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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 1 de 31
ENTRE O DIREITO E AS CIENCIAS SOCIAIS: UMA EXPERIENCIA CENTRAL NA HISTORIA DOS ESTUDOS SOBRE TRABALHO E
TRABALHADORES NO BRASIL
José Sergio Leite Lopes
A entrevista que se segue foi feita em 1992 para uma pesquisa então em
andamento sobre a história social da sociologia do trabalho e dos trabalhadores. Como
autor de um dos primeiros e mais importantes livros sociológicos sobre o sindicalismo
no Brasil e como observador direto e privilegiado de parte da história do direito social
no país, Evaristo de Moraes Filho se constituía em um entrevistado estratégico para a
pesquisa. Como mostra a entrevista, não somente o livro O Problema do sindicato
único no Brasil; seus fundamentos sociológicos domina a temática, o instrumental e a
literatura do direito social e da sociologia , como a própria trajetória de seu autor, entre
a Faculdade Nacional de Direito e a Faculdade Nacional de Filosofia, constrói a ponte
entre essas duas áreas de conhecimento, essencial para o entendimento das relações
entre o sindicalismo e o Estado no Brasil. Depois, o próprio Instituto de Ciências
Sociais da Universidade do Brasil, experiência inter-institucional original e de curta
duração tão associada à trajetória de nosso entrevistado, assegurava essa ligação entre o
direito e as ciências sociais – incorporadas em Evaristo como representante no ICS da
Faculdade de Direito – sob a prevalência das ciências sociais.
Talvez a força mesma dessa interconexão entre direito e ciências sociais que
peculiariza a contribuição de Evaristo fosse paradoxalmente a fonte do esquecimento de
seu livro pioneiro de 1952 sobre o sindicalismo na literatura subseqüente de sociologia
do trabalho que se constitui em São Paulo. Voltada para a construção universitária
pioneira da sociologia como centro hegemônico das áreas de ciências humanas na
Universidade de São Paulo, a “escola paulista de sociologia”, localizada entre as
cadeiras I e II de Sociologia da USP e a Escola Livre de Sociologia e Política, era um
ambiente propício para o esquecimento de contribuições que não estivessem envolvidas
no esforço implícito de autonomização da disciplina. Uma contribuição produzida assim
na Faculdade de Direito, matriz essa que aquela escola pretendia distanciar-se naquele
momento, passa despercebida pelos autores lidando com a temática do trabalho e do
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sindicalismo1. Não é por acaso que a obra de Evaristo é resgatada por José Albertino
Rodrigues, sensibilizado por sua observação participante do sindicalismo pelo viés da
instituição técnica de assessoria aos sindicatos por ele mesmo construída nos anos 50, o
DIEESE, e que fez levantamentos na Biblioteca Nacional e no Ministério do Trabalho,
no Rio de Janeiro, para a pesquisa que resultou em Sindicato e Desenvolvimento no
Brasil, de 1968. De fato, a recepção de O problema do sindicato único está relacionada
à atualização das conjunturas políticas favoráveis à crítica da estrutura sindical
brasileira: em 1962, quando do fortalecimento do movimento sindical e da publicação
de livros sobre as suas lutas no passado, a obra tem uma repercussão maior do que
quando de seu lançamento dez anos antes, em edição limitada sem editora, quando
então se relaxava timidamente o controle rígido prevalecente sobre os sindicatos de
trabalhadores, por ocasião do segundo mandato presidencial de Getúlio Vargas, eleito
em 19502. E em 1978, com o surgimento do movimento social tendo por centro a
atuação sindical no ABC paulista e em São Paulo, no declínio do regime militar, O
problema do sindicato único tem sua segunda edição publicada pela editora Alfa-
Ômega, prefaciada por Paulo Sergio Pinheiro, então estudioso da sociologia do trabalho
na Universidade de Campinas.
A dificuldade inicial na percepção da importância da contribuição do livro pelo
campo sociológico também se dá pela sua própria composição interna, elaborada para
ser uma tese de livre-docência para a Faculdade de Direito, com três capítulos baseados
numa interpretação da literatura internacional, sociológica e de direito público, com
1 Assim, como assinala Evaristo no posfácio à segunda edição de seu livro, Azis Simão, autor de Sindicato e Estado, livro fundamental na temática, publicado em 1966, não cita O problema do sindicato único na sua bibliografia; em Conflito Industrial e Sindicalismo no Brasil, outro livro de referência, de Leôncio Martins Rodrigues, também de 1966, ele é citado de passagem. O livro de Azis Simão guarda características de sensibilização através da experiência direta com o sindicalismo de São Paulo dos anos 30 a 50 que se assemelham às características comuns com o livro de Evaristo. O livro de Leôncio é fruto dos projetos coletivos formulados no Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho, associado à cadeira I de Sociologia da USP, coordenados por Florestan Fernandes. Ambos os estudos fazem parte de um esforço considerável e fundamental das ciências sociais brasileiras entre os anos 50 e 60, fazendo de São Paulo um laboratório essencial para o entendimento das questões sociológicas colocadas pelo Brasil.
2 No início dos anos 60, Evaristo está em ascensão no campo das ciências sociais, com sua participação na direção do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Brasil. Em 1962 foi vice-presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia, tendo por presidente Florestan Fernandes, como informa na entrevista, e em 1964 fez parte da banca do concurso para professor titular daquele professor na USP, examinando a tese da “Integração do negro na sociedade de classes”. Em 1963, com base em sua notoriedade na área do direito do trabalho onde O problema do sindicato único ocupa um importante lugar, é nomeado como autor e relator do anteprojeto de código do trabalho. Os anos posteriores a 1964 viriam interromper muito do que estava sendo feito nas ciências sociais em São Paulo e em particular no Rio de Janeiro.
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temas de uma generalidade em ordem decrescente – “o grupo social”, “a profissão e o
sindicato” e “o problema do sindicato único” – e somente o último capítulo dedicado à
experiência brasileira (capítulo IV - “no Brasil”). A interpretação original da história
sindical brasileira fica assim “escondida” pelos eruditos três capítulos iniciais, os quais
contam com uma cobertura bibliográfica impressionantemente atualizada para a época,
com citações nas línguas das edições originais ou de consulta (em francês, inglês,
espanhol, italiano e alemão; para as quais a segunda edição traz um apêndice com as
respectivas traduções), e que transita com intimidade por entre uma literatura
sociológica, de filosofia política, de história do Estado e do direito público3. E assim, a
sua própria interpretação do sindicalismo brasileiro, baseada numa experiência pessoal
de observação direta do aparato de Estado concernente às relações de trabalho, fica
menos evidenciada.
Essa entrevista, entre outros textos e entre outros depoimentos, ajuda a
transparecer a originalidade desta interpretação, associada à própria trajetória de
Evaristo de Moraes Filho. A ênfase do autor em seu desempenho escolar tanto na
entrevista, assim como nos seus currículos, aponta para uma busca meritocrática que se
consolida com sua entrada na Faculdade Nacional de Direito, núcleo expressivo de
formação, escolar e extra-escolar, de parte importante da elite política e intelectual
brasileira na primeira metade do século XX. Tem ele assim uma formação universitária
mais importante que a de seu pai, pioneiro na assessoria jurídica a associações operárias
e sindicatos de trabalhadores, publicista em seus diferentes sentidos, assim como
primeiro consultor jurídico do Ministério do Trabalho nos dois anos iniciais do governo
provisório saído da Revolução de 304. Do capital social de origem paterna nosso autor 3 Essa erudição fará de Evaristo um autor requisitado para o organização e a introdução de textos selecionados tanto de clássicos das ciências sociais (na coleção dirigida por Florestan Fernandes na Editora Ática a partir dos anos 70 e 80), quanto de homens públicos (reedições de livros de Evaristo de Moraes, organização de textos do empresário Jorge Street, por exemplo), quanto de questões sociais e correntes ideológicas (artigos e coletâneas sobre o socialismo e sobre o positivismo no Brasil, por exemplo).4 Como mostra Evaristo na grande introdução que faz à reedição de Apontamentos de Direito Operário, de Evaristo de Moraes, Evaristo pai começou a advogar desde os 23 anos como “rábula”, como se auto-designa no livro Reminiscências de um rábula criminalista (1922), tendo depois se bacharelado em 1916, com 45 anos, na Faculdade de Direito Teixeira de Freitas, em Niterói, para em seguida revalidar seu diploma na Faculdade de Direito da Capital Federal com novos exames por força de lei. No fim de sua vida é nomeado pelo presidente da República, em 1938, professor de direito penal na Faculdade Nacional de Direito, onde lecionou dois anos. Também significativo na sua formação escolar é o seu pertencimento como aluno gratuito no externato do curso secundário do Colégio São Bento, entre 1883 e 1886, e em seguida sua experiência durante três anos de jovem professor auxiliar nas matérias de português, geografia e história no mesmo colégio, onde formou uma rede de relações com colegas que no futuro pertenceriam à elite intelectual e política.
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traz a possibilidade de compreender do seu interior as continuidades e rupturas da
primeira república para a segunda, desde sua experiência como jovem secretário ainda
estudante da comissão mista de conciliação, onde assiste à argumentação de
empregadores e trabalhadores, desde a sua subseqüente carreira no Ministério do
Trabalho5, até a elaboração universitária desta experiência, entre o direito e as ciências
sociais. Ele pode assim, através da experiência de sua trajetória, recuperar e entender o
contexto histórico da trajetória de seu pai, apropriando-se dela, o que lhe faz
compreender de forma singular a importância dos movimentos sociais e da discussão
pública das leis sociais antes de 1930, sem deixar de ver a importância e a
especificidade das transformações posteriores. Isto se evidencia no capítulo IV de O
Problema do Sindicato Único, nas introduções circunstanciadas feitas pelo autor a
livros reeditados de seu pai, assim como nos prefácios a teses de história e ciências
sociais publicadas.
Se a experiência política de Evaristo de Moraes se dá na advocacia a
movimentos sociais e na sua prática de publicista, isto é em círculos políticos e
intelectuais extra-universitários, a de Evaristo de Moraes Filho se inicia na sua vivência
estudantil na Faculdade de Direito, no período por ele mesmo denominado de “porre
ideológico” do início dos anos 30. Ali ele encontra professores que o marcaram e
também se engaja numa atividade extracurricular de colaboração em jornais e revistas
estudantis, publicando ensaios que antecipam sua vasta produção futura. Com base
nessa intensa vida intelectual e política encontrada na faculdade ele pode ter uma
bagagem crítica para ver de forma distanciada a construção política e administrativa do
Estado Novo e os desdobramentos e continuidades de algumas de suas políticas
públicas no período democrático subseqüente, e fazer, em especial, a crítica da
permanência da estrutura sindical corporativista. Essa pulsão crítica, potencializada por
sua vivência estudantil, é feita no entanto de modo a incorporar aspectos de uma
herança anterior e a reinterpretá-la em outro sentido. Pois, por outro lado,a socialização
na faculdade parece fazer-lhe incorporar a sua tradição de erudição, suas redes de
sociabilidade, os seus ritos de instituição como os concursos, as suas disputas, o seu
consenso no dissenso. Ele é assim um mediador e um renovador entre períodos 5 No posfácio à segunda edição de O Problema do Sindicato Único, Evaristo assinala: “Cria autêntico do Ministério do Trabalho, dentro dele transcorreu toda minha carreira funcional até final aposentadoria, voluntária, em novembro de 1966” (p. 323). (Já a aposentadoria universitária, na UFRJ, em 1969, não será voluntária...).
