “O trabalhodanifica o homem” ela carrega um sentido pejorativo. Esteprocedimento busca revelar as circunstâncias nas quais o trabalhoé encarado de forma diversa, e por isso o verbo “dignificar” passapara “danificar” pelo emprego da paronomásia (palavras com sonssemelhantes, mas sentidos diferentes).

A alteração, em termos vocabulares, é pequena. No entanto,em termos de sentido, ela se coloca opostamente à versão anterior.Ocorre aí o que se pode chamar de procedimento paródico, pois,usando como recurso o intertexto, é estabelecida a ruptura com otexto anterior, por meio do que esta expressão passa a assumir umsentido completamente distinto.

formas e efeitos da comicidade

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As origens do termo paródia estão ligadas à música. A palavraderiva do grego para-ode que significa uma ode que perverte osentido de outra ode, o que implica na idéia de contracanto (SANT’ANNA,1985: 12). Nas palavras de Vladimir Propp, a paródia consiste na“imitação das características exteriores de um fenômeno qualquerde vida (das maneiras de uma pessoa, dos procedimentos artísticosetc.), de modo a ocultar ou negar o sentido interior daquilo que ésubmetido à parodização” (1992: 84).

As reflexões do autor russo evidenciam que é possível, a rigor,parodiar vários elementos: “os movimentos e as ações de umapessoa, seus gestos, o andar, a mímica, a fala, os hábitos de suaprofissão e o jargão profissional”. Além disso, é possível parodiar“não só uma pessoa, mas também o que é criado por ela no campodo mundo material”. Assim, o processo paródico é compreendidocomo “um dos instrumentos mais poderosos de sátira social (...)[pois] revela a fragilidade interior do que é parodiado” (PROPP, 1992:85-87).

Outro exemplo de parodização, agora mais restrito ao campoliterário, é o texto de Millôr Fernandes, que usa como intertexto ofamoso poema de Manuel Bandeira “Vou me embora pra Pasárgada”.O autor inicia a paródia já no título: “Vou me embora de Pasárgada”:

Que o Manuel Bandeira me perdoe,mas...Vou-me embora de Pasárgada!Sou inimigo do rei.Não tenho nada que eu queronão tenho e nunca tereiVou-me embora de PasárgadaAqui eu não sou feliz.A existência é tão duraas elites tão senisque Joana, a louca da Espanhaainda é mais coerentedo que os donos do país.

A gente só faz ginásticanos velhos trens da Central.Se quer comer todo diaa polícia baixa o pau.E como já estou cansadosem esperança num paísem que tudo nos revoltajá comprei ida sem voltapra outro qualquer lugar.

Aqui não quero ficar.Pasárgada já não tem nadanem mesmo recordação.Nem a fome e a doençaimpedem a concepção.Telefone não telefona.A droga é falsificadae prostitutas aidéticasse fingem de namoradas.

E se hoje acordei alegrenão pensem que eu vouficar.Nosso presente já eranosso passado já foi.Dou boiada pra ir emborapra ficar só dou um boi.Sou inimigo do rei.Não tenho nada na vidanão tenho e nunca terei.Vou-me embora dePasárgada.

(FERNANDES, Millôr. Millôr definitivo:a bíblia do caos. Porto Alegre: L&PM,1994, p. 353).

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Para entender melhor o processo paródico, seguem abaixotrechos da versão original:

Vou-me embora pra Pasárgada.Lá sou amigo do reiLá tenho a mulher que eu queroNa cama que escolherei.---------------------------------------------------

E como farei ginásticaAndarei de bicicletaMontarei em burro braboSubirei no pau-de-seboTomarei banhos de mar!E quando estiver cansadoDeito na beira do rioMando chamar a mãe-d’águaPra me contar as históriasQue no tempo de eu meninoRosa vinha me contar.

Na versão original, Pasárgada pode ser compreendida comoespaço de libertação pelo sonho, de transporte para o futuroimaginário — ou para o passado-infância — dos desejos preservadosna memória. O que a Pasárgada de Manuel Bandeira possui deutópica, que não existe em lugar algum, no texto de MillôrFernandes assume a cara do Brasil com as referências ao contextobrasileiro, tais como: “A gente só faz ginástica/nos velhos trens daCentral”.

Pasárgada, lugar paradisíaco e imaginário em Bandeira,concretiza-se em lugar decadente na paródia de Millôr, pois todasas vantagens da versão original são contrapostas a vários problemasencontrados no cotidiano brasileiro, já que “Nem a fome e a doença/impedem a concepção/Telefone não telefona/A droga é falsificada/e prostitutas aidéticas/se fingem de namoradas”. A inversão doprovérbio “Dou um boi pra não entrar numa briga, e uma boiadapra não sair” leva ao riso, porque na Pasárgada parodiada “Douboiada pra ir embora/pra ficar só dou um boi”.

Essa transposição da Pasárgada imaginária para a realidadebrasileira encontra sustentação em uma atitude que procuraquestionar aquelas imagens — não necessariamente as sugeridaspelo poema de Manuel Bandeira; por isso, o pedido de desculpasno início do texto — que fazem do Brasil um lugar paradisíaco,decorrente de todo um conjunto de textos e idéias que caracterizam

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Em Pasárgada tem tudoÉ outra civilizaçãoTem um processo seguroDe impedir a concepçãoTem telefone automáticoTem alcalóide à vontadeTem prostitutas bonitasPara a gente namorar.

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(BANDEIRA, Manuel. Seleta em prosa everso. 4. ed. Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1986, pp. 146-148).

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o país como espaço edênico. Ocorre, portanto, uma ruptura comrelação a estas imagens anteriores, o que evidencia um processode descontinuidade alicerçado na parodização presente nareelaboração de Millôr Fernandes: aparecem, ao mesmo tempo, arepetição e a negação dessas imagens.

É ocioso dizer que a paródia não é uma invenção recente jáque podem ser encontrados exemplos significativos de seu uso naarte tanto na Antigüidade quanto na Idade Média. O que ocorre éque, a partir da segunda metade do século XIX, com os movimentosrenovadores da arte ocidental — que culminariam, no contextobrasileiro, nas propostas modernistas de 1922 —, o emprego daparódia foi intensificado na arte, de tal maneira que passou a serum dos objetos de estudo privilegiados por parte da crítica.

Paródia, paráfrase, apropriação, estilização e pastiche podemser compreendidos como recursos usados pelos artistas parainscrever a alteridade em suas obras. Contudo, na paródia “seintroduz naquela outra fala uma intenção que se opõe diretamenteà original (...). É possível parodiar o estudo de um outro em direçõesdiversas, aí introduzindo acentos novos, embora só se possa estilizá-lo, de fato, em uma única direção – a que ele próprio propusera”(BAKHTIN apud SANT’ANNA, 1985: 14).

Como forma de auxiliar a compreensão do procedimentoparódico, pode-se lançar mão também da paráfrase que, aocontrário, faz o elogio do “texto-fonte”, numa espécie de plágioautorizado. Exemplo de paráfrase é a estrofe do Hino NacionalBrasileiro que faz referência à “Canção do Exílio”, famoso poema deGonçalves Dias2, mais especificamente a um dos trechos maiscarregados pelos tons ufanistas: “Nosso céu tem mais estrelas/Nossas várzeas têm mais flores/Nossos bosques têm mais vida/Nossa vida mais amores” (DIAS, 1997: 05).

Joaquim Osório Duque Estrada, autor da letra do HinoNacional, parafraseia o poema da seguinte forma: “Do que a terramais garrida/ Teus risonhos, lindos campos têm mais flores/‘Nossos bosques têm mais vida’/ ‘Nossa vida’ no teu seio ‘maisamores’”. O que ocorre na citação – o trecho é, inclusive, marcadopor aspas – é a concordância com relação às idéias do autor original,o que sugere que a paráfrase opera com uma certa continuidadeestilística, característica que se opõe à ruptura provocada pela

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paródia. Por tal motivo, a paráfrase, mais do que um efeito retórico,pode ser definida como “(...) efeito ideológico de continuidade deum pensamento, fé ou procedimento estético” (SANT’ANNA, 1985: 22).

Para muitos lingüistas, a paráfrase pode ser associada àtradução caso esta seja compreendida não apenas como simplesconversão da obra de um autor de uma língua para outra, mastambém como processo de interpretação e transcriação com baseem um texto anterior. Esta associação procura ressaltar aimportância das idéias do tradutor quando da passagem de umtexto para outra língua, o que contraria a idéia de simples estilizaçãorealizada no texto traduzido. Contudo, deve-se reservar o direitoaos leitores de suspeitar da tradução (traição?) de alguns autores,problemas já apontados exaustivamente por inúmeros estudiosos.

Muito associado à paródia está também o conceito depastiche. No entanto, os dois procedimentos apresentam diferenças,sobretudo porque, com o pastiche, é realizado um trabalho maissimplório de reunir pedaços de diferentes partes de obra de um oude vários artistas (Cf. SANT’ANNA, 1985: 13).

De acordo com Linda Hutcheon, a paródia é umarepresentação que, ao contrário do pastiche e da paráfrase, mostraseu deslocamento, distinção e discordância em relação ao textooriginal, mas nem sempre ridicularizando.3 Para Hutcheon, aparódia é uma síntese bitextual: ao mesmo tempo em que acolhe atradição para continuá-la, redefine-a e modifica seus significados,exibindo elementos que haviam sido descartados ou poucodestacados por esta tradição.

A definição da autora é sustentada pela diversidade deacepções expressas pelo radical “para” (como visto anteriormente,a palavra paródia deriva do grego “para-ode”): além de “contra”, otermo pode assumir o sentido de “ao lado de”. Por estar ligada àprimeira acepção, a paródia, na definição corrente, exige a presençado texto parodiado e sua conseqüente ridicularização. Na definiçãode Linda Hutcheon, sem descartar elementos consideradosimportantes da definição corrente, aparecem referências a casosem que o procedimento paródico não lida necessariamente comesses recursos, já que “o seu efeito é o deslocamento do textooriginal, invertendo ou deformando o sentido, mas nem sempre àscustas do texto parodiado” (1985: 17).

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Apesar dessas divergências, o que parece destacar-se comodenominador comum das várias formas de inserção da fala do outroem determinados textos é a noção de intertextualidade encontradaem recursos artísticos como a estilização, a paráfrase, a apropriação,o pastiche e a paródia. Isto revela que, quanto maior for o desvioefetuado pelo intertexto, maior é a inversão de sentido provocadacom relação ao texto-fonte. Por isso, a paródia se encontra numdos extremos desse deslocamento, pois realiza de forma mais radicalo processo de distanciamento com o texto anterior. Uma das formasde assegurar o distanciamento reside na alteração do texto-fontepela inclusão de elementos cômicos na reelaboração paródica.

Outras formas de instauração da comicidade

Além da paródia, outro recurso bastante usado para instaurara comicidade nos textos é o exagero. Para ser cômico, o exageronecessita desnudar um defeito, de tal maneira que “se este nãoexiste, o exagero já não se enquadra no domínio da comicidade. Épossível demonstrá-lo através do exame das três formasfundamentais do exagero: a caricatura, a hipérbole e o grotesco”(PROPP, 1992: 88).

Assim, uma forma de exagero cômico consiste nacaricaturização, pela qual “um pormenor, um detalhe (...) éexagerado de modo a atrair para si uma atenção exclusiva” (PROPP,1992: 89). Entendido dessa forma, o exagero obscurece as demaiscaracterísticas de quem ou aquilo que é submetido àcaricaturização. O exagero, nesses casos, pode ser físico ou ligadoa fenômenos espirituais, a partir do que a propriedade fundamentalda “representação cômica, caricatural, de um caráter está em tomaruma particularidade qualquer da pessoa e em representá-la comoúnica, ou seja, exagerá-la” (PROPP, 1992: 89). Estas consideraçõesconvergem para as de Henri Bergson, para quem “a arte docaricaturista consiste em captar um pormenor, às vezesimperceptível, e torná-lo evidente a todos através da ampliação desuas dimensões” (1987: 87).

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Exemplo desse fenômeno pode ser diagnosticado em muitoscaricaturistas que publicam trabalhos em jornais, principalmentequando são abordados fatos e personagens ligados à políticapartidária. Esses personagens geralmente aparecem com algumdetalhe realçado, o que desperta o riso (as sobrancelhas de LeonelBrizola; o “topete” de Itamar Franco etc.).

Com relação à hipérbole pode-se constatar que ela seapresenta como uma variedade da caricatura, pois enquanto nestaocorre o exagero de um pormenor, naquela o exagero se ampliapara dar conta do todo. A hipérbole, como instrumento dedepreciação, é ridícula somente quando ressalta as característicasnegativas e não as positivas.

A forma extrema do exagero é o grotesco: ele atinge taisdimensões que aquilo que é aumentado já se transforma emmonstruoso. Por extrapolar os limites da realidade, o grotesco fazfronteira com o terrível, principalmente ao conferir caráter fantásticoa uma determinada imagem ou obra. Nas palavras de Propp,

O grotesco é a forma de comicidade preferida pela arte populardesde a Antigüidade. As máscaras da comédia grega antiga sãogrotescas. O descomedimento violento na comédia contrapõe-seao comedimento e ao majestoso na tragédia. Porém o exagero nãoé a característica única do grotesco. O grotesco nos faz sair doslimites de um mundo realmente possível. Assim, o conto de GógolO nariz constitui pela trama um caso de grotesco: um nariz passeialivremente pela rua (...). O grotesco é cômico quando (...) encobreo princípio espiritual e revela os defeitos. Ele se torna terrívelquando o princípio espiritual se anula no homem. O grotesco épossível apenas na arte e impossível na vida. Sua condição sinequa non é uma certa relação estética com os horrores representados(1992: 92).

Relativamente aos instrumentos lingüísticos da comicidadeé preciso enfatizar que a língua constitui um arsenal muito rico deinstrumentos de comicidade e de zombaria. Desse arsenal fazemparte os trocadilhos, os paradoxos, as “tiradas” de todo tipo a elesrelacionadas (chistes, pilhérias etc.), bem como algumas formasde ironia.

Entre estes instrumentos, o trocadilho consisteessencialmente no uso do sentido próprio de uma palavra, em lugarde seu sentido figurado. Em outras palavras, existem termos que

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possuem dois ou mais significados; alguns significados têm umsentido amplo, de certo modo geral, abstrato, e outros os têm maisrestrito, concreto, aplicado. Ocorre assim um jogo de palavrasquando um interlocutor compreende a palavra em seu sentidoamplo ou geral e o outro substitui esse significado por aquele maisrestrito; com isso ele suscita o riso, na medida em que anula oargumento do interlocutor e mostra sua inconsistência.

Fazendo uso das propriedades polissêmicas das palavras, notrocadilho o riso é despertado quando o significado mais geral dapalavra passa a ser substituído pelo significado restrito. Contudo,esse tipo de comicidade “não pode ser nem moral nem imoral em simesmo: tudo depende do modo como ele é empregado, do alvo queele visa. O trocadilho dirigido contra os aspectos negativos da vidatorna-se uma arma de sátira afiada e precisa” (PROPP, 1992: 123).

O jogo com o significado das palavras ocorre também pelouso dos paradoxos. Estes se constituem em sentenças nas quais opredicado contradiz o sujeito ou a definição não corresponde aoque passa a ser definido. Em outros termos, no paradoxo, conceitosque se excluem mutuamente são reunidos, apesar de suaincompatibilidade. Esse aspecto pode ser contraposto às artimanhasusadas pelo texto irônico, na medida em que, neste, expressa-secom as palavras um conceito, mas subentende-se (sem expressá-lo por palavras) um outro, contrário.

Para delinear a maneira como é instaurada a ironia nos textostorna-se relevante a definição do que seja o ato de linguagem. Estepode ser compreendido como um conjunto de elementosinterdependentes: um indivíduo real (sujeito comunicante) que criaum sujeito enunciador (sujeito da palavra), responsável pelos efeitosque o uso da linguagem pode ter sobre o sujeito interpretante (leitorou ouvinte). Este sujeito enunciador, por sua vez, cria/fala/escrevepara um sujeito interpretante (destinatário) ideal. O objetivo dosujeito comunicante-enunciador é fazer com que as interpretaçõesdesse destinatário ideal coincidam com as do destinatário real,entendido como sujeito interpretante real, sendo portanto exteriorao texto, ao circuito interno da palavra. Finalmente, o texto aparececomo representação do mundo real (Cf. BRAIT, 1996: 55-62).

Portanto, quem escolhe a ironia como meio escrito paraargumentar deve preocupar-se primordialmente com o modo pelo

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qual ela pode ser construída, ou seja, o “ironista” deve dispor deestratégias que instaurem a ironia em seus enunciados. Dessamaneira, o sujeito comunicante pensa “não-X”; o sujeito enunciadordiz “X” ao destinatário ideal. O sujeito enunciador instaura no textopistas para que o destinatário ideal perceba que sua enunciaçãonão é séria ou direta, ou que “X” é igual a “não-X”. Por meio desseprocesso, a ironia pode apresentar elementos cômicos, sobretudoquando revela alegoricamente os defeitos daqueles ou daquilo deque se fala. O texto “Alerta Irmão Branco”, de autoria do escritorFlávio José Cardozo, é um bom exemplo do uso da ironia. Parachamar a atenção para o extermínio dos índios brasileiros, o autordo texto inverte a perspectiva ao alertar, ironicamente, o “aumento”da população indígena. Um dos trechos da narrativa defende umguarda florestal da acusação de estupro de uma índia. As pistasdeixadas no texto alertam o leitor sobre a leitura a ser feita.

Uma menor, a caminho da escola, foi vítima de uma tentativa desedução e agressão. O acusado é um guarda florestal e o comentárioque se impõe à inteligência é logo este: indecorosa e pérfida mentiradessa menor! Então um homem branco, com todos os séculos decivilização que traz nas costas, ia descer à animalidade de abusarduma indiazinha? Não gosto de lidar com conjeturas, masconhecendo como conheço o nível da depuração moral a que nós,todos os brancos, chegamos no correr da História, vejo com clarezao que realmente aconteceu. Aconteceu que estava o guardacumprindo o seu trabalho quando dele se aproximou a citada moça.Íntegro por natureza, o homem nem sonhava que pudesse ocorrerno mundo aquilo que acabou ocorrendo ali mesmo naquele trechoda mata: de repente, a mulherzinha atirou-se sobre ele, impetuosa,com o transparente propósito de desonrá-lo. Ele defendeu-se comgalhardia, mas a pequena fera insistiu no assalto. Parecia tomadapelo mais furioso e lascivo dos demônios. De tal modo que acabounão restando ao agredido senão usar um pouco de sua humilhadaforça varonil. A virtude às vezes tem de apelar para a energia eentão o virtuoso recebe a pecha de mau, por vingança, mas isso éda vida. Foi o que houve. (CARDOZO, 1982: 63).

A utilização da estrutura fônica da língua pode ser usadatambém para criar elementos de comicidade no texto, o que significaque a comicidade “se realiza desviando-se a atenção do conteúdodo discurso para as formas exteriores de sua expressão. Com issoa língua perde o significado (...). A perda de sentido do discursorealiza-se intensificando a atenção sobre o processo, a expensasde seu conteúdo” (PROPP, 1992: 126). Algumas crônicas de Luis

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Fernando Verissimo são verdadeiros ensaios sobre o jogo insólitoproporcionado pela sonoridade de algumas palavras. Exemplo dissopode ser descrito no texto intitulado “Defenestração”:

Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo,devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoasdeveriam criar falácias em todas as suas variedades. A FaláciaAmazônica. A misteriosa Falácia Negra. Hermeneuta deveria ser omembro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eleschegassem, tudo se complicaria.

- Os hermeneutas estão chegando! - Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada.-------------------------------------------------------------------Traquinagem devia ser uma peça mecânica. - Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.Plúmbeo devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água

(1984: 29).

O narrador investiga as possibilidades de mudança no sentidode alguns termos — suscitando efeitos risíveis marcados pelacomparação inusitada — quando analisados especificamente comrelação ao aspecto fônico.

Ao domínio da comicidade, realizada a partir de meioslingüísticos, pertence ainda aquela que surge do emprego dos maisvariados jargões profissionais ou de classes sociais. Nesses casos,a comicidade não é apenas lingüística, pois “um discurso estranhoou insólito distingue uma pessoa das outras, tal como o fazemuma roupa esquisita ou um jeito todo especial” (PROPP, 1992: 128).

Exemplos desse tipo de procedimento podem ser encontradosna utilização cômica da língua do sábio, da tecnologia profissional,da terminologia científica, entre outras. Esse é o tipo de recurso,descrito em forma de diálogo, manipulado por Luis FernandoVerissimo para ridicularizar alguns termos ligados ao “Economês”:

– Você no momento aconselharia que tipo de aplicação?– Bom, depende do Jeld pretendido, do throwback e do ciclo

refratário. Na faixa de papéis topmarket, ou o que nós chamamosde “topi-marque”, o throwback recai sobre o repasse e não sobre orelease, entende? (1978: 89).

O que o autor procura tornar risível é o fato de que palavrascomo “Jeld”, “throwback”, “ciclo refratário”, entre outras presentes

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no texto, além de serem índice de um transplante equivocado determos estrangeiros (sem uma efetiva tradução para o contextobrasileiro: “ou o que nós chamamos de ‘topi-marque’”), aparecementão como formas verbais altamente especializadas. Estas formasprovocam reações de estranhamento em interlocutores desavisadosao serem retiradas de seu espaço específico de uso, no caso, o“mercado de investimos financeiros”.

DEGRAUS DO RISO

Outra das especificidades do cômico está ligada às diversasgradações possíveis do movimento realizado pelos lábios humanosquando da manifestação risível, podendo este ir desde o sorrisofraco até o estouro fragoroso de uma risada desenfreada. Essasgradações, em certa medida, podem ser relacionadas aos váriostipos de riso encontrados junto aos grupos sociais. Entre estestipos destacam-se: o riso bom, o riso maldoso, o riso ritual e o risode zombaria.

O riso bom será a primeira exploração dessas gradações. Essetipo de riso pode ser caracterizado como aquele em que não aparecea intenção derrisória, ou seja, o escárnio, a mofa ou a atitude dedesprezo, de tal maneira que “os pequenos defeitos daqueles quenós amamos só embaçam seus lados positivos e atraentes. Se estesdefeitos existem, nós os desculpamos de bom grado” (PROPP, 1992:159). Esse seria então um tipo de riso atenuado e inofensivo, poiso autor se encontra do lado do objeto do riso.

Nessa acepção, o riso se enquadra naquelas manifestaçõespróprias do humor, na medida em que este seja entendido como“aquela disposição de espírito que em nossas relações com osoutros, pela manifestação exterior de pequenos defeitos, nos deixaentrever uma natureza internamente positiva” (PROPP, 1992: 152). Oriso bom pode ser adjetivado ainda como riso alegre, já que “estetipo de riso elimina qualquer emoção negativa e a torna impossível;ele apaga a cólera e a ira, vence a perturbação e eleva as forçasvitais, o desejo de viver e de tomar parte na vida” (PROPP, 1992: 163).

De forma diversa do riso bom, o riso maldoso muitas vezesconcentra suas forças em defeitos falsos (imaginados ou inventados)

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levando à maledicência. De acordo com Propp, “deste riso, em geral,riem as pessoas que não acreditam em nenhum impulso nobre,que vêem em todo lugar a falsidade e a hipocrisia, os misantroposque não compreendem como por trás das manifestações exterioresdas boas ações haja realmente alguma louvável motivação. Nessasmotivações eles não acreditam” (1992: 159).

Interligado ao riso maldoso, está o riso cínico, aquele que seprende ao prazer pela “desgraça dos outros”: “a infelicidade alheiapode levar um ser humano árido, incapaz de entender o sofrimentodos outros, a um riso que tem as características do cinismo. Mesmoo simples riso que zomba não está desprovido de um matiz demaldade, mas não passa de matiz” (1992: 160-161).

Além do riso bom e do riso maldoso, pode ser enfocado aindao riso ritual, comumente destacado quando da análise dos cultosrelacionados à fertilidade da terra, à iniciação sexual, ao parto, àressurreição dos mortos, entre outros elementos cerimoniais. Portais razões, esta forma de riso está relacionada ao que geralmenteé identificado como a gargalhada.

Carnaval e riso

O riso ritual foi estudado por Mikhail Bakhtin (1895-1975)num livro fundamental para a compreensão das relações entre aobra rabelaisiana e a cultura popular de seu tempo: A cultura popularna Idade Média e no Renascimento: o contexto de Francois Rabelais.Com base nas palavras de Rabelais – eternizadas em obras de críticasatírica dos costumes como Pantagruel (1532) e Gargântua (1534) –a análise bakhtiniana envereda para o estudo das fontes populares,apreendidas como chave para a compreensão dessas obras, dandodestaque ao carnaval. Este seria o mito e o rito através dos quaisconfluem a inversão brincalhona dos valores e das hierarquiasconstituídas; a exaltação da fertilidade e da abundância; o sentidocósmico do fluir destruidor e regenerador do tempo, representadopela encenação sincrética de imagens ambivalentes que aproximam,reúnem e amalgamam o sagrado e o profano, a juventude e a velhice,o sublime e o desprezível, a sabedoria e a tolice, o grande e opequeno, a morte e o nascimento etc.

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De acordo com Bakhtin, os temas carnavalescos da culturapopular, representada por artesãos e camponeses, assumemcaracterísticas tais que revelam uma complementaridade entreelementos aparentemente opostos, o que evidencia uma infraçãoa tudo o que é comum e usual. A concepção de carnaval bakhtinianaprocura captar a essência dessa festa popular a partir dainvestigação de suas origens e de seu apogeu. Para tanto, o autorirá enfocar aquelas características carnavalescas presentes na IdadeMédia e no Renascimento – com raízes na Antigüidade – quando ocarnaval se apresenta como uma visão do mundo, muito mais vastae popular, de um passado remoto, ao contrário do que é comumenteaceito nos dias de hoje: o carnaval como simples espetáculoteatralizado, como festejo de mascarados ou como festa vulgar:

O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se àcultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro dasua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicascarnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos,gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias,a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem umaunidade de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômicapopular, principalmente da cultura carnavalesca, una e indivisível(Bakhtin, 1996: 03).

A percepção carnavalesca estaria, dessa maneira, inseridanuma esfera de relacionamentos livres e íntimos sustentados pelaalegria nas mudanças e numa alegre relatividade, o que se opõe aosério oficial que é moroso, monológico e dogmático, realizado,sobretudo, pelo medo, inimigo da mudança, pois sinaliza para aabsolutização do estado existente nas coisas e na ordem social.Por esse motivo, a percepção carnavalesca do mundo se opõe atodo fim que se pretenda definitivo já que considera o fim como umnovo começo. Daí a importância das imagens que revelam umcontínuo renascer.

O carnaval, apesar de não se constituir especificamente numfato literário, possui implicações com a literatura na medida emque se apresenta como espetáculo de forma sincrética, de caráterritual, apresentando diversas variantes, segundo os povos e asépocas. Nesse espetáculo, geralmente sem palco e sem separaçãoentre atores e espectadores, todos participam ativamente. Quando

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as leis do carnaval estão em vigor, todos se submetem a elas,aceitando uma forma de vida inabitual, espaço propício para oquestionamento das mais dimensões dos valores nas sociedades.

Desse modo, no carnaval, “ninguém é de ninguém”: as leis,as proibições, as restrições que normalmente condicionam a vidacotidiana, deixam de vigorar no período carnavalesco. A primeira adesaparecer é a ordem hierárquica e, com ela, as formas de respeitoque acarreta: a veneração, a piedade, a etiqueta e aquelasdecorrentes das desigualdades sociais. Pautado em Bakhtin, Proppdenomina a gargalhada, por apresentar-se sem moderação, comoriso rabelaisiano:

Ele é acompanhado de voracidade e outros tipos de dissolução. Nósagora condenamos a voracidade e por isto o riso rabelaisiano nosparece estranho. A condenação, porém, não tem apenas um caráterpsicológico, mas também social. Ela é característica daquela camadade pessoas que sabem o que significa um bom apetite, mas que nãosabem e nunca souberam o que é uma fome longa e terrível. Poisjustamente a uma fome prolongada e à subalimentação eramcondenados os camponeses de todos os países europeus,especialmente na Idade Média e nos séculos sucessivos. Do pontode vista destas camadas sociais, comer e beber à saciedade, atéempanturrar-se a ponto de perder os sentidos, sem respeitar limitesde espécie alguma, não apenas não era inconveniente, mas era atéconsiderado uma coisa boa. A essa comilança todos se entregavamem conjunto e publicamente nos dias das grandes festas, que eramacompanhadas de um riso alto e exultante (1992: 167).

