Ensino Público Gratuito: Flexibilidades e Desvios · se, por um lado, é legítima e necessária...

18
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005 Alvaro Chrispino Doutor em Educação,UFRJ Professor do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de Ciências e Matemática do CEFET-RJ [email protected] RESUMO O presente artigo discute o ensino pú- blico gratuito e os conceitos de princípio constitucional e de gratuidade. Esclarece como se aplica o Princípio da Gratuidade ao ensino público e enumera como este se apresenta no texto da LDB. Ao final, aponta uma grande contradição na Edu- cação Superior, uma vez que as mesmas Instituições de Ensino Superior públi- cas e seus membros – ges- tores e docentes – que se manifestam publicamente contra a discussão de co- brança de mensalidades ou serviços para estudan- tes dos cursos superiores, em nome de um ensino público gratuito e de qualidade, cobram mensalidades nos cursos da Educação Superior por elas man- tidas, utilizando-se de subterfúgios como as fundações de apoio. Palavras-chave: Política educacional. Ensino público gratuito. Legislação edu- cacional. Ensino Público Gratuito: Flexibilidades e Desvios Alvaro Chrispino Página Aberta ABSTRACT Public schools; flexibility and misguidance This paper discusses the concepts of “constitutional principle” and “public edu- cation” regarding public educational poli- cies in Brazil. It clarifies the meaning of “pu- blic education” as stated in the basic regulation of Bra- zilian educational public policy - LDB - Lei de Dire- trizes e Bases. The paper shows that there is a con- tradiction in the Brazilian public universities. Some of the courses provided in the area of Education are being paid for by the students. This has been made possible through institutional associ- ations with the universities’ foundations. This private policy has been implemented by the same officials and professors, who are, al- legedly, defendants of the constitutional prin- ciple of public education. These servants had indeed manifested in the past their opinion

Transcript of Ensino Público Gratuito: Flexibilidades e Desvios · se, por um lado, é legítima e necessária...

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

Alvaro Chrispino

Doutor em Educação,UFRJProfessor do Programa deMestrado Profissional em

Ensino de Ciências e

Matemática do [email protected]

RESUMOO presente artigo discute o ensino pú-

blico gratuito e os conceitos de princípioconstitucional e de gratuidade. Esclarececomo se aplica o Princípio da Gratuidadeao ensino público e enumera como estese apresenta no texto da LDB. Ao final,aponta uma grande contradição na Edu-cação Superior, uma vezque as mesmas Instituiçõesde Ensino Superior públi-cas e seus membros – ges-tores e docentes – que semanifestam publicamentecontra a discussão de co-brança de mensalidadesou serviços para estudan-tes dos cursos superiores,em nome de um ensino público gratuito ede qualidade, cobram mensalidades noscursos da Educação Superior por elas man-tidas, utilizando-se de subterfúgios comoas fundações de apoio.Palavras-chave: Política educacional.Ensino público gratuito. Legislação edu-cacional.

Ensino Público Gratuito:

Flexibilidades e Desvios

Alvaro Chrispino

Página Aberta

ABSTRACTPublic schools; flexibilityand misguidance

This paper discusses the concepts of“constitutional principle” and “public edu-cation” regarding public educational poli-cies in Brazil. It clarifies the meaning of “pu-

blic education” as stated inthe basic regulation of Bra-zilian educational publicpolicy - LDB - Lei de Dire-trizes e Bases. The papershows that there is a con-tradiction in the Brazilianpublic universities. Someof the courses provided inthe area of Education are

being paid for by the students. This has beenmade possible through institutional associ-ations with the universities’ foundations. Thisprivate policy has been implemented by thesame officials and professors, who are, al-legedly, defendants of the constitutional prin-ciple of public education. These servants hadindeed manifested in the past their opinion

218 Alvaro Chrispino

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

against the charging of students enrolled inpublic universities. Keywords: Educational policy. Free pu-blic education. Legislation law.

RESUMENEnsiñanza públicagratuita: flexibilidades ydesvíos Este artículo discute la enseñanza pú-blica gratuita y los conceptos de princi-pio constitucional y de gratuidad. Aclaracomo se aplica el Principio de la Gratui-dad en la enseñanza pública y enumeracomo este se presenta en el texto da LDB.Por último, señala una gran contradicci-ón en la Educación Superior, ya que es-tas mismas Instituciones de EnseñanzaSuperior pública y sus miembros – ges-tores y docentes – que se manifiestan pú-blicamente contra la discusión de cobrode mensualidades o servicios para estu-diantes de los cursos superiores, en nom-bre de una enseñanza pública gratuita yde calidad, cobran mensualidades en loscursos de Educación Superior por estasmantenidas, utilizando subterfugios comolas fundaciones de apoyo.Palabras-clave: Política educativa. En-señanza pública gratuita. Legislación edu-cacional.

IntroduçãoÉ permanente a discussão em torno

do tema financiamento da educação e/ou do ensino. Comumente, vemos, naliteratura especializada e em veículos decomunicação de massa, os debates quese estabelecem, invariavelmente, na so-licitação de maior volume de recursospúblicos para a educação. As propostas

são sempre no sentido de ampliar recur-sos vinculados aos orçamentos públicosou no aumento do percentual do PIBpara este setor e se esvaziam, na inten-sidade e no número, quando se propõediscutir a qualidade dos gastos, a ges-tão dos processos, a avaliação do re-sultado educacional, o custo-efetivida-de das políticas e/ou propostas etc.

Como bem salienta Tedesco (2002),se, por um lado, é legítima e necessáriaa discussão sobre o investimento em edu-cação (o quanto e o como se alocam re-cursos em educação), é indispensável areflexão sobre o contexto em que se dátal pedido: a restrição causada por umacrise fiscal iniciada nos anos oitenta e umamassificação da cobertura educacionalnos anos noventa. O movimento de ten-são entre a demanda por recursos e arestrição de gastos afeta a todos – socie-dade, instituições e pessoas.

Os ângulos de discussão sobre finan-ciamento da educação são variados eatendem a diferentes interesses políticos,ideológicos e/ou corporativos, a partir dosquais é possível encontrar literatura vari-ada. Há a discussão sobre a equidade efinanciamento (SOUZA et al., 2002); odebate sobre a aplicação de recursos pú-blicos em sistemas privados ou públicosnão-estatal (WOLFF; GONZALEZ; NA-VARRO, 2002); os custos e gastos em edu-cação (PROGRAMA DE PROMOÇÃODA REFORMA EDUCATIVA NA AMÉRI-CA LATINA, 1998; OLIVEIRA, 2002; SOU-ZA, 2002) e o debate sobre o nexo decausalidade direta entre globalização eeducação (CARNOY, 2002) ou não(BRUNNER, 2002), só para citar os tex-tos mais amplos e recentes.

