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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E ARQUEOLOGIA Trabalho de Conclusão de Curso Entre a agroecologia e a fumicultura: uma etnografia sobre trabalho na terra, cosmologias e pertencimentos entre camponeses pomeranos MAURÍCIO SCHNEIDER Pelotas, 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E ARQUEOLOGIA

Trabalho de Conclusão de Curso

Entre a agroecologia e a fumicultura: uma etnografia sobre trabalho na terra, cosmologias e pertencimentos entre

camponeses pomeranos

MAURÍCIO SCHNEIDER

Pelotas, 2013

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MAURÍCIO SCHNEIDER

Entre a agroecologia e a fumicultura: uma etnografia sobre trabalho na terra, cosmologias e pertencimentos entre

camponeses pomeranos

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Bacharelado em Antropologia do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas, como requisito para obtenção de título de Bacharel em Antropologia.

Orientadora: Profª Drª Renata Menasche

Pelotas, 2013

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Banca Examinadora:

_______________________________________

Profª Drª Renata Menasche (Orientadora)

_______________________________________

Prof Dr Mártin César Tempass

_______________________________________

Profª Drª Cláudia Turra Magni

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Agradecimentos

Agradeço à minha família, sem a qual não teria qualquer valor. A meu pai,

José Antônio, que mesmo distante nunca deixou de manter seu interesse e incentivo

sobre meu desenvolvimento. À minha mãe, Rosa, por seus ouvidos, ideias e

estímulos – esse trabalho também lhe pertence um pouco. À minha tia, Su, pelo

apoio incondicional, inclusive trabalhando na revisão de todo o texto. A meus irmãos,

Marion e Rodrigo, por tudo o que já vivemos juntos.

Aos colegas e amigos com os quais compartilho uma trajetória de já mais de

quatro anos, com longos desafios e percalços, mas também com muitas alegrias e

vitórias: Andressa, Alessandro, Ariane, Bruna, Eliene (Lica), Isabel, Helô, Patrícia

Roberta, Sérgio e Vinícius. E à amiga Juliane, companheira de todas as horas.

Aos colegas da equipe Saberes e Sabores da Colônia, Carmen, Evander,

Danielle, Fabiana e Losane, pela cumplicidade e parceria que em diferentes

momentos foram essenciais para a continuidade deste trabalho.

À Carmen Waskievicz e Hamilton Bittencourt, respectivamente do

Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais (LEAA) e do Laboratório de Ensino,

Pesquisa e Produção em Antropologia da Imagem e do Som (LEPPAIS), ambos

vinculados ao Instituto de Ciências Humanas da UFPel, por seu auxilio com os

mapas e as imagens aqui contidos.

Agradeço também às conversas inspiradoras com Patrícia Pinheiro que,

juntamente com a leitura de seu trabalho, foram de fundamental importância para

que eu enxergasse muitos fios a serem puxados, caminhos a percorrer e

potencialidades a explorar nesta pesquisa.

À minha eterna orientadora, Renata, por sua incansável generosidade,

paciência, incentivo e confiança.

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Aos mestres antropólogos e arqueólogos, os professores Adriane, Claudia,

Claudio, Flávia, Francisco, Lori, Lúcio, Mártin, Renata e Rogério, que abriram as

portas para esse fantástico mundo da Antropologia e que com sua sabedoria

fornecem as chaves para mudarmos a frequência de nossos olhares.

Aos colegas e professores da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

(UTAD), que me receberam por ocasião do estágio de mobilidade acadêmica de seis

meses em Portugal. Em especial, aos professores Xerardo Pereiro Pérez e Artur

Cristóvão. E a meu grande amigo Márcio Faria Dias, que, em terras distantes,

serviu-me bem como irmão.

Por fim, não poderia deixar de registrar meu agradecimento mais do que

especial à família Mühlemberg, que, mesmo sem intenção, me ensinou a fazer

etnografia, apresentando sua rotina, seu cotidiano, que para mim representava um

mundo completamente novo. Ao longo do tempo de pesquisa, senti essa família

também como um pouco minha. Só tenho a agradecer por sua hospitalidade.

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Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado

E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Construção – Chico Buarque

A cada história que temos a chance de recontar,

alguém deixa um pouco de ser esquecido.

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Resumo No mundo contemporâneo, o tema da alimentação ecológica tem sido cada vez mais discutido. Muitos estudos enfatizam aspectos técnicos e econômicos e colocam a produção agroecológica como oposta àquela convencional, que faz uso intensivo de agroquímicos. Este trabalho apresenta a trajetória de uma família de agricultores ecológicos – camponeses de origem pomerana – inserida em uma comunidade em que a maior parte dos agricultores trabalha com a produção de fumo, em uma localidade rural do município de São Lourenço do Sul, Rio Grande do Sul. A coleta de dados deu-se a partir de etnografia, realizada ao longo do ano de 2012. A partir da atenção às diferenças, especificidades e peculiaridades da família que se constituiu em principal interlocutora da pesquisa, são identificados elementos de um substrato cultural comum, que conecta família e comunidade. A análise mostra, assim, que tradição, religiosidade, cosmologias e significados do trabalho na terra dão base, mais que a rupturas entre dois modelos de produção, a elos de ligação entre aqueles que os praticam. Palavras-chave: campesinato; comunidade rural; sociabilidade; alimentação; tecnologia; família.

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Lista de abreviaturas e siglas

CAPA – Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor

CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

COOPAR – Cooperativa Mista de Pequenos Agricultores da Região Sul

EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural

EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

FAPERGS – Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul

FETRAF-Sul – Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul

GEPAC – Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura

LEAA – Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais

LEPPAIS – Laboratório de Ensino, Pesquisa e Produção em Antropologia da

Imagem e do Som

PAA – Programa de Aquisição de Alimentos

SAFs – Sistemas Agroflorestais

UFPel – Universidade Federal de Pelotas

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Sumário

I – Introdução............................................................................................................10

1.1 A Serra dos Tapes e o processo de colonização....................................12

1.2 Os colonos e o trabalho na terra: entre a agroecologia e a fumicultura..14

1.3 Descobrindo o rural.................................................................................18

II – Construindo o campo: alguns pressupostos teórico-metodológicos..........20

2.1 A história de Menocchio, um moleiro friulano..........................................23

2.2 Pegando na enxada.................................................................................27

III – A família e suas narrativas...............................................................................30

3.1 A família de Seu Roni..............................................................................30

3.2 Agroecologia e o trabalho na terra..........................................................35

3.3 Sobre cosmologias..................................................................................42

IV – Entre o individual e o coletivo: rupturas e continuidades............................46

4.1 A rede de vizinhança e parentesco.........................................................46

4.2 O caldo pomerano...................................................................................48

4.3 Comunidades agonísticas.......................................................................52

V – Considerações finais.........................................................................................56

VI – Referências........................................................................................................59

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I – Introdução

Os últimos raios de sol encontram as grandes janelas verdes do prédio do

Liberdade. Seu Lopes e sua esposa arrumam o bar, para esperar o novo público.

Em pouco tempo, aquele espaço se tornaria palco de encontro de instrumentistas,

cantores, dançarinos, apreciadores de música e boêmios. Uma roda de choro estava

por se formar no centro da cidade de Pelotas.

Instantes antes, entretanto, naquele mesmo lugar, o som que predominava

não era de música, mas sim oriundo de conversas em idioma pomerano. As paradas

dos ônibus que ligam o centro urbano às colônias, área rural do município, situam-se

em frente ao bar e nos arredores. Durante o dia, esses espaços são reduto de

camponeses, descendentes de imigrantes europeus que colonizaram a região no

século XIX. São franceses, italianos, alemães, pomeranos.

O flaneur1 continua seu trajeto. A poucos metros dali, ele avista, presa em

um antigo casarão de esquina (possivelmente construído por um rico charqueador

do passado), a placa do Restaurante Buchweitz. O prédio carrega agora o azul e

branco dos estandartes da Pomerânia. Lá dentro, enquanto aguardam o horário do

último ônibus para suas localidades, senhoras conversam ao fundo do salão,

homens bebem cerveja junto ao balcão e, em tom elevado, proferem frases –

incompreensíveis aos ouvidos do flaneur – no pomerano que trouxeram de casa.

Assim como os dois estabelecimentos mencionados, outros tantos se

espalham pela mesma região da urbe. São bares e restaurantes circundados por

paradas de ônibus, que produzem um continuum no espaço. É um território formado

por pessoas que vem do rural. Na cidade, eles demandam produtos (roupas,

equipamentos, insumos etc.) e serviços (bancos, hospitais) de que não dispõem no

meio onde vivem. Mas ali também reencontram parentes e amigos que migraram

para a zona urbana.

É sentado à mesa junto a esses camponeses, entre buzinas de carros

apressados que irrompem do lado de fora e conversas levadas a cabo em um

português com sotaque, que ele começa a adentrar em um novo mundo, a perceber

1 O flaneur é uma personagem criada por Walter Benjamin como recurso, justamente por sua

capacidade de flanar pelos contextos urbanos, para compreender as relações sociais na cidade de

Paris (Bolle, 2000).

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nuances de uma cultura diferente da sua. Partilha de suas comidas e de suas

histórias.

Esses bares e restaurantes estão concentrados em uma espécie de mancha

no espaço urbano (como proposto por Magnani, 2002). Servem de porta de entrada

da cidade aos camponeses. Mas isso não apenas em sentido literal, dada sua

relação com as paradas de ônibus. Culturalmente, esses estabelecimentos

conformam uma espécie de território, a partir de onde as pessoas se espalham para

outros destinos, na cidade. Mas não se confundem com outros estabelecimentos

que servem refeições coloniais (cafés e restaurantes), que, destinados a sujeitos

urbanos, remetem a um rural idealizado.

O flaneur se depara, assim, com um pedaço da colônia no centro da cidade.

Percebe que, além de tantos outros grupos que conformam a pluralidade cultural da

região, Pelotas também é uma cidade camponesa.

* * *

Em meio ao trânsito de fim de tarde, o último ônibus do dia toma seu lugar.

Seu Buchweitz fecha as portas do restaurante. Voltando-se para o Liberdade, o

flaneur vê agora um caminhão parado à porta e um homem de uniforme a carregar

caixas de cerveja para o interior do bar. Em poucas horas, músicos chegariam com

seus violões, mulheres em seus vestidos de festa, homens com seus chapéus cor

de marfim, levando entre os dedos seus cigarros acesos.

Para os colonos, a cidade ficou para trás. De volta a suas propriedades, na

Serra dos Tapes, é hora de jantar, próximo ao fogão à lenha que aquece a casa no

inverno, e preparar-se para dormir. A manhã que se aproxima, como todas as

outras, traz consigo muito trabalho pela frente.

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1.1 A Serra dos Tapes e o processo de colonização

A Serra do Tapes está inserida no Planalto Uruguaio Sul-rio-grandense ou

Escudo Cristalino Sul-rio-grandense, compreendendo o compartimento de relevo ao

sul do rio Camaquã. Essa unidade de paisagem apresenta variações de altitude de

100 a 400 metros, com relevos heterogêneos marcados por afloramentos rochosos,

áreas de deposição mais rebaixadas e com relevo aplainado, apresentando ainda

um intenso processo de dissecação por erosão superficial (Verdum; Basso;

Suertegaray, 2004 apud Salamoni e Waskievicz, 2013).

A Serra dos Tapes compreende uma parcela dos municípios de Canguçu,

São Lourenço do Sul e Pelotas, além de Turuçu, Arroio do Padre, Capão do Leão e

Morro Redondo. Os três primeiros municípios, entretanto, constituem o foco dos

estudos do grupo de pesquisas a que este trabalho se vincula, como será explicitado

adiante.

Cabe ressaltar que os municípios de São Lourenço do Sul e Pelotas

assentam parte de seus territórios também sobre Planícies ou Terras Baixas

Costeiras, correspondendo à parte superior da Bacia Sedimentar de Pelotas,

próxima ao sistema lagunar. Assim, as variações do fundo do mar influenciam o

desenvolvimento da planície costeira, haja vistos os ambientes costeiros de

deposição originários das migrações de linhas de praia em escala geológica

(Salamoni e Waskievicz, 2013).

Conforme Cerqueira (2011 apud Salamoni e Waskievicz, 2013), foi ao

correlacionaram-se as características físicas do lugar ao processo histórico de

ocupação que se deu o surgimento daquilo que conhecemos como Serra dos Tapes.

A denominação da região está vinculada a seus primeiros habitantes, os índios

Tapes, pertencentes à família linguística Tupi Guarani.

Durante o século XIX, a principal atividade econômica da região de Pelotas

era a produção de charque. As ocupações territoriais voltadas a essa atividade

destinavam-se às terras baixas da Planície Costeira. A Serra dos Tapes – também

por seu caráter inadequado ao desenvolvimento da pecuária – tinha ainda sua

ocupação dispersa, dotada de um caráter complementar, exercendo uma função de

“fundo territorial” das grandes propriedades pecuaristas-charqueadoras (Salamoni e

Waskievicz, 2013).

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Seguindo-se à presença indígena, a Serra dos Tapes foi ocupada por

escravos das charqueadas – que, no período de entressafra do charque, cultivavam

alimentos e extraíam madeira – e, posteriormente, por seus descendentes libertos

que, por meio da posse, constituíram pequenas propriedades policultoras (Salamoni

e Waskievicz, 2013).