Por intermédio de um processo de rebaixamento dos símboloselevados, o riso rabelaisiano supera as distâncias hierárquicas. Aoaproximar da realidade atual da representação os eventos dopassado, este tipo de riso os familiariza com essa atualidade, enessa familiarização os torna objeto de análise. Isto revela que oriso pode aproximar o objeto e permitir sondar várias de suasfacetas, abalando o medo e a reverência diante do mundo,estabelecendo um contato familiar com esse objeto, com isto criandoa condição para que ele seja estudado com maior liberdade.

Na análise de Bakhtin destacam-se duas modalidadesnarrativas consideradas essenciais: os diálogos socráticos e a sátiramenipéia, fundada por Menipo de Gádara no século IV a. C. Comrelação a esta última, ainda de acordo com Bakhtin, a sátiramenipéia teve em Luciano de Samósata a expressão maior (125-

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180 d. C., aproximadamente). Produto direto da cultura do riso, elasubverte a hierarquia dos objetos da representação, a hierarquiado espaço e do tempo, dos acontecimentos históricos, suprimindoos resquícios de barreiras hierárquicas, sociais, etárias, sexuais,religiosas, nacionais, lingüísticas. Em seus diálogos, em nome daliberdade de expressão, não subsistem a reverência, as regras dedecoro, a etiqueta e o medo. O riso desempenha um papel demagnitude até então desconhecida. A ausência de formas dereverência cria uma impressão caótica relativa à ordem universaldas coisas, desaparecendo assim a sensação de seriedade nocomportamento das personagens e na sua relação com o mundo.Na visão carnavalesca do mundo,

a abolição das relações hierárquicas possuía uma significação muitoespecial. Nas festas oficiais, com efeito, as distinções hierárquicasdestacavam-se intencionalmente, cada personagem apresentava-se com as insígnias dos seus títulos, graus e funções e ocupava olugar reservado para o seu nível. Essa festa tinha por finalidade aconsagração da desigualdade, ao contrário do carnaval, em quetodos eram iguais e onde reinava uma forma especial de contatolivre e familiar entre indivíduos normalmente separados na vidacotidiana pelas barreiras intransponíveis da sua condição, suafortuna, seu emprego, idade e situação familiar (BAKHTIN, 1996: 09).

As instituições, portanto, são alvos a serem atingidos com orebaixamento e as inversões ousadas. Nestas, os momentoselevados do mundo, da vida e função dos deuses, dos heróis e dasgrandes personalidades históricas e da expressão do discurso oficialaparecem invertidos, com uma faceta claramente oposta àquelacom que anteriormente se manifestavam. O caos que toma contado mundo representa a negação do seu status habitual, o presenteestá em processo de formação e o passado é uma categoria queainda não desapareceu, mas não serve mais de modelo. O risoaproxima e dá o tom às coisas, sua ambivalência vislumbra umanova perspectiva de construção do universo e assume, em casosparticulares, conotações utópicas.

A familiaridade vislumbrada pelo riso afasta a possibilidadede representação do passado e o espaço da representação constitui-se numa zona de contato familiar. Como predomina a familiarizaçãoentre os objetos representados, não há qualquer restrição espaço-temporal para o enredo, que se desloca com total liberdade de

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fantasia do céu para a terra, do Olimpo para o inferno, do presentepara o passado, e vice-versa. O reino do além-túmulo é o espaçodo congraçamento universal; aí todos os heróis do passado absolutoe distante, dos tempos lendários, sagrados e históricos, com oscontemporâneos vivos, debatem de modo livre e familiar.

Surge, assim, um modelo utópico de mundo ideal, onde cadaindivíduo é dono de si mesmo e da sua palavra, que flui livre demuitas injunções usuais, uma vez que o comportamento humanoestá fora do alcance das regras de reverência, convívio e etiqueta edas leis que imperam no cotidiano da sociedade. Em síntese,“durante o carnaval é a própria vida que representa, e por um certotempo o jogo se transforma em vida real. Essa é a natureza específicado carnaval, seu modo particular de existência” (BAKHTIN, 1996: 07).

A seriedade do riso

Nessa trajetória das peculiaridades de alguns tipos de riso,merece destaque também uma das modalidades de riso maisimportantes para os estudos literários: o riso de zombaria,despertado principalmente pela sátira. Para Vladimir Propp, este éo tipo de riso mais freqüente, pois “é o tipo fundamental de risohumano e (...) todos os outros tipos encontram-se muito maisraramente” (PROPP, 1992: 151). Em outra passagem, o autor adverteque o riso de zombaria “é justamente o tipo de riso que mais seencontra na vida e na arte, e está sempre ligado à comicidade. Eisto é compreensível. A comicidade costuma estar associada aodesnudamento de defeitos, manifestos ou secretos, daquele oudaquilo que suscita o riso” (PROPP, 1992: 171). Por este motivo, o risode zombaria é importante, nesta reflexão, pela propriedadefundamental de gerar condições para o questionamento de algunsaspectos socioculturais presentes nas relações cotidianas.

Ainda de acordo com Propp, a grande maioria dos estudiososafirma que a comicidade decorre de uma contradição entre forma econteúdo, aparência e essência. Segundo ele, essa contradição deveser vista como um fenômeno que ocorre a partir da interação entreestas instâncias, pois “a contradição suscitadora do riso é acontradição entre algo que, por um lado, encontra-se no homemque dá risada, e, por outro lado, naquilo que está em frente dele e

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que se manifesta no mundo que está à volta dele, no objeto de seuriso” (PROPP, 1992: 173). Assim, afirma que a idéia segundo a qual ocômico é um conceito correlativo está correta na medida em quenão venha a ser procurada no interior do objeto ou no sujeito doriso, mas em sua relação recíproca (cf. PROPP, 1992: 173). Partindodesse conceito de contradição, o autor sugere as condiçõesnecessárias para a configuração da comicidade e para o riso queela suscita. Segundo o autor,

quem ri tem algumas concepções do que seria justo, moral, corretoou, antes, um certo instinto completamente inconsciente daquiloque (...) é considerado justo e conveniente. Nessas exigências nadahá de sublime ou de majestoso, trata-se apenas do instinto do queé certo (...). A segunda condição para que surja o riso é observarque no mundo à nossa volta existe algo que contradiz esse sentidodo certo que está dentro de nós e não lhe corresponde. A contradiçãoente esses dois princípios é a condição fundamental, o alicerce parao nascimento da comicidade (PROPP, 1992: 174).

Desse modo, o riso que zomba é considerado como aqueleque nasce do desmascaramento de defeitos da vida espiritual daspessoas. Por isso, esses defeitos referem-se ao âmbito dos princípiosmorais, dos impulsos da vontade e das operações intelectuais. Emmuitos casos, os defeitos são visíveis por si sós e não têmnecessidade de ser desmascarados.

Contudo, na maioria dos casos, não é isso o que acontece: osdefeitos estão escondidos e precisam ser desmascarados. ParaPropp, a arte ou o talento do cômico, do humorista e do satíricoestão justamente em mostrar o objeto de riso em seu aspectoexterno, de modo a revelar sua insuficiência interior ou suainconsistência. O riso é então suscitado por certa deduçãoinconsciente que parte do visível para chegar ao que se escondeatrás desta aparência: “o riso surge quando a esta descoberta sechega de repente e de modo inesperado, quando ela tem o caráterde uma descoberta primordial e não de uma observação cotidianae quando ela adquire o caráter de um desmascaramento mais oumenos repentino” (PROPP, 1992: 175).

Por este ângulo, Propp expressa uma fórmula geral da teoriado cômico nesses termos: “rimos quando em nossa consciência osprincípios positivos do homem são obscurecidos pela descobertarepentina de defeitos ocultos, que se revelam por trás do invólucro

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dos dados físicos, exteriores. (...) O riso surge quando o defeito exterioré percebido como sinal, como signo de uma insuficiência ou de umvazio interior” (PROPP, 1992: 177). Uma das propriedades fundamentaisdo riso está no fato de revelar defeitos como sendo descobertasinesperadas, apresentadas de forma repentina. Esta propriedadeleva a outra: o riso é de curta duração, pois não pode prolongar-semuito, já que o riso contínuo e ininterrupto é impossível.

De onde provém então o prazer provocado pelo riso dezombaria? Segundo Propp, no riso de zombaria a pessoa comparainvoluntariamente aquele que é motivo de riso consigo próprio eparte do pressuposto de não possuir os defeitos do outro, pois “rindode um tolo [...] eu pareço a mim mesmo muito superior a ele. Ocômico desperta em nós o sentimento do nosso valor” (1992: 180).

Tais características já haviam sido esboçadas por Aristóteles,pois, enfatizando a encenação de uma “mímese inferior”, para ofilósofo grego o que individualizaria a comédia é o fato de que aspersonagens desse tipo de gênero imitam ações iguais ou inferioresàs ações praticadas pelos homens comuns, ao passo que aspersonagens da tragédia são seres superiores (heróis guerreiros,varões de ilustre linhagem, deuses e semideuses) e perseguem umfim nobre:

Como a imitação se aplica aos atos das personagens e estes nãopodem ser senão bons ou maus (pois os caracteres dispõem-se quasesó nestas duas categorias, diferindo apenas pela prática do vício ouda virtude), daí resulta que as personagens são representadas oumelhores ou piores ou iguais a todos nós (...). A mesma diferençadistingue a tragédia da comédia: uma propõe-se imitar os homens,representando-os piores, a outra melhores do que são na realidade(ARISTÓTELES, 1982: 242).

Como se vê, para Aristóteles, esses elementos enfatizam acomédia como gênero que se define por oposição às característicasda tragédia, concebida como imitação da ação de homenssuperiores, envolvendo a dor e a violência. Apesar da visãomaniqueísta, utilizada pelo autor para diferenciar as açõesrepresentadas pelos personagens dos diferentes gêneros, suasdiscussões apontam para aspectos importantes sobre orelacionamento palco-platéia (ou texto-leitor). Dessa maneira,quando o espectador/leitor se envolve com as personagens, de modo

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a quase se identificar com elas, tem-se uma relação de estilo grave,próprio do drama trágico; pelo contrário, quando o espectador/leitorrejeita as personagens, situando-se num mundo do qual ele se julgadistante, tem-se um relacionamento de estilo cômico. Pode-sesugerir que, em ambos os casos, ocorre o que Aristóteles definecomo purificação (catarse). Contudo, enquanto na tragédia apurificação se estabelece pela identificação do espectador/leitorcom as ações das personagens — sustentada pelo temor e pelapiedade provocados pelas cenas de violência e dor —, na comédiaessa purificação parece ocorrer a partir do distanciamentoprovocado pela ridicularização e pela conseqüente condenação dedeterminadas ações.

Em suma, no que se refere à recepção dos textos, essasconsiderações remetem a possíveis diferenciações entre a tragédiae a comédia, pois enquanto esta ressalta a importância do“estranhamento” do leitor/espectador devido à condenação dedeterminados comportamentos, aquela opera com a identificaçãodo leitor/espectador com as ações das personagens das narrativas,enfatizando a relação catártica entre as duas instâncias (palco/texto e espectador/leitor). Sendo assim, o riso, principalmenteaquele despertado pela zombaria, pela sátira etc., pode sercaracterizado como detentor da propriedade fundamental deproduzir questionamentos, permitindo romper o espaço dasconvenções e normas por meio do processo de exclusão dedeterminadas ações. Entretanto, o descaso em relação àspossibilidades de análise crítica das manifestações cômicas pareceencontrar apoio nas interpretações equivocadas dadas às idéiasde Horácio (e também de Aristóteles), principalmente noRenascimento, a partir das quais foi estabelecida uma diferenciaçãosocial dos gêneros, sustentada pela compartimentação dos estilosem elevado, médio e baixo. A épica e a tragédia passam assim a serconsiderados gêneros reservados a descrições mais nobres,enquanto a comédia, a sátira e a farsa são caracterizados comoespaços da representação popular e, portanto, inferiores àquelasmodalidades artísticas. Ressalte-se o aspecto normativo de talclassificação ao defender a doutrina da pureza dos gêneros (cf.SOARES, 1989: 11-12).

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O processo de desierarquização dos gêneros, ocorrido com maisvigor nos últimos séculos, revela, no entanto, que a comicidadepode ser compreendida como uma das mais importantes armaspara despertar as pessoas sobre as contradições presentes nasdiversas esferas da organização social. Além disso, a integraçãodos diferentes gêneros possibilitou o surgimento de modalidadeshíbridas. Entre elas, destaca-se a tragicomédia (ou drama moderno),que apresenta simultaneamente caracteres trágicos e cômicos,expressos na encenação de acontecimentos ora alegres orasinistros. Este procedimento visa negar a oposição sistemática entretragédia e comédia, pois a problemática pode ser ao mesmo tempotranscendental ou banal, as personagens nobres ou vulgares, aação dramática pode provocar riso e/ou choro.

Tomando como suporte teórico as análises de V. G. Belínski,Propp ressalta que cada ser humano tem duas faculdades de visão:uma, física, para a qual é acessível apenas a evidência exterior, eoutra espiritual, que penetra na evidência interior, comonecessidade que brota da natureza da idéia. A partir dessaduplicidade da visão, o autor analisa a reflexão que ocorre após oriso, pois “rindo, nos olhamos (...). Após ter olhado para o mundode seu lado exterior e físico, quem ri passa depois a olharnormalmente para o mundo interior das coisas, isto é, para o aspectonão cômico, ele, por assim dizer, desloca o olhar” (PROPP, 1992: 183).Este deslocamento do olhar caracteriza a comicidade como elementoconfigurador da percepção crítica do mundo.

Abordando a concepção burguesa de comicidade, quevalorizaria apenas alguns de seus aspectos, Propp analisa areformulação que ocorre nessa teoria, chamando a atenção para ainviabilidade da distinção entre sátira e humorismo, pois, em ambosos casos, os procedimentos são perfeitamente idênticos. Comochegar à sátira sem a comicidade? A interdependência entre sátirae comicidade é assim definida: “a comicidade é o meio, a sátira é ofim. A comicidade pode subsistir fora da sátira, mas a sátira nãopode existir fora da comicidade” (1992: 186). Propp alerta aindapara o fato de que a sátira como tal muitas vezes não cura nemcorrige aqueles contra os quais ela é dirigida:

Se assim fosse, para a cura, digamos, do alcoolismo, ou damarginalidade, bastaria reunir os portadores destas mazelas, levá-

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los para um teatro ou cinema e mostrar-lhes uma comédia contraa bebedeira ou a desocupação, esperando que saíssem de lá sóbriose bem-educados. Isso porém não ocorre. No que, então, está osignificado da sátira? A sátira age sobre a vontade daqueles quepermanecem indiferentes diante desses vícios, ou que fingem nãovê-los, ou que são condescendentes, ou mesmo que não sabemrealmente nada sobre eles. Ela levanta e mobiliza a vontade de lutar,cria ou reforça a reação de condenação, de inadmissibilidade, denão-compactuação com os fenômenos representados e, por issomesmo, contribui para intensificar a luta para removê-los (PROPP,1992: 211).

Com relação às obras literárias, pode-se eleger a sátira comoinstrumento utilizado por vários escritores para desestabilizar aaura de autoridade presente em algumas instituições: rindo daautoridade ocorre a aproximação entre as diversas esferas sociais.Mas isto não é um fato recente.

Além dos já citados Luciano de Samósata e Francois Rabelais,escritores renomados como Miguel de Cervantes, Jonathan Swift,William Shakespeare, Jean-Baptiste Poquelin (Moliére), FiódorDostoievski, entre muitos outros, operaram um progressivorefinamento das manifestações do cômico. No mundo ibérico,ressalta-se o nome de Gil Vicente: escrevendo num período detransição – que marca a decadência do trovadorismo e anuncia o“Século de Ouro Português”, engendrado pelo desenvolvimento cadavez maior das navegações marítimas e a posterior conquista denovos territórios (séculos XIV a XVI) –, o escritor português destaca-se pelo uso da sátira social em seus Autos. Nesse cenário, a obravicentina, elegendo o verso como forma de expressão, aproveitoutoda a variedade de sugestões anteriores ou contemporâneas doteatro medieval, tais como os milagres, os mistérios, as moralidades,as farsas, entre outras, que lhe inspiraram as peças de grandeaparato e rica encenação.

A humanização característica desse período se deve àsustentação por parte dos monarcas de uma intelligentsiaportuguesa, com a oferta de incentivos para a realização de estudosno exterior, tendo como objetivo viabilizar a formação de um grupode intelectuais ligados à corte portuguesa. Portanto, é nesse períodohumanista que aparece a obra de Gil Vicente, retratando o cotidianoportuguês da Baixa Idade Média.

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Contudo, apesar da caracterização do período como o apogeudo povo português, o teatro de Gil Vicente teria sido prejudicadopela repressão exercida por parte dos tribunais da Santa Inquisição.Tal fato deve-se, indubitavelmente, à utilização por parte do autorda sátira social como forma de contestar os valores correntes desua época: as peças de Gil Vicente são descritas como instrumentode crítica social, por serem flagradas como um diagnóstico dos“males” da sociedade portuguesa.

Tais males aparecem quando o autor dirige sua pena emdireção às práticas abusivas de estratos sociais como o clero, anobreza e a justiça, pois seus vícios são mais condenáveis devido àmaior responsabilidade social inscrita em suas práticas: reis ebispos não são inocentados pela posição que ocupam na sociedade.Pelo contrário, para o autor, a punição para seus crimes é muitomais severa devido à responsabilidade assumida diante daorganização social. Procurando corrigir os costumes mediante oridículo, a obra de Gil Vicente é caracterizada pelo uso de elementosnarrativos que irão levar à sátira de aspectos da realidadeportuguesa, identificada assim como uma poderosa arma de críticasocial.

Tentando evidenciar que “a capacidade de convencerartisticamente é uma das primeiras condições para convencerideologicamente [pois] quanto mais elevado o nível artístico, tantomais forte a ação de suas idéias” (PROPP, 1992: 191), sugere-se que,para convencer artisticamente pelo riso, os escritores necessitammanejar com desenvoltura os meios necessários à instauração dacomicidade. Como exemplos dessas “normas” de natureza artística,podem ser citados elementos como a configuração sistemática doclímax inesperado ou, em outras palavras, o que comumente éidentificado como “explosão do riso”; a não-repetição de fenômenosrisíveis; a brevidade; a fusão entre o fantástico – compreendidocomo alteração das leis da natureza na narrativa – e o realista; asimulação da mais completa seriedade e de uma total imparcialidadeem relação àquilo que está sendo narrado, entre outras.

Em síntese, foram apresentados alguns dos aspectos quecontribuem para compreender a comicidade, e sua intençãoprimordial, o riso, como fenômenos que possuem mecanismos parase efetivar e resultados a alcançar. A pequena amostra, apresentadanos parágrafos anteriores, aponta para a necessidade de

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compreender o cômico como uma daquelas modalidades lúdicas —tais como o jogo — que merecem destaque, apesar de muitas vezesnão serem consideradas sérias o suficiente para uma análise porparte das ciências humanas.

Notas

1. Poema de autoria do poeta russo Vladimir Klébnikov. Traduzido por Haroldode Campos e citado por Rubem Fonseca (Contos reunidos. São Paulo: Companhiadas Letras, 1994, p. 471).

2. Sem dúvida, um dos mais parodiados e mais parafraseados poemas detodos os tempos da literatura brasileira, como comprovam as posteriores leiturase releituras de Casimiro de Abreu (“Canção do Exílio”); Oswald de Andrade(“Canto de regresso à pátria”); Murilo Mendes (“Canção do Exílio); CarlosDrummond de Andrade (“Nova canção do exílio”); Mário Quintana (“Umacanção”) (In: RIEDEL, Dirce Cortes [et al]. Literatura Brasileira em curso. Rio deJaneiro: Bloch Editores, 1969, pp. 373-378). Mais recentemente, outros autoresreelaboraram a “canção”, tais como Antônio Carlos de Brito (Cacaso) atravésdo poema “Jogos florais” (In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. 26 poetas hoje. 3.ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998, p. 41). Arnaldo Antunes também revisitao poema através da música “Eva e eu” (In: ANTUNES, Arnaldo. O silêncio. SãoPaulo: WEA, 1996).

3. Um exemplo disso é o texto de Millôr Fernandes analisado em páginasanteriores: o autor ridiculariza, não a Pasárgada-imaginária de Bandeira, masa Pasárgada que se quer construir com base no contexto brasileiro.

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CAPÍTULO III

SOBRE O PÓS-MODERNISMO

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Antes mundo era pequenoporque terra era grande.Hoje mundo é muito grandeporque terra é pequena.

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Antes longe era distanteperto só quando dava,quando muito ali defrontee o horizonte acabava.Hoje lá trás dos montesdende casa, camará.

Ê, volta do mundo, camará.Ê, mundo dá volta, camará.

Gilberto Gil

Partindo do conceito de civilização da imagem1 pretende-seenfatizar nesta análise alguns aspectos relacionados ao que se temdenominado como produções culturais pós-modernas. Estas podemser caracterizadas por um crescente incremento no uso da imagem,em todas as suas formas, possibilidades e objetivos, levando a umprocesso de auto-referência constante, uma espécie de reciclagemimagética jamais vista na história da humanidade. Entretanto, aoanalisar essas manifestações culturais como pós-modernas éprudente enfatizar o modo pelo qual o termo procura sercompreendido. Tal questão é pertinente devido ao fato de que váriossão os conceitos de pós-moderno, pois o mesmo encontra-se ligadoa um campo de estudos em formação, cujas fronteiras não estãoainda claramente delimitadas. Esta falta de delimitação é devida,em grande parte, ao largo uso do conceito em diferentes áreas.

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Elementos importantes de análise são aquelas característicasdo movimento que destacam seu potencial crítico; sua valorizaçãode modalidades não-hegemônicas de textos; e, com maior destaque,a dissolução das fronteiras entre os diferentes níveis de cultura:erudito, popular e de massa.

QUESTIONAMENTOS, INICIATIVAS E PERSPECTIVAS

Apesar de se apresentar como conjunto de manifestaçõesrelativamente recente, podem ser estabelecidas algumas rotas quevisualizem aquelas transformações que atuaram significativamentepara a eclosão do pós-modernismo. Uma delas pode ser relacionadaà perda das ilusões quanto à obtenção de respostas conclusivassobre o sentido do universo e da vida, entrevistas no sonho deunidade e poder representados primordialmente na figura de Deusou qualquer outro grande referente tipo História, Natureza,Conhecimento (Cf. SANTOS, 1995: 59). Ou ainda quanto aos sistemasde organização social baseados na racionalidade e no maquinismoque se mostram como formas utópicas, no sentido “negativo” dotermo, quando calcadas na ingenuidade da “igualdade perfeita,produzida pela razão, governada pela técnica e desfrutada pela arte”(SEVCENKO, 1995: 47).

Em muitas das manifestações artísticas pós-modernasaparece um certo desencanto em relação aos grandes discursosproduzidos e difundidos tanto no século XIX quanto no século XX— sejam eles denominados de “metarrelatos” (Jean-FrançoisLyotard) ou “narrativas-mestras” (Linda Hutcheon) — queprocuraram explicar a condição histórica do homem ocidental, nosseus aspectos econômicos, sociais e culturais. Tal desencantodecorre da acusação de que essas narrativas/relatos seriamresponsáveis pela constituição, na modernidade, de grandes atores,grandes heróis, grandes perigos e, principalmente, de grandesobjetivos sociopolíticos e econômicos.

O ponto de partida dessas narrativas/relatos estarialocalizado no ideal libertário da Revolução Francesa, fundamentadonos princípios da razão iluminista. A condenação desses princípiosestá relacionada, principalmente, às suas pretensões totalitárias,a partir das quais teriam sido interpretadas e/ou moldadas, de

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forma homogênea, as diferentes realidades sociais nos temposmodernos. Tais princípios unificadores são compreendidos entãocomo “ilusões, que, ao fazerem flutuar ideais impossíveis diantede nossos olhos, nos afastam de todas as mudanças políticasmodestas, porém eficazes, que temos reais condições de criar”(EAGLETON, 1997: 316-317).

Na busca de novos objetos, o pós-modernismo écompreendido por muitos de seus analistas como o espaço para aconstrução de enfoques antitotalitários, a partir do cotejo,democraticamente fragmentado, dos discursos heterogêneos,marginais e cotidianos presentes na configuração social. Issoocorreria porque no pós-modernismo, em muitos casos, os artistasnão acreditam mais no absoluto, nem se deixam levar por suasfalsas promessas ( Cf. SEVCENKO, 1995: 50).

Dentre as atividades artísticas que têm sido postas sob alegenda do pós-modernismo não existe ainda unidade possível, detal forma que para alguns autores o movimento é definido numarelação direta com o desenvolvimento da tecnologia pós-industrial,baseada na informatização social e sustentada pela ampliaçãoostensiva dos avanços da cibernética e da informática; para outros,o pós-modernismo aparece como movimento de oposição àsconvenções estéticas engendradas pelo modernismo; na direçãooposta, o pós-modernismo é muitas vezes denunciado comoconjunto de idéias responsável por um processo de pasteurizaçãodos recursos artísticos promovidos pelas vanguardas.

Muitas das concepções relacionadas ao pós-modernismo secaracterizam pelo tom nostálgico próprio daqueles autores que nãoconseguem (ou não querem) perceber elementos que balizam osentido crítico do movimento. Em seu repertório estão incluídaspropostas de práticas culturais alternativas, identificadas com opacifismo, a ecologia, o feminismo, os movimentos de liberaçãosexual e manifestações afins. Sendo assim, as propostas pós-modernas revelam, em muitas de suas incursões artísticas, asensibilidade para a expressão de uma realidade entremeada porelementos como o acaso, o contraditório, o aleatório, o humor, oprazer e a contemplação. Revela-se, portanto, como espaço para “oaprendizado humilde da convivência difícil, mas fundamental, como imponderável, o incompreensível, o inefável — depois de séculos

sobre o pós-modernismo

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da fé brutal de que tudo pode ser conhecido, conquistado, controlado”(SEVCENKO, 1995: 54).

Tais aspectos evidenciam “a pluralidade do conceito – para aidéia de que não há um só pós-modernismo, mas vários – e para acrítica, presente em todos eles, ao discurso dos universais, quefavorece, com a máscara do consenso, o interesse de gruposhegemônicos” (E. F. COUTINHO, 1995: 424). Em linhas gerais, o pós-modernismo pode ser relacionado ao questionamento do papel doIluminismo para a identidade cultural do Ocidente e àproblematização dos efeitos gerados pela perda da credibilidadenas metanarrativas fundadoras, notadamente o marxismo e oliberalismo (Cf. HOLLANDA, 1991: 08).

No que se refere especificamente à criação literária, o pós-modernismo ataca uma de suas convenções mais caras: o realismoe sua crença numa realidade objetiva que seria singelamentecaptada na linguagem por um sujeito-narrador atento e forte, emfranca afinidade com as coisas (Cf. SANTOS, 1995: 59). A novacomplexidade social e cultural das últimas décadas relega asegundo plano a intenção realista de descrever pessoas e coisas,pois seus meios já não são suficientes para codificar a realidadefragmentária e irracional que se dissolve a partir da colagem designos, cujos referentes são remotos ou se perderam. Esta colagem,por sua vez, é formada e consolidada pelos mass media e modeladaprincipalmente pela televisão, pela moda, pela publicidade, pelodesign etc., despertando os indivíduos para uma nova sensibilidade,na qual ressalta a descontinuidade.

Um dos enfoques relacionados à pós-modernidade incidesobre o fato de que, na civilização da imagem, o que prevalece é oolhar. Isto advém, em grande parte, das implicações entre meiosde comunicação de massa e normatização das relações sociais,estabelecidas a partir da utilização, principalmente, dos elementosvisuais. Como resultado, de acordo com Silviano Santiago, “aspessoas já não conseguem hoje narrar o que experimentaram naprópria pele” (1989: 40). Apesar de, à primeira vista, esta formulaçãoapresentar-se como visão “biografista” da literatura – na medidaem que se pode argumentar, por exemplo, que grande parte dosescritores certamente não experimentou todas as situaçõesdescritas em suas narrativas – ela parece encontrar fundamento

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no gradativo “impulso homogeneizante da sociedade de consumodo capitalismo recente” (HUTCHEON, 1991: 30). Este processo éresponsável, em certa medida, pela crescente uniformização doimaginário social produzida pela constante padronização exercidapelos meios transmissores de imagens. Como conseqüência, o“visual” torna-se onipresente na pós-modernidade: as imagenstelevisuais aparecem em todos os lugares.

No entanto, pode-se cogitar que a imagem não prevalece deforma solitária, já que se pode considerar que também a sonorização,quando aliada à imagem, exerce um papel significativo napadronização do imaginário social. Em outras palavras, acombinação precisa entre som e imagem efetuada pelos meios decomunicação de massa teletransmissores de imagens,representados principalmente pela televisão e pelo cinema, atuadecisivamente na recepção dos textos veiculados nesses meios.

