Entre a Oralidade e a Escrita Um Estudo Dos Folhetos de Cordel Nordestinos

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ENTRE A ORALIDADE E A ESCRITA: UM ESTUDO DOS FOLHETOS DE CORDEL NORDESTINOS Profa. Dra. Márcia Abreu * “Sou um analfabeto que sempre viveu das letras...” 1 João Martins de Athayde poeta popular A fala de João Martins de Athayde, epígrafe deste trabalho, aponta para um fato curioso: a existência de um grande contingente de iletrados produzindo e consumindo literatura. Este aparente paradoxo torna-se perfeitamente compreensível quando examinamos as peculiaridades desta forma poética, conhecida como literatura de folhetos ou literatura de cordel. O início da publicação de narrativas poéticas no Nordeste brasileiro surge na esteira de apresentações orais, chamadas cantorias 2 . Bastante freqüentes durante o século XIX e início do XX, as cantorias eram recitativos acompanhados ao som de violas ou rabecas em que cantadores batiam-se em desafios e/ou apresentavam composições poéticas - glosas feitas a partir de um mote, descrições da natureza, sátiras, narrativas em versos. Estas apresentações ocorriam em praticamente todos os lugares em que houvesse público - nas feiras, em festas nas fazendas ou engenhos, em residências particulares. Os cantadores poderiam apresentar-se durante toda uma noite sem duelarem, ou seja, cantando apenas seus poemas previamente elaborados, mas, quando batiam-se em desafios, cabia ao vitorioso o direito de cantar suas composições poéticas. O estilo característico dos folhetos parece ter iniciado seu processo de definição neste espaço de oralidade, muito antes que a impressão fosse possível. Na última década do século passado, alguns poetas populares nordestinos começaram a dar forma impressa a composições orais, através da publicação de pequenos folhetos. Não se pode afirmar com certeza quem foi o primeiro autor a editar seus poemas mas, seguramente, Leandro Gomes de Barros foi o responsável pelo início da publicação sistemática, sendo autor do mais antigo folheto impresso de que se tem notícia, datado de 1893. Na primeira década do século XX, dois importantes autores começaram a publicar: Francisco das Chagas Batista, em 1902, e João Martins de Athayde, em 1908. Leandro e Chagas Batista foram os fixadores das normas de composição de folhetos adotadas até hoje, abrindo todas as vias que esta literatura deveria seguir posteriormente. Os grandes ciclos futuros assim como as principais * IEL, UNICAMP 1 Em entrevista concedida a Orígenes Lessa em 9 de outubro de 1954, publicada em LESSA, Orígenes. A Voz dos Poetas, Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1984. 2 Segundo Átila de Almeida, em Notas sobre a Poesia Popular (Campina Grande, Paraíba, 1984), no século XIX, as justas poéticas entre cantadores eram denominadas "martelo". O termo "cantoria" data de final do século XIX e designa o espetáculo que inclui tanto o desafio quanto a apresentação de romances. É nesta acepção que a palavra é empregada aqui. "Peleja" e "Desafio" são termos do início do século XX, não havendo qualquer diferenciação em seu emprego.

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  • ENTRE A ORALIDADE E A ESCRITA: UM ESTUDO DOS FOLHETOS DE CORDEL NORDESTINOS

    Profa. Dra. Mrcia Abreu

    *

    Sou um analfabeto que sempre viveu das letras... 1

    Joo Martins de Athayde poeta popular

    A fala de Joo Martins de Athayde, epgrafe deste trabalho, aponta para um fato curioso: a existncia de um grande contingente de iletrados produzindo e consumindo literatura. Este aparente paradoxo torna-se perfeitamente compreensvel quando examinamos as peculiaridades desta forma potica, conhecida como literatura de folhetos ou literatura de cordel. O incio da publicao de narrativas poticas no Nordeste brasileiro surge na esteira de apresentaes orais, chamadas cantorias

    2. Bastante freqentes

    durante o sculo XIX e incio do XX, as cantorias eram recitativos acompanhados ao som de violas ou rabecas em que cantadores batiam-se em desafios e/ou apresentavam composies poticas - glosas feitas a partir de um mote, descries da natureza, stiras, narrativas em versos. Estas apresentaes ocorriam em praticamente todos os lugares em que houvesse pblico - nas feiras, em festas nas fazendas ou engenhos, em residncias particulares. Os cantadores poderiam apresentar-se durante toda uma noite sem duelarem, ou seja, cantando apenas seus poemas previamente elaborados, mas, quando batiam-se em desafios, cabia ao vitorioso o direito de cantar suas composies poticas. O estilo caracterstico dos folhetos parece ter iniciado seu processo de definio neste espao de oralidade, muito antes que a impresso fosse possvel. Na ltima dcada do sculo passado, alguns poetas populares nordestinos comearam a dar forma impressa a composies orais, atravs da publicao de pequenos folhetos. No se pode afirmar com certeza quem foi o primeiro autor a editar seus poemas mas, seguramente, Leandro Gomes de Barros foi o responsvel pelo incio da publicao sistemtica, sendo autor do mais antigo folheto impresso de que se tem notcia, datado de 1893. Na primeira dcada do sculo XX, dois importantes autores comearam a publicar: Francisco das Chagas Batista, em 1902, e Joo Martins de Athayde, em 1908. Leandro e Chagas Batista foram os fixadores das normas de composio de folhetos adotadas at hoje, abrindo todas as vias que esta literatura deveria seguir posteriormente. Os grandes ciclos futuros assim como as principais

