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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
Entre chamantos, smokings e ponchos:
representações identitárias na música popular chilena (1950-1973)
NATÁLIA AYO SCHMIEDECKE*
Entre os anos de 1950 e 1970, desenvolveram-se no Chile diferentes propostas
musicais que buscaram se vincular ao “folclore” nacional: a Música Típica, o Neofolklore, a
“Projeção Folclórica”1 e a Nova Canção Chilena. Essas correntes partiram de concepções
próprias sobre o que caracterizaria o repertório “folclórico”, permitindo assim que diferentes
grupos sociais chilenos reforçassem valores e identidades comuns e se articulassem como
corpo social (GONZÁLEZ, 1996:25). Tomando como questão central o significado de tais
escolhas, o presente texto enfoca o papel das vestimentas utilizadas pelos conjuntos
identificados a cada uma dessas tendências na elaboração de representações2 da identidade
nacional.
Os trajes são concebidos como partes fundamentais da performance3 artística, que
engloba tanto aspectos interpretativos como de encenação, atuando na construção de imagens
e significados vinculados ao repertório apresentado. Nesse sentido, sua análise tem algo a
dizer sobre a origem, a visão de mundo e o público-alvo de cada uma das expressões musicais
mencionadas.
Inicio minha abordagem pela chamada Música Típica, surgida em fins dos anos 1920,
num contexto de forte migração de trabalhadores do campo para as cidades. Constituindo-se
como um estilo voltado à “evocação da vinculação desses setores com o campo, alimentando
certa nostalgia pelo paraíso perdido” (GONZÁLEZ, 1996:26)4, a Música Típica buscou
adaptar as formas camponesas tradicionais ao novo ambiente urbano e moderno. Entre os
conjuntos representativos dessa tendência, podem ser destacados Los Cuatro Huasos, Los
Huasos Quincheros e Los Provincianos – quartetos vocais masculinos acompanhados por
* Mestranda em História vinculada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP-Franca, bolsista FAPESP. 1 Termo emprestado de GONZÁLEZ; OHLSEN; ROLLE, pp. 311-315. 2 Utilizo a definição de “representação” desenvolvida pelo historiador francês Roger Chartier: modo pelo qual em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade é construída, pensada, dada a ler por diferentes grupos sociais por meio da correlação entre uma imagem presente e um objeto ausente. Cf. “O mundo como representação” (2002:61-79). 3 De acordo com Paul Zumthor (1993), a performance é compreendida como um conjunto de texto, voz e gesto no qual o corpo desempenha papel fundamental. Trata-se, portanto, de um ponto de intersecção entre enunciação, ação e recepção. 4 Todas as citações retiradas de textos em espanhol foram traduzidas pela autora.
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violões, formados por estudantes universitários oriundos de famílias da oligarquia
latifundiária chilena.
Como destaca a pesquisadora francesa Emanuelle Rimbot (2008:63), o elemento
fundamental em torno do qual girava o projeto artístico desse estilo musical era o personagem
do huaso, que cumpria a dupla função de objeto (tema) e sujeito (voz) das canções.
Interessante notar que o termo huaso se referia originalmente ao peão da fazenda – o
camponês de baixa condição financeira que trabalhava nos latifúndios com o gado e os
cavalos. A observação da IMAGEM 1 aponta para a distância que separa essa figura daquela
projetada pelo huaso da Música Típica.
De acordo com Osvaldo Rodríguez Musso – escritor e ex-integrante da Nova Canção
Chilena –, a vestimenta desses conjuntos era composta pelos seguintes elementos: jaqueta até
a cintura, adornada por vários botões até a manga; calça justa; faixa na cintura ou cinturão de
couro largo e adornado com motivo floral; chapéu de aba larga, de tipo andaluz; bota de couro
com salto alto; e esporas de prata. Frequentemente, agregava-se a este traje um tipo de
cobertor ornamental curto e colorido (em geral vermelho, branco e preto) conhecido como
chamanto. Rodríguez Musso aponta para o caráter classista da vestimenta, que se referiria
antes ao dono da terra do que ao camponês que nela trabalhava: as esporas de prata suporiam
IMAGEM 1: Los Huasos Quincheros Capa do Suplemento Cancionero Odeon – fev/mar 1963
Fonte: http://losquincheros.net/huasosquincheros.html#59
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a posse de um cavalo ao passo que o chamanto denotaria status, pois costumava ser usado em
ocasiões festivas como rodeios e comemorações religiosas, apresentando uma função distinta
da do poncho comprido de lã grossa usado pelos peões e vaqueiros. Nessa versão, o poncho5
teria perdido sua função original de abrigo para conservar só o aspecto pitoresco, tipificador.
