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Pretende-se com esta página criar um espaço de reflexão e debate aberto sobre os problemas fundamentais da organização do ensino superior não estatal. Não se pretende, por isso, com os artigos que forem sendo publicados, veicular qualquer entendimento ou posição oficial da APESP sobre os assuntos em questão, mas antes proporcionar ao leitor elementos de reflexão que o despertem para os diferentes problemas a abordar e, bem assim, suscitem a sua participação através do envio de comentários e artigos, que seguramente, contribuirão para o enriquecimento desta página. Com este objectivo, contamos com a colaboração do Prof. Doutor João Vasconcelos e Costa que, com os seus artigos, será uma presença constante neste espaço. O Director Executivo (João Duarte Redondo) ENSINO UNIVERSITÁRIO E POLITÉCNICO O nosso sistema de ensino superior é um sistema binário, coexistindo um sector universitário e um sector politécnico, tanto no ensino público como no privado. A diferença entre os dois sistemas, público e privado, é que no primeiro as escolas de ensino politécnico estão integradas em institutos de dimensão relativamente grande, enquanto que no ensino privado muitas escolas politécnicas são isolada e não integradas em institutos. O sistema binário é a regra na Europa. Só a Espanha e a Itália é que têm o ensino politécnico totalmente integrado nas universidades. O Reino Unido também tem um sistema unitário, mas porque, em 1992, transformou em universidades os seus institutos politécnicos em universidades, com consequências geralmente tidas como negativas. Uma forma menos explícita de sistema binário também existe nos Estados Unidos, se considerarmos as diferenças de duração de estudos, vocação profissionalizante e conteúdo científico de ensino entre as universidades típicas e os "community colleges". O nosso sistema binário é, portanto, o mais corrente na Europa. Mas, ao contrário de Portugal, em muitos países os dois subsistemas têm igual dignidade, conferem graus de valor igual, como se passa também entre nós no que respeita à licenciatura, os seus cursos têm sensivelmente a mesma duração e o valor social dos cursos não universitários é elevado. O caso típico é o das engenharias e arquitectura, que, em alguns países, como a Alemanha, a Bélgica, a Suíça, a Finlândia, a França, a Holanda, a Irlanda e a Suécia, são total ou parcialmente cursos não universitários, conferidos por escolas do sistema equivalente ao nosso politécnico. São cursos politécnicos de cinco anos, portanto equivalentes aos cursos portugueses, embora, em alguns casos, com alternativa de cursos mais curtos, de índole técnica. Há também o caso francês em que o sector não universitário comporta as escolas de maior prestígio e selecção na admissão, como sejam as chamadas "grandes écoles" ou os prestigiadíssimos Instituto Politécnico e Escola Nacional de Administração. Da mesma forma na Suíça, em que os institutos politécnicos federais de Lausana e de Zurique tem prestígio igual ou superior ao de algumas universidades. A maioria dos países têm cursos de quatro anos no ensino não universitário (como nós, no caso das licenciaturas do politécnico). Apenas a Bélgica flamenga, a Dinamarca, a Finlândia, a Islândia e a Noruega é que também têm graus de três anos nos politécnicos, a par dos de quatro, tal como acontece entre nós com o bacharelato. Apesar desta tendência quase universal, cada vez mais se ouve entre nós (principalmente em meios ligados ao politécnico) a defesa de um sistema unitário, não se sabe bem se por integração dos politécnicos nas universidades se pela sua transformação em universidades. Se isto ainda pode ser discutível em relação ao sistema público, é praticamente impossível no privado, dada a dispersão e pequena dimensão das escolas politécnicas e a multiplicidade das entidades instituidoras. De qualquer

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Pretende-se com esta página criar um espaço de reflexão e debate aberto sobre os problemas fundamentais da organização do ensino superior não estatal. Não se pretende, por isso, com os artigos que forem sendo publicados, veicular qualquer entendimento ou posição oficial da APESP sobre os assuntos em questão, mas antes proporcionar ao leitor elementos de reflexão que o despertem para os diferentes problemas a abordar e, bem assim, suscitem a sua participação através do envio de comentários e artigos, que seguramente, contribuirão para o enriquecimento desta página. Com este objectivo, contamos com a colaboração do Prof. Doutor João Vasconcelos e Costa que, com os seus artigos, será uma presença constante neste espaço.