    * IEL, UNICAMP

    1 Em entrevista concedida a Orgenes Lessa em 9 de outubro de 1954, publicada em LESSA,

    Orgenes. A Voz dos Poetas, Rio de Janeiro, Fundao Casa de Rui Barbosa, 1984. 2 Segundo tila de Almeida, em Notas sobre a Poesia Popular (Campina Grande, Paraba, 1984),

    no sculo XIX, as justas poticas entre cantadores eram denominadas "martelo". O termo "cantoria" data de final do sculo XIX e designa o espetculo que inclui tanto o desafio quanto a apresentao de romances. nesta acepo que a palavra empregada aqui. "Peleja" e "Desafio" so termos do incio do sculo XX, no havendo qualquer diferenciao em seu emprego.

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    formas de versificao esto representados em sua poesia. Seguindo os passos destes primeiros autores, muitos poetas comearam a imprimir.

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    At a dcada de 60, a trajetria dos poetas bastante semelhante. Posteriormente, verfica-se uma decadncia na produo nordestina, com um deslocamento das principais atividades de produo e consumo para as cidades do Rio de Janeiro e So Paulo, acarretando modificaes no perfil de produtores e receptores desta literatura. Apesar disso, a estruturao dos folhetos mantm-se praticamente inalterada. Neste estudo, examinaremos as condies de produo e recepo desta literatura neste primeiro perodo. Poeta que espera escola pra comear a escrever t cravado A biografia dos principais autores, atuantes at meados deste sculo, tem sido apresentada, com freqncia, por folcloristas e estudiosos da literatura popular.

    4 No buscarei, portanto, reconstituir a vida de cada um destes poetas.

    Entretanto, h dados recorrentes em sua formao, importantes para a compreenso das especificidades da produo potica em um universo marcadamente oral. Filhos de pequenos proprietrios ou de trabalhadores assalariados, a grande maioria dos poetas nasceu na zona rural. Com pouca ou nenhuma instruo formal, eram autodidatas ou aprenderam a ler com parentes e conhecidos. No so raros os que aprenderam a ler a partir da audio de leituras de folhetos, feitas por vendedores ou autores, que eventualmente instruam-nos sobre as regras de composio desta literatura. O aprendizado formal, em escolas, parece ser o menos freqente. Narrando a trajetria de Jos Soares, o poeta-reprter, seu filho Marcelo diz:

    [Jos Soares] tinha quatorze anos quando saiu o primeiro folheto. No que ele fosse bom de instruo... At que no era... Livro era pouco... Aprendera na vida, ele sempre dizia. Com a experincia e com a cabea dele. Alis com as cabeadas... Poeta que espera escola pra comear a escrever t cravado. Tem que comear logo, na chegada da inspirao ou das coisas que o sujeito vai aprendendo.(...) O bonito, em meu pai, que ele s fez o segundo ano primrio. Tem doutor de Universidade que no capaz de escrever um folheto de oito pginas. Meu pai fez trezentos. (...) E ainda deixou muito material indito. Tudo o que ele teve saiu do folheto...

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    Freqentar escolas no parece ser requisito fundamental para o sucesso na vida de poeta. Entretanto, necessrio entrar em contato com alguns dos contedos da tradio letrada. A formao para cantador ou para autor de folhetos passa pela leitura de alguns livros, como a Bblia, o Lunrio Perptuo, Histria de Carlos Magno, geografias e histrias do Brasil, alguns romances eruditos, alm da indispensvel leitura de folhetos de cordel. Diz Manuel Camilo:

    3 At 1930, h registros de que, pelo menos, os seguintes autores tinham publicado folhetos: Jos

    Ado Filho, Firmino Teixeira do Amaral, Joo Martins de Athayde, Francisco das Chagas Batista, Antnio Ferreira da Cruz, Jos Galdino da Silva Duda, Belarmino de Frana, Antnio Batista de Guedes, Libnio Mendes de Lima, Silvino Pirau de Lima, Pacfico Pacato Cordeiro Manso, Jos Pacheco, Romano Elias da Paz, Severino Loureno da Silva Pinto, Joo Melchades Ferreira da Silva, Antnio Mulatinho, Ccero Sidrnio do Nascimento, Francisco Marab, Heitor Martins de Athayde, Jos C. Correia, Luis da Costa Pinheiro e Mariano Riachinho. 4 Ver, principalmente, o Dicionrio Bio-bibliogrfico de Repentistas e Poetas de Bancada, de tila

    de Almeida e Jos Alves Sobrinho, Memria de Lutas: a literatura de folhetos no Nordeste (1893-1930), de Ruth Terra, Cantadores e Poetas Populares, de Francisco das Chagas Batista e Vaqueiros e Cantadores de Cmara Cascudo. 5 Em entrevista a Orgenes Lessa (op. cit.)