Ensino público gratuito: flexibilidades e desvios 219

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

Na atualidade, vivemos o retorno aocenário educacional do insepulcro debatesobre a cobrança para estudantes do ensi-no superior na forma de mensalidades, depagamento posterior à sua formação oumesmo de “serviço civil obrigatório”, parausar expressão de Schwartzman (1991).

O foco de maior atenção neste tema enessas espécies de cobrança subtrai espa-ços para análise mais ampla sobre ensinopúblico gratuito e estudo mais atento paraalgumas ações que, na prática, são desvi-os do Princípio da Gratuidade e, se talveznão alcancem as fronteiras da irregulari-dade, são eticamente questionáveis.

A gratuidade comoPrincípio Constitucional

O Ensino Público Gratuito está ex-plícito no artigo 206, inciso IV, daConstituição Federal de 1988 (BRA-SIL, 1998), da seguinte forma:Art. 206: O ensino será ministradocom base nos seguintes princípios:IV – gratuidade do ensino públicoem estabelecimentos oficiais

A discussão sobre o significado do textoconstitucional deve indicar alguns pontosimportantes, a saber: a definição de princí-pio e o entendimento do que seja gratuito.

É desnecessária a discussão sobre o queseja a expressão “em estabelecimentos ofi-ciais”, uma vez que, na educação, há ape-nas a classificação de ensino privado eensino público, tomando-se o público poroficial, deixando de tratar do que seja oprivado, o público e o estatal, como ocorrena radiodifusão (art. 223, da ConstituiçãoFederal) (CASTRO, 1998).

Sobre o conceito dePrincípio Constitucionale suas conseqüências

Ensina o Dicionário Houaiss (HOUAISS;VILLAR; FRANCO, 2001) que princípio é oprimeiro momento da existência (de algo), oude uma ação ou processo; o aquilo que servede base para alguma coisa, causa primeira;proposição elementar e fundamental que ser-ve de base a uma ordem de conhecimento.

No campo do Direito, ele terá funçãosimilar de acordo com os especialistas.

Para Mello (1991, p. 230), em defini-ção clássica,

princípio é, por definição, manda-mento nuclear de um sistema, ver-dadeiro alicerce dele, disposiçãofundamental que se irradia sobrediferentes normas compondo-lhes oespírito e servindo de critério parasua exata compreensão e inteligên-cia, exatamente por definir a lógicae a racionalidade do sistema nor-mativo, no que lhe confere a tôni-ca e lhe dá sentido harmônico.

Para Silva (1996, p.94, grifo nosso), “osprincípios são ordenações que se irradiame imantam os sistemas de normas, são nú-cleos de condensações nos quais con-fluem valores e bens constitucionais”.

Para Barroso (2001, p.149), “os princípiosconstitucionais são as normas eleitas pelo cons-tituinte como fundamentos ou qualificações es-senciais da ordem jurídica que institui”.

Parece claro que, como Princípio Cons-titucional, a gratuidade do ensino públicodeve perpassar todas as instâncias de ensi-

220 Alvaro Chrispino

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

no e deve ser considerada mesmo quandonão está explícita no texto legal.

O Princípio da Gratuidade está presentede forma especial na Carta Política de 1988e se manifesta diferentemente dos textos cons-titucionais antecedentes. Segundo Castro(1998), em todas elas apenas o antigo pri-mário realizado em escolas públicas era gra-tuito. A Constituição de 1937 (BRASIL, 1937)permitia uma “contribuição módica e mensalpara a caixa escolar” (art. 130), ressalvadaa impossibilidade de contribuição. As Cons-tituições de 1824, 1891 e 1934 se omitiramsobre os níveis posteriores, o que permitiu acobrança. A Carta de 1934 (BRASIL, 1934)instituiu a “tendência à gratuidade do ensinoeducativo ulterior ao primário, a fim de o tor-nar mais acessível” (art. 150, parágrafo úni-co). As Constituições de 1946 e de 1967,determinavam a gratuidade em estudos pos-teriores ao primário para quem provasse fal-ta ou insuficiência de recursos, exigindo, en-tretanto, o “efetivo aproveitamento”.

Percebe-se, pois, que a tendência à gra-tuidade não é idéia nova e, mesmo assim,ainda suscita discussões acaloradas até osnossos dias. Aliás, essa não é uma tendên-cia brasileira. A Declaração Universal dosDireito Humanos (NAÇÕES UNIDAS,1978), de 10 de dezembro de 1948, daqual o Brasil é signatário, já indicava estatendência em seu artigo 26:

1. Toda pessoa tem direito à instru-ção. A instrução será gratuita, pelomenos nos graus elementares e fun-damentais. A instrução elementarserá obrigatória. A instrução técni-co-profissional será acessível a to-dos, bem como a instrução superi-or, esta baseada no mérito. 2. A instrução será orientada no sen-

tido do pleno desenvolvimento dapersonalidade humana e do fortale-cimento do respeito pelos direitoshumanos e pelas liberdades funda-mentais. A instrução promoverá acompreensão, a tolerância e a ami-zade entre todas as nações e gru-pos raciais ou religiosos, e coadju-vará as atividades das Nações Uni-das em prol da manutenção da paz.3. Os pais têm prioridade de direitona escolha do gênero de instruçãoque será ministrada a seus filhos.

Talvez por isso, a Constituição tenhaelevado a Educação às categorias de (1)direito de todos, (2) serviço público essen-cial e (3) dever do Estado. Conforme expli-citado nos arts. 205 e 227 (educação é di-reito de todos e dever Estado e da família),devendo ser oferecida de acordo com osprincípios apresentados no artigo 206.

Cabe, neste ponto, uma observação im-portante sobre a interpretação que se podedar ao Princípio Constitucional e suas con-seqüências. Parece claro que a legislaçãoderivada deve submissão ao Principio Cons-titucional da Gratuidade, estando este ex-plícito ou não no texto. É certo que, por des-conhecer esta hierarquia legislativa, a co-munidade educacional solicita que o prin-cípio esteja explícito em todos os espaços, oque é um despropósito. É o que ocorre comBrandão (2003, p. 24) quando escreve:

A opção por colocar a ‘gratuidadedo ensino público em estabelecimen-tos oficiais’ como princípio, e nãocomo uma obrigatoriedade, mesmosendo um princípio constitucional,pode denotar uma intenção veladade, no futuro, privatizar todos os ní-veis de ensino que forem possíveis.