O Director Executivo (João Duarte Redondo)

ENSINO UNIVERSITÁRIO E POLITÉCNICO

O nosso sistema de ensino superior é um sistema binário, coexistindo um sector universitário e um sector politécnico, tanto no ensino público como no privado. A diferença entre os dois sistemas, público e privado, é que no primeiro as escolas de ensino politécnico estão integradas em institutos de dimensão relativamente grande, enquanto que no ensino privado muitas escolas politécnicas são isolada e não integradas em institutos.

O sistema binário é a regra na Europa. Só a Espanha e a Itália é que têm o ensino politécnico totalmente integrado nas universidades. O Reino Unido também tem um sistema unitário, mas porque, em 1992, transformou em universidades os seus institutos politécnicos em universidades, com consequências geralmente tidas como negativas. Uma forma menos explícita de sistema binário também existe nos Estados Unidos, se considerarmos as diferenças de duração de estudos, vocação profissionalizante e conteúdo científico de ensino entre as universidades típicas e os "community colleges".

O nosso sistema binário é, portanto, o mais corrente na Europa. Mas, ao contrário de Portugal, em muitos países os dois subsistemas têm igual dignidade, conferem graus de valor igual, como se passa também entre nós no que respeita à licenciatura, os seus cursos têm sensivelmente a mesma duração e o valor social dos cursos não universitários é elevado. O caso típico é o das engenharias e arquitectura, que, em alguns países, como a Alemanha, a Bélgica, a Suíça, a Finlândia, a França, a Holanda, a Irlanda e a Suécia, são total ou parcialmente cursos não universitários, conferidos por escolas do sistema equivalente ao nosso politécnico. São cursos politécnicos de cinco anos, portanto equivalentes aos cursos portugueses, embora, em alguns casos, com alternativa de cursos mais curtos, de índole técnica.

Há também o caso francês em que o sector não universitário comporta as escolas de maior prestígio e selecção na admissão, como sejam as chamadas "grandes écoles" ou os prestigiadíssimos Instituto Politécnico e Escola Nacional de Administração. Da mesma forma na Suíça, em que os institutos politécnicos federais de Lausana e de Zurique tem prestígio igual ou superior ao de algumas universidades. A maioria dos países têm cursos de quatro anos no ensino não universitário (como nós, no caso das licenciaturas do politécnico). Apenas a Bélgica flamenga, a Dinamarca, a Finlândia, a Islândia e a Noruega é que também têm graus de três anos nos politécnicos, a par dos de quatro, tal como acontece entre nós com o bacharelato.

Apesar desta tendência quase universal, cada vez mais se ouve entre nós (principalmente em meios ligados ao politécnico) a defesa de um sistema unitário, não se sabe bem se por integração dos politécnicos nas universidades se pela sua transformação em universidades. Se isto ainda pode ser discutível em relação ao sistema público, é praticamente impossível no privado, dada a dispersão e pequena dimensão das escolas politécnicas e a multiplicidade das entidades instituidoras. De qualquer

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forma, esta discussão ainda larvar não tem sido substanciada com argumentos fundamentados e reina ainda uma grande confusão, em grande parte devida a uma certa falta de clareza quanto à natureza e missões dos dois subsistemas, universitário e politécnico.

Universidades e politécnicos têm vivido em grande divórcio e num clima de relações nem sempre saudável e potenciador do papel que a cada subsistema cabe no conjunto do ensino superior. Creio que a maioria dos universitários desconhece o politécnico e descura a sua importância, quando não tem uma visão superior e elitista. Eu próprio, escrevendo estas linhas, faço-o com pouco conhecimento de causa ou duma perspectiva principalmente teórica, desconhecendo muito da realidade do nosso ensino politécnico. Os professores do politécnico, ao menos, conhecem a universidade, por onde passaram e fizeram os seus mestrados e doutoramentos.

O ensino politécnico foi programado no início dos anos 70 e tornou-se mais necessário pela explosão da procura do ensino superior, a seguir à revolução, à qual a universidade não conseguia dar resposta. Foi a época da grande massificação do ensino superior, que fez entrar em jogo novos factores de desafio ao sistema: heterogeneidade da população estudantil (no que se refere às expectativas de trabalho, ao "background" cultural, ao desejo de entrada mais ou menos rápida no mundo do trabalho); falta de alteração de métodos e percursos formativos, com consequências no insucesso escolar; insuficiência da oferta, ademais com distribuição geográfica desfavorável ao interior mais carenciado; falta de recursos humanos, infraestruturais e financeiros para dar resposta à procura explosiva.