A partir de 1848, a criação de colônias agrícolas formadas por imigrantes

europeus não ibéricos passou a ser incentivada pelo Império2, que cedeu terras para

tal fim. No início, a medida não agradou muito aos latifundiários. Mais tarde,

contudo, muitos desses proprietários de terras acabaram aderindo à política de

colonização, parcelando porções de suas propriedades não propícias ao

desenvolvimento da pecuária – áreas de matas e de relevo mais íngreme. Assim, no

sul do estado do Rio Grande do Sul, a colonização também esteve amparada em

iniciativas particulares, ainda que os Governos Imperial e Provincial tivessem o

controle oficial sobre o processo (Salamoni e Waskievicz, 2013).

Chegaram, assim, os primeiros colonos europeus à zona da mata da Serra

dos Tapes. Eram italianos, alemães, pomeranos, franceses e irlandeses.

Estabeleceram-se em pequenas propriedades policultoras baseadas na mão de obra

familiar.

Ao chegarem aos lotes coloniais, derrubaram as matas nativas e

implementaram a rotação de terras, caracterizando um sistema primitivo de cultivo,

também denominado de “roça” (Waibel, 1979 apud Salamoni e Waskievicz, 2013),

iniciando a conformação da atual paisagem desta região. Antes mesmo de

começarem a comercializar a produção de alimentos, a venda da madeira extraída

lhes garantiu o rendimento financeiro, nos primeiros tempos.

2 Segundo Seyferth (2011), a colonização vinculada à imigração estava relacionada à necessidade de

povoamento do território como forma de resolver a questão indígena, consolidar as fronteiras internacionais e implantar um modelo de agricultura diferenciado da grande propriedade monocultora e baseado no trabalho escravo, predominante no país. Dois temas associados começavam a ser amplamente discutidos no Brasil: o fim do tráfico de escravos africanos e a regulamentação da propriedade de terra. Após a formulação da Lei de Terras, em 1850, a responsabilidade pela colonização passou a ser dividida entre o governo imperial e os governos provinciais, pois uma parte das terras devolutas passou ao controle das províncias interessadas nessa forma de ocupação do território. Na mesma época, os projetos de colonização também foram abertos à iniciativa privada, principalmente no sul do Brasil. O novo modelo de exploração agrícola, entretanto, ficou sempre à margem das grandes propriedades monocultoras, formando o que os geógrafos, dado seu caráter de povoamento, chamariam de fronteira ou zona pioneira.

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Entretanto, diferentemente do que desejavam os defensores da política

imigrantista, orientados por um projeto de branqueamento da população3,

culturalmente os imigrantes não foram assimilados por completo pela sociedade

envolvente. Ao contrário, reivindicaram sua origem diferenciada da sociedade

nacional (Seyferth, 1990). Embora ressaltassem suas identidades particulares

anteriores à migração (de italianos, pomeranos, franceses, etc.), conformaram algo

que Seyferth (1994) viria a chamar de cultura camponesa compartilhada.

Em relação aos alemães e pomeranos, embora fossem tomados pela

sociedade envolvente como tendo uma só origem, alemã, também assinalaram suas

diferenças. Nos últimos anos, sobretudo, evidencia-se um esforço por parte dos

descendentes pomeranos em afirmar de forma mais contundente sua identidade. À

época da travessia para o Brasil, a Alemanha ainda não havia sido unificada. A

Pomerânia, até o século XIX, pertencia à província da Prússia, sendo formada pela

região que, após a constituição do Estado Alemão, seria repartida entre os domínios

da Polônia e da Alemanha.

1.2 Os colonos e o trabalho na terra: entre a agroecologia e a fumicultura

Atualmente, na região compreendida pelos municípios de Pelotas, São

Lourenço do Sul e Canguçu observam-se, em razão dos relevos e do povoamento

histórico, dois contextos agropecuários distintos. A planície segue sendo ocupada

pelas grandes propriedades, onde as principais atividades são a criação do gado

bovino de corte e o cultivo do arroz. A Serra dos Tapes, com pequenas propriedades

de colonos descendentes de imigrantes europeus e comunidades negras rurais, tem

por mais relevante as produções de grãos, pêssego, leite, suínos, fumo, além de

cultivos alimentares, também destinados ao autoconsumo das famílias rurais.

No município de São Lourenço do Sul, onde se situam as localidades em

que esta pesquisa foi realizada, reportando-se ao IBGE (2007) Salamoni e

Waskievicz (2013) apontam que se destacam os cultivos de arroz irrigado, milho,

3 Conforme Seyferth (1985), este era outro dos objetivos da política imigratória, baseada nas teorias

científicas da época – hoje consideradas racistas –, que entendiam como única possibilidade de tornar o Brasil uma civilização mais avançada, a redução da miscigenação com os negros e o

aumento dos imigrantes europeus, sobretudo alemães.

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soja e fumo. A pecuária é representada pelo gado bovino de corte e vacas de

ordenha.

Hoje em dia, na paisagem da Serra dos Tapes é grande a presença de

plantações de fumo. A concorrência entre grandes e pequenos produtores de

gêneros alimentícios (categorias êmicas referentes a produções mais e menos

intensivas, que correspondem a custos de produção respectivamente menos e mais

elevados e, em decorrência, a rentabilidades maior e menor), que comumente pende

para o lado dos primeiros, fez com que muitos agricultores familiares assumissem a

fumicultura como principal atividade na terra, abandonando parcial ou

completamente a produção de alimentos. Como traz Pinheiro (2010):

Em Pelotas, a implantação do cultivo do fumo ocorreu na década de 1960, bem como nos municípios de Canguçu e São Lourenço. A dificuldade em comercializar produtos tradicionalmente cultivados, como a cebola, a batata inglesa e o milho (e mais recentemente isso também se aplica ao pêssego) estimulou o crescimento da fumicultura (Agostinello et al., 2000 apud Pinheiro, 2010, p.167).

A autora citada comenta ainda que, no Rio Grande do Sul – e, poderíamos

acrescentar, em todo o Sul do Brasil –, o cultivo de fumo é realizado

costumeiramente em propriedades familiares (Pinheiro, 2010). “O Vale do Rio Pardo

é o maior produtor do estado, com 39,2% da produção gaúcha, e é onde estão

também localizadas importantes indústrias de transformação e beneficiamento”

(Pinheiro, 2010, p.168). Na região da Serra dos Tapes, essa é uma atividade que

tem se expandido.

Muitas famílias de colonos aderiram ao cultivo de fumo, sendo que parte

delas seguiu produzindo alimentos, em boa medida praticando a chamada

agricultura convencional – caracterizadas pela utilização de insumos químicos e

ausência de restrições às sementes transgênicas. Mas outra parcela optou pela

agricultura de base ecológica.

Como bem identificou Pinheiro (2010), para muitos pesquisadores e técnicos

agrícolas os dois tipos de práticas – agricultura ecológica e fumicultura – são

colocados em polos opostos, um deles primando pela saúde de produtores e

consumidores, pelo respeito à terra e à natureza; o outro visando apenas o lucro,

sem preocupar-se com valores de sustentabilidade.

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Contudo, as duas formas de trabalhar a terra podem não estar tão

dissociadas como supõem – ou talvez desejem – alguns. No cotidiano dessas

famílias, ao contrário, pode-se perceber que essas duas maneiras do fazer agrícola

coexistem, muitas vezes em uma mesma propriedade. Para ilustrar essa

coexistência, basta observar que, em uma rede de vizinhança e parentesco,

fumicultores compram alimentos de produtores ecológicos e esses, por vezes, os

auxiliam no trabalho com fumo – situação particularmente comum em contextos de

adversidades climáticas, que demandam ação rápida e trabalho intenso. Ocorre,

ainda, que em uma mesma propriedade conjuguem-se produção ecológica de

alimentos e produção de fumo orgânico.

Nesse quadro, o presente estudo vem apresentar e discutir os resultados de

pesquisa etnográfica realizada em duas localidades rurais inseridas na região da

Serra dos Tapes, município de São Lourenço do Sul: Butiá e Coxilha Negra. Trata-

se de um contexto em que uma única família de agricultores ecológicos convive com

uma vizinhança que é, em sua quase totalidade, produtora de fumo. As relações

com as redes de parentesco e de vizinhança, a participação na congregação

religiosa – Igreja Luterana – e o pertencimento étnico a que se vinculam – colonos

pomeranos – orientam muitas de suas práticas, valores e visões de mundo e os

aproximam, mais do que afastam, dos produtores que seguem outros modelos de

trabalho na terra.

Como veremos, o trabalho indica um deslocamento da dimensão técnica

como conformadora dos alinhamentos na localidade, permeáveis a todo um campo

de significados vinculados a culturas e identidades. A lavoura camponesa, muito

além de sua materialidade, é aqui entendida como associada a concepções

religiosas, práticas mágicas e visões de mundo. Segundo ensinam Woortmann e

Woortmann (1997, p.132; 166), o prático e o simbólico se fundem no processo de

trabalho: “a prática da lavoura é informada por um modelo cosmológico”.

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Figura 01: Mapa localizando a região da Serra dos Tapes.

Figura 02: Mapa situando as localidades de Butiá e Coxilha Negra, município de São

Lourenço do Sul.

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1.3 Descobrindo o rural

Ingressei no curso de Antropologia em 2008, sem que nunca antes tivesse

estado em uma lavoura, propriedade rural ou mesmo estrada da colônia. O pouco

contato que havia tido com o “pra fora”, fora quando criança, pelos interiores da

região da campanha, Pedras Altas e Pinheiro Machado, de onde minha família é

oriunda. Qual não foi minha surpresa, quando por ocasião do primeiro trabalho

etnográfico (realizado para a disciplina de antropologia da alimentação), me deparei

com um restaurante no centro da cidade de Pelotas em que moradores da zona

rural, descendentes de imigrantes, frequentavam e se comunicavam

predominantemente em uma língua estrangeira – cinco gerações e 150 anos após

seus antepassados terem chegado a esta terra.

Desde então, um mundo novo se descortinou para mim. Fui ficando cada

vez mais instigado a descobrir quem são essas pessoas, o que fazem, no que

pensam e como se colocam no mundo.

Como bolsista de iniciação científica4, participei de alguns Projetos de

Pesquisa dedicados a estudar esses temas, principalmente referentes à alimentação

e ao rural a partir de uma perspectiva relacionada à cultura. Tive a oportunidade,

assim, de interagir e trocar experiências com outros pesquisadores de diferentes

níveis de formação – colegas de equipe de pesquisa – dedicados ao estudo de

temáticas afins, o que também contribuiu de forma significativa para o andamento

deste trabalho.

Realizei alguns trabalhos que julgo valer a pena mencionar: além dos

pedaços rurais (restaurantes no centro da cidade de Pelotas, frequentados por

colonos), estudei também, juntamente com uma colega, um restaurante na zona

rural, em uma comunidade predominantemente de colonização italiana, que serve

comidas coloniais, para sujeitos urbanos.

Já em São Lourenço do Sul, em uma localidade de forte presença

pomerana, Coxilha do Barão, estudei o uso de plantas medicinais e a produção de

uma bebida caracteristicamente pomerana, o chá de maio, ou maishnaps (composta

por cachaça e 31 ervas diferentes). Por fim, conheci a família, também pomerana,

de agricultores ecológicos que abriu as portas de sua casa e me ensinou– muitas

4 Cabe agradecer ao CNPq e à Fapergs pelo apoio na concessão de bolsas ao longo do curso, o que

em muito contribuiu para o desenvolvimento das atividades de pesquisa.

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vezes mais com atitudes do que com palavras – que, de fato, outras formas de

encarar a vida são possíveis.

De alguma forma este trabalho é fruto de todas as experiências que

acumulei desde o início do curso e de todos os estudos realizados. São descobertas

que, para aqueles já familiarizados com esses contextos, talvez possam parecer de

certa obviedade, mas que, justamente por terem sido realizadas por um sujeito

urbano (que descobriu o rural ao mesmo tempo em que descobria a Antropologia),

podem oferecer, nesta narrativa, outra perspectiva para o assunto.

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II – Construindo o campo: alguns pressupostos teórico-metodológicos

O presente trabalho, como já mencionado, é fruto de estudo de caráter

etnográfico, realizado no decorrer do ano de 2012, nas localidades de Butiá e

Coxilha Negra, zona rural do município de São Lourenço do Sul, Rio Grande do Sul.

Este estudo está inserido em uma agenda mais ampla de pesquisas, levada

a cabo pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura (GEPAC),

vinculado ao Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, da Universidade Federal

de Pelotas (LEAA/UFPel). No que se refere à articulação com este estudo, são dois

os projetos de pesquisa relacionados: Cultura, patrimônio e segurança alimentar

entre famílias rurais: etnografias de casos significativos (CNPq 559565/2010-0) e

Saberes e Sabores da Colônia: modos de vida e patrimônio alimentar entre

pomeranos no Brasil meridional (FAPERGS 1018354/2010-6), ambos coordenados

pela Profª Drª Renata Menasche.

Este estudo foi realizado em articulação com o projeto de extensão

Construção participativa de sistemas agroflorestais sucessionais no território Sul, RS

(Encosta da Serra do Sudeste), coordenado pelo Dr. Joel Cardoso, pesquisador da

Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). Esse último projeto teve

por principal objetivo a implantação de SAFs (Sistemas Agroflorestais) em

propriedades de agricultores ecológicos. Entre as questões presentes no projeto, as

dinâmicas sociais e processos culturais das famílias envolvidas conformaram a parte

que coube à equipe do GEPAC desenvolver.

Uma das famílias inseridas no projeto da Embrapa é a de Seu Roni. Foi

assim que cheguei até sua propriedade, no Butiá. Essa a família e o entorno em que

se insere representaram o foco principal deste estudo.

