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200 Análise Social, vol. XXXIX (Primavera), 2004 verno Dutra impôs os sambas-enredo nacionais (embora consignado nos estatutos de 1934 da UES fora letra morta até então) e a sua «finalidade nacionalista» em 1948 (cf. Augras, 1998, p. 11). É sintomático que Fer- nandes desvalorize estes dois factos: ao primeiro apenas alude lateralmente e sobre o segundo nada diz. Apesar de alguns pontos discutí- veis e exageros de tom, o estudo de Fernandes é já um marco nos estudos sobre o Carnaval carioca, em particu- lar, e nos estudos culturais, em geral, precisamente por recolocar de modo brilhante a questão da cultura popular e da sua autonomia relativa, por reti- rar o povo do anonimato e destacar a autoria de algumas das suas indi- vidualidades e por analisar detalhada- mente os complexos mecanismos de trocas culturais. Além disso, a polé- mica construtiva é sempre saudável, ajuda a esclarecer as ideias e a melho- rar futuros estudos. E, ainda por cima, ela é tão rara que mais vale pecar por excesso do que por defeito. DANIEL MELO Manuela Ivone Cunha, Entre o Bair- ro e a Prisão: Tráfico e Trajectos, prefácio de Miguel Vale de Almeida, Lisboa, Fim de Século, 2002, 356 páginas. Dois têm sido os esquemas que têm articulado a produção do conhe- cimento antropológico. O primeiro é o da distância/proximidade. No pas- sado, o próprio da antropologia era o estudo de povos ou gentes distantes. O objectivo final do estudo etnográ- fico, dependendo da vontade do au- tor, podia consistir em aproximar- -nos dessa gente distante ou, pelo contrário, em documentar os seus estranhos costumes e ampliar desse modo o abismo cultural entre eles e nós. A geografia da modernidade mo- dificou este esquema, uma vez que no mundo contemporâneo as distân- cias culturais já não têm de ser acom- panhadas por distâncias físicas. A an- tropologia, contudo, continua a ser o estudo das distâncias e proximidades que unem e separam os seres huma- nos. O segundo esquema é o de en- cerramento/fluxo. Segundo este es- quema, o objecto de estudo da antro- pologia é um objecto mais ou menos fechado em si mesmo: «etnias», «tri- bos», «povos», etc.; em todo o caso, grupos sociais muito claramente de- limitados. Se bem que tenham existi- do estudos clássicos que introduzi- ram o fluxo na análise antropológica (citemos, por exemplo, os trabalhos de Eric Wolf), é forçoso admitir que, no passado, a antropologia foi mais um estudo do encerramento do que do fluxo. O estudo etnográfico da Manuela Ivone Cunha inscreve-se plenamente nestes esquemas de conhecimento, ao mesmo tempo que contribui para a sua reformulação. Por um lado, o seu objecto de estudo é simultanea- mente próximo e distante: um esta-

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Análise Social, vol. XXXIX (Primavera), 2004

verno Dutra impôs os sambas-enredonacionais (embora consignado nosestatutos de 1934 da UES fora letramorta até então) e a sua «finalidadenacionalista» em 1948 (cf. Augras,1998, p. 11). É sintomático que Fer-nandes desvalorize estes dois factos:ao primeiro apenas alude lateralmentee sobre o segundo nada diz.

Apesar de alguns pontos discutí-veis e exageros de tom, o estudo deFernandes é já um marco nos estudossobre o Carnaval carioca, em particu-lar, e nos estudos culturais, em geral,precisamente por recolocar de modobrilhante a questão da cultura populare da sua autonomia relativa, por reti-rar o povo do anonimato e destacar aautoria de algumas das suas indi-vidualidades e por analisar detalhada-mente os complexos mecanismos detrocas culturais. Além disso, a polé-mica construtiva é sempre saudável,ajuda a esclarecer as ideias e a melho-rar futuros estudos. E, ainda porcima, ela é tão rara que mais valepecar por excesso do que por defeito.

DANIEL MELO

Manuela Ivone Cunha, Entre o Bair-ro e a Prisão: Tráfico e Trajectos,prefácio de Miguel Vale de Almeida,Lisboa, Fim de Século, 2002, 356páginas.

