Entre a sociedade e a política: a produção intelectual de Arthur ... · ... contos e peças...

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1 Entre a sociedade e a política: a produção intelectual de Arthur Azevedo (1873-1897) Giselle Pereira Nicolau * Arthur Azevedo viveu uma época de mudanças. Nascido em São Luís do Maranhão, em 14 de julho de 1855, este deixou a terra natal aos 18 anos, em busca de oportunidades na Corte. 1 No Rio de Janeiro, foi jornalista, cronista e funcionário público, mas destacou-se como autor de teatro. Arthur testemunhou a passagem do Império à República, fazendo desse conjunto de acontecimentos, matéria e cenário para suas crônicas, contos e peças teatrais, em especial, em suas Revistas de Ano. Quando chegou ao Rio de Janeiro em 1873, com o objetivo de trabalhar no jornalismo e no teatro, o jovem de apenas 18 anos, iniciou suas atividades na folha A Reforma, dirigido por Joaquim Serra, 2 um dos precursores da moderna imprensa política brasileira. Periódico de cunho liberal tinha, entre os colaboradores, nomes como os de Joaquim Nabuco, Rodrigo Otávio e Cesário Alvim. A redação do semanário era ponto de encontro de políticos, como Francisco Otaviano, Afonso Celso, que posteriormente veio a se tornar o Visconde Ouro Preto, e Tavares Bastos, além de outras figuras ligadas ao Partido Liberal. Não obstante a baixa remuneração, o trabalho jornalístico abria as portas para jovens que desejavam seguir carreira literária. Algo muito comum nessa época, o apadrinhamento ou mecenato, para usar a expressão de Machado Neto, dava oportunidades na imprensa para jovens que desejavam ganhar a vida com as letras (NETO, 1973: 11). Com Arthur Azevedo não ocorreu de outra maneira. Recém-chegado do Maranhão, onde havia desempenhado funções de jornalista, encontrou espaço no periodismo carioca, por intermédio de seu conterrâneo, Joaquim Serra. Sobre este assunto, Azevedo relatou: * Doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense. 1 Optou-se por manter a grafia utilizada por Azevedo em seus documentos pessoais. 2 Joaquim Maria Serra Sobrinho foi jornalista, professor, político e teatrólogo. Ao lado de Arthur Azevedo e Moreira Sampaio, é conhecido como um dos precursores do Teatro de Revista no Brasil. Nasceu em São Luís do Maranhão, em 20 de julho de 1838, e faleceu no Rio de Janeiro em 29 de outubro de 1888.

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Entre a sociedade e a política: a produção intelectual de Arthur Azevedo

(1873-1897)

Giselle Pereira Nicolau*

Arthur Azevedo viveu uma época de mudanças. Nascido em São Luís do

Maranhão, em 14 de julho de 1855, este deixou a terra natal aos 18 anos, em busca de

oportunidades na Corte.1 No Rio de Janeiro, foi jornalista, cronista e funcionário público,

mas destacou-se como autor de teatro. Arthur testemunhou a passagem do Império à

República, fazendo desse conjunto de acontecimentos, matéria e cenário para suas

crônicas, contos e peças teatrais, em especial, em suas Revistas de Ano.

Quando chegou ao Rio de Janeiro em 1873, com o objetivo de trabalhar no

jornalismo e no teatro, o jovem de apenas 18 anos, iniciou suas atividades na folha A

Reforma, dirigido por Joaquim Serra,2 um dos precursores da moderna imprensa política

brasileira. Periódico de cunho liberal tinha, entre os colaboradores, nomes como os de

Joaquim Nabuco, Rodrigo Otávio e Cesário Alvim. A redação do semanário era ponto de

encontro de políticos, como Francisco Otaviano, Afonso Celso, que posteriormente veio

a se tornar o Visconde Ouro Preto, e Tavares Bastos, além de outras figuras ligadas ao

Partido Liberal.