As iniciativas de pesquisa acima mencionadas têm sido desenvolvidas na

região colonial de Pelotas, delimitada pela Serra dos Tapes. Tais estudos situam-se

na confluência entre, por um lado, uma abordagem voltada à alimentação como

elemento cultural e, por outro, a perspectiva dos estudos rurais, ou do campesinato,

também a partir de uma perspectiva antropológica.

Como indicado por Menasche (2004), a alimentação pode ser percebida

além de seu sentido biológico, em sua dimensão cultural. A autora comenta que

para Fischler (1979 apud Menasche, 2004) o ato alimentar envolve valorizações

simbólicas. Também destaca o estudo de Roberto DaMatta (1987, p.22), pensando

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sobre o caso brasileiro, estabelece uma diferenciação entre alimento e comida: “toda

substância nutritiva é alimento, mas... nem todo alimento é comida”.

O camponês, por sua vez, tampouco é aqui entendido em sua dimensão

estritamente econômica, mas como sujeito cultural. Para Klaas Woortmann (1990,

p.29), a campesinidade é conformada a partir de três categorias fundantes: terra,

trabalho e família, elementos que, em interdependência, seriam constitutivos de uma

ordem moral. Assim que, “nas culturas camponesas, não se pensa a terra sem

pensar a família e o trabalho, assim como não se pensa o trabalho sem pensar a

terra e a família”.

Do mesmo modo, pensamos que o trabalho na terra, além de estar

relacionado a essas categorias camponesas, envolve ainda outras dimensões da

vida social. A lavoura camponesa, muito além de sua materialidade, está associada

a concepções religiosas, práticas mágicas e visões de mundo. Segundo Woortmann

e Woortmann (1997, p.132; p.15), “o prático e o simbólico se fundem no processo de

trabalho”. “O saber mágico e as crenças religiosas (...) são tão necessários quanto o

saber „técnico‟, e conhecê-los é fundamental para que o antropólogo possa dar

sentido ao esforço produtivo”.

Quanto à(s) cosmologia(s) dos colonos pomeranos (identidade a que a

principal família interlocutora deste estudo se vincula, bem como muitos de seus

vizinhos), pode-se perceber que estão em profunda ligação com uma forma

específica de entender e lidar com a natureza, além de associadas a práticas

mágicas e religiosas de uma forma própria de luteranismo, como demonstrado por

Joana Bahia (2011), e que muitas vezes entra em conflito com os próprios

ensinamentos dogmáticos da Igreja Luterana.

A realização da pesquisa deu-se a partir do emprego do método etnográfico,

conjugado com alguns aportes teórico-metodológicos originários da História Oral.

Foi, assim, realizada observação participante – em situações cotidianas e rituais –,

registro em diário de campo, entrevistas semiestruturadas e reconstituição das

trajetórias de vida dos membros da família que representou a principal interlocutora

da pesquisa.

Segundo Meihy e Holanda (2007, p.16), a história oral “recorre à memória

como fonte principal que a subsidia e alimenta as narrativas”; é o “passado

espelhado no presente [que] reproduz, através de narrativas, a dinâmica da vida

pessoal em conexão com procedimentos coletivos”.

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Em relação à etnografia, segundo Fonseca (1999), essa metodologia é

fundada na procura de alteridades, na busca de outras maneiras de ver, ser e estar

no mundo. Indo além de outros métodos comumente empregados na pesquisa

social, como os questionários e mesmo as estruturas abertas ou semiestruturadas5,

a pesquisa etnográfica tem por base a observação participante, que consiste em

conviver tanto quanto possível com o grupo que se está estudando. Assim, para

além de escutar seus discursos, atentar também para suas práticas. O esforço é de

observar as múltiplas linguagens, as práticas sociais e a lógica informal da vida

cotidiana, inscritas no fluxo de comportamentos, levando em conta múltiplas

expressões para a apreensão das culturas.

Pensando a construção da etnografia como o trabalho do antropólogo – ou

ao menos o mais significativo – Roberto Cardoso de Oliveira (1998) enfatiza as três

etapas de “apreensão dos fenômenos sociais”, quais sejam: olhar, ouvir e escrever.

Não se trata, contudo, de qualquer olhar ou ouvir desatento, mas de um olhar e de

um ouvir disciplinados, domesticados pelas teorias antropológicas que o precedem.

Se o olhar e o ouvir podem ser considerados como os atos cognitivos mais preliminares no trabalho de campo (...), é, seguramente, no ato de escrever, portanto na configuração final do produto desse trabalho, que a questão do conhecimento torna-se tanto ou mais crítica.

É no “estando aqui” e não no “estando lá” (utilizando expressões de Geertz,

1978 apud Cardoso de Oliveira, 1998), que de fato se dá a tradução da “cultura

nativa” na “cultura antropológica”, realizando-se assim uma interpretação.

Entendendo que “o homem é um animal amarrado a teias de significados

que ele mesmo teceu” (Geertz, 2001, p.4), buscou-se, no decorrer do trabalho de

campo, desvendar os significados culturais das práticas e visões de mundo

expressas pelos interlocutores. Ainda com Geertz (2001, p.16), considera-se aqui

que não se faz uma etnografia do local, mas a partir dele: “os antropólogos não

estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias”.

5 Esses métodos não se excluem, pelo contrário, podem ser conjugados no desenvolvimento do

trabalho etnográfico.

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2.1 A história de Menocchio, um moleiro friulano

Pensamos a família de Seu Roni não como “representativa” dos agricultores

de sua localidade, tendo em vista suas escolhas e atitudes em relação às práticas

agrícolas, pois, como já dito, ao aderir à agricultura ecológica, constituem exceção

na forma como trabalham a terra. Ainda assim, suas trajetórias podem auxiliar a

entender questões que perpassam contextos mais amplos. Ao focar situações

particulares desta família, não nos abstemos de pensar ou discutir processos de

caráter mais geral. Ao contrário, entendemos que o particular pode elucidar

processos mais abrangentes. Para a abordagem aqui proposta, buscamos

inspiração em um trabalho de micro-história.

Em O queijo e os vermes, Ginzburg (2006) reconstrói a história de Domenico

Scandella, o Menocchio, um moleiro que viveu na região do Friuli, Itália, no século

XVI, à época da Inquisição. Menocchio tinha pensamentos muito particulares acerca

da religião e dos dogmas da Igreja. Suas ideias desagradaram o Santo Ofício, que o

prendeu e interrogou por duas vezes, em quinze anos. Os autos desses processos

(decorrente dos interrogatórios) serviram de fonte ao historiador, como ponto de

partida para que o autor trilhasse o caminho de volta da trajetória do moleiro. Assim,

Ginzburg (2006, p.9) buscaria por suas “leituras e discussões, pensamentos e

sentimentos, temores, esperanças, ironias, raivas, desesperos”.

O moleiro sustentava que o mundo tinha origem na putrefação.

Segundo seu pensamento e crença tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos. A santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado daquela massa, naquele mesmo momento, e foi feito senhor com quatro capitães: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. O tal Lúcifer quis se fazer de senhor, se comparando ao rei, que era a majestade de Deus, e por causa dessa soberba Deus ordenou que fosse mandado embora do céu com todos os seus seguidores e companhia. Esse Deus, depois, fez Adão e Eva e o povo em enorme quantidade para encher os lugares dos anjos expulsos. O povo não cumpria os mandamentos de Deus e ele mandou seu filho, que foi preso e crucificado pelos judeus (Ginzburg, 2006, p.37).

Menocchio era, como define Ginzburg (2006), “um homem como nós, mas

também muito diferente de nós”. Diferente de todos de sua época, na verdade.

Menocchio era letrado, em um contexto em que a maioria dos camponeses não

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sabia ler e escrever. Esse fato permitiu, inclusive, que os processos movidos contra

ele pelos inquisidores fossem particularmente enriquecidos por seus escritos.

Entretanto, os livros a que teve acesso, apesar de o terem influenciado

muito, não foram sua única fonte ou determinaram suas ideias. Sua leitura era

particular, o que diziam os livros era recriado a partir do que ele acreditava. “Não o

livro em si, mas o encontro da página escrita com a cultura oral é que formava, na

cabeça de Menocchio, uma mistura explosiva” (Ginzburg, 2006, p.95). “Empregando

uma terminologia embebida de cristianismo, neoplatonismo e filosofia escolástica,

Menocchio procurava exprimir o materialismo elementar, instintivo, de gerações e

gerações camponesas” (Ginzburg, 2006, p.107).

O materialismo de Menocchio era religioso. Entendia que Deus estava

presente em todas as coisas, na forma dos quatro elementos. Esse materialismo

popular encontrou ressonância em um materialismo mais culto, que Menocchio

encontrou nos livros, mas que reinterpretou trazendo para a realidade cotidiana do

mundo camponês.

Também a linguagem em que expressava suas ideias transparece esse

hibridismo. O moleiro se valia de termos como “imperfeito”, “perfeito”, “substância”,

“matéria”, “vontade”, “intelecto” e “memória”, ao mesmo tempo em que falava em

“rebanho”, “carpinteiro”, “banco”, “trabalhador”, “criança no ventre da mãe”. Servia-se

também de metáforas para fazer essas aproximações: “do mesmo modo como o

queijo é feito de leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos”

(Ginzburg, 2006, p.37).

Dessa forma, a diferença de Menocchio em relação a seus contemporâneos

não era irredutível. Como evidenciado pelo autor, muito do que ele acreditava

encontrava ressonância nos livros que lia e outro tanto vinha da cultura oral

camponesa, na qual estava inserido. Assim, “uma investigação que, no início, girava

em torno de um indivíduo, sobretudo de um indivíduo aparentemente fora do

comum, acabou desembocando numa hipótese geral sobre a cultura popular – e,

mais precisamente, sobre a cultura camponesa – da Europa pré-industrial (...)”

(Ginzburg, 2006, p.10).

Não podemos considerar Menocchio como um “camponês „típico‟ (no sentido

de „médio‟, „estatisticamente mais frequente‟) do seu tempo” (idem, p.20).

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Aos olhos dos seus conterrâneos Menocchio era um homem, ao menos em parte, diferente dos outros. Mas essa singularidade tinha limites bem precisos: da cultura do próprio tempo e da própria classe não se sai a não ser para entrar no delírio e na ausência de comunicação. Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um (idem, p.20).

Mesmo um caso-limite (e Menocchio com certeza o é) pode se revelar representativo, seja negativamente – porque ajuda a precisar o que se deva entender, numa situação dada, por “estatisticamente mais frequente” –, seja positivamente – porque permite circunscrever as possibilidades latentes de algo (a cultura popular) que nos chega apenas através de documentos fragmentários e deformados, provenientes quase todos de “arquivos da repressão” (idem, p.21).

Ginzburg (2006) é um dos precursores da chamada micro-história,

preocupada não em grandes generalizações, mas em análises particulares, que

podem dizer muito sobre uma época. Corrente histórica bastante próxima da

disciplina antropológica, tampouco se configura como preocupada com a vida de reis

e outras figuras ilustres, mas com o povo, com aqueles que, também por não

deixarem testemunhos escritos, em muito foram esquecidos pela história oficial. O

queijo e os vermes é a história de um camponês, que mesmo com opiniões

peculiares, não deixava de ser um camponês.

O livro propõe uma “investigação capilar sobre um moleiro”, “enquanto

muitos estudos se lançam a empresas imensas de história quantitativa das ideias ou

de história religiosa serial”, que defendem a “ideia de que a reintegração das classes

inferiores na história geral pode ocorrer apenas sob o signo do „número e do

anonimato‟”, através da demografia e da sociologia, “um estudo quantitativo das

sociedades do passado”. “Embora não mais ignoradas, as classes inferiores

estariam da mesma forma condenadas a permanecer „silenciosas‟” (Ginzburg, 2006,

p.20).

Desse modo, é a partir da inspiração na abordagem proposta por Ginzburg

que este trabalho foi delineado. Ao invés de falar de camponeses genéricos ou

sobre modelos de produção agrícola, buscou-se contar a história de uma família e

apontar algumas reflexões a partir das conexões e rupturas entre família e

comunidade.

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Voltando à Antropologia, para Geertz (2001), como já comentado,

diferentemente dos antigos “estudos de comunidade”6, não se objetiva realizar

etnografias de aldeias, mas em aldeias. É a partir da etnografia, entendida como

descrição densa de determinada cultura particular, que podemos fazer emergir

contribuições de caráter mais geral, importantes aos temas caros às Ciências

Sociais.

É justamente com essa espécie de material produzido por um trabalho de campo quase obsessivo de peneiramento, a longo prazo, principalmente (embora não exclusivamente) qualitativo, altamente participante e realizado em contextos confinados, que os megaconceitos com os quais se aflige a ciência social contemporânea – legitimidade, modernização, integração, conflito, carisma, estrutura... significado – podem adquirir toda a espécie de atualidade sensível que possibilita pensar não apenas realista e concretamente sobre eles, mas, o que é mais importante, criativa e imaginativamente com eles (Geertz, 2001, p.17).

É pra dizer, simplesmente, que o antropólogo aborda caracteristicamente tais interpretações mais amplas e análises mais abstratas a partir de um conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos. Ele confronta as mesmas grandes realidades que os outros – historiadores, economistas, cientistas políticos, sociólogos – enfrentam em conjunturas mais decisivas: Poder, Mudança, Fé, Opressão, Trabalho, Paixão, Autoridade, Beleza, Violência, Amor, Prestígio. Mas ele as confronta em contextos muito obscuros – lugares como Marmusha e vidas como as de Cohen – para retirar deles as maiúsculas. Essas constâncias demasiado humanas, „essas palavras altissonantes que assustam a todos‟, assumem uma forma doméstica em tais contextos caseiros. Mas essa é justamente a vantagem; já existem suficientes profundidades no mundo (Geertz, 2001, p.15).

