Enteógenos, civilização e barbárie · esquizofrenia. Existe uma limitação no trabalho com...

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1 Enteógenos, civilização e barbárie Leila Marrach Basto de Albuquerque 1 “A simples vista, la parra de la ebriedad trepa por la columna de la religión, pero en realidad es la columna de la religión la que se sustiene sobre la parra de la ebriedad.” (Javier Esteban - Los intoxicados de Dios y el lobo blanco) “Por isso os seres humanos usam drogas desde o princípio dos tempos: para tentar escapar do estreito cárcere da cultura, para dar uma espiada no paraíso.” (Rosa Montero - A louca da casa) Introdução Esta comunicação discute o uso de substâncias psicoativas em dois contextos específicos: por um lado, como experimento científico levado por um cientista de modo improvisado, que busca estados especiais fazendo uso de diferentes recursos, como exibido no filme Viagens Alucinante (RUSSEL, 1980) e, por outro, entre populações onde esta prática se dá no interior de rituais religiosos e/ou de cura e, portanto, inserido na própria cultura. Recorro, para tal, à ideia de civilização sem a sua pesada carga ideológica conferida pelo evolucionismo, mas me valendo das suas imagens como metáforas para operar um jogo de inversão, quando o símbolo máximo da civilização, a ciência e a sua racionalidade invadem objetos fora da sua jurisdição. Ao lidar com a ideia de civilização em outro solo cultural, como entre os povos nativos das Américas, portadores de uma cultura material diferente da ocidental moderna mas detentores de um rico e complexo sistema simbólico, os índices civilizatórios da modernidade ganham sua particularidade e, em certas circunstâncias, exibem traços de “barbárie”. 1 Doutora em Ciências Sociais: Sociologia e Política pela PUC-SP e pesquisadora do Centro de Documentação e Memória - CEDEM da UNESP - São Paulo.

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Enteógenos, civilização e barbárie

Leila Marrach Basto de Albuquerque1

“A simples vista, la parra de la ebriedad trepa por la columna de la religión, pero en realidad

es la columna de la religión la que se sustiene sobre la parra de la ebriedad.”

(Javier Esteban - Los intoxicados de Dios y el lobo blanco)

“Por isso os seres humanos usam drogas desde o princípio dos tempos: para tentar escapar

do estreito cárcere da cultura, para dar uma espiada no paraíso.”

(Rosa Montero - A louca da casa)

Introdução

Esta comunicação discute o uso de substâncias psicoativas em dois contextos

específicos: por um lado, como experimento científico levado por um cientista de modo

improvisado, que busca estados especiais fazendo uso de diferentes recursos, como exibido

no filme Viagens Alucinante (RUSSEL, 1980) e, por outro, entre populações onde esta prática

se dá no interior de rituais religiosos e/ou de cura e, portanto, inserido na própria cultura.

Recorro, para tal, à ideia de civilização sem a sua pesada carga ideológica conferida

pelo evolucionismo, mas me valendo das suas imagens como metáforas para operar um jogo

de inversão, quando o símbolo máximo da civilização, a ciência e a sua racionalidade

invadem objetos fora da sua jurisdição. Ao lidar com a ideia de civilização em outro solo

cultural, como entre os povos nativos das Américas, portadores de uma cultura material

diferente da ocidental moderna mas detentores de um rico e complexo sistema simbólico,

os índices civilizatórios da modernidade ganham sua particularidade e, em certas

circunstâncias, exibem traços de “barbárie”.

1 Doutora em Ciências Sociais: Sociologia e Política pela PUC-SP e pesquisadora do Centro de Documentação e Memória - CEDEM da UNESP - São Paulo.

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Norbert Elias (1990) chama de processo civilizador a construção de um padrão de

relações humanas que se dá com o fim do feudalismo, quando ocorre a centralização do

Estado moderno. Novos regulamentos éticos, morais e de comportamento, regrados por

instituições se disseminam e ocupam um lugar na sociedade e na vida das pessoas. São

práticas sociais que implicam em uma pedagogia coletiva que transcende o indivíduo,

configurando regras consensuais de comportamento.

