Ensino de ciências e marxismo

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VII COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX E ENGELS EXPERIMENTAÇÃO NO ENSINO DE CIÊNCIAS: UMA VISÃO CRÍTICO-DIALÉTICA Rafael Cava Mori Doutorando em Química – Instituto de Química de São Carlos/Universidade de São Paulo Resumo: Este trabalho apresenta uma visão crítico-dialética da experimentação, enquanto estratégia para o ensino de ciências. Primeiro, são expostos os fundamentos de uma teoria marxista do conhecimento. A seguir, articulo elementos da Pedagogia Histórico-Crítica para caracterizar a especificidade didática das atividades experimentais. Por fim, extraio alguns elementos da Psicologia Histórico-Cultural para desenvolver alguns novos entendimentos sobre a atividade experimental para o ensino de ciências. Palavras-chaves: experimentação no ensino de ciências. Pedagogia-Histórico-Crítica. Psicologia Histórico-Cultural. 1 INTRODUÇÃO A experimentação, como estratégia para o ensino dos conteúdos de ciências, já serviu a diversos interesses pedagógicos, na história da educação científica e tecnológica 1 . Até a renovação do ensino de ciências, a partir da década de 1950, pode-se afirmar que os experimentos eram recursos de caráter retórico, sendo sua função sustentar o discurso dos mestres. A verdade das afirmações teóricas era confirmada com demonstrações experimentais. Não era necessário que os estudantes realizassem eles mesmos os experimentos; quando isto acontecia, era numa perspectiva verificacionista, ou seja, seguidas instruções precisas, um resultado esperado, que confirmaria a teoria, seria obtido ao final. Com esta renovação da educação científica e tecnológica, liderada pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, os currículos sofreram grandes alterações, assim como as estratégias de ensino. A necessidade de formar quadros para o exercício das profissões científicas e tecnológicas, palavra de ordem para estas nações em disputa científico-tecnológica contra os soviéticos (refiro-me à Guerra Fria), ganhou terreno nas salas de aula, com o incentivo à opção por estas carreiras já desde a tenra idade dos educandos. Apareceram então as atividades experimentais de redescoberta, em que a coleta de dados em sala de aula levaria, 1 Para tratar rapidamente desta história, apoio-me principalmente no livro O professor e o currículo de ciências, da Prof. Myriam Krasilchik (1987), e na tese de doutorado de Pinho Alves (2000).

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VII COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX E ENGELS

EXPERIMENTAÇÃO NO ENSINO DE CIÊNCIAS:

UMA VISÃO CRÍTICO-DIALÉTICA

Rafael Cava Mori

Doutorando em Química – Instituto de Química de São Carlos/Universidade de São Paulo

Resumo:

Este trabalho apresenta uma visão crítico-dialética da experimentação, enquanto estratégia para o ensino de ciências. Primeiro, são expostos os fundamentos de uma teoria marxista do conhecimento. A seguir, articulo elementos da Pedagogia Histórico-Crítica para caracterizar a especificidade didática das atividades experimentais. Por fim, extraio alguns elementos da Psicologia Histórico-Cultural para desenvolver alguns novos entendimentos sobre a atividade experimental para o ensino de ciências. Palavras-chaves: experimentação no ensino de ciências. Pedagogia-Histórico-Crítica. Psicologia Histórico-Cultural.

1 INTRODUÇÃO

A experimentação, como estratégia para o ensino dos conteúdos de ciências, já serviu

a diversos interesses pedagógicos, na história da educação científica e tecnológica1.

Até a renovação do ensino de ciências, a partir da década de 1950, pode-se afirmar que

os experimentos eram recursos de caráter retórico, sendo sua função sustentar o discurso dos

mestres. A verdade das afirmações teóricas era confirmada com demonstrações

experimentais. Não era necessário que os estudantes realizassem eles mesmos os

experimentos; quando isto acontecia, era numa perspectiva verificacionista, ou seja, seguidas

instruções precisas, um resultado esperado, que confirmaria a teoria, seria obtido ao final.