Não obstante a baixa remuneração, o trabalho jornalístico abria as portas para

jovens que desejavam seguir carreira literária. Algo muito comum nessa época, o

apadrinhamento ou mecenato, para usar a expressão de Machado Neto, dava

oportunidades na imprensa para jovens que desejavam ganhar a vida com as letras

(NETO, 1973: 11). Com Arthur Azevedo não ocorreu de outra maneira. Recém-chegado

do Maranhão, onde havia desempenhado funções de jornalista, encontrou espaço no

periodismo carioca, por intermédio de seu conterrâneo, Joaquim Serra. Sobre este

assunto, Azevedo relatou:

* Doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense. 1 Optou-se por manter a grafia utilizada por Azevedo em seus documentos pessoais. 2 Joaquim Maria Serra Sobrinho foi jornalista, professor, político e teatrólogo. Ao lado de Arthur

Azevedo e Moreira Sampaio, é conhecido como um dos precursores do Teatro de Revista no Brasil.

Nasceu em São Luís do Maranhão, em 20 de julho de 1838, e faleceu no Rio de Janeiro em 29 de outubro

de 1888.

2

Atravessei, escreve ele, a rua do Ouvidor muito disposto a conquistar

o futuro naquele mesmo dia. Quando cheguei ao largo de São

Francisco, tinha efetivamente conquistado alguma coisa: o lugar de

revisor e tradutor de folhetins d´A Reforma que se imprimia no prédio

em que hoje está a Gazeta da Tarde. A minha fortuna foi encontrar

Joaquim Serra á porta do edifício. A esse ilustre maranhense, que

escondia um coração de ouro sob um aspecto rebarbativo, dava o pão

que primeiro ganhei no Rio. (JÚNIOR, 1966: 21)

Arthur Azevedo recebeu n` A Reforma as lições de seu mestre, Joaquim Serra.

Através da folha, inseriu-se na sociabilidade intelectual e literária da época, e passou a

frequentar a famosa Rua do Ouvidor,

(...) cujos jornais empregavam muitos dos literatos e tornavam possível

a existência de um pequeno grupo de escritores que viviam

exclusivamente para a literatura e para a reforma política. Estes

boêmios, vivendo timidamente as fantasias do muito folheado Scènes

de la vie Bohème, moravam juntos, trabalhavam nos jornais de grande

circulação e davam um novo impulso à vida dos cafés e confeitarias.

(NEEDELL, 1993: 22)

Esses jovens boêmios, pertencentes à mesma geração, aspiravam à glória

literária. Em comum muitos desses, como o próprio Needell aponta, haviam “trocado o

conforto prometido pelo direito e pela medicina”. Abraçavam a literatura como estilo de

vida e profissão de fé. Muitos desses eram provincianos, oriundos de famílias abastadas,

como é o caso dos irmãos Arthur e Aluísio de Azevedo. O grupo liderado por José do

Patrocínio3, mulato de origem humilde, teve apoio familiar para estudar, além da ajuda

financeira do sogro que patrocinava seu jornal.

Entre os debates políticos despertados com o desenrolar da Guerra do Paraguai o

projeto de lei de caráter emancipacionista, aprovado em 28 de setembro de 1871, a Lei

Rio Branco – conhecida como Lei do Ventre Livre, potencializou as já apaixonadas

discussões, demarcando ainda mais as posições liberais e conservadoras na arena pública.

O movimento abolicionista, portanto, não teve como ponto de corte a decretação de 1871:

3 José Carlos do Patrocínio nasceu em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, em 9 de outubro de 1853.

Farmacêutico, destacou-se nas atividades que desempenhou na imprensa e na política, atuando nos

movimentos abolicionista e republicano. Morreu em 29 de janeiro de 1905, no Rio de Janeiro.

3

o próprio abolicionismo cresceria e se fortaleceria face às divergências da aplicação da

lei. Além da defesa do fim do trabalho escravo, postulava-se também a mudança do

regime político, associando-se à Monarquia ao atraso nacional.

