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ENTRE JESUÍTAS E REFORMISTAS: OS TEMPOS DE FORMAÇÃO DO
MÉDICO MINEIRO FRANCISCO DE MELO FRANCO (MINAS GERAIS,
PORTUGAL - SÉCULO XVIII)
TARCILA NIENOW STEIN
PPG-História - UNISINOS/Bolsista CAPES
Francisco de Melo Franco nasceu em Paracatu, Minas Gerais, no ano de 1757.
Iniciou seus estudos em um seminário1, mas formou-se em Medicina, na Universidade
de Coimbra, em 1785.2 Nove anos depois, publica a obra “Medicina Teológica”, de
cunho polêmico3, que propõe uma Medicina que busca conciliar o conhecimento do
corpo (que cabe aos médicos) com o da alma (que compete aos confessores). Ao longo
dos 23 capítulos da obra, Melo Franco não somente apresenta a proposta da substituição
do confessor pelo médico, como expõe a necessidade de os teólogos se instruírem em
Medicina, para que se tornassem “bons confessores”. Desta maneira, o autor da obra
“Medicina Teológica” condena e denuncia as práticas curativas mágico-religiosas,
propondo que as doenças da alma – até então afetas aos religiosos – passassem a ser
alvo da Medicina. Nela, também podem ser encontradas algumas das mudanças
ocorridas no pensamento moderno da segunda metade do século XVIII, em especial, das
1 Aos doze anos de idade Melo Franco vai para Portugal estudar em um seminário de São Joaquim. Sua
trajetória acadêmica inicia com os estudos Preliminares em Lisboa e culminam com sua inserção em
Coimbra. 2 Vale lembrar que as famílias brasileiras – como no caso do autor em questão – desde o início do século
XVIII, enviavam seus filhos para estudar na Europa, momento em que tomavam contato com as teorias
mais modernas da época e passavam a integrar uma ampla rede de conhecimento estabelecida entre as
universidades européias e a sociedade colonial de onde provinham. Na Revista do IHGB, lê-se:
“Francisco de Melo Franco, bacharel em Medicina pela Universidade de Coimbra, Socio e Vice-
Secretário da Academia Rela de Ciências de Lisboa, Medico da Camara Honorario d’El-Rei D. João VI,
nasceu em Piracatú, na Província de Minas Gerais, no dia 17 de Setembro de 1737. Foram seus pais,
Josõa de Melo Franco e D. Anna Caldeira, honestos lavradores, que viviam do produto de suas terras
cercados de veneração e respeito, que lhes mereciam as virtudes.” (IHGB, 1831, p. 367) 3 Interessante mencionar que o autor nunca assumiu a autoria da obra “Medicina Teológica”. Esse
anonimato se deve, provavelmente, ao temor que Francisco de Melo Franco tinha de vir a ser preso
novamente. Acusado de “irreligião”, Melo Franco ficou preso por quatro anos por ordem do Santo Ofício.
Mas há fortes indícios de que a obra seja de sua autoria, como já apontado por historiadores do século
XIX, como Varnhagen, que estabeleceram relações entre a “Medicina Teológica” e as demais obras
escritas por Melo Franco, atribuindo a ele a autoria da primeira.
2
ocorridas na Medicina, na medida em que: “Uma das fontes mais importantes para se
compreender as relações entre idéias psicológicas e biológicas no contexto luso-
brasileiro do século XVIII é o livro Medicina Theologica, publicado em 1784, pelo
médico mineiro Francisco de Melo Franco (1757-1823)” (SILVA, 2008, p. 336).
Para que possamos compreender a escrita da obra, é vital analisar o contexto
português em que o autor se encontrava inserido, que caracterizava-se pelas reformas na
educação promovidas pelo antigo ministro, o Marquês de Pombal. As proposições que
visavam à renovação do ensino da Medicina em Portugal encontram-se detalhadas nos
Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772. Estes novos Estatutos, que substituíram
os de 1563, integraram-se aos esforços de renovação das bases da cultura e da ciência
em Portugal, que incidiram, principalmente, sobre o ensino nas universidades e
determinaram a aplicação de novos métodos de ensino para a formação dos acadêmicos.