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    Eu j sabia ler quando comecei a cantar, graas a Deus. Mas achei pouco. Me preparei mais... A Geografia, as Cincias Fsicas, a lngua materna, a Bblia. A Bblia, ento, um livro que, Deus que me perdoe, no tem igual no mundo. Se todo brasileiro soubesse a Bblia de cor, a gente nem precisava escrever... 6

    Manoel Camilo elege, no universo de informaes disponveis, aquelas que considera fundamentais para o bom desempenho como poeta. Os conhecimentos obtidos nos livros so acrscimos s habilidades j desenvolvidas, pois o poeta j cantava quando decidiu preparar-se melhor. Dentre os livros selecionados, o mais importante a Bblia, que deveria ser conhecida de cor. Percebe-se nesse trecho uma concepo de leitura peculiar, recorrente entre os autores de folhetos: ler deslocar os conhecimentos fixados no papel para a memria. Estes poetas, bem como o pblico tradicional dos folhetos, parecem no perceber que o registro escrito libera-nos da tarefa de decorar contedos, uma vez que eles estaro sempre acessveis nos textos. Em comunidades orais, os conhecimentos adquiridos sero perdidos caso no sejam memorizados, pois no h nada alm do crebro que possa conserv-los. A relao destes autores com a matria escrita conserva procedimentos tpicos de situaes de oralidade, em que necessrio conservar os conhecimentos adquiridos atravs da memorizao. Alguns poetas, como Severino Feitosa, dizem que aprenderam a ler decorando os textos:

    Naqueles livros, na Bblia Sagrada, na Bblia no, ou melhor no Novo e Velho Testamento o meu pai me ensinou as primeiras letras (o cantador tinha, poca 12 anos). E t de eu ter aprendido naquilo, ento eu decorava o contedo da histria. A eu... quando eu aprendi a ler no Velho Testamento, eu j estava sabendo ler... e daquilo ali eu podia pegar ento em qualquer um livro que eu lia e ento quando a gente entrava em debates assim nas farinhadas eu vencia o meu primo porque eu sabia ler! Ele no sabia, eu sabia. Entendeu? Entendeu como que ? Eu j... aparecia, porque aquele povo todinho religioso e eu j dizia cantando quem era Moiss, eu j dizia quem era J (...) Jos do Egito, eu j dizia que Jos do Egito foi menino muito sofredor e tal e tal. Eu at me comparava com Jos do Egito e tal. J falava de Esa, j falava de Sanso e da traio de Dalila, que aprendia aquelas lies pra poder aprender as letras... E aquilo eu decorava tudinho, lendo. E daquilo ali eu passava. A eu lia Geografia, lia Histria do Brasil e fui aprendendo a ler." (grifos meus)

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    Para Severino, ler e memorizar so parte de um mesmo processo: eu decorava tudinho, lendo. O produto das leituras deve ser decorado, armazenado no corpo. Uma vez mais, revela-se uma concepo de leitura que carrega consigo processos tpicos da oralidade, em que a aquisio e preservao dos conhecimentos depende da capacidade de memorizao. Importa esclarecer que o conceito de memorizao, em contextos orais, no coincide precisamente com que costumamos pensar. No se trata de decorar palavra por palavra e sim de reter a estrutura das narrativas. Assim, ao reproduzir uma histria decorada, os poetas seguiro os passos fundamentais

    6 idem, ibidem.

    7 AYALA, Maria Ignez Novais. No Arranco do Grito - aspectos da cultura nordestina, So Paulo, Ed.

    Atica, 1988. A entrevista com Severino Feitosa foi feita em Campina Grande (Pb), em 18/10/80 (p.105).

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    do enredo, mas a apresentaro a sua maneira, com suas palavras. Ampliaro situaes, reduziro episdios, em funo das reaes do pblico.

    8 Severino

    Feitosa, diz que aparecia pois dizia cantando quem era Moiss, quem era J, para aquele povo todinho religioso, ou seja, a aprovao do pblico fazia com que ele insistisse em uma temtica religiosa, evidentemente sem repetir termo a termo as passagens bblicas que havia lido, j que ele as dizia cantando. A finalidade desta leitura volta-se tambm para um universo oral, j que seu objetivo fornecer elementos para as cantorias: ele l para cantar melhor, l para ter uma melhor performance oral. Severino Feitosa um cantador e no autor de folhetos. Aqueles que produzem folhetos, alm de ler, devem ser capazes de registrar por escrito suas composies, o que tambm feito de maneira peculiar. Manuel Vieira do Paraiso relata, com ironia, as dificuldades dos poetas que comeam a escrever:

    Se eu fosse bem aprendido, Nos meus estudos firmado, Sem precisar chaleirismo Eu estava bem arrumado, Pois dar o seu a seu dono por direito obrigado Era bastante versar, Mandar imprimir e vender! Para mim era um recurso Que dava para viver. Porm, era se soubesse! Mas, no presente, cad? Fui botar meu verso em limpo Para bot-los no prelo Interessado em vend-los Era este meu anelo Danei o mata-borro Que ainda hoje relo. Ento chegou um rapaz Meu amigo e camarada Disse-me: Que servio este? De tanta letra apagada? Disse eu: No ponho em limpo? Limpeza muito danada! Disse-me mais: Por em limpo, No as letras apagar, arrumar as palavras Tudo posta em seu lugar, Botar os pontos e as vrgulas Aonde bem precisar.

    8 Para uma discusso mais detalhada do processo de memorizao em culturas orais ver: ONG,

    Walter. Orality and Literacy - the technologizing of the word, New York, Methuen, 1982. e LORD, Albert. The Singer of Tales, New York, Harvard University Press, 1978.

