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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 1 de 31 ENTRE O DIREITO E AS CIENCIAS SOCIAIS: UMA EXPERIENCIA CENTRAL NA HISTORIA DOS ESTUDOS SOBRE TRABALHO E TRABALHADORES NO BRASIL José Sergio Leite Lopes A entrevista que se segue foi feita em 1992 para uma pesquisa então em andamento sobre a história social da sociologia do trabalho e dos trabalhadores. Como autor de um dos primeiros e mais importantes livros sociológicos sobre o sindicalismo no Brasil e como observador direto e privilegiado de parte da história do direito social no país, Evaristo de Moraes Filho se constituía em um entrevistado estratégico para a pesquisa. Como mostra a entrevista, não somente o livro O Problema do sindicato único no Brasil; seus fundamentos sociológicos domina a temática, o instrumental e a literatura do direito social e da sociologia , como a própria trajetória de seu autor, entre a Faculdade Nacional de Direito e a Faculdade Nacional de Filosofia, constrói a ponte entre essas duas áreas de conhecimento, essencial para o entendimento das relações entre o sindicalismo e o Estado no Brasil. Depois, o próprio Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Brasil, experiência inter-institucional original e de curta duração tão associada à trajetória de nosso entrevistado, assegurava essa ligação entre o direito e as ciências sociais – incorporadas em Evaristo como representante no ICS da Faculdade de Direito – sob a prevalência das ciências sociais. Talvez a força mesma dessa interconexão entre direito e ciências sociais que peculiariza a contribuição de Evaristo fosse paradoxalmente a fonte do esquecimento de seu livro pioneiro de 1952 sobre o sindicalismo na literatura subseqüente de sociologia do trabalho que se constitui em São Paulo. Voltada para a construção universitária pioneira da sociologia como centro hegemônico das áreas de ciências humanas na Universidade de São Paulo, a “escola paulista de sociologia”, localizada entre as cadeiras I e II de Sociologia da USP e a Escola Livre de Sociologia e Política, era um ambiente propício para o esquecimento de contribuições que não estivessem envolvidas no esforço implícito de autonomização da disciplina. Uma contribuição produzida assim na Faculdade de Direito, matriz essa que aquela escola pretendia distanciar-se naquele momento, passa despercebida pelos autores lidando com a temática do trabalho e do

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ENTRE O DIREITO E AS CIENCIAS SOCIAIS: UMA EXPERIENCIA CENTRAL NA HISTORIA DOS ESTUDOS SOBRE TRABALHO E

TRABALHADORES NO BRASIL

José Sergio Leite Lopes

A entrevista que se segue foi feita em 1992 para uma pesquisa então em

andamento sobre a história social da sociologia do trabalho e dos trabalhadores. Como

autor de um dos primeiros e mais importantes livros sociológicos sobre o sindicalismo

no Brasil e como observador direto e privilegiado de parte da história do direito social

no país, Evaristo de Moraes Filho se constituía em um entrevistado estratégico para a

pesquisa. Como mostra a entrevista, não somente o livro O Problema do sindicato

único no Brasil; seus fundamentos sociológicos domina a temática, o instrumental e a

literatura do direito social e da sociologia , como a própria trajetória de seu autor, entre

a Faculdade Nacional de Direito e a Faculdade Nacional de Filosofia, constrói a ponte

entre essas duas áreas de conhecimento, essencial para o entendimento das relações

entre o sindicalismo e o Estado no Brasil. Depois, o próprio Instituto de Ciências

Sociais da Universidade do Brasil, experiência inter-institucional original e de curta

duração tão associada à trajetória de nosso entrevistado, assegurava essa ligação entre o

direito e as ciências sociais – incorporadas em Evaristo como representante no ICS da

Faculdade de Direito – sob a prevalência das ciências sociais.