Assim como o moleiro Menocchio, apresentado por Ginzburg (2006), que,

apesar de suas particularidades e idiossincrasias, dizia muito a respeito de seus

contemporâneos e de sua época, é possível pensar a trajetória da família estudada

em relação ao contexto social e temporal em que está inserida. Ainda que se

diferenciem dos vizinhos na localidade em que vivem, a análise a partir desta família

é capaz de revelar diversos aspectos comuns a um campesinato e à realidade rural

desta região.

6 Os defensores dessa perspectiva tentavam dar conta em suas pesquisas de um conjunto de

aspectos determinados da organização social (economia, religião, parentesco, etc.) a partir do estudo exaustivo de pequenos municípios, tomados por “comunidades”. Entendia-se que as comunidades rurais deveriam ser estudadas da mesma forma que as aldeias indígenas eram pensadas, enquanto totalidades.

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2.2 Pegando na enxada

A inserção a campo realizou-se, sobretudo, junto a esta família de

agricultores ecológicos, a família de Seu Roni. Ao longo do ano de 2012, a cada ida

a campo, pude conviver com eles por vários dias. Hospedava-me em sua casa,

acompanhava sua rotina, partilhava suas refeições, escutava suas histórias.

Participei, ainda, em 2011 e 2012, de duas edições da festa anual da

Comunidade Luterana Menino Jesus de Butiá, congregação à qual a família

pertence. Na primeira vez, fui como ajudante de Seu Roni no preparo do caldo

pomerano (atividade realizada sob sua responsabilidade, como discutiremos

adiante).

Na propriedade, acordava junto com os demais. Tomávamos café e então

cada um tinha alguma atividade a fazer. Dona Lúcia, a esposa, cuidava dos afazeres

da casa. O filho mais velho costumava ir para o trabalho, em uma cooperativa. O

filho mais novo e a esposa, assim como Seu Roni, tratavam dos animais, seguindo

depois para a lavoura, onde quase sempre os acompanhava.

Quando o serviço exigia conhecimentos ou habilidades que não possuía,

ficava somente olhando, fotografando ou conversando com eles. Mas em algumas

situações também peguei no cabo da enxada. Ajudei a capinar inços nas roças de

aipim e batata-doce, a plantar e regar mudas de cenoura, couve-manteiga e repolho.

À noite, separávamos feijão e amendoim, lavávamos cenouras e batatas-doces, que

seriam levados à feira, no sábado. Nessas ocasiões, era também quando outro tipo

de troca acontecia. Também interessados por minha vida, assim como eu estava

pela deles, questionavam-me sobre meus estudos, minha futura profissão, minha

origem étnica e familiar.

Junto às demais famílias das localidades de Butiá e Coxilha Negra com que

interagi – a maior parte delas dedicada à produção de fumo –, o contato foi bem

mais reduzido. Realizei algumas visitas e entrevistas em cada casa e também

conheci suas propriedades.

Durante toda a pesquisa, busquei conciliar linguagem escrita e audiovisual.

Utilizei-me sempre do diário de campo e tentei apropriar-me dos usos da imagem e

do som, produzindo sequencias de fotografias, bem como realizando capturas de

vídeos.

Como apontam Barbosa e Cunha (2006, p.8),

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a história da construção da linguagem fotográfica e cinematográfica desenvolveu-se paralelamente à elaboração dos métodos clássicos da antropologia. Houve muitas aproximações ao longo dessa história, mas, de forma geral, elas expressaram formas de olhar e de construir problemas de maneira homóloga – uma colaboração ao mesmo tempo distante e provocadora, mas que evidencia o quanto a antropologia, a fotografia e o cinema, enquanto construções culturais, podem compartilhar o desafio de entender e significar o mundo e sua diversidade.

Segundo Guran (1997), as fotografias produzidas durante a pesquisa

antropológica podem ser de dois tipos: aquelas feitas com o objetivo de obter

informações e aproximar-se do assunto estudado em campo e aquelas feitas para

demonstrar os resultados da pesquisa. A imagem – tanto fotografia, como vídeo –

foi, nesta pesquisa, pensada nas duas perspectivas. Assim, de um material bruto

bastante significativo em termos de volume de imagens, apenas algumas farão parte

deste trabalho e de outros produtos da pesquisa. Além disso, uma terceira dimensão

foi acrescida à imagem: a de restituição. A partir do corpo imagético capturado,

pensaremos em maneiras de devolver os resultados da pesquisa às pessoas que

dela participaram.

Um último ponto se faz necessário ainda abordar neste capítulo: diz respeito

à opção de manter os nomes próprios dos interlocutores deste estudo. Como

demonstrado por Claudia Fonseca (2008), a questão do uso ou não do anonimato

no texto etnográfico suscita inúmeras controvérsias entre os pesquisadores, estando

relacionada com dilemas de caráter ético e político.

No ímpeto de proteger, resguardar, os interlocutores e as comunidades com

os quais o antropólogo trabalha, é comum que muitos optem pela utilização de

nomes abreviados ou fictícios de lugares e pessoas. Porém, em outros casos, como

o de realização de laudos técnicos para a demarcação de terras de comunidades

indígenas ou quilombolas, por exemplo, a situação já se inverte: para garantir os

direitos dessas populações é necessário que se registre com precisão os nomes dos

sujeitos de direito. Há ainda outro posicionamento, daqueles que defendem uma

antropologia mais objetiva, calcada nos fatos observados mais que nas

interpretações subjetivas: para esses, a utilização dos nomes verdadeiros de

interlocutores traria maior verossimilhança às descrições etnográficas.

Evidentemente, a dimensão ética da pesquisa deve sempre ser considerada.

A todo o momento, durante a etnografia e a escrita, é preciso analisar se as

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escolhas realizadas podem afetar, em maior ou menor grau, nossos interlocutores.

No entanto, como bem ressalta a autora:

o anonimato não é necessariamente visto como sinal de respeito. Pelo contrário, mascarar nomes de pessoas ou de determinada comunidade pode trazer a mesma impressão que trazem os rostos borrados ou as tarjas pretas (...). Parece designar justamente as pessoas que têm algo para esconder (Fonseca, 2008, p.41).

Além disso, a família e as localidades descritas neste trabalho receberam já

muitos pesquisadores, de outras Universidades, bem como equipes de telejornais,

além de terem figurado, juntamente com outras famílias da Região Sul do Brasil, em

um livro produzido pelo Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA), vinculado à

Igreja Luterana. Ainda que este trabalho se proponha a lançar um outro olhar sobre

a trajetória da família estudada e sua relação com a comunidade, observamos que

uma e outra já foram alvo de outros estudos. Assim é que não nos pareceu

necessário ou desejável o emprego do recurso do anonimato.

Por fim, é preciso notar que, em alguns momentos do texto, será empregada

a narrativa na primeira pessoa do singular (eu) e em outros na primeira pessoa do

plural (nós). Isso se deve ao fato de que, por vezes, a referência é às experiências

vividas individualmente, sobretudo no trabalho de campo, por outras a processos de

reflexão construídos dialogicamente entre orientado e orientadora.

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III – A família e suas narrativas

3.1 A família de Seu Roni

Seu Roni e Dona Lúcia Mühlemberg são casados há quase quarenta anos e

há trinta e cinco moram nesta propriedade, no Butiá. São pais de Luciano e Moacir,

este último casado com Lucimara. A propriedade em que vivem, a maior parte Seu

Roni recebeu em herança. Quando era jovem, seu pai e seu tio possuíam um

moinho de farinha. Trabalhou com eles até aproximadamente seus 18 anos, quando

o moinho teve que ser fechado. Segundo conta, isso foi na década de 1960, quando

entraram no mercado as farinhas industrializadas. Segundo sua narrativa, os

moinhos coloniais foram todos fechados pela vigilância sanitária, alegando-se falta

de higiene. Os colonos, que antes produziam sua própria farinha, passaram a

precisar comprar no mercado. Sem o moinho, os pais de Seu Roni começaram a

viver apenas da produção agrícola.

Zanetti (2010), em estudo sobre hábitos e práticas alimentares entre colonos

italianos do Vale do Taquari, comenta a importância que os moinhos tinham nas

regiões coloniais do Rio Grande do Sul. Segundo Roche (1969 apud Zanetti, 2010),

em 1914 havia mais de novecentos moinhos em todo o estado. Os moinhos, além

de importantes do ponto de vista produtivo, já que constituíam os principais locais de

beneficiamento do açúcar e farinha utilizados pelos colonos, também serviam de

ponto de encontro entre os moradores das comunidades, conforme destacado por

Madeira (2005 apud Zanetti, 2010).

Entretanto, a partir dos anos 1950, pode-se observar um processo crescente

de substituição das farinhas beneficiadas localmente por aquelas industrializadas,

compradas no mercado, e a consequente diminuição da importância que os moinhos

tinham na vida cotidiana nas colônias. Como destaca Krone (2010, p.3),

no decorrer do século passado, em especial a partir dos anos de 1950, incentivos fiscais e creditícios concedidos ao capital industrial fizeram surgir um monopólio estatal do trigo que gerou o progressivo fechamento de inúmeros moinhos coloniais (...).

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Quando faleceu, o pai de Seu Roni deixou duas porções de terra para os

filhos. A propriedade em que a família vivia, de 38 hectares (em uma localidade

próxima ao Butiá), ficou para o filho mais velho – o qual também se tornou

responsável por cuidar os pais quando chegaram à velhice. A outra porção de terra

(que originalmente pertencia à família da mãe de Seu Roni), de 50 hectares, foi

dividida entre Seu Roni e sua irmã. Mais tarde, Seu Roni comprou outros 10

hectares, totalizando os 35 hectares que conformam a propriedade em que hoje

trabalha com a família.

Atualmente, sua propriedade é lindeira com a de sua irmã e cunhado. Já

aposentados, eles produzem apenas para o gasto, como conta Seu Roni: plantam

milho e feijão em pequena quantidade, cultivam uma horta e criam alguns animais.

Seu outro irmão, o que ficou com a propriedade maior, hoje trabalha com a produção

de fumo.

Dona Lúcia, antes de se casar, também vivia em localidade próxima ao

Butiá. Seus pais trabalhavam na agricultura, produzindo um pouco de tudo e

vendendo para o caminhão, que levava os produtos para o comércio a varejo, na

cidade. Quando casaram, Seu Roni e Dona Lúcia viveram os primeiros anos junto

com os pais dela, até se mudarem para onde estão hoje. Ela tem mais cinco irmãos,

que também continuam no campo. Os pais, hoje aposentados, se mudaram para a

sede do município de São Lourenço do Sul.

Seu Roni e Dona Lúcia têm dois filhos, Luciano e Moacir. Luciano é o mais

velho, tem 35 anos e é solteiro. É apelidado pelos familiares de “inventor” ou

“cientista”. Adora ciência e tecnologia, como sempre faz questão de dizer.

Completou o ensino médio e técnico (em agroecologia) em uma escola agrícola, no

município de Braga. Esse curso foi criado em 1996 e, desde então, conta com a

participação de outros filhos de agricultores da região. Luciano teve incentivo da

Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) que, notando seu gosto

pelo estudo, conseguiu-lhe a vaga na escola, além do transporte e de uma ajuda de

custo para que pudesse manter-se enquanto estudava.

Formado, assim, como técnico em agroecologia, logo Luciano foi trabalhar

para a COOPAR (Cooperativa Mista de Pequenos Agricultores da Região Sul), com

sede na localidade Boa Vista, em São Lourenço do Sul, não muito longe de onde

moram. Luciano foi responsável pelo setor de agroecologia na cooperativa.

Posteriormente, trabalhou também na FETRAF-Sul (Federação dos Trabalhadores

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na Agricultura Familiar da Região Sul), visitando propriedades de outros agricultores

interessados em inserir-se no programa “Minha casa, minha vida”7.

Atualmente, Luciano está terminando um curso de graduação à distância em

Automação Industrial. As aulas ocorrem em São Lourenço do Sul, mas o curso é

promovido pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Luciano entrou na

primeira turma, mas o curso já tem seus dias contados, pela baixa procura. Da turma

de quase trinta alunos, ao final restou somente Luciano. Ele agora estagia na

COOPAR, com perspectiva de seguir trabalhando na cooperativa depois de formar-

se. Outra possibilidade para o futuro é abrir um negócio próprio, uma oficina de

eletrônica (o curso também o capacita a trabalhar com isso), atendendo uma

demanda que identifica existir na colônia.

Luciano revela o desejo de permanecer vivendo no interior. O conhecimento

que tem adquirido, pretende utilizar para ajudar sua família a aumentar a renda que

obtém da agricultura, contribuindo para viabilizar que se mantenham na

agroecologia, bem como, para incentivar que outros colonos adotem esse sistema

de produção.

A história de Luciano lembra, de certo modo, a vida de camponeses

celibatários franceses do Béarn estudados por Bourdieu (2006) na década de 1960.

Assim como eles, Luciano é solteiro, em um contexto – camponês – em que o

casamento e a constituição de família são fundamentais.

Ao observar os bailes daquela região, Bourdieu (2006, p.85) percebeu um

“verdadeiro choque de civilizações”. No baile “é todo o mundo da cidade, com seus

modelos culturais, sua música, (...) suas técnicas corporais, que irrompem na vida

campesina”. As mulheres, mais que os homens, aponta o autor, sentiam-se atraídas

pelos valores da cidade, representados no baile pelas roupas, músicas e danças. Os

homens do campo, que não dominavam essas técnicas corporais, acabavam por se

tornar pouco valorizados no mercado matrimonial.