Este processo parece decorrer de uma das maiores criaçõeshumanas do século XX: a ampliação progressiva das possibilidadesde gravação das memórias, surgidas, num primeiro momento, apartir do daguerreótipo (em seus diversos sucedâneos: fotografia,vídeo, fita cassete, entre outros) — indo muito além daspossibilidades da imprensa e da pintura de períodos anteriores —alcançando seu auge com a informatização social ocorrida nasúltimas décadas, quando os grupos sociais passaram arecontextualizar o passado pelo emprego desses recursos. Estarecontextualização gera, por sua vez, uma maior predominânciada imagem quando da narrativização da realidade social.

Desenvolvendo um modelo de análise baseado na arquiteturapós-moderna — setor, segundo a autora, no qual pode seridentificada mais claramente a utilização de um complexo de temase formas pós-modernas — Linda Hutcheon, em sua Poética do pós-modernismo, procura assumir uma postura crítica com relação aotema, alertando para o fato de que o pós-modernismo é umaatividade cultural em andamento. Tendo em vista tal perspectiva,a autora propõe, ao invés de uma definição estável e estabilizante,uma poética, ou seja, uma estrutura teórica aberta, em constantemutação, com a qual possamos organizar nosso conhecimentocultural e nossos procedimentos críticos.

sobre o pós-modernismo

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Para tanto, defende a ampliação dos estudos literários de talmaneira que estes possam ser inseridos em uma “tipologia dosdiscursos” na qual tanto a arte quanto a teoria a respeito da arte (eda cultura) devam ser partes integrantes. A autora canadensecompreende que tal empreendimento ultrapassaria o estudo dodiscurso literário e chegaria ao estudo da prática e da teoriaculturais. Contudo, uma poética do pós-modernismo não proporianenhuma relação de causalidade ou identidade entre as artes ouentre a arte e a teoria. Ofereceria apenas, como hipótesesprovisórias, sobreposições constatadas de interesse. Para LindaHutcheon, seria uma questão de ler a literatura por intermédiodos discursos teóricos que a circundam, e não como sendo contíguaà teoria (Cf. HUTCHEON, 1991: 32).

Essa posição parece estar ligada a uma das característicastanto da arte quanto da teoria pós-modernas: o intercâmbioconstante entre diferentes disciplinas. Nesse contexto, as relaçõesestabelecidas entre disciplinas diversas, antes compartimentadas,passa a ser uma fonte para a discussão de questões entendidascomo estando interligadas: “essa indeterminação disciplinarassinala um esgotamento da tradicional divisão do trabalhointelectual (...) [o que] indica que as maneiras clássicas de dividir oconhecimento em partes acham-se hoje, por duras razões históricas,em grandes apuros” (EAGLETON, 1997: 327).

Assim, é por meio do diálogo entre Literatura, História,Lingüística, Antropologia, Psicanálise, Sociologia, entre outrasáreas, que se avolumam estudos empenhados em demonstrar avalidade das análises realizadas com base na interação entre osdiferentes campos de conhecimento. Diante deste quadro dereferências, tanto a literatura como a história pós-modernasrejeitaram o ideal de representação que por tanto tempo as dominou.Atualmente, as duas disciplinas encaram seu trabalho como“exploração, testagem, criação de novos significados, e não comoexposição ou revelação de significados que, em certo sentido, já‘existiam’ mas não eram percebidos imediatamente” (HUTCHEON, 1991:21).

Como resultado da descrença nas práticas racionais surgidascom o processo de mitificação da ciência, que passou a ser encaradacomo um dos caminhos mais seguros para a obtenção de respostas

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“necessárias” à organização das sociedades, o pós-modernismoprocura propor novas leituras da realidade social, sem, no entanto,esquecer de alertar sobre a condição provisória de tais leituras.Portanto, de forma diversa do modernismo, principalmente europeue norte-americano, que acreditava poder impor uma nova ordemde idéias, muitas das produções pós-modernas procuram“problematizar mais do que manipular os códigos culturais,interpelar mais do que dissimular as articulações políticas e sociais”(HOLLANDA, 1991: 09).

Dessa maneira, “as abordagens pós-modernas (...) questionamo ideal totalizante modernista de progresso por meio daracionalidade e da forma purista” (HUTCHEON, 1991: 46). Contudo, àingenuidade da rejeição, ideológica e esteticamente motivada, domodernismo em relação ao passado (em nome do futuro) não seopõe um saudosismo igualmente ingênuo por parte do pós-modernismo. A História, o eu individual e os conceitos de identidadee autoria, a relação da linguagem com seus referentes e dos textoscom outros textos, essas são algumas das noções que, em diversosmomentos, pareceram ‘naturais’ ou pareceram, de maneira nãoproblemática, fazer parte do senso comum. E é para elas que sevolta o questionamento. A cultura é desafiada a partir de seu própriointerior: desafiada, questionada ou contestada, mas não implodida(Cf. HUTCHEON, 1991: 16).

Enfatizando algumas características do movimento, LindaHutcheon destaca que o pós-modernismo se caracterizaria pelofascínio diante de categorias como o diferente, o paradoxal, omúltiplo e o provisório, priorizando “o desafio da certeza, aformulação de perguntas, a revelação da criação ficcional de alguma‘verdade’ absoluta” (1991: 72-73). Ainda de acordo com as palavrasda teórica — falando sobre a autoconsciência crítica do movimento— os discursos pós-modernistas, tanto teóricos como práticos,“precisam dos mitos e convenções a que contestam e reduzem (...).[No entanto] o impulso pós-moderno não é buscar nenhuma visãototal. Ele se limita a questionar. Caso encontre uma dessas visões,ele questiona a maneira como, na verdade, a fabricou” (HUTCHEON,1991: 21, grifos da autora).

Andreas Huyssen procura contextualizar, a partir da décadade 1960, a emergência e a constituição das alterações

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paradigmáticas que caracterizariam o pós-moderno tanto na práticacomo na teoria, principalmente no contexto norte-americano. Oautor enfatiza assim a noção de que o pós-modernismo deve servisto como condição histórica e aponta algumas questõesrelacionadas ao debate entre modernismo e pós-modernismo:

A revolta dos anos 60 nunca foi uma rejeição do modernismo perse, mas uma revolta contra a versão do modernismo que havia sidodomesticada nos anos 50, incorporada pelo consenso liberal-conservador da época e transformada em arma de propaganda noarsenal cultural e político da guerra fria anticomunista. Omodernismo contra o qual os artistas se rebelaram já não era maispercebido como uma cultura de oposição. Não mais se opunha auma classe dominante e a sua visão de mundo, nem haviapreservado sua pureza programática, livre da contaminação daindústria cultural. Em outras palavras, a revolta surgiuprecisamente a partir do sucesso do modernismo, do fato de nosEstados Unidos, como na Alemanha Ocidental e na França, omodernismo ter sido pervertido, convertendo-se em uma forma decultura afirmativa (1991: 34).

A partir daí o autor estabelece alguns fatores que teriaminterferido decisivamente para a consolidação da fase inicial domovimento pós-moderno: o predomínio de uma “imaginaçãotemporal” com um forte sentido do futuro e de novas fronteiras, deruptura e de descontinuidade, de crise e de conflito de gerações; oataque à institucionalização da chamada “grande arte” — guardadaem museus, galerias, concertos, discos, livros etc. — por meio demanifestações alternativas ligadas à contracultura, tais como a artepop, a arte psicodélica, o acid rock, o teatro de rua, entre outras;uma visão eufórica da estética tecnológica produzida pela sociedadepós-industrial; e a valorização da cultura popular, incorporada pelosmeios de comunicação de massa, como um desafio aos cânones daarte tradicional.

Em suma, para o autor, o pós-modernismo dos anos 1960,especialmente nos Estados Unidos, teria alguns traços de umgenuíno movimento de vanguarda. Tais traços seriam redefinidosnas décadas de 1970 e 1980 devido à crescente circulação comercialdessas manifestações, privando-as de seu estatuto vanguardista(1991: 36-43). Além disso, o sentimento de euforia teria sido abaladopela agonia da Guerra do Vietnã, pela crise do petróleo, pelapermanência da guerra-fria alimentada pela ameaça atômica,

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entre outras circunstâncias que dificultavam a manutenção daconfiança no futuro profetizada na década anterior. Com relação aesses aspectos, o autor afirma que:

Uma das principais diferenças entre o alto modernismo e a arte ea literatura que se lhe seguiram nos anos 70 e 80 consiste, tantona Europa quanto nos Estados Unidos, numa relação nova e criativaentre a grande arte e certas formas de cultura. E é precisamente arecente auto-afirmação de culturas minoritárias e sua emergênciana consciência pública que têm minado a crença modernista deque a alta cultura e as culturas inferiores devem permanecerrigorosamente separadas (1991: 41).

Como visto anteriormente, essa “crença modernista” naseparação rigorosa das culturas pode ser questionada com relaçãoao modernismo brasileiro, já que o movimento no Brasil secaracteriza, entre outros fatores, pela inserção de elementos ligadosà cultura popular. Um ponto que merece atenção especial quandose direcionam as discussões sobre o pós-modernismo no Brasil – epoderia se dizer, apesar das especificidades, também na AméricaLatina – é a necessidade de indicar alguns elementos que atuarame atuam decisivamente na configuração histórico-cultural dessespaíses, tornando-os distintos de outras culturas, tais como aeuropéia e a norte-americana.

Tal posição deve ser assinalada devido ao fato de que parteconsiderável dos estudos que abordam o tema referencia a defesada heterogeneidade encontrada nas formações socioculturais latino-americanas como ingrediente fundamental que contribuiria para aafirmação de que o continente pode ser considerado o “berço dopós-modernismo”. Nessas formações, seria marcante a presençade produções artísticas caracterizadas como descontínuas, híbridase alternativas. Isto ocorreria devido à “coexistência de mundosabsolutamente distintos” como fator responsável pelo surgimentode manifestações pós-modernas.

Contrariando tal perspectiva, Eduardo Coutinho adverte quedevem ser assinalados os riscos e os limites daí decorrentes, umavez que os diferentes estágios de modernização — dos paísescomumente denominados como “centrais” em relação aos tambémcomumente denominados “periféricos” — podem ser identificadoscomo elementos cruciais para o surgimento dessa heterogeneidade.

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Segundo o autor, tal argumento “peca sobretudo por não levar emconta o fato de que as formações socioculturais referidas não são oresultado de estratégias pós-modernas, mas, ao contrário,produzem-se (...) pela implementação desigual da modernização”.Nesse cenário, as narrativas heterogêneas produzidas nos paísesperiféricos são, antes de mais nada, “respostas ou propostasestético-ideológicas locais diante da transnacionalização capitalistanão apenas na América do Norte e na Europa, mas em todo omundo” (E. F. COUTINHO, 1995: 425).

Nesse sentido, é válido que se insiram as manifestaçõesartísticas produzidas na América Latina no quadro pós-moderno,desde que se atente para o fato de elas apresentarem “signospeculiares que encerram inclusive contradições como as quesinalizam as diferenças entre as sociedades pós-industriaisaltamente tecnicizadas e o contexto latino-americano” (E. F. COUTINHO,1995: 425). Por meio da crítica anticolonialista, os debates entremodernidade e pós-modernidade adquirem força especial nasculturas periféricas, que se vêem cada vez mais arrastadas para aórbita de um Ocidente pós-moderno sem que ainda nem mesmotenham, para o bem ou para o mal, passado por um processo deplena modernidade ao estilo europeu (Cf. EAGLETON, 1997: 324). Umaatitude prudente teria que considerar então que o processo demodernização ocorrido nas últimas décadas na América Latinaapresenta uma feição peculiar, característica de uma economiadependente e de uma realidade social fortemente matizada ediferenciada, e as manifestações estéticas aqui surgidas estão emconstante diálogo com estes aspectos.

É preciso, portanto, destacar, em muitos casos, algumasparticularidades das produções artísticas surgidas nas últimasdécadas no cenário latino-americano – aqui, nesse estudo, maisespecificamente no Brasil. Isto porque tentar estender determinadosconceitos, de forma ampla, a manifestações culturais de diferentespaíses, apresenta-se como posição, em certa medida, incoerente:como combater “narrativas-mestras”, uma das propostas centraisdo movimento, pela instituição de respostas totalizantes.

Apesar da ênfase na diferença, muitos dos estudosempreendidos por pesquisadores ligados aos países “centrais” —que merecem elogios por servirem, sobretudo, como resposta à

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atitudes etnocêntricas que privilegiam apenas obras produzidasno contexto euro-norte-americano — são acusados, no entanto,de congregar equivocadamente sociedades muito diferentes sobuma mesma categoria, tais como a de “Terceiro Mundo”. Comoresultado, “sua linguagem tem, com muita freqüência, traído umprodigioso obscurantismo absurdamente distante dos povos pelosquais ela fala” (EAGLETON, 1997: 325). Um exemplo desse procedimentopode ser detectado na réplica feita por Aijaz Ahmad às consideraçõesde Fredric Jameson sobre a literatura produzida por escritoresafricanos, asiáticos e latino-americanos: o problema da análise deJameson, segundo Ahmad, estaria no fato de qualificar, de maneirareducionista, toda a literatura do “Terceiro Mundo” como sendonecessariamente alegórica (AHMAD, 1988: 157-181). 2

Entretanto, apesar dessa ressalva, alguns traços pós-modernos podem ser identificados nesses diferentes contextos. Umdeles é a crescente reestruturação dos níveis de cultura, difundidaprincipalmente pelos meios de comunicação de massa, já que,“inegavelmente, mesmo vivendo numa economia periférica, acultura brasileira não está imune aos efeitos globalizantes que atelevisão (sobretudo a TV a cabo), as redes de informatização, apartilha simultânea das informações trazem até ela” (RESENDE, 1995:119).

SABORES DAS CULTURAS PÓS-MODERNAS

Sobre os empreendimentos críticos realizados em torno dopós-modernismo Luiz Carlos Simon adverte que “entre a recusa dotermo, ou a participação no debate sobre ele, e a adoção cega deuma visão unilateral, há muitos caminhos que podem serpercorridos. Um deles, possivelmente o mais produtivo, é o queparte em busca de uma análise das reações apresentadas dianteda relação pós-modernismo/modernismo ou pós-modernidade/modernidade” (SIMON, 1998: 10). Essas relações são de fundamentalimportância devido ao caráter de “endividamento” das narrativaspós-modernas com relação ao modernismo, principalmente no quese refere às especificidades do movimento no Brasil: a inscrição deelementos da cultura popular em suas atividades literárias e a

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vinculação entre o estético e o político pela utilização da comicidadecrítica. Tais aspectos indicam que as ligações com o modernismoainda estão presentes, mesmo que seja na atitude de digestão e/ou superação da tradição instaurada pela arte moderna.

A reformulação da linguagem e a renovação do sistema deconvenções literárias, vigentes até o modernismo, será um marcona produção literária brasileira que propiciará novas perspectivasestético-literárias e a busca de novas formas de expressão para,praticamente, todos os literatos brasileiros. Opostamente àconvenção, o modernismo se caracterizou por priorizar a inovaçãoatravés do questionamento das possibilidades da linguagem e dainstituição de uma maior gratuidade do ato criador.

Pode-se constatar, porém, que as técnicas e as formasmodernistas diluíram-se com a exposição constante em diversosautores posteriores, fato que contraria seus próprios fundamentos,principalmente aqueles ligados à não-institucionalização dasformas artísticas propostas pelo movimento. Mesmo depreciadapelo uso constante de suas artimanhas, a escola modernistaaparece como fator decisivo na conquista de um maiordistanciamento dos escritores brasileiros em relação às“influências estrangeiras”. Dessa forma, passa a ocorrer uma maiorpredominância do material artístico produzido no país como fontepara a escrita da literatura, resultado de uma maior afirmaçãodas letras brasileiras e, sob vários aspectos, também latino-americanas.

Tal processo de afirmação possui implicações com omodernismo na medida em que se passou a realizar atividadesliterárias que privilegiassem a incorporação crítica das idéiasoriundas dos países estrangeiros: o que os modernistasressaltaram foi a necessidade, não da negação dessas idéias, masde sua reelaboração, com base no contexto sociocultural brasileiro.Para os modernistas, portanto, não cabia apenas a atitudesimplória de afastar as idéias das vanguardas estrangeiras, masbuscar compreender o que acontece com essas idéias quandoinseridas em solo brasileiro, procurando sinalizar para asconseqüências desastrosas de um transplante puro e simples.

Como resultado dessa reelaboração, o movimentomodernista alcança um prestígio expressivo junto aos escritores

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da segunda metade do século XX, quando serve de referencial paraa elaboração de muitas das obras fundamentais desse período:

O modernismo representa a instalação de um tipo de discursobatizado por Auerbach de “mescla estilística”, isto é, de estilo impuro,porque, contrariamente aos preceitos da poética do classicismo,aspira à apresentação de acontecimentos ou de situações sérias,trágicas ou problemáticas mediante o emprego de uma linguagemprosaica ou “vulgar” por oposição à terminologia aristocrática a quea norma clássica, através da observância da regra de separaçãohierárquica dos estilos (nobre, médio, vulgar), reserva emexclusividade ao domínio da tragédia, da épica e da lírica (MERQUIOR,1977: 123).

A miscigenação de diferentes registros socioculturais podeser identificada já no modernismo, marcado, principalmente noBrasil, pela reação estético-literária ao conservadorismo e àestagnação que perduravam na grande maioria das obras literárias,desde o final do século XIX, sacralizando o culto da forma e ospurismos lingüísticos. Em muitos dos escritos modernistas, peloemprego de recursos corrosivos como a paródia e a ironia, o ataqueera dirigido à noção de linguagem que, tanto na prosa como napoesia, era a do intelectual para o intelectual, desprezando muitasvezes a fala popular, o folclore ou qualquer outra forma demanifestação cultural menos erudita.

Em processos como esse se evidenciava o preconceito comrelação à cultura popular. De acordo com Carlo Ginsburg, tal fatose deve, em grande parte, à persistência de uma concepçãoaristocrática de cultura, já que idéias ou crenças originais são“consideradas, por definição, produto das classes superiores, esua difusão entre as classes subalternas um fato mecânico deescasso ou mesmo de nenhum interesse; como se não bastasse,enfatiza-se presunçosamente a ‘deterioração’, a ‘deformação’, quetais idéias ou crenças sofreram durante o processo de transmissão”(1996: 17).

Nesse cenário, apesar da complexidade das produções pós-modernas, é instigante correr o risco de eleger alguns problemaspostos em circulação por estas produções: entre as característicasfundamentais da literatura pós-moderna pode ser citado oprocedimento que procura visualizar a coexistência de gênerosheterogêneos numa mesma narrativa. Apresenta-se assim uma

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complexa combinação de registros de discurso diversos: fábulas,contos de fadas, piadas, casos, contos, parábolas, reportagensjornalísticas, diálogos teatrais, poesia, memórias, entre outrasestruturas narrativas, tornam-se ingredientes que se alternam emdiversas produções. Isto mostra que os gêneros estão cada vezmais fluidos, contrariando de forma decisiva a teoria clássica,normativa e prescritiva por acreditar não só que cada gênero diferedos outros quanto à natureza e quanto ao prestígio, mas tambémque devam ser compartimentados e mantidos separados, evitandoassim a miscigenação advinda do intercâmbio entre as diferentesmodalidades de criação artística.

A ênfase na mescla estilística presente nas produçõesbrasileiras pós-modernas pode ser então relacionada aomodernismo. O que muda no quadro do final do século XX pareceser a presença cada vez maior da cultura de massa como fator deinterpenetração entre as diversas manifestações culturais.

Muitos dos ataques direcionados à cultura de massa, aolongo da segunda metade do século XX, parecem encontrarargumento ainda na “deformação” de idéias consideradas originaise sugeridas como produto exclusivo da cultura erudita. Contudo,esta posição revela o descaso com categorias específicas dessefenômeno, pois entender a cultura de massa como simplesdeformação da cultura erudita é uma atitude que impossibilitaavaliar, com relativa isenção, os procedimentos colocados emprática por manifestações ligadas à cultura de massa.

O que o pós-modernismo procura questionar acima de tudosão os limites estabelecidos comumente entre as esferas culturais.Isto ocorre porque as culturas pós-modernas, em muitas de suasmanifestações, “operam num campo de tensão entre tradição einovação, conservação e renovação, cultura de massas e grandearte, em que os segundos termos já não são automaticamenteprivilegiados em relação aos primeiros” (HUYSSEN, 1991: 74). Ao negara oposição pura e simples entre categorias dicotômicas, tais comodireita versus esquerda, presente versus passado, modernismoversus realismo, vanguarda versus kitsch, o pós-modernismo queralertar para a existência de realidades complexas que não maispodem ser explicadas por meio destas oposições reducionistas.Em outros termos, pode-se cogitar o papel desempenhado pela

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cultura de massa na divulgação não apenas da cultura erudita,mas sim na fusão entre os diferentes níveis de cultura presentesna sociedade, fazendo com que não se encontrem mais as culturasnos respectivos lugares onde comumente costumavam estarlocalizadas.

Dissabores

O que talvez seja passível de questionamento é a banalizaçãoa que tais fusões são submetidas tendo em vista o aspectomercantilista presente em muitas dessas produções. Este processodecorre de uma realidade social calcada sobretudo no consumismo– entendido como satisfação individual dos desejos – podendo estefenômeno ser relacionado à queda dos projetos coletivosvislumbrados pelo Iluminismo. Tal queda parece ter suporte emgrande parte na dimensão mercantilista assumida pelos meiosde comunicação de massa :

Tudo parece tornar-se acessível e consumível: as coisas, os serviços,os símbolos, o tempo (sob a aparência de lazer), o espaço (graçasaos novos meios de mobilidade) e até mesmo a vida (pelo recuodas fronteiras da morte e, de uma certa maneira, a escamoteaçãodesta última). O consumidor apaga o cidadão; o que produz, segundoas interpretações que somente são contraditórias nas aparências,uma despolitização progressiva ou uma politização do cotidiano,portanto, generalizada (BALANDIER, 1982: 66).3

Tais circunstâncias apontam para um quadro no qual asinformações sobre acontecimentos diversos se tornam facilmenteacessíveis; entretanto, o desenvolvimento progressivo das técnicasaudiovisuais responsáveis pela disponibilidade das informaçõesesbarra num obstáculo paradoxal: a capacidade cada vez maiorde divulgação das informações é enfraquecida por seu próprio uso.

Isto quer dizer, em muitos casos, que elas se tornam banaise se desgastam, o que exige renovações freqüentes ou a criaçãode aparências de novidade. O grande palco desse jogo é o cenáriourbano que aparece então como locus da novidade, do progresso eda eficiência — simbolizando o próprio e “inevitável” avanço social,alicerçado na inventividade e na operosidade da indústria urbana

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— elementos contrapostos ao tradicional, ao marasmo e aoretrógrado, relacionados, muitas vezes, ao espaço rural.

O culto às cidades, no entanto, alimenta-se de sentimentoscontraditórios, tais como o fascínio e a repulsa: por um lado, oambiente urbano oferece diversificadas opções de lazer, cultura eentretenimento; por outro, intensificam-se problemas sociais comoa poluição (ambiental, sonora, visual etc.), a violência, o stress, oconsumo de drogas, os contrastes entre miserabilidade eabundância etc. A vitrine privilegiada para a exposição dessascenas é a televisão.

Já no final do século XIX, no conto “Teoria do Medalhão”,Machado de Assis procurava mostrar como se manter em evidêncianuma sociedade capitalista. Usando como recurso o diálogo entreum pai e seu filho, a narrativa aparece como aula detalhada sobreos mecanismos a serem utilizados para a projeção pública daimagem.

Pode-se argumentar que muitas das estratégias usadasatualmente encontram-se esboçadas nessa narrativa machadiana:a atualidade de Machado, guardadas as proporções, reside no fatode antecipar algumas características e estratégias adotadas pelos“astros e estrelas” da pós-modernidade (ligados à televisão, aocinema, aos esportes etc.). Como figuras de expressivo destaque,elas necessitam da cobertura constante da mídia para manteremsua imagem em evidência, que, por sua vez, será utilizada pelapublicidade televisual.

Um exemplo: muitas dessas “personalidades” fazem doaçõesem dinheiro para instituições filantrópicas, mas, para tanto,“exigem” a presença da imprensa para cobrir os momentos decaridade. No entanto, elas recebem quantias estratosféricas, quesuperam em muito o valor das doações, o que demonstra ainsignificância de tais atos se comparados aos milhões que giramem torno de sua imagem pública, que passa a ser valorizada aindamais. Assim, a montagem de tais situações coloca essespersonagens “diante dos olhos do mundo” e, dessa forma, procura-se obter os benefícios daí advindos.

No conto-novela “O alienista”, Machado de Assis descrevecenas em que a publicidade assume o papel de elementoinstaurador de reputações. Exemplo disso pode ser encontrado na

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descrição do uso da matraca, meio através do qual eram divulgadasnotícias e informações relevantes para as comunidades da época:

De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele [ooperador da matraca] anunciava o que lhe incumbiam (...). O sistematinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pelagrande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dosvereadores (...) desfrutava a reputação de perfeito educador decobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos;mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses.E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter vistocascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamentefalsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema (ASSIS, 1994:18).

A televisão, nesse contexto, pode ser compreendida como a“matraca do século XX”, pois serve como instrumento para osucesso ou obscuridade de determinadas situações ou pessoas,de tal maneira que parece que a realidade só se efetiva quandotransportada para a tela, pois o que não é mostrado na televisãoparece não ter existência de fato. Além disso, grande parte dosprogramas televisivos refaz o percurso do medalhão machadianoao oferecerem aos telespectadores a mesmice, desencadeada pelocontrole exercido pela “mentalidade-índice-de-audiência”dominante atualmente e que privilegia a difusão do óbvio, do “jávisto”.

Um estudo interessante sobre a televisão pode ser encontradonas Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-culturana Argentina, “mostradas” pela pesquisadora Beatriz Sarlo.Destacam-se aqui as análises sobre as alterações provocadas naprodução televisiva com o advento do zapping: acionamentoconstante do controle remoto por parte dos telespectadores —recurso originalmente utilizado pelos estúdios de televisão (váriastomadas de uma cena a partir de várias câmeras) que passou parao ambiente doméstico. A autora assinala que o zapping — porprovocar uma relativa perda de intensidade por parte da imagemdevido à descontinuidade das cenas — fez com que o discursotelevisivo procurasse se proteger da mudança de canal através daênfase na velocidade e na obscenidade e da eliminação do silêncio,do “branco” e da permanência de uma mesma imagem. Com isso,“espera-se que o alto impacto e a velocidade compensem a ausência

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de brancos e silêncios, que devem ser evitados porque abrem asfendas pelas quais passa o zapping” (1997: 61).

Além de mostrar de que formas o controle remoto altera asrelações entre telespectador-televisão e como o discurso televisivose adapta a estas alterações, a autora apresenta ainda comentáriosrelacionados à institucionalização televisiva, na medida em que atelevisão passa a ter credibilidade maior do que algumasinstituições tradicionais. Esta credibilidade está alicerçada,segundo a autora, em estratégias como a “gravação ao vivotransmitida ao vivo” que causa nos telespectadores a impressãode estarem diante da vida “tal como ela é”, sem as manipulaçõesque poderiam ocorrer com a montagem das cenas realizada emprogramas gravados:

Diante da gravação ao vivo pode-se pensar que a única autoridadeé o olho da câmera: como desconfiar de algo tão socialmente neutrocomo uma lente? Neste ponto, a gravação ao vivo parece anular oantigo debate sobre a relação entre mundo e representação (...).[Assim] diante da opacidade crescente de outras instituições, dianteda complexidade infernal dos problemas públicos, a televisãoapresenta o que acontece tal como está acontecendo e, em seu cenário,as coisas parecem sempre mais verdadeiras e mais simples.Investida da autoridade que as igrejas, os partidos e as escolasperderam, a televisão faz soar a voz de uma verdade que todo mundopode compreender rapidamente. A epistemologia televisiva é, nestesentido, tão realista quanto populista, e submeteu a uma demolidoracrítica prática todos os paradigmas de transmissão do saberconhecidos pela cultura letrada (1997: 73-76, grifos da autora).

Saberes

Apesar desse quadro, a cultura de massa pode serconsiderada como uma das conseqüências do progressointensificado pelos avanços da ciência e da tecnologia que, dediversos modos, influem na melhoria do nível de vida deconsiderável parcela da comunidade humana. A consolidação dosmeios de comunicação de massa é uma das conseqüências desseprocesso, com os defeitos e as qualidades que lhe são inerentes.