Talvez a força mesma dessa interconexão entre direito e ciências sociais que

peculiariza a contribuição de Evaristo fosse paradoxalmente a fonte do esquecimento de

seu livro pioneiro de 1952 sobre o sindicalismo na literatura subseqüente de sociologia

do trabalho que se constitui em São Paulo. Voltada para a construção universitária

pioneira da sociologia como centro hegemônico das áreas de ciências humanas na

Universidade de São Paulo, a “escola paulista de sociologia”, localizada entre as

cadeiras I e II de Sociologia da USP e a Escola Livre de Sociologia e Política, era um

ambiente propício para o esquecimento de contribuições que não estivessem envolvidas

no esforço implícito de autonomização da disciplina. Uma contribuição produzida assim

na Faculdade de Direito, matriz essa que aquela escola pretendia distanciar-se naquele

momento, passa despercebida pelos autores lidando com a temática do trabalho e do

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sindicalismo1. Não é por acaso que a obra de Evaristo é resgatada por José Albertino

Rodrigues, sensibilizado por sua observação participante do sindicalismo pelo viés da

instituição técnica de assessoria aos sindicatos por ele mesmo construída nos anos 50, o

DIEESE, e que fez levantamentos na Biblioteca Nacional e no Ministério do Trabalho,

no Rio de Janeiro, para a pesquisa que resultou em Sindicato e Desenvolvimento no

Brasil, de 1968. De fato, a recepção de O problema do sindicato único está relacionada

à atualização das conjunturas políticas favoráveis à crítica da estrutura sindical

brasileira: em 1962, quando do fortalecimento do movimento sindical e da publicação

de livros sobre as suas lutas no passado, a obra tem uma repercussão maior do que

quando de seu lançamento dez anos antes, em edição limitada sem editora, quando

então se relaxava timidamente o controle rígido prevalecente sobre os sindicatos de

trabalhadores, por ocasião do segundo mandato presidencial de Getúlio Vargas, eleito

em 19502. E em 1978, com o surgimento do movimento social tendo por centro a

atuação sindical no ABC paulista e em São Paulo, no declínio do regime militar, O

problema do sindicato único tem sua segunda edição publicada pela editora Alfa-

Ômega, prefaciada por Paulo Sergio Pinheiro, então estudioso da sociologia do trabalho

na Universidade de Campinas.

A dificuldade inicial na percepção da importância da contribuição do livro pelo

campo sociológico também se dá pela sua própria composição interna, elaborada para

ser uma tese de livre-docência para a Faculdade de Direito, com três capítulos baseados

numa interpretação da literatura internacional, sociológica e de direito público, com

1 Assim, como assinala Evaristo no posfácio à segunda edição de seu livro, Azis Simão, autor de Sindicato e Estado, livro fundamental na temática, publicado em 1966, não cita O problema do sindicato único na sua bibliografia; em Conflito Industrial e Sindicalismo no Brasil, outro livro de referência, de Leôncio Martins Rodrigues, também de 1966, ele é citado de passagem. O livro de Azis Simão guarda características de sensibilização através da experiência direta com o sindicalismo de São Paulo dos anos 30 a 50 que se assemelham às características comuns com o livro de Evaristo. O livro de Leôncio é fruto dos projetos coletivos formulados no Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho, associado à cadeira I de Sociologia da USP, coordenados por Florestan Fernandes. Ambos os estudos fazem parte de um esforço considerável e fundamental das ciências sociais brasileiras entre os anos 50 e 60, fazendo de São Paulo um laboratório essencial para o entendimento das questões sociológicas colocadas pelo Brasil.

2 No início dos anos 60, Evaristo está em ascensão no campo das ciências sociais, com sua participação na direção do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Brasil. Em 1962 foi vice-presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia, tendo por presidente Florestan Fernandes, como informa na entrevista, e em 1964 fez parte da banca do concurso para professor titular daquele professor na USP, examinando a tese da “Integração do negro na sociedade de classes”. Em 1963, com base em sua notoriedade na área do direito do trabalho onde O problema do sindicato único ocupa um importante lugar, é nomeado como autor e relator do anteprojeto de código do trabalho. Os anos posteriores a 1964 viriam interromper muito do que estava sendo feito nas ciências sociais em São Paulo e em particular no Rio de Janeiro.

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temas de uma generalidade em ordem decrescente – “o grupo social”, “a profissão e o

sindicato” e “o problema do sindicato único” – e somente o último capítulo dedicado à

experiência brasileira (capítulo IV - “no Brasil”). A interpretação original da história

sindical brasileira fica assim “escondida” pelos eruditos três capítulos iniciais, os quais

contam com uma cobertura bibliográfica impressionantemente atualizada para a época,

com citações nas línguas das edições originais ou de consulta (em francês, inglês,

espanhol, italiano e alemão; para as quais a segunda edição traz um apêndice com as

respectivas traduções), e que transita com intimidade por entre uma literatura

sociológica, de filosofia política, de história do Estado e do direito público3. E assim, a

sua própria interpretação do sindicalismo brasileiro, baseada numa experiência pessoal

de observação direta do aparato de Estado concernente às relações de trabalho, fica

menos evidenciada.