Ensino público gratuito: flexibilidades e desvios 221

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

Gostaríamos de deixar claro que, atual-mente, nada garante direitos. Tudo pode eestá sendo mudado no mundo dos direitos,conforme constatamos no Governo Lula. Nãoé, pois, a definição como obrigatoriedade queirá superar a tendência de política de Estadoenunciada num Princípio Constitucional. Esteequívoco é semelhante àquele dos educado-res de entendem que as Disposições Transitó-rias da LDB são menores do que “o corpo dalei”, quando avaliam a formação superior dosprofessores após a Década da Educação(CHRISPINO, 2000). Deixamos aqui, pois,mais uma discordância com alguns gruposna interpretação de texto legal, o que, ao con-trário do que podem pensar alguns, é ricopara o debate e amadurecimento do enten-dimento sobre temas controversos.

Apresentadas as análises sobre o con-ceito de Princípio Constitucional e sua con-seqüência para o conjunto de normas le-gais da Educação, vamos tentar explicitaro que venha a ser gratuito.

Sobre a definição de gratuitoReza que “não existe almoço de graça...

alguém está pagando”. Na verdade, quan-do se defende o ensino público gratuito estáse dizendo que o coletivo da sociedade vaipagar a conta da Educação e do Ensino como dinheiro recolhido na forma de tributos pe-los governos. Quer, na verdade, se dizer quenão haverá contraprestação financeira pelosserviços educacionais prestados por uma es-cola chamada pública para os alunos.

Ao comentar o artigo 3o, VI, da LDB,que reproduz o texto constitucional, Car-neiro (1998, p. 35) é taxativo e explícito:

A gratuidade do ensino público emestabelecimentos oficiais é uma ques-tão de grandíssimo alcance social. Ocontribuinte paga a escola, quandopaga seus impostos. O princípio dagratuidade do ensino decorre, assim,das responsabilidades públicas des-te ente dinossáurico que se chamaestado. Cada vez que ele cobra porum serviço que é essencial e univer-sal, como é o caso da educação bá-sica, está praticando bitributação, oque é constitucionalmente vedado.

Quando se diz que o ensino é gratuito querse dizer, na verdade, que todos pagam pelosistema educacional. Daí decorre, com natu-ralidade, que não pode a escola pública, emqualquer um de seus níveis, resistir a idéia deprestar conta à sociedade de sua eficácia, desua eficiência e de sua efetividade.

É importante ressaltar que a gratuidadeestá indicada em sete pontos da LDB (BRA-SIL, 1996, grifo nosso), sendo que todosestão inseridos no contexto da EducaçãoBásica. Não há esta previsão explícita nocorpo da lei quando esta trata de Educa-ção Superior. São eles:

Art. 3º. O ensino será ministradocom base nos seguintes princípios:[...]VI - gratuidade do ensino públicoem estabelecimentos oficiais;Art. 4º. O dever do Estado com aeducação escolar pública será efe-tivado mediante a garantia de:I - ensino fundamental, obrigatório egratuito, inclusive para os que a elenão tiveram acesso na idade própria1;

1 Redação da EC 14, ao art. 208 da CF: I. Ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuitapara todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria.

222 Alvaro Chrispino

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

II - progressiva extensão da obrigatori-edade e gratuidade ao ensino médio2;III - atendimento educacional especi-alizado gratuito aos educandos comnecessidades especiais, preferencial-mente na rede regular de ensino;IV - atendimento gratuito em cre-ches e pré-escolas às crianças dezero a seis anos de idade;Art. 32. O ensino fundamental, comduração mínima de oito anos, obri-gatório e gratuito na escola públi-ca, terá por objetivo a formaçãobásica do cidadão, [...]:Art. 37. A educação de jovens eadultos será destinada àqueles quenão tiveram acesso ou continuida-de de estudos no ensino fundamen-tal e médio na idade própria.§ 1º. Os sistemas de ensino asse-gurarão gratuitamente aos jovens eaos adultos, que não puderam efe-tuar os estudos na idade regular,oportunidades educacionais apro-priadas, consideradas as caracterís-ticas do alunado, seus interesses,condições de vida e de trabalho,mediante cursos e exames.(grifamos)

Como se pode depreender, está explíci-ta a gratuidade na Educação Básica (edu-cação infantil, ensino fundamental e ensi-no médio) e nas modalidades de Educa-ção de Jovens e Adultos e Educação Espe-cial, sendo omissa no que se refere a Edu-cação Superior. Pela hierarquia legislativaisto não é um problema, considerando que“a norma da gratuidade do texto constitu-cional de 1988 veda qualquer tipo de co-brança pelos cursos oferecidos pelas insti-tuições públicas de ensino, seja em pecú-

nia ou trabalho, durante ou após os estu-dos realizados” (CASTRO, 1998, p. 25).

Se não há dúvida quanto a ilegalidadede cobrança pelas escolas públicas na suaatividade, há controvérsia quanto a possibi-lidade de cobrança de taxas para outras ati-vidades do universo escolar, tais como taxade inscrição em vestibular ou taxa de expe-dição de diplomas, devendo sempre havera previsão de isenção para aqueles que de-clararem a impossibilidade de pagamento.

Uma outra análise importante decorreda idéia de obrigatoriedade de ensino e ascondições ofertadas pela Estado para queeste direito-dever se concretize de formageral. O ensino fundamental é obrigatório(art. 4o, I, LDB) e, para que tal se processe,o Estado terá o dever de oferecer aos estu-dantes do ensino fundamental as condiçõesmínimas indispensáveis por meio de pro-gramas suplementares de material didáti-co-escolar, alimentação, transporte e saú-de escolar (art. 4, VIII, LDB). Algumas aná-lises são possíveis a partir disso:

1. As escolas públicas de ensino funda-mental estão impedidas de cobrarem qual-quer tipo de pecúnia ou trabalho em con-trapartida – direta ou indiretamente – sobreestes assuntos, considerando ser dever doEstado. Por exemplo, obrigatoriedade de li-vro didático como condição para assistir àsaulas é ilegal, por ser o livro um acessório ea presença em sala de aula uma obriga-ção; ou taxa para merenda escolar etc.

2. O ensino médio gratuito, quando uni-versalizado, poderá passar a ensino obriga-tório o que, pela tendência definida, deveráreceber dos governos a mesma rede de pro-teção social a fim de que a obrigação possaser cumprida por todos em condições iguais.