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históricos e tradições de pensamento diferentes, produzindo uma síntese interpretativa
original. Como se vê no final do capítulo 4 de O Problema do Sindicato Único, Evaristo
trabalha com a problemática de sucessivos autores do pensamento social brasileiro –
Euclides da Cunha, Tobias Barreto, Capistrano de Abreu, Oliveira Vianna, Sergio
Buarque de Holanda, Gilberto Freyre – para ilustrar as tendências levando ao
insolidarismo da população brasileira ao longo da história, e a propriedade que teria o
sindicato, e de preferência o sindicato único por profissão ou categoria profissional, de
reverter esse quadro, inculcando tendencialmente a associatividade. Mas se o sindicato
único é fundamentado pelo autor como o mais apropriado pela literatura internacional
por ele analisada, para a defesa das classes trabalhadoras em geral e para as brasileiras
em especial, ele o seria no entanto se destituído de complementos institucionais
implantados durante o Estado Novo (regulamentares e de prática administrativa), como
textos copiados da Carta de Lavoro do regime fascista italiano (cópia esta que ele é o
primeiro a assinalar), como o controle ministerial sobre os sindicatos (com o seu poder
de intervenção), o imposto sindical, o estatuto padrão, o atestado ideológico dos
dirigentes. Essas críticas, feitas em 1952, antecipam e fundamentam tentativas
posteriores de reforma da estrutura sindical, nas conjunturas de ascensão da
associatividade e mobilização sindicais, em 1963 e em 19886.
Em diferentes dimensões, portanto, Evaristo é um mediador entre tradições de
pensamento diferentes, por um lado, entre os reformadores sociais dos anos 20 e
começo dos anos 30 e os reformadores dos anos 80, passando pelos do início dos anos
60; por outro lado, entre o pensamento social brasileiro transmitido nas principais
faculdades de direito e sua apropriação pelas ciências sociais do início dos anos 50 e as
ciências sociais do trabalho das gerações pós-graduadas desde o final dos anos 70
(como sinalizado pelo prefácio de Paulo Sergio Pinheiro à segunda edição de O
Problema do Sindicato Único).
Esse princípio da sensibilidade ao equilíbrio entre herança e ruptura na passagem
da memória entre diferentes gerações, Evaristo tira do modelo da passagem entre as
décadas de vinte e de trinta, atravessadas por efeitos de obscurecimento, dadas pelas
pré-construções eruditas baseadas em eventos políticos como a Revolução de 30 e o
6 Em 1963 Evaristo de Moraes Filho foi chamado pelo ministro João Mangabeira para ser autor e relator de um anteprojeto de código do trabalho; em 1988 fez parte da Comissão Afonso Arinos que precedeu a Constituição de 1988, na parte referente às leis do trabalho.
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Estado Novo. Entre essas duas décadas, com efeito, havia sido naturalizada entre
historiadores e sociólogos uma barreira ligada tanto a uma superestimação das rupturas
em detrimento das continuidades no dimensionamento da natureza empírica da
transformação, quanto a especializações dos próprios historiadores em periodizações
preestabelecidas. Por ocasião de prefácios a livros baseados em teses das novas
gerações de pós-graduados dos anos 70 e 80, Evaristo teve a ocasião de explicitar a
referida sensibilidade, que já está contida em O Problema..., e que se manifesta também
na entrevista a seguir. Em livro por ele prefaciado, Ângela de Castro Gomes atravessa a
barreira daquelas duas décadas, podendo assim constatar a importância da atuação da
burguesia em defesa de seus interesses, embora a forma de sua atuação tivesse mudado
de uma década para outra, corrigindo assim a minimização, corrente na literatura
anterior, da atuação empresarial diante do Estado pós-30. A quebra analítica da barreira
entre as duas décadas pela autora foi prontamente assinalada por Evaristo de Moraes
Filho, ele próprio um autor pioneiro na desconstrução da visão que privilegia o Estado
pós-30 como único produtor das leis sociais e do sindicalismo.7 O prefaciador então se
anima a desenvolver por escrito aquilo a que se refere, na entrevista a seguir, com mais
detalhes colaterais suscitados pela lógica da oralidade.
Evaristo é estimulado pelo livro que prefacia a tecer considerações sobre como
uma lei instituída em 1923, a Lei Eloi Chaves, vai ter grande importância, de forma não
prevista e quase despercebida, em toda a estrutura sindical montada após os anos 1930,
chegando a ser incorporada à CLT em 1943. A gênese dessa medida esteve ligada à lei
que regia o funcionamento da caixa previdenciária dos ferroviários, onde a estabilidade
após os 10 anos de trabalho era um dispositivo de caráter contábil. Tal dispositivo,
anterior à leva legislativa dos anos 1930, vai ser retomado tal e qual nas leis que regem
as caixas de outras categorias profissionais, como a dos bancários ou a dos marítimos, e
7 “Mostra a Autora muito bem como 30 não significou nenhum rompimento radical com o passado, nem remoto nem recente. As lideranças empresariais passaram intactas para o novo regime, como viria a acontecer igualmente com as lideranças operárias colaboracionistas e com as oligarquias estaduais. Tontearam um pouco, mas não chegaram a ir à lona; logo refeitas, retomaram as rédeas dos seus interesses, das suas associações ou de seus domínios regionais. (...) Outro tema tratado pela Autora é o que diz respeito à destruição do ‘mito da outorga’ da legislação do trabalho, mito este construído e cultivado pelos revolucionários de 30 e principalmente a partir de 37, com o Estado Novo. (...) Não podemos silenciar que nos coube a honra de haver iniciado essa derrubada. O nosso O Problema do sindicato único no Brasil, aparecido em princípios de 1952, leva por motivação justamente o combate ao mito.” In Ângela C. Gomes, Burguesia e trabalho; política e legislação social no Brasil 1917-1937. Rio: Campus, 1979, p. 15.
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vai ser retomado também, nos mesmos termos, na CLT8. Ele consagra e faz desse
instrumento de estabilidade previdenciária o mecanismo de uma estabilidade mais geral,
sustentando a implantação de uma organização sindical que os redatores das leis viam
como antídoto a uma “falta de solidariedade” e a uma insuficiente propensão à
associação que seria, segundo esses juristas e pensadores sociais, intrínsecas ao povo
brasileiro. Evaristo dá assim uma ilustração de fenômenos históricos para os quais Max
Weber e depois Norbert Elias chamavam a atenção, apontando para os
desenvolvimentos históricos “cegos”, processos históricos inintencionais. Essa
ilustração de uma lei que “fura” a “barreira” entre as duas décadas e vai se instalar,
quieta, na CLT, compondo o estatuto da estabilidade adquirida após 10 anos de serviço,
vai ter importância para a estrutura de delegados sindicais do movimento operário entre
1945 e 1964, e dali só será desalojada pela introdução do FGTS em 1966. Na entrevista,
Evaristo salienta a mobilização e a força social de certas categorias profissionais, como
por exemplo os bancários no início dos anos 30. Os testemunhos e contribuições de
observações pessoais que recheiam os prefácios de Evaristo a livros provenientes de
teses9, são estimulados pela surpresa e encantamento com o trato rigoroso e revelador
dado ao material empírico, manuseio característico de uma nova geração de
historiadores e cientistas sociais que o ex-diretor da experiência (interrompida pela
repressão pós-64) do Instituto de Ciências Sociais da UFRJ tem diante dos olhos – esse
produto da nova pós-graduação em ciências sociais e da nova investigação histórica
incorporada por pesquisadores vinculados a uma pluralidade de instituições 10.
A entrevista que se segue desenvolve e sugere estes e outros temas através do
sabor da oralidade e do humor com que Evaristo de Moraes Filho auto-analisa a sua 8 Essa análise, já presente em O Problema..., será desenvolvida, através da expressão cidadania regulada, por Wanderley Guilherme dos Santos em Cidadania e Justiça, Rio: Campus, 1979. 9 Um outro prefácio é feito ao livro de Rosa Maria Barboza de Araújo, O Batismo do Trabalho; a experiência de Lindolfo Collor. Rio: Civilização Brasileira, 1981.10 E presente inclusive nas ciências sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, nas gerações subseqüentes às do ICS, onde Evaristo pode inclusive encontrar trabalhos que guardam uma relação temática com sua produção e uma relação emocional e afetiva com ele próprio, como por exemplo os de Regina Lúcia de Moraes Morel, “A ferro e fogo: construção e crise da família siderúrgica – o caso de Volta Redonda; tese de doutorado, Sociologia/USP, 1989; da mesma autora, “História incorporada e identidade coletiva entre trabalhadores aposentados da CSN”, pp. 61-96, in Alice Abreu (org.), O Trabalhador Carioca, estudos sobre trabalhadores urbanos no Rio de Janeiro, Rio: Ed. JC, 1995; Elina G. da Fonte Pessanha & Regina de Moraes Morel, “Gerações operárias: rupturas e continuidades na experiência de metalúrgicos no Rio de Janeiro”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 17, ano 6, out. 1991; ou Regina L. de Moraes Morel e Wilma Mangabeira,“ ‘Velho’ e ‘novo’ sindicalismo e uso da justiça do trabalho: um estudo comparativo com trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional”, Dados, vol. 37, n. 1, 1994.
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experiência profissional e humana; esta experiência que sabemos importante para a
compreensão de um autor ocupando uma posição central numa história social das
ciências sociais que lidam com o trabalho e os trabalhadores no Brasil.
ENTREVISTA COM EVARISTO DE MORAES FILHO
Data: 08 / 12 / 1992
Local: residência de Evaristo de Moraes Filho
Entrevistador: José Sérgio Leite Lopes
José Sérgio:. Nessa entrevista gostaria de saber um pouco na sua carreira, sua história
de vida, como é que o senhor chegou a elaborar o livro O Problema do Sindicato Único
no Brasil. Era uma tese?
Evaristo: Foi tese, mas eu não cheguei a defender. Eu fiz outra tese.
José Sérgio: Então, era isso. Como é que o senhor chegou a esse trabalho. Porque o
senhor começou no Ministério do Trabalho desde cedo...