Essa entrevista, entre outros textos e entre outros depoimentos, ajuda a

transparecer a originalidade desta interpretação, associada à própria trajetória de

Evaristo de Moraes Filho. A ênfase do autor em seu desempenho escolar tanto na

entrevista, assim como nos seus currículos, aponta para uma busca meritocrática que se

consolida com sua entrada na Faculdade Nacional de Direito, núcleo expressivo de

formação, escolar e extra-escolar, de parte importante da elite política e intelectual

brasileira na primeira metade do século XX. Tem ele assim uma formação universitária

mais importante que a de seu pai, pioneiro na assessoria jurídica a associações operárias

e sindicatos de trabalhadores, publicista em seus diferentes sentidos, assim como

primeiro consultor jurídico do Ministério do Trabalho nos dois anos iniciais do governo

provisório saído da Revolução de 304. Do capital social de origem paterna nosso autor 3 Essa erudição fará de Evaristo um autor requisitado para o organização e a introdução de textos selecionados tanto de clássicos das ciências sociais (na coleção dirigida por Florestan Fernandes na Editora Ática a partir dos anos 70 e 80), quanto de homens públicos (reedições de livros de Evaristo de Moraes, organização de textos do empresário Jorge Street, por exemplo), quanto de questões sociais e correntes ideológicas (artigos e coletâneas sobre o socialismo e sobre o positivismo no Brasil, por exemplo).4 Como mostra Evaristo na grande introdução que faz à reedição de Apontamentos de Direito Operário, de Evaristo de Moraes, Evaristo pai começou a advogar desde os 23 anos como “rábula”, como se auto-designa no livro Reminiscências de um rábula criminalista (1922), tendo depois se bacharelado em 1916, com 45 anos, na Faculdade de Direito Teixeira de Freitas, em Niterói, para em seguida revalidar seu diploma na Faculdade de Direito da Capital Federal com novos exames por força de lei. No fim de sua vida é nomeado pelo presidente da República, em 1938, professor de direito penal na Faculdade Nacional de Direito, onde lecionou dois anos. Também significativo na sua formação escolar é o seu pertencimento como aluno gratuito no externato do curso secundário do Colégio São Bento, entre 1883 e 1886, e em seguida sua experiência durante três anos de jovem professor auxiliar nas matérias de português, geografia e história no mesmo colégio, onde formou uma rede de relações com colegas que no futuro pertenceriam à elite intelectual e política.

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traz a possibilidade de compreender do seu interior as continuidades e rupturas da

primeira república para a segunda, desde sua experiência como jovem secretário ainda

estudante da comissão mista de conciliação, onde assiste à argumentação de

empregadores e trabalhadores, desde a sua subseqüente carreira no Ministério do

Trabalho5, até a elaboração universitária desta experiência, entre o direito e as ciências

sociais. Ele pode assim, através da experiência de sua trajetória, recuperar e entender o

contexto histórico da trajetória de seu pai, apropriando-se dela, o que lhe faz

compreender de forma singular a importância dos movimentos sociais e da discussão

pública das leis sociais antes de 1930, sem deixar de ver a importância e a

especificidade das transformações posteriores. Isto se evidencia no capítulo IV de O

Problema do Sindicato Único, nas introduções circunstanciadas feitas pelo autor a

livros reeditados de seu pai, assim como nos prefácios a teses de história e ciências

sociais publicadas.

Se a experiência política de Evaristo de Moraes se dá na advocacia a

movimentos sociais e na sua prática de publicista, isto é em círculos políticos e

intelectuais extra-universitários, a de Evaristo de Moraes Filho se inicia na sua vivência

estudantil na Faculdade de Direito, no período por ele mesmo denominado de “porre

ideológico” do início dos anos 30. Ali ele encontra professores que o marcaram e

também se engaja numa atividade extracurricular de colaboração em jornais e revistas

estudantis, publicando ensaios que antecipam sua vasta produção futura. Com base

nessa intensa vida intelectual e política encontrada na faculdade ele pode ter uma

bagagem crítica para ver de forma distanciada a construção política e administrativa do