Numa sociedade marcada por tais caracteres acomercialização da arte é inevitável e, mais que isso, é o caminhoque ela tem para satisfazer as novas necessidades emocionais e

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espirituais do homem. Se a cultura de massa pode ser condenadapor se fundar muitas vezes em formas estereotipadas, devido àsua eficiência comprovada, por outro lado, deve-se fazê-lo “(...) semperder a noção real do problema da arte contemporânea e semperder de vista as circunstâncias em que os artistas do passadorealizaram suas obras (...) [já que] há uma tendência a idealizar ascondições de trabalho destes, que só prejudica a avaliação doproblema na atualidade” (GULLAR, 1978: 137).

Como alerta Umberto Eco, toda modificação dos instrumentosculturais, na história da humanidade, se apresenta como umaprofunda colocação em crise do ‘modelo cultural’ precedente. Taiscrises podem ser localizadas, segundo o autor, na invenção daescrita na Antigüidade, da imprensa no Renascimento e, maisrecentemente, dos novos instrumentos audiovisuais (Cf. ECO, 1979:34). A partir das duas últimas décadas do século XX, pode seracrescentada a esse processo a invenção da internet como fatordecisivo para a mudança dos modelos culturais existentes atéentão. Muitas das discussões sobre tal fenômeno ainda estão porserem feitas, mas já aparecem alguns aspectos significativos paradesignar a comunicação realizada via computadores como elementofundamental na redefinição do acesso ao conhecimento por partedos grupos sociais.

A internet pode ser definida, a rigor, como mecanismo atravésdo qual ocorre a fusão entre alguns elementos cruciais dos meiosde comunicação anteriores: a escrita, o som e a imagem aparecemcombinados no hipertexto de tal forma que as possibilidades deacesso à informação são mais diversificadas. Muitos dos limitesde produção e divulgação, presentes, por exemplo, na televisão ena imprensa periódica, são redimensionados na medida em quequalquer pessoa, dentro de certas condições, pode divulgar suaspáginas na rede de computadores, disponibilizando seu acessoaos inúmeros usuários do sistema. Além disso, o número de“canais” de acesso à informação é ilimitado, fazendo com que aescolha do que se quer ver, ler ou ouvir torne-se mais ampla.

Uma das dificuldades encontradas na utilização da internetestá relacionada, em muitos casos, aos altos custos dosequipamentos. A história da difusão da televisão como meio decomunicação de massa pode ser usada como índice para sinalizar

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que as possibilidades de acesso à “rede mundial de computadores”serão facilitadas no futuro. A televisão, em seu início, era umequipamento usado por uma minoria; no entanto, sustentada porconstantes transformações, passou a ser um objeto de usodisseminado por toda a sociedade.

Este parece ser o caminho da internet, tendo em vista suautilização cada vez maior por parte de instituições públicas eempresas dos mais diversos setores ou até mesmo com a ampliaçãodo uso doméstico dos chamados computadores pessoais.

Portanto, um aspecto a ser destacado com relação aodesenvolvimento gradativo dos meios de comunicação de massa éque tal fenômeno redimensiona a difusão de normas, valores, gostose padrões de comportamento, antes sob a tutela quase exclusivade instituições tradicionais, tais como a igreja, a família, a escolaetc. Aquela rede de privilégios gerava, por motivos diversos, umamaior limitação do acesso ao conhecimento.

Como leitores, ouvintes e telespectadores, as pessoas passama obter informações sobre o mundo por meios que podem serdefinidos, em certo sentido, como alternativos, por apresentaremmaiores possibilidades de aproximação das pessoas com realidadesoutrora distantes, debilitando a eficácia de instituições tradicionaise locais. Surgidos num primeiro momento na Europa e nos EstadosUnidos, os impulsos contraculturais da década de 1960 parecemser um dos exemplos fundadores desse tipo de manifestação: asrevoltas estudantis, os concertos musicais promovidos pelomovimento hippie, além de outras práticas ligadas à contracultura,foram divulgados em praticamente todo o mundo. É claro que adivulgação desse fenômeno teve reações as mais diversas possíveis.No Brasil, por exemplo, marcado pela repressão exercida peloregime militar instaurado a partir de 1964, tais imagens e idéiasinterferiram consideravelmente na estruturação de gruposcontrários ao regime. O que prevalece, no entanto, é a amplitudeplanetária assumida pela divulgação dessas imagens e idéias.

O emprego dos meios de comunicação de massa não podeser entendido apenas como “ferramenta alienante” nas mãos deprodutores mal-intencionados ou com interesses duvidosos, já quemuitas de suas realizações apresentam caracteres que incorporamabordagens críticas das relações sociais. Além disso, deve-se

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atentar para a impossibilidade de identificar de forma igualitáriaa recepção de produções ligadas à cultura de massa, já que acomplexidade das formações sociais enfraquece tal suposição,devido principalmente à diversidade de atitudes receptivaspossíveis frente à divulgação de formas e temas ligados à culturade massa. Em suma, a multiplicação e a difusão dos mass mediamarcaram profundamente as relações socioculturais, com maisênfase nas décadas que delimitam a segunda metade do séculoXX.

Como observa Umberto Eco, graças aos meios audiovisuaise à consolidação da imprensa escrita, o acesso ao conhecimentoadquire dimensões que não se encontram em nenhuma dassociedades do passado :

Quando imaginamos o cidadão de um país moderno lendo numarevista ilustrada notícias sobre a estrela de cinema e informaçõessobre Miguel Angelo, não devemos compará-lo ao humanista antigo,movendo-se com límpida autonomia pelos vários campos docognoscível, mas ao trabalhador braçal, ou ao pequeno artesão dealguns séculos atrás, excluído da fruição dos bens culturais (1979:45).

A cultura de massa, portanto, precisa ser inserida numcontexto que, principalmente a partir da década de 1960, passou aimprimir traços de uma crescente revolução nas noções de espaço,poder, linguagem e identidade correntes em diversos grupossociais. Tais traços podem ser detectados em alguns fatores quecolaboraram decisivamente para compor o cenário da segundametade do século XX. Entre eles, destacam-se:

O colapso dos grandes impérios europeus, sua substituição pelahegemonia econômica mundial dos Estados Unidos, a erosão doEstado-nação e das fronteiras geopolíticas tradicionais, juntamentecom as migrações globais em grande escala e a criação daschamadas sociedades multiculturais, a crescente exploração degrupos étnicos no Ocidente e nas sociedades periféricas em outraspartes do mundo, o imenso poder das novas corporaçõestransnacionais (EAGLETON, 1997: 322).Merecem destaque, neste processo, as relações estabelecidas

entre o contexto histórico, político e sociocultural e as obrasdefinidas como pós-modernas: aspecto marcante em muitas obraspós-modernas, como negar a interação entre cultura de massa e

sobre o pós-modernismo

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literatura nos tempos atuais? Como querer definir obras anteriorescom base nesta característica quando a interferência da culturade massa na sociedade era ainda incipiente, pois restrita aos jornaisdas primeiras décadas do século XX?

Tais circunstâncias são visíveis a partir da inserção cada vezmaior dos meios de comunicação de massa nas relações sociais,por meio de veículos diversos, sejam eles consagrados como opróprio jornal, sejam eles novas invenções humanas como ocinema, a televisão ou ainda a internet. Além disso, outro fatorimportante nesse cenário pós-moderno está relacionado à expansãoda publicidade nesses meios como forma de divulgação de produtose serviços. Incluso nesse processo está o próprio mercado editorial,que passa a se configurar como espaço para a ampliação doconsumo de livros.

Notas

1. Expressão sugerida por Italo Calvino ao analisar a “inflação” da imagem,através do cinema, da televisão, da publicidade, das histórias em quadrinhos,entre outros meios, que ocorre de maneira mais significativa a partir da segundametade do século XX. In: CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio.São Paulo: Cia. das Letras, 1990, p. 108.

2. Ainda com relação a esse debate, algumas considerações significativassobre as relações entre modernidade e pós-modernidade podem serencontradas nas páginas escritas por Néstor García-Canclini, a partir das quaiso autor desenvolve um estudo pertinente sobre as especificidades queconfiguram o cenário de países latino-americanos (Culturas híbridas: estratégiaspara entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1997).

3. Para o contexto brasileiro – assim como para muitos dos chamados países“periféricos” – a frase de Georges Balandier (“o consumidor apaga o cidadão”)necessita de alguns reparos, já que nesses países, para um númeroconsiderável da população, pode-se sugerir que o desejo de se tornar consumidorobscurece o desejo de se tornar cidadão.

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CAPÍTULO IV

CENAS E LEITURAS DE UM MESTRE DA PALAVRA

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Geralmente quando o texto está saindo fácil, a gente vai ver éporque está escrevendo obviedades ou repetindo fórmulas. Fazparte da preguiça mental, da minha pelo menos, a rendição aolugar-comum. É preciso resistir. Mas também é preciso resistir àpreocupação de ser original demais. Isto é, de escrever tão“diferente”, que dificulta a leitura. Acho que o importante é serclaro. Em segundo lugar, se possível, original.

Luis Fernando Verissimo

Este pode ser considerado um estudo ligado às produçõesculturais pós-modernas na medida em que se encarrega de levar aefeito a apresentação de um entre os vários relatos que caracterizamesse momento: o da literatura brasileira contemporânea. No interiordesses limites, optou-se por um escritor pouco prestigiado pelosestudos literários: Luis Fernando Verissimo. Apenas algumascrônicas do autor foram selecionadas, já que a análise de toda asua produção será uma tarefa prazerosa, mas no horizonte de umfuturo próximo. Entende-se que tal tarefa seja possível comoreleitura, tanto de sua obra quanto de suas avaliações críticas.

Filho do também escritor Érico Verissimo, Luis FernandoVerissimo nasceu em Porto Alegre, no dia 26 de setembro de 1936.Sua formação intelectual tem como referências o Instituto PortoAlegre e o Theodore Roosevelt High School, em Washington, apesarde se considerar um autodidata. Seu percurso literário inicia-seno Jornal Zero Hora, de Porto Alegre, a partir de 1967, quandodesempenhou as funções de copidesque, redator, editor devariedades e editor internacional. Mas, foi como cronista que sefirmou na carreira literária. Em 1970, passa a colaborar com o jornalFolha da Manhã. A partir de 1973 publicou seus primeiros livros,projetando-se nacionalmente. Trata-se da coletânea de crônicasintitulada O popular, seguida, em 1975, por A grande mulher nua.

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Nessa época, ingressa no Jornal do Brasil e, no início da décadade 1980, passa a integrar a equipe da revista Veja. Esses serão osespaços editoriais em que suas crônicas alcançariam destaque cadavez maior. Atualmente, além de reunir parte considerável de suascrônicas em livros, continua a colaborar com importantes jornais,revistas e emissoras de televisão. Nestas, desempenhou váriasfunções, destacando-se sua participação na adaptação de textos deMonteiro Lobato para a série O Sítio do Pica-pau Amarelo. Ademais,merece ser mencionada a transposição de suas Comédias da VidaPrivada para o programa televisivo homônimo devido ao sucessoeditorial alcançado pelos textos que integram a obra.

A comicidade está entre as características constantes emsuas narrativas — nas mais inusitadas formas. A descontraçãoem falar de qualquer tema, e uma visão sólida sobre os fatos,revelam análises inteligentes e precisas da vida cotidiana: a artede Luis Fernando Verissimo reside, fundamentalmente, nacapacidade de captar cenas, muitas vezes insignificantes à primeiravista, e torná-las visíveis e risíveis, pelo emprego de recursosdiversificados.

A perspicácia em analisar a alma humana e suas (i)limitações,revelando-as ao leitor de forma transparente, torna suas obrasreferências para o estudo de algumas questões ligadas ao contextobrasileiro das duas últimas décadas do século XX. Além disso, seustextos possuem traços que vinculam sua obra ao pós-modernismo,criando assim uma fórmula crítica aliada ao prazer da leituraproporcionado pela sua comicidade.

Desse modo, como forma de mostrar aspectos da ficçãobrasileira contemporânea, nas páginas que seguem sãoapresentadas reflexões sobre narrativas de um dos escritores maissignificativos da cena literária na atualidade. A arte da palavradesenvolvida por Luis Fernando Veríssimo incorpora elementosapresentados nos capítulos anteriores e serve como exercício deanálise desses elementos. O texto investe nas formas que o autorutiliza para conquistar a adesão de seus leitores a partir do uso dacomicidade, sendo esta comicidade instaurada em suas narrativaspor meio de recursos diversificados como a paródia, a ironia, osarcasmo, a alegoria, o nonsense, a inversão de papéis, atransposição de situações, et caetera.

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Lançando mão desses recursos, o autor realiza um processode desautomatização de estereótipos, desmistificandocomportamentos alienados, compreendidos em sentido amplo. Alémdisso, pretende-se discutir as relações existentes entre essesartefatos literários e outros textos a partir do conjunto de elementospresentes nas crônicas que apontam o modo como é construída arepresentação do cotidiano. Suas narrativas possuem umacomposição que articula de forma constante vários planos — taiscomo o do conteúdo histórico e o da matéria ficcional — a partirdos quais se pode inventariar, problematizar e discutir questõesrelativas às fronteiras do texto literário com outras produçõesartísticas.

Devido às especificidades do gênero praticado, serãoanalisadas também as leituras de fatos históricos realizadas peloautor. Trabalhando com essa problemática e inscrevendo-se deforma singular na tradição da narrativa literária brasileira, ascrônicas de Luis Fernando Verissimo apresentam uma variedadede temas e formas que buscam incentivar a participação ativa doleitor.

Essa participação é incentivada e, até certo ponto, exigidaatravés da desarticulação do “real”, a partir da qual os limites dacriação e da imaginação são mais amplos, possibilitando, assim, oestabelecimento de uma reflexão sobre as possibilidades deproblematização da história pela representação literária, próximodaquilo que é identificado na ficção pós-moderna e na ficção latino-americana contemporânea. Suas crônicas configuram assim umadialogia, território compartilhado pela linguagem e pelo discurso,onde se cria o espaço para a manifestação ideológica, através dapercepção cômica de um intervalo entre as convenções e a realidade.Nas palavras de Luis Filipe Ribeiro:

Não há que pensar em dialogismo apenas na forma evidente dodiálogo, seja nas obras de ficção, seja no cotidiano da vida. Odialogismo está presente onde houver discurso. E, por isso mesmo,o enunciado será sempre entendido como a expressão material deuma passagem: por ele trafegarão as versões de mundo, asindagações, as perplexidades dos atores desse drama curioso. Emuma palavra, os valores (1998: 13).

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Revela-se, portanto, extremamente relevante, para a análisedas crônicas de Luis Fernando Verissimo, estabelecer as relaçõesde debate, de polêmica, de paródia etc., entre os enunciados, assimcomo as pausas, a atitude implícita e outras particularidades quecaracterizam suas narrativas. De acordo com Mikhail Bakhtin, “cadaenunciado é pleno de ecos e reverberações de outros enunciados,com os quais se relaciona pela comunhão da esfera da comunicaçãoverbal (...). Cada enunciado refuta, confirma, complementa edepende dos outros; pressupõe que já são conhecidos, e de algumaforma os leva em conta” (BAKHTIN apud STAM, 1992: 73).

Essa interdependência dos enunciados emerge como matériapara o cronista ao utilizar-se do que se pode denominar de “lógicado avesso”, ou, em outras palavras, de um processo de inversão designificados e valores, revelando uma atitude de desprezo em relaçãoàs convenções sociais, na qual aparecem os diálogos com outrosenunciados. Suas fontes são os contos de fadas, as fábulas, osprovérbios, as “versões oficiais” sobre fatos históricos, o cinema, amúsica, a fala coloquial, entre outras.

A análise intenta esboçar as possibilidades de leitura dascrônicas de Luis Fernando Verissimo. Para tanto, explora asimplicações de categorias analíticas específicas, tais como aquelasderivadas dos empreendimentos críticos ligados ao pós-modernismoe à comicidade, com o intuito de contribuir para o estudo dasrelações entre linguagem e poder, já que “cada palavra se apresentacomo uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam osvalores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se (...)como o produto da interação viva das forças sociais” (BAKHTIN apudSTAM, 1992: 73). As crônicas de Luis Fernando Verissimo apresentamvárias instâncias características das concepções acima referidas,resultando na subversão das certezas e no questionamento dahierarquização social presente nas relações do cotidiano.

Além das concepções apontadas, o presente texto intentaainda identificar as propriedades da comicidade dos textos no quese refere aos seus aspectos de crítica e contestação sociais,ampliando o espaço do riso como forma de mudança e transição,pois “o riso nasce da observação de alguns defeitos no mundo emque o homem vive e atua” (PROPP, 1992: 174). As relações entre

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literatura e história para essa análise são fundamentais, pois éatravés dessa relação que se pode averiguar a existência de ummodelo de subversão na escrita de Luis Fernando Verissimo.

O texto divide-se em dois momentos: no primeiro sãorealizadas análises que visam estabelecer comentários gerais sobrea obra do autor; no segundo, são realizadas análises pormenorizadasde algumas narrativas. Em relação a esse aspecto, faz-se umaressalva: apesar da citação direta de trechos durante a análise, asnarrativas utilizadas na segunda parte do texto serão apresentadasna íntegra, buscando manter a sua configuração original para queo leitor possa ter acesso à leitura dos textos antes de seremefetuadas suas análises. Tal proposta é justificável, pois, comonarrativas curtas, as crônicas prestam-se com mais desenvolturaa esse tipo de exercício: deixar que o autor fale através da inserçãode seus textos no corpo do trabalho.

COMENTÁRIOS PANORÂMICOS

Entre as obras de Luis Fernando Verissimo, destacam-se asComédias da vida privada, uma síntese de situações cotidianas daclasse média — personagem predileta do autor — e seus encontrose desencontros sociais. O livro é uma análise da natureza humanaem geral, composto de crônicas sobre relacionamentos conjugais,extraconjugais, familiares, amizades, a tecnologia moderna,costumes, comunicação, cultura e intelectualidade, amor, política,entre outros. Em todos esses temas o que predomina é o sentidode oportunidade da percepção crítica para destacar facetas curiosasdo comportamento humano e criar inversões insólitas em suasrelações com o mundo.

Maria Heloísa Martins, em sua resenha da coletânea decrônicas intitulada O suicida e o computador, ressalta que “em L. F.Verissimo a originalidade se expressa no caráter transgressor dalinguagem, utilizada de modo a provocar efeitos de estranhamento(há muito defendidos pelo Formalismo russo) graças às curiosassoluções formais” (MARTINS, 1994: 262).

Além dessas, suas Comédias da vida pública são umareferência importante sobre fatos recentes da história do Brasil.

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São mais de duzentas crônicas, que, segundo o autor, “valem comoanotações na margem desse tempo estranho que vivemos, tentandoconciliar duas exigências conflitantes: ser brasileiro e manter ummínimo de compostura. Todos os tempos são estranhos, os nossossão mais porque acontecem com a nossa presença, a nossaconsciência e – quando temos este privilégio – o nosso testemunho”(1996: 08). Tal testemunho encontra substância, em muitas de suascrônicas, na criação de alguns personagens-tipo, que aparecemcom maior freqüência.

O primeiro desses personagens a ser apresentado aqui é EdMort, uma versão tupiniquim “subdesenvolvida” como contrapontotanto ao investigador Sherlock Holmes de Conan Doyle quanto aoespião cinematográfico James Bond. Assim, “Mort, Ed Mort” é umdetetive brasileiro em carne e osso, muito mais osso do que carne,já que seus casos nunca lhe dão dinheiro e ele vive tendo quepenhorar seus pertences: uma mesa e uma Bic. Trabalha em um“escri” (já que escritório é uma palavra grande demais para descrevero local), que compartilha geralmente com algumas baratas e umratão albino chamado Voltaire. Seus casos são os mais estranhos eas aventuras hilárias, principalmente porque procuram mostrarcomo um detetive pobre, sem os recursos sofisticados da ScotlandYard ou do cinema, tenta solucionar os enigmas apresentados pelosseus clientes. O autor reelabora elementos peculiares aos contospoliciais, tais como a carga de mistério e suspense presente emtais produções.

No que se refere mais especificamente ao contexto brasileiro,o autor procura incorporar algumas questões relacionadas aoespaço da malandragem: o personagem, em muitas situações,precisa recorrer ao “jeitinho” para dar conta das dificuldadessurgidas em seu cotidiano. Contudo, Ed Mort é, ao mesmo tempo,“malandro e otário”. É nessa reelaboração que se sustenta acomicidade, pois o personagem aparece como figura ridícula queleva o leitor ao riso, devido à extrema confiança depositada em simesmo, a qual não se efetiva nas tentativas de resolução de seuscasos.

Outra personagem recorrente nas histórias de Luis FernandoVerissimo é A Velhinha de Taubaté: trata-se de uma senhora deidade que, obviamente, mora em Taubaté, e, por acreditar em tudo,

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é, portanto, a última pessoa que acredita no governo. Em sua casa,com seu gato, assiste pela televisão as justificativas do governopara todo tipo de problema e acredita em tudo, sendo por este motivopaparicada pelos políticos. Ela é a última pilastra que impede o Brasilde desabar no caos, pois quando ela deixar de acreditar no governo,é porque ninguém mais acredita. Em suas histórias, Luis FernandoVerissimo utiliza a personagem para ironizar atos e fatos políticos,principalmente aqueles ligados à fase de transição entre ditaduramilitar e a redemocratização. Seu ataque está direcionadoprimordialmente àquelas pessoas ligadas ao movimento TFP –Tradição, Família e Propriedade – famoso nas últimas décadas dahistória brasileira pela visão reacionária assumida diante da novarealidade vivida pelo mundo atual e , em particular, pela sociedadebrasileira contemporânea.

O personagem mais famoso, no entanto, é O Analista de Bagé:descrição da rotina de um “bajeense típico” e seus encontros compacientes em seu consultório. Ele é um herói anônimo, identificadotão-somente pela profissão – a de analista – e uma procedência – acidade de Bagé, no interior do Rio Grande do Sul. Esta e mais adescrição de sua indumentária, hábitos cotidianos, vocabulário eestilo configuram o caráter regional do protagonista, aparecendoentão como gaúcho autêntico. Note-se, porém, que suaautenticidade (associada à vida no campo) contrasta com aprofissão: um gaúcho típico não pode, à primeira vista, atuar comoanalista, profissão geralmente ligada ao ambiente urbano. É nessejogo de contrastes que o personagem encarna situações que levamao riso.

“Freudiano de carteirinha”, trata seus pacientes, com sucesso,pelo emprego de técnicas desenvolvidas na prática diária daprofissão: “o joelhaço”; “o tapa”, “o cabeçaço”, “o cotovelaço”, entreoutras. Durante as sessões, o Analista enfrenta megalômanos,paranóicos, problemas sexuais, crises de identidade e todo tipo de“loucura”. Com esse personagem, o autor trata dos problemascomuns que afligem a classe média e que muitas vezes, segundo opróprio Analista, são meramente “frescuras”. O personagem foicriado inicialmente para um programa de Jô Soares, e era umgarçom gaúcho em um restaurante francês; como não foi muitoutilizado pelo humorista televisivo, Luis Fernando Verissimo

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reutilizou o mesmo em suas crônicas, mudando a profissão, masmantendo a estrutura cômica: o contraste criado entre opersonagem e o ambiente. Em outras palavras, as do próprio autor,o personagem é usado para “explorar a incongruência (...). A velhahistória do touro na loja de cristais” (TORNQUIST, 1984: 05).

De acordo com Regina Zilberman, no que diz respeito aoanalista, Luis Fernando Verissimo, “ao compor o protagonista demodo contraditório, em que elementos antagônicos convivem semse harmonizar, questiona a natureza do tipo regional e seuanacronismo numa sociedade moderna e cultivada”. Além disso, oautor seria responsável pelo desmascaramento do “artificialismodaquele processo de modernização urbana, no qual se associam,também de modo contraditório, o arcaísmo originário do meio ruralconservador e a aspiração à novidade, configurada na adoção depadrões de comportamento ditos progressistas” (1985: 105). Veja-se um exemplo:

O paciente respira fundo. O analista de Bagé pergunta:- Agora, qual é o causo?- É depressão, doutor.O analista de Bagé retira uma palha de trás da orelha e começa

a enrolar o cigarro.- Tô te ouvindo – diz.- É uma coisa existencial, entende?- Continua, no más.

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- Mas acontece que eu me angustio. Me dá um aperto nagarganta...

- Escuta aqui, tchê. Tu te alimenta bem?- Me alimento.- Tem casa de galpão?- Bem... Apartamento.- Não é veado?- Não.- Tá com os carnê em dia?- Estou.- Então, ó bagual. Te preocupa com a defesa do Guarani e larga

o infinito.- O Freud não me diria isso.- O que o Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe

alemão?- Não.- Então te fecha. E olha os pés no meu pelego (1981: 24).

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Se a profissão pode ser considerada como índice anacrônicodo tipo regional, ele, por sua vez, desnuda a inautenticidade dasdoenças de seus pacientes, cuja superficialidade é revelada tãologo o médico emprega as técnicas originais que desenvolveu.

Como ponto comum na construção desses diferentespersonagens, emerge a posição irônica assumida pelo narrador, jáque este apresenta as histórias sem aderir ao que está sendorelatado, mantendo assim um certo distanciamento em relação aos“casos” contados.1 Esses personagens-tipo podem ser inseridosnaquela categoria de literatura produzida pelo autor que secaracteriza pelo deboche descompromissado, que não causa granderepercussão no que se refere ao questionamento de padrõessocioculturais vigentes na sociedade. Isto se explica pela utilização,em muitos casos, do humor sem derrisão — compreendido comoaquele que desperta o riso benevolente — como forma de construirtais narrativas.

Nesse aspecto, em Luis Fernando Verissimo, um dos recursosrecorrentes para instaurar a comicidade nas narrativas é oparadoxo, a partir do qual o autor reúne, apesar de suaincompatibilidade, conceitos que se excluem mutuamente.Exemplo: “Cheio de dedos” (1983: 124-127) é uma crônica que falada importância das mãos para a história da humanidade: “acivilização começou com o dedão opositor. A evolução maisimportante de toda a história da espécie, batendo longe a invençãoda roda, do transistor e da azeitona sem caroço, foi odesenvolvimento da junta giratória que permite ao dedão – o Pai deTodos – se opor aos outros dedos” (1983: 125). Ao falar da evoluçãoda espécie, o narrador enfatiza invenções humanas como a roda eo transistor, comumente aceitas como verdadeiros avanços, no quese refere ao domínio da natureza pelo ser humano. Incluir aí aarticulação entre o polegar e os outros dedos das mãos (apesar denão ser uma invenção), tudo bem. Mas, quanto é que a “invenção”da “azeitona sem caroço” contribuiu para a evolução da espécie?Provavelmente, bem pouco.

Ao reunir informações como essas, Luis Fernando Verissimodesperta o riso no leitor com a utilização do paradoxo. Na mesmanarrativa, pode ser destacada outra construção paradoxal.Continuando a exposição da evolução humana, o narrador enfatiza

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que “no momento em que pôde juntar as pontas do dedão e doindicador com delicada precisão, para segurar uma borboleta ouesmagar um piolho, o homem passou a integrar uma ordem maisalta de mamíferos” (1983: 125). Sendo assim, através do diálogocom o leitor, o narrador encerra dizendo que o que “distingue ohomem dos primatas não é, como você [leitor] sempre pensou, aalma (...). É o dedão. Sem o dedão o homem não teria uma história.Jamais teria desenvolvido qualquer técnica mais avançada do queo bolinho de barro. Ainda andaria de quatro sem desfrutar dasmaravilhas do mundo moderno, como a poluição, a bomba denêutron e o baixo fender” (1983: 126). A inclusão do “baixo fender”,instrumento musical famoso pela sua qualidade sonora, como umadas maravilhas do mundo moderno é até aceitável. Mas “a poluiçãoe a bomba de nêutron” são maravilhas a serem desfrutadas?

Ao utilizar-se dos paradoxos, o escritor procura chamar aatenção para a necessidade de estar atento à leitura, tanto dostextos quanto do mundo, pois muitas vezes os “leitores” nãopercebem as contradições presentes nas interações sociais. Ainclusão proposital de construções paradoxais desperta o leitorpara essas contradições: o que ocorre é um processo no qual osleitores precisam estar em vigília permanente e refazer a leiturapara que obtenham a confirmação da leitura anterior; é aí que otexto adquire a capacidade de provocar o riso, devido aoagrupamento de informações incompatíveis. A reelaboração dosacontecimentos leva à reflexão, revelando sua força persuasiva noriso ambíguo despertado nos leitores.