Dois têm sido os esquemas quetêm articulado a produção do conhe-

cimento antropológico. O primeiro éo da distância/proximidade. No pas-sado, o próprio da antropologia era oestudo de povos ou gentes distantes.O objectivo final do estudo etnográ-fico, dependendo da vontade do au-tor, podia consistir em aproximar--nos dessa gente distante ou, pelocontrário, em documentar os seusestranhos costumes e ampliar dessemodo o abismo cultural entre eles enós. A geografia da modernidade mo-dificou este esquema, uma vez queno mundo contemporâneo as distân-cias culturais já não têm de ser acom-panhadas por distâncias físicas. A an-tropologia, contudo, continua a ser oestudo das distâncias e proximidadesque unem e separam os seres huma-nos.

O segundo esquema é o de en-cerramento/fluxo. Segundo este es-quema, o objecto de estudo da antro-pologia é um objecto mais ou menosfechado em si mesmo: «etnias», «tri-bos», «povos», etc.; em todo o caso,grupos sociais muito claramente de-limitados. Se bem que tenham existi-do estudos clássicos que introduzi-ram o fluxo na análise antropológica(citemos, por exemplo, os trabalhosde Eric Wolf), é forçoso admitir que,no passado, a antropologia foi maisum estudo do encerramento do quedo fluxo.

O estudo etnográfico da ManuelaIvone Cunha inscreve-se plenamentenestes esquemas de conhecimento,ao mesmo tempo que contribui paraa sua reformulação. Por um lado, oseu objecto de estudo é simultanea-mente próximo e distante: um esta-

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belecimento penitenciário de mulhe-res. Objecto próximo, pois todos nósjá vimos algum desses estabeleci-mentos, pelo menos do exterior.Objecto distante, já que poucos pe-netraram no seu interior. Para o ob-servador externo, tudo o que é pos-sível ver-se de um estabelecimentoprisional é um muro intransponível,cujo interior parece não poder tercontinuidade nem contiguidade como exterior. Por outro lado, o objectode estudo de Cunha é um mundo queparece perfeitamente encerrado emsi mesmo, com limites precisos emuito bem traçados: o muro de ci-mento que o delimita. De certa ma-neira, sem dúvida, a prisão oferece oideal de todos os antropólogos. Nemsequer os nuer apresentavam limitestão precisos!

Contudo, a uma antropologia doencerramento vem agora opor-seuma antropologia do fluxo ou, pelomenos, de uma dialéctica entre o flu-xo e o encerramento1. Hoje sabe-mos, por exemplo, que os nuer nãovivem encerrados na nuerlândia,como foram retratados numa primei-ra etnografia: há um fluxo entre elese os seus vizinhos, vivem submeti-dos a um Estado centralizado, nummundo globalizante, etc. Mesmo as-

sim, as habitantes do estabelecimentoprisional de mulheres de Tires, queconstitui o locus ethnographicus dotrabalho de Cunha, não vivem assimtão isoladas do exterior como precipi-tadamente nos sentiríamos induzidosa pensar. O muro intransponível quese vê de fora é muito mais porosoquando visto de dentro. À semelhan-ça dos limites de uma etnia, apósuma análise adequada, também oslimites da prisão se diluem, surgindoem seu lugar um fluxo de informa-ções, relações, conexões, parentes-cos, amizades. É como se existisseum princípio de incerteza metodológi-ca: se centrarmos a nossa atenção nainstituição em si — na prisão —, asociedade na qual esta e os seus ha-bitantes se inscrevem desaparece; sea centrarmos no fluxo entre o interiore o exterior, dilui-se o que pareciaser um intransponível muro de sepa-ração. Ao optar por uma estratégiametodológica centrada neste fluxo(estratégia que é já clara no título damonografia), Manuela Ivone Cunhanão apenas se assume contra a per-cepção popular de quem não vê maisdo que o muro da prisão, mas tam-bém contra uma legião de estudos deprisão que, na sua maioria, subscre-vem o modelo goffmaniano que en-tende a prisão como uma «instituiçãototal», claramente separada do mun-do exterior, ou, pelo menos, clara-mente separável para efeitos analíti-cos. Mas a opção metodológica nãoconsiste apenas em escolher entre ofluxo e a instituição, mas também emencontrar os instrumentos de estudoapropriados. Só o método etnográfi-

1 Veja-se, por exemplo, o livro de P. Ges-chiere e B. Meyer, Globalisation and Iden-tity: Dialectics of Flow and Closure, Oxford,1998. Veja-se também a crescente literaturasobre a antropologia da fronteira, na qual osautores insistem mais na fronteira como lugarde fluxo do que na fronteira como encerra-mento último ou como separação entre co-munidades.