Por outro lado, o autor destaca a semelhança existente entre a vestimenta do huaso e o traje
andaluz de festa, em especial o utilizado nas touradas espanholas (MUSSO, 1988:72).
Conforme veremos adiante, a crítica social a essa representação do “homem do campo” esteve
na base da constituição da Nova Canção Chilena.
Por sua vez, a figura feminina não estava presente nos primeiros conjuntos de Música
Típica, sendo incorporada nos anos 1950 – quando se deu o triunfo da intérprete como artista
do “folclore”. Dando continuidade à proposta dos conjuntos de huasos, as cantoras
encarnaram sua esposa, a china, apresentando-se com vestidos floridos de saia rodada, decote
amplo e punhos rendados (IMAGEM 2). O traje se completava com sapato de salto alto e um
pequeno avental branco, usado em cima da saia e amarrado na cintura. Para Rodríguez Musso,
“Se no traje do homem a espora de prata ou o chamanto bordado são símbolo de riqueza, o
avental da china é sinal de servidão” (MUSSO, 1988:72-73).
Observa-se que os conjuntos da Música Típica fabricaram um personagem
emblemático muito diferente da realidade social do trabalhador camponês chileno. Na
passagem de huaso do campo para huaso de cenário, a figura ascendeu socialmente,
5 Cobertor de lã grossa que chega até os joelhos.
IMAGEM 2: Silvia Infantas y Los Baqueanos Capa do Suplemento Cancionero Odeon, ago/set 1957. Fonte:GONZÁLEZ; ROLLE; OHLSEN:2009:326.
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evidenciando a intenção dos artistas de elaborar um “folclore” e uma identidade afins com sua
própria condição social (RIMBOT, 2008:64). Nesse sentido, é significativo que esses
conjuntos tenham elegido a tonada e a cueca – gêneros musicais oriundos da região central do
país, enraizados na cultura criolla – como base de seu repertório, que abordava temáticas
amorosas e paisagistas.
Como assinala a historiadora chilena Karen Fritz, a interpretação do “folclore”
realizada pela Música Típica esteve pautada no ideal de unidade nacional, uma vez que sua
temática se baseava em elementos fundamentalmente materiais. Esse conteúdo era
apresentado como um patrimônio comum da sociedade chilena; não se reivindicava como a
forma de vida de um ou outro setor que a integravam, mas antes pretendeu pertencer a todos
enquanto elemento do passado comum (FRITZ, 2008:103). Assim, não é de surpreender que
com o golpe civil-militar de 1973, a Música Típica tenha “ressurgido”, sendo valorizada e
difundida pelos meios de comunicação oficiais, ao passo que alguns artistas se incorporaram a
organismos governamentais – como é o caso de Benjamín Mackenna, membro do quarteto
musical Los Huasos Quincheros que passou a compor o Departamento Cultural da Secretaria
Geral de Governo, exaltando o fato de que “Agora a coisa é absolutamente distinta; este
governo quer que a canção chilena seja uma só” (apud FRITZ, 2008:92).
Diversos críticos e folcloristas assinalam o terceiro LP do conjunto Los de Ramón –
denominado Arreo en el viento (RCA, 1962) – como o início da proposta de renovação da
Música Típica chilena (GONZÁLEZ; OHLSEN; ROLLE, 2009:334). No âmbito da
vestimenta, a mudança mais visível se deu no traje da mulher, que abandonou o vestido e o
avental, substituindo-os por peças similares às usadas pelo huaso: uma camisa branca fechada
(sem decote), adornada por rendas no peito e nos punhos; jaqueta curta; faixa ou cinturão na
cintura; saia comprida e estreita, aberta em um dos lados para mostrar a bota alta; e um
chapéu ao estilo andaluz. Inventava-se, assim, a equivalente social do huaso – que
permaneceu representado pelos homens do conjunto.