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    Peguei de novo a escrever; Mas conhecer, isto no! Era palavra emendada Sem nenhuma diviso! Em lugar dum ponto final Eu botava um travesso. Depois conheci por mim Que isto assim no prestava Disse: que diabo que fao, Quando por mim despachava Em cada palavra, uma vrgula E um ponto agudo eu botava. Era cedilha em esse, No c, onde carecia, Eu fazia e no botava; Porque no me advertia, Escrevia verso inteiro, Eu ia ler no podia. No acertava por mais Diligncia que tivesse; Por outra, eu achava bom Por errado que estivesse Quem caa o que no perdeu Quando acha no conhece! Eu disse: est danado, Desta forma, assim no! J sei que destes versos Eu no fao profisso. Com as folhas do caderno, Mandei embrulhar sabo.

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    Logo na primeira estrofe, o autor lamenta sua falta de estudo - "se eu fosse bem aprendido, / nos meus estudos firmado" - imaginando que a instruo formal garantiria sucesso profissional - "sem precisar chaleirismo / eu estava bem arrumado". Importa perceber que sua dificuldade reside em codificar seus versos de acordo com a norma escrita. Ele no se queixa da falta de "dom" ou falta de "inspirao", tampouco diz sentir dificuldades em relao s exigncias formais de composio prprias literatura de cordel. Seus problemas ocorrem quando, uma vez compostos mentalmente, os versos devem ser transpostos para a escrita - "fui botar meu verso em limpo / para bot-los no prelo". Ele aflige-se com pontos, vrgulas, travesses, diviso de palavras e ortografia e no com a estruturao dos poemas. A situao apresentada por Manuel Vieira sintetiza um procedimento recorrente entre os poetas que encaram a composio - elaborao mental das narrativas - e a redao - registro grfico das histrias - como processos independentes, ou seja, estes autores no constrem as narrativas enquanto escrevem, trabalhando o texto, e sim recorrem escrita como forma de registrar uma histria previamente composta.

    9 Manuel Vieira do Paraso (1882-1927), apud Almeida, tila de. (op. cit.). Manuel Vieira do

    Paraso, aparentemente, no chegou a publicar a folhetos. Tendo vivido no incio do sculo, apresentava-se oralmente, e mantinha algumas de suas composies anotadas em cadernos - prtica comum em finais do sculo XIX e incio do XX. Seus poemas chegaram at os dias atuais, graas s recolhas feitas por folcloristas.

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    Os poetas excursionam pelo mundo da escrita com pressupostos do mundo da oralidade: dos livros, extraem contedos que devem ser memorizados; registram em forma grfica composies elaboradas mentalmente. Falo de corpo presente Tal situao deixa marcas nos textos, ou como diz Zumthor

    10, ndices de

    oralidade, que atestam a convivncia entre princpios de oralidade e de escrita. Em um primeiro nvel, uma situao de oralidade pode ser apresentada como moldura narrativa. O autor alega narrar uma histria que lhe teria sido contada por terceiros:

    A permisso do destino Obrigou-me a viajar Onde se deu este exemplo Teve que me hospedar E o velho dono da casa Contou-me o que vou narrar

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    Neste caso, a escrita do folheto seria uma forma de fixao de narrativas veiculadas oralmente, aludindo, de toda forma, modalidade vocal-auditiva de sua comunicao. Em um segundo nvel, h casos, bastante freqentes, em que a interferncia da oralidade se manifesta no interior dos textos, nos momentos em que o poeta dirige-se ao pblico, pedindo-lhe que o oua ou o escute e recorre a verbos como dizer, falar, contar, a fim de caracterizar o ato de narrar:

    Charo leitor vou contar-lhe, O que foi que succedeu-me, O medo enorme que tive Que todo o corpo tremeu-me, Para falar-lhe a verdade Digo que o medo venceu-me

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    A seleo lexical feita pelo poeta aponta simultaneamente para dois universos; o substantivo leitor indica a presena de uma das instncias prprias da escrita, enquanto os verbos contar e falar remetem a uma situao de performance oral. Alguns poetas fundem as duas instncias ao dirigirem-se ao pblico, abarcando ambas as possibilidades de recepo desta literatura:

    Caros leitores e ouvintes Licena agora vos peo Para conversar um pouco Falo a verdade confesso A concincia da gente Falo de corpo presente E a distncia no meo

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    ZUMTHOR, Paul A Letra e a Voz - a literatura medieval, So Paulo, Companhia das Letras, 1993. Zumthor entende por ndice de oralidade tudo o que, no interior de um texto, informa-nos sobre a interveno da voz humana em sua publicao - quer dizer, na mutao pela qual o texto passou, uma ou mais vezes, de um estado virtual atualidade e existiu na ateno e na memria de certo nmero de indivduos. (p. 35) 11

    REI, Joo de Cristo. Exemplo de um rapaz que morreu e tornou, s/l, s/ed., s/d. 12

    BARROS, Leandro G. O Cometa. Romano e Igncio da Catingueira, Recife, 1910.

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    Escrever e falar, ler e ouvir - que, no mundo letrado, so noes distintas - apresentam-se como formas equivalentes neste universo. Nos versos acima, o poeta interpela seus leitores e ouvintes, chamando-os para uma conversa, de corpo presente, mimetizando uma situao de performance oral. Um indcio ainda mais forte de que os autores comportam-se como se estivessem em uma situao narrativa oral encontra-se na maneira como se estruturam algumas das histrias. Uma evidncia de que o acesso escrita no faz com que os poetas abandonem os padres orais pode ser vista em um dos folhetos de Leandro Gomes de Barros, intitulado Batalha de Oliveiros com Ferrabrs. Em meio narrao de uma luta entre o cavaleiro e o turco, o narrador intervm e diz:

    Eu agora me lembrei Da falta que commeti, Mas foi porque me esqueci, Por isso no relatei. Porm sempre fallarei Para o leitor se agradar, Quem sabe h de se lembrar Na lucta dos cavalleiros, O cavallo de Oliveiros Quando quiz desembestar.