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co poderia oferecer a Cunha o ins-trumento para estudar este fluxo,centrando-se quer nos relatos dassuas interlocutoras (principalmentesobre a venda de drogas em bairroshabitacionais), quer nas grandes di-nâmicas do tráfico nos bairros.Como afirma a autora, só uma aná-lise que seja simultaneamente ummicroscópio para estudar os porme-nores e um telescópio para ver osproblemas no seu contexto maisamplo permite chegar a uma imagemprecisa do objecto estudado.

Do ponto de vista externo, a pri-são é frequentemente entendidacomo um mundo marginal, «limi-nal», ou seja, um mundo no qual seinterrompe uma temporalidade e umaestrutura social para recolocar osindivíduos numa temporalidade alter-nativa e numa «antiestrutura», parautilizar o conceito de Victor Turner,o primeiro autor que encorajou osantropólogos a estudarem de dentroas fases liminais da vida social, pormuito ocultas que estas pudessemser. Para os indivíduos de fora, naprisão o tempo social permanececolocado entre parênteses; a vidanum estabelecimento prisional é umaobscura incógnita cujos pormenoresdesconhecemos por completo. Sãocélebres as palavras com que freiLuis de León, o escritor espanhol doséculo de ouro, retomou as suasaulas universitárias depois de cincoanos de vida na prisão: «Como dizía-mos ontem...» Para o indivíduo quesai da prisão, o urgente é retomar atemporalidade social pública, voltar asituar-se na pessoa social que era

antes do ingresso na prisão. Na are-na pública, o tempo passado dentro,bem como a personalidade do reclu-so, são alvo de uma negação, talcomo é negada, na fase liminal dosritos iniciáticos, a pessoa social dosindivíduos iniciados.

Mas o tempo, objectivamente fa-lando, não se detém, por muito que,subjectivamente, possa ser vivido dediferentes maneiras. Graças a umaminuciosa observação participante,Manuela Ivone Cunha mostra-noscomo é vivido o tempo prisional pe-las detidas de Tires, não em ruptura,mas antes em continuidade com otempo pré-prisional e com as aspira-ções futuras. As estruturas cogniti-vas espácio-temporais não desapare-cem, assim como não desaparece aestrutura social em que se inscrevemos indivíduos, se bem que, evidente-mente, se modifiquem as percepçõesde tempo vivido, do corpo, do espa-ço, da pessoa. Parece-me muito inte-ressante, em particular, a análise quea autora realiza das tatuagens, queinscrevem no corpo a espacialidadepré-prisional, modelando uma peleque é simultaneamente individual esocial, que individualiza as pessoas e,ao mesmo tempo, as une em grupossimbólicos que reconstituem linhaspré-prisionais. Desta forma, a análiseda dialéctica entre o encerramento eo fluxo estende-se desde a instituiçãoaté aos próprios corpos das reclusas,num exemplo quase paradigmáticode complexidade etnográfica. Pou-cos estudos conseguem integrar demodo tão elegante os diferentes ní-veis analíticos da observação. Há que

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assinalar, evidentemente, que a análisede Cunha não se restringe às detidase às suas relações no mundo exterior,mas inclui também o pessoal do esta-belecimento penitenciário, as proble-máticas relações que mantêm com asdetidas e os modelos culturais comque se aproximam delas.

O mundo presidiário surge-nosassim como um mundo com umalógica cultural própria, mas não, emabsoluto, como um mundo alheio aoexterior. É um mundo povoado porpessoas com preocupações humanasmuito semelhantes às daqueles quevivem no exterior, se bem que te-nham também, evidentemente, preo-cupações próprias da sua condição,preocupações que, graças ao traba-lho da etnógrafa (uma autênticatrickster que, à semelhança da perso-nagem do romance de Marcel AyméLe passe-muraille, consegue passarde um lado ao outro do grosso murocomo se este não existisse), se tor-nam inteiramente compreensíveispara o leitor. Se o trabalho do antro-pólogo é aproximar-nos do «outro»distante, Manuela Ivone Cunha podesentir realmente cumprido o seu ob-jectivo, pois em momento nenhumas detidas de Tires se nos apresen-tam como realmente «outras». Aolongo do livro de Cunha vão sendoconvocadas as palavras das suasinterlocutoras, bem como as de umriquíssimo exército de literatura es-pecializada sobre a prisão (ou sobreo tempo, ou sobre o corpo, ou sobrea família, ou sobre o crime, ou sobrequalquer que seja o tema; Cunha re-jeita o reducionismo que representa-