Apesar de essas narrativas poderem ser classificadas comoinstrumentos relevantes para despertar o interesse pela leitura,papel primordial desempenhado pela “literatura de entretenimento”(PAES, 1990: 25), o que interessa para o presente estudo, no entanto,são aquelas narrativas do autor que empreendem um percurso decontestação, representado pelos recursos estilísticos que primampela incorporação da crítica à institucionalização de determinadoscomportamentos sociais. Nesse tipo de narrativas, destacam-se asformas capazes de despertar no leitor a condenação dedeterminadas atitudes feita com base no riso reflexivo, suscitadopor recursos como a paródia e a ironia, que procuram relativizardeterminados consensos existentes na sociedade.

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Nesse sentido, muitas das crônicas de Luis FernandoVerissimo podem ser caracterizadas como narrativas “ex-cêntricas”2, por enfatizarem que o centro passa para a periferia,mas sem instituir novos centros: todos passam para a periferia.Com tal estratégia, o que se procura contestar são os discursosvinculados ao humanismo liberal que sugerem a liberdade, aautodeterminação e a racionalidade para todos, mas que seconcentram nas palavras do “homem branco de classe-média/alta,heterossexual e ocidental” (HUTCHEON, 1991: 29). Seus textos secaracterizam, em muitos aspectos, como instrumentos paraexteriorizar os conflitos políticos e ideológicos presentes nocotidiano das relações humanas, já que a atitude subversiva semostra alicerçada na revelação da fragilidade dos pressupostosconsensuais presentes nas estruturas socioculturais.

A valiosa associação entre questões de classe, de etnia, desexo e de raça, pode ser compreendida como contribuição dasdiscussões empreendidas pelos chamados discursos “minoritários”– que de minoria possuem muito pouco – de mulheres, negros,homossexuais, “terceiro-mundistas”, entre outros, que passam ase manifestar de maneira mais organizada a partir das décadas de1960 e 1970, quando

começa a se evidenciar o debate, hoje irreversível nos meios políticose acadêmicos, em torno da questão da “alteridade”. No plano políticoe social, esse debate ganha terreno a partir dos movimentosanticoloniais, étnicos, raciais, de mulheres, de homossexuais eecológicos que se consolidam como novas forças políticasemergentes. No plano acadêmico, filósofos franceses pós-estruturalistas como Foucault, Barthes, Kristeva, Derrida e Ricoeurintensificam a discussão sobre a crise e o descentramento da noçãode sujeito, introduzindo, como temas centrais do debate acadêmico,as idéias de marginalidade, alteridade e diferença (HOLLANDA, 1994:09).

Contudo, um perigo enfrentado pelo pós-modernismo resideno fato de poder vir a “essencializar sua ex-centricidade ou se tornarcúmplice das noções do humanismo liberal sobre universalidade(falar em nome de todos os ex-cêntricos) e eternidade (para sempre)”(HUTCHEON, 1991: 98). Daí a recorrência constante a artifícios como aparódia e a ironia como forma de relativizar as afirmações quepossam ser apresentadas por essas manifestações artísticas.

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Uma das principais estruturas narrativas das crônicas de LuisFernando Verissimo se acha corporificada no diálogo, geralmenteatravés da alternância entre pergunta e resposta. Essa estruturaadquire propriedade ao colocar em evidência os confrontos entrediferentes concepções sobre fatos, crenças, convicções, enfim, sobrecomplexos discursivos convencionalizados na/pela/para asociedade.

Este recurso, aliado à paródia e à ironia, possibilita ao autorconquistar um distanciamento que reivindique a problematizaçãodas contradições presentes nos relacionamentos humanos, sejameles políticos, de classe, familiares, profissionais etc. Em outraspalavras, o diálogo entre as personagens adquire força expressivacomo processo de comunicação por meio do qual são confrontadasas diversas posições presentes nas relações sociais.

A conciliação desses recursos revela-se como estratégiapoderosa para problematizar questões diversas. Um dos recursosa ser destacado é a paródia. Nesse sentido, pode-se argumentarque a paródia não é um procedimento artístico inventado pelomodernismo. Contudo, no caso brasileiro, é a partir dessemovimento estético-literário que a paródia passa a ser enfatizadacomo arma a ser utilizada para a problematização das convenções.Isto ocorre porque o uso da paródia demonstra a consciência críticapela atribuição de novos sentidos a velhos esquemas depensamento, embora muitas vezes o faça com ironia, o queevidencia, em certa medida, uma posição cautelosa no que se refereà instituição de novos paradigmas.

A eficácia do procedimento paródico reside na interação entretexto e leitor, pois a leitura do texto, atravessada e entrecortadapor outro(s) texto(s), está em relação direta com a formação culturalde quem se dispõe a ler determinada obra: por exemplo, comocompreender a reelaboração que Oswald de Andrade faz da Cartade Pero Vaz de Caminha sem ter conhecimento desse texto?

Nas interpretações paródicas de Luis Fernando Verissimo,os mesmos elementos são muitas vezes preservados, mas agorasão executados em novos meios de expressão, alertando para osdiferentes pontos de vista inclusos em uma mesma situação. Oleitor da narrativa é colocado numa espécie de contra-expectativa,que o instiga a ser espectador ativo e não passivo, em relação às

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cenas que está presenciando. Exemplo disso pode ser encontradona crônica intitulada “Frases” (1980: 87-90), por meio da qual LuisFernando Verissimo procura problematizar algumas convençõesrelacionadas às ditas “frases feitas”.

No texto, o narrador começa a pensar que tem problemas nodia em que, conversando com os amigos, refere-se a alguémpossuidor de uma paciência de “Lot”. Eles lhe objetam que se dizpaciência de “Jó”, mas ele insiste, e sua insistência com os amigoso faz duvidar como “Macbeth”. Decide consultar um colega queainda não se manifestara, esperando que ele desse o voto de“Mecenas”, pois o considerava justo como “Moisés”.

Consolado pelos amigos, elabora uma pequena teoria segundoa qual “havia um jeito certo de dizer as coisas e um jeito errado.Milhares de anos de civilização tinham nos legado exemplos e frasespara todas as situações. Esquecê-las seria trair a nossa herança. Acultura helênica, a romana, nossas tradições judaico-cristãs, osclássicos, o próprio dom da comunicação entre os povos” (1980:88). Trair tal herança seria como voltar à torre de “Babilônia”.

O homem vai para casa derrotado, como Napoleão depois de“Watergate”. À noite, desesperado, sente que falta pouco para tomarcicuta, como “Aristóteles”. Sozinho, fica pensando em como as fraseserradas o tornariam vulnerável, seriam seu calcanhar de “Ulisses”.De Ulisses não, de “Átila”. No dia seguinte, decide recomeçar. Afinal,“Esparta” não fora feita num só dia. Decide ir ao médico, que fezouvidos de “marceneiro” em relação às suas queixas, embora fosseinsuspeito, como a mulher de “Nero”. Quando o médico lhe diz queestá tudo bem, o personagem afirma que é esclerose precoce. Omédico responde:

- Imaginação sua.- Sonho de uma tarde de outono – disse eu, amargamente.- Ou de uma noite de verão.- Por que você disse isso? – perguntei desconfiado.- O quê?- Noite de verão em vez de tarde de outono?- Por nada. Tanto faz.- Tanto faz, não. Qual é o certo?- Não existe certo ou errado. Cada um diz como quer...- Você não sabe o que está dizendo! Há só uma maneira de dizer

as coisas. A maneira certa. Obrigatória!- Escute...- Você não vai me receitar nada?

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- Nada.- Estou com uma saúde de... de...- De ferro.- Quer dizer que você lava as mãos?- Como Pilatos.- Como Herodes.- Pilatos.- HERODES!Ele me receitou um calmante.Não saio mais de casa. Não me comunico com ninguém. Não

abro mais a boca com medo de me trair e trair a minha formação. Osilêncio é de prata (1980: 89-90).

O que suscita o riso nessa narrativa é a paródia aliada aoexagero cômico em uma de suas gradações intermediárias: ahipérbole. Esta figura de linguagem pode ser posicionada entre acaricatura e o grotesco, pois enquanto a caricatura exagera apenasum pormenor, “no grotesco o exagero atinge tais dimensões queaquilo que é aumentado já se transforma em monstruoso. Eleextrapola os limites da realidade e penetra no domínio do fantástico.Por isso o grotesco delimita-se com o terrível” (PROPP, 1992: 91). Assim,nesse texto pode ser indicada uma forma de hiperbolização namedida em que o exagero não se restringe a um pormenor, mastambém não atinge os limites do fantástico. O que se exagera é otodo, mas com certas reservas: o exagero está direcionado àpreocupação por parte do personagem em utilizar-se de frasesconsideradas sintomáticas de uma ampla formação erudita.

Outro elemento significativo da narrativa reside no fato deque, concomitantemente à invenção, ocorre a padronização, ou seja,quando o narrador altera as frases, essas procuram manter umaproximidade com as frases “certas”. Este processo está sustentadopela alteração nas mesmas categorias: Lot e Jó são personagensbíblicos; Macbeth e Hamlet são personagens de Shakespeare; Romae Esparta são cidades (antigas); tarde e noite são períodos de tempo;outono e verão são estações do ano; prata e ouro são metais,marceneiro e mercador são profissões, Watergate e Waterloo sãoderrotas de políticos famosos etc.

Com tal procedimento, o autor cita (aludindo) as fórmulas“corretas” que se ouvem por detrás das que aparecem no texto.Esse processo mostra que a narrativa “demanda um leitor quereconheça as fórmulas aludidas, pois sem isso o texto não funciona

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– se onde uns riem outros ficam constrangidos, tudo bem, mas seninguém ri, o texto fracassa” (POSSENTI, 1998: 10).

Como toda paródia, a literatura pós-moderna poderia serconsiderada elitista, na medida em que os códigos necessários àsua compreensão não pertencerem tanto ao autor quanto aodestinatário. Para contornar esse perigo, o autor utiliza indíciosexplícitos como forma de aproximar o leitor e assim evitar atendência do procedimento paródico, em muitos casos, de privatizaro sentido. Por isso, a invenção procura estar atrelada a um esquemade realização que não perca de vista as frases anteriores, já quepara sua compreensão é necessário que se faça uma leitura queleve em conta duas referências: uma presente (frases alteradas) eoutra ausente (frases originais).

O texto ressalta a importância da interação entre as váriasinstâncias envolvidas na leitura: o autor que inventa, o texto quequebra a expectativa e o leitor que precisa se posicionar criticamentepara compreender as alusões paródicas. É nessa interação que anarrativa adquire eficácia, ao problematizar o uso convencionalizadoque se faz da linguagem cotidiana.

O papel desempenhado pelas campanhas publicitárias nadefinição de compra por parte do consumidor é outro assuntoabordado pelo autor que procura mostrar como esse tipo deatividade tem implicações cada vez maiores na indicação decomportamentos. Numa sociedade de consumo, a construção daimagem das empresas deve ser cuidadosamente planejada, visandocausar o impacto necessário para acelerar essa definição. Para tanto,as empresas buscam catalisar essa reação dos consumidoresatravés da produção de materiais publicitários, veiculados tantopor meios de comunicação quanto por recursos “menos” sofisticadoscomo slogans estampados em camisetas, bonés, placas de anúncioetc.

Entre as estratégias adotadas pelas empresas para convencero consumidor na hora da compra está a integração entre o produtoe a forma discursiva adequada como requisito primordial para aaquisição de determinada marca. A importância crescente assumidapela publicidade nas últimas décadas parece estar atrelada ao fatode que, cada vez mais, o que move as pessoas são as possibilidadesde acúmulo de riquezas.

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Como protagonista desse processo, a publicidade televisiva,em muitos casos, reduz seus telespectadores a potenciaisconsumidores, o que leva à valorização cada vez maior dapropriedade: as pessoas desejam ser proprietárias dos produtosexpostos na vitrine da televisão e este desejo é um dos combustíveisfundamentais que alicerçam as ações humanas; as pessoas passama ser valorizadas, em grande parte, pelas posses materializadaspor carros, casas, móveis, eletrodomésticos, roupas etc. Em suma,o valor humano é exteriorizado numa amplitude assustadora: oimportante não é o que se pensa, o que se fala e o que se faz, massim o que se pensa, se fala e se faz através dos objetos adquiridos.3

Como visto, está claro que numa sociedade de consumo aênfase estará direcionada, obviamente, ao consumismo. Dessamaneira, os consumidores são alvos a serem atingidos e as formasutilizadas para conquistar o maior número de pessoas devem sercuidadosamente articuladas para atingir os objetivos propostos.

É nesse quadro que a publicidade assume um papelprivilegiado na configuração de comportamentos e o comercial detelevisão é um dos instrumentos mais poderosos para acelerar adefinição de compra por parte dos consumidores. Em “O estranhoprocedimento de Dona Dolores” (1983: 63-65), Luis FernandoVerissimo retrata o ambiente doméstico de uma família de classemédia na qual a mãe, de tanto assistir aos comerciais de televisão,pensa ser uma “garota-propaganda” em tempo integral:

Começou na mesa do almoço. A família estava comendo – pai,mãe, filho e filha – e de repente a mãe olhou para o lado, sorriu edisse:

— Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvoarroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso (1983: 63).

A partir daí, Dona Dolores só conversa com os outros membrosda família por meio de frases de efeito, como as que são usadas emcampanhas publicitárias. O pai e os filhos acham que Dona Doloresestá louca, mas resolvem dar um tempo para ela se recuperar: “Éuma fase. Passa logo” (1983: 65).

A mãe continua a desempenhar seu papel, dirigindo-se a umacâmera que só ela vê e a um público imaginário que a família nãoconsegue identificar. O pai e os filhos terminam o almoço e elaanuncia o que tem de sobremesa: “Gelatina Quero Mais, uma festa

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em sua boca. Agora com os novos sabores framboesa e manga”.Mais tarde, o marido entra na cozinha e encontra a mulhersegurando uma lata de óleo à altura do rosto: “A saúde da minhafamília em primeiro lugar. Por isto, aqui em casa só uso o puro óleoPaladar”. O marido abre a geladeira para pegar uma cerveja e amulher fala para a parede: “Todos encontram tudo o que queremna nossa Gelatec Espacial, agora com prateleirassuperdimensionadas, gavetas em Vidro-Glass e muito, mas muitomais espaço. Nova Gelatec Espacial, a cabe-tudo” (1983: 64-65).

A narrativa segue com a descrição da rotina diária da famíliae termina no quarto do casal, onde Dona Dolores, sentada em frenteao espelho, passa um creme no rosto: “Marcel de Paris não é apenasum creme hidratante. Ele devolve à sua pele o frescor que o tempolevou, e que parecia perdido para sempre. Recupere o tempo perdidocom Marcel de Paris” (1983: 66).

O marido assiste a cena deitado na cama. Como se estivessenum comercial, Dona Dolores caminha, “languidamente”, deixandocair seu robe de chambre no caminho. Enfia-se entre os lençóis ebeija o marido na boca: “Depois, apoiando-se num cotovelo, dirige-se outra vez para a câmera. – Ele não sabe, mas estes lençóis sãoda nova linha Passional da Santex. Bons lençóis para mauspensamentos. Passional da Santex. Agora, tudo pode acontecer...”(1983: 65).

A crônica encerra quando o marido resolve aproveitar o climade sedução instaurado pela mulher: “Fazia tanto tempo. Apagou aluz, prudentemente, embora soubesse que não havia nenhumacâmera por perto. Por via das dúvidas, por via das dúvidas” (1983:65).

A partir dessa narrativa, os meios de comunicação de massapodem ser caracterizados como mecanismos eficazes no que serefere à sugestão de comportamentos: roupas a vestir, cortes decabelo, postura física, música para ouvir, prática de exercícios paramanter a saúde, candidatos a cargos políticos, receitas culinárias,indicação de medicamentos, entre outros. Estes são exemplos dainstitucionalização de modelos a serem seguidos pelo público. Éclaro que o texto exagera esse processo e é sustentada pelo exageroque a narrativa leva ao riso.

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Contudo, apesar de parecer uma simples piada, ela faz oregistro da presença e interferência crescentes desses veículosna sugestão de produtos a comprar e atitudes a serem adotadascomo exemplares, devido à força, cada vez maior, assumida pelosmeios de comunicação no cotidiano das pessoas.

Outro aspecto recorrente nas narrativas de Luis FernandoVerissimo pode ser identificado na condenação, feita a partir doriso reflexivo, de determinados valores que se presumem universais(para todos), o que revela a preocupação em diagnosticar de quemaneiras se dão as relações estabelecidas pelas pessoas com aalteridade, ou seja, as narrativas procuram mostrar de que formaas pessoas encaram a diferença. Como pode ser visto, o ambientefamiliar é um espaço privilegiado para retratar as relações com aalteridade. Muitas das crônicas de Luis Fernando Verissimoabordam relações familiares, sendo que o convívio entre jovens eidosos, adultos e crianças, pais e filhos (os famosos “conflitos degerações”), maridos e esposas aparece como um dos temasprivilegiados nesse tipo de narrativas. Nelas, a comicidadedirecionada à institucionalização de determinadas posições sociaispode ser entendida como forma de ridicularizar situações nas quaisas pessoas privilegiam determinadas idéias.

Dessas possibilidades de relacionamento, a relação homem-mulher aparece em situações diferenciadas. Na análise anterior,evidencia-se uma estrutura familiar patriarcal em que os espaçosdestinados ao homem e à mulher aparecem demarcados de formatradicional: a mulher aparece transitando pela casa, ocupada como bem estar da família e os afazeres domésticos. Mas essa visãotradicional, muitas vezes, é questionada por Luis FernandoVerissimo.

Em crônica intitulada “Homens” (1994b: 98-100), o autorreorienta a visão tradicional da superioridade masculina por meioda paródia de um dos textos, em certa medida, fundadores de umaestrutura patriarcal de sociedade: no Gênesis, primeiro “capítulo”da Bíblia Sagrada, a mulher é descrita como criação divina oriundade uma costela do homem. O autor refaz os passos divinos da criaçãodo universo, com alguns detalhes inusitados:

Deus, que não tinha problemas de verba, nem uma oposição paraficar dizendo “Projetos faraônicos! Projetos faraônicos!”, resolveu,

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numa semana em que não tinha mais nada para fazer, criar o mundo.E criou o céu e a terra e as estrelas, e viu que eram razoáveis. Masachou que faltava vida na sua criação e – sem uma idéia muitofirme do que queria – começou a experimentar com formas vivas.Fez amebas, insetos, répteis. As baratas, as formigas etc. Mas,apesar de algumas coisas bem resolvidas – a borboleta, por exemplo–, nada realmente o agradou. Decidiu que estava se reprimindo epartiu para grandes projetos: o mamute, o dinossauro e, numafase especialmente megalomaníaca, a baleia. Mas ainda não erabem aquilo. Não chegou a renegar nada do que fez – a não ser orinoceronte, que até hoje Ele diz que não foi Ele – e tem explicaçõesaté para a girafa, citando Lê Corbusier (“A forma segue a função”).Mas queria outra coisa. E então bolou um bípede. Uma variação domacaco, sem tanto cabelo. Era quase o que ele queria. Mas aindanão era bem aquilo (1994b: 98).

Até aqui, a descrição parece se orientar para um desfechoprevisível: Deus cria o homem. No entanto, a narrativa encaminhaoutra possibilidade:

Entusiasmado, Deus trancou-se na sua oficina e pôs-se a trabalhar.E moldou sua criatura, e abrandou suas afeições, e arredondousuas formas, e tirou um pouquinho daqui e acrescentou umpouquinho ali. E criou a Mulher, e viu que era boa. E determinouque ela reinaria sobre a sua criação, pois era a sua obra mais bem-acabada. Infelizmente, o Diabo andou mexendo na lata de lixo deDeus e, com o que sobrou da Mulher, criou o Homem (1994b: 98-99).

A crônica encerra com a descrição de uma situação, agoranos dias atuais, que comprova o corporativismo masculino: numaconversa em um bar, a personagem Lalinha descobre que Teixeira,seu namorado atual, havia pedido informações a Vinicius, seunamorado anterior, sobre suas preferências, a fim de conquistá-la:“Mas eu sou uma imbecil! (...) O primeiro disco que você me dá éjustamente um disco do Ivan Lins. Meu Deus, até o beijo atrás daorelha!” (1994b: 99).

Tanto a inversão brincalhona do texto bíblico quanto o diálogoentre os sexos opostos, sinaliza para uma superioridade de caráterpresente no universo feminino. Contudo, esta superioridade nemsempre prevalece em todas as situações descritas por Luis FernandoVerissimo.

Por exemplo, em “O Maridinho e a Mulherzinha” (1980: 39-42), o autor procura realizar um exercício de desmascaramento

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das relações desiguais estabelecidas entre homens e mulheres.São duas pequenas histórias: a primeira tem como tema asubmissão masculina e a segunda a submissão feminina.

Dessa maneira, a primeira história tem como fio condutorum encontro de amigos no qual o “maridinho” se apresenta a umnovo membro do grupo dizendo, “faceiro”, que sua mulher o adora:“Agora mesmo ela me vestiu, me penteou e me deixou sair paradar uma volta”. O estranho no grupo pergunta: “É a sua mulherque veste você?” ao que o “maridinho” responde: “É. Depois de medar banho”. O homem é descrito com características que lembramo tratamento dispensado às crianças: necessita de cuidadosespeciais e vigilância ostensiva, para “evitar que se machuque”.

Dando continuidade ao diálogo, o novato do grupo perguntase o “maridinho” pode ficar na rua o tempo que quiser, ao que eleresponde que sim, “o tempo que quiser. Até escurecer, é claro”,pois sua mulher havia lhe dito que havia uma carrocinha que pegava“maridinho” que ficava solto na rua, depois que escurece, para fazersabão.

O outro pergunta se ele não gostaria de ficar tomando unschopes e o “maridinho” adverte que não pode nem dizer esta palavraporque “senão eu chego em casa, minha mulher cheira o meu hálitoe diz: ‘Você andou dizendo chope’”. Quando isto ocorre, ele écastigado, ficando sem comida. Seu interlocutor pergunta:

- E você aceita isso?- Claro que não! Está pensando o quê? Mulher nenhuma vai me

dominar. Depois que ela dorme eu vou na cozinha e como umabolacha. Comigo é assim.

- Dureza...- Dureza. Levantou a voz comigo, já sabe.- O que é que acontece?- Eu choro (1980: 40-41).

O “maridinho” encarna atitudes, em certa medida, infantis, oque revela sua dependência em relação à mulher. Esta descriçãoridiculariza a submissão masculina, principalmente quando ohomem, guardadas as proporções, procura idealizar, não umaesposa, mas sim “uma mãe que faça sexo com ele”.

A segunda história descreve um marido que costumavareferir-se à sua esposa, de forma “carinhosa”, como “minha

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mulherzinha”. O marido olhava para a esposa “como se olha paraum cachorrinho (...). A mulherzinha vivia na sombra do marido.Quando tentava dar a sua opinião sobre algum assunto mais sério,ele piscava o olho, afagava sua cabeça e dizia: ‘ – Não preocupaessa cabecinha linda com essas coisas. Vai fazer um cafezinho pragente, vai’” (1980: 41). A mulher é descrita como animalzinho deestimação que, no entanto, não deve deixar de satisfazer asexigências do marido no que se refere às tarefas domésticas.

Apresentadas as formas em que se dão as relações entremarido e esposa, a narrativa extrapola os limites da realidade eenvereda no domínio do fantástico, ao descrever a gradativadiminuição do tamanho da esposa. A cada dia que passava a mulherencolhia mais e mais. O marido leva a (cada vez mais) “mulherzinha”ao médico, que não sabe explicar o fenômeno: “A mulher permaneciaperfeitamente proporcionada, só menor” (1980: 41). O maridopreocupa-se com o encolhimento da esposa. Sua preocupação, noentanto, não reside apenas no fato de não ter mais uma mulherpara abraçar, mas, principalmente, nas dificuldades que ela teriapara realizar as tarefas domésticas já que, reduzida de tamanho,ela “levava três dias para cerzir uma meia. Tinha que trazer ocafezinho xícara por xícara (...). Não podia mais cozinhar sob riscode cair numa panela” (1980: 41-42).

O tamanho da mulher reduz-se de tal maneira que “um dia,aconteceu (...). Tinha desaparecido. Estava, provavelmente, dotamanho de um cisco. E até hoje o marido anda pela casa na pontados pés, cuidando onde pisa, para não pisar na sua mulherzinha.Desconsolado” (1980: 42). A narrativa problematiza a tradicionaldivisão do trabalho: o homem trabalha fora e a mulher deve ater-seaos afazeres da casa. Isto revela afinidades com o discurso feministadas últimas décadas, principalmente em questões relacionadas àcrítica de determinadas situações: “Se alguém deve realizar astarefas da casa, por que, necessariamente, este alguém deve serdo sexo feminino? Quem foi que disse que este é papel apenas damulher?”.

Em “O maridinho e a mulherzinha”, portanto, Luis FernandoVerissimo descreve duas pequenas histórias que apresentam cenasem que a submissão é condenada a partir da comicidade presentena narrativa. Mas, repare-se que tanto a submissão feminina quanto

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a masculina são condenadas pelo uso do diminutivo para referir-se aos personagens: “maridinho e mulherzinha”, o que sugere, aoinvés de uma posição sobreposta a outra, a busca da “igualdade” nadistribuição do poder estabelecida nas relações de gênero. Se asubmissão é condenada pelo riso, o que resulta como dado a serelogiado é a instauração do questionamento das posiçõestradicionais ocupadas por homens e mulheres na sociedade.

Essas considerações demonstram a preocupação crítica doautor ao explorar em seus textos a suposta superioridademasculina, mas sem instituir a posição feminina comonecessariamente superior. Tal característica pode ser avaliada comoum procedimento inerente ao pós-modernismo, pois muitos dosdiscursos pós-modernos, ao questionar o que é qualificado como o“centro” na sociedade, procuram questionar também a instituiçãode um novo centro, ou, em outros termos, procuram evitar, com oelogio acrítico dos “marginais”, a instituição de novos centros apartir destes. O melhor é que não haja centro, ou seja, que todossejam o centro e que, ao mesmo tempo, nenhum seja o centro,como forma de driblar os abusos advindos de atitudes absolutistas.

A APROXIMAÇÃO DO OLHAR: NARRATIVAS EM FOCO

“Criaturas”

– Ora – disse Martins, com desdém – ele pensa que está sendooriginal. Mas este truque é tão antigo quanto Pirandello.

– Mais antigo até – disse Romualdo, sacudindo o gelo no seucopo. – Se não me engano, Flaubert já tinha escrito alguma coisasobre o Autor como um Deus pairando sobre o próprio texto, invisívele onipresente ao mesmo tempo, guiando os destinos de seuspersonagens indefesos.

– Criaturas se rebelando contra o Criador – continuou Martins.– Francamente. Não duvido nem que Ele use a palavra“metalinguagem”. Olha aí, já usou.

Aristides olhou em volta, confuso. Não havia mais ninguém nasala, toda decorada em estilo Luiz XV, além dos três.

– De quem é que vocês estão falando? – perguntou.– Dele – disse Romualdo, fazendo um gesto vago com seu copo.– Ele quem?– O Autor deste texto.Aristides sorriu, condescendente.– Não vão me dizer que vocês acreditam que existe um Autor

que nos criou e que guia nossos passos. Logo vocês, pessoassofisticadas, esclarecidas...

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– Você não acredita? – perguntou Martins.– Num Autor onipotente que rege as nossas vidas? Não.– Você não acredita que existe um Autor que nos criou, nos

colocou nesta página, numa sala decorada em estilo Luiz XV e nosdeu estes diálogos para dizer?

– Não.Martins e Romualdo trocaram um sorriso de cumplicidade.

Romualdo aproximou seu rosto de Aristides.– Então me diga: como é que você está aqui? Você de repente se

materializou no meio de um texto, com um copo de uísque na mão?Sem mais nem menos?

– Meu caro – disse Aristides –, eu não pretendo ter uma explicaçãopara todos os mistérios da existência humana. Só sei que a idéia deque eu sou um produto da imaginação de Alguém que na sua infinitabondade me botou nesta página é absurda.

– Ninguém falou em infinita bondade – interrompeu Martins. –Existe um Autor que nos criou e que nos tem em suas mãos, mas oseu caráter é discutível.

– Se o Autor realmente é bom – disse Romualdo – que Ele façaabrir aquela porta e por ela entrar... a Bruna Lombardi!