Arthur Azevedo partilhou desses ideais, a saber: abolicionistas e republicanos.

Revestiu-se das armas de seu intelecto, fazendo-se “escravo de sua pena” e propagandista

da causa abolicionista (JÚNIOR, 1966: 129-148). Por meio da imprensa, do teatro e de

sua participação em festas populares, percebe-se que Arthur esteve presente nas diversas

manifestações em favor da causa antiescravagista. Aliás, em seu ensaio, A morte da

escravidão, Humberto Machado aponta para importância da imprensa e do teatro na

campanha abolicionista. Além disso, Machado ressalta o valor das festas, quermesses e

meetings para arrecadar fundos para compra de cartas de alforria, bem como a

popularização do movimento, com vistas a angariar simpatizantes à causa da libertação

dos cativos (MACHADO, 1999: 374).

Os teatros abriam suas portas para comitês e campanhas contra a escravatura. Era

comum, nessas reuniões a presença de homens como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio

e André Rebouças. A campanha nos teatros não se restringia apenas às discussões

políticas, mas convertia-se na efetiva adesão de artistas e empresários. O historiador

Eduardo Silva relata a adesão destes após o espetáculo da Companhia Fênix Dramática,

no Teatro Lírico, em 21 de junho de 1870, em benefício de Ernesto Rossi4, ator italiano

que estava em temporada no Rio de Janeiro (MARZANO, 2008: 74-75). Ao fim da

encenação, atores e atrizes da companhia levaram ao palco uma menina negra de dois

anos para ser alforriada em cena, prestando homenagem a Rossi. Este, emocionado, fez

um discurso em favor da libertação dos cativos para uma plateia que contava com mais

de cinco mil espectadores, dentre os quais, o próprio Imperador Dom Pedro II. Dessa data

em diante, observa Silva, André Rebouças veria no teatro um meio eficaz para a

propaganda abolicionista.

A partir da década de 1880, as conferências viriam a dar lugar às matinées

abolicionistas. Realizadas nos teatros, tinham por objetivo divulgar a campanha em favor

da libertação dos escravos, incluindo as camadas mais diversificadas da sociedade, em

4 Ernesto Rossi nasceu em 29 de abril de 1827, em Livorno, na Itália. Ator de grande prestígio, ficou

conhecido por introduzir Shakespeare no teatro italiano. Esteve no Brasil em temporada, tendo representado

no teatro Provisório. Morreu em 1896.

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especial as menos favorecidas, com destaque para negros e mestiços. No tocante à

programação, sabe-se que “além de uma conferência em defesa da abolição, tais eventos

incluíam a encenação de uma peça alegre, números musicais e recitação de poesias, entre

outras atrações” (MARZANO, 2008: 75).

Sobre a atuação desses artistas em favor da abolição, Magalhães Junior salienta os

esforços empreendidos pela gente de teatro para arrecadar fundos para compra de cartas

de alforria. O autor destaca os nomes de Rose Villiot, atriz francesa naturalizada

brasileira, que participou de muitas peças de Arthur Azevedo, Ismênia dos Santos,

Apolônia Pinto, Delmary, Suzanna Castera, Delorme, Correia Vasques, o ator mais

festejado dos oitocentos, Xisto Baía, um dos maiores intérpretes do teatro de revista de

Azevedo, e muitos outros que faziam sucesso nos palcos. Contudo, o maior destaque do

movimento abolicionista popular, foi Luiza Regadas, cantora de igreja, que se engajou na

causa antiescravista de forma ativa, participando de sociedades abolicionistas, como a

Confederação Abolicionista e Sociedade Brasileira Contra Escravidão e outras

congêneres, merecendo o título de Rouxinol da Abolição.5 Igual contribuição, tiveram

ainda, segundo Magalhães Junior, os maestros Carlos Gomes, Arthur Napoleão, Henrique

Mesquita, Bassi e Cernichiari.