Esse novo padrão moral e de costumes alicerça novos modos de saber e de conhecer

o mundo e o homem - a ciência. Como narrativa hegemônica da modernidade, o

conhecimento científico inaugura novos mapas do mundo e do homem que condicionam

seus objetos de estudo e os seus requisitos de um conhecimento legítimo no âmbito do

universo moderno: objetividade, neutralidade e universalidade. Nesse sentido, desenvolve

um conjunto de regras que, reunidas, conformam a sua metodologia. Fazer uma pesquisa

científica é respeitar tais regras, é seguir um ritual de procedimentos portadores de

moralidade e etiqueta próprios, na compreensão e explicação deste novo mapa do mundo.

Ora, os rituais são ações cautelosas, são cuidados instituídos para situações específicas e só a

elas dizem respeito. Assim, as particularidades do sujeito e do objeto da ciência definem

modos de agir, sentir e pensar - o seu método - que só a ele dizem respeito, pois foram

construídos para a sua jurisdição. Fora dela, são outros os cuidados a serem respeitados.

Barbárie

O filme Viagens Alucinantes, baseado na novela de Paddy Chayefsky foi inspirado nas

experiências de John C. Lilly, na década de 1980, que através de tanques de isolamentos e

utilização de LSD procurava produzir privação sensorial e estados alterados de consciência.

Na história, o professor de medicina de Harvard, Dr. Jessup, procede a essas

experiências de privação de sentidos a partir das quais vivencia alucinações, estados oníricos

e místicos e alegorias religiosas bíblicas. Fica-se sabendo, também, que na sua infância tivera

visões religiosas e, com a morte dolorosa do pai, deixa de crer em Deus, o que justifica a sua

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busca por estados alterados de consciência como modo de encontrar um sentido para a sua

existência.

O contexto mais amplo onde se situa o enredo do filme mostra ingredientes

estereotipados da vida universitária dos anos 60: vestimentas e decoração de inspiração

indiana, menção à ioga e festinhas de estudantes e professores com uso de maconha.

Para justificar seus experimentos, Dr. Jessup menciona alguns reconhecidos

estudiosos de estados alterados de consciência (associados ou não ao misticismo) como Tart

e Deikman, mas afirma não saber o que está procurando em termos científicos. Entretanto,

espera elaborar uma metodologia para proceder a experimentos controlados e declara:

Interesso-me especialmente por experiências religiosas. A razão de trabalhar com

esquizofrênicos agora é que a experiência religiosa é muito significante na

esquizofrenia. Existe uma limitação no trabalho com animais [...] eles não contam

o que acontece na consciência deles. Nisso é preciso seres humanos. Você não

prende seres humanos e coloca eletrodos no crânio. Então eu uso uma técnica de

transe induzido e o tanque de isolamento é o menos arriscado.

Vemos, portanto, na origem das peripécias do Dr. Jessup, uma mistura de traumas de

infância, inquietações religiosas e improviso científico.

Assim, com tais disposições o nosso médico-cientista dá início às suas viagens

alucinantes em busca de privação dos sentidos através da imersão em tanques de

isolamento. Ele descreve, ao seu colega que o acompanha e monitora o aparelho, as

imagens que experimenta: nuvens, peixes, o pai doente, a Bíblia, imagem de Jesus

queimando no crucifixo que vai se transformando em um bode.

O encontro com um antropólogo da Universidade do México, Dr. Eccheverria, lhe traz

informações sobre um grupo indígena “isolado” que ainda pratica rituais toltecas sagrados

em cerimônias usando cogumelos. Neste caso, para os nativos, a experiência evoca uma

alucinação comum a todos os participantes, pois expressa a própria mitologia do grupo. O

xamã lhe explica que ao experimentar o cogumelo “sua alma voltará à primeira alma, se

parecerá com a matéria incriada, se lançará no vazio e verá uma mancha que se converterá

em uma fenda. [...]. E desse nada sairá sua alma incriada”.