ria a análise do seu riquíssimo mate-rial empírico do ponto de vista deuma só subdisciplina, dialogandocom plena competência com autoresde uma grande variedade delas). Detrickster mensageira entre mundosseparados, a autora passa a ser mé-dium através de cujo lápis nos vãofalando as muitas vozes de «nativas»e de especialistas. A autora evita doisproblemas da antropologia actual:por um lado, o dos antropólogos queparecem conhecer melhor do que aspessoas sobre quem escrevem quaissão os problemas destas, a estruturaque os submete e a agencialidadecom que resistem: são antropólogosque escrevem sobre alguém, que fa-lam em voz mais alta do que a dosseus interlocutores ou, como elesafirmam, dos seus «informantes».Por outro lado, o problema dos pós--modernos que acreditam que a suamissão é registar um concerto demultiple voices (ou de speaking intongues, como afirmava astuciosa-mente Ernst Gellner) desestruturadoe, em última instância, relativista.À medida que vão sendo invocadas,as vozes destas mulheres, rigorosa-mente seleccionadas (é óbvio quevemos apenas a ponta de um imensoicebergue etnográfico), põem em re-levo uma estrutura e uma agenciali-dade que dependem de lógicas inter-nas e também — e talvez seja este oaspecto mais interessante da obra —de determinadas lógicas sociais ex-ternas. A prisão não é um mundoalheio ao exterior. Os problemas queaí se concentram são problemas detodos nós. As palavras com que sevai entretecendo este texto (maravi-

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V. Xavier Pintado, Structure andGrowth of the Portuguese Eco-nomy, Lisboa, Imprensa de CiênciasSociais, 2002.

O livro do Prof. Xavier Pintado,publicado em 1964 e agora reeditadopelo Instituto de Ciências Sociais, foiuma obra pioneira no estudo daeconomia portuguesa. É verdadeque antes dele já tinham aparecidotrabalhos valiosos sobre a economianacional. Mas os de maior destaquetratavam apenas aspectos sectoriais(como os de Ferreira Dias e os do IICongresso da Indústria sobre o sec-tor industrial e os de Henrique deBarros e E. Castro Caldas sobre aagricultura) ou concentravam-se na

análise estrutural, sem tratarem docrescimento económico (como o deF. Pereira de Moura, L. M. TeixeiraPinto e M. Jacinto Nunes sobre aestrutura da economia portuguesa).

A obra de Xavier Pintado foi dasprimeiras a aproveitarem as estatísti-cas de contabilidade nacional, queentão tinham aparecido há poucotempo. Foi a primeira em que secombinou a análise da estrutura exis-tente e do crescimento registadocom a discussão das políticas maisrelevantes para cada um dos secto-res estudados — a agricultura, a in-dústria e o comércio externo. Umaoutra das suas inovações importantesfoi a de recorrer abundantemente acomparações com países da Europameridional, na senda do que vinhasendo feito em estudos da ComissãoEconómica para a Europa das Na-ções Unidas, nomeadamente nosseus relatórios de 1953 e 1959.

Na data em que foi publicado oseu estudo, Xavier Pintado tinha dese concentrar sobre a década de1950. A economia portuguesa tinhacrescido nessa década a um ritmomais acelerado do que em qualqueroutra década anterior da história na-cional. Não se podia, porém, dizerque esse ritmo tivesse sido brilhanteem comparação com o que entãoaconteceu nos países do Sul da Eu-ropa e mesmo em muitos dos doNorte e Centro. No princípio dosanos 60, as economias europeiasestavam a sair do chamado «períodode prata» do crescimento económicoe a entrar no «período de ouro», quese estendeu até 1973. Neste último

lhosamente tecido por ManuelaIvone Cunha, que, além de médium,é uma extraordinária costureira) sãofios que transcendem os recintosonde permanecem encerradas asmulheres que as proferiram. O teci-do agrupa parentes, dentro e fora daprisão, amigos, o bairro do qual pro-cedem as detidas e as tristes condi-ções em que vivem. São palavrasque tecem um mundo, o mundo quepartilhamos e em que todos habita-mos, com os seus graves proble-mas, as suas patéticas soluções e assuas incorrigíveis injustiças.

RAMON SARRÓ