Desde a década de 1830 e durante os oitocentos, o teatro foi um local de

manifestação pública, onde “todas as iniciativas e decisões no campo artístico, que

viessem por parte de literatos, estariam legitimados a priori e passariam a ser expressão

mais pura daquilo que se queria atingir” (SOUZA, 2002: 35). O engajamento dos homens

das letras pela via do teatro era condição sine qua non da campanha abolicionista. Assim

foi com Arthur Azevedo. Engajado nos debates e campanhas de seu tempo, escreveu

obras teatrais voltadas para este fim. Um exemplo está na peça O Liberato, redigida a

pedido de Joaquim Nabuco. Encenada no Teatro Lucinda em 1881, rendeu bons frutos,

repetida em inúmeros festivais em prol da campanha emancipacionista. No ano seguinte,

em 1882, Arthur Azevedo escreveu com Urbano Duarte o drama A família Salazar,

censurado pelo Conservatório Dramático, teve seus originais apreendidos, os autores

recuperaram o manuscrito da peça em 1884. Porém, vendo que a campanha abolicionista

5 Ver Raimundo Magalhães Júnior. Arthur Azevedo e sua época. Rio de Janeiro: Editora Civilização

Brasileira S.A., 1966/ Andréa Marzano. Cidade em cena: o ator Vasques, o teatro e Rio de Janeiro (1839-

1892). Rio de Janeiro: Folha seca: FAPERJ, 2008.

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caminhava a largos passos, eles decidiram publicá-la sob o título, O Escravocrata. Logo

no “Pródromo”, Duarte e Azevedo fariam a sua “profissão de fé”:

Tanto mais que nos achamos plenamente convencidos de que, à força

de empenhos e de argumentos, alcançaríamos a felicidade de ver o

nosso drama à luz da ribalta. Mas esses trâmites seriam tão demorados,

e a ideia abolicionista caminha com desassombro tal, que talvez no dia

da primeira representação de O escravocrata já não houvesse escravos

no Brasil. A nossa peça deixaria de ser um trabalho audacioso de

propaganda, para ser uma medíocre especulação literária. Não nos

ficaria a glória que ambicionamos, de haver concorrido com o

pequenino impulso das nossas penas para o desmoronamento da

fortaleza negra da escravidão. (AZEVEDO [1884], 2002: p. 35)

Como observa Antônio Martins de Araújo, em Arthur Azevedo: Homo Politicus:

“De passo em passo, de crônica em cônica, de peça em peça, Arthur foi pouco a pouco

reivindicando em favor dos irmãos de cor o direito de usufruírem as benesses de uma

sociedade que devia ser construída por brasileiros de todas as cores” (AZEVEDO, 2002:

p. 599).

Como já foi mencionado, Arthur usou o jornal como uma espécie de tribuna em

defesa de uma sociedade sem escravos. Além de colaborar em diversos periódicos,

Azevedo fundou com Aníbal Falcão, A Gazetinha, em novembro de 1880. A folha media

“pouco mais que um palmo e meio” (JÚNIOR, 1966: 66), contendo em sua página inicial

anedotas, notícias, sobretudo as ligadas ao universo teatral. De caráter literário, contribuía

para a campanha abolicionista. A redação situava-se à Rua do Ouvidor, 132. Segundo

Gonzaga Duque, era decorada com caricaturas de Raul Pompéia, Belmiro de Almeida,

Aluísio Azevedo, França Júnior e outros (JÚNIOR, 1966: 66). Reuniu em sua redação,

nomes como os de Lopes Trovão, José do Patrocínio, Demerval da Fonseca, Arthur de

Oliveira, Carvalho Júnior, Lúcio de Mendonça, o próprio Aluísio, Teófilo Dias, Urbano

Duarte, Salustiano Sebrão, Fontoura Xavier, Adelino Fontoura.