Mas pode-se duvidar de que tenha havido total coerência e clareza de visão na criação do politécnico. Ao reorganizar-se o sistema de ensino após a revolução, reorganização consagrada na lei de bases do sistema educativo, havia universidades, que todos sabiam o que eram, mas também uma multiplicidade de escolas de nível intermédio (as escolas de engenheiros técnicos e de contabilidade, as escolas de enfermagem, as escolas do magistério primário, os conservatórios, etc.) que, também por factores políticos de imagem e de valorização social, pretendiam a sua promoção a ensino superior. Com elas se organizou o ensino politécnico, talvez contra um plano prévio consistente. O ensino politécnico nasce em grande parte de uma atitude federativa de existências avulsas. Pelo contrário, no ensino privado, muitas escolas politécnicas são criadas de novo e em certos casos ligadas a universidades, por via de uma entidade instituidora comum.

Na lei de bases do sistema educativo, a distinção entre universidades e politécnico é quase um jogo de palavras. Para ambos os tipos de ensino, fala-se de formação técnica que habilite para o exercício de actividades profissionais, de formação cultural, de aquisição de capacidade de inovação e análise crítica. Quando muito, pode-se realçar que se adjectiva como científica a preparação dada pela universidade e como técnica a do ensino politécnico. De qualquer forma, não há uma definição clara da missão do politécnico. A distinção principal faz-se por graus: os politécnicos conferiam o bacharelato, as universidades a licenciatura. O perfil identificativo do politécnico foi-se fazendo com base nisto, na organização de cursos de três anos e numa vocação profissionalizante já existente em muitas das escolas que foram integradas no politécnico. Esta situação complicou-se com a revisão de lei de bases, que permitiu ao politécnico conferir licenciaturas. Continua a distinção por graus, competindo apenas às universidades conferir mestrados e doutoramentos. Mas, na falta de uma missão clara para os politécnicos, distinta da das universidades, parece-me que esta nova disposição legal ainda agravou mais a ambiguidade: em que é que uma licenciatura do politécnico deve ser diferente de uma licenciatura universitária? Pensam alguns universitários, menos familiarizados com a visão moderna das formações, que nada as distingue. Pensam outros ainda pior, que o que as distingue é serem melhores as da universidade. Como se verá, a minha posição é radicalmente diferente.

Uma das intenções subjacentes ao ensino politécnico, que poderia ter contribuído para uma imagem identificadora, era a grande ligação ao tecido social, empresarial ou regional. Isto reflecte-se na lei da

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autonomia dos politécnicos, que, ao contrário da lei da autonomia das universidades, impõe uma participação relevante dos parceiros sociais na governação dos institutos, inclusivamente na eleição do presidente. No entanto, o sistema empresarial não infuenciou decisivamente o desenho do politécnico. À data da sua implantação, as empresas viviam numa economia fechada e protegida, sem informação científica e tecnológica, sem competitividade e sem noção da previsível evolução da economia e do emprego. Era fundamentalmente um sector industrial atrasado e tradicional, baseado na mão de obra intensiva, barata e pouco qualificada, alheado da inovação e ao qual a novidade do politécnico pouco dizia. Ainda hoje, apesar da grande evolução do sistema empresarial, a sua participação na vida do politécnico é relativamente irrelevante, geralmente através de figuras de segunda linha. Mas também é verdade que os institutos politécnicos não dão aos seus parceiros sociais oportunidades reais de participação na política da instituição e os empresários têm uma cultura de prática e eficácia e dão grande valor ao seu tempo. O sistema binário aumenta a diversidade institucional. A diversidade é um elemento enriquecedor de qualquer sistema organizacional. A diversidade é particularmente relevante no caso do ensino superior, face à grande complexidade dos desafios que se lhe colocam e à multiplicidade de solicitações que lhe são postas, a começar pela heterogeneidade crescente da população que a procura. A diversidade aumenta o leque de escolhas, ajusta-se à evolução rápida das exigências do mercado do trabalho, cria condições para experiências inovadoras e estimula a procura de padrões de excelência próprios de cada universidade. Aumenta a competitividade institucional e, logo, a qualidade e proporciona oportunidades variadas de formação ao longo da vida, hoje um aspecto crucial da política do ensino superior.