Estado Novo e os desdobramentos e continuidades de algumas de suas políticas

públicas no período democrático subseqüente, e fazer, em especial, a crítica da

permanência da estrutura sindical corporativista. Essa pulsão crítica, potencializada por

sua vivência estudantil, é feita no entanto de modo a incorporar aspectos de uma

herança anterior e a reinterpretá-la em outro sentido. Pois, por outro lado,a socialização

na faculdade parece fazer-lhe incorporar a sua tradição de erudição, suas redes de

sociabilidade, os seus ritos de instituição como os concursos, as suas disputas, o seu

consenso no dissenso. Ele é assim um mediador e um renovador entre períodos 5 No posfácio à segunda edição de O Problema do Sindicato Único, Evaristo assinala: “Cria autêntico do Ministério do Trabalho, dentro dele transcorreu toda minha carreira funcional até final aposentadoria, voluntária, em novembro de 1966” (p. 323). (Já a aposentadoria universitária, na UFRJ, em 1969, não será voluntária...).

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históricos e tradições de pensamento diferentes, produzindo uma síntese interpretativa

original. Como se vê no final do capítulo 4 de O Problema do Sindicato Único, Evaristo

trabalha com a problemática de sucessivos autores do pensamento social brasileiro –

Euclides da Cunha, Tobias Barreto, Capistrano de Abreu, Oliveira Vianna, Sergio

Buarque de Holanda, Gilberto Freyre – para ilustrar as tendências levando ao

insolidarismo da população brasileira ao longo da história, e a propriedade que teria o

sindicato, e de preferência o sindicato único por profissão ou categoria profissional, de

reverter esse quadro, inculcando tendencialmente a associatividade. Mas se o sindicato

único é fundamentado pelo autor como o mais apropriado pela literatura internacional

por ele analisada, para a defesa das classes trabalhadoras em geral e para as brasileiras

em especial, ele o seria no entanto se destituído de complementos institucionais

implantados durante o Estado Novo (regulamentares e de prática administrativa), como

textos copiados da Carta de Lavoro do regime fascista italiano (cópia esta que ele é o

primeiro a assinalar), como o controle ministerial sobre os sindicatos (com o seu poder

de intervenção), o imposto sindical, o estatuto padrão, o atestado ideológico dos

dirigentes. Essas críticas, feitas em 1952, antecipam e fundamentam tentativas

posteriores de reforma da estrutura sindical, nas conjunturas de ascensão da

associatividade e mobilização sindicais, em 1963 e em 19886.

Em diferentes dimensões, portanto, Evaristo é um mediador entre tradições de

pensamento diferentes, por um lado, entre os reformadores sociais dos anos 20 e

começo dos anos 30 e os reformadores dos anos 80, passando pelos do início dos anos

60; por outro lado, entre o pensamento social brasileiro transmitido nas principais

faculdades de direito e sua apropriação pelas ciências sociais do início dos anos 50 e as

ciências sociais do trabalho das gerações pós-graduadas desde o final dos anos 70

(como sinalizado pelo prefácio de Paulo Sergio Pinheiro à segunda edição de O

Problema do Sindicato Único).

Esse princípio da sensibilidade ao equilíbrio entre herança e ruptura na passagem

da memória entre diferentes gerações, Evaristo tira do modelo da passagem entre as

décadas de vinte e de trinta, atravessadas por efeitos de obscurecimento, dadas pelas

pré-construções eruditas baseadas em eventos políticos como a Revolução de 30 e o

6 Em 1963 Evaristo de Moraes Filho foi chamado pelo ministro João Mangabeira para ser autor e relator de um anteprojeto de código do trabalho; em 1988 fez parte da Comissão Afonso Arinos que precedeu a Constituição de 1988, na parte referente às leis do trabalho.