O baile, tanto no Béarn quanto em São Lourenço do Sul, assim como no

mundo camponês de modo geral, tem uma importância estrutural no mercado dos

matrimônios. É lá que os casais se conhecem e onde podem fazer os primeiros

7 O programa “Minha casa, minha vida” é um programa de habitação criado pelo Governo Federal em

2009 e que consiste no financiamento de habitações populares.

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33

arranjos de casamento. Na família Mülhemberg, Seu Roni e Dona Lúcia e Moacir e

Lucimara conheceram-se dessa forma, em bailes na colônia.

Em um baile em que tive a oportunidade de participar, percebi que Luciano

recusava-se, durante todo o tempo, a dançar na pista, com os jovens, alegando não

ter muito jeito para isso. Como no Béarn estudado por Bourdieu nos anos 1960, no

Butiá contemporâneo os camponeses solteirões colocam-se também à margem da

pista de dança.

Também na região de São Lourenço do Sul, outro caso observado foi o de

um vizinho dos Mühlemberg. Segundo ele conta, sua esposa sempre demonstrara

interesse pela vida na cidade, mais que pelo trabalho na terra. Foi assim que

abandonou marido e filhos, para viver com outro homem na periferia da cidade de

Pelotas.

Podemos pensar os dois casos observados como indicadores de uma

valorização diferenciada do campo e da cidade. De forma mais ampla, essa

diferenciação pode ser evidenciada pelo maior êxodo rural feminino. Gaviria e

Menasche (2006), analisando as motivações de jovens que deixam o meio rural,

identificam um maior número de abandonos por parte das moças, resultante em um

processo de masculinização do campo, caracterizado por estudos sobre o tema.

Esse processo ocorre, segundo as autoras, em decorrência do papel da mulher nos

grupos camponeses, submetido à autoridade masculina (pai e marido) e reservado

principalmente à esfera doméstica. A cidade, assim, representaria a possibilidade de

ascensão social para as moças, que, assim, buscam investir em educação, ingressar

no mercado de trabalho ou casar-se com homens provenientes do meio urbano.

Moacir é o filho mais novo, bastante diferente de Luciano. Tem 27 anos e é

casado. Moacir é apelidado de “capitão”, uma referência a seu ímpeto no trabalho na

terra. Ele nunca gostou de estudar e logo que pode saiu da escola. O que realmente

lhe traz satisfação é o trabalho na propriedade e o pensamento que a partir dele

poderá um dia prosperar financeiramente.

Moacir e Lucimara moram junto com a família Mülhemberg. Explicam que

isso é muito comum na região, já que os casais novos, em geral, não têm dinheiro

para comprar outra propriedade. Contudo, estão inscritos no programa “Minha casa,

minha vida”. Têm por objetivo construir outra casa para eles na propriedade da

família, que, após a morte do pai, provavelmente será dividida entre os dois irmãos.

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Os dois abriram mão da festa de casamento, preferindo destinar o dinheiro

que seria gasto pela família a um pé-de-meia para o início de sua vida conjugal.

Moacir e Lucimara moravam juntos antes mesmo de se casarem. Eles contam que

esse comportamento é costume entre os pomeranos, que assim podem ter uma

ideia de como será a vida após o matrimônio.

Como explica Maltzahn (2007, p.22), esse momento, entre o pedido de

noivado e o casamento, “equivale ao espaço onde os noivos não podem mais ser

considerados solteiros, mesmo que ainda não sejam oficialmente casados. Nesse

período era permitida a coabitação dos noivos, com o conhecimento da família”. A

autora entende o casamento entre os pomeranos como um rito de passagem que

envolve, nos termos de Van Gennep (1977 apud Maltzahn, 2007), três etapas:

separação, margem e agregação.

A família de Lucimara mora na localidade de Gusmão, próxima ao Butiá. Ela

tem mais duas irmãs. Uma mais velha, também casada, e outra mais nova, que

ainda vive com os pais. Tanto Moacir quanto Lucimara contam que não quiseram

seguir estudando, tendo completado apenas o ensino fundamental. Trabalham na

agricultura, junto com a família, e pretendem continuar no campo.

Os Mühlemberg são produtores agroecológicos, os únicos da localidade

onde moram. Já faz 18 anos que eles adotaram esse tipo de produção, após Seu

Roni ter tido problemas de saúde em decorrência do uso de agrotóxicos. Nos 35

hectares de sua propriedade, eles cultivam uma produção bastante variada. Entre os

produtos estão milho, feijão, soja, batata, batata-doce, mandioca, cenoura,

beterraba, amendoim, além de frutas e hortaliças.

A maior parte desses produtos é vendida na feira do produtor, que ocorre

semanalmente, aos sábados, na cidade de São Lourenço do Sul. Deve-se

acrescentar que, na feira, os Mühlemberg são também os únicos a vender produtos

agroecológicos, enquanto todos os outros agricultores comercializam produtos

convencionais. Parte da produção também serve ao autoconsumo da família e outra

parte é destinada à alimentação dos animais.

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3.2 Agroecologia e o trabalho na terra

A família é aqui entendida também como unidade de produção agrícola.

Como ensina Klaas Woortmann (1990): “nas culturas camponesas, não se pensa a

terra sem pensar a família e o trabalho, assim como não se pensa o trabalho sem

pensar a terra e a família”. E é o patriarca, ou “pai-patrão” (para os sitiantes de

Sergipe estudados por Woortmann e Woortmann, 1997), aquele que governa o

trabalho da família. “O pai de família é como o „dono‟ do saber, componente da

hierarquia familiar” (Woortmann e Woortmann, 1997, p.38-39).

Como mencionado, a família Mühlemberg hoje produz de forma

agroecológica. Desde que se casou e começou a trabalhar por conta própria na

agricultura, Seu Roni utilizara agrotóxicos. Chegou mesmo a empregar muito

veneno, como conta. No entanto, com o tempo, foi adquirindo feridas na pele

(principalmente pés e pernas), que não cicatrizavam, além de sentir mal-estar,

enjoos e ânsia de vômito; problemas causados, segundo acredita, pelo uso de

agrotóxicos. As narrativas de intoxicação são bastante frequentes entre os

Figura 03: Da esquerda para a direita, Seu Roni, Luciano, Dona Lúcia,

Lucimara e Moacir.

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produtores que, nesta região, aderiram à agroecologia (Pinheiro, 2010). Foi assim

que Seu Roni e sua família tornaram-se produtores agroecológicos.

No início, 11 produtores formaram o grupo da Boa Vista (nome de uma

localidade), assessorado pelo CAPA (Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor).

Todos eles levavam seus produtos para a feira de São Lourenço do Sul. Com o

tempo, entretanto, foram crescendo as dificuldades em obter rendimento satisfatório

a partir desse modelo de produção. Foi assim que todos, à exceção de Seu Roni,

abandonaram a proposta e saíram do grupo, deixando de produzir de forma

agroecológica, retornando à agricultura dita convencional ou mesmo aderindo à

produção de fumo, em que é particularmente intenso o uso de agroquímicos.

Seu Roni, no entanto, se manteve: tanto na agroecologia, como na feira.

Seguiu em contato com o CAPA e um dos extensionistas o convidou a integrar um

novo grupo de produtores agroecológicos, agora do Prado Novo (outra localidade do

município). Mesmo não residindo naquela localidade, entendeu-se por bem que sua

presença no grupo serviria para seu fortalecimento e do coletivo. Seu Roni aceitou o

convite e participa, assim, das reuniões e atividades desenvolvidas por este grupo.

Além da feira, ele também comercializa sua produção através da COOPAR,

que fornece produtos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do

Governo Federal. Seu Roni também foi um dos sócios fundadores da COOPAR,

cooperativa criada justamente para escoar a produção da agricultura familiar da

região. Também vende, a cada ano, alguns sacos de soja para a cooperativa Teia

Ecológica, em Pelotas, negócio realizado a partir da mediação da Embrapa.

Contudo, Seu Roni lamenta, dizendo que não está fácil continuar na

agroecologia. Parte de sua produção, que antes era adquirida pela COOPAR, hoje já

não tem escoamento. A batata, por exemplo, já está criando brote no galpão, como

comenta. Segundo Costa (2008), São Lourenço do Sul já foi o principal produtor de

batatas do Brasil, chegando a exportar, na década de 1960, para diversas regiões

do Brasil e do exterior, como Uruguai e Argentina. Entretanto, agora a batata é

produzida em larga escala – e com agrotóxicos –, pelos grandes (produtores), no

Paraná e em São Paulo, chegando aos consumidores locais a preço bastante

inferior, além de apresentar aparência mais bonita que aquelas produzidas sem

agrotóxicos.

Na feira, o que se vende ainda é pouco. A concorrência é grande com os

supermercados e com os demais feirantes. Os supermercados compram alimentos

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vindos de outros lugares e produzidos em larga escala, vendendo-os a preços bem

mais baixos que os daqueles produzidos localmente. Ainda, para atrair fregueses, às

vezes os supermercados colocam preços quase mais baixos do que o valor que

pagaram pela mercadoria, diz Seu Roni. Para ter alguma chance de venda, lado a

lado com os outros feirantes (produtores convencionais), ele nunca eleva seus

preços muito além do que os outros pedem, mesmo sabendo que, no modelo em

que produz, tem muito mais trabalho.

Seu Roni comenta que seria interessante se os restaurantes de São

Lourenço do Sul procurassem adquirir alimentos dos agricultores familiares,

sobretudo dos agroecológicos, haja visto, inclusive, que muitos desses

estabelecimentos são de propriedade de descendentes de pomeranos, muitos deles

originários do meio rural. Contudo, a demanda dos restaurantes por regularidade da

produção de alimentos, sem levar em conta a sazonalidade dos produtos ou mesmo

outros problemas eventuais, representa um entrave.

Como já mencionado, atualmente, na propriedade de Seu Roni, está sendo

implementada uma área de SAF. Cercou-se um terreno de 10m x 10m (para

proteger dos animais) e lá, com o acompanhamento da Embrapa, foram inicialmente

plantadas espécies frutíferas (laranjeira, bergamoteira), milho e adubação verde

(mucuna, feijão miúdo, entre outros). O projeto consiste em, uma vez crescidas um

pouco as frutíferas e derrubada a adubação verde, plantar outras espécies. Dando

certo, o objetivo é ter cultivados alimentos para o autoconsumo e para a venda na

feira.

As plantas estão crescendo. Seu Roni realiza o manejo periodicamente.

Contudo, ele ainda se encontra um tanto cético em relação aos resultados que este

sistema poderá trazer. Por enquanto, rejeita categoricamente a opção de

implementá-lo no restante da propriedade e tem certeza que seus vizinhos, que em

sua maioria lidam com a produção de fumo, dificilmente permitirão que se

implemente em suas propriedades área semelhante.

Para Seu Roni e demais colonos da região, o ideal de cultivar a terra é

drasticamente oposto àquele proposto pelos idealizadores dos SAFs. Desde que

seus primeiros antepassados estabeleceram-se nas colônias, entenderam que para

criar uma lavoura precisavam limpar todo o terreno e plantar os cultivos em linhas. O

SAF, com os cultivos concentrados em pequenos espaços, transmite a eles certa

ideia de plantar no meio do mato, de descuido, relaxamento. Mesmo para Seu Roni,

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que se preocupa em realizar uma agricultura que não agrida tanto a natureza – o

que poderia aproximá-lo da proposta do SAF – a presença de outras concepções

acabam por afastá-lo do modelo implantado.

Seu Roni, entretanto, sente-se pouco à vontade para abandonar o projeto

iniciado pela Embrapa. Outros projetos da mesma instituição também são

desenvolvidos em sua propriedade, introduzindo cultivares para experimentos e

sugestões de técnicas de manejo. A relação com o pesquisador da Embrapa já vem

de longa data. Por meio dela, Seu Roni e Dona Lúcia já puderam viajar para eventos

e para conhecer propriedades de agricultores ecológicos de outros municípios do

Estado e de outras regiões do País.

Moacir é ainda mais cético. Ele não participa da implantação do SAF.

Mesmo quanto à agroecologia, ele anda refletindo se esta será a melhor opção para

o futuro. Do jeito que andam as coisas, ele avalia que não consegue prosperar e

adquirir os bens que deseja. Parece que o sentimento de estagnação o incomoda

bastante. O retorno à agricultura convencional e mesmo o cultivo de fumo não

deixam de apresentar-se como opções para ele. Adiante, retomaremos essa

discussão.

Como demonstraram Woortmann e Woortmann (1997), o trabalho na terra

envolve cálculos, com o objetivo de minimizar riscos. “O desperdício de trabalho, de

tempo, de terra e de sementes contraria frontalmente a ética camponesa. Poupar

recursos é componente central de todo o cálculo da sua produção” (Woortmann e

Woortmann, 1997, p.56). Nesse sentido, “o cultivo, visto como um cálculo, implica

um conjunto de fatores. De um lado, os macrossociológicos, determinados pelas

transformações da estrutura agrária da região e das condições de acesso à terra”.

“Por outro lado, as condições de cultivo dependem ainda do ciclo de

desenvolvimento do grupo doméstico” (Woortmann e Woortmann, 1997, p.127; 128).

Na lida cotidiana na propriedade, o trio Seu Roni, Moacir e Lucimara quase

sempre trabalha junto. Luciano, como já dito, estuda e trabalha fora de casa.