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    O fato de o episdio aparecer fora da seqncia narrativa revela que o autor comporta-se como se estivesse contando uma histria oralmente. Num texto escrito seria possvel inserir o trecho "esquecido" no seu devido lugar, sendo desnecessrio interromper o curso da narrativa. Muito menos se justificaria o aparecimento do trecho fora da seqncia, devido a um esquecimento - "eu agora me lembrei / da falta que cometi / porm sempre falarei". Caracteriza-se, neste caso, uma situao tpica de contextos orais. Quando se escreve possvel retomar o que j foi apresentado atravs de uma volta ao prprio texto; passagens j escritas podem ser alteradas, alcanando-se a unidade atravs do trabalho com o texto. Em composies orais, isto no possvel, o que dito no pode ser apagado e substitudo. Importa notar que este recurso no deve ter sido sentido como falha seja pelo autor, seja pelo pblico, j que se manteve da mesma forma nas diversas reedies por que passou o folheto. V-se, tambm, que o pblico deveria conhecer previamente a histria e ter a expectativa de que ela fosse apresentada da maneira convencional, com todos seus episdios - "sempre falarei / para o leitor se agradar / quem sabe h de lembrar". Note-se, finalmente, que mais uma vez a palavra leitor surge inserida num contexto em que procedimentos de composio oral so evidentes. Cumpre ressaltar que os folhetos no podem ser inseridos completamente seja na tradio escrita, seja na oral; o que h a convivncia, s vezes conflituosa, entre os dois princpios. Os poetas populares nordestinos escrevem como se estivessem contando uma histria em voz alta. O pblico, mesmo quando a l, prefigura um narrador, cuja voz se pode ouvir. Desta forma as exigncias pertinentes s composies orais permanecem mesmo quando se trata de um

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    EUQOR, Avlis Onitnemelc (sic). O Linguarudo - carta dramtica do Linguarudo para todos os Brasileiros, s/l, s/ed., 1972 14

    BARROS , Leandro G. Batalhas de Oliveiros com Ferrabrs e A Secca do Cear, Guarabira, Pedro Baptista & Cia, 1920

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    texto escrito. Portanto, pode-se entender a literatura de folhetos nordestina como mediadora entre o oral e o escrito. At gente analfabeta / comprava ali seu livrinho Este estar a meio caminho, que caracteriza os folhetos de cordel nordestinos, permite que pessoas pouco ou nada letradas possam fruir as narrativas neles contidas. Pessoas analfabetas compram folhetos, que sero ouvidos, ao invs de lidos. Orgenes Lessa conheceu uma senhora e sua neta, na folhetaria de Manuel Camilo, que desejavam comprar um folheto, qualquer um, desde que fosse um bom. O dinheiro era insuficiente; portanto, Camilo props que pagassem numa outra vez. Lessa admira-se: a primeira vez que vejo algum entrar numa livraria, com seus ltimos nqueis, para comprar livro de qualquer qualidade.

    15 Mais admirado fica ao saber que a velha era analfabeta. Camilo

    explica:

    Ela gosta de ouvir. Quem l a bichinha. Aprendeu a ler em folheto, a danada...

    A apresentao oral de folhetos - feitas por autores, vendedores, ou conhecidos - uma das chaves para compreenso do sucesso desta literatura, pois permite sua divulgao entre pessoas iletradas. Este tipo de situao tematizada nos versos abaixo:

    At gente analfabeta Comprava ali seu livrinho E levava para casa Com cuidado e com carinho Para saber da estria Pela boca do vizinho (...) Havia tambm um cego De sanfona tira colo (...) A memria do ceguinho Era de admirar S cantava mais romances Difceis de decorar O povo fazia roda Pra ver o cego cantar

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    Consumidores iletrados so fato comum neste universo, onde a composio e recepo de narrativas tm na memria um aliado essencial. Esta prtica, bastante comum, retratada em um folheto de Manuel Duarte

    17:

    Quem no l e no escreve Da vida pouco desfruta Porem compre um livro desse Pede pra ler, escuta E ouve um pouco de tudo Da poesia matuta

    15

    LESSA, Orgenes. op. cit. 16

    MONTEIRO, Delarme. Nordeste, Cordel, Repente, Cano, J. Barros (ilustrador e editor), Pernambuco, s/d. 17

    " um pouco de tudo da poesia matuta" , Manoel F. Duarte, apud Literatura de Cordel, vol I,

    antologia, Global Editora.

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    O trecho citado revela o carter de mediador entre o oral e o escrito desempenhado pelos folhetos. Duarte diz que "quem no l e no escreve / Da vida pouca desfruta" mas a soluo por ele apresentada para que as pessoas possam "desfrutar" os prazeres da leitura insere-se num universo de oralidade - "pede pra ler, escuta", "ouve". Assim, os folhetos, no abandonando a tradio oral, possibilitam o acesso a contedos do mundo da escrita. As histrias seguidamente contadas e recontadas acabam sendo memorizadas, permitindo uma posterior aproximao entre o contedo memorizado e a forma grfica que lhe serve de suporte, o que parece ter acontecido com a bichinha que aprendeu a ler em folheto.