2 Redação da EC 14, ao art. 208 da CF: II. Progressiva universalização do ensino médio gratuito.

Ensino público gratuito: flexibilidades e desvios 223

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

A análise de tendência atingirá, a nosso ver,as instituições de educação infantil caso aobrigatoriedade também lhes atinja.

Nestes itens – taxas e outras despesas –,a jurisprudência é controvertida como se podeperceber pelas decisões judiciais a seguir:

A causa da gratuidade do ensinosuperior em estabelecimentos ofici-as [...] deve ser interpretada restriti-vamente, considerando-se a escalade prioridade na aplicação dos re-cursos destinados à educação, queprivilegia o atendimento das neces-sidades do ensino obrigatório, ouseja, o fundamental e, progressiva-mente, o médio [...]. A cláusula dagratuidade do ensino superior ofici-al não se estende à inscrição aoconcurso vestibular, nem aos manu-ais de instrução (TR4 – Rio Grandedo Sul – Turma 05, acórdão RIP04286751 – decisão: 29/02/96).

Não conflita com o princípio da gra-tuidade do ensino público [...] acobrança de inscrição autorizadapelo Decreto-Lei n. 532/69, desdeque prevista a isenção dos candi-datos carentes (TR5 – Rio Grandedo Norte – turma 02, acórdão RIP05044140, decisão: 23/03/93).

Ainda que o ensino público nos esta-belecimentos oficiais seja gratuito,isso não implica não se poder cobraruma taxa para a manutenção da ali-mentação prestada aos alunos. Nahipótese, é de observar-se que osrecursos são gerados, em parte, pelaprópria escola, com sua produçãopecuária e agrícola. Sem a ajuda doaluno, a Escola não terá condições

de manter a alimentação. Ademais,se o aluno for carente, a Escola nãocobra a taxa, a contribuição do alu-no será em horas-trabalho. Tenha-se,ainda, que, no caso concreto, a taxaé no valor de R$ 300,00 por ano, e épaga de três vezes. A alimentaçãocompreende café da manhã, almo-ço, jantar e lanche à noite (TRF 1ª R.– AG 01000491627 – MT – 3ª T. –Rel. Juiz Tourinho Neto – DJU06.03.1998 – p. 246).

É certo que o ensino público nosestabelecimentos oficiais é gratui-to, mas isso não implica não sepoder cobrar uma taxa para a rea-lização do concurso vestibular, tan-to mais quando é concedida isen-ção àqueles que não têm condiçõeseconômicas de pagá-la (TRF 1ª R.– AG 01000430101 – MT – 3ª T. –Rel. Juiz Tourinho Neto – DJU06.02.1998 – p. 297).

1. As normas do Edital regem o cer-tame, mas apenas quando estãoobedientes aos regramentos cons-titucionais e legais vigente a datade sua edição, pois não se podeadmitir que uma norma administra-tiva se sobreponha ‘a Constituiçãoou mesmo ‘a Lei. 2. Garantindo aConstituição o acesso de todos aoensino gratuito em estabelecimen-to publico, afigura-se irrito o Editalde Vestibular de Universidade Esta-dual que limita em 6.000 o numerodos que podem se inscrever gratui-tamente no concurso. 3. Apelaçãoa que se nega provimento e sen-tença que em reexame obrigatóriose confirma. (TJ-RJ).

224 Alvaro Chrispino

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

A liminar que proíbe a cobrança detaxa de inscrição de vestibular nãoacarreta grave lesão à ordem admi-nistrativa da Universidade. A conces-são de liminar sem audiência da au-toridade impetrada, desde que devi-damente fundamentada, não carac-teriza grave lesão à ordem pública.A realização do exame vestibular en-carta-se na chamada atividade fim daUniversidade, não prosperando oargumento de que a Universidadedeve contratar terceiro, por não tercondições de realizar o seu vestibu-lar. A não execução da medida limi-nar é que acarretaria grave lesão àordem jurídica, pois deixaria de secumprir as normas Constitucionais degarantia do ensino gratuito (art. 206,IV), a de que estipula a cobrança detaxa somente havendo lei que a defi-na, e a de que não se pode assumirdespesa sem a devida verba orça-mentária (art. 167) (TRF 5ª R. –55.967 – RN – TP – Rel. p/o Ac. JuizHugo Machado – DJU 04.12.1992).

Material escolar ou programas com-plementares de ensino – como ati-vidades ligadas ao ensino público– são igualmente gratuitos. A essepropósito, não se pode cobrar ta-xas de matrícula (TR4 – Rio Grandedo Sul – turma 03, acórdão RIP027033, decisão: 26/11/91).

Apesar das controvérsias, fica uma cer-teza: ninguém poderá ser impedido de fre-qüentar a escola pública por não poderarcar com despesas quaisquer que sejamelas. Também é certo que não há impedi-mento legal para a existência de caixas es-colares ou outros mecanismos que se pro-

ponham a arrecadar recursos para a insti-tuição escolar pública. O que é vedado éa contribuição compulsória em escola pú-blica de qualquer nível.

A gratuidade naEducação Superior

Feito o longo caminho das definições edo estabelecimento de Princípios, eis quechegamos ao ponto maior de nossa refle-xão: a gratuidade na Educação Superior.

Como vimos anteriormente, não há cita-ção de gratuidade na Educação Superior naConstituição (BRASIL, 1998) ou na LDB (BRA-SIL, 1996). A ela se estende o Princípio daGratuidade em toda sua força. Talvez sejapor isso que os profissionais da educação eas instituições representativas tanto se preo-cupam quando surge a onda de “boatos”sobre a cobrança de mensalidades para es-tudantes do ensino superior, ou a idéia deque estarão sujeitos a trabalhos comunitáriosdurante ou depois de seus estudos, ou mes-mo que deverão ressarcir financeiramente asinstituições públicas das quais são egressos.

Frente a essas ameaças, pouco adiantadizer que há o preceito constitucional, poisele poderá ser derrubado como vêm sendoderrubados outros tantos e não menos im-portantes preceitos constitucionais. Até queisso ocorra, continuaremos defendendo asubmissão ao que é regular e ao que é legal.

Sob a ótica da legalidade, vamos ana-lisar alguns acontecimentos comuns naEducação Superior, após o que poderá fi-car claro que a tão famigerada “privatiza-ção” da educação já está ocorrendo, sema ação deliberada do Banco Mundial, so-bre os ombros de quem recaem todos osmalefícios da atualidade.