Com esta renovação da educação científica e tecnológica, liderada pelos Estados

Unidos e pela Inglaterra, os currículos sofreram grandes alterações, assim como as estratégias

de ensino. A necessidade de formar quadros para o exercício das profissões científicas e

tecnológicas, palavra de ordem para estas nações em disputa científico-tecnológica contra os

soviéticos (refiro-me à Guerra Fria), ganhou terreno nas salas de aula, com o incentivo à

opção por estas carreiras já desde a tenra idade dos educandos. Apareceram então as

atividades experimentais de redescoberta, em que a coleta de dados em sala de aula levaria, 1 Para tratar rapidamente desta história, apoio-me principalmente no livro O professor e o currículo de ciências, da Prof. Myriam Krasilchik (1987), e na tese de doutorado de Pinho Alves (2000).

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por indução, a que os estudantes, eles mesmos, alcançassem as generalizações da ciência.

Então o laboratório escolar estruturava-se como espaço central do ensino e celeiro de novos

talentos para o mundo da pesquisa e da tecnologia.

Com a aproximação dos anos de 1970, crises econômicas e ambientais forçaram a uma

revisão deste ideário. Até então, o desenvolvimento científico do século XX permitia se

atribuir à ciência a capacidade de lidar com todas as consequências do desenvolvimento

humano. Mas agora ela será cada vez mais analisada e/ou criticada em seus fundamentos

filosóficos, e este movimento repercutirá na própria educação científica. Formar cientistas já

não será prioridade, e as perspectivas mais empiristas da aprendizagem escolar (muito

inspiradas no comportamentalismo) darão lugar às aplicações da psicologia cognitivista, em

que se destacará o nome de Jean Piaget.

Estamos nos anos de 1980, firmando-se o “paradigma” construtivista na educação. O

ensino de ciências, nesta perspectiva, procura rejeitar as visões positivistas do processo de

ensino e aprendizagem e da história e natureza da ciência. O laboratório de ciências perde sua

centralidade, visto que a experimentação passa a conviver com outras estratégias de ensino,

como jogos e simulações.

A partir daí, o laboratório didático será encarado pelos educadores conforme posições

nem sempre bem definidas, num discurso ambíguo, misto de entusiasmo e ceticismo.

Entusiasmo, pois a pressão do construtivismo em direção a um ensino que relegue maior

autonomia aos estudantes irá ao encontro da concepção de um laboratório aberto, pouco

estruturado, sem o uso de roteiros fixos e experimentos do tipo “receita”. Ceticismo, por outro

lado, pela preocupação de que a experimentação apenas reforce visões positivistas –

empiristas, indutivistas – da natureza da ciência, pelos estudantes.

Neste texto, tentarei mostrar que nenhuma destas visões é essencialmente correta, e

que estas preocupações dos profissionais da educação não têm motivos para se somar aos

problemas que estes trabalhadores já enfrentam. Para isso, recorrerei à Pedagogia Histórico-

Crítica e chamarei alguns autores da Psicologia Histórico-Cultural, partindo dos fundamentos

marxistas destas teorias.

2 A CONCEPÇÃO MARXISTA DO CONHECIMENTO

A teoria do conhecimento inspirada no marxismo deve necessariamente partir de

pressupostos materialistas. Transcrevo uma conceituação de Lênin sobre esta filosofia:

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O materialismo admite de uma maneira geral que o ser real objectivo (a matéria) é independente da consciência, das sensações, da experiência humana. O materialismo histórico admite que a existência social é independente da consciência social da humanidade. A consciência é só, aqui e ali, o reflexo do ser, no melhor dos casos um reflexo aproximadamente exacto (adequado, de uma precisão ideal). Não se pode suprimir nenhum princípio fundamental, nenhuma parte essencial desta filosofia do marxismo fundida num só bloco de aço, sem se afastar da verdade objectiva, sem cair na mentira burguesa reacionária (LÉNINE, 1975, p. 294).

Lênin, em outros momentos desta obra, chega a se referir a esta concepção como uma

ingenuidade, uma espécie de senso comum. Não obstante, é justamente esta concepção

ingênua, espontânea, que deve constituir a base das ciências naturais, que não poderão se

desenvolver completamente se condicionadas a uma filosofia idealista, que tome o ser como

decorrente da consciência. Do contrário, há o perigo de se cair na “absolutização de aspectos

isolados do mundo objetivo” (KOPNIN, 1978, p. 56), ou no agnosticismo, a impossibilidade

ontológica do conhecimento.