No entanto, a diversidade institucional (no caso em discussão, a coexistência de universidades e institutos politécnicos) só fica com pleno sentido se acompanhada de diversidade cultural, programática e de missão. É necessário que os politécnicos tenham uma personalidade própria, não decalcada da das universidades. Isto inclui uma visão própria da natureza e metodologia dos seus cursos, da formação do seu pessoal docente (que deve ser diferente mas não menos exigente do que a das universidades), dos modelos de governação e do papel dos "stakeholders", mais significativo que nas universidades, do tipo da sua investigação científica. Tudo isto com um sentimento forte de auto-estima do politécnico, que o não conduza a rivalidades estéreis com as universidades, facilitadas por uma atitude de mimetismo (o que se tem designado como "academic drift").

Tanto quanto me parece, o politécnico nem sempre tem sabido resistir a esta luta vã contra a universidade, com prejuízo do seu valor próprio e apesar de as circunstâncias o estarem a favorecer ou pelo menos a reduzir a sua desvantagem em relação ás universidades. O acesso reduzido ao ensino superior traduz-se por emprego seguro e bem remunerado, em termos relativos, com estatuto social privilegiado. Mas isto também já se verifica, ou até mais, no politécnico. A relação de emprego para novos diplomados entre o Estado e a actividade privada inverteu-se, e isto também em benefício do politécnico. É certo, todavia, que se mantêm alguns factores de desequilíbrio: a valorização do grau universitário, até como bem escasso, mais do que no politécnico, o prestígio da pós-graduação, exclusiva da universidade, a maior influência social e cultural da universidade (a começar pelos meios políticos). Não tenho números exactos sobre o acesso ao politécnico mas suponho (até pela média de classificações muito mais baixa na entrada) que, para muitos candidatos ao ensino superior, o politécnico é uma segunda escolha. A afirmação da sua qualidade e uma maior consciência pública do seu valor social contribuirão para progressivamente desfazer esta situação desfavorável, desde que o próprio politécnico seja o primeiro agente desta mudança da opinião pública. Uma das suas vantagens posicionais, de que deve tirar partido, é a muito melhor cobertura geográfica do que a das universidades. Das 14 universidades públicas, só 3 se localizam no interior, enquanto que os institutos politécnicos cobrem todos os distritos do interior. O mesmo se passa com o ensino privado. Todas as universidades estão concentradas no litoral, maioritariamente nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, enquanto que as escolas politécnicas privadas se espalham por todo o país.

A missão da universidade e do politécnico

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Mas a principal diversidade que justifica o politécnico é a de missão e programática. O mercado de emprego precisa de jovens com sólida preparação científica, de banda larga, com novas competências transversais e atitudes modernas, com capacidade de conceptualizar projectos e de promover a integração de equipas. É o que se pede hoje à formação universitária. Mas precisa também de pessoas com saber fazer, com sentido prático e empreendedor, com enraizamento no tecido económico-social e com grande capacidade de adaptação permanente à evolução tecnológica. É isto que se pede ao politécnico.

A outra característica essencial da formação politécnica, decorrente disto, deve ser a grande articulação da formação com a actividade profissional, incluindo a formação em ambiente de trabalho. Por isto, a organização curricular dos cursos deve permitir um trânsito fácil entre o ensino e a prática, nos dois sentidos, incluindo a chamada formação de tipo sanduiche, em fases sucessivas de ensino e de actividade profissional, seja ensino tradicional sejam as novas formas de ensino à distância e de aprendizagem ao longo da vida. Esta é uma possibilidade aberta e já em prática pelas licenciaturas bi-etápicas do politécnico, em que o estudante frequentemente ingressa no mundo do trabalho no fim do primeiro ciclo e conclui a licenciatura como estudante trabalhador. O mesmo se deve dizer para os docentes, cuja carreira deve ser determinada por elementos curriculares importantes de actividade profissional e intervalada frequentemente por essa actividade. Uma última consequência seria a necessidade de muito maior investigação nos politécnicos, que tem sido descurada (ou para que não têm meios), mas, pela sua natureza, principalmente investigação aplicada e desenvolvimento tecnológico, desejavelmente em parceria com as empresas ou os outros agentes empregadores.