O abandono do traje do huaso se processou em conjuntos formados nos anos 1950 e
1960, ligados à “Projeção Folclórica” ou ao Neofolklore. No caso da primeira tendência,
destacaram-se os grupos Cuncumén (1955-1973) e Millaray (1958-1973), que contavam com
direção artística, respectivamente, das folcloristas Margot Loyola e Gabriela Pizarro.
Vinculados ao Instituto de Investigaciones del Folklore Musical da Universidad de Chile,
esses grupos se dedicavam à pesquisa de campo e divulgação de cantos e danças tradicionais
de diversas regiões do país, incluindo repertórios de salão, andinos, pampianos, da Ilha de
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Chiloé e da Ilha de Páscoa – contribuindo para a diversificação do repertório nacional gravado
em disco. Tomando como pressupostos o respeito pela autenticidade da representação e seu
sentido coletivo, os conjuntos de “projeção folclórica” procuraram recolher junto aos
camponeses das diversas localidades que visitavam “fontes puras”, ou seja, formas
“folclóricas” que consideravam representativas.
No âmbito da vestimenta, Osvaldo Rodríguez assinala que, num primeiro momento, os
conjuntos mantiveram o traje do huaso e da china, conforme podemos observar nas capas do
LP El folklore de Chile vol. V (IMAGEM 3), lançado em 1957 pelo Cuncumén.
Posteriormente, e em grande parte por conta da influência de Víctor Jara – diretor de teatro e
intérprete que se integrou ao grupo em 1958 –, passaram a adotar um traje estilizado do
camponês: camisa xadrez (conhecida no Chile como “tecido escocês”); colete abotoado; faixa
na cintura; calça de uma só cor; calçado de trabalho ou sandália de borracha, usada com meias
grossas; e chapéu estilo andaluz, ou seu equivalente de palha. Para as mulheres, vestido liso
de uma só cor e, às vezes, um lenço na cabeça. Alguns integrantes usavam poncho (IMAGEM
4) de uma só cor. Assim, o Cuncumén buscou se aproximar do camponês humilde –
compreendido como portador dos valores nacionais autênticos –, difundindo manifestações
“folclóricas” de origem criolla e indígena.
Os autores de Historia social de la Música Popular en Chile, 1950-1970
contextualizam o surgimento dos conjuntos de “projeção folclórica” chilenos no folclorismo
que se desenvolveu no mundo do pós-guerra, tendo como referente importante os artistas de
IMAGEM 3: Cuncumén Capa do LP El folklore de Chile – Vol. V Odeon, 1957.
IMAGEM 4: Cuncumén Capa do LP “Aquí estoy para quererte” (El folklore de Chile – Vol. V). Odeon, 1967.
6 Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
ideias de esquerda provenientes de países da órbita soviética: “De fato, a chegada no Chile do
Conjunto Estatal de Dança Popular da União Soviética Moiseiev, em fins de 1958, marcava
um claro ponto de partida na forma como se levaria a cabo a encenação do folclore nos anos
seguintes” (GONZÁLEZ; OHLSEN; ROLLE, 2009:312). Esse fator esteve na base das turnês
realizadas pelo Cuncumén em países do leste europeu, atuando em eventos como o Festival
Mundial das Juventudes Democráticas. No Chile, o conjunto se apresentava em sindicatos e
em manifestações trabalhistas como as comemorações do 1º de maio, sendo os trabalhadores
urbanos seu principal público. A identificação com os partidos de esquerda se explicitou nas
campanhas eleitorais de 1964 e 1970, quando atuou em manifestações da Frente de Ação
Popular6 e da Unidade Popular7, respectivamente, que apresentaram Salvador Allende como
candidato à presidência. Em 1971, o conjunto visitou o Equador na qualidade de Embaixada
Cultural do governo de Allende.
Por sua vez, os artistas do Neofolklore buscaram se diferenciar tanto dos conjuntos de
Música Típica como dos intérpretes ligados à “Projeção Folclórica”. Trabalhando com vozes
bem matizadas, deixaram de lado os gritos e interjeições utilizados pelos primeiros; por outro
lado, opuseram-se à interpretação de canções “em seu estado puro”, propondo-se a realizar
nelas “uma limpeza para espantar o pó” (Los Cuatro de Chile apud GONZÁLEZ; OHLSEN;
ROLLE, 2009:338). A diferenciação proposta também se evidenciou no uso de trajes formais.