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Estado Novo. Entre essas duas décadas, com efeito, havia sido naturalizada entre

historiadores e sociólogos uma barreira ligada tanto a uma superestimação das rupturas

em detrimento das continuidades no dimensionamento da natureza empírica da

transformação, quanto a especializações dos próprios historiadores em periodizações

preestabelecidas. Por ocasião de prefácios a livros baseados em teses das novas

gerações de pós-graduados dos anos 70 e 80, Evaristo teve a ocasião de explicitar a

referida sensibilidade, que já está contida em O Problema..., e que se manifesta também

na entrevista a seguir. Em livro por ele prefaciado, Ângela de Castro Gomes atravessa a

barreira daquelas duas décadas, podendo assim constatar a importância da atuação da

burguesia em defesa de seus interesses, embora a forma de sua atuação tivesse mudado

de uma década para outra, corrigindo assim a minimização, corrente na literatura

anterior, da atuação empresarial diante do Estado pós-30. A quebra analítica da barreira

entre as duas décadas pela autora foi prontamente assinalada por Evaristo de Moraes

Filho, ele próprio um autor pioneiro na desconstrução da visão que privilegia o Estado

pós-30 como único produtor das leis sociais e do sindicalismo.7 O prefaciador então se

anima a desenvolver por escrito aquilo a que se refere, na entrevista a seguir, com mais

detalhes colaterais suscitados pela lógica da oralidade.

Evaristo é estimulado pelo livro que prefacia a tecer considerações sobre como

uma lei instituída em 1923, a Lei Eloi Chaves, vai ter grande importância, de forma não

prevista e quase despercebida, em toda a estrutura sindical montada após os anos 1930,

chegando a ser incorporada à CLT em 1943. A gênese dessa medida esteve ligada à lei

que regia o funcionamento da caixa previdenciária dos ferroviários, onde a estabilidade

após os 10 anos de trabalho era um dispositivo de caráter contábil. Tal dispositivo,

anterior à leva legislativa dos anos 1930, vai ser retomado tal e qual nas leis que regem

as caixas de outras categorias profissionais, como a dos bancários ou a dos marítimos, e

7 “Mostra a Autora muito bem como 30 não significou nenhum rompimento radical com o passado, nem remoto nem recente. As lideranças empresariais passaram intactas para o novo regime, como viria a acontecer igualmente com as lideranças operárias colaboracionistas e com as oligarquias estaduais. Tontearam um pouco, mas não chegaram a ir à lona; logo refeitas, retomaram as rédeas dos seus interesses, das suas associações ou de seus domínios regionais. (...) Outro tema tratado pela Autora é o que diz respeito à destruição do ‘mito da outorga’ da legislação do trabalho, mito este construído e cultivado pelos revolucionários de 30 e principalmente a partir de 37, com o Estado Novo. (...) Não podemos silenciar que nos coube a honra de haver iniciado essa derrubada. O nosso O Problema do sindicato único no Brasil, aparecido em princípios de 1952, leva por motivação justamente o combate ao mito.” In Ângela C. Gomes, Burguesia e trabalho; política e legislação social no Brasil 1917-1937. Rio: Campus, 1979, p. 15.

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vai ser retomado também, nos mesmos termos, na CLT8. Ele consagra e faz desse

instrumento de estabilidade previdenciária o mecanismo de uma estabilidade mais geral,

sustentando a implantação de uma organização sindical que os redatores das leis viam

como antídoto a uma “falta de solidariedade” e a uma insuficiente propensão à

associação que seria, segundo esses juristas e pensadores sociais, intrínsecas ao povo

brasileiro. Evaristo dá assim uma ilustração de fenômenos históricos para os quais Max

Weber e depois Norbert Elias chamavam a atenção, apontando para os

desenvolvimentos históricos “cegos”, processos históricos inintencionais. Essa

ilustração de uma lei que “fura” a “barreira” entre as duas décadas e vai se instalar,

quieta, na CLT, compondo o estatuto da estabilidade adquirida após 10 anos de serviço,

vai ter importância para a estrutura de delegados sindicais do movimento operário entre

1945 e 1964, e dali só será desalojada pela introdução do FGTS em 1966. Na entrevista,

Evaristo salienta a mobilização e a força social de certas categorias profissionais, como

por exemplo os bancários no início dos anos 30. Os testemunhos e contribuições de

observações pessoais que recheiam os prefácios de Evaristo a livros provenientes de

teses9, são estimulados pela surpresa e encantamento com o trato rigoroso e revelador

dado ao material empírico, manuseio característico de uma nova geração de

historiadores e cientistas sociais que o ex-diretor da experiência (interrompida pela

repressão pós-64) do Instituto de Ciências Sociais da UFRJ tem diante dos olhos – esse

produto da nova pós-graduação em ciências sociais e da nova investigação histórica

incorporada por pesquisadores vinculados a uma pluralidade de instituições 10.