Mesmo assim, é preciso dar consistência teórica, elaborar em termos precisos e tornar

frutífera esta concepção ingênua, o que levará à elaboração de uma teoria do conhecimento

coincidente com a lógica e a dialética. Kopnin, na obra citada, recorre novamente a Lênin

para caracterizar esta teoria:

Lênin formulou da seguinte maneira as exigências básicas da lógica dialética: “Para conhecer realmente o objeto, é preciso abrangê-lo, estudar todos os seus aspectos, todas as relações e ‘mediações’. Nunca conseguiremos isto plenamente, mas a exigência de multilateralidade nos prevenirá contra erros e necrose. Isto em primeiro lugar. Em segundo, a lógica dialética exige que se tome o objeto em seu desenvolvimento, ‘automovimento’ (como Hegel às vezes dizia), em mudança... Em terceiro lugar, toda a prática humana deve incorporar-se à plena ‘definição’ do objeto quer como critério da verdade, quer como determinante prático da relação entre o objeto e aquilo de que o homem necessita. Em quarto lugar, a lógica dialética ensina que ‘não há verdade abstrata, que a verdade é sempre concreta’...” (p. 82).

Estamos nos aproximando do assunto que nos interessa, que é o entendimento da

função das experiências científicas para a evolução do conhecimento. Vale lembrar que, para

o materialista dialético, as leis da natureza são perfeitamente cognoscíveis, embora nenhum

conhecimento seja definitivo.

Não conhecemos as leis necessárias da natureza nos fenómenos meteorológicos, e é por isso que somos inevitavelmente escravos do tempo que faz. Mas não conhecendo esta necessidade, sabemos que existe. De onde vem esse conhecimento? Vem justamente de onde nos vem o conhecimento das coisas existentes fora da nossa consciência e independentemente desta, por outras palavras: da evolução dos nossos conhecimentos, que mostrou milhões de vezes a qualquer homem que a ignorância dá lugar ao saber quando o objeto actua sobre os nossos órgãos dos

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sentidos, e inversamente: uma vez afastada a possibilidade desta ação, a ciência torna-se ignorância (LÉNINE, 1975, p. 169, grifos do autor).

Achei indispensável a transcrição do fragmento acima para que explorarmos

atentamente uma certa questão, que é a possibilidade de uma confusão do materialismo

dialético com o empirismo positivista. Lênin coloca como condição fundamental do

conhecimento a ação da matéria sobre nossos sentidos. Entre os pesquisadores do ensino de

ciências, percebo certa aversão a este tipo de pensamento, por associarem-no com o

positivismo. Ora, isto é uma completa ignorância da teoria marxista! O materialismo dialético

não afirma a identidade entre o conhecimento e o mundo sensível, que seria uma das

consequências da filosofia de Comte. O mundo objetivo existe no pensamento – sendo, então

conhecido – não como cópia, mas como reflexo (e como disse Lênin, um reflexo

aproximadamente exato, no melhor dos casos). Mas se a relação entre a realidade e o

pensamento, por um lado, não é de identidade, por outro, é de inseparabilidade:

O sensorial e o racional não são dois degraus do conhecimento mas dois momentos que o penetram em todas as formas e em todas as etapas de desenvolvimento. O próprio pensamento nunca pode carecer do sensorial quer na sua origem, quer na forma de existência; ele sempre se baseia no sistema de sinais sensorialmente perceptíveis (KOPNIN, 1978, p. 150).

Assim, o temor de que a atividade experimental redunde na aceitação do positivismo,

caso se enfatize o caráter empírico dos fenômenos em estudo, é infundado. Insisti nesta

demonstração por acreditar que esta postura é que pode levar a prejuízos, na medida em que

conduz muitos educadores a aderir a um racionalismo idealista. Como já disse anteriormente,

no limite, este tipo de concepção pode resultar na própria negação do ato de conhecer.

Também não defendo um meio-termo entre estas duas posições, mas sim advogo por

uma postura superadora de ambas, no sentido dialético. Em outras palavras,

é estranho ao marxismo tanto o empirismo unilateral, rasteiro, que desdenha das abstrações como a teorização vazia, desvinculada dos fatos e fenômenos da realidade. As abstrações são boas quando têm a tarefa de desvendar as leis reais da natureza e da sociedade, quando armam o homem com o conhecimento dos processos profundos, inacessíveis à contemplação imediata, sensorial. Mas se o pensamento se encerra em abstrações, deixa de ser meio de conhecimento da realidade, transformando-se em instrumento para distanciar-se dela. Só a correta combinação do conhecimento experimental com o pensamento teórico assegura a obtenção da verdade objetiva (ibidem, p. 160).