Não deve haver, todavia, uma diferença radical entre a formação politécnica e a universitária. Embora a do politécnico esteja mais orientada para o saber fazer e para as competências tecnológicas, deve partilhar com a universitária a formação de competências gerais. A criatividade e o gosto pela inovação, a capacidade de continuar aprendendo, a capacidade crítica, o espírito de iniciativa e de competitividade, as competências relacionais e comunicativas são comuns a ambas as formações, universitária e politécnica, apenas com uma diferença de ênfase. Penso que a diferença principal devia estar no tipo de competências específicas, dando o politécnico aptidão para trabalho prático e específico e para adaptação rápida a tarefas concretas, enquanto que a universidade forma aptidões mais ao nível da concepção, organização e gestão.

Tudo isto significa que os dois subsistemas, universitário e politécnico, devem ter igual dignidade e não se podem definir por reserva de graus. O processo de Bolonha e a reorganização de graus vai certamente contribuir para isto, porque, como veremos, a tendência é para que o primeiro grau seja equivalente para todos os efeitos nos dois subsistemas. Mas em nada me repugna, como em experiências europeias que referi, que o politécnico possa também conferir os graus superiores. Podia chamar-lhes o mestrado técnico e o doutoramento técnico. Teriam que ter o mesmo grau de exigência de qualidade intelectual e de esforço de aprendizagem dos seus equivalentes universitários, com a diferença de o trabalho de "tese" ser essencialmente de natureza profissional e prática, em vez de investigação académica. Isto seria um contributo para a independência e dignidade do politécnico, que assim se auto-alimentaria dos seus docentes, sem necessidade de recurso ao grau académico universitário. Permitiria o recrutamento como docentes de profissionais altamente qualificados, mais sintonizados com a missão do politécnico do que os académicos de extracção universitária, facilitando-lhes uma carreira específica, até agora dependente do desvio para provas para que não têm vocação nem disponibilidades, como o mestrado e o doutoramento universitários.

De tudo isto se conclui também que, mais do que falar de instituições diferentes, falo de tipos de ensino diferentes. Por isto, nada impede, a meu ver, que possam coexistir na mesma instituição. Já temos os casos das Universidades de Aveiro e do Algarve, que integram escolas de ensino politécnico, ou, no caso das privadas, o exemplo da Universidade Lusófona que, na prática, integra ou associa algumas escolas

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politécnicas. Mas o inverso também não me é inaceitável, isto é, a existência de faculdades num ou noutro instituto politécnico, principalmente no interior mais carenciado.

A coexistência de faculdades e de escolas politécnicas na universidade seria um factor de enriquecimento na diversidade, de diálogo de perspectivas formativas distintas mas complementares e de estímulo à valorização técnica e profissional dos docentes das escolas politécnicas. Contribuiria também para a valorização social das profissões a que correspondem as saídas curriculares das escolas politécnicas. Um exemplo elucidativo é o da área da saúde. Parece-me óbvio e lógico o interesse de uma universidade com uma faculdade de medicina dispor também de uma escola de politécnico de enfermagem ou de tecnologias de saúde.

A lei de bases do sistema educativo permitia que as universidades pudessem integrar escolas de ensino politécnico. Surpreendentemente, a lei de organização e ordenamento do ensino superior (Lei nº 26/2000, de 23 de Agosto) vem provocar um recuo nesta situação, distinguindo rigidamente as organizações do ensino universitário e do ensino politécnico e não prevendo a possibilidade de coexistência de unidades de ambos os subsistemas na mesma instituição. Estabelece, de forma fechada, que o ensino universitário é ministrado em universidades e que o ensino politécnico é ministrado em institutos politécnicos ou em escolas não integradas, não permitindo que também o possa ser em escolas politécnicas integradas em universidades. É um retrocesso fortemente lesivo da flexibilidade e agilidade do sistema de ensino superior e que não contribuirá para relações de boa cooperação e de articulação eficaz entre o ensino universitário e o politécnico. É verdade que a lei estipula que “o ensino universitário e o ensino politécnico devem estabelecer adequadas formas de articulação”. Mas isto parece pouco mais do que uma intenção piedosa, sem conteúdo prático. A nova lei do desenvolvimento e qualidade vai revogar a lei do ordenamento mas mantém a separação rígida entre universidades e politécnicos.

