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Entre a sociedade e a política: a produção intelectual de Arthur Azevedo
(1873-1897)
Giselle Pereira Nicolau*
Arthur Azevedo viveu uma época de mudanças. Nascido em São Luís do
Maranhão, em 14 de julho de 1855, este deixou a terra natal aos 18 anos, em busca de
oportunidades na Corte.1 No Rio de Janeiro, foi jornalista, cronista e funcionário público,
mas destacou-se como autor de teatro. Arthur testemunhou a passagem do Império à
República, fazendo desse conjunto de acontecimentos, matéria e cenário para suas
crônicas, contos e peças teatrais, em especial, em suas Revistas de Ano.
Quando chegou ao Rio de Janeiro em 1873, com o objetivo de trabalhar no
jornalismo e no teatro, o jovem de apenas 18 anos, iniciou suas atividades na folha A
Reforma, dirigido por Joaquim Serra,2 um dos precursores da moderna imprensa política
brasileira. Periódico de cunho liberal tinha, entre os colaboradores, nomes como os de
Joaquim Nabuco, Rodrigo Otávio e Cesário Alvim. A redação do semanário era ponto de
encontro de políticos, como Francisco Otaviano, Afonso Celso, que posteriormente veio
a se tornar o Visconde Ouro Preto, e Tavares Bastos, além de outras figuras ligadas ao
Partido Liberal.
Não obstante a baixa remuneração, o trabalho jornalístico abria as portas para
jovens que desejavam seguir carreira literária. Algo muito comum nessa época, o
apadrinhamento ou mecenato, para usar a expressão de Machado Neto, dava
oportunidades na imprensa para jovens que desejavam ganhar a vida com as letras
(NETO, 1973: 11). Com Arthur Azevedo não ocorreu de outra maneira. Recém-chegado
do Maranhão, onde havia desempenhado funções de jornalista, encontrou espaço no
periodismo carioca, por intermédio de seu conterrâneo, Joaquim Serra. Sobre este
assunto, Azevedo relatou:
* Doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense. 1 Optou-se por manter a grafia utilizada por Azevedo em seus documentos pessoais. 2 Joaquim Maria Serra Sobrinho foi jornalista, professor, político e teatrólogo. Ao lado de Arthur
Azevedo e Moreira Sampaio, é conhecido como um dos precursores do Teatro de Revista no Brasil.
Nasceu em São Luís do Maranhão, em 20 de julho de 1838, e faleceu no Rio de Janeiro em 29 de outubro
de 1888.
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Atravessei, escreve ele, a rua do Ouvidor muito disposto a conquistar
o futuro naquele mesmo dia. Quando cheguei ao largo de São
Francisco, tinha efetivamente conquistado alguma coisa: o lugar de
revisor e tradutor de folhetins d´A Reforma que se imprimia no prédio
em que hoje está a Gazeta da Tarde. A minha fortuna foi encontrar
Joaquim Serra á porta do edifício. A esse ilustre maranhense, que
escondia um coração de ouro sob um aspecto rebarbativo, dava o pão
que primeiro ganhei no Rio. (JÚNIOR, 1966: 21)
Arthur Azevedo recebeu n` A Reforma as lições de seu mestre, Joaquim Serra.
Através da folha, inseriu-se na sociabilidade intelectual e literária da época, e passou a
frequentar a famosa Rua do Ouvidor,
(...) cujos jornais empregavam muitos dos literatos e tornavam possível
a existência de um pequeno grupo de escritores que viviam
exclusivamente para a literatura e para a reforma política. Estes
boêmios, vivendo timidamente as fantasias do muito folheado Scènes
de la vie Bohème, moravam juntos, trabalhavam nos jornais de grande
circulação e davam um novo impulso à vida dos cafés e confeitarias.
