ENTRE JESUÍTAS E REFORMISTAS: OS TEMPOS DE FORMAÇÃO …

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1 ENTRE JESUÍTAS E REFORMISTAS: OS TEMPOS DE FORMAÇÃO DO MÉDICO MINEIRO FRANCISCO DE MELO FRANCO (MINAS GERAIS, PORTUGAL - SÉCULO XVIII) TARCILA NIENOW STEIN PPG-História - UNISINOS/Bolsista CAPES [email protected] Francisco de Melo Franco nasceu em Paracatu, Minas Gerais, no ano de 1757. Iniciou seus estudos em um seminário 1 , mas formou-se em Medicina, na Universidade de Coimbra, em 1785. 2 Nove anos depois, publica a obra “Medicina Teológica”, de cunho polêmico 3 , que propõe uma Medicina que busca conciliar o conhecimento do corpo (que cabe aos médicos) com o da alma (que compete aos confessores). Ao longo dos 23 capítulos da obra, Melo Franco não somente apresenta a proposta da substituição do confessor pelo médico, como expõe a necessidade de os teólogos se instruírem em Medicina, para que se tornassem “bons confessores”. Desta maneira, o autor da obra “Medicina Teológica” condena e denuncia as práticas curativas mágico-religiosas, propondo que as doenças da alma até então afetas aos religiosos passassem a ser alvo da Medicina. Nela, também podem ser encontradas algumas das mudanças ocorridas no pensamento moderno da segunda metade do século XVIII, em especial, das 1 Aos doze anos de idade Melo Franco vai para Portugal estudar em um seminário de São Joaquim. Sua trajetória acadêmica inicia com os estudos Preliminares em Lisboa e culminam com sua inserção em Coimbra. 2 Vale lembrar que as famílias brasileiras como no caso do autor em questão desde o início do século XVIII, enviavam seus filhos para estudar na Europa, momento em que tomavam contato com as teorias mais modernas da época e passavam a integrar uma ampla rede de conhecimento estabelecida entre as universidades européias e a sociedade colonial de onde provinham. Na Revista do IHGB, lê-se: “Francisco de Melo Franco, bacharel em Medicina pela Universidade de Coimbra, Socio e Vice - Secretário da Academia Rela de Ciências de Lisboa, Medico da Camara Honorario d’El -Rei D. João VI, nasceu em Piracatú, na Província de Minas Gerais, no dia 17 de Setembro de 1737. Foram seus pais, Josõa de Melo Franco e D. Anna Caldeira, honestos lavradores, que viviam do produto de suas terras cercados de veneração e respeito, que lhes mereciam as virtudes.” (IHGB, 1831, p. 367) 3 Interessante mencionar que o autor nunca assumiu a autoria da obra “Medicina Teológica”. Esse anonimato se deve, provavelmente, ao temor que Francisco de Melo Franco tinha de vir a ser preso novamente. Acusado de “irreligião”, Melo Franco ficou preso por quatro anos por ordem do Santo Ofício. Mas há fortes indícios de que a obra seja de sua autoria, como já apontado por historiadores do século XIX, como Varnhagen, que estabeleceram relações entre a “Medicina Teológica” e as demais obras escritas por Melo Franco, atribuindo a ele a autoria da primeira.

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1

ENTRE JESUÍTAS E REFORMISTAS: OS TEMPOS DE FORMAÇÃO DO

MÉDICO MINEIRO FRANCISCO DE MELO FRANCO (MINAS GERAIS,

PORTUGAL - SÉCULO XVIII)

TARCILA NIENOW STEIN

PPG-História - UNISINOS/Bolsista CAPES

[email protected]

Francisco de Melo Franco nasceu em Paracatu, Minas Gerais, no ano de 1757.