No curso de Medicina, a reforma se traduziu na valorização de disciplinas como a
cirurgia e dos estudos da anatomia humana. Por afastarem-se das práticas terapêuticas
recomendadas pelos religiosos, as propostas de Melo e Franco, expostas na obra em
questão, evidenciam a apropriação de teorias médicas mais sintonizadas com o
Iluminismo vigente.
Desta maneira, este trabalho analisa as mudanças provocadas pela reforma dos
Estatutos, baseadas nas premissas iluministas e seus efeitos na formação dos médicos do
período, avaliando as influências que os teóricos ilustrados e a reforma do ensino da
Universidade de Coimbra exerceram sobre a formação dos médicos, a partir de duas
fontes que redigidas quando da reforma do ensino, “O Compêndio Histórico, de 1771” e
“Os Estatutos da Universidade de Coimbra”, de 1772. Em relação à reforma do Ensino
em Portugal, vale lembrar que:
A concepção de ciência da qual compartilhavam os ilustrados em
Portugal aponta para a proximidade da Ilustração portuguesa com o
Iluminismo no restante da Europa. [...] A ciência dita “moderna” se
constituiu, por um lado, a partir da crítica ao ensino livresco e, por
outro, pela defesa na superioridade da técnica e da experimentação.
(ABREU, 2007, p. 86)
O século XVIII, em Portugal, foi marcado pelo contraste entre a fé e a ciência,
isto é, de um lado, a forte atmosfera religiosa, e de outro, o ingresso de uma visão
3
racionalista pautada na lógica. As idéias ilustradas adentraram Portugal através de
portugueses residentes do exterior, como Verney4, Ribeiro Sanchez
5 e do próprio
Marquês de Pombal. Estes portugueses ilustrados defenderam o desenvolvimento e o
fortalecimento do estado português, argumentando, principalmente, que o ensino não
deveria permanecer nas mãos dos jesuítas6, mas basear-se em autores ilustrados e em
novas formas de fazer ciência.
Muitos dos textos que influenciaram a reforma do ensino em Portugal são de
teóricos que durante muito tempo viveram longe do Reino. De uma maneira geral, os
“estrangeirados” tinham por objetivo difundir no Reino os princípios da ciência
moderna, aplicando-os a diversas áreas de saber. Em diversos aspectos, suas obras
espelhavam uma rejeição à tradição aristotélica e escolástica e incluíam propostas
modernizantes. Em um Portugal marcado pelo reformismo ilustrado, a Ciência foi
percebida como um elemento fundamental para o progresso do estado e da nação7.
4 Segundo Patrício (2011, p. 7-10), “Luís António Verney, clérigo português radicado na Itália e exemplo
de intelectual que viveu boa parte de sua vida fora de Portugal, fez da sua obra Verdadeiro método de
estudar (1746) um verdadeiro libelo acusatório contra o ensino praticado na Universidade de Coimbra,
constituindo o primeiro bombardeamento em força contra os jesuítas portugueses, dos quais Verney tinha
sido aluno em Évora. O ataque de Verney e a subsequente expulsão dos Jesuítas por Pombal liquidaram
na época, no seu conjunto, o que hoje designaríamos por sistema português de ensino. O Verdadeiro
Método de Estudar centra os seus ataques na Universidade de Évora, suas palavras-chave e os dois
imaginários que elas encerram estão omnipresentes no discurso pombalino, quer seja de carácter
legislativo, historiográfico, tratadístico ou panfletário: Jesuítas e Europa”. 5 Considerado um dos representantes do Iluminismo aplicado à Medicina, contribuindo, inclusive, para a
Enciclopédia de Diderot, Ribeiro Sanches foi autor de relevantes obras em que propunha reformas na
medicina do Reino. Assim como Verney, ele considerava que o ensino da universidade não oferecia
condições para formar profissionais necessários ao reino de Portugal.