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    Deste modo, no so raros os casos de pessoas que se alfabetizaram a partir do contato com folhetos, inicialmente ouvidos e posteriormente lidos. A habilidade de ler, portanto, no requisito fundamental para a apreciao destas narrativas populares, conforme diz Manuel Camilo, poeta popular nordestino:

    Tem mais gente lendo. Mas no preciso. Com poesia no . O povo compra do mesmo jeito. Se tem algum que sabe ler na famlia, tudo bem. A pessoa escuta e gosta, quando o romance bom. Guarda at na cabea.

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    Camilo aponta duas questes fundamentais: o carter oralizante das leituras coletivas e a facilidade de memorizao deste tipo de poesia, que permitem, aos no alfabetizados, sua reproduo. A questo da eficcia dos folhetos numa cultura de oralidade residual apresentada tambm por Manoel de Almeida Filho, poeta entrevistado por Mauro Barbosa

    20:

    ... a grande maioria dos nossos fregueses lem o livro cantando. Como a gente l, eles aprendem as msicas dos violeiros, e eles cantam aquilo. (...) E, em casa renem uma famlia, trs, quatro, e cantam aquilo, como violeiro mesmo (...) O folheto tem esta doura do verso. E o povo nordestino se acostumou a ler o verso. Ento o livro em prosa mesmo, ele no gosta e nem gosta do jornal, a notcia do jornal. (...) Ele no entende. (...) Porque est acostumado a ler rimado, a ler versado. (...) Aquela notcia no boa para ele, o folheto sim, porque o folheto ele l cantando.

    Manoel de Almeida distingue o texto em prosa do folheto em verso, mostrando a maior eficcia deste ltimo. A forma fundamental: no importa que o jornal e o folheto divulguem a mesma notcia, ela s ser acessvel se for "rimada e versada", ou seja, se for veiculada de acordo com o cdigo aceito e compreendido pela comunidade. A leitura considerada eficaz aquela feita de maneira cantada, recolocando a questo dos procedimentos orais no contato com folhetos. Referindo-se a um vendedor, Manoel Camilo diz:

    18

    Processo semelhante parece ter sido comum no incio da Frana moderna, quando o mtodo de alfabetizao escolar considerava as letras como estmulos visuais para acionar a memria de um texto que j havia sido aprendido de cor. Ainda nos sculos XVII e XVIII, a leitura escolar era uma questo de reconhecimento de algo j conhecido, em vez de um processo de aquisio de um novo conhecimento. (apud. DARNTON, Robert. Histria da Leitura, in: A Escrita da Histria - novas perspectivas (org. BURKE, Peter), So Paulo, Editora da UNESP, 1992. 19

    LESSA, Orgenes. op. cit. 20

    ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. Folhetos (A Literatura de Cordel no Nordeste Brasileiro),

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Departamento de Cincias Sociais da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, So Paulo, 1979.

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    Cantando sai melhor do que lendo. O povo aprecia mais. No viu aquele analfabeto que esteve aqui? Canta muito bem. D gosto. O pessoal at pensa que ele sabe ler, porque ele canta olhando a pgina do folheto aberto. E vive disso muito bem.

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    Uma das caractersticas das narrativas orais o fato de o contedo ser indissocivel da performance. A histria no composta apenas pelo enredo mas tambm pela gesticulao, expresso corporal, tom de voz e entonao daquele que a apresenta. As leituras orais, cantadas, incorporam a performance ao texto, e permitem a participao do pblico. Durante a leitura, os ouvintes intervm, interrompendo-a para comentar, criticar, externar seus sentimentos em relao matria narrada, aproximando, uma vez mais, esta leitura do universo oral. At mesmo o conceito de leitura parece recobrir-se de outras significaes, podendo significar a habilidade de declamar longas narrativas em verso:

    L em casa uma vez passou um cego. Ele esteve l em casa trs dias, na casa de meu pai. Ele tinha um moio de livro na mo, uma pessoa chegava dizia: conte o verso de Genoveve, a ele passava a mo assim, escolhendo. Mais num dava com o livro do verso?! Eu digo mais. Ele disse: quem me ensinou a ler foi uma filha minha, que me ensinou a ler. Aqueles versos tudo nos papis, nos livros, e ele lia, a mandava ele contar o verso de Genoveve, Princesa Rosa, ele mexia e achava qual era o verso e contava.

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    Se entendermos o ato de ler como a capacidade de associar sinais grficos a unidades de sentido, torna-se incompreensvel a fala de Luiza Lima, que relata seu encontro com um cego leitor. Aparentemente, segurar um folheto fazia parte da performance do cego, que contava histrias decoradas, assim como o fazia o vendedor analfabeto mencionado por Manoel Camilo. Dizendo que sua filha o ensinou a ler, o cego pode estar se referindo ao fato de ter memorizado as narrativas lidas por sua filha. A memorizao de narrativas como parte do significado do ato de ler aparece claramente na fala de Sebastiana Andrade, uma contadora de histrias, que as aprendeu a partir do contato com folhetos de cordel:

    A coisa que eu tinha mais vontade na vida, no mundo, era de aprender a ler, mas no me botaram na escola. Botaram os outros, mas no aprenderam nadinha. Se, eu tinha a maior vontade, eu lia a carta de ABC sem ningum me ensinar. Eu tinha cabea. Eu aprendia, o povo contava e eu aprendia. (...) O finado Firmino, aquele sabia ler folheto! E eu aprendia. Aprendia era logo! Minha cabea era to boa, tinha a memria to boa que eu aprendia era logo.