Quando ele está na propriedade, entretanto, também ajuda na lavoura ou em outras

tarefas. Dona Lúcia é responsável pela casa e pela comida, no que também é

ajudada por Lucimara, que volta da roça antes do horário das refeições. Dona Lúcia

também trabalha na lavoura, em tarefas que necessitem da ajuda de mais uma

pessoa, como na capina dos inços, na colheita de alguns produtos e no cuidado da

horta.

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Woortmann e Woortmann (1997) comentam como, no mundo camponês, o

trabalho constrói também as relações entre homens e mulheres. Assim que “o

processo de trabalho, visto como processo ritual, constrói o gênero” (Woortmann e

Woortmann, 1997, p.135). Entre os sitiantes sergipanos por eles estudados,

enquanto à mulher cabe voltar-se para dentro – a casa –, ao homem é reservado o

mundo lá fora, desde a lavoura, externa à casa, passando pela feira, até o próprio

mundo, de forma geral.

(...) o deslocamento se dá do domesticado, conhecido (o espaço dentro) para o natural, desconhecido (o espaço fora; fora do domínio humano). (...) A direção do processo é determinada pelo pai de família, detentor do governo do trabalho. (...) O homem define a direção e controla o processo como um todo. (...) A mulher, pelo contrário, é remetida a um movimento inverso, de fora para dentro, trazendo para dentro da casa os produtos da roça transformados em mantimentos, para torná-los comida, inserida em sua própria “direção”, a do consumo (Woortmann e Woortmann, 1997, p.37).

Vale notar que a horta, comumente de responsabilidade feminina, no caso

da família Mühlemberg é cuidada também por Seu Roni, uma vez que muitos

produtos que saem de lá serão comercializados na feira. Nesse sentido, a horta

torna-se mais de fora do que o habitual (geralmente para o consumo da casa) e,

portanto, torna-se responsabilidade também do homem. Muda-se a situação, mas a

regra permanece a mesma.

A respeito da divisão sexual do trabalho no mundo camponês, Menasche

(2004) traz o exemplo de dois estudos realizados no Brasil. O primeiro, levado a

cabo no Paraná, observou que, no cotidiano de vida e trabalho de mulheres e

homens na produção de leite, à medida que a produção era tecnificada, deixava de

estar sob domínio das mulheres, passando ao controle masculino (Deser;

CEMTR/PR, 1996 apud Menasche, 2004). Da mesma forma, em outro estudo

realizado no Piauí, observou-se que quando o beneficiamento do arroz se

transformava, sendo o pilão – instrumento de trabalho estritamente feminino –

substituído pelo processo mecânico, a máquina era sempre operada pelos homens

(Carneiro, 1981 apud Menasche, 2004).

A autora sugere que, em ambos os casos, haveria ai uma modificação do

lugar dessas atividades na hierarquia da unidade doméstica: a produção de leite e o

beneficiamento de arroz atingiriam agora o estatuto de trabalho – atributo masculino,

diferente da ajuda – atributo feminino. No caso da horta de Seu Roni e Dona Lúcia,

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podemos sugerir que o processo seja semelhante. À medida que aquilo que era

produzido na horta passou a ter outra importância na estrutura de produção familiar,

passou também ao domínio masculino.

Lucimara tenta sempre acompanhar o marido no trabalho. Todavia, não tem

tanta prática na lida. Antes de casar, a principal atividade econômica de sua família

era a fumicultura. Lidar com a produção de fumo era, portanto, basicamente o que

Lucimara sabia fazer quando casou, além de tirar leite das vacas e ajudar nas

tarefas da casa. Assim, tentando acompanhar Moacir no trabalho, ela sofreu alguns

acidentes. Teve a perna machucada pelo trator e o tendão da mão rompido pela

foice, quando cortava palha de milho para tratar as vacas.

Moacir, por outro lado, aprendeu tudo o que sabe trabalhando junto ao pai,

na propriedade. Em cima do trator, Moacir parece determinado. Para ele, como diz,

se não houver acesso ao trator, o trabalho perde seu sentido. Moacir acredita que,

hoje em dia, é necessário utilizar as tecnologias para trabalhar a terra. É preciso,

portanto, que esse trabalho gere certo rendimento, para que se consiga adquirir

essas tecnologias, ou ao menos para manter as que já têm – como, no caso, o

trator. Atualmente, é Moacir quem decide muitos dos produtos que serão cultivados,

bem como o local e o período em que isso se realizará. Do que se pode observar,

muitas dessas decisões parecem ser negociadas entre Seu Roni, Moacir e

Lucimara, que conversam, opinam e por fim decidem.

Na propriedade, quase tudo que é consumido na alimentação é produzido

pela família. Além das frutas, vegetais, hortaliças e temperos (bem como alguns

chás, que também são cultivados na horta), a família tem uma pequena criação de

animais para o gasto. Criam galinhas, porcos e vacas – na realidade, uma vaca (da

qual tiram o leite que consomem), uma terneira e três bois. A vaca e a terneira foram

presentes dos pais de Lucimara, por ocasião do casamento dela com Moacir. O

esterco do gado também é aproveitado como adubação, depois de servir de

alimento para as minhocas. Parece que a família busca seguir o que Woortmann e

Woortmann (1997) denominaram de “principio de internalização dos recursos da

propriedade”.

Além desses animais, a família ainda tem um cavalo, empregado em

algumas das atividades na roça. Também há dois gatos e um cachorro, Rex, que só

atende quando chamado em pomerano – “come ré, Rex”, dizem eles.

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No mercado, compram arroz, farinha, margarina, café, açúcar e sal.

Eventualmente, alguma carne, quando nenhum dos animais está pronto para o

abate ou quando não desejam abater algum deles – em razão do clima, por

exemplo. Eles dizem que o inverno é a melhor época para realizar essa atividade.

No verão, além do calor, que pode estragar a carne, é mais comum vir o bicheiro

(ataque da mosca varejeira que se instala no corpo dos animais vivos ou nas carnes

depois de mortos). Também eventualmente compram bolachas ou pães de padeiro

(como chamam os pães que não são feitos em casa). As compras são realizadas,

por vezes, nos supermercados da cidade – depois que fazem a feira no sábado – ou

em algum bolicho (armazém), no interior. Segundo explicam, a decisão de onde

comprar varia com os preços, considerado o principal item analisado para efetuar a

compra.

Em casa, Dona Lúcia faz bolachas e o pão de panela – um pão feito com

batatas e assado em cima do fogão a lenha, dentro de uma panela. Eles também

fazem linguiça com carne de porco e rês, manteiga de vaca, requeijão e schimier

(doce feito de frutas, cozido por horas com açúcar, em tacho de cobre, comumente

utilizado para comer com pão). Esses produtos, entretanto, não são vendidos na

feira. Eles dizem que não compensaria, pois com o tempo gasto para produzir,

teriam que cobrar muito caro, não havendo quem comprasse. Ainda, para

comercializar, teriam que produzir em quantidade maior, em uma agroindústria,

como as que existem na região.

Nem todos os produtos cultivados na propriedade, entretanto, são

consumidos na família ou por todos seus membros. As pimentas, em geral, não são

muito apreciadas por eles. Moacir não gosta muito de couve, repolho e outras

hortaliças servidas como salada. São, assim, apenas cultivadas para vender na

feira.

O café da manhã começa com pão de panela e pão de padeiro, manteiga de

vaca, margarina e schimier, café passado e solúvel e leite quente, recém-tirado da

vaca. Quando há, come-se também linguiça ou mortadela (essa última comprada,

industrializada). Antes de sair para o trabalho na lavoura, prepara-se, por vezes, o

frühstück (palavra em pomerano que designa o lanche realizado no meio da manhã),

composto em geral por pão, manteiga ou margarina e schimier. No almoço, come-se

arroz, feijão, carne (rês ou porco, geralmente) e algum legume cozido ou frito

(batata, batata-doce, aipim, cenoura, abóbora, etc.), cebola ou pepino em conserva,

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algum suco com fruta da estação e, às vezes, alguma sobremesa, também de frutas.

No café da tarde, em geral, come-se o mesmo da manhã e no jantar o mesmo do

almoço. À noite também há na mesa café passado e solúvel.

3.3 Sobre cosmologias

Segundo Woortmann e Woortmann (1997, p.132), “o prático e o simbólico se

fundem no processo de trabalho”.

O saber mágico e as crenças religiosas, para os trobiandeses, tanto quanto para os sitiantes (benzer o pasto e o gado ou recorrer aos santos, por exemplo), são tão necessários quanto o saber “técnico”, e conhecê-los é fundamental para que o antropólogo possa dar sentido ao esforço produtivo (Woortmann e Woortmann, 1997, p.15).

8

Eles ainda complementam: muito além da técnica, “o processo de preparo

da terra, como um todo, também envolve uma dimensão mágico-religiosa: frills,

8 Malinowski descreve as práticas e crenças dos nativos das ilhas Trobiand em suas etnografias

pioneira (Argonautas do Pacífico Ocidental, 1978).

Figura 04: Seu Roni e sua plantação de batatas ecológicas.

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como diria Leach” (1965 apud Woortmann e Woortmann, 1997, p.60). Para Leach “o

processo de trabalho, além de suas dimensões técnicas, possui também seus frills e

decorations. São eles que fazem do trabalho Kachin um trabalho Kachin, e o mesmo

pode ser dito com relação aos sitiantes que estudamos”9 (Woortmann e Woortmann,

1997, p.134). Desse modo, “a prática da lavoura é informada por um modelo

cosmológico” (Woortmann e Woortmann, 1997, p.166).

A prática da família na agroecologia, segundo justifica Seu Roni, ocorre por

vários motivos, entre eles o cuidado com a saúde, como já foi dito. Percebe-se, além

disso, que outros fatores também orientam essa escolha. É o caso do que diz

respeito a visões de mundo.

Assim como os sitiantes sergipanos observados pelos Woortmann, Seu Roni

acredita que a terra é dada por Deus para os homens trabalharem. A relação com a

terra envolve, assim, respeito e reciprocidade, não uma atitude de exploração

máxima. Com isso, torna-se moralmente errado envenená-la com o uso de

agrotóxicos. Em seu modo de ver, o uso de agrotóxicos – assim como também os

transgênicos – causa prejuízos à terra, além de danos à saúde daqueles que

utilizam o veneno e dos que consomem os alimentos. Ele diz que modificar a

natureza desse modo, pela mão do homem, não pode ser da vontade de Deus.

Seu Roni busca na bíblia a fonte de muitas de suas convicções. Para ele, a

mudança de tempos, anunciada no livro sagrado, já está a se observar. As mortes

em massa e as tragédias que diariamente estão presentes nas notícias seriam

provas do desrespeito à natureza – natureza de Deus. Ele afirma que “no dia em

que o homem começar a roubar à terra, o mundo se transformará para pior”.

Nesse ponto, observamos mais um paralelo com os sitiantes sergipanos

estudados por Woortmann e Woortmann (1997), que comentam que:

para os sitiantes, a natureza não tem apenas suas leis próprias como um domínio em si, ao contrário da percepção científico-ecológica do pensamento ocidental; ela é concebida como um instrumento de Deus, o qual se manifesta diretamente aos homens por meio dela (Woortmann e Woortmann, 1997, p.62).

Falando sobre a constituição do sítio desses camponeses, eles

complementam:

9 Edmund Leach estudou o povo Kachin na Birmânia. Os descreve em sua principal monografia

Sistema Políticos na Alta Birmânia (2004).

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Essa organização do espaço-ambiente, que corresponde a um padrão tradicional camponês de reprodução social e de percepção do ambiente, tende a uma forma de economia auto-sustentada. Nesse espaço são construídos outros espaços, microespaços, dissemos, onde as plantas cooperam entre si e com a terra, cooperação essa que parece buscar uma harmonia, um equilíbrio. Tal ecossistema é o resultado da aplicação de um saber e este é, em boa medida, uma linguagem simbólica que constrói o mundo. Ecologia e simbolismo não são, pois, dimensões separadas (Woortmann e Woortmann, 1997, p.133).

Para Seu Roni, os agricultores que não se preocupam com isso não têm fé.

“Não se importam se aquele alimento que eles vão vender fará mal para as pessoas

da cidade, até mesmo para as criancinhas; dizem que se os consumidores da cidade

também não se preocupam deve ser porque é isso mesmo que eles querem”. Em

outra ocasião, em conversa com Patrícia Pinheiro (2010, p.144), Seu Roni

comentou:

Tu pode ver, muito colono planta batata-inglesa, mas ele não come. Mas então ele sabe que faz mal [aplicar agroquímicos]. Então é confiança. Mas aquelas pessoas que moram na cidade [que consomem], também são humanas. Se nós [agricultores] não temos coragem de comer aquilo ali, imagina [os outros]. Todo colono que planta batata-inglesa, ele sempre plantava uma lavourinha separada para ele comer. Então por que ele faz isso? Então ele sabe tão bem quanto nós que isso faz mal.

O respeito à natureza, para Seu Roni, vai além da lavoura. Na propriedade,

tenta sempre manter uma ou mais áreas de mato, enquanto os outros colonos, como

ele diz, já derrubaram tudo. Seu Roni conta que alguns vizinhos até já se ofereceram

para comprar a madeira que resultaria da derrubada de suas áreas de mato. Mas ele

sempre se recusa a fazer isso. Ele entende que não pode só tirar da terra, “tem que

manter um pouco de mato para ela não enfraquecer demais”.

Também outros elementos da natureza tentam ser observados na prática

agrícola, como a influência da Lua, por exemplo. Para a família, a lua crescente faz

com que as plantas cresçam mais. Na lua minguante, as ramas crescem menos,

sendo ideal para aqueles cultivos que ficam embaixo da terra, como a cenoura, por

exemplo. Na realidade, o ideal para esses últimos é que se plante no terceiro dia da

lua cheia, para que estejam crescendo durante a lua minguante.