(NEEDELL, 1993: 22)
Esses jovens boêmios, pertencentes à mesma geração, aspiravam à glória
literária. Em comum muitos desses, como o próprio Needell aponta, haviam “trocado o
conforto prometido pelo direito e pela medicina”. Abraçavam a literatura como estilo de
vida e profissão de fé. Muitos desses eram provincianos, oriundos de famílias abastadas,
como é o caso dos irmãos Arthur e Aluísio de Azevedo. O grupo liderado por José do
Patrocínio3, mulato de origem humilde, teve apoio familiar para estudar, além da ajuda
financeira do sogro que patrocinava seu jornal.
Entre os debates políticos despertados com o desenrolar da Guerra do Paraguai o
projeto de lei de caráter emancipacionista, aprovado em 28 de setembro de 1871, a Lei
Rio Branco – conhecida como Lei do Ventre Livre, potencializou as já apaixonadas
discussões, demarcando ainda mais as posições liberais e conservadoras na arena pública.
O movimento abolicionista, portanto, não teve como ponto de corte a decretação de 1871:
3 José Carlos do Patrocínio nasceu em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, em 9 de outubro de 1853.
Farmacêutico, destacou-se nas atividades que desempenhou na imprensa e na política, atuando nos
movimentos abolicionista e republicano. Morreu em 29 de janeiro de 1905, no Rio de Janeiro.
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o próprio abolicionismo cresceria e se fortaleceria face às divergências da aplicação da
lei. Além da defesa do fim do trabalho escravo, postulava-se também a mudança do
regime político, associando-se à Monarquia ao atraso nacional.
Arthur Azevedo partilhou desses ideais, a saber: abolicionistas e republicanos.
Revestiu-se das armas de seu intelecto, fazendo-se “escravo de sua pena” e propagandista
da causa abolicionista (JÚNIOR, 1966: 129-148). Por meio da imprensa, do teatro e de
sua participação em festas populares, percebe-se que Arthur esteve presente nas diversas
manifestações em favor da causa antiescravagista. Aliás, em seu ensaio, A morte da
escravidão, Humberto Machado aponta para importância da imprensa e do teatro na
campanha abolicionista. Além disso, Machado ressalta o valor das festas, quermesses e
meetings para arrecadar fundos para compra de cartas de alforria, bem como a
popularização do movimento, com vistas a angariar simpatizantes à causa da libertação
dos cativos (MACHADO, 1999: 374).
Os teatros abriam suas portas para comitês e campanhas contra a escravatura. Era
comum, nessas reuniões a presença de homens como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio
e André Rebouças. A campanha nos teatros não se restringia apenas às discussões
políticas, mas convertia-se na efetiva adesão de artistas e empresários. O historiador
Eduardo Silva relata a adesão destes após o espetáculo da Companhia Fênix Dramática,
no Teatro Lírico, em 21 de junho de 1870, em benefício de Ernesto Rossi4, ator italiano
que estava em temporada no Rio de Janeiro (MARZANO, 2008: 74-75). Ao fim da
encenação, atores e atrizes da companhia levaram ao palco uma menina negra de dois
anos para ser alforriada em cena, prestando homenagem a Rossi. Este, emocionado, fez
um discurso em favor da libertação dos cativos para uma plateia que contava com mais
de cinco mil espectadores, dentre os quais, o próprio Imperador Dom Pedro II. Dessa data
em diante, observa Silva, André Rebouças veria no teatro um meio eficaz para a
propaganda abolicionista.
A partir da década de 1880, as conferências viriam a dar lugar às matinées
abolicionistas. Realizadas nos teatros, tinham por objetivo divulgar a campanha em favor
da libertação dos escravos, incluindo as camadas mais diversificadas da sociedade, em
4 Ernesto Rossi nasceu em 29 de abril de 1827, em Livorno, na Itália. Ator de grande prestígio, ficou
conhecido por introduzir Shakespeare no teatro italiano. Esteve no Brasil em temporada, tendo representado
no teatro Provisório. Morreu em 1896.