Iniciou seus estudos em um seminário1, mas formou-se em Medicina, na Universidade

de Coimbra, em 1785.2 Nove anos depois, publica a obra “Medicina Teológica”, de

cunho polêmico3, que propõe uma Medicina que busca conciliar o conhecimento do

corpo (que cabe aos médicos) com o da alma (que compete aos confessores). Ao longo

dos 23 capítulos da obra, Melo Franco não somente apresenta a proposta da substituição

do confessor pelo médico, como expõe a necessidade de os teólogos se instruírem em

Medicina, para que se tornassem “bons confessores”. Desta maneira, o autor da obra

“Medicina Teológica” condena e denuncia as práticas curativas mágico-religiosas,

propondo que as doenças da alma – até então afetas aos religiosos – passassem a ser

alvo da Medicina. Nela, também podem ser encontradas algumas das mudanças

ocorridas no pensamento moderno da segunda metade do século XVIII, em especial, das

1 Aos doze anos de idade Melo Franco vai para Portugal estudar em um seminário de São Joaquim. Sua

trajetória acadêmica inicia com os estudos Preliminares em Lisboa e culminam com sua inserção em

Coimbra. 2 Vale lembrar que as famílias brasileiras – como no caso do autor em questão – desde o início do século

XVIII, enviavam seus filhos para estudar na Europa, momento em que tomavam contato com as teorias

mais modernas da época e passavam a integrar uma ampla rede de conhecimento estabelecida entre as

universidades européias e a sociedade colonial de onde provinham. Na Revista do IHGB, lê-se:

“Francisco de Melo Franco, bacharel em Medicina pela Universidade de Coimbra, Socio e Vice-

Secretário da Academia Rela de Ciências de Lisboa, Medico da Camara Honorario d’El-Rei D. João VI,

nasceu em Piracatú, na Província de Minas Gerais, no dia 17 de Setembro de 1737. Foram seus pais,

Josõa de Melo Franco e D. Anna Caldeira, honestos lavradores, que viviam do produto de suas terras

cercados de veneração e respeito, que lhes mereciam as virtudes.” (IHGB, 1831, p. 367) 3 Interessante mencionar que o autor nunca assumiu a autoria da obra “Medicina Teológica”. Esse

anonimato se deve, provavelmente, ao temor que Francisco de Melo Franco tinha de vir a ser preso

novamente. Acusado de “irreligião”, Melo Franco ficou preso por quatro anos por ordem do Santo Ofício.

Mas há fortes indícios de que a obra seja de sua autoria, como já apontado por historiadores do século

XIX, como Varnhagen, que estabeleceram relações entre a “Medicina Teológica” e as demais obras

escritas por Melo Franco, atribuindo a ele a autoria da primeira.

2

ocorridas na Medicina, na medida em que: “Uma das fontes mais importantes para se

compreender as relações entre idéias psicológicas e biológicas no contexto luso-

brasileiro do século XVIII é o livro Medicina Theologica, publicado em 1784, pelo

médico mineiro Francisco de Melo Franco (1757-1823)” (SILVA, 2008, p. 336).

Para que possamos compreender a escrita da obra, é vital analisar o contexto

português em que o autor se encontrava inserido, que caracterizava-se pelas reformas na

educação promovidas pelo antigo ministro, o Marquês de Pombal. As proposições que

visavam à renovação do ensino da Medicina em Portugal encontram-se detalhadas nos

Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772. Estes novos Estatutos, que substituíram

os de 1563, integraram-se aos esforços de renovação das bases da cultura e da ciência

em Portugal, que incidiram, principalmente, sobre o ensino nas universidades e

determinaram a aplicação de novos métodos de ensino para a formação dos acadêmicos.

No curso de Medicina, a reforma se traduziu na valorização de disciplinas como a

cirurgia e dos estudos da anatomia humana. Por afastarem-se das práticas terapêuticas

recomendadas pelos religiosos, as propostas de Melo e Franco, expostas na obra em

questão, evidenciam a apropriação de teorias médicas mais sintonizadas com o

Iluminismo vigente.

Desta maneira, este trabalho analisa as mudanças provocadas pela reforma dos

Estatutos, baseadas nas premissas iluministas e seus efeitos na formação dos médicos do

período, avaliando as influências que os teóricos ilustrados e a reforma do ensino da

Universidade de Coimbra exerceram sobre a formação dos médicos, a partir de duas

fontes que redigidas quando da reforma do ensino, “O Compêndio Histórico, de 1771” e

“Os Estatutos da Universidade de Coimbra”, de 1772. Em relação à reforma do Ensino

em Portugal, vale lembrar que:

A concepção de ciência da qual compartilhavam os ilustrados em

Portugal aponta para a proximidade da Ilustração portuguesa com o

Iluminismo no restante da Europa. [...] A ciência dita “moderna” se

constituiu, por um lado, a partir da crítica ao ensino livresco e, por

outro, pela defesa na superioridade da técnica e da experimentação.