6 Os jesuítas foram expulsos de Portugal e de seus domínios coloniais durante o governo do Marquês de
Pombal (1750-1777). Dentre as críticas feitas pelos ilustrados à Companhia de Jesus estava a de que
comprometiam o progresso científico, reagindo de forma conservadora às inovações nos mais variados
campos do conhecimento, havendo, em razão disso, uma intervenção nas universidades portuguesas, em
especial, na de Coimbra, onde Francisco de Melo Franco viria a estudar Medicina. Da intervenção
ilustrada nas universidades portuguesas resultaram relatórios sobre as suas condições, os quais atribuíram
aos jesuítas – que controlavam as redes de ensino na época – a responsabilidade pela baixa qualidade de
ensino. Sabe-se que com a extinção da Ordem e com a expulsão dos jesuítas dos domínios coloniais
ibéricos, as obras produzidas por seus membros foram censuradas e descartadas, devendo-se, contudo,
considerar que muitos de seus ensinamentos e concepções se mantiveram através daqueles que por eles
foram instruídos na Universidade de Coimbra ou em outras universidades européias, influenciando,
portanto, as gerações posteriores de acadêmicos. 7 O projeto de reforma do ensino visava ao reforço do caráter absolutista do estado, sendo assim, os
ilustrados viam na educação uma ferramenta fundamental, pois ela seria um meio para formar vassalos
obedientes ao estado.
4
Nesse sentido, a qualificação da formação acadêmica proposta para os súditos
portugueses fazia parte de um projeto de aperfeiçoamento da sociedade.
Foi durante a administração do Marquês de Pombal (1750-1777), e, em especial,
após a expulsão dos jesuítas, que teve início a reforma do ensino8 em Portugal. Da
intervenção ilustrada nas universidades portuguesas resultaram relatórios sobre as suas
condições, os quais atribuíram aos jesuítas – que vinham controlando as redes de ensino
até então – a responsabilidade pela baixa qualidade de ensino9. Sabe-se que com a
extinção da Ordem e com a expulsão dos jesuítas dos domínios coloniais ibéricos, as
obras produzidas por seus membros foram censuradas e descartadas, contudo, deve-se
considerar que muitos de seus ensinamentos e concepções se mantiveram através
daqueles que por eles foram instruídos na Universidade de Coimbra ou em outras
universidades européias, influenciando, portanto, as gerações posteriores de
acadêmicos.
A experiência de Sebastião José de Carvalho e Melo como
embaixador da corte portuguesa junto da corte britânica e depois da
corte austríaca e o conhecimento que adquiriu do que se ia passando
na Europa permitiram-lhe apurar critérios de diagnóstico e tirar lições
para operar reformas transformadoras da realidade portuguesa à luz
dos novos parâmetros de progresso europeu estabelecidos pela
filosofia iluminista. A política reformista pombalina foi, com efeito,
perpassada pelo fito programático de acertar o passo de Portugal pelos
parâmetros do progresso da Europa dita iluminada. O Marquês de
Pombal, como aparece frequentemente expressa na sua propaganda e
legislação reformista, teve a preocupação de represtigiar o Reino de
Portugal perante os outros reinos europeus e de inverter a imagem
negativa que persistia internacionalmente como um País subjugado
pelo obscurantismo. (FRANCO, 2011, p. 18)
Pombal costumava acompanhar de perto a redação das obras de cunho
antijesuíta em Portugal, sendo que durante seu governo muitas delas tiveram suas
edições financiadas. Assim, havia um controle sobre as publicações, de forma que
traduzissem em suas páginas a repulsa que existia em relação ao trabalho dos jesuítas
8 Franco (2006, p.553): “A reforma pedagógico-educativa operada pelo governo pombalino na sequência
do processo de saneamento do País dos Padres da Companhia, no final da década de 50 do século XVIII,
foi apresentada, acima de tudo, como um processo político-ideológico de desjesuitização do ensino em
Portugal”. 9 Contrapondo-se a esta percepção, Maxwell (1996, p. 13) afirma que “Os jesuítas eram, na verdade, bem
menos fechados às ideias modernas do que seus inimigos afirmavam”.