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Neste ponto, Dr. Jessup direciona sua busca para um estado de natureza primordial

como se fosse uma trilha fisiológica até nossa consciência primitiva: o sistema límbico, e

declara:

Todos procuramos isso tentando nos locupletarmos, entender a nós mesmos,

entrar em contato conosco, encarar nossa realidade, explicar, ampliar a nós

mesmos. Desde que dispensamos Deus, não temos nada para explicar esse horror

sem sentido chamado vida. Penso que o verdadeiro Eu, original, o primeiro Eu, é

mensurável, quantificável, tangível e encarnado, e eu vou achá-lo.

O nosso personagem participa, então, do ritual com o grupo indígena e experimenta

novas alucinações como luzes, animais, figuras fantasmagóricas, seres mascarados, areia,

esfinge, vê sua mulher e, no transe, acaba matando um lagarto. Na volta a Boston, leva a

poção preparada pelo xamã para ser analisada e talvez sintetizada.

Em Boston, experiências com a poção de cogumelos trazem novas alucinações,

sempre relacionadas ao universo cristão, como anjo, besta, e cruzes. Resolve, então,

combinar o seu uso com a imersão no tanque, numa sucessão de experimentos que o levam

a uma regressão dentro da espécie humana, como ele a entende. Suas alucinações o

conduzem a uma paisagem pré-histórica de savanas, bosques, montanhas, lagos e afirma

assistir ao aparecimento do primeiro humano, “pequeno, 1,30 metros, coberto de pelos

como um chimpanzé, mas ereto. Eu sou um deles. Lindo!” Suas alucinações apresentam

elementos de representação religiosa e da natureza. Em síntese, Dr. Jessup acredita que a

droga ativou a externalização de um Eu mais primitivo. Afirma:

Peço que faças um pequeno salto quântico comigo e aceites o conceito

anticonvencional de que outros estados de consciência são tão reais quanto o

estado atual [...]. Temos milhares de anos armazenados nesse computador

chamado ‘mente’. Temos trilhões de genes dormentes em nós, um passado

evolutivo inteiro. Talvez eu tenha esbarrado nisso.

A sucessão de experimentos dessa natureza produz regressões cada vez mais

radicais e violentas que se manifestam espontaneamente através de alterações físicas e

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sanguíneas, próprias de um símio, levando-o a um comportamento feroz contra animais e

pessoas.

No último dos seus experimentos Dr. Jessup regride à origem do cosmo e arrisca-se a

se perder e a se desintegrar na “viagem”, sendo resgatado por sua esposa. Conclui: “Eu

estava naquele momento último da terra que é o começo da vida. É o nada. Simples e

horroroso nada. A verdade final. Verdade é o que é transitório. É a vida humana que é real”.

Suas palavras expressam a valorização e o retorno ao estado de consciência rotineiro.

O que isso quer dizer? Indica, claramente, o abandono das ambições que o levaram,

por caminhos tão obtusos a buscar explicações à margem das construídas pelas convenções

sociais da sua cultura moderna, ocidental e hegemônica e, sub-repticiamente, uma

valorização dos processos evolutivos em direção à civilização. Porém, quero chamar a

atenção para o modo selvagem como a sua busca foi conduzida, sob o rótulo de

“experimentos científicos”. Mais ainda, caso tivesse seguido todos os rigores do método

científico, seria este o mais adequado para avaliar e ter contato com os estados alterados de

consciência induzidos?