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3 CONCEPÇÃO HISTÓRICO-CRÍTICA DA ATIVIDADE EXPERIMENTAL NO

ENSINO DE CIÊNCIAS

Na seção anterior, caracterizei brevemente a atividade experimental conforme uma

visão histórica, crítica, dialética. Determinemos agora como esta atividade servirá ao ensino

do conhecimento científico, de acordo com a mesma visão; explicitemos a especificidade

didática dos experimentos científicos.

Antes, apresento outras sínteses nesta direção. A bem da verdade, recorrerei apenas a

dois autores, que julguei como os que têm melhor contribuído substancialmente para as

aproximações entre a Pedagogia Histórico-Crítica e alguns dos referenciais para o ensino de

ciências.

O primeiro deles é Paulo M. M. Teixeira, que vem investigando os paralelos entre as

pedagogias críticas e o movimento Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), deixando

transparecer certa preferência pela Pedagogia Histórico-Crítica, objeto de consideração de um

de seus artigos (TEIXEIRA, 2003). Nele, elencam-se pontos de intersecção entre a obra de

Saviani e o movimento CTS, donde extraímos o seguinte fragmento, que trata da questão das

metodologias de ensino:

As observações relativas às questões de metodologia colocadas pela Pedagogia Histórico-Crítica atentam para a busca de métodos que sejam compatíveis com os interesses e necessidades dos aprendizes, respeitando seus respectivos ritmos de aprendizagem e desenvolvimento cognitivo, sem abandonar os aspectos conceituais e estruturais de cada setor de conhecimento. [Estas] orientações [...] são claras ao apontar a necessidade de superação das metodologias arcaicas, baseadas apenas no processo de transmissão-recepção de informações veiculadas por aulas predominantemente expositivas. Portanto, busca-se dinamizar o processo de ensino-aprendizagem como forma de permitir uma aprendizagem significativa e vinculada aos acontecimentos do mundo e da sociedade em geral (p. 185).

Apesar deste valioso esforço inicial por aproximar o ensino de ciências de referenciais

críticos, o segundo autor que apresento parece avançar mais neste sentido, já explicitando a

especificidade do experimento enquanto estratégia de ensino, conforme a orientação histórico-

crítica.

Trata-se de César Sátiro dos Santos, autor do livro Ensino de ciências: abordagem

histórico-crítica (SANTOS, 2005). Na obra, Santos inicia uma seção dedicada à atividade

experimental com as seguintes palavras:

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O ensino por meio da experimentação é quase uma necessidade no âmbito das ciências naturais. Ocorre que podemos perder o sentido da construção científica se não relacionarmos experimentação, construção de teorias e realidade socioeconômica e se não valorizarmos a relação entre teoria e experimentação, pois ela é o próprio cerne do processo científico (p. 61).

E entre uma e outra transcrição literal de Sobre a prática, de Mao Tsé-Tung, são apresentadas

as sínteses:

A prática científica é parte da prática social global do homem. [...] O conhecimento estabelecido pode ser testado. A ciência elabora teorias que respondem às demandas da prática. Não se pode falar de ciência essencialmente teórica ou prática. O saber científico é a relação dialética entre teoria e prática. [...] O laboratório, sem teoria, é prática vazia e sem sentido. A teoria, sem prática que a confirme, é indiferenciável do conhecimento filosófico, religioso ou artístico. Não existe ciência sem ressonância prática, mas nem toda prática deriva para a ciência. Faz parte da especificidade científica sua natureza prática, bem como seu aspecto quantitativo. [...] A prática confirma a teoria, mas também é o ponto de partida para sua superação (p. 61-62).

Portanto, Santos ressalta a unidade dialética entre teoria e prática, afirmando a

necessidade do laboratório escolar contribuir para a explicitação desta relação. Ao mesmo

tempo, convida o saber científico a se imiscuir na prática, tomando a inseparabilidade entre

teoria e prática como qualidade específica deste saber.

4 NOVAS CONTRIBUIÇÕES PARA ESTA CONCEPÇÃO

Saviani entende por práxis este

conceito sintético que articula teoria e prática. Em outros termos, [vê] a práxis como uma prática fundamentada teoricamente. Se a teoria desvinculada da prática se configura como contemplação, a prática desvinculada da teoria é puro espontaneísmo (2008, p. 141).