Seu Roni admite que a origem de suas concepções está muito atrelada a

seu pertencimento religioso, na igreja luterana. Ou ao menos do que apreende do

luteranismo. No entanto, comenta também que o pastor, durante os cultos, não fala

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muito a respeito do uso de agrotóxicos no trabalho na terra, para não enfrentar

diretamente os demais colonos.

Conforme aponta Bahia (2011), a partir de seu estudo na região serrana do

Espírito Santo no final da década de 1990, os camponeses pomeranos costumam

ter uma visão particular da religião luterana, que não necessariamente é idêntica

àquela oficial, pregada pelo pastor, mas sim mais associada com a vida cotidiana,

no campo. Costumam crer e executar diversas práticas de caráter mágico-religioso,

que muitas vezes entram em conflito com a autoridade religiosa. Segundo a autora,

os casos mais conflituosos giram em torno das benzedeiras. Dona Lúcia comenta

que, embora o pastor não concorde, muitas vezes, quando seus filhos eram

pequenos e adoeciam, ela os levava em alguma benzedeira da região.

Na família Mülhemberg, eles observam certos rituais oriundos da tradição

oral pomerana. É o caso, segundo contaram, da água de páscoa. Toda manhã de

páscoa, um dos membros da família, geralmente Luciano, que se mostra mais

apegado às tradições, acorda na primeira hora do dia e, calado (há uma restrição de

falar com as pessoas), enche uma garrafa de água no córrego mais próximo. Essa

água será utilizada durante todo o ano, para lavar ferimentos, principalmente olhos,

tendo um poder curativo. Também não deixam de produzir, a cada 31 de maio, o

maishnaps (cachaça de maio)10, uma bebida composta de cachaça e 31 ervas, à

qual são atribuídos efeitos de cura, principalmente em problemas relacionados à

digestão.

Por fim, é preciso dizer que, além das concepções de fundo religioso,

compartilhadas em maior ou menor grau com os demais membros da comunidade

religiosa, outras correntes de pensamento também orientam o caminho da família

pela agroecologia. É o caso de ansiedades presentes no mundo contemporâneo,

como as questões de cunho ambiental, mudanças climáticas, aquecimento global,

sempre citadas nas conversas com eles. A esse respeito, as diferentes visões

podem ser caracterizadas como oriundas de redes longas e redes curtas, conforme

discutido por Latour (1994). Preocupações mais globais, como as de fundo

ambiental, e outras mais locais, como a preocupação com a saúde dos membros da

família e dos consumidores, bem como cuidado com a terra, se entrelaçam na

prática agroecológica da família Mühlemberg.

10

Para saber mais a respeito, ver Schneider e Menasche (2011).

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IV – Entre o individual e o coletivo: rupturas e continuidades

4.1 A rede de vizinhança e parentesco

Nas localidades de Butiá e Coxilha Negra há grande presença de famílias de

origem alemã e pomerana e de famílias negras. Em menor proporção, há também

algumas famílias de brasileiros (designação para os colonos que não advém de uma

origem étnica europeia). A maioria dos pomeranos pertence à religião luterana, já os

negros e brasileiros são da religião católica. Nas festas da comunidade luterana, há

a participação dos católicos, como pude observar. Naquelas realizadas pela igreja

católica, contaram-me que os luteranos também participam, porém não tive a

chance de acompanhar.

Segundo me foi relatado, as pomeranas, com certa frequência, se casam

com brasileiros, mas os homens pomeranos são desaconselhados a se casar com

mulheres brasileiras. Uma vez que é a mulher, na cultura pomerana, a responsável

pela manutenção das tradições, se ela integra o casal está assegurada a

continuidade, ao contrário do que ocorre quando a mulher é de outra origem étnica.

Não soube de casos de casamento entre negros e pomeranos, nem entre

negros e brasileiros. Os morenos (como são chamados os negros dessas

localidades) são, em geral, mais empobrecidos que os demais. Alguns trabalham

com sua própria plantação de fumo, outros trabalham como diaristas para os

colonos. Os pomeranos dizem que “apesar da maioria ser gente muito boa, não

gostam muito de trabalhar e por isso não prosperam”. Parece haver ai, claramente,

duas concepções de trabalho muito distintas. A dos colonos pomeranos, atrelada a

toda uma ética da igreja luterana, de “trabalhar de sol a sol”, e outra dos

afrodescendentes, carregada, possivelmente, desde os tempos da escravidão.

Hoje em dia, a grande maioria dos produtores tem como principal atividade

econômica o cultivo de fumo. Quase todos explicam sua entrada e permanência na

produção de fumo pela impossibilidade de praticar outra atividade. A família Oswald,

por exemplo, produzia leite, enquanto que os Bork vendiam alimentos para o

caminhão, que recolhia a produção para vender na cidade. Contudo, com o tempo, a

renda que obtinham nessas atividades deixou de suprir suas necessidades.

Para o autoconsumo, algumas dessas famílias criam gado de leite, animais

para carne (porcos, galinhas, rês) e plantam: principalmente, milho e feijão, além de

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cultivarem hortas. Alguns não empregam qualquer tipo de agrotóxico nesses

cultivos, mas a maior parte desses camponeses os utiliza. Contudo, muitos precisam

comprar os alimentos que não produzem. A maioria opta por comprar nos armazéns

na colônia ou vão ao mercado, na cidade. Alguns vizinhos compravam alimentos de

Seu Roni (diziam que a produção ecológica era mais saudável), principalmente

batatas, mas pararam de fazê-lo, em razão de encontrá-los no mercado a preços

mais baixos.

Os Mühlemberg parecem ser vistos pela comunidade com certa

ambiguidade. Se por um lado essas famílias, mesmo trabalhando com a produção

de fumo, avaliam em seus discursos que a produção ecológica é mais saudável para

as pessoas e melhor para a terra; por outro, olham com certa desconfiança para o

trabalho da família de Seu Roni. Ele conta que em muitos momentos já foi chamado

de louco e que seu trabalho foi posto em dúvida inúmeras vezes: “Diziam que isto

não daria certo, que era loucura”.

Além da convivência na rede de vizinhança com produtores de fumo – que

fazem parte da mesma comunidade religiosa que a família Mühlemberg –, a

fumicultura também está presente no interior de sua rede de parentesco. Alguns

membros da família extensa, como o irmão de Dona Lúcia, são produtores de fumo.

No inverno passado, após uma forte chuva de granizo, o irmão de Dona Lúcia,

cunhado de Seu Roni, perdeu quase toda a plantação. Seu Roni e os dois filhos

abandonaram um dia de trabalho em sua propriedade para ajudar, junto com outros

parentes, o cunhado a recolher o que sobrara.

É preciso notar ainda que, não obstante as concepções bem formadas e as

eventuais críticas aos demais agricultores, ditos convencionais, Seu Roni não

considera que todos devam adotar o modo de produção agroecológico – fato que, à

primeira vista, parece um tanto curioso. Ele entende que não há espaço para todos

nesse modelo. A feira não comportaria mais produtores vendendo alimentos e não

haveria, a seu ver, outro meio de absorver essa produção. Embora algumas vezes

critique, em outros momentos ele reconhece que mesmo aqueles que trabalham

com o fumo atualmente não teriam outra opção. Preocupa-se, inclusive, com as

legislações que visam extinguir essa atividade até 202011.

11

Em 2005, o Brasil assinou a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), Tratado Internacional da Organização Mundial da Saúde, que visa a redução do tabagismo, entendido como epidemia.

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Anteriormente, Patrícia Pinheiro (2010, p.168) havia apontado relação, nesta

região, entre a produção de base ecológica e a de fumo.

Outro exemplo de complexidade da agricultura de base ecológica está em sua relação com o cultivo de tabaco. Convivendo com certa proximidade, por estar relacionado diretamente com a agricultura familiar, esse cultivo está presente em muitas propriedades que também mantém cultivos de base ecológica.

Ainda como observado pela autora, embora agroecologia e produção de

fumo sejam comumente identificadas como pertencentes a polos opostos, para a

maior parte dos agricultores essas práticas não são percebidas como tão distantes,

sendo inclusive encontráveis em uma mesma propriedade.

A agricultura de base ecológica é constantemente situada como contraponto ao fumo – são produções consideradas pelos mediadores como conflitantes –, porém nas propriedades da rede a presença de um não necessariamente exclui o outro (Pinheiro, 2010, p.147).

Se, por uma perspectiva técnica e econômica, as produções de fumo e

agroecológica se situam bem distanciadas, de outra perspectiva, pensando as

relações de vizinhança e de parentesco, elas não estão tão distantes assim. Valores

associados à ecologia e à sustentabilidade são, dessa forma, conjugados pela

família juntamente com outros valores, oriundos das relações comunitárias, da rede

de vizinhança e parentesco.

4.2 O caldo pomerano

Se o trabalho na terra a partir da agroecologia diferencia a família de Seu

Roni da maior parte dos membros da comunidade – o que pode, de algum modo,

afastá-los da vizinhança –, as festas podem ser percebidas como ocasiões de

reencontro.

A festa é tomada aqui como lócus privilegiado de observação das relações

sociais, uma vez que é entendida como “expressão dos valores da sociedade”, tal

como proposto por Menasche e Wedig (2013). Refletindo sobre as relações entre

campo e cidade, essas autoras resgatam o clássico estudo de Bourdieu (2006), já

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citado neste trabalho, que analisa o baile camponês na região francesa do Béarn

dos anos 1960, para pensar sobre as festas por elas observadas entre colonos

alemães na região gaúcha do Vale do Taquari.

A família de Seu Roni, bem como as de muitos de seus vizinhos, é

associada à comunidade luterana Menino Jesus. Tal como é costume em outras

comunidades luteranas da região, uma vez por ano – em setembro –, é organizada

uma festa, em que são recebidos visitantes vindos de outras localidades, assim

como da cidade. Na realidade, existe uma espécie de circuito de festas. A cada

domingo acontece uma festa em alguma comunidade do município ou de municípios

vizinhos. Na ocasião, as demais comunidades dirigem-se ao local para prestigiar a

iniciativa. A família de Seu Roni, junto com outros membros de sua comunidade,

participa de festas em quase todos os fins de semana.

No Butiá, a festa tem início com o culto na igreja; seguido de almoço – buffet

com churrasco, saladas, pães, cucas – e, à tarde, baile com banda estilo alemão

(para os mais velhos). Durante a tarde também ocorrem sorteios de rifas e jogos –

na parte externa do salão. À noite, os jovens confraternizam-se em outro baile, esse

com música de discoteca.

A festa da comunidade Menino Jesus tem por tradição servir, dentre outros

pratos, uma sopa de galinha e um caldo preparado com carne, feijão e temperos

(como eles explicam, uma espécie de mocotó sem mondongo), batizado de caldo

pomerano. Também nos casamentos de membros da comunidade, realizados no

mesmo salão, caldo e sopa não podem faltar. Na realidade, mocotó e sopa de

galinha são pratos recorrentes em outras localidades da região, nas festas de

comunidades em que existe forte presença de camponeses de origem pomerana.

Caldo e sopa são produtos e produtores de divisões de gênero. Enquanto o

primeiro é preparado pelos homens, o segundo fica a cargo das mulheres.

Geralmente é um casal bem considerado pela comunidade responsável por essa

função, no que é auxiliado por outros homens e mulheres mais novos. No Butiá, nos

casamentos e festas comunitárias, já há bastante tempo o preparo desses pratos

fica a cargo de Seu Roni e de Dona Lúcia.

Marcel Mauss (2003) ensina que as trocas estão na base das alianças que

constituem a sociedade. Essas trocas podem ser de bens materiais ou imateriais

(serviços, rituais, hospitalidade, etc) e são de outra natureza que a estritamente

utilitária – a troca justifica-se por si mesma e pela aliança que gera, não pela coisa

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trocada, que representa mais o meio pelo qual a relação é estabelecida. A troca

pressupõe, ainda, as obrigações de dar, receber e retribuir.

É através da feitura do caldo e da sopa que Seu Roni e Dona Lúcia

estabelecem uma reciprocidade com o coletivo. Quando são convidados para um

casamento, é esse o presente que se espera deem aos noivos. Nas festas da

comunidade, tal qual seus pares, doam seu trabalho, além de aportarem a maior

parte dos ingredientes a serem usados na preparação dos pratos sob sua

responsabilidade.

Essa reciprocidade assume por vezes o sentido mesmo de obrigação. Seu

Roni confidencia que, já aos 63 anos, gostaria de parar de preparar o caldo, mas

ainda não encontrou alguém que pudesse substituí-lo. Nenhum de seus ajudantes

nem de seus filhos se coloca disponível para assumir a obrigação de seguir o

preparo do caldo em seu lugar. Eles parecem conhecer bem as consequências de

assumir essa responsabilidade e, por isso mesmo, declinam da indicação.

Assim, se as particularidades da família são importantes para entender muito

de seu comportamento e de suas escolhas, que conformaram sua trajetória de vida

(sobretudo no que diz respeito ao trabalho na agroecologia), a relação com o

coletivo (seu pertencimento étnico e religioso, a própria inserção na comunidade

luterana e as relações de vizinhança e parentesco) também se fazem importantes

para entender como essa família é.