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especial as menos favorecidas, com destaque para negros e mestiços. No tocante à
programação, sabe-se que “além de uma conferência em defesa da abolição, tais eventos
incluíam a encenação de uma peça alegre, números musicais e recitação de poesias, entre
outras atrações” (MARZANO, 2008: 75).
Sobre a atuação desses artistas em favor da abolição, Magalhães Junior salienta os
esforços empreendidos pela gente de teatro para arrecadar fundos para compra de cartas
de alforria. O autor destaca os nomes de Rose Villiot, atriz francesa naturalizada
brasileira, que participou de muitas peças de Arthur Azevedo, Ismênia dos Santos,
Apolônia Pinto, Delmary, Suzanna Castera, Delorme, Correia Vasques, o ator mais
festejado dos oitocentos, Xisto Baía, um dos maiores intérpretes do teatro de revista de
Azevedo, e muitos outros que faziam sucesso nos palcos. Contudo, o maior destaque do
movimento abolicionista popular, foi Luiza Regadas, cantora de igreja, que se engajou na
causa antiescravista de forma ativa, participando de sociedades abolicionistas, como a
Confederação Abolicionista e Sociedade Brasileira Contra Escravidão e outras
congêneres, merecendo o título de Rouxinol da Abolição.5 Igual contribuição, tiveram
ainda, segundo Magalhães Junior, os maestros Carlos Gomes, Arthur Napoleão, Henrique
Mesquita, Bassi e Cernichiari.
Desde a década de 1830 e durante os oitocentos, o teatro foi um local de
manifestação pública, onde “todas as iniciativas e decisões no campo artístico, que
viessem por parte de literatos, estariam legitimados a priori e passariam a ser expressão
mais pura daquilo que se queria atingir” (SOUZA, 2002: 35). O engajamento dos homens
das letras pela via do teatro era condição sine qua non da campanha abolicionista. Assim
foi com Arthur Azevedo. Engajado nos debates e campanhas de seu tempo, escreveu
obras teatrais voltadas para este fim. Um exemplo está na peça O Liberato, redigida a
pedido de Joaquim Nabuco. Encenada no Teatro Lucinda em 1881, rendeu bons frutos,
repetida em inúmeros festivais em prol da campanha emancipacionista. No ano seguinte,
em 1882, Arthur Azevedo escreveu com Urbano Duarte o drama A família Salazar,
censurado pelo Conservatório Dramático, teve seus originais apreendidos, os autores
recuperaram o manuscrito da peça em 1884. Porém, vendo que a campanha abolicionista
5 Ver Raimundo Magalhães Júnior. Arthur Azevedo e sua época. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira S.A., 1966/ Andréa Marzano. Cidade em cena: o ator Vasques, o teatro e Rio de Janeiro (1839-
1892). Rio de Janeiro: Folha seca: FAPERJ, 2008.
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caminhava a largos passos, eles decidiram publicá-la sob o título, O Escravocrata. Logo
no “Pródromo”, Duarte e Azevedo fariam a sua “profissão de fé”:
Tanto mais que nos achamos plenamente convencidos de que, à força
de empenhos e de argumentos, alcançaríamos a felicidade de ver o
nosso drama à luz da ribalta. Mas esses trâmites seriam tão demorados,
e a ideia abolicionista caminha com desassombro tal, que talvez no dia
da primeira representação de O escravocrata já não houvesse escravos
no Brasil. A nossa peça deixaria de ser um trabalho audacioso de
propaganda, para ser uma medíocre especulação literária. Não nos
ficaria a glória que ambicionamos, de haver concorrido com o
pequenino impulso das nossas penas para o desmoronamento da
fortaleza negra da escravidão. (AZEVEDO [1884], 2002: p. 35)
Como observa Antônio Martins de Araújo, em Arthur Azevedo: Homo Politicus:
“De passo em passo, de crônica em cônica, de peça em peça, Arthur foi pouco a pouco
reivindicando em favor dos irmãos de cor o direito de usufruírem as benesses de uma
sociedade que devia ser construída por brasileiros de todas as cores” (AZEVEDO, 2002:
p. 599).