Ensino público gratuito: flexibilidades e desvios 225

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

A Educação Superior é desdobrada noart. 44 da LDB da seguinte forma:

Art. 44. A educação superior abran-gerá os seguintes cursos e progra-mas:I - cursos seqüenciais por campo desaber, de diferentes níveis de abran-gência, abertos a candidatos queatendam aos requisitos estabeleci-dos pelas instituições de ensino;II - de graduação, abertos a candida-tos que tenham concluído o ensinomédio ou equivalente e tenham sidoclassificados em processo seletivo;III - de pós-graduação, compreen-dendo programas de mestrado edoutorado, cursos de especializa-ção, aperfeiçoamento e outros,abertos a candidatos diplomadosem cursos de graduação e queatendam às exigências das institui-ções de ensino;IV - de extensão, abertos a candi-datos que atendam aos requisitosestabelecidos em cada caso pelasinstituições de ensino.

Percebe-se que a chamada EducaçãoSuperior é composta de quatro espécies dis-tintas: cursos seqüenciais (I), graduação (II),pós-graduação (III) e extensão (IV). Todosos cursos e programas, se desenvolvidosou oferecidos por instituições públicas deensino devem submissão ao Princípio daGratuidade e, por tal, todos os cursos eprogramas deverão ser gratuitos. Em ou-tras palavras, não poderá haver cobran-ças de mensalidades ou troca por serviçosou trabalhos.

Castro (1998, p. 27, grifo nosso), emseu rico estudo, apresenta mais um itemque merece nosso estudo atento conside-

rando a possibilidade de sua fronteira res-valar da criatividade de gestão para a irre-gularidade administrativa. Diz ele:

Quanto à oferta de cursos especiais(não-regulares) pelas instituições deensino superior públicas, tem vinga-do a prática de não se criar restri-ções à cobrança de taxas, sob a ar-gumentação de que estão vincula-dos à extensão e não ao ensino. Issoparece meio anacrônico, mas foi asolução encontrada para permitir oingresso de recursos para as institui-ções, cobrando-se de quem podepagar. Também aqui, a isenção paraestudantes economicamente caren-tes é uma medida justa.

Ora! Como é possível que se permita “vin-gar a prática de não criar restrições à co-brança de taxas” nas atividades chamadasde extensão se estas são parte integrante daEducação Superior que está protegida pelomanto da gratuidade? Como é possível queo mesmo segmento corporativo que se insur-ge contra uma possível proposta de cobran-ça de alunos do curso superior, se permitaoferecer um curso de extensão à comunidadesendo este cobrado? Além de ter sua legali-dade questionada frente a ótica da gratuida-de é, minimamente, incoerente para admi-nistradores que o propõem e docentes que oexecutam na instituição pública oficial.

A questão que se apresenta é a de queextensão não é ensino. Em tese. Deve-mos considerá-la como atividade de en-sino, como indissociada do ensino e dapesquisa, como curso à comunidade. Sevista como atividade de ensino, sua co-brança não é permitida. Se vista comoatividade fim da instituição pública deensino, também não.

226 Alvaro Chrispino

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

Ampliando o universo, Azanha (1998) cha-ma atenção para algumas fundações3 munici-pais paulistas – Taquaritinga e Matão – autori-zadas a instalar cursos superiores, que eramcobrados como se privados fossem, em flagrantedesrespeito ao Princípio da Gratuidade.

O quadro se torna mais complexoquando passamos a avaliar a situação doschamados cursos de pós-graduação.

Escolhemos, aleatoriamente, um jornalde domingo com grande circulação nacio-nal. Na seção de cursos, encontramos cin-co grandes anúncios de cursos de especia-lização ou MBA de três grandes instituiçõespúblicas de ensino superior. Eram mais de40 cursos de seis departamentos ou setoresdas instituições públicas. Ao fazer o conta-to para maiores detalhes sobre os mesmos,recebemos a informação de que o Cursoera ministrado pela instituição pública, queo certificado de conclusão era emitido eassinado pela instituição pública mas asmensalidades deveriam ser pagas a umadeterminada Fundação de Apoio destamesma instituição pública, responsável pelaemissão da nota fiscal. Em um dos casos,o departamento da instituição pública ti-nha “convênio” com outra instituição pri-vada, o que só era descoberto posterior-mente, já que, como todos os anúncios,constava apenas a logomarca que espelhaa tradição das instituições públicas.

Situação semelhante é encontrada quan-do visitamos as páginas eletrônicas de institui-ções públicas de ensino e, ao acessarmos oitem especialização ou MBA, somos levados apáginas de fundações de apoio ou mesmo

empresas privadas responsáveis pela gestãofinanceira do empreendimento educacional.

Outro caso que merece destaque é apropaganda onde aparece a logomarca daempresa privada em simetria com a logo-marca da instituição pública de ensino, comcurso a ser ministrado fora de sede da insti-tuição pública, com professores públicos,certificado da instituição pública de ensino,com o valor do “investimento” a ser deposi-tado em favor da empresa privada. A dife-rença é que este anúncio não dizia MBA,mas um MBT, mas poderia ser um MBC,MBI, MBP ou um MBx (onde x é qualquerletra do alfabeto). Ocorre que a Resolução01/2001, do Conselho Nacional de Educa-ção, que disciplina as pós-graduações, bus-cou legalizar a situação do mercado em cres-cimento dos MBA fazendo citação ligeira eapressada quando inclui “na categoria decurso de pós-graduação lato sensu os cur-sos designados como MBA (Master BusinessAdministration) ou equivalentes” (art.6. § 1º).[...]. Esperemos, primeiro, que os MBx este-jam incluídos naquilo que se pode interpre-tar como “equivalentes” ao MBA e, por últi-mo, que a Resolução tenha efeito retroativo,uma vez que os MBx e seus certificados sãoanteriores a própria Resolução 1/2001.

O que é isso, senão “privatização” daeducação superior, no campo das especi-alizações (art. 44, III)? Este é um flagrantedesrespeito ao Princípio da Gratuidade doensino público!

Frente a essas questões que se avolumam,o Ministério Público Federal realizou consul-ta ao órgão próprio do MEC que, após exa-

3 Deixamos de tratar aqui, pelo foco do presente trabalho, dos vários tipos de fundações (fundação pública, fundação privada,fundação autárquica etc) para dedicar atenção especial às fundações de apoio. Para maiores detalhes sobre o tema fundações,veja Moreira Neto (2001, p. 256) e Carvalho Filho (2001, p. 386).

Ensino público gratuito: flexibilidades e desvios 227

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

rar parecer, por força da legislação, remeteua consulta sobre a gratuidade dos cursos deespecialização realizados por instituições pú-blicas ao egrégio Conselho Nacional de Edu-cação. O CNE produziu um Parecer de nú-mero 0364/2002 (BRASIL, 2002), da lavrados Conselheiros Edson de Oliveira Nunes,Jacques Schwartzman e Roberto Cláudio FrotaBezerra. O citado parecer foi aprovado porunanimidade pela Câmara de Ensino Supe-rior em 6 de novembro de 2002 e homolo-gado pelo Ministro da Educação, conformepublicação em Diário Oficial da União –DOU, de 18 de novembro de 2002.