Na História da Imprensa no Brasil, Werneck Sodré aponta para rivalidade entre

A Gazetinha e A Gazeta de Notícias, e desta última com O País, de João José dos Reis

Júnior, “resultando em duelo deste com Ferreira Araújo, duelo a que o Mequetrefe

dedicou uma de suas capas” (SODRÉ, 1966: 231). De vida efêmera, a folha fundada por

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Arthur Azevedo circulou até 1881. Porém, a animosidade entre Arthur e Ferreira Araújo,

se estenderia durante mais uns anos, chegando mesmo a criar um personagem em uma de

suas revistas de ano, Mercurio, interpretado pelo ator Xisto Baía, o Dr. Telha, caricatura

viva de Araújo.

A atuação de Arthur Azevedo na imprensa foi notável. Ele colaborou com cerca

de quarenta e cinco jornais, chegando a publicar cerca de quatro mil crônicas (MARTINS,

2002: 599). Tendo participação ativa nas redações de jornais e revistas como o Diário de

Notícias, Correio do Povo, A Época, O Besouro, O Dia, Folha Nova, Correio da Manhã,

O Mequetrefe, Kosmos, O Teatro, O País, A Notícia, Revista Brasileira, entre outros.

Contudo, foi nas páginas d´ O País, onde esteve desde a sua fundação - ali assinava versos

humorísticos sob o pseudônimo de Gavroche-, bem como no Diário de Notícias que

Arthur estabeleceu seu lugar junto um grande número de leitores.

Sua notoriedade na imprensa possibilitou-lhe o ingresso em associações e grupos

literários que, posteriormente, viriam a dar lugar à Academia Brasileira de Letras.

Como se sabe, desde o Império, a iniciativa de se formar uma Academia de

Homens da Letras, nos moldes da Academia Francesa, já se fazia presente nas aspirações

dos literatos brasileiros. Partidário dessa ideia, o Imperador Dom Pedro II já

demonstrava, em suas reuniões literárias em São Cristóvão, o desejo de criar uma

instituição voltada para essa finalidade. Com o objetivo de atender a essa demanda, o

conselheiro Francisco Otaviano criou a Associação dos Homens das Letras do Brasil,

inaugurada em 30 de agosto de 1883, no Liceu de Artes e Ofícios. Sob a presidência do

também Conselheiro, Pereira da Silva, a sociedade contava com a presença de Dom Pedro

II, Princesa Isabel, do Conde d´Eu, de representantes do exército, da política, do

jornalismo e da literatura. Arthur Azevedo integrava o seleto grupo, ao lado de Franklin

Távora, Visconde de Taunay, Afonso Celso, Sílvio Romero, Homem de Melo, Machado

de Assis e Franklin Dória, entre outros. Segundo Afonso Celso, o reduto letrado tinha por

objetivo “animar a profissão literária, reunindo e utilizando no interesse comum e das

letras as atividades intelectuais, que o isolamento traz dispersos” (NEVES, 2008: 6).

Porém, depois de criada, a associação se dissolveria.

Outras formas de associação literária, surgiriam, tendo vida mais ou menos

efêmera, e em certa medida, podem ser consideradas embriões daquilo que mais tarde

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veio a ser a Academia Brasileira de Letras. Um exemplo notável é a fundação d` A

Semana, nos anos iniciais da República. Jornal de grande circulação, a folha agrupava

diversos nomes da literatura, permitindo que muitos desses divulgassem seus trabalhos,

possibilitando o diálogo com o público leitor. O desejo de criar uma sociedade estável

que representasse a cultura brasileira orientou a segunda fase do periódico (1893-1895),

dirigido então por Valentim Magalhães. Ponto de encontro dos homens das letras, a

redação do semanário, situado à Rua Gonçalves Dias, nº 67, 1º andar, tinha como

colaboradores: Lucio de Mendonça, João Ribeiro, Araripe Junior, Urbano Duarte, Silva

Ramos e Rodrigo Otávio (FLEIUSS, apud, NEVES, 2008: 8).