5
nos Colégios e Universidades, pois eram tidos como os grandes causadores do atraso do
progresso. Segundo Franco, o reformismo pombalino se apresentava como uma medida
de saneamento de Portugal dos jesuítas, procurando desvinculá-los de vez do ensino
português.
De acordo com Falcon (1982), a reforma do ensino português, que incidiu,
principalmente, sobre a Universidade de Coimbra, implicou na proposição e aplicação
de novos métodos de ensino, agindo diretamente sobre a formação dos acadêmicos.
Também Maxwell (1996, p. 10), destaca que “O estímulo ao novo pensamento em
Portugal foi dado pelas conquistas intelectuais de Descartes, Newton e Locke que
durante o século XVII operaram uma ruptura audaciosa da tradição de autoridade, seja
bíblica, seja aristotélica [...]”.
Da intervenção na Universidade, a partir da Reforma de 1772, deveria resultar
uma elite intelectual formada no seio do reformismo ilustrado:
Após a reforma realizada por Pombal na Universidade conimbricense
– reforma esta que procurou formar uma “elite do conhecimento” que
estivesse a serviço do Estado português – [...] Estes homens de ciência
colocaram o saber científico a sérvio na nação portuguesa, com o
intuito de contribuir para as reformas que visavam regenerar o Império
lusitano. (VARELLA, 2012, p.182).
Duas obras são fundamentais para compreendermos as mudanças ocorridas nas
estruturas educacionais da Universidade de Coimbra, o Compêndio Histórico e o
documento que surge deste relatório, os Estatutos da Universidade de Coimbra.
O Compêndio Histórico é um impresso de 1771, que foi organizado pela Junta
de Providência Literária10
e está disposto na forma de um relatório de mais de 500
páginas, divididas em 2 volumes, onde estão listados os “danos causados pelos jesuítas”
à educação portuguesa. Na primeira parte, estão localizados os prelúdios, a observação
dos Estatutos, a identificação dos estratagemas e a listagem das áreas do conhecimento,
10
A Junta de Providência Literária foi criada em 1770 e sua existência estava condicionada à redação dos
novos Estatutos da Universidade de Coimbra. Esta tarefa ficou a cargo de brasileiros e portugueses, entre
eles, Francisco Lemos, que veio a se tornar o reitor da Universidade, para supervisionar a implantação dos
Estatutos. O trabalho se estendeu pelo ano de 1771. A junta ficou incumbida de avaliar o estado do ensino
universitário português e preparar os novos Estatutos que iriam entrar em vigor, alinhados as proposições
reformistas.
6
Teologia, Cânones, Medicina e Matemática. A segunda parte analisa os estragos e
atrocidades cometidos pelos jesuítas.
A reforma pedagógico-educativa operada pelo governo pombalino na
sequência do processo de saneamento do País dos Padres da
Companhia, no final da década de 50 do século XVIII, foi
apresentada, acima de tudo, como um processo político-ideológico de
desjesuitização do Ensino em Portugal. (FRANCO, 2011, p. 24)
Após oito meses, a Junta apresentou o diagnóstico das causas da decadência do
ensino universitário em Portugal, do qual resultará a elaboração dos Estatutos da
Universidade de Coimbra, publicados no ano seguinte. O Compêndio foi apresentado ao
Rei no dia 28 de Agosto de 1771, seguindo-se a aplicação da Resolução régia de
setembro do mesmo ano, que previa a elaboração de projetos para a renovação dos
cursos. O Compêndio traz em suas primeiras páginas a seguinte informação:
“A seguinte Da Junta de Providência Literária em 28 de Agosto de
1771 dia do grande doutor Santo Agostinho sobre o Compêndio
Histórico e Apêndice que dão uma clara e específica ideia dos estragos
que os denominados jesuítas fizeram, primeiro na Universidade de
Coimbra, consequentemente nas aulas de todos estes reinos, para que
pelo conhecimento de tão grandes e tão inveterados males se possam
indicar mais sensivelmente os remédios por que hão de se construir os
objetos das paternais providências de Sua Majestade pelo que pertence
à teologia, à jurisprudência canónica e civil e à medicina” (FRANCO,
2008, p. 98).