O referido Parecer conclui pela regula-ridade da cobrança de cursos de especiali-zação lato sensu em instituições federais deensino superior. No que pese a experiênciados citados Conselheiros e a riqueza deinformações que compõem o Parecer, gos-taríamos de apresentar nossa discordância,mesmo que isso sirva apenas para o exer-cício indispensável da divergência que en-riquece o debate acadêmico. O parecervota pela regularidade da cobrança a par-tir de uma definição arbitrária – e não con-sensual – de que os níveis de ensino queconferem diplomas não podem ser cobra-dos mas aqueles cursos que resultam emformação mais estreita, e que segundo elesconferem certificados, podem ser cobrados,informando ainda, no esforço de fundamen-tar tal análise e decisão, que

“i) o ensino de graduação e pós-graduação stricto sensu ministradopelas Universidades públicas deveser gratuito em expresso cumpri-mento ao dispositivo constitucional;ii) os cursos de especialização e aper-feiçoamento, ou seja, de pós-gradu-ação lato sensu, não se configuracomo atividade de ensino regular e,

por conseguinte, tem-se por corretaa cobrança efetuada pelas universi-dades públicas pelos instrumentosque, no exercício de sua autonomiaconstitucional definirem.”

Muito se discutiria exclusivamente sobreeste esforço de interpretação do CNE sobretal assunto. Infelizmente, este não é o temaem foco, utilizando-nos apenas como maisum infeliz exemplo neste mar de controvérsi-as que envolvem este tema. Para que nãopasse “em branco”, basta lembrar que osPrincípios não estipulam o que pode ou oque não pode ser cobrado, eles indicam oensino público gratuito em instituições pú-blicas. Ponto final. Se tal distinção arbitráriafosse estendida aos demais níveis, o ensinomédio em instituições públicas, que conferecertificado, poderia ser cobrado. Mas viriaà baila a exclusividade da distinção somen-te para os cursos de pós-graduação e odebate seria alimentado pelas exceções, comdefesas apaixonadas e com manifestaçõescomprometidas com a necessidade de man-ter-se o sistema. Fica a informação, na cer-teza de que ela mais conclama a debatesdo que encerra o assunto.

Em outra situação similar, encontramosos Mestrados Profissionalizantes. Uma des-sas instituições públicas mantém um mes-trado profissional onde os alunos recolhema mensalidade à referida Fundação deApoio, com um agravante: eles, os alunos,devem ser pessoas jurídicas!

A questão do Mestrado Profissional tomamaior vulto quando analisamos a legisla-ção que lhe dá direção: a Portaria 80/98,da CAPES, que dispõe sobre o reconheci-mento dos mestrados profissionais e dá ou-tras providências. Essa portaria extrapola as

228 Alvaro Chrispino

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

funções da CAPES. Sobre isso, escreveráRanieri (2000, p. 181), lucidamente:

A CAPES não dispõe de funçõesnormativas. Não foi criada com estafinalidade, muito embora na ativi-dade de coordenação e avaliaçãodos cursos e programas de pós-gra-duação estejam implícitas funçõesregulamentares.Não obstante, é freqüente a expe-dição de portarias, de conteúdonormativo, pelo Presidente da Fun-dação, com fundamento no artigo19, II, do referido decreto (Decreto524/92), que dispõe: ‘Ao Presiden-te incumbe: [...].II – aprovar os atos pertinentes aofuncionamento da CAPES.’É o que ocorre, por exemplo, naPortaria 80, de 16/12/98, que aodispor sobre o reconhecimento demestrados profissionais, fixa os re-quisitos e os critérios necessários,com fundamento em deliberação doConselho Superior da CAPES, cole-giado ao qual não foi conferida,legalmente, tal competência.Na mesma Portaria, conclui-se, no arti-go 6o, que os cursos desta modalidade‘possuem vocação para o autofinanci-amento’, que deve ser explorada pormeio de iniciativa de convênios, parapatrocínio de suas atividades.

Eis aí mais um problema envolvendo a co-brança por instituições públicas de ensino emflagrante desrespeito a gratuidade de ensino.

Repete-se o fato de que são as mesmasinstituições (e seus membros) que lutamcontra instituir-se cobrança para alunos decursos superiores matriculados em institui-ções públicas. E não é exatamente isso que

fazem essas instituições utilizando-se dosubterfúgio das Fundações de Apoio? Nãoestão elas cobrando mensalidades pela suaatividade-fim que é o conhecimento trans-mitido pelo canal do ensino?

Mas, afinal, o que são essas Funda-ções de Apoio?

As Fundações de ApoioA primeira coisa a fazer é tentar enten-

der o que seja uma Fundação e, depois,uma Fundação de Apoio.

Uma fundação é, grosso modo, um pa-trimônio que se revestiu de personalidadejurídica para alcançar o fim para o qual foicriada. Fica claro que o patrimônio que seoutorga personalidade jurídica deve ser bas-tante e suficiente para alcançar o objetivoque justifica a criação da fundação. A fun-dação distingue-se da autarquia por ser estacriada para desempenhar uma atividadeespecializada da Administração Pública.

Sobre este tema, Ranieri (2000, p. 192)escreve:

Com efeito, instituir uma fundaçãosignifica afetar patrimônio a fim de-terminado e dar personalidade ju-rídica a um determinado ente que,em nome próprio, gerenciará aque-le patrimônio tendo em vista os ob-jetivos estabelecidos pelo instituidor.[...].Assinala Dalmo Dallari (1985, p. 8-9apud RANIERI, 2000, p. 192) que ‘doponto de vista técnico-jurídico pode-se dizer que as chamadas fundaçõesfederais universitárias existentes noBrasil são falsas fundações, havendouma contradição evidente em sua

Ensino público gratuito: flexibilidades e desvios 229

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

instituição. Com efeito, o fundo queserviu de base à sua criação é cons-tituído unicamente pelas instituiçõesescolares, que não produzem rendae que, pelo contrário, acarretam des-pesas. [...]. Mas o fundo não produzrenda e pode-se dizer que não é afundação que mantém as escolas,mas estas que mantêm a fundação.Por esse e por vários outros motivosmuitos especialistas de direito admi-nistrativo sustentam que, embora ten-do o nome de fundações, tais entida-des são verdadeiras autarquias’.