Nisto, a porta se abriu. Os três levantaram-se, cheios deexpectativa. Pela porta entrou... o Fantoni!4

– O que é que eu estou fazendo aqui? – perguntou o técnico.– Nada, nada. Você deve ter entrado pela porta errada – disse

Romualdo.Fantoni retirou-se e fechou a porta.– Viu só? – disse Martins. – Existe um Autor que determina o

nosso destino. Mas Ele zomba de nós. Assim como nos colocounuma sala Luiz XV, poderia ter-nos botado numa mina de sal, ousentados em cadeiras duras ouvindo o Bolero de Ravel. Nada oimpede de me matar agora mesmo. Ou de me transformar numsapo.

Romualdo afastou sua cadeira ligeiramente, com medo queMartins caísse fulminado aos seus pés. Aristides protestou:

– Ridículo! Eu comando o meu próprio destino. Se eu quiser,posso me levantar e sair por aquela porta agora mesmo. Nós todospodemos nos levantar, ir embora e acabar esta crônica na metade.

– Então levanta e sai – desafiou Romualdo.Aristides continuou sentado.– Se você é livre para fazer o que bem entender, então abra a

porta e saia desta página – insistiu Romualdo.Aristides não se moveu.– Outra coisa – continuou Romualdo. – Se você, como

personagem, fosse dono do seu próprio destino, você escolheriaestar logo aqui, num texto d’Ele? Eu preferia estar num texto deDrummond!

– Eu sou livre – disse, calmamente, Asdrúbal.Martins sorriu, tristemente.– Não sei se você notou. Mas Ele mudou o seu nome. Agora, em

vez de Aristides, você é Asdrúbal. E não pode fazer nada a respeito...– Mas eu não aceito isto – disse Asdrúbal.– E vocês notaram? Ele só se refere a Ele mesmo com maiúscula.

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– É um tirano. Um megalomaníaco. Tem o poder absoluto. Encheuma página inteira com as palavras que Ele quer, com ospersonagens que Ele inventa. Dispõe de nossas vidas como se...

– Mas nós temos que nos rebelar! – gritou Asdrúbal. – Temosque impor nossa liberdade! Nem que seja...

– O quê? – disse Martins, desconfiado.Asdrúbal baixou a voz. Tinha tomado uma decisão.– Nem que seja pelo suicídio – disse. – Ele nos criou, e isso o

torna superior. Mas nós, como Ele, podemos nos matar, e isto nostorna iguais.

– Mas aqui não tem arma nenhuma – disse Martins, escondendoo seu copo.

Um revólver materializou-se sobre uma mesinha laqueada.Asdrúbal o pegou.

– Não! – disse Martins. – Você não vê? Ele está usando você. Eleprecisa de uma cena forte para o clímax da crônica e está forçandovocê a estourar seus miolos.

Os olhos de Asdrúbal brilharam.– E se eu matar um de vocês? Ou os dois? Assim eu me igualo a

Ele. Eu também tenho a vida de vocês em minhas mãos.Os três agora estavam de pé. Romualdo recuou alguns passos.

Martins ficou onde estava. Martins falou:– Isto é o que Ele quer, também. Criar suspense. À nossa custa.Asdrúbal continuou apontando sua arma para Martins.

Romualdo começou a andar de lado, lentamente. Talvez pudesse seaproximar de Asdrúbal por trás e roubar a arma.

– O que é que Ele quer de nós, afinal? – perguntou Asdrúbal,sem baixar a arma.

– O que Ele queria, já conseguiu.– E o que era?– Encher esta página até aqui.Romualdo estava quase às costas de Asdrúbal. Preparava-se

para atirar-se sobre ele.– Onde é que isto vai acabar? – perguntou Asdrúbal.– Aqui – disse Martins.

(In: VERISSIMO, L. F. Sexo na cabeça. Porto Alegre: L&PM, 1980, pp. 71-74).

A narrativa acima transcrita apresenta elementos queprocuram instaurar considerações relevantes sobre o processo decriação literária, apresentando-se como crítica de si mesma aocolocar em questão o seu próprio fazer, o seu próprio inventar,fazendo com que passe a ser criadora e, concomitantemente,inquiridora de seus valores. O autor incorpora discussões teóricassobre a construção da crônica, numa clara referênciametalingüística, que se distingue pelo fato de ser apresentada pormeio dos diálogos entre os personagens da narrativa, revelandofatores tanto intertextuais (nas alusões a escritores como Luigi

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Pirandello, Gustave Flaubert e Carlos Drummond de Andrade)quanto intratextuais (quando o texto retoma expressões do própriotexto).

Este procedimento pode ser identificado na fala dopersonagem Martins, quando de sua revolta contra a onipresençado autor: “Criaturas se rebelando contra o Criador (...).Francamente. Não duvido nem que Ele use a palavra‘metalinguagem’. Olha aí, já usou”. Além disso, em tom“autodifamatório”, o narrador apresenta as preferências de seuspersonagens, inscrevendo a comicidade no texto, pois “se você,como personagem, fosse dono do seu próprio destino, vocêescolheria estar logo aqui, num texto d’Ele? Eu preferia estar numtexto de Drummond!”. A comicidade encontra-se ainda no uso peloautor da letra maiúscula para referir-se a si próprio: “E vocêsnotaram? Ele só se refere a Ele mesmo com maiúscula”. Como sepode notar, os personagens, após a ação, lêem a crônica da qualparticipam.

No que se refere aos elementos intertextuais presentes nanarrativa, destaca-se a referência a Luigi Pirandello. O intertexto,nesse caso, está relacionado à peça Seis personagens à procura deum autor, marco fundamental da obra dramática do escritor italiano.Nessa peça, o autor mostra um grupo de atores em ensaio, sob asupervisão de um diretor; o trabalho é interrompido pela chegadade seis pessoas que se apresentam como personagens – nascidasda imaginação de um autor que depois se recusou a escrever suahistória – e que pedem aos atores que representem as cenas dodrama inscrito nelas e “vivido” por elas. A peça prossegue pela lutadas personagens com o diretor, transformado em autor; e da lutaentre as várias personagens em desacordo constante sobre osignificado ou mesmo sobre os fatos da história que cada uma viveua seu modo.

O diálogo entre o Diretor (personagem “real”) e o Pai(personagem “fictício”) revela a independência assumida pelaspersonagens quando do processo de sua criação pelo autor:

O DIRETOR (de repente, pondo-se diante do Pai, com uma idéia quelhe surgiu):

Eu queria saber, porém, quando é que se viu um personagem sairdo seu papel e pôr-se a perorar assim, como o senhor está fazendo,e a propô-lo, a explicá-lo. Pode dizer-me? Eu jamais o vi!

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O PAI:

Jamais o viu, senhor, porque os autores costumam esconder ostormentos de sua criação. Quando os personagens são vivos,realmente vivos, diante de seu autor, este não faz outra coisa senãosegui-los, nas palavras, nos gestos que, precisamente, eles lhepropõem. E é preciso que ele os queira como eles querem ser; e aidele se não fizer isso! Quando uma personagem nasce, adquire logotal independência, mesmo em relação ao seu autor, que pode serimaginado por todos, em outras várias situações, nas quais o autornem pensou colocá-lo, e adquirir também, às vezes, um significadoque o autor nunca sonhou dar-lhe! (PIRANDELLO, 1981: 447).

O que o texto de Pirandello procura enfatizar é que ospersonagens produzidos pelos escritores adquirem vida própria esão transpostos para a realidade de formas diversas. A partir danarrativa, Luis Fernando Verissimo retoma a idéia de Pirandellosem, no entanto, “seguir seus personagens”, pois opera com certasrestrições quanto à independência das criaturas em relação ao seucriador. O autor brasileiro, além de enfatizar o papel desempenhadopela subjetividade quando da seleção dos eventos a serem narrados,aborda ainda aspectos relacionados à estrutura narrativa, tais comoa necessidade de prender a atenção do leitor por meio dainstauração do “clímax”:

– É um tirano. Um megalomaníaco. Tem o poder absoluto. Encheuma página inteira com as palavras que Ele quer, com ospersonagens que Ele inventa. Dispõe de nossas vidas como se...

– Mas nós temos que nos rebelar! – gritou Asdrúbal. – Temosque impor nossa liberdade! Nem que seja...

– O quê? – disse Martins, desconfiado.Asdrúbal baixou a voz. Tinha tomado uma decisão.– Nem que seja pelo suicídio – disse. – Ele nos criou, e isso o

torna superior. Mas nós, como Ele, podemos nos matar, e isto nostorna iguais.

– Mas aqui não tem arma nenhuma – disse Martins, escondendoo seu copo.

Um revólver materializou-se sobre uma mesinha laqueada.Asdrúbal o pegou.

– Não! – disse Martins. – Você não vê? Ele está usando você. Eleprecisa de uma cena forte para o clímax da crônica e está forçandovocê a estourar seus miolos (1980: 73-74).

Compreendendo o clímax de uma narrativa como “o pontoalto da complicação, aquele em que ela se encontra com a solução

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(...). Momento que pede a solução, aponta para ela, onde o conflitoentre protagonista e antagonista atinge o máximo de violência”(COUTINHO, 1978a: 40), o narrador enfatiza que esta é uma crônicaque fala sobre as características dos artefatos narrativos e, dessaforma, falar sobre clímax é o próprio clímax da crônica, ou seja, atentativa de suicídio por parte de um dos personagens.

Tal processo se repete em relação ao suspense instauradono final do texto, quando “os olhos de Asdrúbal brilharam. – E seeu matar um de vocês? Ou os dois? Assim eu me igualo a Ele. Eutambém tenho a vida de vocês em minhas mãos. Os três agoraestavam de pé. Romualdo recuou alguns passos. Martins ficou ondeestava. Martins falou: – Isto é o que Ele quer, também. Criarsuspense. À nossa custa”.

Para criar o suspense, o autor sabe que precisa dispor o seumaterial de tal forma que desperte e mantenha o interesse do leitor,pois a narrativa não causa o efeito de modo instantâneo, mas poruma progressiva revelação de suas partes. A impressão e o interessesão obtidos e mantidos pelo suspense, isto é, o estado emocionalcriado no leitor pela incerteza do que vai ocorrer depois, e de comoserá o desenlace da estória (Cf. COUTINHO, 1978a: 44).

O autor fala sobre a necessidade do suspense na crônica elogo após cria esse suspense: “Asdrúbal continuou apontando suaarma para Martins. Romualdo começou a andar de lado, lentamente.Talvez pudesse se aproximar de Asdrúbal por trás e roubar a arma”.Este procedimento evidencia que “o efeito de intensidade serelaciona com momentos de complicação na trama” (CUNHA, 1994:39). Expressões como “Os olhos de Asdrúbal brilharam”; “Romualdorecuou alguns passos. Martins ficou onde estava”; “Romualdocomeçou a andar de lado, lentamente”; entre outras, são artifíciosusados para criar a expectativa no que se refere ao desfecho danarrativa, despertando o interesse do leitor.

Metalinguagem, intertextualidade, subjetividade, clímax esuspense são teorizações sobre a criação literária. Assim, a narrativapode ser inscrita nas características pós-modernas da literatura,pois discute a si própria como construção discursiva, numatentativa de conciliar teoria e prática: falar sobre a criação literáriaa partir de uma criação literária, característica que pode ser definidacomo auto-reflexiva, e, por conta disso, fundamentalmente pós-

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moderna (HUTCHEON, 1991: 33). O ensaísmo que perpassa essa crônicade Luis Fernando Verissimo aparece como um exercíciometalingüístico, a partir do qual o autor examina os elementos dotexto em elaboração.

“Nova carta de intenções”

Parece que ficou assim a nova carta de intenções do Brasil aoFMI:

“Querido Efe:Não é preciso dizer que estamos envergonhadíssimos porque

não cumprimos nenhuma das promessas da nossa última carta.Sei que você ficou aborrecido conosco e com razão. A Ana Maria(que moça simpática!) esteve aqui e nos passou um pito merecido.Mas depois aceitou nossa explicação técnica para o ocorrido – “oBrasil é assim mesmo” – e na hora de ela embarcar já éramos amigosde novo. Por sinal, você recebeu a goiabada? Bom proveito.

Corre uma história por aqui que achamos que você gostaria desaber. Só como amostra do espírito irreverente do brasileiro. Comovocê sabe, muita gente aqui diz que a receita do FMI para pôr ordemna economia brasileira é muito ortodoxa e não leva em conta fatoreslocais. E estão lembrando, como comparação, a história da ajudasoviética aos egípcios, na guerra deles contra Israel. É assim. Vocêvai dar boas risadas. Israel estava invadindo o Egito e os egípciosnão sabiam como se defender. Pensaram, pensaram e decidirampedir conselhos à Rússia. Afinal, quem entendia mais de expulsarinvasores do que a Rússia? Napoleão tinha invadido a Rússia e sidoderrotado. Hitler tinha invadido a Rússia e sido derrotado. Pediramajuda aos russos. Da mesma maneira que o Brasil pediu ajuda aoFMI, certo? Você vai adorar. Não havia tempo para chegar umconselheiro militar russo ao Egito. As consultas tinham que serfeitas por telegrama. E a primeira mensagem dos egípcios foitransmitida:

- Tropas israelenses avançam nosso território. O que fazer?Os russos responderam:- Deixa eles virem.Mas como? Nenhuma resistência? Nada? Mas os russos

entendiam do assunto e os egípcios deixaram os israelenses virem.Seguiu a segunda mensagem dos egípcios:

- Tropas israelenses continuam avançando nosso território. Oque fazer?

- Deixa eles virem.Os egípcios estranharam, mas aceitaram o conselho. Os russos

entendiam do assunto. Mas chegou a um ponto em que os egípciosentraram em pânico. Era preciso fazer alguma coisa. Os israelensesnão paravam de avançar. Logo estariam no Cairo. Nova mensagem:

- Israelenses a poucos quilômetros capital. O que fazer?- Deixa eles virem.

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Os egípcios não se contiveram e mandaram outro telegrama emseguida, pedindo explicações sobre a estratégia russa. E os russosresponderam:

- Inverno chegando. Breve neve imobilizará inimigo.Não é boa? Eu sabia que você ia gostar. Claro que não reflete,

em absoluto, o nosso pensamento. Se bem que estranhamos quandoa Ana Maria desceu do avião de casaco de pele...Não, não. Ébrincadeira. Pelo amor de Deus. Você ficou sentido? Foi só umapiada. Sabe como é o pessoal. Brasileiro gosta tanto de piadas queduas, hoje, são presidenciáveis. Mas, falando sério.

Estas são nossas intenções. Desta vez para valer. Mesmo. Portudo que é mais sagrado. Que caiam o Delfim e o bustier da Xuxa,se estivermos mentindo. Desta vez a inflação abaixa ou não noschamamos Bolívia. Nosso plano é o seguinte: ninguém mais come.É um antigo hábito brasileiro que precisa acabar. Assim, não só caia pressão inflacionária do item alimentação como diminuem os casosde intoxicação alimentar e os conseqüentes gastos com a saúde.Diminuirão também, obviamente, os investimentos em esgotos,obras de saneamento, etc. Todo o alimento produzido no país poderáser exportado para criar divisas. Claro que haverá protestos. Masdonos de restaurantes e clínicas de emagrecimento podem passarpara o rendoso negócio das funerárias. Hein? Hein? Você ainda seorgulhará de nós, Efe!

Um abraço do Brasil”.(In: VERISSIMO, L. F. A mulher do Silva. Porto Alegre: L&PM, 1984, pp. 106-108).

Nesta narrativa, destaca-se o uso da comicidade crítica, poisLuis Fernando Verissimo, por meio da voz emprestada aosrepresentantes do governo brasileiro, cria um narrador que seproclama como porta-voz da nação e suas palavras levam àdenúncia, séria, da dependência tanto econômica quanto cultural.Tal atitude literária aparece disfarçada pela instauração de umavoz, que se quer imparcial, a introduzir o assunto da crônica: “Pareceque ficou assim a nova carta de intenções do Brasil ao FMI”. Aexpressão “parece que ficou assim” cria a ilusão de falta de endereçoquanto à origem das informações. No entanto, sabe-se que asrelações internacionais são feitas por pessoas ligadas ao poderpúblico. Dessa forma, pode-se evidenciar a crítica à política derelações exteriores empreendida pelas autoridades brasileiras.

Como visto, na linha inicial que separa as vozes que dialogamna crônica, quem fala é uma voz que se quer imparcial, servindopara indicar o assunto de que trata a narrativa: uma carta deintenções escrita pelo governo brasileiro expondo um relatório sobrea situação atual do país. Logo após, o autor insere o que seria este

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relatório, caracterizado por ser redigido numa linguagem coloquial,adotada por amigos íntimos (como se vê no uso do apelido “QueridoEfe” e de estratégias para acalmar o F.M.I. – Fundo MonetárioInternacional –, tais como a bajulação inscrita na oferta dagoiabada). Com relação a este aspecto, pode-se evidenciar que oriso é deflagrado pela transposição da linguagem solene deste tipode documento para a linguagem trivial, acarretando, com isso, amudança de tonalidade da “carta” e emprestando ao texto uma desuas qualidades risíveis fundamentais.

O teor da carta posiciona o governo na condição desubordinado a grupos financeiros de capital estrangeiro: “Não épreciso dizer que estamos envergonhadíssimos porque nãocumprimos nenhuma das promessas da nossa última carta”. Nessetrecho, o narrador faz referência ao não-cumprimento das metasanteriores e, pedindo desculpas (pois “o Brasil é assim mesmo”),tenta subornar o FMI com um “presentinho”. Em outras palavras,a descrição possibilita caracterizar o autor do relatório comosubserviente e corrupto: “Querido Efe: Sei que você ficou aborrecidoconosco e com razão. A Ana Maria (que moça simpática!) esteveaqui e nos passou um pito merecido. Mas depois aceitou nossaexplicação técnica para o ocorrido (...) e na hora de ela embarcar jáéramos amigos de novo. Por sinal, você recebeu a goiabada? Bomproveito”.

A narrativa leva ao riso, mas este riso encobre críticas àsinstituições governamentais devido ao uso do fenômeno irônicoque, ao estabelecer relações com dado público, procura modificarseu posicionamento frente a determinadas questões, o que apontapara a seriedade presente em muitas manifestações cômicas,contrariando o ditado popular: “muito riso, pouco siso”.

Após a exposição temática, o narrador apresenta as medidasimpostas pelo Fundo Monetário Internacional: elas sãodescontextualizadas, por não levarem em conta fatores locais. Onarrador instaura a comicidade fazendo uso da ilustração: cita oexemplo do pedido de ajuda que teria sido feito pelos egípcios aosrussos por ocasião da Guerra dos Seis Dias, ocorrida entre Israel eos países árabes, que culminaria com a vitória dos judeus. Após orelato da fracassada solicitação aos russos, o narrador enfatiza queela “não reflete, em absoluto, o nosso pensamento. [No entanto]

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estranhamos quando a Ana Maria desceu do avião de casaco depele... Não, não. É brincadeira. Pelo amor de Deus. Você ficousentido?”. Se não reflete o pensamento brasileiro, por que entãofazer uso da ilustração?

Pode-se cogitar que o respeito excessivo, a reverência diantedo objeto impede que se tenha em relação a ele uma atitude crítica,que se possa vê-lo nos aspectos também negativos: é preciso quese crie a perspectiva de destemor no trato com o mundo para quese tenha frente a ele uma atitude efetivamente crítica. Este podeser entendido como um dos papéis do riso irônico despertado pelotexto. Assim, o riso nivela ao desierarquizar a autoridade das vozespresentes no texto, processo engendrado por uma certacarnavalização instaurada pelo autor.

Dando continuidade à narrativa, as autoridades brasileirasinformam suas intenções, de forma “séria”, pois “desta vez paravaler. Mesmo. Por tudo que é mais sagrado. Que caiam o Delfim eo bustier da Xuxa, se estivermos mentindo. Desta vez a inflaçãoabaixa ou não nos chamamos Bolívia”. Com este recurso, o narradorafirma algo para que se infira o contrário.

No final do texto, é apontada a solução para o Brasil: eliminaro hábito de comer já que este “é um antigo hábito brasileiro queprecisa acabar”. As conseqüências de tal medida trariam resultadosimediatos: “não só cai a pressão inflacionária do item alimentaçãocomo diminuem os casos de intoxicação alimentar e osconseqüentes gastos com a saúde. Diminuirão também,obviamente, os investimentos em esgotos, obras de saneamento,etc. Todo o alimento produzido no país poderá ser exportado paracriar divisas”.

No entanto, as autoridades brasileiras previnem quanto aosprotestos que tal medida possa gerar. Este protesto não virá dapopulação de baixa renda, mas sim dos “donos de restaurantes eclínicas de emagrecimento [que] podem passar para o rendosonegócio das funerárias. Hein? Hein?” e a crônica termina com apromessa de que “Você ainda se orgulhará de nós, Efe! Um abraçodo Brasil”. Como se percebe, o absurdo da proposta é ridicularizadopelo autor na medida em que esta é apresentada pelo governobrasileiro, caracterizado agora como impopular por implantarsoluções antidemocráticas: sem peso para a resolução dos

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problemas surgidos na área social.Portanto, a narrativa pode ser caracterizada por duas

qualidades fundamentais: a comicidade crítica (ao ridicularizar ogoverno, realiza um processo de desierarquização, pois o risodespertado por esta ridicularização nivela as pessoas, destituindo-lhes a aura de autoridade); e a incorporação de elementos ligadosà linguagem oral inscrita no estilo informal da narrativa,característico das cartas enviadas a amigos íntimos. A linguagemcoloquial é empregada principalmente no que se refere à intimidadedas formas de tratamento, tais como o apelido “Querido Efe”, pormeio do qual o autor refere-se à instituição internacional; e atravésdo uso de frases como “corre uma história por aqui que achamosque você gostaria de saber”.

Esse último aspecto pode ser descrito como sintoma de umprocesso de busca de oralidade na escrita, isto é, de quebra doartifício e aproximação com o que há de mais natural no modo deser do nosso tempo, o que reafirma o fato de que “num país como oBrasil, onde se costumava identificar superioridade intelectual eliterária com grandiloqüência e requinte gramatical, a crônicaoperou milagres de simplificação e naturalidade, que atingiram oponto máximo nos nossos dias” (CANDIDO, 1992: 16).

De acordo com Linda Hutcheon, a cultura pós-moderna, porser deliberadamente contraditória, usa e abusa das convenções dodiscurso: “Ela sabe que não pode escapar ao envolvimento com astendências econômicas (capitalismo recente) e ideológicas(humanismo liberal) de seu tempo. Não há saída. Tudo o que elapode fazer é questionar a partir de dentro” (1991: 16). Na crônicaanalisada, destaca-se o fato de que não é alguém que fala sobre ogoverno brasileiro: é o próprio governo que faz o uso da palavra nanarrativa. Ocorre assim a inserção das palavras do poder públicopara que estas sejam ridicularizadas por meio do riso irônicosugerido pelo texto, o que mostra a preocupação em criticar asinstituições, a partir do que seria seu próprio discurso.

Revela-se assim a utilização da comicidade por parte do autorcom o objetivo de desafiar a autoridade a partir de seu própriointerior, empregando a ironia para comprometer e também paracriticar determinadas atitudes. Tal posição assume tons cômicosquando o autor transforma a “carta de intenções” — documento

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oficial produzido pelos dirigentes públicos dos países “pobres”, como objetivo de apresentar uma espécie de prestação de contas eapontar as metas futuras a serem alcançadas — em simples “carta”,forma de comunicação mais informal.

“Racismo”

Escuta aqui, ó criolo...— O que foi?— Você andou dizendo por aí que no Brasil existe racismo.— E não existe?— Isso é negrice sua. E eu que sempre te considerei um negro

de alma branca... É, não adianta. Negro quando não faz na entrada...— Mas aqui existe racismo.— Existe nada. Vocês têm toda a liberdade, têm tudo o que

gostam. Têm carnaval, têm futebol, têm melancia... E emprego é oque não falta. Lá em casa por exemplo, estão precisando deempregada. Pra ser lixeiro, pra abrir buraco, ninguém se habilita.Agora pra uma cachacinha e um baile estão sempre prontos. Raçade safados. E ainda se queixam!

— Eu insisto, aqui tem racismo.— Então prova, Beiçola. Prova. Eu alguma vez te virei a cara?

Naquela vez que te encontrei conversando com a minha irmã, nãote pedi com toda a educação que não aparecesse mais na nossarua? Hein, Tição? Quem apanhou de toda a família foi minha irmã.Eu expliquei lá em casa que você não fez por mal, que não tinhaconfundido a menina com alguma empregadoza de cabelo ruim,não, que foi só um engano porque negro é burro mesmo. Fui teuamigão. Isso é racismo?

— Eu sei, mas...— Onde é que está o racismo então? Fala, Macaco.— É que outro dia eu quis entrar de sócio num clube e não me

deixaram.— Bom, mas pera um pouquinho. Aí também já é demais. Vocês

não têm clubes de vocês? Vão querer entrar nos nossos também?Pera um pouquinho.

— Mas isso é racismo.— Racismo coisa nenhuma! Racismo é quando a gente faz

diferença entre as pessoas por causa da cor da pele, como nosEstados Unidos. É uma coisa completamente diferente. Nós estamosfalando do crioléu começar a freqüentar clube de branco, assimsem mais nem menos. Nadar na mesma piscina e tudo.

— Sim, mas...— Não senhor. Eu, por acaso, quero entrar nos clubes de vocês?

Deus me livre!— Pois é, mas...— Não, tem paciência. Eu não faço diferença entre negro e branco,

pra mim é tudo igual. Agora, eles lá e eu aqui. Quer dizer, há umlimite.

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— Pois então. O...— Você precisa aprender qual é o seu lugar, só isso.— Mas...— E digo mais. É por isso que não existe racismo no Brasil.

Porque aqui o negro conhece o lugar dele.— É, mas...— E enquanto o negro conhecer o lugar dele, nunca vai haver

racismo no Brasil. Está entendendo? Nunca. Aqui existe diálogo.— Sim, mas...— E agora chega, você está ficando impertinente. Bate um samba

aí que é isso que tu faz bem.

(VERISSIMO, L. F. Comédias da vida pública. Porto Alegre: L&PM, 1996, pp. 59-60).

Engraçado, não? Seguem abaixo considerações, nadaengraçadas, sobre alguns artifícios usados no texto para ironizar opreconceito para com os negros na sociedade brasileira. A narrativaé um bom exemplo para verificar a eficácia do procedimento irônico,haja vista ser ele explicitamente irônico. Pode-se constatar que aironia aparece no texto acima como um dos instrumentos quemarcam sua heterogeneidade. Trabalhando sob duas perspectivas— colocando-se na voz do branco e, ao mesmo tempo, chamando aatenção sobre o negro —, o texto faz o jogo do interesse estratégicoda ironia: “o autor de uma enunciação irônica produz um enunciadoque possui, a um só tempo, dois valores contraditórios, sem, noentanto, ser submetido às sanções que isso deveria acarretar”(MAINGUENEAU, 1997: 100).

Fica evidente que a narrativa tem por objetivo criticar echamar a atenção da opinião pública para o racismo no Brasil.Mas, chamar a atenção para esse fato, no texto, não partiu de umextenso levantamento histórico e de índices para expor a situaçãoatual do negro. Estrategicamente, o autor partiu de um mesmoenunciado para dois destinatários: dirige-se ao branco,desqualificando-o por meio de sua descrição como personagemarrogante; e ao negro defensivamente, revelando a sua situação devítima da crueldade do branco. Em outras palavras: no texto, anula-se, paradoxalmente, o que se enuncia no próprio ato de enunciar.Para transcrever a ironia, o enunciador confiou no contexto e nelerecuperou elementos contraditórios: a situação do negro brasileiroe a atitude, historicamente marcada, do branco frente aos negros.

A ironia aparece, assim, como uma espécie de armadilha quepermite frustrar “o assujeitamento dos enunciadores às regras da

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racionalidade e da conveniência públicas” (MAINGUENEAU, 1997: 100). Otexto evidencia, portanto, o caráter ambíguo da ironia e o valorcontraditório encontrado em alguns enunciados. Além disso, revelaa diversificação de meios a serem utilizados para sua transcrição:caráter hiperbólico, aspas, pontos de exclamação etc. Com taisestratégias, o enunciador pode assumir as palavras, mas não oponto de vista que elas representam.

Muitas das narrativas de Luis Fernando Veríssimo, com certafreqüência, buscam realçar o perigo da universalização dos valores,relacionando-a ao risco que se corre ao pretender tornar familiar oque é estranho através do uso de valores pré-determinados. Oataque, nesse caso, está direcionado a todas as formas depreconceitos, no sentido que a palavra adquire quando é separadapelo hífen: pré-conceitos, ou seja, conceitos definidos antes de umefetivo contato ou compreensão daquilo ou daqueles queapresentam valores diferentes. Como amostra desse tipo deprocedimento, destaca-se aqui o texto acima transcrito, por meiodo qual o autor procura ridicularizar aquelas idéias que fazem docenário brasileiro um espaço onde conviveriam democraticamentetodas as raças. Trata-se de uma crônica – intitulada “Racismo”,publicada em jornal no dia 14/05/1975 e depois reunida em livro(Comédias da vida pública, 1996) – que apresenta como estruturanarrativa o diálogo entre um branco e um negro.