Evaristo: Eu tomei posse no Ministério do Trabalho a 25 de abril de 1934. Estava
começando o meu segundo ano de Direito. Tinha 19 anos de idade. Era secretário das
comissões mistas de conciliação. Essas comissões mistas de conciliação, que foram
extintas, foram criadas pelo decreto 21.396, de 12 de maio de 32. A exposição de
motivos do Collor, do Fernando Collor é muito boa, vale a pena você ler.
José Sérgio: Do Lindolfo...
Evaristo: Do Lindolfo. Fernando, veja você...! O veneno invade a minha casa! (risos)
Veja você! (...) Mas voltando à história: o Lindolfo Collor, você sabe, ele era mais ou
menos positivista, e na época ele era farmacêutico. Ele não era formado em Direito, não.
Mas era um homem culto, muito inteligente, antigo jornalista, antigo deputado. Tinha
sido republicano, da corrente de Júlio de Castilho, do Getúlio, Borges de Medeiros e
assim por diante. Então, ele tinha aquela idéia fixa de integrar o proletariado na
sociedade contemporânea. E na exposição de motivos número 19.770 - era o primeiro
decreto sobre sindicalização depois da Revolução de 30, o 19.770, de 19 de março de 31
–, nesse decreto ele chega a citar Augusto Comte nominalmente. Ele cita Comte
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nominalmente! Quer dizer, vê-se bem a influência castilhista. Já na Constituição de
1891, do Rio Grande do Sul, que aliás deu muita amolação a Rui Barbosa, Júlio de
Castilho prevaleceu-se da Federação, do federalismo da República, e fez uma
Constituição inteiramente independente; independente da Constituição Federal de 24 de
fevereiro de 91. E já dava alguns direitos trabalhistas, alguma coisa e tal. E eles tinham
essa idéia fixa de integrar o proletariado na sociedade moderna. E a exposição de
motivos que criou as comissões mistas de conciliação é do Collor. Vale a pena você ver
um livro do João Alfredo Lousada chamado “Legislação Social Trabalhista”. É de 1933,
editado pelo Ministério do Trabalho. Você encontra aí na biblioteca [refere-se à sua
famosa biblioteca pessoal]. Ele escreve todas as exposições de motivos do Collor. E
naquele tempo, engraçado... Um pouco porque ele era um entusiasta relativamente
moço e Ministro do Trabalho, as exposições são bem feitas. Ele chega a falar em lutas
de classes, embora procurando apagá-las, acabar com elas. E essas comissões mistas de
conciliação exatamente têm esse papel. Elas eram compostas de seis vogais: três de
empregadores e três empregados; e presidida por um jurista. Um jurista as presidia. Eu
fui secretário das duas, aqui no Rio de Janeiro. Elas não tinham um poder judicante;
eram só de conciliação. Às vezes se fazia uma convenção coletiva, entre sindicatos de
empregados e de empregadores. Levava-se às vezes 10, 8, 12 sessões. Era cansativa
aquela negociação... Mas era interessante. Então, eu comecei a entrar em contato com o
movimento sindical brasileiro daquela época. E uma coisa que ainda está pedindo um
autor é o movimento sindical dos bancários e dos professores. Em São Paulo, uma
moça, cujo livro eu tenho, mas não me lembro o nome, fez sobre o sindicato dos
bancários.
José Sérgio: Letícia Canedo.
Evaristo: É. Mas no Rio de Janeiro os bancários faziam greves terríveis, em 33, 34. Os
professores também. Os professores, por exemplo, eram dirigidos por trotskistas. Eu fui
aluno de um deles, que era um grande sujeito, cuja memória precisa vir à tona. Sempre
que eu posso, eu o cito. Chamava-se Rodolfo Coutinho. Pernambucano... ou de uma
família de Pernambuco. E o Rodolfo Coutinho suicidou-se em 1953; jogou-se embaixo
de um trem na estação de São Cristóvão. Foi preso em 35. Então, ele e o Branco – não
me lembro o primeiro nome do Branco - eram os diretores do sindicato dos professores.
Ele era trotskista. Trotskista, casado com uma alemã. Viveu um pouco na União
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Soviética, esteve na Alemanha muito tempo. Ele foi meu professor de alemão. Era um
sujeito fabuloso. Foi o Rodolfo Coutinho que, junto com Cristiano Cordeiro, fundou em
1919 o primeiro centro de estudos marxistas do Brasil, em Recife. 1919, um centro de
estudos marxistas. O Foster Dulles, naquele livro dele, “O comunismo no Brasil, 1935-
1945”, ele cita isso. Fundou o primeiro centro de estudos marxistas no Brasil. Era um
sujeito fabuloso. E para você ver a importância dos bancários, a estabilidade com 10
anos vem surgindo paulatinamente. A primeira classe a ganhar foram os ferroviários. E
a lei não é do Getúlio, como muita gente pensa, não. A lei é de Arthur Bernardes, de
1923, chamada lei Elói Chaves. 1923. Dava estabilidade com 10 anos de serviços aos
ferroviários. Depois aos portuários. Washington Luís deu , em 1926, aos portuários. Até
que em 1931, houve uma grande reforma das caixas de aposentadorias e pensões dos
serviços públicos. Naquele tempo nós tínhamos aqui a Light; a City – era inglesa –, de
esgoto. Então, essas ganharam a estabilidade com 10 anos, essas classes. Depois, em 33,
a outra classe que ganhou a estabilidade, era à medida que iam se criando os institutos
de previdência social. Foram os marítimos. Em 1933 os marítimos ganharam
estabilidade com 10 anos. Agora é que vêm os bancários. Em 34, duas classes ganharam
estabilidade com 10 anos. Foram criados dois institutos de previdência social: os
comerciários e os bancários. Agora é que você vai ver a mágica da coisa. Os bancários
fizeram uma greve aqui, fabulosa. Tinham um líder chamado Sidney de Castro, uma
coisa assim. Uma greve total. Conseguiram estabilidade com dois anos. De 1934 até a
vigência da Consolidação, em 1943, os bancários gozaram durante nove anos de
estabilidade somente com dois anos. Depois, quando veio a Consolidação de 43,
uniformizou todos com 10 anos, fora os direitos adquiridos dos bancários que já
tivessem... Mas você vê: o grupo de pressão era tão forte, tão eminente que eles
conseguiram estabilidade com dois anos. Foi a única classe que teve por lei, no Instituto
dos Bancários, pelo Decreto número 54... Aí você vê a força que eles tiveram. Naquele
tempo, é curioso, apesar de ser ditadura... porque de 30, na vitória da Revolução de 30,
de 24 de outubro até a Constituição de 16 de julho de 34, nós tivemos aqui o chamado
Governo Provisório. O segundo Governo Provisório da República. E era uma ditadura.
O Getúlio legislava por decreto. Nem era por decreto-lei, como no Estado Novo, essa
hipocrisia do decreto-lei. Era decreto mesmo. Mas de qualquer maneira, houve um forte
envolvimento sindical. E eu costumo dizer... e o José Murilo de Carvalho até me citou,
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ele assistiu uma conferência minha em que chamei aquele período de verdadeiro “porre
ideológico”. Você não imagina! O Manifesto Integralista é de outubro de 32, e eles
foram fechados em 3 de dezembro de 37, no dia em que eu me formei. E a filha de
Getúlio, a Alzirinha, também foi minha colega de turma. 3 de dezembro de 37. Então,
havia essa exacerbação do movimento sindical. De um lado, o pessoal de esquerda; e os
integralistas, a Igreja, o circulismo católico, esse homem que eu substituo na Academia
e que na época era um reacionário terrível, o senhor Alceu Amoroso Lima. Eu sou
daqueles que foram torcer pelo Hermes Lima no concurso de 33, e ele perdeu, ganhou o
Hermes Lima. Mas afinal, a Aliança Nacional Libertadora é de 35. De maneira que foi
um período de verdadeiro porre ideológico. Tinha a Liga Eleitoral Católica, tinha os
integralistas, tinha os socialistas, tinha os comunistas, os trotskistas. Era uma confusão
danada! O Filinto Müller, que foi chefe de polícia... Agora, a greve, desde a Revolução
de 30, a greve, se não era proibida, tinha que ser, antes de declarada, antes de
deflagrada, tinha que ser dado ciência aos empregadores, e tentar a conciliação da greve
perante essas comissões mistas de conciliação. Você pega esse decreto 21.396 e lá
instituía-se que se não tentasse a conciliação, a greve seria considerada ilegal.
José Sérgio: E o senhor presenciava, então, essa comissão de conciliação...
Evaristo: Ah, eu presenciava tudo isso. Eu era do lado dos trabalhadores. Eu tinha 18,
19, 20 anos e era do lado dos trabalhadores. Então, eu fui me interessando por isso. E
havia um sujeito do Ministério do Trabalho... O Ministério do Trabalho estava cheio de
ex-socialistas. Por exemplo, Joaquim Pimenta. Era procurador do Departamento
Nacional do Trabalho.
José Sérgio: Quando o senhor entrou, o seu pai já tinha saído...
Evaristo: Já tinha saído. O meu pai saiu em março de 32. O meu pai saiu junto com o
Collor, solidário com o Collor. O procurador-geral era um sujeito que fez a maior greve
na Bahia, que durou três dias e três noites, em 19. Chamava-se Agripino Nazaré. Era o
procurador-geral do Ministério do Trabalho. Também era procurador lá o Deodato
Maia, que escreveu um livro muito medíocre, mas escreveu um livrinho sobre a
regulamentação do trabalho, em 1912. Estavam Joaquim Pimenta, Agripino Nazaré, o
Deodato Maia; já tinha saído o Carlos Cavado, que era socialista e anticlerical, que o
Collor levou para o Ministério. Esse sujeito foi preso, fazendo um discurso socialista –
sendo do gabinete do ministro - no Ceará. Você vê a prisão dele naquele livro da Rosa
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 12 de 31
Maria Araújo, O Batismo do Trabalho, do qual fui prefaciador. Mas afinal, havia uma
efervescência criadora no Ministério, de reforma social. Quanto aos sindicatos, apesar
de ser uma ditadura, o Getúlio só vai engrossar depois de 27 de novembro de 35.
Depois da rebelião, da revolução comunista, da Intentona, como eles dizem. Eu me
lembro como se fosse hoje. Foi numa quinta-feira chuvosa, eu fiquei preso na cidade.
Mas depois, aí sim. É declarado o estado de guerra. Nílton Cavalcanti, pai do_Ladingen
Cavalcanti, que foi professor do seu pai11 e meu colega. Foi professor de Biologia da
Faculdade de Filosofia (F.N.Fi.). O Nílton Cavalcanti era um ex-integralista, um
general. Foi o chefe do estado de guerra. E o estado de guerra foi de 35 a 37. Em 10 de
novembro de 37 Getúlio dá o golpe e implanta o Estado Novo. Aí acabou a brincadeira.