Nessa mesma época, por iniciativa de Araripe Junior, foi criado o clube Rabelais,

que reuniria mensalmente, em divertidos “banquetes”, vários dos futuros membros da

Academia Brasileira de Letras.6 Estes “ágapes literários”, tinham lugar em hotéis

famosos, como o Hotel Globo (OCTÁVIO, apud, NEVES, 2008: 8). Nessas ocasiões,

discutiam-se diversos assuntos, em especial aquele que mais os unia: a literatura. Em

suas Recordações do Clube Rabelais, Araripe Júnior registra: “A regra era esta:- na

primeira sexta-feira de cada mês reuniam-se os sócios no hotel previamente escolhido e

banqueteavam-se sem cerimonial, à brasileira” (JÚNIOR, 1966: 221).

A cada mês, o jantar ficava a cargo de um comissário diferente, que tinha a cota

de dez mil réis, dinheiro suficiente para fazer um grande banquete. Sabe-se que o

primeiro encarregado foi Raul Pompéia, “o mais jovial e o mais traquinas: o enfant gâté

do clube” (Ibidem), tal como descrevera Araripe em suas memórias. O segundo jantar,

teria como idealizador o contista e jornalista Pedro Rabelo. Já o terceiro, ficou sob a

responsabilidade de Rodrigo Otávio, que dirigiu a Arthur o seguinte convite:

ARTHUR:

Pr´a futura sessão do Rabelais

Que a 14 de outubro se efetua,

Queira você mandar-me dez mil réis,

Se não quiser ficar no olho da rua.

Pela resposta aguarda o portador.

6 Arthur Azevedo, Raul Pompéia, Urbano Duarte, Rodrigo Otávio, Coelho Neto, Lúcio de Mendonça,

Valentim Magalhães, Raimundo Corrêa, Said-Ali, Max Fleiuss, Capistrano de Abreu, Xavier da Silveira e

outros menos assíduos.

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Desculpa o “sans-façon” do admirador

Rodrigo Otávio7

Dentre os membros do Clube Rabelais, Araripe Junior destaca em suas

recordações os nomes de Raul Pompéia e Arthur Azevedo, os quais se sobressaíam pela

jovialidade e encanto:

De ordinário, nesses ágapes literários, sobressaíam pelo espírito de

dois convivas – naturezas completamente diversas, Raul Pompéia e

Arthur Azevedo se completavam, dando às nossas festas intelectuais

uma frescura e juvenilidade encantadoras. Se por um lado o autor do

Ateneu fustigava a nossa inércia com esfuziadas imprevistas,

paradoxais, por outro o comediógrafo dos Noivos, quando de veia,

pulverizando as palestras de anedotas e pequenas comédias, quase

representadas ao vivo, provocava risadas incoercíveis e uma alegria

molieresca inextinguível (JÚNIOR, 1966: 222)

A despeito de toda a excitação de seus convivas, o clube Rabelais foi dissolvido.

Em tom de lamentação, o criador registrou o fim da sociedade literária. Sem, no entanto,

esclarecer o motivo pelo qual o clube deixou de existir:

Infelizmente tudo isso acabou, e dos rabelesianos, o mais vivo e

convicto, a alma do clube enfim, desertou para as regiões do Além,

como dizem os nefelibatas, sem nos dizer adeus. A sua proposta no

clube fora que se desse o banquete no próximo carnaval, no refeitório

de um convento, verdadeiro ou fictício, em homenagem ao cura de

Meudon, padroeiro da sociedade. Os sócios apresentar-se-iam em

hábitos franciscanos e falariam em latim ou no jargão de Rabelais. A

idéia não se realizou porque o clube dissolveu-se; âquele festivo

pantagruelismo convertera-se nas sombrias preocupações de um novo

Brutus (JÚNIOR, 1966: 222).