Civilização

No seu artigo “O uso ameríndio do caapi” Pedro Luz (2004) reúne estudos sobre o

uso da Banisteriopsis caapi e espécies similares entre os povos nativos amazônicos,

investigando o simbolismo associado ao cipó presente na cosmologia desses grupos. Esta

planta de poder comparece, também, na etnobotânica nativa dos povos tratados pelo autor:

os de língua Pano, Aruák e Tukano. Nesse sentido, quero extrair deste texto elementos que

revelam as diversas dimensões do seu uso intimamente relacionadas ao conjunto cultural

aos quais pertence e, principalmente, ao modo como servem-se do cipó cercados por rituais

refinados, portadores de concepções éticas e morais que conduzem as experiências da

embriaguez e os estados especiais. Obviamente, o sentido conferido ao uso dessa planta -

chamada de nixi pae, tanto o cipó como a bebida resultante do seu preparo - está ligado à

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noção de natureza e cultura desses povos. Lagrou (1991, p. 28, apud LUZ, 2004, p.38) explica

que:

entre os Kaxinawá o conceito de natureza está próximo da noção grega de physis,

isto é, a natureza possui alma, vontade própria e uma ordem própria, sendo a

cultura apenas uma das possibilidades dessa ordem. Isso se revela no conceito

nativo de yuxin, que é visto não como algo sobrenatural ou sobre-humano, mas

como uma força vital permeando todo fenômeno vivo em qualquer parte do

mundo.

É, pois, no interior de cosmovisões como esta - claramente vitalista - que se dão as

experiências com substâncias propiciadoras de estados alterados de consciência. Tais

experiências têm o estatuto de sonhos para esse povo, que por sua vez, são portas de

entrada para a dimensão espiritual e o verdadeiro lado não ordinário da realidade, isto é,

uma outra realidade, poderosa e não cotidiana. As experiências com o consumo do nixi pae

permeiam as diversas dimensões da vida coletiva, conferindo-lhes um sentido espiritual,

como na atividade produtiva, definindo as peculiaridades do yuxin segundo os sexos, no

enfrentamento da morte e garantindo um bom destino no pós-mortem.

Entre os Yaminawa, essas substâncias fazem parte da noção de pessoa, que é

concebida como corpo, sombra e espírito. Em sonho ou sob o efeito da bebida shori, que

tem por base a Banisteriopsis caapi, o espírito ou força vital podem abandonar o corpo, mas

esses riscos são relevantes e desejados, pois por meio deles obtém-se conhecimento e

poder. Chamo a atenção para a importância dos cuidados rituais nessas experiências. Luz

(2004, p. 42) explica:

Embora também os sonhos deem acesso ao mundo dos espíritos, o fazem de

maneira descontrolada. Já o shori tomado no contexto ritual, dá acesso

controlado àquele mundo, uma vez que as visões são dirigidas pelos

procedimentos rituais e pelo canto. [...] Sob o efeito do shori os eventos narrados

nos mitos são testemunhados, a própria sequência narrativa dos mitos é como a

sequência narrativa de um sonho ou das visões induzidas pelo shori, que é

precisamente como os Yaminawa experimentam o mundo dos espíritos e,

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consequentemente, o tipo de lógica narrativa que eles esperam. [...] É o shori que

possibilita aos espíritos cantarem através do xamã. O canto xamânico, koshuiti,

que propicia a cura, está inextricavelmente ligado ao shori.

O consumo dessas substâncias propiciatórias de visões e sonhos é sempre cercado de

restrições culturais, como abstinência sexual, proibições alimentares e restrição no contato

com sangue, que expressam os valores morais e as virtudes compartilhados pelo grupo.

Também entre os Ashaninka, os seus mitos servem de alerta a esses cuidados, pois

descrevem circunstâncias da ineficácia do uso da Banisteriopsis caapi por personagens que

não observaram as interdições estipuladas pelo grupo.

Observam-se, nesses grupos, que os mitos que cercam o uso ritual de tais

beberagens comportam advertências éticas relacionadas aos poderes que tais substâncias

proporcionam, especialmente ao xamã. Em muitos casos, essa experiência de saber/poder

pode ser tenebrosa e há o medo de não saber retornar e enlouquecer. Daí a importância dos

mitos contidos nos cantos, do ritual e da condução do xamã.