A mesma autora, ao citar o caso dasfundações municipais paulistas que cobra-vam como se fossem instituições privadasde ensino, questiona quanto à origem dopatrimônio dessas fundações municipais. Seos fundos possuírem patrimônio de nature-za pública, a fundação é pública. Diz-se,então, que a fundação é instituída e man-tida pelo poder público, devendo submis-são ao Princípio da Gratuidade.

Segundo Medauar (2003, p. 106),acompanhada de Moreira Neto (2001, p.272), as fundações de apoio às instituiçõesfederais de ensino superior e de pesquisacientífica e tecnológica

são entes dotados de personalida-de jurídica privada, regidos peloCódigo Civil e Código de ProcessoCivil. Os atos de constituição, adotação inicial e os estatutos sujei-tam-se ao crivo do Ministério Públi-co, que as fiscaliza sob o aspectofinalístico. As fundações de apoio,de regra, mantêm convênios, ajus-tes e contratos com as universida-des ou faculdades, sem prejuízo deatividades ou serviços que possam

prestar a particulares. Não integrama Administração indireta nem a es-trutura das universidades ou facul-dades a que propiciam apoio.

A análise mais vigorosa e a crítica maiscontundente às Fundações de Apoio estãoem Di Pietro (1999), quando analisa estetema no capítulo que intitulou “Da utiliza-ção indevida da parceria com o setor pri-vado como forma de fugir ao regime jurídi-co publicístico”.

As fundações de apoio são fundaçõesde direito privado, criadas exclusivamentecom o objetivo de atenderem às necessida-des do órgão público que pretendem apoi-ar. Em geral, a cooperação com a Admi-nistração se dá por meio de convênio e tem-se, muitas vezes, que a fundação de apoioexerce as funções principais da instituiçãopública. Ao fim, a fundação de apoio pas-sa a ser gestora dos recursos públicos pró-prios e específicos da instituição pública.

Escreve Di Pietro (1999, p. 216):Em suma, o serviço é prestado porservidores públicos, na sede daentidade pública, com equipamen-tos pertencentes ao patrimônio destaúltima; só que quem arrecada todareceita e a administra é a entidadede apoio. E o faz sob as regras dasentidades privadas, sem a observân-cia das exigências de licitação paracelebração de contratos e sem arealização de concurso público paraa admissão de seus empregados.Essa é a grande vantagem dessasentidades: elas são a roupagemcom que se reveste a entidade pú-blica para escapar às normas doregime jurídico de direito público.

230 Alvaro Chrispino

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

Há, ainda, o fato de o ato de instituiçãoser de iniciativa de “particulares” e não dopoder público. Porém, muitas vezes, esses“particulares” são servidores públicos cominteresses pessoais, como atividades que lhespermita renda extra que complemente osvencimentos cada vez mais defasados.

A mídia tem mostrado fundações destetipo, jungidas as instituições a que dizemdar apoio, se aproveitarem da elevada tra-dição e competência para venderem servi-ços a órgãos públicos diversos sem a ne-cessidade – segundo informam eles própri-os – do devido procedimento licitatório, queexiste para que ocorra a oportunidade daconcorrência para auferir vantagens paraadministração pública. Apresentam-secomo fundações ligadas diretamente às ins-tituições públicas e oferecem serviços cujovalor intelectual está agregado às institui-ções que dizem representar, e ao seu corpodocente e de pesquisa. Vemo-las desempe-nhando atividades de contratação e sele-ção de pessoal, de formulação de planosdiretores para cidades, na elaboração deconcursos públicos para órgãos oficiais [...]e tudo isso oferecido com as vantagens (paraelas) da dispensa de licitação! Este assuntofoi estudado detalhadamente pelo Tribunalde Contas da União - TCU, cuja decisãofoi publicada no DOU de 25/11/1992, eque merece leitura para quem desejar apro-fundar-se na matéria.

O tema, com certeza motivado pelogrande número de questões de ordem jurí-dica e ética, foi disciplinado pela Lei nº.8.958/94. A referida Lei diz que as institui-ções federais de ensino superior e de pes-quisa científica e tecnológica poderão con-tratar, por prazo determinado, instituiçõescriadas com a finalidade de dar apoio a

projetos de pesquisa, ensino e extensão ede desenvolvimento institucional, científicoe tecnológico de interesse das instituiçõesfederais. Diz ainda que as instituições se-rão fiscalizadas pelo Ministério Público, eque os servidores públicos poderão partici-par dos projetos nas condições que especi-fica [...]. Na verdade, se quisermos utilizaro dito popular, poderíamos dizer que a lei“jogou fora o sofá”!

É, pois, um fato que cursos ministradospor instituições públicas estão sendo cobra-dos dos alunos por meio de diversos subter-fúgios que desrespeitam o Princípio Consti-tucional da Gratuidade do ensino público.

Retornando a importância de existir umprincípio constitucional que aponta a in-tencionalidade da gratuidade, lembramosMoreira Neto (2001, p. 74):

Como os princípios são normasportadoras dos valores e dos finsgenéricos do Direito, em sua for-ma mais pura, explica-se porquea violação tem repercussão muitomais ampla e grave, do que umatransgressão de normas preceitu-ais, que os aplicam às espéciesdefinidas pelos legisladores, ve-nham ou não, tais princípios, ex-pressos explicitamente na ordemjurídica, bastando que nela sejamexpressos implicitamente.

Confirmado por Mello (1991, p. 230):Violar um princípio é muito mais gra-ve do que transgredir uma norma.A desatenção ao princípio implicaofensa não apenas a um específicomandamento obrigatório, mas atodo o sistema de comandos. É amais grave forma de ilegalidade ou

Ensino público gratuito: flexibilidades e desvios 231

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

inconstitucionalidade, conforme oescalão do princípio atingido, por-que representa insurgência contratodo o sistema, subversão de seusvalores fundamentais.

Como pretensa conclusão, quer nos pa-recer que existe uma grande incompatibi-lidade no meio educacional brasileiro. Te-mos que as instituições públicas de ensinoe seus membros (gestores e docentes) re-sistem à proposta de discutir a possibili-dade de pagamento pelos alunos da edu-cação superior, por meio de pecúnia outrabalho, em nome da manutenção deconquistas marcadas pela gratuidade doensino público. Ao mesmo tempo, essasmesmas instituições públicas de ensino eseus membros (gestores e docentes) auto-rizam e/ou participam da realização decursos de educação superior com paga-mento por parte dos alunos, utilizando-sede vários artifícios e/ou brechas da admi-nistração pública, de forma mais específi-ca, das fundações de apoio.