A segunda parte do texto discute os assim denominados “estragos causados
pelos jesuítas”. Ao longo do Capítulo III, intitulado “Dos estragos feitos na Medicina e
dos Impedimentos que os pretendidos últimos compiladores puseram para que ela não
pudesse sair do caos da ignorância em que a precipitaram e para se aproveitar dos
grandes descobrimentos que, a favor do bem comum da Humanidade, se fizeram nestes
últimos tempos”, encontramos o debate entre a abordagem teórica e “fechada” dos
jesuítas frente às novas teorias propostas pelos teóricos ilustrados, e a proposição de um
ensino voltado para a prática e com abrangência mais geral, como proposto para o curso
de Medicina. Isto, aliás, pode ser encontrado no relatório do Compêndio Histórico, na
seção de Medicina:
§ 23 Outra de Noa de Anatomia, em que se lerão os Livros de Galeno
‘De usu partium’ e lerão cada semana duas lições de Cirurgia. A qual
se lerá da uma às duas horas, ou depois da lição de Prima na hora da
Catedrilha maior, como parecer mais conveniente em Concelho do
7
Reitor e Conselheiros. E juntamente, o lente desta cadeira fará
Anatomia de membros particulares seis vezes cada ano e três gerais.
Pelas particulares levará mil réis por cada uma e pelas gerais dois mil
réis. E assim, em umas, como em outras, e no modo de ler a dita
cadeira se guardará o Regimento que para isso lhe será dado pelo
Reitor e Conselho. Haverá por ano cem mil réis. Estas cadeiras se
haverão por maiores na Faculdade. (MARQUÊS DE POMBAL, 2008
[1771], p. 168)
Vale ressaltar que o aspecto que a Junta mais buscou enfatizar foi, justamente, a
constatação da falta de um ensino com cunho científico, que estará presente, de forma
muito evidente, no texto dos Estatutos de 1772. Os estudos anatômicos são uma questão
largamente discutida pelos estrangeirados e pela Junta, uma vez que, segundo estes, os
jesuítas não promoviam um ensino em que os estudantes tinham contato direto com o
corpo humano, através, por exemplo, do contato com cadáveres. Os estudos de
Medicina anteriores à Reforma se davam, exclusivamente, através de livros e de
discussões, o que, segundo os reformistas, não propiciava uma formação adequada
àqueles que deveriam curar os corpos. Assim, formação adequada de um físico-
cirurgião era percebida como necessária para aqueles que iriam lidar com
procedimentos cirúrgicos.
A reforma da Universidade, bafejada pelas Luzes, procurava se guiar
pelo avanço da ciência moderna e pelo racionalismo. Embora a
reforma do ensino introduzida pelo grupo dirigente pombalino não
tenha rompido de todo com a tradição escolástica, o fato é que a
Universidade de Coimbra foi o centro de contato mais avançado do
saber ilustrado. As páginas dos Estatutos dedicadas à medicina
colocam em evidência não só a tentativa de transformar os estudos
médicos, mas também a de garantir o devido valor às disciplinas até
então colocadas em segundo plano, como a anatomia. Da mesma
forma, almejava-se que os estudantes tivessem acesso mais à
observação e à prática da medicina, valorizando-se, por exemplo, os
estudos farmacêuticos e a cirurgia. (ABREU, 2007, p. 152)
Também os estudos farmacêuticos passaram a estar em sintonia com a
proposição de uma formação mais global do bacharel em Medicina, que deveria ser
capaz de lidar com as diferentes necessidades dos enfermos, desde a diagnose até a
prescrição dos medicamentos. Essa nova maneira de ensinar medicina viria a ser útil
para aqueles médicos que retornavam as suas pátrias – no caso, o Brasil – e acabavam
por ser os únicos com algum conhecimento de ciência em suas cidades de origem, o que
acaba por demandar uma perspectiva mais geral da academia.