O surgimento do Neofolklore se relaciona à consolidação de uma cultura propriamente
juvenil e urbana nos anos 1960 – quando a cultura camponesa chilena constituía um
referencial distante para os habitantes da cidade. Já não se tratava de imigrantes que
evocavam sua origem rural, mas de jovens nascidos e criados na cidade, cuja relação com o
“folclore” era mais distante e livre, mediada pela indústria musical (GONZÁLEZ, 1996:29).
O uso de smoking preto, acompanhado de gravata-borboleta, explicitava a intenção desses
conjuntos de desvincularem-se de uma tradição nacional tipificada e limitada ao meio rural
(IMAGEM 5). Configurando a roupa típica do citadino de classe média-alta, o smoking
denotava refinamento, elegância – características buscadas também nos arranjos rebuscados
das canções. Tomando como base o esquema harmônico tonal – e, nesse sentido, dando
continuidade à tendência estilística da Música Típica –, os conjuntos neofolklóricos
6 A Frente de Ação Popular foi uma coalizão de partidos de esquerda chilenos existente entre 1956 e 1969. Em 1964, era composta por: Partido Comunista, Partido Socialista, Partido Democrático Nacional e Vanguarda Nacional do Povo. 7 A Unidade Popular foi criada em 1969 através de uma aliança de três grandes partidos – Partido Comunista (PC), Partido Socialista (PS) e Partido Radical (PR) – e três organizações menores – o Partido Social Democrata (PSD), o partido de Ação Popular Independente (API) e o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU).
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desenvolveram o virtuosismo vocal através de onomatopéias dos sons do bombo (ARANTES,
2009:45). Baseados no canto coral, estes arranjos – compostos por gama limitada de recursos
expressivos – foram se estandardizando com rapidez, tornando-se uma fórmula explorada até
o limite pela indústria fonográfica.
Por outro lado, o uso do smoking aponta para a identificação com os conjuntos juvenis
estrangeiros dos anos 1960, como os Beatles. Mas os artistas neofolklóricos não recusaram a
identidade nacional, o que se verifica na constituição de um repertório baseado em formas
“folclóricas” chilenas. Nesse sentido, é importante mencionar a incorporação de “gêneros
remotos, antigos ou esquecidos” – como a sirilla, o cachimbo, o trote e a refalosa, resgatados
pela “projeção folclórica” e difundidos pelo Neofolklore – realizada por esses conjuntos,
trazendo ao centro da indústria musical tradições do Norte e do Sul do país e ampliando
também o repertório do Vale Central. Os gêneros incorporados eram adequados para o
desenvolvimento de temáticas costumeiras ou históricas – que evocavam lugares,
personagens, comidas e danças tradicionais, além de recordarem acontecimentos históricos.
Assim, o intérprete deixou de falar de si mesmo ou de seu público, trazendo à cena figuras de
costumes diferentes, identificadas como o “Outro” e em geral bastante idealizadas
(GONZÁLEZ; OHLSEN; ROLLE, 2009:341).
A historiadora brasileira Mariana Arantes (2009:341) destaca que os intérpretes e o
público consumidor do repertório neofolklórico integravam setores médios da sociedade
chilena que emergiram na vida pública durante as décadas anteriores, passando nos anos 1960
a participar do sistema político através da sua representação pelo Partido Democrata Cristão
IMAGEM 5: Los Cuatro Cuartos Capa da revista Radiomanía. ago 1964, p. 257. Fonte:GONZÁLEZ; ROLLE; OHLSEN:2009:348.
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(PDC). Com o acirramento da polarização ideológica ocorrido durante a presidência do
democrata-cristão Eduardo Frei (1964-1970), alguns artistas do Neofolklore demarcaram
claramente suas opções políticas, oferecendo apoio aos candidatos Radomiro Tomic (PDC) e
Jorge Alessandri (Partido Nacional). Entre os primeiros, encontrava-se o cantor Pedro
Messone e entre os últimos, “Chino” Urquidi e Willy Bascuñán, que compuseram canções do
LP Camino nuevo8 (Rondó, 1970).