Há um campo larguíssimo para colaboração entre os dois subsistemas e que provavelmente nem um nem outro tem tentado explorar. É possível que haja, mas eu não conheço nenhum protocolo de colaboração entre uma universidade e um instituto politécnico. Começa logo pela formação dos docentes do politécnico, que ainda não podem obter nos seus institutos os graus académicos necessários à progressão na sua carreira. Depois, pela colaboração docente. Assim como os professores universitários podem ensinar um certo número de horas noutras universidades, deviam poder fazê-lo também no politécnico. E também, por exemplo, apesar da formação politécnica ser principalmente técnica, lucraria com complementos de ensino de índole científica (estágios curtos, participação em projectos de investigação) facultados pelas universidades. Também não consta que haja esquemas contratados entre universidades e politécnicos para permitir facilmente, quase automaticamente, a progressão para a licenciatura na universidade dos bacharéis formados pelo politécnico.

Com a ressalva de estar longe de ser um conhecedor do politécnico, penso que ele deve ser um componente do nosso sistema de ensino superior com muito maior reconhecimento de importância e dignidade do que tem tido. Mas isto não se decreta. Deixe-se à opinião pública e ao mercado de emprego a valorização das instituições de ensino. É este o desafio mais decisivo ao ensino politécnico, o da sua afirmação como qualidade (um esforço tanto maior quanto tem que o mostrar a uma opinião pública e política reticente), em vez de pequenas querelas e rivalidades entre os dois sistemas de ensino superior. O politécnico tem uma tentação forte de imitação das universidades. Por esta via, nunca o politécnico se afirma, porque não tem os meios para competir com a universidade no terreno dela. O que o ensino politécnico precisa é de afirmar a sua missão e personalidade próprias e de construir uma base específica de credibilidade que lhe dê o prestígio que deve merecer.

Bolonha e os politécnicos

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Na sequência de Bolonha, em muitos países, tais como os escandinavos, Malta, países bálticos, França, Eslovénia e Eslováquia, o primeiro grau passou a ser comum a ambos os subsistemas. Com Bolonha, há uma tendência europeia forte para que o sector não universitário não se fique pelo grau de "bachelor" mas possa também conferir o grau de "master". É o que se passa já em países como a Bélgica, a Holanda e a Suíça, que têm escolas de tecnologias extra-universitárias com cursos de cinco anos que provavelmente se vão manter mas como mestrados, e ainda outros, como a Áustria, a Alemanha, a Noruega, a Polónia e a República checa, que prevêem total equivalência de mestrados entre a universidade e o politécnico. A Noruega e a Irlanda são mesmo casos extremos, porque admitem que o politécnico possa conferir doutoramentos.

É provável que, em Portugal, a questão se ponha de forma mais complicada, em virtude de alguma falta de compreensão das universidades sobre a missão e natureza do ensino politécnico. Assim, por exemplo, a posição do CRUP sobre Bolonha, no que se refere à diversidade de graus nos dois subsistemas, considera que é matéria em que necessita de orientação política. Foge a uma posição própria. A universidade tem tendência para se ver diferente do politécnico apenas por critérios de truncagem. A princípio, era a diferença de graus entre o bacharelato dos politécnicos e a licenciatura das universidades, agora é a reserva da pós-graduação para as universidades. É preciso que os universitários entendam que a relação entre universidades e politécnicos não é uma relação de superioridade e inferioridade mas sim uma relação de diversidade e diferença de natureza, mas com igual dignidade (desde que, obviamente, o nível de qualificação científica do pessoal docente num e noutro sistema sejam equivalentes, o que não é o caso entre nós).