Aliás, a importância do xamã é crucial, pois se podem encontrar “monstros” que

habitam o outro mundo. Com o seu canto ele oferece uma narrativa que organiza as visões

para os diferentes participantes da sessão. Além disso, na interação com os seres da outra

realidade, o xamã não só troca de corpo, como também de linguagem. Sobre os Airo-pai, Luz

(2004, p. 50) explica:

Essa troca de corpo implica numa troca de linguagem, uma vez que os seres da

outra realidade têm sua própria língua. Essa linguagem ritual usa o vocabulário

normal Airo-pai com formas gramaticais específicas e com as palavras possuindo

significados diferentes.

O preparo, a dosagem e as explicações do seu uso são, também, tarefas do xamã, o

que envolve uma hierarquia e uma pedagogia compartilhadas coletivamente. Para Luz

(2004, p. 60), “O xamã é, portanto, o mediador, um intérprete da experiência, é ele que

domina o código que dá inteligibilidade às visões, sendo sua fala apaziguadora, uma vez que

esta revela que as visões são interpretáveis [...]”.

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O uso dessas substâncias se dá por vários motivos, como entrar em contato com a

dimensão espiritual, com os deuses, com os ancestrais, curar males, retornar ao princípio do

mundo, preparar para a morte, obter conhecimento e poder. O propósito é parte da

cosmovisão do grupo e sempre realizado dentro de rituais.

Quero chamar a atenção para a presença regular, entre esses grupos, da busca por

um tempo primordial ou um estado de natureza intocado pela cultura.

Ao ingerir o caapi, aquele que o fez é transportado ao tempo e ao lugar de

origem, onde o Sol e as pessoas ainda não estavam separados. Pela dança, pelo

canto e pelos encantamentos, eles refazem a grande viagem primordial da sucuri

como uma nova gênese do mundo. Ao fim da festa o mundo está outra vez forte e

novo como nos primeiros dias da criação (LUZ, 2004, p.57).

Assim, tais substâncias fazem parte da esfera sagrada dessas coletividades e o seu

uso se dá acompanhado de rituais elaborados e instituídos, e deles se extraem explicações

para o destino após a morte, conhecimento verdadeiro, princípios morais e recursos

terapêuticos.

Experiências de êxtase e embriaguez foram acompanhadas e pesquisadas em outro

contexto por Philippe de Felice, professor, sociólogo e teólogo protestante no início do

século XX. Ele se dedicou a cuidar de alcoólatras e procurou entender por que, apesar dos

danos que esta bebida causa à saúde e à vida social dos seus consumidores, eles se viciam e

não abandonam o seu uso. O resultado do seu empenho está no livro Venenos sagrados.

Ebriedad divina: ensayo sobre algunas formas inferiores de la mística ([1936] 2010). Ao longo

de suas pesquisas, Felice identifica uma íntima relação entre a embriaguez e o êxtase místico

em diversas religiões. Entre os sufis, o vinho está sempre presente na busca da união

perfeita com a divindade. O mesmo acontece entre os místicos judeus que creem em “un

vino anterior a la creación del mundo y conservado en el paraíso” (p.15). Imagens

semelhantes são encontradas no cristianismo, especialmente na ação do Espírito Santo e na

Última Ceia. Ao lado de outras expressões religiosas, essas analogias levam o autor afirmar

que: “De hecho, las perturbaciones de orden psicológico e fisiológico que preceden y

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acompañan a los éxtasis místicos no dejan de tener analogias com las que provoca el abuso

de bebidas alcohólicas”. (FELICE, 2010, p. 22)

Porém, Felice não se prende apenas ao álcool e explora tais conexões em outras

substâncias como o ópio, a coca, a ayahuasca, o tabaco, o hachiche, a maconha, a ibogana, o

peyote e o soma, entre outras, tratando também das toxicomanias modernas. Em todos os

casos afirma que a resposta deve ser buscada no terreno religioso, seriam substâncias

enteógenas, aquelas que proporcionam meios de comunicação com o sagrado. Sobre estes

“ebrios de Dios” ele diz:

¿que son en realidad sino la experiência de uma evasión y uma transcendencia de

si mismo, fruto de la comunión inmediata, com la ayuda de ciertas sustâncias,

com un mundo misterioso de energias sobrehumanas? Es impossíble ignorar el

caráter místico de uma experiência como ésta (p. 65).