Até fins dos anos 1960, não havia uma distinção clara9 entre Neofolklore e Nova
Canção Chilena (NCCh) – sendo que este último termo foi criado em 1969, com a realização
do Primero Festival de la Nueva Canción Chilena, organizado pelo radialista Ricardo García
junto à Pontificia Universidad Católica de Chile. A configuração da NCCh como
movimento10 esteve ligada ao engajamento político de determinados músicos no programa de
governo da Unidade Popular – explicitado pelo LP Canto al programa (DICAP, 1970), em
que o conjunto Inti-Illimani interpretou musicalmente as medidas propostas pela coalizão.
Partindo do princípio de que o “folclore” seria o meio de devolver ao “povo” sua
identidade como fator descolonizante (CÁNEPA-HURTADO,1983:156) e aproximando-se de
outras expressões nacionais da Nova Canção – em especial a argentina e a uruguaia –, a
NCCh defendeu a renovação do cancioneiro popular como resposta às formas estereotipadas
impostas pelo mercado musical. Tomando a canção popular como bandeira, os músicos
ligados ao movimento desenvolveram uma proposta estética de orientação latino-
americanista, expressa não só nas letras das canções, mas também nas fusões sonoras de
ritmos e timbres oriundos de diversas regiões do continente. Desse modo, a invenção sonora
de uma identidade latino-americana propôs a unidade cultural e política da região como
resposta à política intervencionista norte-americana (GARCIA, 2005:3-5).
No âmbito da vestimenta, havia uma diferenciação entre os solistas e os conjuntos11
ligados à NCCh: enquanto os primeiros não utilizavam trajes especiais em suas apresentações,
8 Gravado pelo conjunto Los Bric a Brac, o disco foi concebido como uma homenagem ao ex-presidente e então candidato à presidência Jorge Alessandri. 9 Ver SANTANDER, 1984:29-31. 10 Embora a NCCh nunca tenha lançado um manifesto, considero que possa ser compreendida como um movimento musical. Tendo sido batizada e articulado um sistema próprio de produção e circulação de seu repertório, a NCCh desenvolveu e propagou uma tendência inovadora de caráter estético, social e político – posicionando-se de maneira explícita no cenário artístico nacional. Cf. GONZÁLEZ; ROLLE; OLSEN, 2009:373. 11 A análise feita neste trabalho teve como objeto os conjuntos Quilapayún e Inti-Illimani, tomando-os como representativos da NCCh. Tendo sido formados na segunda metade dos anos 1960, foram os primeiros grupos – ao lado de Aparcoa e Tiemponuevo – identificados ao movimento e os que alcançaram maior projeção. Nesse sentido, é importante destacar que as considerações aqui colocadas não tem a pretensão de abranger a totalidade dos conjuntos da NCCh, embora seja possível afirmar que os grupos formados posteriormente tiveram o Quilapayún e o Inti-Illimani como referenciais importantes.
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os últimos optaram por vestir ponchos de uma só cor (IMAGEM 6). No caso do Quilapayún,
o traje (camisa, calça e poncho) era rigorosamente preto. Segundo Eduardo Carrasco,
integrante do grupo, a opção pelo preto se justificava porque era sóbrio e elegante, além de
que não fazia referência direta a nenhuma região específica do Chile ou da América Latina.
Além disso, “projetaríamos uma imagem popular sem cair na falsificação dos disfarces
folclóricos, os quais buscavam a aparência camponesa ou indígena” (CARRASCO, 2003:60).
Por sua vez, o conjunto Inti-Illimani optou por uma variante do vermelho (amaranto) igual à
cor utilizada pelas Juventudes Comunistas do Chile, à qual seus integrantes eram filiados.
Valorizando a aproximação estabelecida pelo Neofolklore em relação aos gêneros
andinos chilenos, os conjuntos da NCCh optaram pelos gêneros andinos bolivianos,
argentinos, peruanos e equatorianos – de acordo com seu impulso americanista. Os fios
comuns da música andina simbolizavam a unidade social e cultural do continente e
reivindicavam a expressão indígena, trazendo à cena sujeitos excluídos dos projetos
modernizadores levados a cabo no país desde a segunda metade do século XIX. Assim, a
música andina se transformou no “cavalo de batalha” da NCCh, utilizado na formação do
repertório e na conquista do público (GONZÁLEZ; OHLSEN; ROLLE, 2009:364).