Como vimos, a diferença deve ser apenas vocacional e de perfis de "outcomes" educacionais, como é regra na maioria dos sistemas binários europeus. É nesta linha que, no meu livro "A universidade no seu labirinto", como disse atrás, defendo, contra a lei do ordenamento, a possibilidade de grande interpenetração dos dois sistemas, havendo escolas politécnicas nas universidades e faculdades nos institutos politécnicos. Voltando ao processo de Bolonha, creio que o politécnico está melhor colocado que a universidade para uma adaptação fácil às novas tendências, principalmente no que respeita ao primeiro grau. Embora a declaração de Bolonha preveja para o primeiro grau uma duração de três a quatro anos e alguns países também admitam esta flexibilidade, a tendência mais forte está a ser para o grau de "bachelor" de três anos. Isto dificilmente será seguido nas universidades portuguesas, como aliás fica claro na posição do CRUP, que defende um grau de quatro anos. Pelo contrário, o politécnico tem uma longa experiência de cursos de três anos, de bacharelato, embora, nos últimos anos, tenha dado clara preferência às licenciaturas. Mas mesmo neste caso, considerando o número de licenciaturas bietápicas, continua a manter-se a fácil adaptabilidade a um primeiro grau de três anos, segundo a tendência europeia maioritária. Como diz o parecer do CCISP sobre Bolonha (a meu ver muito mais elaborado do que o parecer do CRUP), "deverá ter-se em consideração a experiência em Portugal dos cursos cuja duração é de 3 anos e que, nas mais diversas áreas, têm permitido um acesso dos diplomados ao exercício profissional, com sucesso". Este é outro aspecto em que o politécnico está em vantagem. Tem uma boa experiência de empregabilidade dos cursos curtos, que é um critério essencial de Bolonha para o primeiro grau. Pelo contrário, vai ser um exercício difícil para as universidades encurtar os seus cursos de licenciatura para quatro anos (e muito mais para três) e manter (se é que já os tem com as licenciaturas de cinco anos) "outcomes" relevantes para a empregabilidade. Tal como se está a pensar em outros paises (por exemplo, na Suíça, na Hungria, na Finlândia e na Bélgica), penso que provavelmente se passará em Portugal, no que respeita à universidade, que o primeiro grau de "bachelor" não vai ter muito impacto como grau de saída e que a maioria dos alunos prosseguirá os seus estudos para o mestrado.

Talvez por minha dificuldade de compreensão, o parecer do CCISP parece-me um pouco ambíguo em relação ao mestrado. É assunto que lhe é próximo, porque o politécnico tem já muitas licenciaturas que, a manterem-se e segundo a tendência pós-Bolonha, passariam a mestrados (é quase unânime a tendência para considerar como de cinco anos a duração total do mestrado). No entanto, o parecer do

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CCISP parece diminui-los, ao afirmar que "à excepção da docência no ensino superior, não deverá constituir, em caso algum, requisito de acesso à profissão o grau de doutor e o grau de mestre só poderá ser admissível em situações excepcionais e, a acontecer, sob a forma de mestrado profissional". Estou de acordo, como tenho escrito repetidamente, com os mestrados profissionais (acima chamei-lhes técnicos, mas vem a dar ao mesmo), mas já não concordo com o carácter de excepcionalidade que o parecer lhes atribui. Penso que o mercado de trabalho precisa destes mestrados de pendor profissionalizante e que o politécnico tem condições para os facultar com grande variedade e abundância.

Mas provavelmente não estamos em desacordo, porque logo adiante o parecer fala dos mestrados profissionalizantes nos termos em que também os defendo, tanto no meu livro como no artigo que referi: "o ciclo de estudos conducente ao mestrado poderá (eu diria, deverá!) ter duas finalidades principais distintas: a formação a nível de especialização profissional (competências profissionais específicas) ou a formação a nível de investigação numa área científica (competências de investigação científica). Assim, deverão existir dois tipos de mestrado, fortemente distintos: mestrados profissionais e mestrados de investigação. Os primeiros, profissionalmente orientados, deverão dirigir-se a profissionais (ou, em casos específicos, a candidatos a profissionais) e deverão incluir obrigatoriamente uma componente baseada em tarefas da profissão ("work-based") e os segundos, orientados para a investigação ("research-oriented") deverão conter obrigatoriamente uma componente de métodos de investigação".