Chamo a atenção para o pressuposto deste autor: para ele, a busca do êxtase, seja

qual for, atende à necessidade de que o homem sente de transcender a si mesmo (FELICE,

2010, p. 25). Seria um pressuposto antropológico.

Além disso, Felice oferece exemplos de que a obtenção de estados místicos se faz

dentro de uma ordem, seguindo certos procedimentos ou rituais. Cita os ensinamentos de

Santa Tereza para quem, na obtenção do êxtase ou do matrimônio espiritual, a alma deve

superar três estados: a oração de quietude, a oração de união e a oração de elevação. São

experiências de transcendência, mas que reverberam no corpo. O autor explica:

Santa Tereza há podido advertir, recordando sus próprias experiências, que tal

estado psíquico entraña algunas perturbaciones orgânicas entre las que destacam

una relentización de la respiración y de la circulación, la neblina que inunda los

ojos, el entumecimiento de los miembros , la torpeza de la lengua y, em general,

uma espécie de plácida somnolencia (p. 22).

Certamente, estas sensações são muito semelhantes às que o corpo experimenta

com a ingestão de substâncias psicoativas. São próprias de estados místicos. Recordo, então,

o pioneiro artigo do antropólogo Marcel Mauss, Técnicas corporais onde, citando práticas

indianas e chinesas muito antigas, afirma: “Este estudo sócio-psicobiológico da mística deve

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ser feito. Penso que há necessariamente meios biológicos de entrar em ‘comunicação com

Deus’” (1974, p. 233).

Luz lembra, ao final do seu artigo, que ao lado da estrutura ritual e das expectativas

culturais deve ser considerada, também, a ação das moléculas químicas (princípios ativos)

das plantas nos corpos, o que daria margem para negociação do indivíduo em relação às

crenças coletivas. Nesta mesma direção, Camargo (2014, p. 226), ao tratar da medicina

popular, alerta para

a presença elementos de ordem material e imaterial que passam a compor o

conjunto ritualístico da cura, desempenhando cada um duplo papel, embora

complementares: papel sacral e papel funcional. [...] No papel sacral, percebe-se a

prevalência do pensamento subjetivo de explicações passíveis de diferentes

interpretações, enquanto, no papel funcional, prevalece o pensamento passível

de verificação empírica.

A autora está chamando a atenção para o valor simbólico compartilhado

coletivamente e para os componentes químicos das plantas medicinais, respectivamente.

Isto é, o corpo sofreria uma reação bioquímica que é interpretada simbolicamente nos

rituais de cura e que, aqui, quero estender aos usos de substâncias psicoativas em rituais

xamânicos e às experiências místicas em geral.

Conclusão e alguns fios soltos

Civilização e barbárie são rótulos “civilizadores” para lidar com o outro e atendem a

situações de domínio colonial. Civilização também está ligada à ideia de conhecimento, mas,

sobretudo, ao da modernidade: a ciência. Uma das características do conhecimento

científico é avaliar os outros conhecimentos a partir de uma escala própria. Outra

característica é ser hegemônico, ou seja, não considerar legítimas outras formas de saber e

outros objetos fora da sua jurisdição. (ALBUQUERQUE, 2003)

Esta é a disposição do nosso cientista do filme: fundamentado no poder do seu saber

científico, atira-se, sem cuidados, em uma experiência alucinógena desconhecida. Procura,

confusamente, resgatar a religiosidade perdida da infância e acredita poder encontrá-la