A entrevista que se segue desenvolve e sugere estes e outros temas através do

sabor da oralidade e do humor com que Evaristo de Moraes Filho auto-analisa a sua 8 Essa análise, já presente em O Problema..., será desenvolvida, através da expressão cidadania regulada, por Wanderley Guilherme dos Santos em Cidadania e Justiça, Rio: Campus, 1979. 9 Um outro prefácio é feito ao livro de Rosa Maria Barboza de Araújo, O Batismo do Trabalho; a experiência de Lindolfo Collor. Rio: Civilização Brasileira, 1981.10 E presente inclusive nas ciências sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, nas gerações subseqüentes às do ICS, onde Evaristo pode inclusive encontrar trabalhos que guardam uma relação temática com sua produção e uma relação emocional e afetiva com ele próprio, como por exemplo os de Regina Lúcia de Moraes Morel, “A ferro e fogo: construção e crise da família siderúrgica – o caso de Volta Redonda; tese de doutorado, Sociologia/USP, 1989; da mesma autora, “História incorporada e identidade coletiva entre trabalhadores aposentados da CSN”, pp. 61-96, in Alice Abreu (org.), O Trabalhador Carioca, estudos sobre trabalhadores urbanos no Rio de Janeiro, Rio: Ed. JC, 1995; Elina G. da Fonte Pessanha & Regina de Moraes Morel, “Gerações operárias: rupturas e continuidades na experiência de metalúrgicos no Rio de Janeiro”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 17, ano 6, out. 1991; ou Regina L. de Moraes Morel e Wilma Mangabeira,“ ‘Velho’ e ‘novo’ sindicalismo e uso da justiça do trabalho: um estudo comparativo com trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional”, Dados, vol. 37, n. 1, 1994.

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experiência profissional e humana; esta experiência que sabemos importante para a

compreensão de um autor ocupando uma posição central numa história social das

ciências sociais que lidam com o trabalho e os trabalhadores no Brasil.

ENTREVISTA COM EVARISTO DE MORAES FILHO

Data: 08 / 12 / 1992

Local: residência de Evaristo de Moraes Filho

Entrevistador: José Sérgio Leite Lopes

José Sérgio:. Nessa entrevista gostaria de saber um pouco na sua carreira, sua história

de vida, como é que o senhor chegou a elaborar o livro O Problema do Sindicato Único

no Brasil. Era uma tese?

Evaristo: Foi tese, mas eu não cheguei a defender. Eu fiz outra tese.

José Sérgio: Então, era isso. Como é que o senhor chegou a esse trabalho. Porque o

senhor começou no Ministério do Trabalho desde cedo...

Evaristo: Eu tomei posse no Ministério do Trabalho a 25 de abril de 1934. Estava

começando o meu segundo ano de Direito. Tinha 19 anos de idade. Era secretário das

comissões mistas de conciliação. Essas comissões mistas de conciliação, que foram

extintas, foram criadas pelo decreto 21.396, de 12 de maio de 32. A exposição de

motivos do Collor, do Fernando Collor é muito boa, vale a pena você ler.

José Sérgio: Do Lindolfo...

Evaristo: Do Lindolfo. Fernando, veja você...! O veneno invade a minha casa! (risos)

Veja você! (...) Mas voltando à história: o Lindolfo Collor, você sabe, ele era mais ou

menos positivista, e na época ele era farmacêutico. Ele não era formado em Direito, não.

Mas era um homem culto, muito inteligente, antigo jornalista, antigo deputado. Tinha

sido republicano, da corrente de Júlio de Castilho, do Getúlio, Borges de Medeiros e

assim por diante. Então, ele tinha aquela idéia fixa de integrar o proletariado na

sociedade contemporânea. E na exposição de motivos número 19.770 - era o primeiro

decreto sobre sindicalização depois da Revolução de 30, o 19.770, de 19 de março de 31

–, nesse decreto ele chega a citar Augusto Comte nominalmente. Ele cita Comte

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nominalmente! Quer dizer, vê-se bem a influência castilhista. Já na Constituição de