Filinto Müller intervém nos sindicatos, prendeu os professores, os bancários... Foi uma
revolta, uma violência, uma coisa terrível. Mas 1931, 32, 33, 34 e praticamente quase
todo o ano de 35 foram anos de ebulição, de efervescência, de liberdade sindical, de
criação. Tentaram até, na Constituição de 34, aquela chamada “representação classista”,
que foi uma burla. Porque era ministro do Trabalho... O primeiro ministro foi o Collor,
de janeiro de 31 até março de 32. Aí veio o Salgado Filho. Agora você vê como é
curioso isso com o Getúlio. Eu chamo a atenção e ninguém presta atenção. Dizia o
Getúlio que no tempo do Washington Luís a questão social era uma questão de polícia.
Continuou sendo, nos tempos do Getúlio. Ele dava as suas benesses, sua legislaçãozinha
e tal. Mas se o trabalhador urinasse fora da bacia, continuava sendo questão de polícia.
Basta dizer que os elementos... Três elementos eu vou lhe dar os nomes. Porque antes
de 30, quem fazia a conciliação trabalhista eram os delegados de polícia. Eu consultei
no Centro Industrial, que fica ali no n. 15 da Avenida Calógeras, no terceiro andar,
quando eu escrevi aquele livro chamado Idéias Sociais de Jorge Street, eu consultei lá
as atas e o Centro se correspondia com o chefe de polícia. Ele se correspondia com o
chefe de polícia, e a polícia tentava conciliar - não dava porrada -, conciliar os
empregados e os empregadores. E quem era o quarto delegado auxiliar, que era o DOPS
da época? Joaquim Pedro Salgado Filho. Era o Salgado Filho. E quem é que vai ser
ministro do Trabalho depois do Collor, de 32 a 34? Salgado Filho vai ser o ministro do
Trabalho. Ele vinha com aquela prática dele da Quarta Delegacia Auxiliar. Depois,
outro que era também da polícia: Luís Augusto de Rego Monteiro. Corporativista,
11 O físico José Leite Lopes, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). e da Faculdade Nacional de Filosofia
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 13 de 31
muito católico,tinha sido delegado de polícia. Foi para o Ministério do Trabalho. E vou
te dar agora um nome curioso. O meu primeiro chefe chamava-se Francisco Eulálio do
Nascimento Silva Filho. Era pai desse que foi ministro da revolução, muito amigo do
Roberto Campos, o Luís Gonzaga. Luís Gonzaga Nascimento Silva. Era pai desse.
Tinha sido também delegado de polícia, e foi ser exatamente presidente de uma das
comissões mistas de conciliação. Você vê como é curioso isso, não é mesmo? Eles
traziam aquela prática da polícia de antes de 30. De modo que você vê que o Getúlio
não era tão anjinho como se pensa, não.
José Sérgio: E o senhor entrou lá através...
Evaristo: Do meu pai, que era muito amigo do Salgado Filho. Porque meu pai foi
revolucionário de 30. A revolução de 30 teve essa virtude. Ela não foi uma revolução de
profundeza. Eu digo isso nos meus livros. O próprio Joaquim Pimenta, que foi
revolucionário, ele fala nisso. Foi uma revolução de superfície, de oligarquias,
simplesmente briga de elites. Não mudou nada. Mas de qualquer maneira, foi um pouco
mais nacionalista. Criou dois ministérios, o Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio e o Ministério da Educação e Saúde. Ela não reformou propriamente. Mas de
qualquer maneira, significou um avanço. Agora, o bem da revolução é que ela levou
para o Ministério do Trabalho todos os antigos líderes socialistas. Convidou Maurício
Lacerda para ministro. O Maurício não aceitou. O Maurício não aceitou ser ministro do
Trabalho. Mas o Maurício fez o mesmo papel em 30 - veja como a vida é curiosa - que
o Carlos Lacerda vai fazer em 64. Ele é que foi pela América do Sul fazendo a
propaganda da revolução. O Maurício de Lacerda foi a Buenos Aires, foi a Montevidéu
falar sobre a Revolução de 30. Porque houve uma Revolução de 30 também na
Argentina. Em 30 também houve uma Revolução na Argentina. Isso é que é curioso.
Então, Evaristo de Moraes foi o primeiro consultor jurídico do Ministério do Trabalho.
Ele é que fazia quase tudo para o Collor, não é? Mas o Collor é que escrevia. Meu pai
dizia que era um jovem muito inteligente. E meu pai emprestava os livros, conversava
com ele... Levou Evaristo de Moraes, Agripino Nazaré, Carlos Cavado, Deodato Maia,
Joaquim Pimenta... Essa gente toda no Ministério do Trabalho. E os patrões ficaram
assustados. E o Getúlio então, nos primeiros discursos... Você pega a política trabalhista
de Getúlio, aquelas edições de 38, publicadas pelo José Olympio, saíram pelo José
Olympio, aqueles volumes todos do Getúlio; você vê lá o discurso dele, por exemplo, de
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 14 de 31
3 de janeiro de 31. Nesse dia fazia um ano de posse da Revolução. Ele então fala sobre a
política trabalhista; depois em 32 também. E nesses discursos você vê que o Getúlio se
coloca logo entre as duas classes. Ele levanta desde então a bandeira da conciliação do
trabalho e do capital. “Os dois são indispensáveis...” – esse linguajar que você está
cansado de ouvir! “Os dois são indispensáveis à produção nacional e não-sei-o-quê...”
Ele levanta a bandeira da conciliação. Ele não toma partido dos trabalhadores, não. E
mais tarde, em 33, quando ele começa já a Constituinte, ele praticamente acaba com o
Tenentismo. Porque os tenentes, na época, representavam um movimento, mais ou
menos, para-socialista. Inclusive o Juarez Távora foi do Partido Socialista, em 32. O
Plínio Salgado chegou a ser de um partido. Aí, quando viu que era socialista, pulou fora
e fez o Manifesto Integralista, em 32. Você vê que porre ideológico era isso! A Igreja, o
Integralismo...
José Sérgio: Na Faculdade de Direito, onde o senhor entrou, também havia esse...
Evaristo: Ah, havia! Nesse momento, por exemplo, dominava a esquerda. O grande
líder... O único retrato de professor que eu tenho na minha mesa de trabalho é de
Edgardo de Castro Rebelo. Baiano, Edgardo de Castro Rebelo era marxista e escreveu
um livro, “Mauá, restaurando a verdade”, contra aquele livro do Alberto Faria. Nós
tínhamos duas matérias só, no primeiro ano: Introdução à Ciência do Direito, cujo
professor Castro Rebelo; e Economia Política, do Leônidas de Resende, que escreveu
um livro grosso, deste tamanho, “A Formação do capital e seu desenvolvimento”. Foi a
tese dele. O Leônidas ganhou o Alceu em 32. O Alceu veio com uma tese de
Antropologia, “Economia pré-política”.
José Sérgio: Alceu Amoroso Lima?
Evaristo: É. “Economia pré-política”, em 32. E realmente era de uma grande erudição,
mas baseada na escola histórico-político-cultural austríaca, alemã, do deus único,
contrário ao evolucionismo e assim por diante. A matéria não era Economia Política. A
do Leônidas, não. “A Formação do capital e seu desenvolvimento”. Um livro grosso, e
tal. Ganhou. E entra o Hermes Lima, que vinha de São Paulo. Em 34, começa a dar
aulas o Hermes Lima. Tinha um positivista lá, meio socializante, o Hahnnemann
Guimarães, que morreu como ministro do Supremo. O outro, também, era Luís
Carpenter, socialista. Luís Carpenter.
José Sérgio: Já era ali onde é hoje a Faculdade de Direito?
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 15 de 31
Evaristo: Onde é hoje a UNE, na Rua do Catete. Em 38 é que saiu dali. Começou a ser
na Moncorvo Filho, número 8, exatamente no ano de 1938. A minha turma foi a última
turma. Eu me formei em 37. Em 37 foi na Rua do Catete. Depois mudou-se e ali ficou
sendo a Faculdade do Rio de Janeiro, UERJ depois. Mas então, o Castro Rebelo era o
mentor da Faculdade. E tinha também um pessoal integralista. Eu vivi a luta exatamente
de 32... Eu entrei para a faculdade em fevereiro de 33, e em 37, quando eu me formei,
foi exatamente a luta entre comunismo e integralismo. E o chefe integralista na
faculdade de Direito era o... Delamare. Alcebíades Delamare. Era um homem que
escreveu uma biografia maluca sobre Cristóvão Colombo. Mas era um integralista
danado. Esse era livre-docente. E havia lá os integralistas. Como Getúlio, naquela
época, estava dando mão forte aos integralistas, principalmente depois de 35, até 37,
eles iam para a faculdade de camisa verde, faziam baderna. E havia também um
movimento que durou pouco, do qual vocês têm pouca notícia, mas que era mais ou
menos para-integralista: o patrianovismo. Esses patrianovistas eram realistas,
monarquistas. Agora, ultimamente, quando andou se falando em monarquismo, andou
se falando um pouquinho de novo em patrianovismo. Então, o patrianovismo era uma
linha auxiliar do integralismo. E havia muita briga, muita luta. Aí a gente se reunia, os
sindicatos... De repente, “- lá vem a polícia!”, e todo mundo saia correndo. Então, daí o
meu interesse pelo movimento sindical, pelo movimento socialista, pelos trabalhadores.
Veio daí. E eu comecei a estudar. Ah, havia um outro socialista também no Ministério
do Trabalho, que escreveu um livrinho que vale a pena você ler. É de 33, o livro dele.
Francisco Alexandre. O Francisco Alexandre era velho socialista também. Foi no livro
dele que eu li pela primeira vez sobre o Congresso Socialista de 1906. Depois eu me
aprofundei, mas ele dá a relação. Acho que ele tomou parte, até. De modo que desde ali
eu comecei. E fiquei na Comissão Mista de Conciliação de 34 até 41. Eu me formei em
37. Mesmo formado, eu ainda era secretário.
José Sérgio: Depois de 38 havia conciliação, ainda, com o Estado Novo?
Evaristo: Havia, mas mudou a Intendência. A Comissão Mista existiu até 41, quando
foi criada a Justiça do Trabalho. Criada a Justiça do Trabalho, as Comissões Mistas
desapareceram. A Justiça do Trabalho foi criada, entrou em vigor, em primeiro de maio
de 41. E desde que o Getúlio criou as Juntas de Conciliação e Julgamento, com esse
mesmo nome que tem hoje... Foi em 22 de novembro de 32. Era um presidente
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 16 de 31
bacharel, um vogal empregado e um vogal empregador. Na Comissão Afonso Arinos,
da qual eu fiz parte em 86, 87, eu acabava com os classistas. É um absurdo, isso. Isso é
corporativismo, isso é um absurdo. E você sabe que os representantes classistas,
temporários, conseguiam aposentadorias como se fossem magistrados de concurso, com
salários de magistrados? É um absurdo! Os pelegos! Você já ouviu falar em Ary
Campista, que foi ministro do Tribunal Superior do Trabalho? Ele e muitos outros.