(ABREU, 2007, p. 86)

O século XVIII, em Portugal, foi marcado pelo contraste entre a fé e a ciência,

isto é, de um lado, a forte atmosfera religiosa, e de outro, o ingresso de uma visão

3

racionalista pautada na lógica. As idéias ilustradas adentraram Portugal através de

portugueses residentes do exterior, como Verney4, Ribeiro Sanchez

5 e do próprio

Marquês de Pombal. Estes portugueses ilustrados defenderam o desenvolvimento e o

fortalecimento do estado português, argumentando, principalmente, que o ensino não

deveria permanecer nas mãos dos jesuítas6, mas basear-se em autores ilustrados e em

novas formas de fazer ciência.

Muitos dos textos que influenciaram a reforma do ensino em Portugal são de

teóricos que durante muito tempo viveram longe do Reino. De uma maneira geral, os

“estrangeirados” tinham por objetivo difundir no Reino os princípios da ciência

moderna, aplicando-os a diversas áreas de saber. Em diversos aspectos, suas obras

espelhavam uma rejeição à tradição aristotélica e escolástica e incluíam propostas

modernizantes. Em um Portugal marcado pelo reformismo ilustrado, a Ciência foi

percebida como um elemento fundamental para o progresso do estado e da nação7.

4 Segundo Patrício (2011, p. 7-10), “Luís António Verney, clérigo português radicado na Itália e exemplo

de intelectual que viveu boa parte de sua vida fora de Portugal, fez da sua obra Verdadeiro método de

estudar (1746) um verdadeiro libelo acusatório contra o ensino praticado na Universidade de Coimbra,

constituindo o primeiro bombardeamento em força contra os jesuítas portugueses, dos quais Verney tinha

sido aluno em Évora. O ataque de Verney e a subsequente expulsão dos Jesuítas por Pombal liquidaram

na época, no seu conjunto, o que hoje designaríamos por sistema português de ensino. O Verdadeiro

Método de Estudar centra os seus ataques na Universidade de Évora, suas palavras-chave e os dois

imaginários que elas encerram estão omnipresentes no discurso pombalino, quer seja de carácter

legislativo, historiográfico, tratadístico ou panfletário: Jesuítas e Europa”. 5 Considerado um dos representantes do Iluminismo aplicado à Medicina, contribuindo, inclusive, para a

Enciclopédia de Diderot, Ribeiro Sanches foi autor de relevantes obras em que propunha reformas na

medicina do Reino. Assim como Verney, ele considerava que o ensino da universidade não oferecia

condições para formar profissionais necessários ao reino de Portugal.

6 Os jesuítas foram expulsos de Portugal e de seus domínios coloniais durante o governo do Marquês de

Pombal (1750-1777). Dentre as críticas feitas pelos ilustrados à Companhia de Jesus estava a de que

comprometiam o progresso científico, reagindo de forma conservadora às inovações nos mais variados

campos do conhecimento, havendo, em razão disso, uma intervenção nas universidades portuguesas, em

especial, na de Coimbra, onde Francisco de Melo Franco viria a estudar Medicina. Da intervenção

ilustrada nas universidades portuguesas resultaram relatórios sobre as suas condições, os quais atribuíram

aos jesuítas – que controlavam as redes de ensino na época – a responsabilidade pela baixa qualidade de

ensino. Sabe-se que com a extinção da Ordem e com a expulsão dos jesuítas dos domínios coloniais

ibéricos, as obras produzidas por seus membros foram censuradas e descartadas, devendo-se, contudo,

considerar que muitos de seus ensinamentos e concepções se mantiveram através daqueles que por eles

foram instruídos na Universidade de Coimbra ou em outras universidades européias, influenciando,

portanto, as gerações posteriores de acadêmicos. 7 O projeto de reforma do ensino visava ao reforço do caráter absolutista do estado, sendo assim, os

ilustrados viam na educação uma ferramenta fundamental, pois ela seria um meio para formar vassalos

obedientes ao estado.