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    O binmio ler - decorar parece fundir-se em um nico conceito, neste universo marcado pela oralidade. Para compreender a eficcia dos folhetos neste contexto, necessrio considerar a forma potica na qual so compostos. Rima, mtrica e orao A forma potica caracterstica dos folhetos pode parecer, primeira vista, espontnea e fcil, mas h regras bastante precisas regulando sua produo.

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    Manoel Camilo em entrevista a Origenes Lessa (op. cit.) 22

    Luiza Lima, em entrevista, a Silvana Vieira de Sousa, in: Histrias de antigamente, texto de qualificao para o mestrado em Histria Social do Trabalho, IFCH, UNICAMP, 1995, mimeo 23

    Sebastiana Andrade, em entrevista a Silvana Vieira de Sousa (op. cit.)

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    Os princpios que regem a elaborao de narrativas dizem respeito fundamentalmente mtrica, rima e quilo que os poetas denominam orao, princpios estreitamente ligados s possibilidades de memorizao.

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    A maior parte dos folhetos nordestinos composta em versos setessilbicos, fazendo-se coincidir o final de um verso com momentos de pausa na fala - ou seja, entre sujeito e verbo; verbo e complemento; objeto e advrbio. No se consideram bem construdos os versos em que h enjambement. Estudos lingsticos demonstram que, no portugus falado no Brasil, faz-se uma pausa a cada sete slabas aproximadamente. Assim, a opo pelos versos setessilbicos acomoda as composies ao ritmo habitual da fala. A sintaxe empregada tambm aproxima-se da fala coloquial, privilegiando a ordem direta na construo das oraes, evitando-se inverses sintticas e oraes encaixadas. Os receptores destes poemas encontraro, portanto, poucos problemas lexicais e sintticos. A elaborao das rimas tambm obedece a rgidas regras. Nas sextilhas, constrem-se rimas de tipo ABCBDB, enquanto nas setilhas, segue-se o esquema ABCBDDB. O fundamental selecionar palavras que constituam no s um vnculo sonoro, mas tambm semntico, ou seja, no basta que os termos contenham o mesmo som final, importa que eles remetam a um mesmo universo de significao. Expedito Sebastio da Silva, autor de folhetos, explica que deve haver uma relao de necessidade entre as palavras empregadas:

    No se pode falar de uma menina perdida na Paraba e depois colocar o Japo s para rimar e voltar a falar na menina. Se a rima e a mtrica forem bem feitas a gente decora fcil e d gosto. Se estiver difcil de decorar pode ver que o folheto est mal feito.

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    Expedito ressalta a insero destas composies em um universo de oralidade fortemente marcada, aferindo sua eficcia e beleza pela facilidade de memorizao. Sabe-se que a rima um poderoso auxiliar mnemnico, principalmente se for elaborada de acordo com a teoria acima exposta. As pessoas envolvidas com a compreenso e memorizao de um folheto sabero com que som terminar determinado verso e a que grupo semntico pertencer a palavra rimada. Tal concepo auxilia fortemente a elaborao e memorizao de um folheto, pois rimas desta natureza deixam marcas nas quais a memria se apoiar. Espera-se de um bom folheto coerncia e unidade narrativa. A estruturao do enredo deve centrar-se no desenrolar de uma ao, desenvolvida em termos de causas e conseqncias. Manoel de Almeida Filho diz que

    o bom folheto o de qualquer classe quando bem rimado, bem metrificado, bem orado (...) Um ruim folheto quando realmente se l e no se entende, mal versado, mal rimado, mal orado, no tem orao, esse para mim que o ruim. 26

    Manoel de Almeida defende a idia de que qualquer tema vlido - "o bom folheto o de qualquer classe" - desde que sejam seguidas as regras formais, fortemente associadas compreenso - "um ruim folheto quando realmente

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    Para um aprofundamento da discusso ver minha Tese de Doutorado, Cordel Portugus / Folhetos Nordestinos: confrontos - um estudo histrico-comparativo. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Teoria Literria do Instituto de Estudos da Linguagem - UNICAMP, 1993. 25

    Expedito Sebastio da Silva em entrevista a mim concedida. (Cf. Cordel Portugus / Folhetos Nordestinos: confrontos - um estudo histrico-comparativo, op. cit.) 26

    ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. Op. cit.

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    se l e no se entende". As regras definidas pelos poetas populares, que garantem a beleza e a compreenso dos folhetos, so expressas na fala de Manuel de Almeida Filho: "mtrica, rima e orao". Se os dois primeiros termos so j bastante conhecidos, o conceito de orao parece ser especfico da literatura de folhetos. Segundo Manoel Caboclo e Silva,

    A orao do folheto aquela que a gente conta uma histria sem mudar o sentido. Que comea num assunto sem mudar o sentido (...) Ela s vezes fica um pouco difcil porque a gente tem que imprimir personagens, coisas estranhas dentro da histria no (...) pra no sair da orao, preciso que seja uma histria s, s de um sentido s. Sobre determinada pessoa, sobre determinado caso.