7 Documento encontrado no acervo de Arthur Azevedo na Academia Brasileira de Letras, não inventariado.

À guisa de curiosidade, para além das brincadeiras com seu confrade, Arthur, sabe-se que, Rodrigo Otávio

organizou um banquete à moda chinesa, surpreendendo os rabelesianos, como recorda araripe Júnior em

suas Memórias: “No banquete, de que foi encarregado Rodrigo Otávio, pregou-nos uma surpresa. Como os

chineses estavam em causa, ele lembrou-se de adornar a sala a caráter... Não houve à mesa ninhos de

salangana; mas em compensação, leques, figuras, paliteiros, tudo era chinês, das paredes pendiam

caquemonos, improvisados em telas de cetim branco e amarelo, pintados a tinta de escrever, representando

dragões, guerreiros e cegonhas, reminiscências das clássicas figuras do pintor japonês Outamaro.”

(JÚNIOR. Apud. JÚNIOR, 1966 : 220- 221).

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Com o término da sociedade literária, os jantares e banquetes organizados por seus

confrades, cederam espaço para o chá das quatro e para as reuniões na redação da Revista

Brasileira. Segundo Werneck Sodré, a fase literária da revista foi marcada por dois

momentos: a primeira, entre 1879 e 1881, quando dirigida por Nicolau Midosi, e a

segunda, entre 1895 e 1898, sob a direção de José Veríssimo (SODRÉ, 1966: 89).

Sobre a última fase, é de se notar que Veríssimo reuniria em torno desta, homens

de letras como: Paulo Tavares, Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Lúcio de Mendonça,

Graça Aranha, Paula Ney, Domício da Gama, Alberto de Oliveira, Rodrigo Octávio, o

próprio Arthur Azevedo, Silva Ramos, e Filinto de Almeida. Por vezes apareciam Bilac,

Guimarães Passos, Raimundo Correia, Valentim Magalhães, Pedro Rabelo e outros.

(NETO, apud, NEVES, 2008:8- 9).

A redação, localizada em uma modesta sala à travessa do Ouvidor, é descrita por

Coelho Neto, através de um jogo retórico amparado no contraste entre à escuridão do

ambiente e a clareza das ideias que circulavam no local. Sobre a atmosfera que envolvia

os homens das letras, o literato escreve:

(...) o negrume do recinto contrastava o brilho da palestra que ali se

travava. Se as idéias fulgissem e as imagens relumbrassem, certo não

haveria em toda a cidade casa mais iluminada do que aquela.

Infelizmente, porém, apesar dos conceitos diamantinos de Machado de

Assis, do esplendor dos períodos de Nabuco, da cintilação do espírito

de Lúcio e dos paradoxos relampejantes de Paula Ney, era necessário

manter sempre aceso um bico, ao menos, de gás, para que tantos

luzeiros não andassem aos esbarros desmantelando pilhas de

brochuras, abalroando nas mesas, que eram duas, uma das quais de

pinho réles e tripeta, claudicando sob o peso glorioso de obras-primas

á espera de editores. (NETO, apud, NEVES, 2008:8- 9).

Arthur Azevedo foi um assíduo colaborador da Revista Brasileira. Isto se

evidencia pelo número de correspondências existentes no arquivo de Azevedo na

Academia Brasileira de Letras, destinadas ao diretor José Veríssimo, como se segue:

Ilustre e prezado Mestre Sr. José Veríssimo. Recebi e agradeço o

exemplar dos Estudos brasileiros com que me obsequiou. Em breve

terei ocasião de manifestar publicamente a estima em que tenho essas

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magníficas páginas. – Peço-lhe uma prorrogação de treze dias ao

prazo que me foi concedido para entregar na casa Laemmert o conto

que prometi para o primeiro número da Revista Brasileira. Sábado lá

estará. Só me falta copiá-lo. Seu admirador e amigo agradecido. –

Arthur Azevedo8

Seria em torno da redação da Revista Brasileira, que ressurgiria a ideia de se

formalizar uma associação dos homens de letras no Brasil. Sugerida por Lucio de

Mendonça, causou alvoroço entre os literatos. Uns foram partidários do projeto, enquanto

outros não. Machado de Assis, a princípio, faria algumas objeções, embora mais tarde se

tornasse entusiasta da Academia da qual foi seu primeiro presidente. Por sua vez, Coelho