Ao invés de realizar um estudo sobre a situação marginalizadados negros no Brasil, o autor dá voz ao branco para que este entãose denuncie. Tal característica é reforçada pela linguagem adotadapara se referir ao negro: “Criolo”, “negrice”, “negro de alma branca”,“negro quando não faz na entrada...”, são expressões comumenterelacionadas a atitudes preconceituosas em relação aos negros.

Com isso, o autor procura mostrar que o preconceito estápresente no cotidiano brasileiro em expressões muitas vezesconsideradas inocentes. Além disso, seu discurso está carregadode imagens que relegam ao negro profissões e valores consideradosinferiores. Um dos trechos mais corrosivos do texto está relacionadoà delimitação de espaços e situações comumente relacionadas aosnegros:

— Eu insisto, aqui tem racismo.— Então prova, Beiçola. Prova. Eu alguma vez te virei a cara?

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Naquela vez que te encontrei conversando com a minha irmã, nãote pedi com toda a educação que não aparecesse mais na nossarua? Hein, Tição? Quem apanhou de toda a família foi minha irmã.Eu expliquei lá em casa que você não fez por mal, que não tinhaconfundido a menina com alguma empregadoza de cabelo ruim,não, que foi só um engano porque negro é burro mesmo. Fui teuamigão. Isso é racismo?

— Eu sei, mas...— Onde é que está o racismo então? Fala, Macaco.— É que outro dia eu quis entrar de sócio num clube e não me

deixaram.— Bom, mas pera um pouquinho. Aí também já é demais. Vocês

não têm clubes de vocês? Vão querer entrar nos nossos também?Pera um pouquinho.

— Mas isso é racismo.

O branco, a partir de resposta marcadamente contraditória,explica o que entende por racismo, usando como exemplo o contextonorte-americano:

— Racismo coisa nenhuma! Racismo é quando a gente fazdiferença entre as pessoas por causa da cor da pele, como nosEstados Unidos. É uma coisa completamente diferente. Nós estamosfalando do crioléu começar a freqüentar clube de branco, assimsem mais nem menos. Nadar na mesma piscina e tudo.

— Sim, mas...— Não senhor. Eu, por acaso, quero entrar nos clubes de vocês?

Deus me livre! (1996: 60).

Ao final da narrativa, o branco explica que no Brasil não existeracismo porque, “aqui”, o negro conhece o seu lugar:

— É, mas...— E enquanto o negro conhecer o lugar dele, nunca vai haver

racismo no Brasil. Está entendendo? Nunca. Aqui existe diálogo.— Sim, mas...— E agora chega, você está ficando impertinente. Bate um samba

aí que é isso que tu faz bem (1996: 60).

Nesse último trecho, aparecem dois elementos fundamentaisrelacionados ao preconceito racial ainda hoje disseminado nocontexto brasileiro. O branco diz que no Brasil “existe diálogo”,mas a própria narrativa enfatiza o privilégio do qual o branco seinveste, já que o negro não consegue expor sua opinião sobre otema, o que fica evidente no uso de expressões como “É, mas...”;

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“Sim, mas...”; “Eu sei, mas...”. A reincidência na utilização daconjunção adversativa “mas”, bem como as reticências presentesnas frases proferidas pelo negro, procuram realçar o fato de que onegro possui opiniões que divergem das do branco; contudo, suasfalas são interrompidas constantemente pelo branco. Assim, o queera diálogo, acaba tornando-se um monólogo, no qual o brancoocupa a maior parte das cenas.

Quando quer continuar a expor suas opiniões, o negro éacusado de impertinente. E aí aparece novamente a demarcação(apartheid?) de espaços destinados ao negro: bater samba seriafunção exclusiva do negro, única coisa que ele sabe fazer bem.Recurso constante na produção de Luis Fernando Verissimo, a armautilizada para ridicularizar a atitude preconceituosa do branco comrelação ao negro é a ironia. O autor faz com que o branco exponhaopiniões que revelam posições contraditórias. O texto indicaquestões pertinentes: se a democracia racial no Brasil não funcionanem no discurso, imagine-se então na prática? Ou ainda que umacoisa pode ser compreendida como decorrente da outra: por nãohaver respeito no discurso, também não há na prática?

O texto de Luis Fernando Verissimo é ainda um exemplosignificativo de como a comicidade pode servir para fins opostos:ao incorporar em seu texto algumas das expressões ligadas àspiadas preconceituosas contadas sobre os negros, o autor inverteo ataque, fazendo do riso uma arma para condenar o preconceito,ao invés de realçá-lo, o que ocorre constantemente em muitasdessas piadas.

A narrativa aponta, portanto, para o fato de que sustentar aidéia de democracia racial brasileira é uma atitude equivocada sobvários aspectos, já que serve primordialmente para frear asreivindicações dos negros, no que se refere à conquista de maiorespaço na sociedade. Como manifestação que pode ser relacionadaao pós-modernismo, essas reivindicações procuram sustentar-se,por sua vez, no direito à existência de coletividades culturaisétnicas, religiosas, morais, diversas umas das outras (Cf. PELOSO, 1991:

169). Contudo, na identificação dessas diferenças aparece, comoaspecto significativo, o fato de que as atenções podem serdirecionadas também às possibilidades de articulação de interessescomuns – presentes em reivindicações como as dos “periféricos”,

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das mulheres, entre outros –, para evitar, sobretudo, uma fixaçãoestreita na diferença (Cf. EAGLETON, 1997: 324).

“A praga”

Ninguém sabe como se entenderam, mas se entenderam. E aprimeira coisa que o índio deu a Colombo foi — um tomate. Era oprimeiro encontro na primeira ilha no primeiro dia, e o próprio solparecia ter chegado mais perto para não perder a cena. Fazia calor,e o tomate brilhava ao sol como uma maçã dourada.

— Um pomo d’oro! – exclamou Colombo.— Um tomate – explicou o índio. — Para a salada. Para o molho.— Finalmente, algo para pôr fim à brancura do espaguete! –

disse Colombo, emocionado. — Marco Polo só descobriu a massa.Eu descobri a macarronada.

E Colombo aceitou o tomate e deu em troca uma miçanga.O índio deu uma batata a Colombo, que o olhou com desprezo.

Mas o índio descreveu (com mímica, com a linguagem mágica dosencontros míticos) sua importância para a história ocidental, desdea alimentação das massas camponesas da Europa até sua versãonoisette, ou fritas com um Big Mac. E Colombo a aceitou e deu emtroca um espelhinho.

E o índio deu a Colombo o fruto do cacaueiro e falou no que ochocolate significaria para o mundo, em especial para a Bahia e aSuíça, e nas delícias do bombom por vir. E Colombo guardou ocacau na algibeira e deu em troca um vintém.

E o índio deu a Colombo uma folha de tabaco, e falou nos prazeresdo fumo, e de como ele afetaria os hábitos civilizados. E se quisessemalgo mais forte, tinham uma planta que dava coca, e um baratoainda maior. E tudo isto Colombo aceitou em troca de contas. Emais uma espiga de milho. E mais um papagaio. Até que, com aalgibeira cheia, Colombo disse:

— Chega de miudezas. Agora eu quero o ouro.— O quê?— Ouro. Isso que você tem no nariz.— E o que você dá em troca? – perguntou o índio, antevendo

algo espetacular, como uma luneta. Mas Colombo apontou suapistola para a cabeça do índio e disse “Isto”, e disparou. Depoismandou seus homens recolherem todo o ouro da ilha, nem queprecisassem arrancar narizes.

No chão, antes de morrer, o índio amaldiçoou Colombo epraguejou. Que a batata tornasse a sua raça obesa, que o chocolateenchesse suas artérias de colesterol, que o fumo desse câncer, acocaína o corrompesse e o ouro destruísse sua alma. E que o tomate— desejou o índio com seu último suspiro — se transformasse emketchup.

E assim aconteceu.

(In: VERISSIMO, L. F. Comédias da vida pública. Porto Alegre: L&PM, 1995, pp. 54-55).

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Destaca-se nessa crônica o papel representado pela ironiana construção paradoxal do texto, já que a ironia pode ser definidacomo uma das “marcas deixadas pela enunciação no enunciado,elementos do discurso que remetem ao eu que o organiza” (FIORIN,1994: 55). Este fenômeno faz parte de um processo comunicativono qual um locutor procura transmitir sua opinião sobre algumacoisa ou sobre alguém a um interlocutor utilizando-se do disfarce,espécie de contra-verdade interna, pois o que o sujeito falante desejatransmitir não pode ou não deve ser dito de maneira explícita.

No discurso irônico, o autor instaura intencionalmente acontradição em seu texto, deixando pistas para que o leitor percebaque o que está sendo dito deve ser lido de outra forma. Desse modo,a ironia é usada como uma poderosa arma para levar adiante ojogo da argumentação e para realçar o ridículo das opiniões que sequer combater. Trata-se, nesse caso, da argumentação pelo ridículo,na qual certas atitudes ou palavras, difíceis de se suportarem,devem ser sancionadas pelo riso: não o riso despretensioso eingênuo provocado pela comicidade benevolente, aquela queperdoa, mas sim o riso que integra elementos de sarcasmo e deprazer maldoso existentes no riso de zombaria, que condenadeterminadas situações e atitudes.

Para Vladimir Propp, a definição da ironia não apresentagrandes dificuldades: “diz-se algo positivo, pretendendo, aocontrário, expressar algo negativo, oposto ao que foi dito” (1992:125). De acordo com Propp, a ironia constitui um dos aspectos dazombaria e nisto está sua comicidade: “o fato de o defeito vir a serdefinido por meio da qualidade que se lhe opõe, coloca em evidênciae realça o próprio defeito. A ironia é particularmente expressiva nalinguagem falada, quando faz uso de uma particular entonaçãoescarnecedora” (1992: 125).

Como não dispõe do apoio da gesticulação, própria dalinguagem oral, o sujeito enunciador precisa articular de formacriteriosa as estratégias ligadas à palavra escrita, tais como oselementos figurativos – metáforas, hipérboles etc. – ou palavrasque toma emprestado de outras vozes, de outros discursos e deoutras situações de comunicação. Essas estratégias são utilizadastendo como meta subverter o significado primeiro das palavras dos“outros”.

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Com relação à crônica de Luis Fernando Verissimo, o autor,sem abandonar as figuras, privilegia a segunda estratégia, poissubverte o discurso do “bom branco europeu” ao descreversituações nas quais o mesmo aparece como bárbaro, caracterizando-o a partir de enunciados como “o índio deu uma batata a Colombo,que o olhou com desprezo”; “chega de miudezas. Agora eu quero oouro”; ou ainda “Colombo apontou sua pistola para a cabeça doíndio (...) e disparou”.

O discurso irônico, dentro dessa perspectiva, faz parte deprocessos nos quais um mesmo texto aparece em formaçõesdiscursivas diferentes, acarretando com isso variações de sentido,o que “pode servir para a idéia de que um determinado texto,dependendo de seu espaço de realização, atualizará elementos queautorizam diferentes significações, ou mesmo significaçõescontraditórias” (BRAIT, 1996: 36). É o que ocorre no texto do cronistaao expor conceitos e idéias ligadas à “descoberta” da América, emque transparece a relação conflituosa estabelecida entre Velho eNovo Mundos, encontro compreendido por alguns como benéficoaos americanos, mas que para outros marca o extermínio deculturas inteiras, simbolizado na morte do índio, devido àintolerância por parte do europeu ganancioso.

Num estudo sobre as relações estabelecidas em torno daalteridade, Tzvetan Todorov descreve as justificativas dos espanhóispara “civilizar os bárbaros da América”. O trecho a seguir, extraídoda obra de Todorov, foi elaborado em 1550 pelo filósofo espanholGines de Sepúlveda e serve para ilustrar as concepções do mundoeuropeu em relação aos nativos americanos:

Em prudência como em habilidade, e em virtude como emhumanidade, esses bárbaros são tão inferiores aos espanhóis quantoas crianças aos adultos e as mulheres aos homens; entre eles e osespanhóis, há tanta diferença quanto entre gente feroz e cruel egente de uma extrema clemência, entre gente prodigiosamenteintemperante e seres temperantes e comedidos e, ousaria dizer,tanta diferença quanto entre os macacos e os homens (TODOROV,1996: 150).

Como se pode notar, o que Luis Fernando Verissimo procuraridicularizar em seu texto é a noção eurocêntrica tradicionalmenteveiculada pelos conquistadores de que o “descobrimento daAmérica” empreendido pelos europeus foi uma ação civilizadora e,

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portanto, uma contribuição ao desenvolvimento dos povos quehabitavam este continente. A narrativa busca expor, a partir dainversão de características comumente veiculadas, o choqueocorrido entre culturas diferentes, no qual o europeu, por seconsiderar culturalmente superior, incumbe-se da tarefa de“civilizar” os índios americanos em troca do enriquecimento advindodas riquezas da nova terra. O autor ironiza este encontro aodescrever os efeitos destruidores ocasionados pelo uso desmedidodos produtos americanos que, por serem obtidos de forma injusta,trouxeram prejuízos aos “filhos de Colombo”. Tal ironização aparececom maior ênfase na caracterização depreciativa do personagemColombo, apresentado como alguém pouco “civilizado”, incapaz dereconhecer as riquezas do Novo Mundo: os alimentos e as palavrasproféticas do índio.

Utilizando estas estratégias, o que a narrativa permiteenfatizar é a continuidade do passado no presente: a inserção deanacronismos propositais — expressos na alternância entreinformações ligadas à época do “descobrimento” e outras ligadasao momento atual (“ketchup” e “Big Mac”) — sugere que os valoreseurocêntricos, em voga no passado, são os antecedentes dos valoresnorte-americanos vigentes na atualidade pela afirmação constantedo “american way of life”, compreendido como estilo de vidaexportado com razoável sucesso para o mundo inteiro.

Entendido como atividade cultural que pode ser detectadana maioria das formas de arte e em muitas correntes de pensamentoatuais, o pós-modernismo é considerado “fundamentalmentecontraditório, deliberadamente histórico e inevitavelmente político.[Contudo] não é um retorno nostálgico; é uma reavaliação crítica,um diálogo irônico com o passado da arte e da sociedade” (HUTCHEON,1991: 20). Nesse sentido, o papel preponderante da ironia no pós-modernismo pode ser detectado na reelaboração crítica dos váriosdiscursos, sem ser necessariamente um “retorno nostálgico”, jáque sua forma é irônica, sobretudo, por desconfiar de verdades ecertezas estabelecidas (Cf. EAGLETON, 1997: 318).

O texto oferece informações que podem ser consideradas“sérias”, tais como o mau caráter dos chamados “descobridores” ea disposição de ânimo (bom humor), a generosidade e a perspicáciados chamados “selvagens”. Essas informações aparecem na

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descrição das atitudes de Colombo: “E Colombo aceitou o tomate edeu em troca uma miçanga”; “E Colombo aceitou [a batata] e deuem troca um espelhinho”; “E Colombo guardou o cacau na algibeirae deu em troca um vintém”. Tais atitudes contrastam com as doíndio: “E o índio deu a Colombo uma folha de tabaco, e falou nosprazeres do fumo, e de como ele afetaria os hábitos civilizados. Ese quisessem algo mais forte, tinham uma planta que dava coca, eum barato ainda maior. (...) E [deu] mais uma espiga de milho. E[deu] mais um papagaio”.

Além das informações sérias, a crônica apresenta umaargumentação pelo absurdo, enfatizando o ridículo como estratégiacrítica do texto, ou seja, a “descoberta” da América é contraposta àmodernidade do índio, mostrada em suas palavras e em suamaldição:

No chão, antes de morrer, o índio amaldiçoou Colombo e praguejou.Que a batata tornasse a sua raça obesa, que o chocolate enchessesuas artérias de colesterol, que o fumo lhe desse câncer, a cocaínao corrompesse e o ouro destruísse sua alma. E que o tomate – desejouo índio com seu último suspiro – se transformasse em ketchup. Eassim aconteceu (1995: 55).

Dessa forma, servindo-se da ironia como procedimentoargumentativo, reunindo informações “sérias” e informações “não-sérias”, o autor expõe uma idéia tomando elementos do mundopassíveis de receber um significado irônico. A leitura desse textocertamente provocará o riso, no entanto, o riso da ironia é ambíguo“sacudindo o leitor e despertando o mesmo para outra ‘realidade’”(BERGSON, 1987: 128).

Portanto, como meio de expressão, o texto irônico pode serdefinido como paradoxal ao veicular contradições presentes nasociedade, pois leva o leitor a realizar um esforço intelectual paracom ele dialogar, transformando-se, enfim, em seu interlocutor.Ressalte-se, assim, o fato de que muitas das narrativas de LuisFernando Verissimo — corroborando a idéia de que o aprendizadotambém está embutido no lúdico divertimento —, reafirmam oobjetivo de fazer o leitor, enquanto se diverte, despertar para ainterpretação crítica de sua realidade sociocultural. Os traçosconstitutivos da crônica (simplicidade, brevidade e graça) são umveículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa

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que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão dascoisas (Cf. CANDIDO, 1992: 19).

“O ator”

O homem chega em casa, abre a porta e é recebido pela mulhere os dois filhos, alegremente. Distribui beijos entre todos, perguntao que há para jantar e dirige-se para o seu quarto. Vai tomar umbanho, trocar de roupa e preparar-se para algumas horas de sossegona frente da televisão antes de dormir. Quando está abrindo a portado seu quarto ouve uma voz que grita:

— Corta!O homem olha em volta, atônito. Descobre que sua casa não é

uma casa, é um cenário. Vem alguém e tira o jornal e a pasta dassuas mãos. Uma mulher vem ver se a sua maquilagem está bem epõe um pouco de pó no seu nariz. Aproxima-se um homem com umscript na mão dizendo que ele errou uma das falas na hora de beijaras crianças.

— O que é isso? - pergunta o homem. - Quem são vocês? O queestão fazendo dentro da minha casa? Que luzes são essas?

— O que, enlouqueceu? - pergunta o diretor.— Vamos ter que repetir a cena. Eu sei que você está cansado,

mas...— Estou cansado, sim senhor. Quero tomar meu banho e botar

meu pijama. Saiam da minha casa. Não sei quem são vocês, massaiam todos! Saiam!

O diretor fica parado de boca aberta. Toda a equipe fica emsilêncio, olhando para o ator. Finalmente o diretor levanta a mão ediz:

— Tudo bem, pessoal. Deve ser estafa. Vamos parar umpouquinho e...

— Estafa coisa nenhuma! Estou na minha casa, com a minha...A minha família! O que vocês fizeram com ela? Minha mulher! Osmeus filhos!

O homem sai correndo entre os fios e os refletores, à procura dafamília. O diretor e um assistente tentam agarrá-lo. E então ouve-se uma voz que grita:

— Corta!Aproxima-se outro homem com um script na mão. O homem

descobre que o cenário, na verdade, é um cenário. O homem comum script na mão diz:

— Está bom, mas acho que você precisa ser mais convincente.— Que-quem é você?— Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos refazer esta

cena. Você tem que transmitir melhor o desespero do personagem.Ele chega em casa e descobre que sua casa não é uma casa, é umcenário. Descobre que está no meio de um filme. Não entende nada.

— Eu não entendo...— Fica desconcertado. Não sabe se enlouqueceu ou não.— Eu devo estar louco. Isto não pode estar acontecendo. Onde

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está minha mulher? Os meus filhos? A minha casa?— Assim está melhor. Mas espere até começarmos a rodar.

Volte para a sua marca. Atenção, luzes...— Mas que marca? Eu não sou personagem nenhum. Eu sou

eu! Ninguém me dirige. Eu estou na minha própria casa, dizendoas minhas próprias falas...

— Boa, boa. Você está fugindo um pouco do script, mas estábom.

— Que script? Não tem script nenhum. Eu digo o que quiser. Istonão é um filme. E mais, se é um filme, é uma porcaria de filme. Istoé simbolismo ultrapassado. Essa de que o mundo é um palco, quetudo foi predeterminado, que não somos mais do que atores...Porcaria!

— Boa, boa. Está convincente. Mas espere até começar a filmar.Atenção...

O homem agarra o diretor pela frente da camisa.— Você não vai filmar nada! Está ouvindo? Nada! Saia da minha

casa.O diretor tenta livrar-se. Os dois rolam pelo chão. Nisto ouve-se

uma voz que grita:— Corta!

(In: VERISSIMO, L. F. O suicida e o computador. Porto Alegre: L&PM, 1992, pp. 84-86).

O show de Truman (1998), filme dirigido por Peter Weir eprotagonizado por Jim Carrey e Ed Harris, retrata o que se podedenominar de “publicização” da intimidade pessoal, ou seja, ahistória acompanha, a partir da captura das imagens, o cotidianode uma pessoa, desde o seu nascimento até quando ela descobreque sua vida é, na realidade, um programa, fenômeno de enormeaudiência, exibido pela televisão. O ingênuo Truman Burbank é aestrela do show... mas não sabe disso. O personagem nem imaginaque sua antiquada cidade é um estúdio gigantesco, dirigido porum visionário produtor/diretor/criador, nem que as pessoas quevivem e trabalham lá são atores, e que até sua esposa é uma atrizcontratada.

O filme é ambientado num estúdio de tevê, explorandorecursos metalingüísticos, ou seja, o filme é um filme dentro deoutro filme. Além disso, a audiência é duplamente testada tantopelo público interno (no próprio filme) como pelos espectadoresexternos (aqueles que conhecem a história através das salas decinema, do videocassete, da televisão etc.).

Apesar de oferecer opções alternativas ao público externo, opúblico interno é apresentado como telespectador, entendido comoo indivíduo que assiste à televisão e um dos aspectos marcantes

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do filme está relacionado à presença onipresente da publicidadena configuração do programa: em meio às cenas domésticas, sãoexibidos produtos que financiam a execução do programa. Sendoassim, o filme sugere que as possibilidades alcançadas pelos meiosde comunicação de massa, no que se refere à interferência decisivanas ações humanas, são um dos elementos que levam ao privilégioda imagem nas últimas décadas.

Mas o que isso tem a ver com literatura pós-moderna? Esseprocesso de publicização da vida privada é um dos temasrecorrentes nas crônicas de Luis Fernando Verissimo, sendo, poresse motivo, interessante para uma análise comparativa entretransmissão televisual e literatura.

Assim como no filme, o autor aborda em algumas de suascrônicas a importância assumida pela televisão, pelo cinema, enfim,pelo script como forma de indicar os passos dos indivíduos, ouseja, um processo que desperta nas pessoas a sensação de ter suavida filmada ou de já ter visto algo parecido em alguma cenacinematográfica ou televisiva. Antes era a vida que inspirava a tela;agora cada vez mais é a tela que sugere comportamentos a seremencenados na vida diária.

Dessa maneira, a narrativa acima transcrita sugere anecessidade de adoção de diferentes papéis para diferentescontextos: o social, o profissional, o intelectual, o doméstico; tantosquantos exigir a variedade dos interlocutores. A narrativa sinalizapara o fato de que a formação de uma personalidade autoconscienteestá intimamente ligada aos relacionamentos estabelecidos atravésdo convívio social. Para que este convívio se efetive, existemdeterminados “scripts” a serem seguidos. Ir para casa descansardepois do trabalho é a representação de um desses papéis: “ohomem chega em casa, abre a porta e é recebido pela mulher e osdois filhos, alegremente. Distribui beijos entre todos, pergunta oque há para jantar e dirige-se para o seu quarto”.

A repetição das cenas sugere ainda o filme dentro do filmedentro do filme..., o que enfatiza a importância da metalinguagemnas produções culturais pós-modernas. Com relação à literatura,esse processo revela que a “diferença que separa uma obra literáriade um trabalho de crítica literária (...) tem-se neutralizadofreqüentemente na literatura contemporânea, devido à tendência

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de se produzir uma narrativa que seja ao mesmo tempo uma criaçãofictícia e uma teorização sobre esta ficção” (E. F. COUTINHO, 1985:37). Para Terry Eagleton, a arte pós-moderna, por saber que suaspróprias ficções são infundadas e gratuitas, “pode atingir umaespécie de autenticidade negativa apenas ao alardear sua irônicaconsciência desse fato (...), chamando a atenção para seu própriostatus de artifício construído” (1997: 318). Aspecto interessante dametalinguagem está relacionado então à aplicação da autocríticano texto, ou seja, quando o “ator” faz perguntas sobre o que estáacontecendo, a explicação do diretor revela a análise das cenasanteriores como forma metalingüística interna ao texto. Em outrostermos, o texto explica as cenas anteriores e, com isso, revelaaspectos metalingüísticos importantes para a compreensão doenredo do filme-crônica que está sendo produzido:

— Está bom, mas acho que você precisa ser mais convincente.— Que-quem é você?— Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos refazer esta

cena. Você tem que transmitir melhor o desespero do personagem.Ele chega em casa e descobre que sua casa não é uma casa, é umcenário. Descobre que está no meio de um filme. Não entende nada.

--------------------------------------------------------------------------— Que script? Não tem script nenhum. Eu digo o que quiser. Isto

não é um filme. E mais, se é um filme, é uma porcaria de filme. Istoé simbolismo ultrapassado. Essa de que o mundo é um palco, quetudo foi predeterminado, que não somos mais do que atores...Porcaria!

Além disso, a circularidade sugerida pelos vários cortesinternos da narrativa, que são novamente retomados a posteriori,revela implicações com categorias oníricas relacionadas ao devaneioe à fantasia. Como num labirinto, no qual, quando não é encontradaa saída, volta-se sempre a lugares já percorridos, o texto enfatizaas seqüências aleatórias, a presença do acaso nas relaçõeshumanas.

Com relação à representação das ações humanas, o textoaparece como narrativa literária que incorpora elementos própriosde uma produção cinematográfica, entrevistos no acompanhamentodas cenas pelo olhar de uma câmera que “captura” a movimentaçãodos personagens no ambiente; no corte abrupto das cenas; namontagem da narrativa em feixes de ações sobrepostas etc. Acrônica revela, portanto, aspectos relacionados ao reconhecimento

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da fragmentação do indivíduo frente à sociedade, a partir dasimagens forjadas nos relacionamentos humanos, e que prescrevemcertas atitudes a serem adotadas em diferentes situações. A unidadedo sujeito é questionada pela sugestão da diversidade de atuaçõesperante a sociedade: o sujeito julga ser “um para todos”, quando,na realidade, as distintas possibilidades de relacionamento revelamvários papéis possíveis a serem desempenhados; um com estapessoa, outro com aquela. O personagem, incapaz de vislumbrarunidade em termos de consciência, não consegue compreender aspersonalidades que a sociedade construíra para fixá-lo em umaforma estável, resultado sugerido pelo final do texto, que indica acontinuidade da encenação, mesmo sob os protestos do “ator”.

“A verdade”

Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho,deixando a água do riacho passar por entre os seus dedos muitobrancos, quando sentiu o seu anel de diamante ser levado pelaságuas. Temendo o castigo do pai, a donzela contou em casa quefora assaltada por um homem no bosque e que ele arrancara o anelde diamante do seu dedo e a deixara desfalecida sobre um canteirode margarida. O pai e os irmãos da donzela foram atrás do assaltantee encontraram um homem dormindo no bosque, e o mataram, masnão encontraram o anel de diamante. E a donzela disse:

— Agora me lembro, não era um homem, eram dois.E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem,

e o encontraram, e o mataram, mas ele também não tinha o anel. Ea donzela disse:

— Então está com o terceiro!Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os

irmãos da donzela saíram no encalço do terceiro assaltante, e oencontraram no bosque. Mas não o mataram, pois estavam fartosde sangue. E trouxeram o homem para a aldeia, e o revistaram, eencontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, paraespanto dela.

— Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo,e a deixou desfalecida – gritaram os aldeões. – Matem-no!

— Esperem! – gritou o homem, no momento em que passavam acorda da forca pelo seu pescoço. – Eu não roubei o anel. Foi ela queme deu!

E apontou para a donzela, diante do escândalo de todos.O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando,

quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu obeijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse,pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homem

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honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência,pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então adonzela lhe oferecera o anel, dizendo “Já que meus encantos não oseduzem, este anel comprará seu amor”. E ele sucumbira, pois erapobre, e a necessidade é o algoz da honra.

Todos se viraram contra a donzela e gritaram: “Rameira! Impura!Diaba!” e exigiram seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passoua forca para o seu pescoço.