Então, esses pelegos eram juízes do Trabalho e foi criado o imposto sindical, em 40, já
no Estado Novo...
Evaristo: O Estado Novo deturpou inteiramente com o movimento sindical. Porque a
Constituição de 37 foi mais ou menos copiada da Carta de Lavoro de 27, de Mussolini.
E botou a greve como crime. Veio o código penal de 1940 e felizmente um socialista
tomou parte no código, que foi o Roberto Lira.
José Sérgio: Roberto Lira?
Evaristo: É. O Roberto Lira, o Nelson Hungria e um outro que eu não me lembro o
nome agora. Eram três. Quem fazia a exposição de motivos dos códigos, que vale a
pena você ler para ver como ele coloca a greve como motivo anti-social, como crime?
Francisco Campos. Ele fazia a exposição de motivos desses códigos todos. Então o
movimento sindical cessou. Cessou porque o Estado Novo não brincava em serviço; a
greve era proibida como movimento anti-social, nociva à produção nacional e assim por
diante. Isso em 37. E fizeram logo uma lei sindical referendando, ratificando esse
entendimento. É o decreto-lei. Aí já é decreto-lei, porque no Estado Novo, o Getúlio,
pelo artigo 180 da Constituição de 37, o Getúlio podia suprir... Ele fechou a Câmara e o
Senado, durante o Estado Novo, durante oito anos, de 37 a 45. Não houve Câmara, nem
Senado. E o Getúlio, pelo artigo 180, ele podia legislar. Então, com fundamento no
artigo 180... Chamava-se decreto-lei. Durante o Governo Provisório os atos do Getúlio,
do chefe de Estado, chamam-se decreto. No Estado Novo, até 45, chama-se decreto-lei.
E então, o 1.402 de 05 de julho de 39 – é o meu aniversário, 05 de julho, de modo que é
fácil guardar a data. 05 de julho de 39. Esse decreto-lei, 1.402, é ultra-reacionário,
fascista. E as eleições sindicais... A lista dos candidatos tinha que ir para o Ministério. O
Ministério mandava para o DOPS. Se o sujeito fosse suspeito de alguma coisa, saia da
lista. Essa lei criou o chamado “atestado negativo de ideologia”. Você tinha que provar
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 17 de 31
que não constava nada contra você, que era um bom moço. Foi um absurdo. Aí foi uma
sufocação do movimento sindical...
José Sérgio: E o senhor assistiu dentro do Ministério do Trabalho? Mudou muito a
composição?
Evaristo: Totalmente.
José Sérgio: Essa pessoas saíram? Aqueles antigos líderes...
Evaristo: O meu pai saiu logo em 32. O Pimenta continuou, mas sem forças; o
Agripino também continuou sem forças; o Deodato Maia morreu; Cavado pediu
demissão... Mudou inteiramente. Quem é que vai ser diretor do Departamento Nacional
do Trabalho? Luís Augusto de Rego Monteiro, antigo delegado de polícia. Diretor do
Departamento Nacional do Trabalho! Aí você vê como a coisa mudou.
José Sérgio: O Oliveira Vianna...
Evaristo: Quem é que vai ser consultor jurídico, substituindo meu pai, de 32 a 40,
exatamente durante o Estado Novo, que fez o 1.402, que fez a Justiça do Trabalho de
39, classista? Porque essa Justiça é corporativa, classista. Isso é um absurdo. Porque
esses pelegos se vendem ao capital, procuram estar sempre bem com o Governo...
Porque quem escolhe, quem nomeia é o Governo. Então essa gente não tem autonomia
deliberativa, de modo que é um absurdo a Justiça do Trabalho continuar corporativa. É
caríssima, eles recebem um dinheirão e em geral decidem com o presidente. Eles não
têm a competência. O que é pior no Tribunal Superior, com 17 membros, seis classistas.
O que é que eles vão discutir de Direito? Mas afinal de contas, mudou inteiramente a
feição. Desapareceu o movimento social, sindical, e entramos praticamente no fascismo,
no corporativismo fascista. O diretor do DNT é o Luís Augusto de Rego Monteiro, e
criam-se várias divisões... Por exemplo, há uma divisão DOAS, “doas a quem
doer”,eles diziam de deboche. DOAS quer dizer Divisão de Organização e Assistência
Sindical. Então, tinham os assistentes sindicais que assistiam as assembléias sindicais.
Tomavam parte nas assembléias, ficavam lá sentados. Quer dizer, um pobre diabo que
fosse mais afoito, que falasse mal do Governo, era logo preso, era fichado e tal. De
modo que era uma assembléia de cordeiros, bem comportados, com pelegos e tal. E esse
assistente sindical fazia relatório ao Ministério do Trabalho, ao Departamento Nacional
do Trabalho. E todo primeiro de maio havia a festa comemorativa do trabalho, com
Getúlio. As tais homenagens promovidas. O Ministério pagava. Porque antes de 42, de
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 18 de 31
ser cobrado o imposto sindical, os sindicatos viviam. No meu projeto de 86, do Afonso
Arinos, eu acabava com o imposto sindical. Mas o Sarney não mandou o projeto para a
Câmara, não. E até hoje a Constituição de 88 mantém indiretamente o imposto sindical,
o que é um absurdo. É uma boa Constituição, é avançada em certos pontos, mas
mantém. Então, o imposto sindical cria o pelego. Cada trabalhador paga um dia de
trabalho, para o imposto. E para os profissionais liberais e as empresas, eles têm lá uma
tabela. Agora você vê, de 38 a 42 os sindicatos resistiram. Faziam greves, convenções
coletivas, conseguiam muitos associados, contribuições e iam vivendo. E você vê que só
agora, depois de muitos anos é que ainda está se reformando... O Almir Pazzianoto
acabou com essa história do atestado negativo de ideologia. Acabou com muita coisa,
mas não acabou com tudo. Não pôde acabar com tudo, mas acabou com muita coisa.
Intervenção sindical... O artigo 528 da Consolidação... Você pega o artigo 528 e você
vê. Se sobre um sindicato aparecer qualquer suspeita, o Ministério intervém. E por
tempo indeterminado. A Revolução de 64 se serviu desse artigo. E houve mil e tantas
intervenções. De maneira que nós tivemos um movimento sindical pujante, mais
anarquista, anarco-sindicalista até 30... No Congresso de 06 saiu vitoriosa a tendência
anarquista. Desconfiavam muito dos socialistas. O meu pai, coitado, era socialista. Ele
achava que através de leis podia-se fazer a reforma social, através de deputados, de
Congresso... Os anarquistas não queriam nada com o Estado.
José Sérgio: O senhor foi fazer Direito influenciado pelo seu pai?
Evaristo: Ah, claro! O mais engraçado... Eu fiz enganado. Eu gosto mesmo é de
ciências, da Sociologia, da Filosofia... Tanto é que eu não advogo. Eu nunca advoguei.
Eu era secretário das Comissões Mistas. Quando Getúlio terminou, em 41, com as
Comissões Mistas, me nomeou procurador da Justiça do Trabalho. Acabou com a
Comissão e eu fui automaticamente...
José Sérgio: O senhor já era formado, né?
Evaristo: Eu já era formado e fui para a Bahia. Fiquei um ano na Bahia, como
procurador da Justiça do Trabalho. De 41 a 42. Depois, vim para o Rio. Agora, como eu
era contra o Getúlio... Eu escrevi o “Sindicato Único” onde eu critico duramente o
Getúlio.
José Sérgio: E o senhor fez esse livro a partir da experiência que o senhor tinha no
Ministério do Trabalho?
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 19 de 31
Evaristo: Ah, exato. Eu conhecia todos eles. José de Segadas Viana, que era diretor do
DNT, foi um dos autores da Consolidação também; o Alexandre Marcondes Filho, que
foi ministro do Trabalho. Até o golpe de 45, o Marcondes Filho foi ministro do
Trabalho. Então, eu fiz com essa minha experiência. E eu conhecia por dentro dele,
como era a podridão da intervenção sindical, da polícia, não havia movimento sindical
livre, o peleguismo e assim por diante. Essa deturpação toda que se viu até há pouco
tempo, e que agora está se alterando.
José Sérgio: O senhor como procurador, era na Justiça do Trabalho?
Evaristo: Justiça do Trabalho. E em geral. Mas eu trabalhava era com trabalhador
mesmo.
José Sérgio: E como é que o senhor dividia a vida profissional no Ministério e a vida
universitária?
Evaristo: Era muito fácil, porque meu pai, quando pediu ao Salgado Filho um emprego
para mim, porque eu era muito garoto... O meu pai era desquitado da minha mãe, e eu
morava com minha mãe lá em Inhaúma. Uma vida pobre... Eu só tive dois ternos antes
da minha vida universitária. O terno de casimira estava tão queimado de suor...
Mandava-se lavar um terno naquela época por seis mil réis. Era mil réis. O Cruzeiro
começou em 42. Então, eu não fui buscar o terno. Não valia a pena! (risos) Eu usava
chapéu. O estudante era obrigado a ir à aula de gravata. A gente ia de paletó, gravata,
chapéu. Eu usei chapéu até trinta e tantos. Eu tinha um chapéu de pano e um chapéu de
palha. A gente ia à aula assim. Era muito engraçado. Você vê retratos de estudantes
daquela época, estão todos vestidos assim. Eu morava com mamãe. E meu pai disse ao
Salgado Filho: “- Arrume um emprego para o rapaz – o rapaz era eu – em que ele possa
continuar estudando.” Eu não tinha ponto nem horário. Eu nunca tive ponto nem
horário. De maneira que eu ia na Comissão Mista todo dia. Funcionou no edifício d’A
Noite. No sétimo andar do edifício d’A Noite. Eu tinha uma chave da porta. Eu ia lá
todo dia e fazia as atas da Comissão, convocava as reuniões, aquele negócio todo. E
estudava. Eu freqüentava muitas aulas. As aulas eram de manhã. Hoje eu só saio da
cama às oito e meia. Mas também, eu só vou dormir à uma hora. Mas naquele tempo a
aula era oito ou nove horas da manhã. E fui um bom estudante. E com a influência do
Castro Rebelo. O Castro Rebelo é curioso. Porque ele foi professor do Osvaldo Aranha.