Como já foi mencionado, Arthur usou o jornal como uma espécie de tribuna em
defesa de uma sociedade sem escravos. Além de colaborar em diversos periódicos,
Azevedo fundou com Aníbal Falcão, A Gazetinha, em novembro de 1880. A folha media
“pouco mais que um palmo e meio” (JÚNIOR, 1966: 66), contendo em sua página inicial
anedotas, notícias, sobretudo as ligadas ao universo teatral. De caráter literário, contribuía
para a campanha abolicionista. A redação situava-se à Rua do Ouvidor, 132. Segundo
Gonzaga Duque, era decorada com caricaturas de Raul Pompéia, Belmiro de Almeida,
Aluísio Azevedo, França Júnior e outros (JÚNIOR, 1966: 66). Reuniu em sua redação,
nomes como os de Lopes Trovão, José do Patrocínio, Demerval da Fonseca, Arthur de
Oliveira, Carvalho Júnior, Lúcio de Mendonça, o próprio Aluísio, Teófilo Dias, Urbano
Duarte, Salustiano Sebrão, Fontoura Xavier, Adelino Fontoura.
Na História da Imprensa no Brasil, Werneck Sodré aponta para rivalidade entre
A Gazetinha e A Gazeta de Notícias, e desta última com O País, de João José dos Reis
Júnior, “resultando em duelo deste com Ferreira Araújo, duelo a que o Mequetrefe
dedicou uma de suas capas” (SODRÉ, 1966: 231). De vida efêmera, a folha fundada por
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Arthur Azevedo circulou até 1881. Porém, a animosidade entre Arthur e Ferreira Araújo,
se estenderia durante mais uns anos, chegando mesmo a criar um personagem em uma de
suas revistas de ano, Mercurio, interpretado pelo ator Xisto Baía, o Dr. Telha, caricatura
viva de Araújo.
A atuação de Arthur Azevedo na imprensa foi notável. Ele colaborou com cerca
de quarenta e cinco jornais, chegando a publicar cerca de quatro mil crônicas (MARTINS,
2002: 599). Tendo participação ativa nas redações de jornais e revistas como o Diário de
Notícias, Correio do Povo, A Época, O Besouro, O Dia, Folha Nova, Correio da Manhã,
O Mequetrefe, Kosmos, O Teatro, O País, A Notícia, Revista Brasileira, entre outros.
Contudo, foi nas páginas d´ O País, onde esteve desde a sua fundação - ali assinava versos
humorísticos sob o pseudônimo de Gavroche-, bem como no Diário de Notícias que
Arthur estabeleceu seu lugar junto um grande número de leitores.
Sua notoriedade na imprensa possibilitou-lhe o ingresso em associações e grupos
literários que, posteriormente, viriam a dar lugar à Academia Brasileira de Letras.
Como se sabe, desde o Império, a iniciativa de se formar uma Academia de
Homens da Letras, nos moldes da Academia Francesa, já se fazia presente nas aspirações
dos literatos brasileiros. Partidário dessa ideia, o Imperador Dom Pedro II já
demonstrava, em suas reuniões literárias em São Cristóvão, o desejo de criar uma
instituição voltada para essa finalidade. Com o objetivo de atender a essa demanda, o
conselheiro Francisco Otaviano criou a Associação dos Homens das Letras do Brasil,
inaugurada em 30 de agosto de 1883, no Liceu de Artes e Ofícios. Sob a presidência do
também Conselheiro, Pereira da Silva, a sociedade contava com a presença de Dom Pedro
II, Princesa Isabel, do Conde d´Eu, de representantes do exército, da política, do
jornalismo e da literatura. Arthur Azevedo integrava o seleto grupo, ao lado de Franklin
Távora, Visconde de Taunay, Afonso Celso, Sílvio Romero, Homem de Melo, Machado
de Assis e Franklin Dória, entre outros. Segundo Afonso Celso, o reduto letrado tinha por
objetivo “animar a profissão literária, reunindo e utilizando no interesse comum e das
letras as atividades intelectuais, que o isolamento traz dispersos” (NEVES, 2008: 6).