4

Nesse sentido, a qualificação da formação acadêmica proposta para os súditos

portugueses fazia parte de um projeto de aperfeiçoamento da sociedade.

Foi durante a administração do Marquês de Pombal (1750-1777), e, em especial,

após a expulsão dos jesuítas, que teve início a reforma do ensino8 em Portugal. Da

intervenção ilustrada nas universidades portuguesas resultaram relatórios sobre as suas

condições, os quais atribuíram aos jesuítas – que vinham controlando as redes de ensino

até então – a responsabilidade pela baixa qualidade de ensino9. Sabe-se que com a

extinção da Ordem e com a expulsão dos jesuítas dos domínios coloniais ibéricos, as

obras produzidas por seus membros foram censuradas e descartadas, contudo, deve-se

considerar que muitos de seus ensinamentos e concepções se mantiveram através

daqueles que por eles foram instruídos na Universidade de Coimbra ou em outras

universidades européias, influenciando, portanto, as gerações posteriores de

acadêmicos.

A experiência de Sebastião José de Carvalho e Melo como

embaixador da corte portuguesa junto da corte britânica e depois da

corte austríaca e o conhecimento que adquiriu do que se ia passando

na Europa permitiram-lhe apurar critérios de diagnóstico e tirar lições

para operar reformas transformadoras da realidade portuguesa à luz

dos novos parâmetros de progresso europeu estabelecidos pela

filosofia iluminista. A política reformista pombalina foi, com efeito,

perpassada pelo fito programático de acertar o passo de Portugal pelos

parâmetros do progresso da Europa dita iluminada. O Marquês de

Pombal, como aparece frequentemente expressa na sua propaganda e

legislação reformista, teve a preocupação de represtigiar o Reino de

Portugal perante os outros reinos europeus e de inverter a imagem

negativa que persistia internacionalmente como um País subjugado

pelo obscurantismo. (FRANCO, 2011, p. 18)

Pombal costumava acompanhar de perto a redação das obras de cunho

antijesuíta em Portugal, sendo que durante seu governo muitas delas tiveram suas

edições financiadas. Assim, havia um controle sobre as publicações, de forma que

traduzissem em suas páginas a repulsa que existia em relação ao trabalho dos jesuítas

8 Franco (2006, p.553): “A reforma pedagógico-educativa operada pelo governo pombalino na sequência

do processo de saneamento do País dos Padres da Companhia, no final da década de 50 do século XVIII,

foi apresentada, acima de tudo, como um processo político-ideológico de desjesuitização do ensino em

Portugal”. 9 Contrapondo-se a esta percepção, Maxwell (1996, p. 13) afirma que “Os jesuítas eram, na verdade, bem

menos fechados às ideias modernas do que seus inimigos afirmavam”.

5

nos Colégios e Universidades, pois eram tidos como os grandes causadores do atraso do

progresso. Segundo Franco, o reformismo pombalino se apresentava como uma medida

de saneamento de Portugal dos jesuítas, procurando desvinculá-los de vez do ensino

português.

De acordo com Falcon (1982), a reforma do ensino português, que incidiu,

principalmente, sobre a Universidade de Coimbra, implicou na proposição e aplicação

de novos métodos de ensino, agindo diretamente sobre a formação dos acadêmicos.

Também Maxwell (1996, p. 10), destaca que “O estímulo ao novo pensamento em

Portugal foi dado pelas conquistas intelectuais de Descartes, Newton e Locke que

durante o século XVII operaram uma ruptura audaciosa da tradição de autoridade, seja

bíblica, seja aristotélica [...]”.

Da intervenção na Universidade, a partir da Reforma de 1772, deveria resultar

uma elite intelectual formada no seio do reformismo ilustrado:

Após a reforma realizada por Pombal na Universidade conimbricense

– reforma esta que procurou formar uma “elite do conhecimento” que

estivesse a serviço do Estado português – [...] Estes homens de ciência

colocaram o saber científico a sérvio na nação portuguesa, com o

intuito de contribuir para as reformas que visavam regenerar o Império

lusitano. (VARELLA, 2012, p.182).