Então, o Aranha o colocou no Conselho Nacional do Trabalho. Ele foi do Conselho
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 20 de 31
Nacional do Trabalho, que hoje é o Tribunal Superior do Trabalho. O Castro Rebelo foi
do Conselho. De modo que eu, com a lição do Castro, com a lição do Leônidas na
faculdade, eu escrevi um estudo que foi minha estréia literária numa revista da
faculdade chamada “Idéia”. Era escrito com letra vermelha, maiúscula. Eu escrevi
“Marx e a Sociologia contemporânea”. Começava citando logo o Sorel, George Sorel.
Dizendo que enquanto o pessoal vive cego no meio do espaço, a sociologia marxista
enxergava, explicava e tal. E tinha lá na Comissão Mista de Conciliação um
representante de um empregador que era um grande construtor civil, Eduardo
Vasconcelos Pederneiras. Essa construtora dele desapareceu há uns dez anos. Eduardo
Vasconcelos Pederneiras. E o Eduardo Pederneiras era um sujeito magrinho, alto, e era
um menino, um rapaz. E eu era tão ingênuo que dei o ensaio para ele ler. Dei a revista
para ele ler. Distribuí. Ele disse: “- Isso parece com o seu pai. Isso é um estudo
comunista!” Eu ainda tenho aí a revista. Foi meu primeiro ensaio, em 1934. Depois
escrevi outro: “Nós e a espiritualidade”, no qual eu combatia aqueles que diziam que o
marxismo era um puro materialismo, era puro estômago. E cito um trecho muito bom,
que você pode procurar rever no “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica
alemã”, de Engels. Ele define o que é ideologia; ele diz que a ideologia, uma vez criada,
reage sobre a base. E não seria ideologia se ela não tivesse vida própria. De modo que
ela reage sobre a base, e não é só dizer que a base econômica é tudo, não. Então, eu fiz
esse trabalho também na revista Época. E continuei sempre nesse sentido. Em 37, na
Idéia, eu publiquei um estudo que eu acho que foi o primeiro no Brasil sobre Sociologia
do Conhecimento. “Marx e a Sociologia do Conhecimento”, que eu também tenho aí.
Porque você sabe que o Karl Mannheim se baseou muito em Marx, não é? E eu citava
principalmente aqueles estudos do Marx de 1844, “Os manuscritos de 1844”, em que
ele defende o homem é o produto de suas relações sociais. Eu citava isso. E pensava
que ia ser preso. Eu e o Délio Maranhão, que agora está muito doente12. Meu colega de
turma, Délio Maranhão, foi um grande juiz do Trabalho. Foi o maior juiz do Trabalho
que nós já tivemos. Ele está à morte. Está muito mal. Délio Barreto de Albuquerque
Maranhão. Grande amigo meu. E o Délio e eu fomos diretores da Idéia. E eu dizia: “-
Nós vamos ser presos a qualquer momento!” Mas não sei por quê não fui preso. Eu até
quando me refiro a Marx, eu digo brincando “aquele senhor barbado”. E daí a minha
12 Délio Maranhão veio a falecer em 1996.
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 21 de 31
inclinação e as minhas idéias por esse movimento, por esses estudos.
José Sérgio: O senhor foi se chegando para a Sociologia dentro da Faculdade de
Direito?
Evaristo: Dentro da Faculdade de Direito, exato. Engraçado, o primeiro livrinho de
Sociologia que eu li foi uma Sociologia, vamos dizer, formalista. O livro é interessante,
mas é anti-marxista. É do Leopold von Wiese, da Escola de Colônia. “Sociologia,
História e principais problemas”. Saiu tradução espanhola em 33, na Labor. E eu
comprei. O histórico é bom. Ele e o Simmel – de quem eu organizei uma coletânea para
a Ática - ele e o Simmel são os chefes . O Simmel morreu em 1918. Mas eles criaram o
que ele chamava Beziehungslehre_. A escola acho que era a da Teoria das Relações
Sociais. Então ficou uma coisa muito formalista, uma coisa muito abstrata. Basta dizer
que em um livro que eu tenho aí, “Sistema de Sociologia Geral”, do von Wiese, deste
tamanho, ele pretende relacionar todos os tipos de relações sociais. Chega a seiscentos e
tanto. É um absurdo! O Simmel, não. O Simmel dá, por exemplo, relação de
subordinação, relação de coordenação. Então, ele dá tipos abstratos de relações, dentro
das quais cabem vários conteúdos concretos. Por exemplo, subordinação: O capitão e o
soldado no Exército; o patrão e o empregado; antigamente, o marido e a mulher, pai e
filho. E vai por aí afora. É uma relação de subordinação. E vários exemplos históricos
concretos entram nesse tipo. Coordenação: é do mesmo nível. Sócios em uma
sociedade; os irmãos... E assim por diante. Foi meu primeiro livro. Depois continuei
estudando. Criamos na Faculdade de Direito uma Sociedade de Sociologia.
José Sérgio: Entre os estudantes?
Evaristo: Só estudantes.
José Sérgio: Quer dizer, os estudantes tinham um peso grande nessas instituições, na
publicação de coisas...
Evaristo: Ah, tinham. Você não imagina. Fazíamos comícios à vontade... Você passa
por lá, tem aquele portão de ferro. A única entrada daquele prédio é aquele portão de
ferro. Nós amarrávamos com cadeado e a polícia não podia entrar. Nós ficávamos lá
dentro e a polícia não podia entrar.
José Sérgio: E aí o senhor resolveu fazer faculdade de Filosofia...
Evaristo: Então, me formei em Direito em 37. Já gostava de Filosofia. Havia na
faculdade uma revista chamada A Época. Eu fui diretor quatro anos da seção de
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 22 de 31
filosofia, dessa revista A Época. O meu primeiro artigo foi criticando a filosofia anti-
intelectualista de hoje. Era o Conde von Keyserling_, era essa gente toda mística. Eu
metia o pau neles. A filosofia anti-intelectualista de hoje. Foi logo o meu primeiro
artigo. E nisso, com o Estado Novo, em princípios de 39 e fins de 38... Em 35 foi criado
no Brasil a Universidade do Distrito Federal, a UDF, do Anísio Teixeira, do Castro
Rebelo, do Hermes Lima... O Castro foi diretor de uma faculdade, o Hermes Lima foi
diretor de outra, o Anísio Teixeira... Então, eles acabaram com a UDF e criaram a
Faculdade Nacional de Filosofia, cujo primeiro vestibular foi na Praia Vermelha, No
antigo prédio da Faculdade de Medicina.. Não existe nem mais o prédio hoje. E eu
então fiz vestibular para Filosofia em abril de 39,já formado em Direito. Meu pai ainda
estava vivo. Meu pai vai morrer em junho de 39, de repente. Tirei primeiro lugar, em
Filosofia. Tenho prova disso.
José Sérgio: E o senhor fez o curso todo de Filosofia?
Evaristo: Fiz, mas interrompi muito tempo. Porque meu pai morreu em junho de 39;
minha mãe em dezembro de 39. Dois golpes na cabeça no mesmo ano.
José Sérgio: E o senhor tinha irmãos?
Evaristo: Tinha. O Jorge Moraes, que foi meu assistente na Faculdade de Direito, ainda
está vivo13. Um, o Paulo, que morreu em 85. Minha irmã Ivonete, que está viva. E esse
meu irmão Evaristinho14 é filho de outra mãe. Ele nasceu em 09 de abril de 33. Mas
essa senhora viveu com meu pai por dez anos e foi uma boa amiga dele, uma boa
mulher. E eu gosto dele, ele é meu amigo. Essa confusão toda dos nossos nomes... José
Sérgio: O senhor disse então que parou, com a morte de seu pai.
Evaristo: Parei o ano de 40; em 41 fui nomeado procurador da Bahia. Fui para a Bahia
e voltei só em 43. Me casei em dezembro de 43. Vou fazer bodas de ouro agora no dia
23, se Deus quiser. Me casei em 23 de dezembro de 43 e sou muito feliz.
José Sérgio: E “O Problema do sindicato único no Brasil”? Era uma tese?
Evaristo: Era uma tese. Eu ia fazer...
José Sérgio: Era para a Faculdade de Filosofia ou era para a Faculdade de Direito?
Evaristo: Era para a Faculdade de Direito.
José Sérgio: Era a tese de livre-docência?
13 Morreria em 1999. 14 Falecido em 1997.
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 23 de 31
Evaristo: Era a tese de livre-docência. O Getúlio estava no poder. O Getúlio ficou de
51 a 54. Eu levei 16 anos para ser promovido a procurador de primeira categoria. Eu fui
nomeado em 41 para segunda categoria, e só fui promovido em maio de 57. Fui
promovido por antigüidade. Eu já era professor e tudo. Ia sempre na lista por
merecimento, e fui promovido por antigüidade, porque não poderia deixar de ser. Era o
_Parsifal Barroso o ministro. Fui falar com o Castro Rebelo e ele me disse: “- É
bobagem você fazer essa tese, porque você está atacando aí um presidente e tal...”. E na
faculdade, o diretor era um sujeito do PTB, Luís Costa Carvalho. O Costa Carvalho, que
morreu com noventa e tantos anos. O Costa Carvalho era advogado do PTB e diretor da
Faculdade de Direito. Colega de turma do Castro. Eles não se gostavam. Ele disse: “-
Você vai fazer essa tese, vão te reprovar”. Eu então não fiz, e fiz outra tese: “A Justa
causa na rescisão do contrato de trabalho”. Fiz uma tese técnica. Eu já era procurador,
tinha muita experiência de rescisão de contrato de trabalho. Recolhi a tese do “sindicato
único” e fiz o concurso de livre-docente de Direito do Trabalho em março de 53.
Briguei com a banca... A banca era boa. Tinha o Santiago Dantas, o Arnaldo Menezes
da Fonseca, o Djacir Menezes, presidido pelo Hermes Lima, o Joaquim Pimenta e um
sujeito que não gostava de mim, que me perseguiu, que era o Oscar Stevenson,
professor de Direito Penal. O Santiago me elogiou muito, tirei distinção e tudo. O
Santiago já estava mudando, já tinha deixado o integralismo.
José Sérgio: E o senhor já era professor nessa época, de alguma das faculdades?
Evaristo: Ah, era. Porque o Hidelbrando Leal, muito vivo, pegava os alunos do último
ano, eles começavam a ensinar e ele recebia! Então, em 49, no último ano de
licenciatura, comecei como auxiliar de ensino a dar aulas de Sociologia no curso de
Jornalismo, na Faculdade de Filosofia. Era naquele salão grande. Todo mundo queria
ser jornalista... Depois, fui ensinar no segundo ano de Filosofia, que também tinha aula
de Sociologia. Mas então, em 50, 51 eu comecei a ensinar Sociologia no segundo ano
do curso de Filosofia. Dava provas, dava nota, dava tudo. E quando eu quis fazer a
docência de Sociologia – que foi em dezembro de 55, na Faculdade de Filosofia, na
Casa de Itália – eu pedi certidão disso tudo. Fiz a docência de Sociologia em dezembro
de 55. Porque podia fazer docência aquele que tivesse cursado a disciplina. E eu tinha
cursado a disciplina de Sociologia.