8
Como já observado anteriormente, entre os reformistas do ensino nas
universidades portuguesas, destacaram-se Luís Antônio Verney, autor da obra “O
verdadeiro método de estudar” – que criticava o sistema educacional português – e
Antônio Ribeiro-Sanchez, médico que foi discípulo de Boerhaave11
e escreveu a obra
“Método de como aprender a estudar a Medicina”, que tornou-se referência na
composição do texto Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772. A elaboração dos
novos Estatutos, em substituição aos de 1563, está, portanto, relacionada com os
esforços empreendidos pelo rei D. José I para a renovação das bases da cultura e da
ciência em Portugal. No geral, esse “impulso reformista” acabou por encontrar
dificuldades ao ser colocado na prática, devido à falta de professores que se adequassem
a essa nova demanda.
Estas questões podem ser encontradas no capítulo V da “Relação geral”, que
refere os antigos “vícios” da Faculdade de Medicina, além de apresentar os obstáculos
para o progresso e as providências que deveriam ser tomadas para reparar os danos
causados pelos jesuítas ao ensino conimbricense. O parágrafo que abre o capítulo que
discute a faculdade de Medicina nos Estatutos de 1772 resume bem o sentimento de
antagonismo entre o antigo e o novo método de ensino:
Tendo a Medicina por objeto duas coisas de tão grande importância,
como são a conservação, e restabelecimento da saúde dos homens:
Tem infelizmente sucedido não se fazerem nela os progressos, que
convinham; chegando por isso muitos a desconfiar, de que pudesse já
mais haver Ciência na Medicina; e outros a desprezar a que
atualmente existe; e ainda teme-la, como perigosa e nociva, por ser
muitas vezes ministrada cegamente pelas mãos da ignorância.
(LEMOS, 1772, p. 6)
Segundo Abreu, o novo texto dos Estatutos da Universidade de Coimbra
redefiniu o papel da prática na formação dos médicos, que assumiria contornos melhor
definidos, já que os estudos de Medicina e Cirurgia vigentes antes da Reforma traziam
consigo uma concepção “[...] prejudicial aos progressos da arte de curar e funesta à vida
11
Boerhaave foi um médico extremamente influente no século XVIII, sendo considerado um dos
fundadores do hospital acadêmico. A partir das leituras realizadas, sabemos que ele teorizou sobre o
corpo humano, concebendo-o – internamente – enquanto uma rede de tubulações e canos onde estavam os
líquidos do organismo.
9
dos homens não sendo possível que seja bom médico, quem não for ao mesmo tempo
cirurgião”, determinando que “sejam todos os médicos ao mesmo tempo cirurgiões”.
(ABREU, 2007, p. 155) No caso específico do curso de Medicina, percebemos a
valorização de disciplinas como Cirurgia e os estudos da anatomia humana, além do
aprofundamento em estudos farmacêuticos:
Após o curso preparatório, o aluno passaria a entrar em contato com
disciplinas mais específicas à formação do médico. No primeiro ano
do curso, o aluno estudaria a matéria médica, constituída pela história
da medicina e o estudo das virtudes de diversas plantas e raízes. O
segundo ano era dedicado inteiramente à anatomia, com aulas práticas
no hospital, enquanto o terceiro se ocupava das instituições médicas,
em que os alunos aprendiam medicina teórica, fisiologia, patologia,
semiologia, higiene e terapêutica. No quarto ano, os alunos estudavam
os aforismos de Hipócrates e Boerhaave, enquanto o quinto era
dedicado inteiramente ao ensino clínico da medicina e à prática no
hospital (ABREU, 2007, p. 88).