Duas obras são fundamentais para compreendermos as mudanças ocorridas nas

estruturas educacionais da Universidade de Coimbra, o Compêndio Histórico e o

documento que surge deste relatório, os Estatutos da Universidade de Coimbra.

O Compêndio Histórico é um impresso de 1771, que foi organizado pela Junta

de Providência Literária10

e está disposto na forma de um relatório de mais de 500

páginas, divididas em 2 volumes, onde estão listados os “danos causados pelos jesuítas”

à educação portuguesa. Na primeira parte, estão localizados os prelúdios, a observação

dos Estatutos, a identificação dos estratagemas e a listagem das áreas do conhecimento,

10

A Junta de Providência Literária foi criada em 1770 e sua existência estava condicionada à redação dos

novos Estatutos da Universidade de Coimbra. Esta tarefa ficou a cargo de brasileiros e portugueses, entre

eles, Francisco Lemos, que veio a se tornar o reitor da Universidade, para supervisionar a implantação dos

Estatutos. O trabalho se estendeu pelo ano de 1771. A junta ficou incumbida de avaliar o estado do ensino

universitário português e preparar os novos Estatutos que iriam entrar em vigor, alinhados as proposições

reformistas.

6

Teologia, Cânones, Medicina e Matemática. A segunda parte analisa os estragos e

atrocidades cometidos pelos jesuítas.

A reforma pedagógico-educativa operada pelo governo pombalino na

sequência do processo de saneamento do País dos Padres da

Companhia, no final da década de 50 do século XVIII, foi

apresentada, acima de tudo, como um processo político-ideológico de

desjesuitização do Ensino em Portugal. (FRANCO, 2011, p. 24)

Após oito meses, a Junta apresentou o diagnóstico das causas da decadência do

ensino universitário em Portugal, do qual resultará a elaboração dos Estatutos da

Universidade de Coimbra, publicados no ano seguinte. O Compêndio foi apresentado ao

Rei no dia 28 de Agosto de 1771, seguindo-se a aplicação da Resolução régia de

setembro do mesmo ano, que previa a elaboração de projetos para a renovação dos

cursos. O Compêndio traz em suas primeiras páginas a seguinte informação:

“A seguinte Da Junta de Providência Literária em 28 de Agosto de

1771 dia do grande doutor Santo Agostinho sobre o Compêndio

Histórico e Apêndice que dão uma clara e específica ideia dos estragos

que os denominados jesuítas fizeram, primeiro na Universidade de

Coimbra, consequentemente nas aulas de todos estes reinos, para que

pelo conhecimento de tão grandes e tão inveterados males se possam

indicar mais sensivelmente os remédios por que hão de se construir os

objetos das paternais providências de Sua Majestade pelo que pertence

à teologia, à jurisprudência canónica e civil e à medicina” (FRANCO,

2008, p. 98).

A segunda parte do texto discute os assim denominados “estragos causados

pelos jesuítas”. Ao longo do Capítulo III, intitulado “Dos estragos feitos na Medicina e

dos Impedimentos que os pretendidos últimos compiladores puseram para que ela não

pudesse sair do caos da ignorância em que a precipitaram e para se aproveitar dos

grandes descobrimentos que, a favor do bem comum da Humanidade, se fizeram nestes

últimos tempos”, encontramos o debate entre a abordagem teórica e “fechada” dos

jesuítas frente às novas teorias propostas pelos teóricos ilustrados, e a proposição de um

ensino voltado para a prática e com abrangência mais geral, como proposto para o curso

de Medicina. Isto, aliás, pode ser encontrado no relatório do Compêndio Histórico, na

seção de Medicina:

§ 23 Outra de Noa de Anatomia, em que se lerão os Livros de Galeno

‘De usu partium’ e lerão cada semana duas lições de Cirurgia. A qual

se lerá da uma às duas horas, ou depois da lição de Prima na hora da

Catedrilha maior, como parecer mais conveniente em Concelho do

7

Reitor e Conselheiros. E juntamente, o lente desta cadeira fará

Anatomia de membros particulares seis vezes cada ano e três gerais.