Conforme esta posição, o conhecimento se faz pela “passagem do empírico ao

concreto, pela mediação do abstrato [ou] da síncrese à síntese, pela mediação da análise”. O

método pedagógico baseado nestes pressupostos tomará, então, “a prática como ponto de

partida e ponto de chegada” (ibidem, p. 142).

Se a experimentação para o ensino de ciências serve a essa passagem do empírico ao

concreto, então ela é um método admitido pela Pedagogia Histórico-Crítica. Mas não se pode

perder de vista sua especificidade, proporcionar a apropriação, pelos homens, da cultura

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elaborada coletiva e historicamente. E é a partir daí que retomo minha crítica ao

construtivismo.

Conforme afirmei, os educadores construtivistas se entusiasmam com a possibilidade

do laboratório se converter num espaço para o exercício da autonomia dos estudantes. Não

estou destituindo a importância disto. Mas o modo como este discurso vem se apresentando

leva-me a crer que os educadores estariam secundarizando especificidade da educação,

propondo o primado de seu aspecto político. Tomando as onze teses sobre educação e política

de Saviani (SAVIANI, 1993), diz a tese 11: A função política da educação se cumpre na

medida em que se realiza enquanto prática especificamente pedagógica. E observa ele que

Esta tese afirma a autonomia relativa da educação em face da política como condição mesma da realização de sua contribuição política. Isto é óbvio uma vez que, se a educação for dissolvida na política, já não cabe mais falar de prática pedagógica restando apenas a prática política. Desaparecendo a educação, como falar de sua função política? (ibidem, p. 100).

Por fim, agrego contribuições da Psicologia Histórico-Cultural. Para isso, considerarei

o laboratório didático científico e seus instrumentos como ferramentas, isto é, construções

que atendem a certas necessidades impostas pela prática, dirigidas à satisfação destas

necessidades.

Inicio lembrando que as ferramentas, para esta psicologia, são fundamentais para a

gênese das chamadas funções psicológicas superiores, que diferenciam os homens dos outros

animais. Enquanto os instrumentos de trabalho são ferramentas orientadas para o mundo

exterior, existem também aquelas que se orientam para o interior do homem: os signos,

materializados na linguagem.

não podemos explicar satisfatoriamente o trabalho como atividade humana voltada para um fim, afirmando que ele é desencadeado por objetivos, por tarefas que se encontram diante do homem; devemos explicá-lo com o auxílio do emprego de ferramentas, de aplicação de meios originais sem os quais o trabalho não poderia surgir; de igual maneira, para a explicação de todas as formas superiores de comportamento humano, a questão central é a dos meios através dos quais o homem domina o processo do próprio comportamento. [...] todas as funções psíquicas superiores têm como traço comum o fato de serem processos mediatos, [...] de incorporarem à sua estrutura, como parte central de todo o processo, o emprego de signos como meio fundamental de orientação e domínio nos processos psíquicos (VIGOTSKI, 2001, p. 161).

A obra citada acima apresenta diversos estudos sobre a formação do pensamento

infantil. Não conseguirei, nos limites impostos a este texto, deter-me nestes aspectos e

articulá-los para uma visão crítico-dialética da atividade experimental no ensino de ciências.

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Mas será possível iniciar um trabalho nessa direção aproveitnado conceitos e passagens

expostos por Leontiev, colaborador de Vigotski, na obra O desenvolvimento do psiquismo

(LEONTIEV, 1978).

Analisando, neste livro, a produção e a utilização de instrumentos no trabalho,

Leontiev afirma que

[isto] só é possível em ligação com a consciência do fim da ação de trabalho. Mas a utilização de um instrumento acarreta que se tenha consciência do objeto da ação nas suas propriedades objetivas. O uso do machado, por exemplo, não responde ao único fim de uma ação concreta; ele reflete objetivamente as propriedades do objeto de trabalho para o qual se orienta a ação. O golpe do machado submete as propriedades do material de que é feito este objeto a uma prova infalível; assim se realiza uma análise prática e uma generalização das propriedades objetivas dos objetos segundo um índice determinado, objetivado no próprio instrumento. Assim é o instrumento que é de certa maneira portador da primeira verdadeira abstração consciente e racional, da primeira generalização consciente e racional (p. 82).