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    O princpio da orao remete idia dos enredos formulares em que os tpicos fundamentais da narrativa so previamente conhecidos, cabendo ao poeta preench-los. As histrias so compostas segundo um roteiro, conforme diz Silvino Pereira da Silva:

    preciso um roteiro de histria desembaraada, e que tenha muitos episdios. Desembaraado quando no tem muita complicao nos episdios, quando um no confunde com o outro, divididos. Ento se forma a histria bonita.

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    Buscando compor uma histria desembaraada, os poetas evitaro o acmulo de personagens, acompanhando apenas as atitudes dos personagens centrais envolvidos na trama. No habitual encontrarem-se personagens secundrios envolvidos em tramas paralelas. Descries detalhadas de ambientes, paisagens, fisionomias, estados de esprito tampouco so benvidas, assim como evitam-se intervenes digressivas do narrador. Ou seja, qualquer elemento que possa desviar a ateno do fluxo central da ao ser excludo, pois desrespeita o j aludido princpio da orao, segundo o qual uma narrativa deve apresentar, de forma articulada, o desdobramento de uma nica questo. A orao de um folheto oferece ao poeta e ao pblico um roteiro relativamente padronizado segundo o qual a narrativa ser desenvolvida. Mais uma vez encontramos a preocupao com o estabelecimento de auxiliares mnemnicos, j que, em situaes de oralidade, mais eficaz compor e acompanhar uma trama calcada em aes articuladas de forma causal. Assim, compem-se narrativas seguindo enredos formulares previamente conhecidos, ou seja, os poetas compem suas histrias recheando uma determinada estrutura que lhes fornece o ncleo central da trama. guisa de exemplo, vejamos como se constrem histrias de amor. Deve haver um rapaz e uma moa, apaixonados, que so impedidos de realizar-se afetivamente pela interveno de um elemento externo, seja um rival, os pais, as armadilhas do destino que os afastam. Ambos tomaro seguidas atitudes a fim de superar estes obstculos, conseguindo, ao final a realizao amorosa. Haver sempre novidades no que tange aos empecilhos e maneira de resolv-los, mas a estrutura permanecer inalterada. Os poetas populares nordestinos inserem-se em uma tradio, que regula as possibilidades formais de composio. Estas regras, ao invs de amarras, so na verdade instrumento para criao. Diferentemente de um escritor, eles no empreendem esforos no sentido de romper frmulas padronizadas, seja na

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    Manoel Caboclo e Silva em entrevista a Mauro Almeida (idem, ibidem.). 28

    Silvino Pereira da Silva em entrevista a Mauro Barbosa (idem, ibidem)

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    construo de versos e rimas, seja na estruturao do enredo 29

    . O uso de frmulas no quer dizer que os poetas decorem as composies e as repitam de maneira idntica. Cada um cria seu prprio poema, lanando mo da estrutura j existente. Os elementos formulares atuam como um roteiro para a composio sem que seja necessrio que o poeta se atenha somente a eles. A existncia de um roteiro articulado previamente composio pode parecer um elemento limitador, mas tambm um instrumento de que o poeta dispe, um auxlio para que ele possa produzir seu poema. O uso das frmulas, entretanto, no garante um bom resultado final; o valor do poeta est na habilidade com que maneja estas regras, na proficincia com que compe e recompe versos e narrativas sempre calcados em estruturas tradicionais. Novidade e repetio, individualidade e tradio constituem o espao no qual o poeta se move.

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    A originalidade um valor no mundo da escrita. Em situaes de oralidade, mesmo quando ela residual, como na cultura nordestina, em que convivem letrados e iletrados, o armazenamento das informaes se faz no corpo de poetas e do pblico. A fixao no papel libera o corpo desta tarefa e incentiva a inovao constante, j que as histrias e os conhecimentos esto definitivamente registrados no papel. A produo de folhetos no Nordeste brasileiro situa-se na encruzilhada entre a escrita e a oralidade, sendo impossvel fix-la de maneira definitiva em qualquer um destes plos. certo que os poetas registram seus textos sob forma grfica, mas no aderem s convenes do discurso escrito. Seu pblico, capaz ou no de reconhecer sinais grficos, tampouco domina estas mesmas convenes

    31. O registro

    grfico no implica acesso completo ao universo da escrita, que possui convenes e recursos prprios, em grande medida distintos daqueles caractersticos da oralidade. A fixao na forma impressa no ps fim ao carter oral destas composies. O pensamento e a expresso orais no desaparecem to logo algum acostumado a eles comea a redigir: escrevem-se palavras que se imagina dizendo em voz alta em algum espao de oralidade.

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    O conceito de frmula empregado pelos estudiosos das produes narrativas orais para designar grupos de palavras, expresses, eptetos, caracterizaes, episdios inteiros que se repetem de maneira idntica, ou com pequena variao, ao longo de uma mesma ou de vrias composies. Ver a respeito LORD, Albert (op. cit.), ONG, Walter (op. cit.) e FINNEGAN, Ruth. Oral Poetry: its nature, significance and social context, Cambridge, 1977. 30

    Situao semelhante analisada por LORD, Albert (op. cit.) ao discutir as composies picas de bardos gregos e eslavos. 31

    Cf. OSAKABE, Haquira. "Consideraes em torno do acesso ao mundo da escrita" in: Leitura em

    Crise na Escola, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1982.