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nesse auto-experimento. Mais adiante acrescenta o desejo de atingir o estado de natureza

primordial que lhe permitiria “medir e quantificar” o verdadeiro Eu. Nesse processo, seus

esforços são uma sucessão de equívocos e de atos prepotentes de imposição da linguagem

científica e, ao mesmo tempo, de desrespeito aos ritos do método científico e desprezo aos

conhecimentos de tradições culturais familiarizadas com as substâncias psicoativas. Ao se

apropriar do cogumelo e incluí-lo na sua imersão no tanque de água, viola o sentido dado ao

seu uso, os conhecimentos transmitidos pelo xamã e o ritual que cerca essa experiência

mística. Em vez de construir um objeto, ele o arromba, desconsiderando outros modos de

acesso a essa experiência, outras epistemologias. O resultado, compatível com seus

procedimentos, é uma volta a um estado selvagem perigosamente violento e sem controle

algum. Do ponto de vista civilizatório, seu empenho, bem como os resultados a que chegou,

cabem dentro do escopo da noção de barbárie.

Já no âmbito do xamanismo, como foi visto, as plantas de poder fazem parte dos

modos de agir, sentir e pensar das populações envolvidas, e o seu uso assenta-se em uma

cosmovisão compartilhada pelos membros do grupo presente nos seus mitos e nos seus

rituais. A complexidade que cerca as experiências místicas se expressa de diversas maneiras:

o saber do xamã, a sua condução do ritual, os ensinamentos morais transmitidos pela

mitologia, o respeito aos tabus alimentares, sexuais entre outros. Mas quero destacar a

troca de linguagem para lidar com o mundo sagrado. Esta troca significa o reconhecimento

dos limites da linguagem cotidiana que, como toda linguagem, tem sua particularidade.

Como afirma Luz (2004, p. 66), “Em relação à Banisteriopsis caapi há fatos que só ela revela

e que estão para além das palavras” (66). Assim, ao mudar o sentido das palavras o xamã

cria um outro mundo, o mundo da transcendência no qual, pelo êxtase, pode-se obter

poder, conhecimento, cura dos males, explicações para a morte e uma boa viagem ao

mundo dos mortos. Enfim, modos civilizados de lidar com o poder das plantas.

Para finalizar, apresento a hipótese da presença de substâncias psicoativas na origem

das experiências místicas. Esta ideia não é nova. Terence McKenna (1995) já a apresentou

em seu livro O Alimento dos deuses. Ela expõe de modo inegável a importância da mediação

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do corpo nos contatos com o sagrado. Então, pergunto: o que significa essa saudade de um

estado de natureza, anterior à cultura, que parece comparecer em diferentes situações e

contextos históricos? Será que as inúmeras imagens e sublimações do corpo que se

encontram nas religiões do presente poderiam nos contar alguma coisa daquelas

experiências primordiais e a sua domesticação pelas igrejas?

Referências

ALBUQUERQUE, Leila Marrach Basto de. Sujeito e realidade na ciência moderna. São Paulo:

Annablume, 2003

CAMARGO, Maria Thereza Lemos de Arruda. As plantas medicinais e o sagrado: a

etnofamarcobotânica em uma revisão historiográfica da medicina popular no Brasil. São

Paulo: Ícone, 2014.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar,

1990.

ESTEBAN, Javier. Los intoxicados de Dios y el lobo blanco. In: FELICE, Philippe de. Venenos

sagrados. Embriaguez divina: ensayo sobre algunas formas inferiores de la mística. Madrid:

Amargord, 2010.

FELICE, Philippe de. Venenos sagrados. Embriaguez divina: ensayo sobre algunas formas

inferiores de la mística. Madrid: Amargord, 2010.

LUZ, Pedro. O uso ameríndio do caapi.In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAUJO, Wladimyr Sena

(orgs.). O uso ritual da Ayauasca. Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo Fapesp, 2002.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: E.P.U.; EDUSP, 1974. Vol. II.

McKENNA, Terence. O alimento dos deuses. Rio de Janeiro: Record, 1995.

MONTERO, Rosa. A louca da casa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

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RUSSEL, Ken. Viagens alucinantes (filme - DVD, legendado). Burbank, CA, Estados Unidos:

Warner Brothers, 1980.