Pode parecer que esta divisão aponta para uma diferença entre politécnicos, no primeiro caso e universidades, no segundo. Eu vou mais longe, embora numa perspectiva temporal um pouco alargada. Ao contrário de muitos universitários, penso que o politécnico também têm vocação para a investigação, embora, pela sua missão e natureza, uma investigação principalmente de tipo aplicado ou de desenvolvimento tecnológico e muito em relação com empresas ou serviços regionais. Nestes termos, o politécnico também poderia facultar mestrados deste tipo de investigação e, por extensão, como disse atrás, também, porque não, doutoramentos. Aqui estou a ser mais avançado do que o parecer do CCISP, que, no seu ponto 3.5, parece excluir os doutoramentos de politécnico. Mas talvez eu não tenha razão, porque de facto, logo a seguir, o parecer diz que "os cursos de doutoramento devem ser generalizados a todas as instituições que detenham os requisitos previamente fixados para o efeito".

E, com tudo isto que ficou dito sobre a equiparação na diferença entre universidades e politécnicos (tese com muito pouco eco nos universitários, mas não em mim, que fui muitos anos um "universitário de fora"), chegamos ao outro aspecto que queria abordar e que é: então porquê as diferenças de estatuto entre as universidades e os institutos politécnicos?

A autonomia dos institutos politécnicos

A resposta, para mim, é óbvia: a lei da autonomia e os decretos dela derivados, bem como outras leis universitárias como a do financiamento, devem sempre aplicar-se, indiscriminadamente e nos mesmos termos, tanto às universidades como aos institutos politécnicos. Nada justifica o contrário. A primeira e importante diferença entre a autonomia das universidades e dos institutos politécnicos diz respeito à capacidade de aprovação dos estatutos. Nas universidades, há autonomia estatutária e o ministro só pode recusar a homologação por violação da lei, enquanto que os estatutos dos institutos politécnicos têm que ser homologados pelo ministro sem condições.

A autonomia pedagógica e científica, no caso das universidades, é um atributo delas próprias, podendo delegar nas unidades orgânicas, enquanto que a lei de estatuto e autonomia do ensino politécnico (Lei nº 54/90) só atribui essa competência de autonomia às escolas superiores e não aos institutos, que, com isto, pelo menos teoricamente, podem ficar diminuídos na sua capacidade de definição de políticas

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científicas e pedagógicas.

O aspecto mais crítico da autonomia pedagógica diz respeito à capacidade de criação de cursos. Neste aspecto, o politécnico público está em clara desvantagem. Enquanto que as universidades têm competência para criação de cursos, sujeitos apenas a registo no ministério (que só pode ser recusado por vício legal), a criação de cursos no politécnico carece de aprovação ministerial. Ao referir esta disparidade, não estou a defender que o sistema das universidades se alargue ao politécnico, porque, como já tenho escrito, entendo que a criação de cursos nas universidades deve ser regulada. O que entendo é que o regime deve ser igual para ambos os subsistemas e também para o ensino privado, universitário ou politécnico.

Esta situação mudará com a aprovação da nova lei do desenvolvimento e qualidade, em que todos os subsistemas ficam equiparados quanto à autonomia pedagógica, isto é, quanto á criação de cursos. Mas ficam-no com limitações, pois o Ministério passa a ter um papel decisivo no registo de cursos, embora com intermediação de uma entidade relativamente independente, o novo Conselho Nacional do Ensino Superior. Para terminar, apenas duas notas que me dificultam um pouco a minha indiscutível posição de defesa da dignidade do politécnico e da sua total equiparação às universidades. Em primeiro lugar, alguma tendência mimética em relação às universidades, o chamado "academic drift". Por esta via, nunca o politécnico se afirma, porque não tem os meios para competir com a universidade no terreno dela. O que o ensino politécnico precisa é de afirmar a sua personalidade própria e de construir uma base específica de credibilidade que lhe dê o prestígio que deve merecer, afirmando as suas missões e natureza próprias. Em segundo lugar, a menor qualificação do seu corpo docente permitida pelo estatuto da carreira. Ela baseia-se no mestrado, ao contrário da carreira universitária que se baseia no doutoramento. Defendi em todo este artigo a maior equiparação e igual dignidade dos dois subsistemas. Coerentemente, devo defender também a equiparação de exigências em relação às qualificações do corpo docente. Nem isto é difícil porque, salvaguardadas as situações adquiridas, o politécnico tem largas possibilidades de recrutar um corpo significativo de doutorados de entre tantos que o país formou para agora se arrastarem por situações precárias e falta de emprego.

Prof. Doutor João Vasconcelos e Costa

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02/25/2002