A proposta de uma América Latina unida esteve presente nos ponchos dos conjuntos
ligados ao movimento, explicitando sua busca de aproximação com os trabalhadores do
campo. Por outro lado, a eleição da cor única pode se relacionar à intenção de demonstrar a
seriedade dos temas tratados nas canções, dentre os quais podem ser destacados: o mundo do
trabalho, a crítica ao capitalismo e ao “imperialismo” norte-americano, a promoção da
IMAGEM 6: Quilapayún. Encarte do LP Basta. DICAP, 1969.
10 Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
memória de personagens ou episódios identificados com a história das lutas sociais
continentais e a demonstração de solidariedade pelas causas revolucionárias mundiais do
período.
Elegendo para suas apresentações o formato do recital, articulado como narrativa
dramática, os conjuntos Quilapayún e Inti-Illimani – assessorados por Víctor Jara – pautaram-
se na concepção de que a interpretação demanda atuação, a qual, por sua vez, requereria
seriedade e disciplina. A encenação era concebida integralmente, outorgando o mesmo
cuidado aos aspectos técnico-musicais da execução vocal e instrumental quanto aos aspectos
corporais e visuais (ACEVEDO et. al., 1999:40). Daí que as performances dos conjuntos da
NCCh visavam acentuar a ideia de seriedade e compromisso: os integrantes apareciam
imóveis no cenário, unidos aos microfones disponíveis, com o corpo oculto sob o poncho e
mantendo uma relação cuidadosa com os instrumentos (GONZÁLEZ, 1996:33) – propiciando
assim um ambiente reflexivo, de concentrada e calada atenção dos espectadores.
Considerações finais
Como pudemos observar, as quatro tendências musicais desenvolvidas no Chile entre
1950 e 1970 em torno do “folclore” correspondem a diferentes concepções da identidade
nacional, as quais se relacionam a projetos de sociedade distintos. Mas se é inegável que os
artistas se opunham no plano ideológico, é notável que todos buscassem oferecer uma
resposta ao problema da definição da música nacional, agindo no sentido de naturalizar e
patrimonializar emblemas, valores e padrões musicais e, assim, compartindo da vontade de
promover uma canção nacional (ou latino-americana) legítima e autêntica (RIMBOT,
2008:82).
Até o momento de radicalização política que marcou o fim dos anos 1960 e início dos
1970, as fronteiras entre essas tendências não estiveram tão definidas, o que se observa na
adoção, durante algum tempo, do traje do huaso pelos conjuntos de “projeção folclórica” e
nas gravações conjuntas realizadas por intérpretes do Neofolklore e da NCCh, como é o caso
do LP Todo el folklore (Demon, 1966).
Como destaca o musicólogo Juan Pablo González, a Música Típica, a “Projeção
Folclórica”, o Neofolklore e a NCCh compartiram certo repertório, conforme a tabela
reproduzida seguir (IMAGEM 9). Não obstante as semelhanças, essas tendências musicais
diferiram consideravelmente em seus modos de performance – que provieram menos da
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tradição “folclórica” do que da elaboração urbana ligada aos meios de comunicação de massa.
O desejo de ruptura se traduziu na construção da imagem do artista, na relação que
estabeleceu com o público, bem como nas mudanças temáticas e de enfoque. Daí a
importância de considerar as “mensagens” transmitidas para além do seu conteúdo manifesto
nas letras das canções ou nos gêneros musicais nos quais estas se baseavam.
Conforme procurei apontar, a eleição de determinadas vestimentas pelos conjuntos
musicais chilenos dialogou intimamente com as disputas identitárias nacionais que marcaram
os anos 1950 e 1960. Baseando-se em símbolos distintivos, a Música Típica, o Neofolklore, a
“Projeção folclórica” e a Nova Canção Chilena ressignificaram o chamanto, o smoking e o
poncho – permitindo a identificação de determinados grupos com a proposta estética e/ou
ideológica que procuraram difundir.
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