Neto deixaria o seguinte testemunho:

Foi em tal pobreza obscura, como a do presepe (honni soit qui mal y

pense!) que nasceu a Academia, e, si, anjos não esvoaçaram no beco,

anunciando o natal da instituição, cá em baixo, na terra rasa, teve a

recém nascida vozes que, si não a glorificaram com hosanas, fartaram-

se de a arrasar, anunciando –lhe a morte com prognósticos ridículos.

(NETO, apud, NEVES, 2008:8- 9).

Alessandra El Far afirma que a ideia de criação da Academia Brasileira de Letras

não se deu de maneira isolada. Ao contrário, para a autora os projetos de fundação,

(...) não constituía novidade. No final dos anos de 1880 e início dos

1890, diversos literatos engajados na nascente profissão das letras

almejavam estabelecer um novo padrão de sociabilidade literária. Os

encontros casuais, as módicas remunerações, os grupos dispersos e

descompromissados já não lhes bastavam: queriam reconhecimento

social e uma identidade que os diferenciasse dos outros setores da

sociedade intelectual (EL FAR, 2000: 42).

Como observou Jeffrey Needell o período inicial da República foi marcado por

conflitos e por forte repressão, que dispersaram a boêmia literária. Muitos escritores

transplantaram os antagonismos políticos para o mundo literário. Cenário que se via agora

8 Documento encontrado no acervo de Arthur Azevedo na Academia Brasileira de Letras, não

inventariado.

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divido entre monarquistas e republicanos. Muitos encontrariam empregos ocasionais.

Outros, porém, desfrutariam de cargos públicos, alguns, ainda, perderiam suas posições,

ao manifestar fidelidade à monarquia e desgosto com o novo regime. Houve também

quem buscasse um modo de vida mais seguro, nos moldes burgueses, mantendo suas

identidades de criadores da cultura nacional.

Conforme apontado neste ensaio, Arthur Azevedo foi um homem de seu tempo.

Por meio de sua atuação nos meios literários, jornalísticos e teatrais, pode testemunhar a

crise do Império e o surgimento de uma ordem republicanas, ao refletir o difícil processo

de enraizamento desse regime. Pertenceu a um ciclo de sociabilidade composto por

homens das letras que, assim como ele, se reuniam ao redor da imprensa. Apesar das

divergências políticas existentes entre os membros dessa geração de intelectuais, muitos

desses se encontrariam, posteriormente, na Academia Brasileira de Letras, fundada em

julho de 1897 (NEEDELL, 1993: 224-229), da qual o próprio fez parte.

REFERÊNCIAS

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JÚNIOR, Raimundo Magalhães. Arthur Azevedo e sua época. Rio de Janeiro: Editora

Civilização Brasileira S.A., 1966.

MACHADO, Humberto. “A morte da escravidão”. In: Lúcia Maria Bastos Pereira das

Neves e Humberto Fernandes Machado. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1999.

MARTINS, Antonio. Arthur Azevedo: a palavra e o riso. São Paulo: Perspectiva, 1988.

NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical. Sociedade e Cultura de elite no Rio de

Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das letras, 1993.

NEVES, Fernão. A Academia Brasileira de Letras: notas e documentos para a sua

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______. As comédias de Arthur Azevedo – Em busca da história. Campinas, SP [s/n],

2006 (Tese de doutorado).

NETO, A.L. Machado. Estrutura social da República das Letras: sociologia da vida

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