Diz-se, com alguma razão, que estesartifícios diminuem as conseqüências dosvalores cada vez menores dos orçamentosdas instituições públicas de ensino, que fa-cultam ganhos extras aos professores, mi-norando os impactos dos vencimentos cadavez mais defasados dos servidores públi-cos. Mas não é possível ao administradorpúblico a opção pela irregularidade, pelailegalidade ou pela desobediência aos Prin-cípios Constitucionais.

Se não há irregularidade administrativaou ilegalidade no conjunto de atos apon-tados, certamente há questões de ordem

ética e de coerência de discurso. Enquantohouver docentes utilizando-se deste subter-fúgio para complementação salarial, tere-mos dificuldade de mobilizar os profissio-nais da educação para movimentos de re-conquista do patamar histórico de poderde compra do salário docente.

Enquanto houver administradores pú-blicos responsáveis por instituições públi-cas de ensino recebendo recursos de fun-dações de apoio que executam funçõesquestionáveis, não haverá busca pela me-lhor qualidade da gestão dos recursos pú-blico e mais pressão para adequação dosorçamentos às realidades de cada institui-ção pública de ensino na busca do cum-primento de sua missão.

Não é possível que as instituições pú-blicas de ensino mobilizem as massas dis-tribuindo panfletos em defesa da garan-tia de ensino público gratuito e de quali-dade e, com a outra mão, distribuam osboletos bancários de recolhimento dosvalores pertinentes a cursos dados emsuas salas, por seus docentes, com suachancela nos certificados.

Ao que parece, é tênue a distânciaque separa a criatividade e flexibilidadeadministrativas do desvio da ética quedeve pautar o processo decisório na ad-ministração dos recursos do povo depo-sitados nos cofres públicos. Este assun-to, antes de estar concluído, deve serobjeto de discussões que permitam acla-rar o que é criatividade administrativa eo que é fonte alternativa de receita, oque é cobrança por instituições públicapelos serviços de ensino.

232 Alvaro Chrispino

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

ReferênciasAZANHA, J. M. R. P. O princípio da gratuidade do ensino público. São Paulo, 1998.Disponível em: <www.usp.br/jorusp/arquivo/1998/jusp443/manchet/rep_res/opiniao.html >.Acesso em: 20 abr. 2004.

BARROSO, L. R. Interpretação e aplicação da Constituição. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

BRANDÃO, C. F. LDB: passo a passo. São Paulo: Avercamp, 2003.

BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de16 de julho de 1934. Legislação, Rio de Janeiro, 1934.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 23 jun. 2005.

______. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 denovembro de 1937. Legislação, Rio de Janeiro, 1937.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 23 jun. 2005.

______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:promulgada em 5 de outubro de 1988 ... 2. ed. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998.

______. Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases daeducação nacional. Legislação, Brasília, DF, dez. 1996.Disponível em: <http://www.mec.gov.br/sef/fundef/Ftp/leg/lein9394.doc >. Acesso em:23 jun. 2005.

______. Parecer CNE/CES nº. 0364/2002, de 6 de novembro de 2002. Regularidadeda cobrança de taxas em cursos de pós-graduação, lato sensu, com base no art. 90, daLei nº. 9.394. Brasília, DF, 2002.Disponível em: <http://www.ufrgs.br/propg/regulam/resolcne364_02htm>. Acesso em:24 jun. 2005.

BRUNNER, J. J. Globalização e o futuro da educação: tendências, desafios, estratégias.In: WERTHEIN, J. Educação na América Latina: análise de perspectivas. Brasília, DF: Ed.UNESCO, 2002.

CARNEIRO, M. A. LDB fácil. Petrópolis: Vozes, 1998.

CARNOY, M. Mundialização e reforma na educação: o que os planejadores devemsaber. Brasília, DF: Ed. UNESCO, 2002.

CARVALHO FILHO, J. S. Manual de direito administrativo. 8. ed. Rio de Janeiro: LúmenJúris, 2001.

Ensino público gratuito: flexibilidades e desvios 233

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

CASTRO, M. L. O. A educação na Constituição de 1988 e a LDB. Brasília, DF: AndréQuicé, 1998.

CHRISPINO, A. Norteando a política de formação de professores: como interpretar osartigos 62 e 87 da LDB? Ensaio: avaliação e políticas públicas em educação, Rio deJaneiro, v. 8, n. 28, p. 333-350, jul./set. 2000.

DI PIETRO, M. S. Z. Parcerias na administração pública. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999.

HOUAISS, A.; VILLAR, M. S.; FRANCO, F. M. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.Rio de Janeiro: Objetiva: Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia, 2001.

MEDAUAR, O. Direito administrativo moderno. 7. ed. São Paulo: Ed. Revistas dosTribunais, 2003.

MELLO, C. B. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,1991.

MOREIRA NETO, D. F. Curso de direito administrativo. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense,2001.

NAÇÕES UNIDAS. Declaração universal dos direitos humanos. Salvador: Ed. Paulinas,CESE, 1978.

OLIVEIRA, R. P. O financiamento da educação. In: OLIVEIRA, R.P.; ADRIÃO, T. (Org.).Gestão, financiamento e direito à educação: análise da LDB e da Constituição Federal.São Paulo: Xamã, 2002.

PROGRAMA DE PROMOÇÃO DA REFORMA EDUCATIVA NA AMÉRICA LATINA ECARIBE. Financiamento de la educación en America Latina. Santiago, Chile:PREAL, UNESCO, 1998.

RANIERI, N. B. Educação superior, direito e Estado. São Paulo: EDUSP, FAPESP, 2000.

SCHWARTZMAN, S. O fantasma do ensino pago. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26mar. 1991.

SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

SOUZA, A. M. Financiamento da educação na América Latina: lições da experiência.Rio de Janeiro: FGV, 2002. (PREAL Debates, n. 8).

234 Alvaro Chrispino

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 217-234, abr./jun. 2005

SOUZA, A. M. et al. Equidade e financiamento da educação na América Latina.Brasília, DF: UNESCO; Buenos Aires: IIPE, 2002.

TEDESCO, J. C. (Prólogo) In: SOUZA, A. M. et al. Equidade e financiamento daeducação na América Latina. Brasília, DF: UNESCO; Buenos Aires: IIPE, 2002.

WOLFF, L.; GONZALEZ, P.; NAVARRO, J. C. (Ed.). Educacion privada y política públicaen America Latina. Santiago, Chile: PREAL, BID, 2002.

Recebido: 04/05/2004Aceito para publicação em: 25/11/2004