Entre Caranguejos e Beira-mar

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Sobre o cinema experimental

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    CARtOgRAfIA tROpICAL: entre caranguejos e beira-mar: cinema experimental nos trpicos Curadoria: Sebastian Wiedemann

    O que pode o cinema quando se diz experimental e se pensa desde os trpicos? Desconfiamos que sua potncia esteja na defesa de uma nacionalidade, de uma identidade. Acreditamos muito mais em singularidades que alimentam suas foras de espaos sempre mveis, mas que nem por isso deixam de ser meridionais. Estes solos se afirmam ao mesmo tempo frteis e precrios, uma instabilidade fervilhante fala neles. Caminhar nestas ter-ras traz, a cada passo, um estar de improviso, uma gambiarra, uma ginga Uma experimentao constante que compe nas transversalidades, nos entre-mundos

    So os caranguejos, os que entendem de entre-mundos nestas latitudes. Eles moram na beira, no fim e no comeo de dois mundos, no manguezal. Espao de passagem, de umbral; espao intensivo, onde os caranguejos em seu ser-multido e em seu caminhar transversal esto sempre entre a gua e a superfcie, entre a lama e as razes, entre o mar aberto e o rio Sempre nesse entre-lugar, desconhecendo identidade alguma, eles fluem e se confundem com o meio que experi-mentam. So caranguejos-manguezal. So uma borda, uma margem-aliana, com a qual o cinema pode devir potente e singular em terras de palmeiras.

    Portanto convocamos aqui caranguejos cinematogrficos, que entendem o meio flmico como um manguezal. Levar a percepo a um estado de beira-mar, exacerbar os sentidos e no risco de ser levado pela mar, abrir a imagem a novos ritmos, a novas vibraes.

    Sentimos que um dispor-se corpo-meio-imagem prolifera nesta aliana. Fazer corpo com a matria de expresso, com os fluxos cinemticos e snicos em relaes tteis. Um proce-dimento que o caranguejo conhece bem se impe. Com seu tato, ele esburaca na terra, na areia, mas quando se diz caran-guejo-cinematogrfico, ele esburaca no tempo, na superfcie frgil do filme-manguezal.

    Superfcies aquosas, midas onde a imagem se afirma como pura alteridade, modo de existncia, que aparece nos gradientes da expresso. Isto , avanar na durao da ima-gem como processo construtivo e devorativo constante. No manguezal no h dejetos, s matria expressiva que se transmuta na devorao dos caranguejos como a possibili-dade de uma ecologia de excrescncias dife-renciais na percepo. A imagem no pode se prevalecer, sua de-composio-putrefao sua fora, sua instabilidade necessria para durar, para poder continuar...

    Canta-se um fim do mundo no cinema, mas a aparente extino do celuloide no mais do que uma provocao para lev-lo a estado de manguezal em vertigem de de-composi-o-putrefao. Um chamado aos cineastas-caranguejos que na sua devorao abrem um novo mundo. Um mundo beira-mar.

    este mundo beira-mar que queremos apresentar em trs movimentos: De me-mrias e buracos no tempo, Esburacar a matria e Paraso.

    Em De memrias e buracos no tempo, o esburacar como procedimento cria hiatos, in-terstcios, que antes que apelar a lembranas ou a passados atrelados no tempo, procu-ram ser memrias de memrias (Memria da memria de Paula Gaitan), lacunas que rebentam duraes outras (Time gap de Duo Stragloscope), umbrais de luz vermelha (Ver-melha a luz do freio de Cristiana Miranda), ou solos que entendem o mundo como uma grande jam de improvisao tropical (Habana solo de Juan Carlos Alom).

    Esburacar a matria traz o gesto literal de fender a superfcie. Cinema sem cmera,

    como riscar, arranhar, pintar com a pin-a-mo-crustcea que devora o celuloide abrindo, afundando-se em tempos lamacen-tos. Variaes cromticas e rtmicas (Breathe de Leonardo Zito). Precipitaes, quedas (Blood, sea, film de Andres Garcia Franco) que abraam o vaivm da mar que recria uma e outra vez a superfcie. O esburacar, o furar (Abecedario/B de Los Ingravidos), como uma interferncia constante no plano-meio-man-guezal por onde a mar que emaranha o rio e o mar, a cor e o som, pode vazar. beira-mar, arranhar, devorar, escrever (On the Road by Jack Kerouac de Jorge Lorenzo) at na lama se esgotar. Eclodir um campo experimental hp-tico na percepo, que na chegada da ressaca ter nos doado no s destroos alegres, mas tambm novos olhos por mais que estes estejam arrebentados.

    Finalmente Paraso (de Felipe Guerrero) evoca a complexidade de uma ecologia de excre-cncias diferenciais na percepo. A pergunta pelo manguezal arrasta imagens e sons livres na procura por compor nas runas. Um pas em guerra, que nos deixa em estado de catstrofe constante o estmulo para filmar na fragilidade do Super8, esse entre-mundos necessrio para resistir e ver um paraso onde ningum o v. Algum pode ver s lama, mas os caranguejos-cinematogrficos veem pura potncia de composio.

    Pensar o cinema experimental nos trpicos deixar-se afetar pelas atmosferas e ritmos que borbulham e polinizam estas latitudes. Deixar-se envolver, envelopar, ganhando ou perdendo peles, mas sempre devorando as superfcies. Um cinema que entre ventos meridionais esculpe olhares e escutas impossveis com o caminhar transversal dos caranguejos. Um cinema que leva a percep-o beira-mar. (S.W.)

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