1891, do Rio Grande do Sul, que aliás deu muita amolação a Rui Barbosa, Júlio de

Castilho prevaleceu-se da Federação, do federalismo da República, e fez uma

Constituição inteiramente independente; independente da Constituição Federal de 24 de

fevereiro de 91. E já dava alguns direitos trabalhistas, alguma coisa e tal. E eles tinham

essa idéia fixa de integrar o proletariado na sociedade moderna. E a exposição de

motivos que criou as comissões mistas de conciliação é do Collor. Vale a pena você ver

um livro do João Alfredo Lousada chamado “Legislação Social Trabalhista”. É de 1933,

editado pelo Ministério do Trabalho. Você encontra aí na biblioteca [refere-se à sua

famosa biblioteca pessoal]. Ele escreve todas as exposições de motivos do Collor. E

naquele tempo, engraçado... Um pouco porque ele era um entusiasta relativamente

moço e Ministro do Trabalho, as exposições são bem feitas. Ele chega a falar em lutas

de classes, embora procurando apagá-las, acabar com elas. E essas comissões mistas de

conciliação exatamente têm esse papel. Elas eram compostas de seis vogais: três de

empregadores e três empregados; e presidida por um jurista. Um jurista as presidia. Eu

fui secretário das duas, aqui no Rio de Janeiro. Elas não tinham um poder judicante;

eram só de conciliação. Às vezes se fazia uma convenção coletiva, entre sindicatos de

empregados e de empregadores. Levava-se às vezes 10, 8, 12 sessões. Era cansativa

aquela negociação... Mas era interessante. Então, eu comecei a entrar em contato com o

movimento sindical brasileiro daquela época. E uma coisa que ainda está pedindo um

autor é o movimento sindical dos bancários e dos professores. Em São Paulo, uma

moça, cujo livro eu tenho, mas não me lembro o nome, fez sobre o sindicato dos

bancários.

José Sérgio: Letícia Canedo.

Evaristo: É. Mas no Rio de Janeiro os bancários faziam greves terríveis, em 33, 34. Os

professores também. Os professores, por exemplo, eram dirigidos por trotskistas. Eu fui

aluno de um deles, que era um grande sujeito, cuja memória precisa vir à tona. Sempre

que eu posso, eu o cito. Chamava-se Rodolfo Coutinho. Pernambucano... ou de uma

família de Pernambuco. E o Rodolfo Coutinho suicidou-se em 1953; jogou-se embaixo

de um trem na estação de São Cristóvão. Foi preso em 35. Então, ele e o Branco – não

me lembro o primeiro nome do Branco - eram os diretores do sindicato dos professores.

Ele era trotskista. Trotskista, casado com uma alemã. Viveu um pouco na União

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 10 de 31

Soviética, esteve na Alemanha muito tempo. Ele foi meu professor de alemão. Era um

sujeito fabuloso. Foi o Rodolfo Coutinho que, junto com Cristiano Cordeiro, fundou em

1919 o primeiro centro de estudos marxistas do Brasil, em Recife. 1919, um centro de

estudos marxistas. O Foster Dulles, naquele livro dele, “O comunismo no Brasil, 1935-

1945”, ele cita isso. Fundou o primeiro centro de estudos marxistas no Brasil. Era um

sujeito fabuloso. E para você ver a importância dos bancários, a estabilidade com 10

anos vem surgindo paulatinamente. A primeira classe a ganhar foram os ferroviários. E

a lei não é do Getúlio, como muita gente pensa, não. A lei é de Arthur Bernardes, de

1923, chamada lei Elói Chaves. 1923. Dava estabilidade com 10 anos de serviços aos

ferroviários. Depois aos portuários. Washington Luís deu , em 1926, aos portuários. Até

que em 1931, houve uma grande reforma das caixas de aposentadorias e pensões dos

serviços públicos. Naquele tempo nós tínhamos aqui a Light; a City – era inglesa –, de

esgoto. Então, essas ganharam a estabilidade com 10 anos, essas classes. Depois, em 33,

a outra classe que ganhou a estabilidade, era à medida que iam se criando os institutos

de previdência social. Foram os marítimos. Em 1933 os marítimos ganharam

estabilidade com 10 anos. Agora é que vêm os bancários. Em 34, duas classes ganharam

estabilidade com 10 anos. Foram criados dois institutos de previdência social: os

comerciários e os bancários. Agora é que você vai ver a mágica da coisa. Os bancários

fizeram uma greve aqui, fabulosa. Tinham um líder chamado Sidney de Castro, uma

coisa assim. Uma greve total. Conseguiram estabilidade com dois anos. De 1934 até a

vigência da Consolidação, em 1943, os bancários gozaram durante nove anos de

estabilidade somente com dois anos. Depois, quando veio a Consolidação de 43,

uniformizou todos com 10 anos, fora os direitos adquiridos dos bancários que já

tivessem... Mas você vê: o grupo de pressão era tão forte, tão eminente que eles

conseguiram estabilidade com dois anos. Foi a única classe que teve por lei, no Instituto

dos Bancários, pelo Decreto número 54... Aí você vê a força que eles tiveram. Naquele

tempo, é curioso, apesar de ser ditadura... porque de 30, na vitória da Revolução de 30,

de 24 de outubro até a Constituição de 16 de julho de 34, nós tivemos aqui o chamado