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 24 de 31
José Sérgio: Quer dizer, aí o senhor ficou entre a Faculdade de Direito e a Faculdade de
Filosofia, né?
Evaristo: Aí fiquei entre os dois. Em dezembro de 57, então... Pimenta fez em 56
setenta anos e caiu fora. E eu fui nomeado interino. Era livre-docente de Trabalho. Fui
nomeado interino lá na Faculdade de Direito. Aí, em dezembro de 57 eu fiz a cátedra de
Direito do Trabalho. Então fiquei catedrático de Direito do Trabalho de 57 pra cá e
livre-docente lá na nossa, de Sociologia. E ensinava. Depois, em 58 é que foi o grande
passo. Isso é que é engraçado. Vai caber a um homem que era da UDN... Não era muito
reacionário, não. Do ponto de vista teórico, não era, mas nas suas ações, ele era. Era
meu amigo. Você sabe que existia na UNESCO aqui na América três órgãos: a
FLACSO, no Chile, que era a faculdade, a escola; o Centro Latino-Americano de
Pesquisas em Ciências Sociais, que era no Rio de Janeiro, na Avenida Pasteur; e no
Uruguai, em Montevidéu, era o Comitê Administrativo. Temístocles Brandão
Cavalcante fazia parte desse Centro Administrativo. O Temístocles era especialista em
Ciência Política, ele gostava muito de Ciência Política. Catedrático de Direito
Administrativo da Faculdade de Ciências Econômicas, onde o Costa Pinto foi
catedrático. O Temístocles foi diretor 15 anos, lá. Em 51 ele apresentou um projeto no
Conselho Universitário criando o Instituto de Ciências Sociais. E foi bem planejado. O
Instituto de Ciências Sociais foi o primeiro instituto multidisciplinar, interdisciplinar, e
deixou de ser instituto de cátedra. Porque antes, cada catedrático era dono do seu
minifúndio. Deolindo Couto era dono do Instituto de Neurologia, o Deolindo Couto era
dono do Instituto de Psiquiatria, o Clementino Fraga do Instituto de Nutrição, e assim
por diante. O dele, não. Esse Instituto era dirigido por um comitê formado por sete
professores eleitos pelas Congregações. Dois da Faculdade de Ciências Econômicas:
Costa Pinto e Temístocles Cavalcante; dois da Faculdade de Filosofia: o Darcy Ribeiro
e o Victor Nunes Leal; dois da Faculdade de Direito: eu e Irineu de Albuquerque Melo;
e um do Museu Nacional: o Luís Castro Faria – que faz anos comigo, dia 05 de julho.
Então você vê que era interdisciplinar e desses sete saía o presidente do Instituto. E era
proibida a reeleição. Então, havia continuidade burocrática pelos sete. Cada ano era um
diretor. Foi fundado a 26 de dezembro de 58. Levou de 51 a 58 no Conselho
Universitário. O Temístocles lutou muito para isso sair. Parece mentira. Em 58 saiu.
Inauguramos no gabinete Pedro Calmon, ali na Praia Vermelha em 26 de dezembro de
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 25 de 31
58. E você vai ficar admirado de quem é que estava presente: o senhor Eremildo Viana.
O cachorro estava ali presente... Naquele tempo ele se metia a bom moço. Aí,
começamos a funcionar na Faculdade de Filosofia mesmo; depois, uma sala alugada no
IBGE; depois no Piauí 72, no Edifício Piauí, na Almirante Barroso, 72; e depois, em 61,
mudamos para a Marquês de Olinda 64, porque a Faculdade de Ciências Econômicas
mudou para a Praia Vermelha. E ficou ali até 70, setenta e poucos. Até ir para onde
vocês estão. E nesse Instituto eu fui diretor quatro vezes. Porque 58, 59, foi o Victor
Nunes Leal, professor de Ciência Política na Faculdade de Filosofia, e eu, vice-
presidente. O Victor era chefe da Casa Civil do Juscelino. Então, quem presidia era eu.
Em 60, eu fui eleito presidente. Quando ele foi fechado, em 68, depois da intervenção
fizeram um galpão nos fundos dele ali na Rua Marquês de Olinda – o galpão foi feito
em meses – e foi dissolvida a Faculdade de Filosofia, era reitor o Raimundo Moniz de
Aragão, que não é flor que se cheire. E então era presidente a Marina Vasconcelos. A
Marina Vasconcelos foi a última presidente do Instituto. E foi o primeiro presidente do
IFCS, o Djacir Menezes. Veio para o IFCS, porque eram três departamentos... O Moniz
Aragão dizia: “dividir para reinar”. Porque a Faculdade de Filosofia parava o tráfego!
Então, os reacionários começavam a gritar. O Carlos Lacerda, aquela turma toda. “ –
Uma faculdade no centro da cidade é um absurdo...” Então eles dividiram: Instituto de
Física, Instituto de Matemática, e o nosso trouxe Ciências Sociais, História e Filosofia.
Transformou-se em IFCS. Resultado: naquele momento acabava a pesquisa em
ciências sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E por muitos anos. Porque o
nosso Instituto só fazia pesquisa, não tinha ensino.. Como nenhum de nós era
matemático, nós tínhamos uma matemática lá para fazer os modelos estatísticos, os
modelos de pesquisa. Era a Vera Werneck. Era pesquisador lá o Luciano Martins; o
José Pessoa de Queirós, que suicidou-se, jogou-se de um edifício abaixo, ali na rua da
Carioca; o Maurício Vinhas de Queirós; a Stella Amorim.... Todos esses foram
pesquisadores. E um sujeito que depois foi trabalhar no CNPq, o Ivan de Freitas. E eu
consegui naquela época uma Rural Willys para os pesquisadores, porque eles iam às
fábricas, iam a comícios e tal... Realizávamos congressos, seminários, pesquisas... E
tinha um diretor de programa, que era para coordenar aquele pessoal. Nós tivemos dois.
Todos os dois já morreram. Um era muito bom. Em 51 ele teve que fugir do Brasil, era
de esquerda. O outro era católico, mas também era um homem de bem. O primeiro foi
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 26 de 31
Tomás Pompeu Acioli Borges. Era um sujeito alto e tal. Cunhado do Juraci Magalhães.
O Juraci está vivo ainda aí. Tomás Pompeu Acioli Borges. Morava aqui perto. Foi o
primeiro diretor de programas. Economista. Depois foi para a FAO. O segundo foi o
Manuel Diegues Júnior. Um bom homem. Professor de Sociologia da Católica. Era
católico, mas um homem decente, bom mesmo. Basta dizer que quando a Marina
morreu, só dois professores foram ao enterro dela. O Gilberto Velho diz que lembra
isso. Eu e o Diegues. Mais ninguém. Ninguém mais compareceu. A Marina, coitada, o
enterro foi num domingo, um sol danado, estavam lá alguns poucos alunos, a Hortênsia,
o Gilberto Velho... Só fomos eu e o Diegues. Mas esse Instituto foi uma experiência
formidáve!. Publicávamos uma revista, que você conhece. Uns quatro ou cinco
números. Colaboravam todos. Também representou o Museu Nacional um sujeito de
valor, que é o Roberto Cardoso de Oliveira. Foi presidente do Instituto também. Depois
foi para Brasília. E publicávamos umas monografiazinhas. O Melatti. Fez um trabalho
sobre índios, saiu lá. Aquele trabalho sobre o Matarazzo, do José de Souza Martins, é lá
do nosso Instituto. Um trabalho sobre mudança social, do Costa Pinto, é lá do nosso
Instituto.
José Sérgio: Havia relação com a sociologia de São Paulo?
Evaristo: A gente trazia gente para cá. Não a sociologia da Escola de Sociologia e
Política, mas o Florestan Fernandes, por exemplo, veio. Fizemos um simpósio aqui com
Florestan, lá no Instituto. E mantínhamos contato. Houve um congresso... Eu fui vice-
presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia. O Florestan, presidente. Isso foi em
1962. Florestan presidente; eu, vice-presidente. O Otávio Ianni, o Fernando Henrique
Cardoso... Eu examinei dois concursos de Sociologia. Um foi o do Ruy Coelho. Eu
examinei a docência dele em 1962. Ele fez uma tese sobre Augusto Comte. Ele era da
cadeira do Fernando Azevedo. Depois foi diretor da Faculdade de Filosofia de São
Paulo. E examinei em junho de 64 a cátedra do Florestan Fernandes.
José Sérgio: “A Integração do negro na sociedade de classes”...
Evaristo: Uma tese desse tamanho, um tijolo assim! E ele estava com medo de ser
preso, porque estava muito visado. Presidente da banca: um grande sujeito, Sérgio
Buarque de HolandaVeio o Thales de Azevedo da Bahia, eu, ele, aquele filósofo de
esquerda, eu tenho um livro dele aí, “A História das idéias no Brasil”...
José Sérgio: O Cruz Costa?
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 27 de 31
Evaristo: O Cruz Costa, o João Cruz Costa. Então, examinei o Florestan Fernandes. É
um grande sujeito, gosto muito dele até hoje. E você vê a coisa como fervia...!
José Sérgio: O senhor dava Sociologia Industrial nessa época?
Evaristo: É, eu mudei o nome para Sociologia do Trabalho. A princípio eu dava
Sociologia Geral e depois mudei para do Trabalho. Aí, quando veio 68, acabaram com o
Instituto e em 69 eu fui preso. Saí preso dessa casa. Saí preso em junho de 69 e deixei o
Instituto. E como eu era regente de cátedra, não era catedrático... Livre-docente, regente
de cátedra, eu não era propriamente vitalício, não tinha direito ao cargo. De modo que
saí de lá.
José Sérgio: O senhor era catedrático na Faculdade de Direito?
Evaristo: Na Faculdade de Direito.
José Sérgio: Mas estava licenciado?
Evaristo: Não estava, não. Porque a Constituição, em 67, permitia você poder fazer um
contrato. Eu tinha um contrato na nossa de Filosofia. Aí a Vanda Torok fez tudo para ir
para lá. A Vanda era formada em Geografia e História, com o Delgado de Carvalho, que
foi quem a iniciou na coisa. O Delgado foi um conquistador danado. Era um velhote
bonito e tal... Então ela fez tudo, me denunciou, aí eu deixei a Filosofia, em 69. Ela
denunciou aquela gente toda e tal. Basta dizer que em abril de 69 foram demitidos 12
professores do Instituto de Filosofia. 12 professores! Da universidade foram demitidos
ao todo, em todo o Brasil, 44 professores. A minha televisão ficava ali, e eu me lembro
que eu... Aquele sujeito do repórter Esso, Gontijo Teodoro, deu. E eu prestei atenção.