Porém, depois de criada, a associação se dissolveria.
Outras formas de associação literária, surgiriam, tendo vida mais ou menos
efêmera, e em certa medida, podem ser consideradas embriões daquilo que mais tarde
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veio a ser a Academia Brasileira de Letras. Um exemplo notável é a fundação d` A
Semana, nos anos iniciais da República. Jornal de grande circulação, a folha agrupava
diversos nomes da literatura, permitindo que muitos desses divulgassem seus trabalhos,
possibilitando o diálogo com o público leitor. O desejo de criar uma sociedade estável
que representasse a cultura brasileira orientou a segunda fase do periódico (1893-1895),
dirigido então por Valentim Magalhães. Ponto de encontro dos homens das letras, a
redação do semanário, situado à Rua Gonçalves Dias, nº 67, 1º andar, tinha como
colaboradores: Lucio de Mendonça, João Ribeiro, Araripe Junior, Urbano Duarte, Silva
Ramos e Rodrigo Otávio (FLEIUSS, apud, NEVES, 2008: 8).
Nessa mesma época, por iniciativa de Araripe Junior, foi criado o clube Rabelais,
que reuniria mensalmente, em divertidos “banquetes”, vários dos futuros membros da
Academia Brasileira de Letras.6 Estes “ágapes literários”, tinham lugar em hotéis
famosos, como o Hotel Globo (OCTÁVIO, apud, NEVES, 2008: 8). Nessas ocasiões,
discutiam-se diversos assuntos, em especial aquele que mais os unia: a literatura. Em
suas Recordações do Clube Rabelais, Araripe Júnior registra: “A regra era esta:- na
primeira sexta-feira de cada mês reuniam-se os sócios no hotel previamente escolhido e
banqueteavam-se sem cerimonial, à brasileira” (JÚNIOR, 1966: 221).
A cada mês, o jantar ficava a cargo de um comissário diferente, que tinha a cota
de dez mil réis, dinheiro suficiente para fazer um grande banquete. Sabe-se que o
primeiro encarregado foi Raul Pompéia, “o mais jovial e o mais traquinas: o enfant gâté
do clube” (Ibidem), tal como descrevera Araripe em suas memórias. O segundo jantar,
teria como idealizador o contista e jornalista Pedro Rabelo. Já o terceiro, ficou sob a
responsabilidade de Rodrigo Otávio, que dirigiu a Arthur o seguinte convite:
ARTHUR:
Pr´a futura sessão do Rabelais
Que a 14 de outubro se efetua,
Queira você mandar-me dez mil réis,
Se não quiser ficar no olho da rua.
Pela resposta aguarda o portador.
6 Arthur Azevedo, Raul Pompéia, Urbano Duarte, Rodrigo Otávio, Coelho Neto, Lúcio de Mendonça,
Valentim Magalhães, Raimundo Corrêa, Said-Ali, Max Fleiuss, Capistrano de Abreu, Xavier da Silveira e
outros menos assíduos.
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Desculpa o “sans-façon” do admirador
Rodrigo Otávio7
Dentre os membros do Clube Rabelais, Araripe Junior destaca em suas
recordações os nomes de Raul Pompéia e Arthur Azevedo, os quais se sobressaíam pela
jovialidade e encanto:
De ordinário, nesses ágapes literários, sobressaíam pelo espírito de
dois convivas – naturezas completamente diversas, Raul Pompéia e
Arthur Azevedo se completavam, dando às nossas festas intelectuais
uma frescura e juvenilidade encantadoras. Se por um lado o autor do
Ateneu fustigava a nossa inércia com esfuziadas imprevistas,
paradoxais, por outro o comediógrafo dos Noivos, quando de veia,
pulverizando as palestras de anedotas e pequenas comédias, quase
representadas ao vivo, provocava risadas incoercíveis e uma alegria
molieresca inextinguível (JÚNIOR, 1966: 222)
A despeito de toda a excitação de seus convivas, o clube Rabelais foi dissolvido.