Antes de morrer, a donzela disse para o pescador:— A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela

minha mentira e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade?O pescador deu de ombros e disse:— A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas

quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não históriasde pescador.

(In: VERISSIMO, L. F. Comédias da vida privada. Porto Alegre: 1994b, pp. 358-59).

A análise dessa narrativa partirá das discussõesempreendidas pelo escritor e crítico literário Silviano Santiago que,desenvolvendo o percurso histórico do narrador traçado por WalterBenjamin, se empenha em demonstrar de que forma alguns traçosda pós-modernidade interferem na configuração do narrador pós-moderno. Segundo o autor, agora mais do que nunca, o narradorpós-moderno “sabe que o ‘real’ e o ‘autêntico’ são construções delinguagem” (1989: 40). Em “A verdade”, Luis Fernando Verissimomostra aspectos que estão relacionados a esta visão das realidadessociais.

Nessa crônica, como visto através de sua leitura anterior, oautor conta a história, aparentemente banal, de uma moça queperde um anel de diamante à beira de um riacho. Como explicaçãoao pai severo, a moça “inventa” o relato de um assalto. O pai e osirmãos saem em busca do criminoso e encontram um homemdormindo no bosque e o matam. No entanto, não encontram o anel.A donzela alega haver um segundo assaltante e novamente ocorreo processo de busca e morte de outro inocente.

Dessa forma, através da mentira (também compreendida comoconstrução de linguagem), a donzela consegue persuadir o pai e osirmãos, alegando agora a existência de um terceiro assaltante enovamente eles saem à procura do malfeitor. Nessa terceiratentativa – estrutura típica encontrada em alguns contosmaravilhosos –, o pai e os irmãos da donzela, “fartos de sangue”,após levá-lo à aldeia, resolvem revistar o suposto assaltante (na

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realidade, um pescador) e, para a surpresa da própria donzela,encontram o diamante.

A partir daí, o autor revela as possibilidades persuasivas dalinguagem na medida em que apresenta “‘a verdade’ comoconstrução de linguagem”: a defesa do pescador mostra que ashabilidades no uso das palavras auxiliam na exposição das idéiase dos fatos como sendo verdadeiros. Como exemplo dessashabilidades podem ser citados o conhecimento, por parte dopescador, do consenso comunitário de que histórias de pescadorsão mentirosas; o apelo aos valores prestigiados pela comunidade(honra, casamento, família, dignidade etc.) através da inclusão decenas de violência (suborno feito por parte da donzela) e sexo (aperda da virgindade):

O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando,quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu obeijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse,pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homemhonrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência,pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então adonzela lhe oferecera o anel, dizendo “Já que meus encantos nãoo seduzem, este anel comprará seu amor”. E ele sucumbira, poisera pobre, e a necessidade é o algoz [carrasco] da honra (1994b:359, grifos nossos).

Portanto, a verdade aparece na narrativa como uma mentiraque foi bem contada. Sendo assim, ela é uma ação construída pelodiscurso. Além disso, a verdade está ancorada em valoresconsensuais prestigiados pelos “aldeões” e conhecidos pelopescador, pois, mesmo sabendo da “verdade verdadeira”, este nãopode fazer sua exposição sob pena de ser desacreditado pelo gruposocial no qual está inserido. O pescador sabe que a verdade não éo que parece, mas é essa que o liberta. Então faz uso da que lheconvém. Portanto, o texto apresenta diferentes versões sobre omesmo fato: a versão “válida” é aquela que integra a construçãodiscursiva mais elaborada.

Pode-se questionar como é que as outras pessoas não ouvemo que o pescador diz à donzela no final do texto? É nesse detalheque reside a comicidade da narrativa: o leitor sabe que tanto adonzela quanto o pescador estão mentindo e o narrador, usandocomo recurso a ocultação de alguns fatos, faz com que o pescador

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não seja desmascarado aos olhos dos personagens que tomam partena ação, com exceção da donzela: o narrador desmascara osmentirosos diante do leitor, o que leva ao riso.

Desse modo, no que se refere às possíveis atitudes do leitordiante do texto, pode ser destacado um fato curioso. Nas linhasfinais do texto, falando para o pescador, a donzela afirma: “A suamentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentirae vão matar pela sua”. Tanto a donzela quanto o pescador utilizam-se da mentira para convencer as pessoas; sendo assim, ambos sãocriminosos. Por que então a condenação da donzela pode ser aceitacomo sendo “mais” justa?

Pode ser visualizada como uma das respostas para estaimparcialidade o fato de que a história do pescador, apesar de seruma mentira também, “vinga” a morte anterior de dois inocentes.Nesse aspecto, relacionam-se no texto diferentes noções de justiça:a donzela deve ser castigada já que foi a autora das mentiras quegeraram todo o conflito – levando seu pai e seus irmãos a cometeremdois assassinatos; ao ser identificado no texto como vítima, opescador revela perspicácia ao relatar sua história com maior ênfase,e, como tal, sua libertação pode ser encarada de forma menosproblemática.

Em certo sentido, estas considerações contribuem pararevelar algumas propriedades do riso, pois quando o texto faz rir,este riso condena certas atitudes que contradizem noções do queseja “certo” e “justo”. No caso, é justo e é certo que o pescador sejainocentado, mesmo que seja através da mentira, recurso utilizadotambém pela donzela. A mentira é condenável, mas a reparação deuma injustiça anterior pode ser classificada como mérito dopescador por estar amparada em uma defesa consistente. A mentiraadquire assim um valor positivo ao ser utilizada como arma parareparar uma injustiça.

Nesse aspecto, sendo os contos maravilhosos e os contos defadas, por definição, histórias de índole maniqueísta — isto é,focalizam geralmente o eterno conflito entre o bem e o mal, entreheróis e bandidos —, sua alusão suscita no leitor, como que porum mecanismo de reflexos condicionados, uma expectativaeticamente orientada, uma vontade de tomar partido.

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Contudo, a narrativa subverte o maniqueísmo elegendo amentira como forma de salvação, tanto da donzela, num primeiromomento, quanto do pescador ao final do texto. Assim, a escolha docenário para ambientar a história (aldeia) e personagensestereotípicos (donzela) ligam-se aos contos maravilhosos e contosde fadas; entretanto, a subversão do maniqueísmo atua como fatordiferencial, já que a mentira nessas histórias geralmente estáassociada a atitudes malignas.

Com relação ao final irônico do texto, a ironia pode serenquadrada entre as estratégias colocadas em prática na língua enos diferentes discursos, visando passar idéias, estabelecer relaçõescom dado público e, se possível, modificar seu posicionamentofrente a determinadas questões. Assim, nessa narrativa, LuisFernando Verissimo encerra através da expressão “O pessoal querviolência e sexo, não histórias de pescador” numa referência aoprivilégio dado atualmente – através da cultura de massa, desde atelevisão e o cinema até os jornais, as revistas etc. –, à obscenidadecom que são expostas determinadas imagens. Tal processo sugereentão que “já não há mais a obscenidade tradicional entendidacomo algo escondido, reprimido, proibido ou obscuro; pelo contrário,é a obscenidade do visível, do tudo-muito-visível, do mais-visível-que-o-visível. É a obscenidade do que já não tem nenhum segredo,do que se dissolve completamente em informação e comunicação”.5

Outro ponto importante da narrativa está direcionado àsrelações estabelecidas entre cultura popular, cultura erudita ecultura de massa expressas na utilização pelo autor da estruturatípica dos contos maravilhosos, compreendidos enquanto narrativaspopulares que sofreram um processo de canonização que resultou,por sua vez, na “padronização” desses contos tal como seapresentam atualmente. Esse aspecto é reforçado em certa medidaatravés da ambientação medieval da narrativa evidenciada nadescrição de situações típicas de uma aldeia desse período — entreeles, a condenação sumária dos criminosos, o que evidencia aausência de todo um aparato jurídico e legal — e no uso de termosque se enquadram nos moldes dos contos maravilhosos, tais como“donzela” e “canteiro de margarida” que aparecem de forma“caracterizante” no início da narrativa.

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Apesar dessa caracterização, o texto revela implicações coma relativa homogeneização discursiva realizada pelos meios decomunicação no que se refere à sedimentação do imagináriosociocultural ocorrida nos “tempos pós-modernos” e incentivada pelacultura de massa. Isto transparece principalmente no que se refereao fato de a originalidade da representação ter sua importânciareduzida, já que a fim de satisfazer ao maior número possível deseus consumidores, “as obras dessa cultura se abstêm de usarrecursos de expressão que, por demasiado originais ou pessoais,se afastem do gosto médio, frustrando-se as expectativas. Daí queela se limite, na maioria dos casos, ao uso de recursos de efeito jáconsagrados, mesmo arriscando a banalizá-los pela repetição” (PAES,1990: 26). Dessa maneira, a narrativa mostra ainda que a reiteraçãode esquemas formais consolidados junto aos destinatários é defundamental importância: cenas de violência e sexo seriam entãoos ingredientes básicos das estratégias usadas para convencer opúblico.

A referência às histórias de pescador aponta para a utilizaçãode aspectos relacionados a este tipo de estrutura narrativa namedida em que ressalta o inusitado das interpretações dadas aosfatos através do encadeamento narrativo logicamente previsível,caminhando para um desfecho de forte impacto, sendo estaestrutura a responsável pela surpresa e pelo riso.

Esses aspectos podem ser relacionados à combinação dediferentes registros de discurso adotada para a exposição dahistória: o autor “chama” de crônica o que apresenta elementospresentes nos contos maravilhosos e nas piadas, entre outrasformas de “contar histórias”. Assim, a narrativa incorpora todasessas estruturas e nenhuma delas, pois os elementos de ambassão utilizados para criar a forma nova, inscrevendo-se no debate,tanto moderno quanto pós-moderno, sobre as fronteiras e os limitesentre os vários gêneros.

Jane Flax, elencando as crenças postas em dúvida pelasteorias desconstrutivistas, enfatiza que uma delas está relacionadaà noção de que “a linguagem é de certo modo transparente”. Comisso, essas teorias procurariam questionar a idéia de que “assimcomo o uso correto da razão pode resultar no conhecimento querepresenta o real, também a linguagem é meramente o meio no

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qual e através do qual tal representação ocorre”. Assim, de acordocom a autora, este redirecionamento colocaria em dúvida a idéiade que “os objetos não são lingüisticamente (ou socialmente)construídos, [pois, se afirmava até então que] eles são meramentetrazidos à consciência pela nomeação e pelo uso correto dalinguagem” (1991: 222-3). Sendo assim, o uso racional da ciênciapassa a ser discutido pelo pós-modernismo através doquestionamento das “narrativas-mestras” que sustentavam osdiversos discursos, pois já “não existem hierarquias naturais, sóexistem aquelas que construímos” (HUTCHEON, 1991: 30-31).

Como visto, o narrador de “A verdade” sugere que aquilo queé compreendido como verdadeiro pode ser exposto como estandovinculado à competência discursiva do falante. O discurso aparece,dessa forma, não como entidade estável e contínua que possa serdiscutida como um texto formal fixo: “por ser o local da associaçãoentre o poder e o conhecimento, o discurso vai alterar sua forma esua relevância dependendo de quem está falando, da posição depoder dessa pessoa e do contexto institucional em que o falanteesteja situado” (FOUCAULT, 1997: 96).

A narrativa estabelece considerações sobre questões ligadasà autoridade e à legitimação do poder a partir da palavra. De acordocom Luis Fernando Verissimo, “o perigo da palavra lhe confere suagrandeza (...). A origem da palavra não é garantia de autenticidade.Seu valor depende menos de quem diz do que quando e como diz[pois] com a palavra se mobiliza qualquer um, e se explica qualquercoisa” (1994a: 7-8). A narrativa apresenta importantes característicasauto-reflexivas, principalmente ao mostrar de quem é a noção deverdade que passa a ter poder e autoridade sobre as outras e depoisevidenciar o processo através do qual isto ocorre.

Portanto, a análise da narrativa, quando aliada àproblematização das relações entre discurso e poder, sinaliza parao fato de que este se caracteriza substancialmente por estarconstantemente sendo produzido, ou seja, o poder não é umaestrutura nem instituição: é um processo, e não um produto. Opoder da palavra está intimamente ligado então ao contexto emque é utilizada, o que sugere a eficácia da “polivalência tática dosdiscursos” (FOUCAULT, 1997: 95). É assim que as palavras do pescador,sustentadas pelos valores prestigiados pelo grupo no qual está

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inserido, adquirem poder e autoridade, fazendo com que os aldeõesaceitem sua defesa como sendo passível de crédito e condenandoa donzela à morte.

O estudo aqui empreendido apresenta-se como esboço daspossibilidades de análise das narrativas de Luis FernandoVerissimo. Como maneira de condensar essas possibilidades pode-se indicar que elas apresentam algumas peculiaridadesrelacionadas ao momento pós-moderno vivenciado nas produçõesculturais das últimas décadas: inter-relações entre cultura popular,cultura de massa e cultura erudita; utilização da comicidade parasurpreender seus leitores, principalmente pelo emprego da ironiae da paródia; incorporação de teorizações acadêmicas; implicaçõesformais e estéticas com o modernismo, entre outras abordadas nodecorrer da exposição realizada.

Mais especificamente em relação à cultura de massa merecedestaque o fato de Luis Fernando Verissimo poder ser consideradoum autor de destaque significativo no mercado editorial brasileiro.Apesar desse destaque — pode-se sugerir que, em grande parte,por conta dele —, o autor consegue questionar os limites e astendências das manifestações que se apresentam na atualidadecomo veículos do “êxtase da comunicação”.

Ademais, muitas das crônicas do autor redimensionamalgumas peculiaridades características do gênero. Como exemplo,pode ser citada a utilização de artifícios de distanciamento narrativo.O gênero costuma ser definido muitas vezes pelo uso do narradorem primeira pessoa, ou seja, quem fala na crônica é o própriocronista. De acordo com o modo como o autor se dirige ao leitor,para transmitir-lhe a sua interpretação artística da realidade, osgêneros literários são classificados da seguinte forma:

Fazendo-o diretamente, em seu próprio nome, explanando seuspontos de vista, temos os gêneros ensaísticos: ensaio, crônica,discurso, máximas, carta; se, ao contrário, o faz indiretamente, istoé, usando artifícios que veiculam a sua interpretação, resultam trêsvariedades conforme o artifício é: a) uma estória que encorpa ainterpretação - gêneros de literatura narrativa (epopéia, ficção, etc.);b) uma representação mimética da realidade - gêneros de literaturadramática (tragédia, comédia, etc.); c) símbolos, imagens, música,ritmo, - gêneros de literatura lírica ou lirismo (COUTINHO, 1978a: 13).

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Evidenciando a fusão entre elementos dessa classificaçãotradicional dos gêneros, em várias de suas narrativas LuisFernando Verissimo utiliza-se de diálogos entre personagens comoprocedimento para encarnar os comentários a respeito de temasdiversos. Esse aspecto pode ser definido como contra-corrente nacrônica. Isto não é novidade no gênero, mas um recurso freqüentena obra deste autor. Além disso, o trabalho de concisão, de síntesenarrativa, peculiar ao conto, aparece em suas crônicas comoelemento fundamental para sustentar a agilidade desses diálogos.Na combinação que realiza em sua prosa de formas e temas ligadosaos meios de comunicação de massa, procura se apropriar deimagens e idéias ligadas ao cotidiano, com o intuito de fazer oregistro de mudanças significativas ocorridas nas últimas décadasem algumas esferas socioculturais.

Alguns mecanismos usados em campanhas publicitáriasexibidas na televisão podem ilustrar o modo como a literatura vemincorporando elementos ligados à cultura de massa. O olhar filtradopela câmera parece ser um dos recursos mais expressivos nasproduções culturais contemporâneas. Mas existem outros.

Em muitas campanhas publicitárias, uma das maneiras deatingir o maior número de consumidores reside na utilização dacomicidade. Os produtores de comerciais para a televisão sabemque o tempo de tele-transmissão é limitado e não pode ser gastocom mensagens simplórias. Sendo assim, a repetição constantedesses comerciais encontra um obstáculo: o efeito cômico estárelacionado com a surpresa, com o inesperado. Este obstáculo podeser definido pela seguinte questão: quem ri de uma piada quandojá sabe do seu final?

Para driblar este obstáculo os produtores desses comerciaislançam mão de um recurso engenhoso: o comercial não necessita,e nem deve, provocar o riso no telespectador apenas pelo seu finalinusitado; ao invés disso, ele deve conter vários momentos risíveispara que o telespectador, quando estiver assistindo novamente aomesmo comercial, possa ater-se a detalhes que antes não forampercebidos. Isto requer um trabalho meticuloso devido ao intervalode tempo reduzido da maioria dos comerciais.

Esta estratégia passa a ser utilizada como artifício paraveicular mensagens que atraiam o consumidor para a frente da

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televisão, pois, rindo das cenas cômicas de um comercial, otelespectador estará fazendo a associação desse momento prazeroso– já que “rir é o melhor remédio” – com o produto exibido na tela.

Mas quais são as implicações entre comerciais televisivos eas crônicas de Luis Fernando Verissimo? Pois bem. À semelhançados comerciais de televisão – no que se refere às estratégias paraprovocar o riso e não aos objetivos desse riso – a escrita de LuisFernando Verissimo procura desenvolver uma comicidadecaracterizada pela sutileza. Por este motivo, o autor consegue atrairo leitor ao provocar, em muitos casos, uma manifestação de riso decerta forma contida. Este recurso, apesar de não provocar agargalhada, mostra o conhecimento por parte do autor dasartimanhas para pontuar seus textos de pequenos episódios risíveis.

Esta sutileza no emprego da comicidade parece possuirparalelos na publicidade televisiva: um comercial de televisão deveentreter os telespectadores de tal forma que, a cada aparição, estespercebam um detalhe antes não percebido. De forma semelhante,as narrativas de Luis Fernando Verissimo procuram amenizar osefeitos do riso, ou, em outros termos, o riso provocado não deveser muito prolongado e não deve ser limitado apenas ao final danarrativa. Por este motivo, o uso de recursos diversos para provocaro riso no leitor, em diferentes momentos de seus textos, parece seruma das estratégias mais eficazes adotadas pelo autor. Essaestratégia está relacionada ao fato de que os fenômenos risíveistornam-se enfadonhos quando ouvidos ou lidos novamente devidoà “perda da graça”, pois já não causam mais surpresa, quandosustentados apenas pelo final inesperado.

Em síntese, de que maneiras a escrita de Luis FernandoVerissimo faz uma releitura dos problemas da sociedade brasileira?A resposta parece estar nos recursos discursivos utilizados peloautor como a paródia, a ironia, a réplica sarcástica, a biografiaautocrítica, entre outros. Estes recursos relativizam os significados,ao citar e aludir a outros discursos, servindo a um amplo leque deatitudes por parte do autor, desde a homenagem até a brincadeiraou a transgressão. O que fica evidenciado é que o autor articulauma espécie de crítica pautada no riso, sustentada pela recusasubversiva das definições pré-fabricadas e pela insinuação denovas definições, mesmo que sejam provisórias. Essa crítica

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adquire força na instabilidade gerada pela contestação dos padrõesestabelecidos no convívio social: “o mirante escolhido pelo escritorapresenta um mundo engraçado, mas trágico. Faz-nos rir, masfaz-nos ver também que fala de coisas sérias” (SILVA, 1984: 19).

Portanto, Luis Fernando Verissimo pode ser inscrito noquadro daqueles escritores que apostam na certeza da dúvida erevelam um expressivo desencanto em relação à ditadura doconsenso, atitudes constantes em sua arte, ao alertar sobre o perigodos clichês e dos lugares-comuns produzidos pela sedimentaçãoda linguagem. O autor investe, assim, no potencial subversivo dacomicidade que atua decisivamente contra as pretensõesuniversalizantes, baseadas na sua grande maioria nos discursosconsiderados “sérios”. Na análise aqui efetuada, os pontos altos daprosa de Luis Fernando Verissimo identificam-se com a inserçãode caracteres ligados ao pós-modernismo e com a manipulaçãoartística de elementos cômicos em suas narrativas, legando àcrônica a força e a vivacidade necessárias à sua permanência.

Notas

1. Além dos personagens-tipo citados, Luis Fernando Verissimo criou aindaoutros que, no entanto, não (re)aparecem com tanta freqüência. Entre estes,destaca-se o “Doutor Pundonor de Azevedo”, defensor da moral e dos bonscostumes da família brasileira (O popular, 1973); e “Dora Avante”, uma “socialite”em decadência (A mulher do Silva, 1984; Orgias, 1989).

2. Expressão criada por Linda Hutcheon para designar aquelas manifestaçõesque procuram se contrapor às narrativas-mestras, principalmente aquelasformuladas com base nas idéias do humanismo liberal.

3. Numa sociedade sustentada pela possibilidade de acúmulo de riquezas,não é de surpreender que os velhos preconceitos ligados à raça, à nacionalidade,ao sexo etc. sejam redimensionados, muitas vezes, em termos financeiros,passando a predominar o preconceito econômico: o tratamento dispensado aricos e pobres é então diferenciado cada vez com mais ênfase.

4. Referência a Orlando Fantoni, técnico de futebol “linha-dura”, famoso nasdécadas de 1970 e 1980. O técnico aparece como ícone oposto à leveza deBruna Lombardi.

5. “It is no longer the traditional obscenity of what is hidden, repressed, forbiddenor obscure; on the contrary, it is the obscenity of the visible, of the all-too-visible, of the more-visible-than-the-visible. It is the obscenity of what nolonger has any secret, of what dissolves completely in information andcommunication.” (BAUDRILLARD, Jean. “The ecstasy of communication”. Transl.John Johnston. In: FOSTER, Hal [Ed.]. The Anti-Aesthetic: Essays on PostmodernCulture. Port Tousend, Washington: Bay Press, 1983, p. 131).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Ao longo deste livro foram apresentadas questões sobretemáticas consideradas importantes para a análise da literaturaproduzida nas últimas décadas do século XX. Como forma de indicaras possibilidades de pesquisa na área são arrolados a seguirelementos que podem sinalizar alguns caminhos para a críticaliterária no próximo século.

As narrativas e as imagens veiculadas pelos mass mediadifundem os símbolos, os mitos e os recursos que informam, emmuitas regiões do mundo, a constituição de uma cultura comumpara a maioria dos indivíduos. A cultura veiculada nesses meiosfaz circular as informações que sedimentam as identidades pormeio das quais os indivíduos se inserem nas sociedadestecnocapitalistas contemporâneas, produzindo uma nova forma decultura global.

A formulação de teorias sobre o intercâmbio entre mídia ecultura, um dos caminhos da crítica literária na atualidade, requerestudos específicos relacionados às ocorrências da história efetiva.Isto porque estes estudos precisam ser inseridos na realidade desua própria história. Para interrogar de modo crítico a literaturacontemporânea é preciso realizar estudos sobre o modo como osescritores criam produções que dialogam com os discursossocioculturais encravados nos conflitos e nos fundamentos de suaépoca.

Embora uma parte das teorias pós-modernas elucide certascaracterísticas novas e mais evidentes de nossa cultura e de nossasociedade, a afirmação de que há uma nova ruptura pós-modernana sociedade e na história é exagerada. No contexto brasileiro, asúltimas décadas do século XX apresentam-se como uma era detransição entre o moderno e o pós-moderno, o que exige a análise

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tanto das estratégias e teorias modernas quanto das pós-modernas.Esta posição assinala a resistência à tentação de denunciar anecessidade de uma teoria e de estudos pós-modernos inteiramentenovos.

O estudo de obras literárias precisa atentar para fatoresligados à comercialização da arte, já que este é o caminho inevitávelda literatura, numa época de predomínio da publicidade, pilar deuma sociedade organizada a partir do consumismo. Nesse cenário,o livro passa a ser cada vez mais objeto de fetiche e admiração. Istoporque as belas palavras inscritas na contracapa ou em resenhasencomiásticas e sob encomenda — para o bem ou para o mal —publicadas em revistas e jornais são veículos eficazes para adivulgação das obras. Além disso, o apuro do projeto gráfico, oesmero com o tipo de papel ou a fonte escolhidos para impressão,entre outros fatores técnicos, interferem decisivamente para aaquisição de determinada obra.

Contudo, as novas tecnologias da mídia e da informáticaapresentam resultados ambíguos. De um lado, tem-se uma maiordiversidade de escolha, o que amplia as chances de autonomiacultural, tendo em vista a abertura para as intervenções de outrasculturas e idéias. De outro, elas possibilitam novas formas deexposição e vigilância, por meio do que os olhos e sistemaseletrônicos instalados em locais de trabalho e residênciasfuncionam como elementos que confirmam as previsões maispessimistas (orwellianas) acerca de um sistema panóptico decontrole dos indivíduos. Além disso, estas novas tecnologias sãodefinidas por muitos estudiosos como novas formas de controlesocial alicerçadas em técnicas de doutrinação e manipulação maissutis e, por tal motivo, mais eficientes. Isto porque sua presençaconstante faz com que as pessoas se recolham ao espaço doméstico,o que as distancia das multidões e dos locais públicos de açãopolítica.

A presença da televisão como forma de entretenimentodoméstico é relativamente recente, considerando o período de suadisseminação até alcançar o lugar central no sistema de cultura ecomunicação em muitas regiões do mundo. A indústria cultural,tal como definida pela Escola de Frankfurt, tomou corpo somentea partir do pós-guerra, transformando-se em elemento dominante

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na cultura e na política. Além da TV a cabo e por satélite, outrastecnologias acrescentaram particularidades expressivas aofenômeno da indústria cultural, tal como o videocassete e ocomputador pessoal, o que acelera o predomínio da imagem nosdias atuais.

É preciso utilizar modelos diversificados de abordagem parainterpretar as formas visuais e verbais veiculadas pelos mass media,numa sociedade em que a cultura do livro foi suplantada pelosnovos suportes culturais. A importância do estudo da cultura demassa reside, portanto, no fato de que a televisão tornou-se oprincipal elemento de socialização, alterando formas de interaçãosocial, ao substituir a família, a igreja e a escola como juízes adeterminar valores, gostos e idéias. Com suas celebridades eimagens atraentes, a televisão interfere poderosamente naconstituição de novos modelos de estilo, moda e comportamento(identidades) a serem adotados pelas pessoas. A produção de novasformas de cultura e a profusão de novas realidades culturais alteramas percepções do tempo e do espaço, o que dificulta a distinçãoentre as experiências virtuais e a vida real. Estas alteraçõesvinculam-se à substituição do Estado-nação pelas empresastransnacionais, principalmente no que se refere aos fatores queregulam a produção e a circulação de produtos, apagando fronteirasanteriores da geografia convencional.

Em síntese, modos de produção cultural e formas de vidasocial e política são atingidas pelas alterações ocorridas em diversossetores da sociedade. Há que se considerar neste processo a posiçãoocupada pelas empresas de comunicação. Elas veiculam uma formacomercial de cultura que visa a lucratividade. Este tipo de produçãocultural gera conseqüências significativas. A indústria dos massmedia procura produzir coisas que vendam ou que atraiam aaudiência. Em grande parte dos casos, isto significa apresentarnarrativas e imagens que seduzam as pessoas e atraiam o maiornúmero de consumidores. Por outro lado, isto obriga as produçõesculturais a incorporarem em seus temas e motivos a vivência social,tendo em vista a necessidade da oferta de produtos atraentes. Paratanto, é preciso que elas traduzam tramas envolventes, transgridamconvenções ou expressem idéias correntes, possivelmenteoriginadas por acontecimentos recentes.

considerações finais

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Como resultado, é preciso destacar as intervenções demovimentos progressistas que requisitam maior espaço naestruturação dos grupos sociais. A teoria feminista, as práticasanti-racistas, a defesa do meio-ambiente, o pós-colonialismo, entreoutros, aparecem como discursos que ampliam o alcance dasanálises tradicionais, em detrimento das questões ligadasexclusivamente à posição social. Portanto, o diálogo entre asdiversas teorias, que procuram explicar aspectos relevantes dasociedade contemporânea, parece ser um dos meios a partir doqual se pode refletir sobre a criação literária na atualidade.

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ensaios sobre a arte da palavra

COLEÇÃO THÉSIS

Impressa na Gráfica da UnioesteMiolo em papel Off Set 75 g/m2

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A Coleção Thésis é financiada pela Fundação Araucária de Apoioao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná, entidadede direito privado que ampara a pesquisa científica e tecnológicae a formação de recursos humanos no Estado do Paraná. Paraisto, a Fundação conta com programas de apoio à pesquisa básicae aplicada, promoção de intercâmbio de pesquisadores edisseminação científica. Os recursos financeiros utilizados pelaFundação têm origem no Fundo Paraná, que destina 2% da receitatributária do Estado ao desenvolvimento científico e tecnológico.

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