Pelas particulares levará mil réis por cada uma e pelas gerais dois mil

réis. E assim, em umas, como em outras, e no modo de ler a dita

cadeira se guardará o Regimento que para isso lhe será dado pelo

Reitor e Conselho. Haverá por ano cem mil réis. Estas cadeiras se

haverão por maiores na Faculdade. (MARQUÊS DE POMBAL, 2008

[1771], p. 168)

Vale ressaltar que o aspecto que a Junta mais buscou enfatizar foi, justamente, a

constatação da falta de um ensino com cunho científico, que estará presente, de forma

muito evidente, no texto dos Estatutos de 1772. Os estudos anatômicos são uma questão

largamente discutida pelos estrangeirados e pela Junta, uma vez que, segundo estes, os

jesuítas não promoviam um ensino em que os estudantes tinham contato direto com o

corpo humano, através, por exemplo, do contato com cadáveres. Os estudos de

Medicina anteriores à Reforma se davam, exclusivamente, através de livros e de

discussões, o que, segundo os reformistas, não propiciava uma formação adequada

àqueles que deveriam curar os corpos. Assim, formação adequada de um físico-

cirurgião era percebida como necessária para aqueles que iriam lidar com

procedimentos cirúrgicos.

A reforma da Universidade, bafejada pelas Luzes, procurava se guiar

pelo avanço da ciência moderna e pelo racionalismo. Embora a

reforma do ensino introduzida pelo grupo dirigente pombalino não

tenha rompido de todo com a tradição escolástica, o fato é que a

Universidade de Coimbra foi o centro de contato mais avançado do

saber ilustrado. As páginas dos Estatutos dedicadas à medicina

colocam em evidência não só a tentativa de transformar os estudos

médicos, mas também a de garantir o devido valor às disciplinas até

então colocadas em segundo plano, como a anatomia. Da mesma

forma, almejava-se que os estudantes tivessem acesso mais à

observação e à prática da medicina, valorizando-se, por exemplo, os

estudos farmacêuticos e a cirurgia. (ABREU, 2007, p. 152)

Também os estudos farmacêuticos passaram a estar em sintonia com a

proposição de uma formação mais global do bacharel em Medicina, que deveria ser

capaz de lidar com as diferentes necessidades dos enfermos, desde a diagnose até a

prescrição dos medicamentos. Essa nova maneira de ensinar medicina viria a ser útil

para aqueles médicos que retornavam as suas pátrias – no caso, o Brasil – e acabavam

por ser os únicos com algum conhecimento de ciência em suas cidades de origem, o que

acaba por demandar uma perspectiva mais geral da academia.

8

Como já observado anteriormente, entre os reformistas do ensino nas

universidades portuguesas, destacaram-se Luís Antônio Verney, autor da obra “O

verdadeiro método de estudar” – que criticava o sistema educacional português – e

Antônio Ribeiro-Sanchez, médico que foi discípulo de Boerhaave11

e escreveu a obra

“Método de como aprender a estudar a Medicina”, que tornou-se referência na

composição do texto Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772. A elaboração dos

novos Estatutos, em substituição aos de 1563, está, portanto, relacionada com os

esforços empreendidos pelo rei D. José I para a renovação das bases da cultura e da

ciência em Portugal. No geral, esse “impulso reformista” acabou por encontrar

dificuldades ao ser colocado na prática, devido à falta de professores que se adequassem

a essa nova demanda.

Estas questões podem ser encontradas no capítulo V da “Relação geral”, que

refere os antigos “vícios” da Faculdade de Medicina, além de apresentar os obstáculos

para o progresso e as providências que deveriam ser tomadas para reparar os danos

causados pelos jesuítas ao ensino conimbricense. O parágrafo que abre o capítulo que

discute a faculdade de Medicina nos Estatutos de 1772 resume bem o sentimento de

antagonismo entre o antigo e o novo método de ensino:

Tendo a Medicina por objeto duas coisas de tão grande importância,

como são a conservação, e restabelecimento da saúde dos homens:

Tem infelizmente sucedido não se fazerem nela os progressos, que

convinham; chegando por isso muitos a desconfiar, de que pudesse já

mais haver Ciência na Medicina; e outros a desprezar a que

atualmente existe; e ainda teme-la, como perigosa e nociva, por ser

muitas vezes ministrada cegamente pelas mãos da ignorância.