Em tom de lamentação, o criador registrou o fim da sociedade literária. Sem, no entanto,
esclarecer o motivo pelo qual o clube deixou de existir:
Infelizmente tudo isso acabou, e dos rabelesianos, o mais vivo e
convicto, a alma do clube enfim, desertou para as regiões do Além,
como dizem os nefelibatas, sem nos dizer adeus. A sua proposta no
clube fora que se desse o banquete no próximo carnaval, no refeitório
de um convento, verdadeiro ou fictício, em homenagem ao cura de
Meudon, padroeiro da sociedade. Os sócios apresentar-se-iam em
hábitos franciscanos e falariam em latim ou no jargão de Rabelais. A
idéia não se realizou porque o clube dissolveu-se; âquele festivo
pantagruelismo convertera-se nas sombrias preocupações de um novo
Brutus (JÚNIOR, 1966: 222).
7 Documento encontrado no acervo de Arthur Azevedo na Academia Brasileira de Letras, não inventariado.
À guisa de curiosidade, para além das brincadeiras com seu confrade, Arthur, sabe-se que, Rodrigo Otávio
organizou um banquete à moda chinesa, surpreendendo os rabelesianos, como recorda araripe Júnior em
suas Memórias: “No banquete, de que foi encarregado Rodrigo Otávio, pregou-nos uma surpresa. Como os
chineses estavam em causa, ele lembrou-se de adornar a sala a caráter... Não houve à mesa ninhos de
salangana; mas em compensação, leques, figuras, paliteiros, tudo era chinês, das paredes pendiam
caquemonos, improvisados em telas de cetim branco e amarelo, pintados a tinta de escrever, representando
dragões, guerreiros e cegonhas, reminiscências das clássicas figuras do pintor japonês Outamaro.”
(JÚNIOR. Apud. JÚNIOR, 1966 : 220- 221).
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Com o término da sociedade literária, os jantares e banquetes organizados por seus
confrades, cederam espaço para o chá das quatro e para as reuniões na redação da Revista
Brasileira. Segundo Werneck Sodré, a fase literária da revista foi marcada por dois
momentos: a primeira, entre 1879 e 1881, quando dirigida por Nicolau Midosi, e a
segunda, entre 1895 e 1898, sob a direção de José Veríssimo (SODRÉ, 1966: 89).
Sobre a última fase, é de se notar que Veríssimo reuniria em torno desta, homens
de letras como: Paulo Tavares, Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Lúcio de Mendonça,
Graça Aranha, Paula Ney, Domício da Gama, Alberto de Oliveira, Rodrigo Octávio, o
próprio Arthur Azevedo, Silva Ramos, e Filinto de Almeida. Por vezes apareciam Bilac,
Guimarães Passos, Raimundo Correia, Valentim Magalhães, Pedro Rabelo e outros.
(NETO, apud, NEVES, 2008:8- 9).
A redação, localizada em uma modesta sala à travessa do Ouvidor, é descrita por
Coelho Neto, através de um jogo retórico amparado no contraste entre à escuridão do
ambiente e a clareza das ideias que circulavam no local. Sobre a atmosfera que envolvia
os homens das letras, o literato escreve:
(...) o negrume do recinto contrastava o brilho da palestra que ali se
travava. Se as idéias fulgissem e as imagens relumbrassem, certo não
haveria em toda a cidade casa mais iluminada do que aquela.
Infelizmente, porém, apesar dos conceitos diamantinos de Machado de
Assis, do esplendor dos períodos de Nabuco, da cintilação do espírito
de Lúcio e dos paradoxos relampejantes de Paula Ney, era necessário
manter sempre aceso um bico, ao menos, de gás, para que tantos
luzeiros não andassem aos esbarros desmantelando pilhas de
brochuras, abalroando nas mesas, que eram duas, uma das quais de
pinho réles e tripeta, claudicando sob o peso glorioso de obras-primas
á espera de editores. (NETO, apud, NEVES, 2008:8- 9).