Adiante, há diversas passagens relevantes para o tema desta seção, que transcrevo (e que

serão suficientes para minha argumentação):

A questão do desenvolvimento do homem, considerado em ligação com o desenvolvimento da cultura e da sociedade [...] leva a perguntar-se em que consiste e como se desenrola o processo [...] de apropriação pelos indivíduos das aquisições do desenvolvimento histórico da sociedade [...], que é ao mesmo tempo o processo de formação de suas faculdades específicas do homem? [...] O instrumento é o produto da cultura material que leva em si, da maneira mais evidente e mais material, os traços característicos da criação humana. [...] O instrumento é ao mesmo tempo um objeto social no qual estão incorporadas e fixadas as operações de trabalho historicamente elaboradas. [...] A apropriação dos instrumentos implica, portanto, uma reorganização dos movimentos naturais instintivos do homem e a formação de faculdades motoras superiores. A aquisição do instrumento consiste, portanto, para o homem, em se apropriar das operações motoras que nele estão incorporadas. É ao mesmo tempo um processo de formação activa de aptidões novas, de funções superiores, “psicomotoras”, que “hominizam” a sua esfera motriz (p. 268-270, grifos meus).

Considerando que as ferramentas cristalizam ou materializam determinadas operações

motoras de trabalho historicamente elaboradas, reside aí a importância de estarem disponíveis

aos estudantes em seu processo formal de aprendizagem, quando estas operações aparecem

em vinculação com os conteúdos curriculares. Possibilitados de um contato com estas

ferramentas, os educandos poderão se apropriar das atividades encarnadas nelas que,

posteriormente, se interiorizarão em sua estrutura psíquica, conforme a teoria do reflexo.

Por exemplo, o instrumento de laboratório conhecido como bureta encarna em si

certas operações químicas, sendo a principal a de titulação. O manuseio correto e orientado

desta ferramenta deverá permitir a interiorização não apenas da operação motora de titular

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uma amostra, mas também dos conceitos que esta operação carrega em sua significação

social, por exemplo, os conceitos químicos de ácido e base e do funcionamento dos

indicadores químicos.

Veja que esta teoria se apresenta como uma tentativa de extrair da Psicologia

Histórico-Cultural elementos para a compreensão da importância do laboratório de ciências na

educação formal. Apresentei-a tomando como referência os instrumentos de laboratório, mas

considero-a válida para o laboratório como um todo. Este espaço, em sua singularidade e

especificidade para o ensino de ciências, objetiva todo um conjunto de atividades, ações e

operações práticas, desenvolvidas historicamente, e acessíveis para a incorporação na

estrutura psíquica dos indivíduos que ali desenvolvam novas atividades. A formação das

funções psíquicas superiores estará assim recebendo um incremento. Além disso, entendo que

este movimento de apropriação de objetivações históricas gera no homem “novas

necessidades e [conduz] a novas formas de ação, num constante movimento de superação por

incorporação” (DUARTE, 2007, p. 23).

Espero ter adicionado, senão novos desenvolvimentos, pelo menos algumas polêmicas

para um entendimento crítico-dialético da importância do laboratório escolar. Percebo, no

entanto, que há ainda muito trabalho a ser investido nesta direção, tendo minhas colocações

um caráter tentativo, que se somam às investigações dos autores que apresentei na seção 2.

5 REFERÊNCIAS

DUARTE, N. Educação escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski. 4. ed. Campinas: Autores Associados, 2007. KOPNIN, P. V. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 1978 KRASILCHICK, M. O professor e o currículo de Ciências. São Paulo: EPU/EDUSP, 1987. LÉNINE, V. I. Materialismo e empiriocriticismo: novas críticas sobre uma filosofia reaccionária. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1975. LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizonte Universitário, 1978. PINHO ALVES, J. Atividades experimentais: do método à prática construtivista. 2000. Tese (Doutorado em Educação)-Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000. SANTOS, C. S. Ensino de ciências: abordagem histórico-crítica. Campinas: Armazém do Ipê (Autores Associados), 2005. SAVIANI, D. Escola e democracia. 27. ed. Campinas: Autores Associados, 1993. TEIXEIRA, P. M. M. A educação científica na perspectiva da pedagogia histórico-crítica e do movimento CTS no ensino de ciências. Ciência & Educação, Bauru,v. 9, n. 2, p. 177-190, 2003. VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.