(LEMOS, 1772, p. 6)

Segundo Abreu, o novo texto dos Estatutos da Universidade de Coimbra

redefiniu o papel da prática na formação dos médicos, que assumiria contornos melhor

definidos, já que os estudos de Medicina e Cirurgia vigentes antes da Reforma traziam

consigo uma concepção “[...] prejudicial aos progressos da arte de curar e funesta à vida

11

Boerhaave foi um médico extremamente influente no século XVIII, sendo considerado um dos

fundadores do hospital acadêmico. A partir das leituras realizadas, sabemos que ele teorizou sobre o

corpo humano, concebendo-o – internamente – enquanto uma rede de tubulações e canos onde estavam os

líquidos do organismo.

9

dos homens não sendo possível que seja bom médico, quem não for ao mesmo tempo

cirurgião”, determinando que “sejam todos os médicos ao mesmo tempo cirurgiões”.

(ABREU, 2007, p. 155) No caso específico do curso de Medicina, percebemos a

valorização de disciplinas como Cirurgia e os estudos da anatomia humana, além do

aprofundamento em estudos farmacêuticos:

Após o curso preparatório, o aluno passaria a entrar em contato com

disciplinas mais específicas à formação do médico. No primeiro ano

do curso, o aluno estudaria a matéria médica, constituída pela história

da medicina e o estudo das virtudes de diversas plantas e raízes. O

segundo ano era dedicado inteiramente à anatomia, com aulas práticas

no hospital, enquanto o terceiro se ocupava das instituições médicas,

em que os alunos aprendiam medicina teórica, fisiologia, patologia,

semiologia, higiene e terapêutica. No quarto ano, os alunos estudavam

os aforismos de Hipócrates e Boerhaave, enquanto o quinto era

dedicado inteiramente ao ensino clínico da medicina e à prática no

hospital (ABREU, 2007, p. 88).

As novas teorias, trazidas pelos estrangeirados, permitiram que em Coimbra se

estabelecesse um novo ensino de Medicina, que, se por um lado, não se distanciava dos

autores clássicos, como Hipócrates e Galeno, por outro, caracterizou-se pela introdução

de estudos práticos, em especial, da clínica e da atuação em hospitais.

A partir da Reforma, percebemos novas teorias sendo aceitas e discutidas na

Universidade de Coimbra, como a perspectiva moderna do corpo-máquina, vinda da

Holanda e bem aceita no restante da Europa, desde o século XVII. Essa discussão sobre

o funcionamento do corpo humano – uma rede de tubulações – não deixa de estar

presente na obra de Francisco de Melo Franco, que discute as enfermidades do ânimo e

seus reflexos no corpo humano. Contudo, nela também estão evidentes resquícios dos

estudos clássicos conimbricenses:

Os Conimbricences, assim como toda a cultura do seu tempo,

atribuem grande importância aos estados da alma definidos como

paixões, e que na linguagem da psicologia moderna correspondem às

emoções ou sentimentos. As paixões são entendidas como

movimentos do apetite sensitivo, provenientes da apreensão do bem

ou do mal, acarretando algum tipo de mutação não natural do corpo.

(MASSIMI, 2006, p.03)

Vale, aqui, lembrar que os jesuítas, à frente da Universidade de Coimbra,

percebiam as paixões a partir de uma perspectiva positiva, a partir dos estudos de

Aristóteles e São Tomás, como observado por Massimi (2006, p. 03), que afirma que

10

“As paixões podem ser definidas como doenças ou distúrbios do animo apenas

enquanto se afastam da regra e moderação da razão”.

“Medicina Teológica”, uma obra publicada anonimamente, tem como objetivo

estabelecer uma aliança entre Teologia e Medicina, pois o autor defende que estas duas

“ciências” deveriam estar interligadas. Para o médico, essa medicina asseguraria o “bem

viver”, o equilíbrio tão necessário para a manutenção da saúde dos corpos. Através dela,

os confessores poderiam melhor aconselhar os fiéis católicos. Buscando remediar estas

doenças, Melo Franco estabelecia diagnósticos e recomendava

tratamentos, enfatizando que somente os médicos possuíam a competência necessária

para descobrir as causas desses males e curá-los.