As novas teorias, trazidas pelos estrangeirados, permitiram que em Coimbra se
estabelecesse um novo ensino de Medicina, que, se por um lado, não se distanciava dos
autores clássicos, como Hipócrates e Galeno, por outro, caracterizou-se pela introdução
de estudos práticos, em especial, da clínica e da atuação em hospitais.
A partir da Reforma, percebemos novas teorias sendo aceitas e discutidas na
Universidade de Coimbra, como a perspectiva moderna do corpo-máquina, vinda da
Holanda e bem aceita no restante da Europa, desde o século XVII. Essa discussão sobre
o funcionamento do corpo humano – uma rede de tubulações – não deixa de estar
presente na obra de Francisco de Melo Franco, que discute as enfermidades do ânimo e
seus reflexos no corpo humano. Contudo, nela também estão evidentes resquícios dos
estudos clássicos conimbricenses:
Os Conimbricences, assim como toda a cultura do seu tempo,
atribuem grande importância aos estados da alma definidos como
paixões, e que na linguagem da psicologia moderna correspondem às
emoções ou sentimentos. As paixões são entendidas como
movimentos do apetite sensitivo, provenientes da apreensão do bem
ou do mal, acarretando algum tipo de mutação não natural do corpo.
(MASSIMI, 2006, p.03)
Vale, aqui, lembrar que os jesuítas, à frente da Universidade de Coimbra,
percebiam as paixões a partir de uma perspectiva positiva, a partir dos estudos de
Aristóteles e São Tomás, como observado por Massimi (2006, p. 03), que afirma que
10
“As paixões podem ser definidas como doenças ou distúrbios do animo apenas
enquanto se afastam da regra e moderação da razão”.
“Medicina Teológica”, uma obra publicada anonimamente, tem como objetivo
estabelecer uma aliança entre Teologia e Medicina, pois o autor defende que estas duas
“ciências” deveriam estar interligadas. Para o médico, essa medicina asseguraria o “bem
viver”, o equilíbrio tão necessário para a manutenção da saúde dos corpos. Através dela,
os confessores poderiam melhor aconselhar os fiéis católicos. Buscando remediar estas
doenças, Melo Franco estabelecia diagnósticos e recomendava
tratamentos, enfatizando que somente os médicos possuíam a competência necessária
para descobrir as causas desses males e curá-los.
Considerando que, dentre as questões discutidas pelos conimbricenses, estavam
o equilíbrio como chave para a manutenção da saúde do espírito e do corpo, podemos
afirmar que, ao discutir as enfermidades da alma, como a cólera, o amor e a bebedice,
Melo Franco acabaria por revelar a continuidade destes estudos realizados na
Universidade de Coimbra antes da expulsão dos jesuítas. Entretanto, na obra escrita de
1794, podemos também perceber a afinidade do autor com as novas teorias, na medida
em que buscava remediar as mazelas que afetavam a sociedade portuguesa do XVIII,
através de uma prática médica “útil” ao estado. Melo Franco também se afasta da idéia
de que a confissão era a única maneira de remediar os males da alma, ao afirmar que
para afastar o paciente de seu vício, antes que fizesse mal a si ou aos demais, era preciso
remediá-lo.
Sendo assim, percebemos uma clara intenção de substituir o confessor pelo
médico, uma vez que, apenas através de terapêuticas e medicamentos, os enfermos
alcançariam a cura, o que acaba se apresentando como uma aberta crítica ao clero – uma
vez que a obra se apresenta como um manual para os confessores. O autor, em razão
disso, acabou por se chocar com a Igreja católica, passando a abordar e tratar essas
doenças a partir das novas teorias correntes na Europa do final do Setecentos. Neste
sentido, a obra do médico mineiro parece estar em sintonia com o Reformismo
Ilustrado, pois ampliava não só o olhar sobre as doenças, suas causas e possíveis
tratamentos, percebendo-as como enfermidades psicossomáticas.