Desses 44 em todo o Brasil, só do nosso Instituto dava 12. Para você ver como era... Eu
ainda não fui preso nessa época, não. Eu ainda consegui ir vivendo. Larguei o Instituto e
fui vivendo. Me pegaram foi com o AI-5. Eu ainda fui colega do seu pai em 68 e 69, no
Conselho de Pesquisa, o “Conselhinho” da Universidade. Fui colega lá do José Leite
Lopes, no “Conselhinho”. Até que me pegaram em 69. Primeiro de setembro de 69 eu
fui preso. Fui aposentado. Preso eu fui em junho de 69. E a Sociologia, você vê... A
pesquisa... São Paulo distanciou-se muito do Rio de Janeiro. Distanciou-se muito.
Porque aqui a pesquisa agora é que está voltando. Agora é que está voltando, com
vocês. É outra geração. É outra geração muito diferente. Houve um hiato muito grande.
Costa Pinto15, que era muito pedante, muito prosa, muito vaidoso, mas que era um
15 Luís Aguiar Costa Pinto, falecido em ...
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 28 de 31
homem de talento, em 65 foi embora do Brasil e nunca mais voltou. Levou uma aluna
que é um doce de coco, a Sulamita. Era uma morena de cabelo preto. Ele foi trabalhar
na ONU. Ficou lá no Canadá e até hoje está lá. Esse não voltou mais. Aposentou-se nas
duas faculdades.
José Sérgio: E o livro do Sindicato Único, ele saiu como livro então?
Evaristo: Saiu como livro. Como saiu em 52, o Getúlio era presidente e eu atacava o
Getúlio nominalmente, ele promoveu o Flores da Cunha procurador de primeira
categoria do Rio Grande do Sul e não me promoveu. E o Guilherme Figueiredo recebeu
sua promoção em um ano. Ele escrevia numa revista chamada “Diretrizes”, do Samuel
Wainer. Uma boa revista. Então, ele escreveu lá uma notinha que eu tenho guardada.
Ele disse: “- O Evaristo de Moraes Filho, como disse que a legislação social já existia
antes de 30 e atacou o Getúlio Vargas não foi promovido, não-sei-o-quê...” E eu
sempre fui perseguido. O Dutra não gostava de mim, me chamava de comunista, me
mandou para a Bahia. Em 45, eu já casado, com uma filha, fui removido para a Bahia.
Fiquei por dois anos, de 45 a 47. E fui servir na Biblioteca Nacional. Rubem Borba de
Moraes, que já morreu, era diretor, me requisitou, eu fiquei no gabinete dele, ali
encostado, na Biblioteca Nacional. Fiquei lá até 47. Depois voltei à Procuradoria, e
assim por diante.
José Sérgio: Quer dizer, quando o senhor saiu da Procuradoria é que o senhor pôde se
dedicar integralmente à Universidade.
Evaristo: Exato. Eu estava na Procuradoria, mas lá não tinha ponto nem horário. Ficava
à vontade. Mas sempre com fama de comunista. No “ Sindicato Único” a minha tese era
defender o sindicato único antes do fascismo. Porque ele não é fascista. Porque na
França mesmo, Henri Capitant e Paul Cuche no fim do século passado já quiseram
fazer o sindicato único, o chamado sindicato “obrigatório”. Eles iam além. Você exercia
uma profissão e era obrigatoriamente sindicalizado. Daí eu chamar nesse meu livro o
sindicato de “a gestalt da profissão”. A configuração da profissão, a forma da profissão.
Uma solidariedade necessária, obrigatória. Nesse sentido, era revolucionário. Daí eu
citar Maxime Leroy - que era um grande socialista francês - no começo logo do livro,
dizendo que a unidade da profissão era igual à unidade do corpo. O circulismo católico
foi contra. O Alceu Amoroso Lima, em 34, conseguiu a pluralidade sindical. Para ter o
circulismo católico. E tinha o sindicato católico, o sindicato por empresa... Você
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 29 de 31
imagina o sindicato por empresa! A empresa pagava a sede do sindicato, pagava as
despesas do sindicato... E assim por diante. Matava o sindicato, né? Você deve ter visto
muito isto lá no Nordeste. O usineiro dominando o sindicato.
José Sérgio: O Joaquim Pimenta, ele também defendia o sindicato único?
Evaristo: Defendia. Ele tem um livro interessante, “Retalhos do passado”, são as
memórias dele. E um outro livro, “A Sociologia do Trabalho”, que publicou em 43
numa coleção que eu dirigia. Ele não era reacionário, não,ele era socialista.
José Sérgio: O senhor dirigia essa coleção nessa época, em 43? 16
Evaristo: Dirigia. Era co-editada por um editor de São Paulo, hoje eu acho que não
existe mais. Era um sujeito foragido da Polônia, me esqueço o nome dele. Quem
inaugurou a coleção, curioso isso, foi o Oliveira Vianna com “ Problemas de direito
sindical”. E ele procurou negar o fascismo dele. Era 43, a coisa já estava virando e ele
procurou negar. O segundo volume foi “Sociologia Jurídica do Trabalho”, do Pimenta;
depois o terceiro foi um livro já de Direito do Trabalho, Dorval Lacerda, “Renúncia do
Trabalho”.
José Sérgio: E o senhor resolveu editar o livro na época porque achava oportuno... O
momento era oportuno de fazer uma revisão...
Evaristo: Ah, é. Porque ainda estava em vigor a Constituição de 46. E estando em vigor
a Constituição de 46, como é que nós tínhamos ainda o imposto sindical? Como é que
nós tínhamos ainda a intervenção sindical? De maneira que eu citei alguns julgados do
Tribunal Federal de Recursos, uns contra e outros a favor do imposto sindical. E eu lutei
contra o imposto sindical, contra a intervenção sindical, contra o atestado negativo de
ideologia, pela liberdade e autonomia sindical e assim por diante. De modo que eu
publiquei o livro com essa intenção.
José Sérgio: O senhor chegou a dar cursos no Ministério do Trabalho?
Evaristo: Houve um curso lá. Um sujeito que era juiz do Trabalho, do Tribunal
Superior, chamado Astolfo Serra. Esse Astolfo Serra era maranhense e era um homem
livre, inteligente... Foi em 47. Eu me lembro que nas primeiras aulas eu ficava com o
coração pulando, porque era um curso para a multidão, era um curso livre, aberto. Não
há nada pior do que você dar aula para uma turma não-homogênea. Porque você dava
coisa que era adiantada para um, atrasada para outro; reacionária para um, avançada
16 O entrevistador refere-se à coleção Direito do Trabalho da Editora Max Limonad.
Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 30 de 31
para outro, assim por diante. Eu dei aulas lá de Introdução ao Direito do Trabalho. E
comecei meu ensino de Direito do Trabalho em 47. Porque só em 56 é que eu fui
nomeado catedrático interino de Direito do Trabalho. Em 51 eu já fui contratado para
Direito do Trabalho. Basta dizer que o Petrônio Portella, que foi Ministro da Justiça da
revolução foi meu aluno. “- Mas como é que você é meu aluno se você é da minha
idade?” “- Mas foi da sua primeira turma, o senhor era muito moço...” E realmente, eu
comecei em 1951. 1950 foi o primeiro ano em que eu dei aula de Direito do Trabalho
contratado. Naquele tempo não havia ainda a obrigatoriedade de fazer doutorado e essas
coisas todas não. O sujeito saía formado e podia fazer concurso. Então, eu comecei em
47 o curso no Ministério do Trabalho, ensinei lá muito tempo, depois também dei
Sociologia Industrial, depois em 49 eu comecei Sociologia na Faculdade de Filosofia,
em 50, Direito do Trabalho na Faculdade de Direito, aí nunca mais deixei. Até 69. Mas
só contaram como tempo de serviço meu de 54 para cá. Daí eu ter poucos anos e ganhar
uma miséria de anuênios. Foi uma vida de luta, sabe? Foi esse regime que acabou com
tudo. E eu sou o único catedrático - essa é que é a minha honra -, o único titular que não
aceitou a anistia no Rio de Janeiro. Eu sou o único. Só duas pessoas não aceitaram no
Rio de Janeiro: eu e uma moça chamada Elisa Frota Pessoa. A Elisa me telefonou e
disse: “- Mas Evaristo, você vai aceitar?” Eu disse: “- Não. Não fiz nada, fui preso. Não
fiz nada, fui aposentado. Não fiz nada, fui anistiado. Isso é paranóia coletiva, isso é
loucura. Eu não fiz nada!” Então, o Renato Caldas, que foi um relativo bom reitor –era
bisneto do Duque de Caxias, morreu num desastre de automóvel - escreveu uma carta a
todos os professores, a mim, a teu pai, a todos os professores, para nós não passarmos
pelo vexame de requerer a volta. Isso foi interessante. Mas eu escrevi uma carta para ele
de resposta dizendo que eu não aceitava. Ele me cantou, me cantou, esperou, e eu não
voltei. Até que prescreveu. Você tinha uns dois meses, um mês, para requerer. E eu não
requeri. De modo que só eu e a Frota Pessoa que não voltamos. Eu sou o único titular
que não voltou a ser professor. Porque eu sou aposentado com o tempo parcial de 69. É
uma miséria. Esse mês, com todo o décimo terceiro salário – eu recebi ontem a nota –
foi 292 mil cruzeiros. Com todo o décimo terceiro. E eu não voltei a ensinar; não
reassumi. Quem era diretor da Faculdade de Direito? Arthur Machado Paupério,,
integralista. Um sujeito nojento. Quem era professor de Sociologia criminal? José
Arthur Rios. Eu não voltei a ensinar. Em São Paulo não voltaram o Florestan Fernandes,
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o Ianni, o Gianotti. Mas no Rio, eu fui o único titular que não reassumiu a cátedra. Hoje
eu estaria com um salário bem maior, bem melhor. Mas pela minha idade eu tinha que
agüentar ainda... Em 79 eu tinha 62, 63 anos. Eu tinha que agüentar ainda uns sete anos.
Eu não ia agüentar. Eu ia brigar lá na Faculdade. Mas fui o único titular que não aceitou
a anistia. Quer dizer, para mim os algozes não foram anistiados porque eu não aceitei a
anistia.
José Sérgio: Porque aí, o senhor voltaria para a Faculdade de Direito, né?
Evaristo: De Direito, é. De Filosofia, eles tentaram. Me elegeram patrono lá, uma vez.
Eu fui patrono de uma turma na faculdade. Examinei um concurso lá, também. Mas
não voltei.