Considerando que, dentre as questões discutidas pelos conimbricenses, estavam

o equilíbrio como chave para a manutenção da saúde do espírito e do corpo, podemos

afirmar que, ao discutir as enfermidades da alma, como a cólera, o amor e a bebedice,

Melo Franco acabaria por revelar a continuidade destes estudos realizados na

Universidade de Coimbra antes da expulsão dos jesuítas. Entretanto, na obra escrita de

1794, podemos também perceber a afinidade do autor com as novas teorias, na medida

em que buscava remediar as mazelas que afetavam a sociedade portuguesa do XVIII,

através de uma prática médica “útil” ao estado. Melo Franco também se afasta da idéia

de que a confissão era a única maneira de remediar os males da alma, ao afirmar que

para afastar o paciente de seu vício, antes que fizesse mal a si ou aos demais, era preciso

remediá-lo.

Sendo assim, percebemos uma clara intenção de substituir o confessor pelo

médico, uma vez que, apenas através de terapêuticas e medicamentos, os enfermos

alcançariam a cura, o que acaba se apresentando como uma aberta crítica ao clero – uma

vez que a obra se apresenta como um manual para os confessores. O autor, em razão

disso, acabou por se chocar com a Igreja católica, passando a abordar e tratar essas

doenças a partir das novas teorias correntes na Europa do final do Setecentos. Neste

sentido, a obra do médico mineiro parece estar em sintonia com o Reformismo

Ilustrado, pois ampliava não só o olhar sobre as doenças, suas causas e possíveis

tratamentos, percebendo-as como enfermidades psicossomáticas.

11

A Reforma do ensino realizada na Universidade de Coimbra se deu a partir das

proposições do Marquês do Pombal e dos relatórios elaborados pela Junta Literária, que

baseou-se em ideias dos estrangeirados reformistas. Muitos deles, com formação em

Medicina, acabaram por se juntar ao corpo docente da Universidade após sua reforma, o

que determinou mudanças drásticas no currículo. Os reformistas, simpáticos às teorias

do Marquês de Pombal, propuseram reformas de caráter ilustrado nas universidades,

visando a um ensino mais baseado no experimentalismo, especialmente, para os cursos

de Medicina. No caso do curso oferecido em Coimbra, o currículo passou a se

preocupar com a formação de médicos que viessem a servir o estado Português, na

medida em que passariam a estar encarregados da manutenção da saúde da população.

No caso do médico Melo Franco, seu desejo era retornar imediatamente para o Brasil

quando conclui o curso, mas os encargos financeiros fazem com que este permaneça em

Portugal. Acaba por trabalhar como prático em Lisboa e sua boa reputação permite o

retorno ao Brasil juntamente com a comitiva da Princesa da Áustria, noiva de Dom

Pedro I, em 1817.

Mas, se nos debruçarmos sobre as concepções e proposições de Melo Franco,

encontraremos também algumas permanências do ensino vigente no período anterior à

Reforma na universidade, como se constata na obra que escreveu ao final do século

XVIII e que propunha uma medicina aliada a moral. Vale lembrar que à época, os afetos

ou as paixões da alma eram percebidos como não-naturais ao ser humano, sendo

considerados tanto a causa de muitas doenças, quanto potenciais aliadas no combate a

outras doenças. Isto nos permite pensar que Franco tenha vivido na Universidade de

Coimbra um período de transição entre uma medicina com características mais teóricas

para uma que se caracterizaria por ser mais prática e racional. Situação que parece

explicar a conciliação entre Teologia e Medicina que encontramos na obra do médico

mineiro. Assim, apesar de podermos incluir Francisco Melo Franco entre os adeptos da

Ilustração, não devemos desconsiderar que ele viveu em um momento ainda fortemente

marcado pelas teorias do período anterior, o que nos leva a pensá-lo como um homem

de ciência cuja trajetória se construiu entre jesuítas e reformistas.

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Referências

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século XVIII. REVISTA DA SBHC, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 149-172, jul, dez 2007.

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