11
A Reforma do ensino realizada na Universidade de Coimbra se deu a partir das
proposições do Marquês do Pombal e dos relatórios elaborados pela Junta Literária, que
baseou-se em ideias dos estrangeirados reformistas. Muitos deles, com formação em
Medicina, acabaram por se juntar ao corpo docente da Universidade após sua reforma, o
que determinou mudanças drásticas no currículo. Os reformistas, simpáticos às teorias
do Marquês de Pombal, propuseram reformas de caráter ilustrado nas universidades,
visando a um ensino mais baseado no experimentalismo, especialmente, para os cursos
de Medicina. No caso do curso oferecido em Coimbra, o currículo passou a se
preocupar com a formação de médicos que viessem a servir o estado Português, na
medida em que passariam a estar encarregados da manutenção da saúde da população.
No caso do médico Melo Franco, seu desejo era retornar imediatamente para o Brasil
quando conclui o curso, mas os encargos financeiros fazem com que este permaneça em
Portugal. Acaba por trabalhar como prático em Lisboa e sua boa reputação permite o
retorno ao Brasil juntamente com a comitiva da Princesa da Áustria, noiva de Dom
Pedro I, em 1817.
Mas, se nos debruçarmos sobre as concepções e proposições de Melo Franco,
encontraremos também algumas permanências do ensino vigente no período anterior à
Reforma na universidade, como se constata na obra que escreveu ao final do século
XVIII e que propunha uma medicina aliada a moral. Vale lembrar que à época, os afetos
ou as paixões da alma eram percebidos como não-naturais ao ser humano, sendo
considerados tanto a causa de muitas doenças, quanto potenciais aliadas no combate a
outras doenças. Isto nos permite pensar que Franco tenha vivido na Universidade de
Coimbra um período de transição entre uma medicina com características mais teóricas
para uma que se caracterizaria por ser mais prática e racional. Situação que parece
explicar a conciliação entre Teologia e Medicina que encontramos na obra do médico
mineiro. Assim, apesar de podermos incluir Francisco Melo Franco entre os adeptos da
Ilustração, não devemos desconsiderar que ele viveu em um momento ainda fortemente
marcado pelas teorias do período anterior, o que nos leva a pensá-lo como um homem
de ciência cuja trajetória se construiu entre jesuítas e reformistas.
12
Referências
ABREU, Jean Neves. Os estudos anatômicos e cirúrgicos na medicina portuguesa do
século XVIII. REVISTA DA SBHC, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 149-172, jul, dez 2007.
__________________.Ilustração, experimentalismo e mecanicismo: aspectos das
transformações do saber médico em Portugal no século XVIII. Topoi, v. 8, n. 15, jul.-
dez. 2007, p. 80-104.
COMPÊNDIO DO ELOGIO HISTÓRICO LIDO NA SESSÃO PÚBLICA DA
SOCIEDADE DE MEDICINA DO RIO DE JANEIRO, EM 31 DE JANEIRO DE
1831, PELO DR. JOSÉ MARTIM DA CRUZ JUBIM. Revista Trimestral do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. V.5. Rio de Janeiro, 1885.
FALCON, Francisco José Calazans. A época Pombalina (política econômica e
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(Séculos XVI a XX). Lisboa: Gradiva, 2006.
FRANCO, Francisco de Melo. Medicina Teológica ou súplica humilde a feita todos os
Senhores Confessores e Diretores, sobre o modo de proceder com seus Penitentes na
emenda dos pecados, principalmente da Lascívia, Cólera e Bebedice. Rio de Janeiro:
Editora da Biblioteca Nacional, 2008.
MARQUÊS DE POMBAL/ JUNTA DE PROVIDÊNCIA LITERÁRIA. “O Compêndio
Histórico do estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos
denominados Jesuítas e dos estragos feitos nas ciências, nos professores e directores
que a regiam pelas maquinações, e publicações dos novos Estatutos por eles
fabricados”. José Eduardo Franco (coord.). Porto: Campo das Letras, 2008 [1771].
490p.
MAXWELL, Kenneth. Marquês do Pombal, paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1996.
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