Como já visto, Ginzburg (2006) define a trajetória de Menocchio analisando,

por um lado, suas escolhas individuais (leituras e teorias com que simpatizava) e,

por outro, o próprio contexto social e temporal em que estava inserido localmente (a

cultura camponesa daquela região e época). Assim como Menocchio, a família

interlocutora desta pesquisa apenas pode ser parcialmente definida por aquilo que

representa suas diferenças, outra parte advém de sua inserção em uma comunidade

e em uma época definidas.

Assim, mesmo que haja divergências entre os membros da comunidade

quanto a escolhas e concepções, em suma, mesmo que essa comunidade não seja

homogênea – como quem sabe alguns pensassem –, ainda assim não se pode

atribuir todos os comportamentos a decisões individuais. A vida comunitária tem um

papel importante no modo de vida da família de Seu Roni. Contudo, ainda é preciso

tornar claro o que entendemos por comunidade.

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Figura 05: Seu Roni preparando o caldo pomerano.

Figura 06: Dona Lúcia preparando a sopa de galinha.

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4.3 comunidades agonísticas

Estudos na área de antropologia rural desmistificaram, já há algum tempo, a

ideia de comunidade enquanto unidade homogênea e apontaram as dimensões

conflitivas da vida comunitária. Os próprios limites e definições da ideia de

comunidade têm sido discutidos. O tema foi analisado por John Comerford (2005),

no Dicionário da Terra. Bastante utilizado pelos moradores de localidades rurais,

pelo governo e por pesquisadores, ele entende que comunidade rural indica

(...) um grupo concreto delimitado em termos territoriais (a população de uma localidade, distrito, município) e em termos de sua atividade (pessoas que se ocupam de atividades “rurais”, ligadas à agricultura e à pecuária), mas, ao mesmo tempo, a expressão sugere que esse grupo se organiza a partir de relações de proximidade e solidariedade, em que sobressaem a importância do parentesco, vizinhança, cooperação no trabalho, co-participação nas atividades lúdico-religiosas, apontando para valores de harmonia e consenso (Comerford, 2005, p.112).

Trata-se, assim, de um duplo aspecto atribuído à noção de comunidade:

enquanto grupo concreto e em sua qualidade de relações.

Antônio Cândido (1987), ao estudar os bairros rurais de São Paulo na

década de 1950, mostrou como o trabalho compartilhado e as festas religiosas

podem conformar aquilo que chamamos de comunidades. Como certas atividades

agrícolas precisavam de maior mão de obra que a disponível apenas no grupo

doméstico, os vizinhos se juntavam em forma de mutirão para ajudar a família

necessitada; esta, por sua vez, retribuía a ajuda no próximo mutirão. Da mesma

forma, as festas religiosas contribuíam na solidariedade entre vizinhos. Além de

participarem delas, em cada edição, pessoas diferentes ficavam responsáveis por

sua organização, criando assim sentidos de responsabilidade para com a

coletividade. Essa reciprocidade gerada a partir dos mutirões e das festas, segundo

Cândido (1987), aproximava a vizinhança e conformava a comunidade.

Contudo, por mais que se percebam as dimensões de proximidade nas

relações e solidariedade entre membros de uma comunidade, não se pode encará-

las como totalidades homogêneas. Segundo Comerford (2005, p.117), “vários

estudos feitos em comunidades rurais mostram que a solidariedade e a igualdade

que caracterizam tais comunidades são indissociáveis de uma dimensão conflitiva,

como dois lados de uma mesma moeda”.

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Comerford (2005) destaca a noção de comunidade moral, introduzida pelo

antropólogo inglês Frederick George Bailey, na qual é enfatizada a dependência do

julgamento recíproco em termos de dados valores morais, com base em

determinados códigos comunicativos e meios de circulação de informações e

julgamentos morais (como a fofoca). Em sua tese, o conflito seria, inclusive,

constitutivo das relações comunitárias.

Em seu próprio estudo, realizado na região da Zona da Mata de Minas

Gerais, John Comerford (2004) demonstrou como os conflitos entre membros de

uma comunidade e as narrativas desses conflitos fazem parte da sociabilidade

camponesa. Apesar do discurso de que “todo mundo se dá bem”, os conflitos fazem

parte da realidade diária; surgem a partir da observação do comportamento dos

demais e das narrativas textuais geradas a partir da observação: a conversa, a

crítica, a gozação e a fofoca.

Quando se caminha pela estrada, observa-se atentamente quem está onde, o que os moradores dos sítios por onde se passa estão fazendo, o que fizeram ou deixaram de fazer em seus quintais, casas e roças. A vigilância mútua, indissociável das narrativas e discussões, se impõe naturalmente (Comerford, 2004, p.2).

Para Comerford (2004), o conflito diz respeito mais a certa “cosmologia

prática” centrada na noção de respeito. “Briga-se por tudo o que possa ser visto

como provocação, como desrespeito. E, diante do desrespeito, depara-se

justamente com a ameaça a uma viga mestra desse universo social: o respeito”

(Comerford, 2004, p.3-4).

Há um permanente senso do risco que cada encontro ou aproximação traz em si (mesmo com os que são supostamente “próximos”, como os vizinhos, os parentes, os familiares, os amigos, os compadres), em que a ambiguidade de cada relação é base da prática social, a amizade e a hospitalidade são sempre, em certo sentido, uma aposta. E, como toda aposta, é pública: o público está sempre julgando se aquela família escolheu bem ou mal suas amizades, quem a família recebe na sua casa, quem ela não recebe, de que modo recebe (Comerford, 2004, p.4).

Não apenas se briga muito, como também se fala muito sobre brigas:

dedica-se enorme atenção às narrativas de conflitos. Como explica o autor, há

diversos gêneros de fala classificados e valorizados diferentemente, alguns

marcados com sinais positivos e outros negativos.

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Dessa maneira, a dimensão dos conflitos e das narrativas dos conflitos, para

Comerford (2004), estaria na base mesmo da constituição das comunidades, que,

mais do que totalidades homogêneas, devem ser pensadas como comunidades

agonísticas. Em suas palavras:

(...) a comunidade não é mais pensada como uma totalidade una inserida em uma hierarquia administrativa ou eclesiástica, mas sim em sua dinâmica agonística entre aqueles que partilham de valores, formas de sociabilidade, códigos e informações (...) (Comerford, 2004, p.9).

As comunidades, assim, definem os pertencimentos: aqueles que pertencem

e os outros, que são os de fora. Essas comunidades, contudo, não são fechadas e

seus membros constituem outras relações, em outras redes de relações.

Patrícia Pinheiro (2010) mostra como produtores, consumidores e membros

de instituições vinculadas à agroecologia, mesmo distanciados fisicamente, acabam

constituindo redes de relações em torno da agroecologia. Isso é o que ocorre

também com a família de Seu Roni que, ao longo dos anos, estabeleceu relações

com instituições ligadas de alguma forma à agroecologia, como o CAPA e a

Embrapa, com outros produtores agroecológicos – muitas vezes a partir da

mediação dessas instituições – e com consumidores, principalmente aqueles que, a

cada semana, vão à feira, em São Lourenço do Sul.

Contudo, embora caiba reconhecer que essas redes são importantes no

moldar as convicções e o próprio trabalho da família, não se pode ignorar o papel

das relações comunitárias locais – mesmo conflitivas – na conformação de seu

modo de vida. A comunidade em que Seu Roni está inserido pode ser pensada

também como de tipo agonístico, em que os conflitos e as diferenças são parte

constitutiva.

No entanto, mesmo com a existência desses conflitos e diferenças em

relação à vizinhança, especialmente no que diz respeito ao trabalho na terra (são

produtores ecológicos em meio a fumicultores), a família não pode ser tomada como

uma ilha. Tentamos mostrar como a vizinhança e o parentesco, a participação na

vida religiosa e nas festas e a própria identidade assumida (pomerana) fazem parte

da vida dos Mühlemberg tanto quanto sua vinculação a um modelo de produção

agroecológico e como essas práticas e valores são por vezes concorrentes,

enquanto que em outras oportunidades reforçam-se mutuamente.

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Figura 07: Festa na Comunidade Luterana Menino Jesus de Butiá.

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V – Considerações finais

Ainda que, como buscamos demonstrar neste trabalho, as práticas da

família na agroecologia sejam principalmente orientadas por valores associados à

saúde, religiosidade e cosmologias, além de serem permeáveis às relações de

parentesco e comunitárias, a dimensão econômica não pode ser ignorada. Assim

como se dá entre as demais famílias rurais, também o progresso financeiro está na

pauta da família Mühlemberg.

Seu Roni conta que já pensou em desistir inúmeras vezes, mas que suas

convicções o fazem permanecer na agroecologia. Ele comenta que, ainda que não

utilize agrotóxicos ou transgênicos (criações da modernidade), não deseja trabalhar

como faziam seus avós. Considera que o desenvolvimento de tecnologias e sua

utilização também são necessários para a agricultura de base ecológica. Já

aposentado, almeja reduzir o ritmo de trabalho, até que possa parar totalmente.

Afinal, como tem dito, não durará para sempre.

Nesse contexto, uma questão que se mostra cada vez mais importante para

a família pensar seu futuro é o tema da sucessão. Na realidade, o problema da

sucessão está associado à questão da reprodução social das famílias, colocado em

todo o universo camponês.

Dos filhos de Seu Roni, Luciano, o “cientista”, defende sempre a ideia de

permanecer no campo e na agroecologia. A respeito do valor que dá à natureza,

explica, em entrevista realizada por Patrícia Pinheiro (2010, p.145):

É que eu gosto da natureza porque eu gosto dessas coisas diferentes, que não vêm prontas, que têm que pensar um pouco, correr atrás. E eu acho lindo o jeito como a natureza se organiza. A natureza é tão sábia que ela não perde nada, ela aproveita tudo. [...] O equilíbrio matemático, físico, químico é impressionante. Tem plantas que produzem fungicidas, que produzem inseticidas e meu sonho sempre era construir [...] um laboratório e mexer com essas coisas [...]. Porque eu na cidade, eu não consigo me acostumar. Eu gosto do interior.

Coerente com sua visão de mundo, ele utiliza a ciência que aprendeu para

contribuir para a permanência da família na agroecologia. Ao longo dos anos,

Luciano já pensou em algumas alternativas para complementar a renda da família e,

desse modo, reduzir a pressão no sentido da retomada de uma prática mais

convencional. Entre os experimentos, ele criou uma estrutura (estufa) para a

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produção de cogumelos shitake e uma máquina para fabricar palitos de

churrasquinho com taquara, ambas iniciativas ecológicas. Contudo, por diferentes

motivos, nenhuma das alternativas engendradas teve êxito.

Para Moacir, entretanto, casado, trabalhando na propriedade

(diferentemente de Luciano), a questão do progresso financeiro parece contar um

pouco mais. Como sempre comenta, quer conseguir, através de seu trabalho,

prosperar e adquirir bens materiais. Também pensa em começar uma vida nova e

melhor com sua esposa, com quem se casou há pouco tempo. Mais de uma vez ele

propôs ao pai sair da agroecologia e voltar para a agricultura convencional, mas Seu

Roni recusou. Recentemente, influenciado por um antigo membro do grupo de

agroecologia do qual Seu Roni fazia parte, passou a cultivar na propriedade o fumo

orgânico. Seu Roni aceitou, por entender que o filho tem o direito de buscar

prosperar economicamente.

As aspirações de progresso a que Moacir se refere parecem encontrar

paralelo entre seus vizinhos. Por esse motivo, inclusive, muitos aderiram à

fumicultura. Como tentamos demonstrar, se, por uma perspectiva técnica e

econômica, as produções de fumo e agroecológica se situam bem distanciadas, de

outra perspectiva, pensando as relações de vizinhança e de parentesco, os dois

modelos produtivos não estão tão distantes assim.

Mais do que isso, entendemos que, embora as escolhas individuais e as

relações no interior de uma rede de alimentação ecológica sejam necessárias para

definir o trabalho da família na agroecologia, não podemos ignorar a importância da

comunidade nesse processo. Pelo contrário, as relações de vizinhança e

parentesco, bem como a participação nas atividades religiosas e nas festas, são

fundamentais para a vivência dessa família e para a constituição de suas práticas e

valores, refletindo-se inclusive em seu trabalho na terra.

Suas visões de mundo quanto à relação com a natureza têm um fundo

religioso, o mesmo que é partilhado pela comunidade e transmitido pela Igreja,

mesmo que nem todos levem a prática para o mesmo lado, aderindo à agroecologia,

como a família de Seu Roni. Mesmo que, sob vários aspectos, haja divergências

entre os membros da comunidade, ainda assim existe um fundo comum. Se

quisermos apreender o que motiva os produtores ecológicos, não podemos apenas

visualizá-los isoladamente, como ilhas em seus contextos, ou em relação apenas

com outros agricultores que adotaram o mesmo sistema. Como Menocchio, a família

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de Seu Roni pode apenas em parte ser definida por suas especificidades, na medida

em que seus valores advêm também desse fundo comum partilhado, com sua

comunidade.

A análise da trajetória dessa família revela essa intersecção com a

comunidade, mas também auxilia a perceber questões mais gerais a partir da

observação local. Assim, do mesmo modo que Ginzburg (2006, p.10), que apontou

que “uma investigação que, no início, girava em torno de um indivíduo, sobretudo de

um indivíduo aparentemente fora do comum, acabou desembocando numa hipótese

geral sobre a cultura popular – e, mais precisamente, sobre a cultura camponesa –

da Europa pré-industrial (...)”, no presente estudo pretendemos, igualmente, contar

uma história particular, sobre uma família particular, mas que, a todo o momento, é

perpassada por questões que tangem, além dela própria e de sua comunidade, um

contexto mais amplo, referente a modos de vida de colonos da Serra dos Tapes e de

um mundo camponês.

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