Arthur Azevedo foi um assíduo colaborador da Revista Brasileira. Isto se
evidencia pelo número de correspondências existentes no arquivo de Azevedo na
Academia Brasileira de Letras, destinadas ao diretor José Veríssimo, como se segue:
Ilustre e prezado Mestre Sr. José Veríssimo. Recebi e agradeço o
exemplar dos Estudos brasileiros com que me obsequiou. Em breve
terei ocasião de manifestar publicamente a estima em que tenho essas
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magníficas páginas. – Peço-lhe uma prorrogação de treze dias ao
prazo que me foi concedido para entregar na casa Laemmert o conto
que prometi para o primeiro número da Revista Brasileira. Sábado lá
estará. Só me falta copiá-lo. Seu admirador e amigo agradecido. –
Arthur Azevedo8
Seria em torno da redação da Revista Brasileira, que ressurgiria a ideia de se
formalizar uma associação dos homens de letras no Brasil. Sugerida por Lucio de
Mendonça, causou alvoroço entre os literatos. Uns foram partidários do projeto, enquanto
outros não. Machado de Assis, a princípio, faria algumas objeções, embora mais tarde se
tornasse entusiasta da Academia da qual foi seu primeiro presidente. Por sua vez, Coelho
Neto deixaria o seguinte testemunho:
Foi em tal pobreza obscura, como a do presepe (honni soit qui mal y
pense!) que nasceu a Academia, e, si, anjos não esvoaçaram no beco,
anunciando o natal da instituição, cá em baixo, na terra rasa, teve a
recém nascida vozes que, si não a glorificaram com hosanas, fartaram-
se de a arrasar, anunciando –lhe a morte com prognósticos ridículos.
(NETO, apud, NEVES, 2008:8- 9).
Alessandra El Far afirma que a ideia de criação da Academia Brasileira de Letras
não se deu de maneira isolada. Ao contrário, para a autora os projetos de fundação,
(...) não constituía novidade. No final dos anos de 1880 e início dos
1890, diversos literatos engajados na nascente profissão das letras
almejavam estabelecer um novo padrão de sociabilidade literária. Os
encontros casuais, as módicas remunerações, os grupos dispersos e
descompromissados já não lhes bastavam: queriam reconhecimento
social e uma identidade que os diferenciasse dos outros setores da
sociedade intelectual (EL FAR, 2000: 42).
Como observou Jeffrey Needell o período inicial da República foi marcado por
conflitos e por forte repressão, que dispersaram a boêmia literária. Muitos escritores
transplantaram os antagonismos políticos para o mundo literário. Cenário que se via agora
8 Documento encontrado no acervo de Arthur Azevedo na Academia Brasileira de Letras, não
inventariado.
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divido entre monarquistas e republicanos. Muitos encontrariam empregos ocasionais.
Outros, porém, desfrutariam de cargos públicos, alguns, ainda, perderiam suas posições,
ao manifestar fidelidade à monarquia e desgosto com o novo regime. Houve também
quem buscasse um modo de vida mais seguro, nos moldes burgueses, mantendo suas
identidades de criadores da cultura nacional.
Conforme apontado neste ensaio, Arthur Azevedo foi um homem de seu tempo.
Por meio de sua atuação nos meios literários, jornalísticos e teatrais, pode testemunhar a
crise do Império e o surgimento de uma ordem republicanas, ao refletir o difícil processo
de enraizamento desse regime. Pertenceu a um ciclo de sociabilidade composto por
homens das letras que, assim como ele, se reuniam ao redor da imprensa. Apesar das
divergências políticas existentes entre os membros dessa geração de intelectuais, muitos
desses se encontrariam, posteriormente, na Academia Brasileira de Letras, fundada em
julho de 1897 (NEEDELL, 1993: 224-229), da qual o próprio fez parte.
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