Governo Provisório. O segundo Governo Provisório da República. E era uma ditadura.

O Getúlio legislava por decreto. Nem era por decreto-lei, como no Estado Novo, essa

hipocrisia do decreto-lei. Era decreto mesmo. Mas de qualquer maneira, houve um forte

envolvimento sindical. E eu costumo dizer... e o José Murilo de Carvalho até me citou,

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 11 de 31

ele assistiu uma conferência minha em que chamei aquele período de verdadeiro “porre

ideológico”. Você não imagina! O Manifesto Integralista é de outubro de 32, e eles

foram fechados em 3 de dezembro de 37, no dia em que eu me formei. E a filha de

Getúlio, a Alzirinha, também foi minha colega de turma. 3 de dezembro de 37. Então,

havia essa exacerbação do movimento sindical. De um lado, o pessoal de esquerda; e os

integralistas, a Igreja, o circulismo católico, esse homem que eu substituo na Academia

e que na época era um reacionário terrível, o senhor Alceu Amoroso Lima. Eu sou

daqueles que foram torcer pelo Hermes Lima no concurso de 33, e ele perdeu, ganhou o

Hermes Lima. Mas afinal, a Aliança Nacional Libertadora é de 35. De maneira que foi

um período de verdadeiro porre ideológico. Tinha a Liga Eleitoral Católica, tinha os

integralistas, tinha os socialistas, tinha os comunistas, os trotskistas. Era uma confusão

danada! O Filinto Müller, que foi chefe de polícia... Agora, a greve, desde a Revolução

de 30, a greve, se não era proibida, tinha que ser, antes de declarada, antes de

deflagrada, tinha que ser dado ciência aos empregadores, e tentar a conciliação da greve

perante essas comissões mistas de conciliação. Você pega esse decreto 21.396 e lá

instituía-se que se não tentasse a conciliação, a greve seria considerada ilegal.

José Sérgio: E o senhor presenciava, então, essa comissão de conciliação...

Evaristo: Ah, eu presenciava tudo isso. Eu era do lado dos trabalhadores. Eu tinha 18,

19, 20 anos e era do lado dos trabalhadores. Então, eu fui me interessando por isso. E

havia um sujeito do Ministério do Trabalho... O Ministério do Trabalho estava cheio de

ex-socialistas. Por exemplo, Joaquim Pimenta. Era procurador do Departamento

Nacional do Trabalho.

José Sérgio: Quando o senhor entrou, o seu pai já tinha saído...

Evaristo: Já tinha saído. O meu pai saiu em março de 32. O meu pai saiu junto com o

Collor, solidário com o Collor. O procurador-geral era um sujeito que fez a maior greve

na Bahia, que durou três dias e três noites, em 19. Chamava-se Agripino Nazaré. Era o

procurador-geral do Ministério do Trabalho. Também era procurador lá o Deodato

Maia, que escreveu um livro muito medíocre, mas escreveu um livrinho sobre a

regulamentação do trabalho, em 1912. Estavam Joaquim Pimenta, Agripino Nazaré, o

Deodato Maia; já tinha saído o Carlos Cavado, que era socialista e anticlerical, que o

Collor levou para o Ministério. Esse sujeito foi preso, fazendo um discurso socialista –

sendo do gabinete do ministro - no Ceará. Você vê a prisão dele naquele livro da Rosa

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 12 de 31

Maria Araújo, O Batismo do Trabalho, do qual fui prefaciador. Mas afinal, havia uma

efervescência criadora no Ministério, de reforma social. Quanto aos sindicatos, apesar

de ser uma ditadura, o Getúlio só vai engrossar depois de 27 de novembro de 35.

Depois da rebelião, da revolução comunista, da Intentona, como eles dizem. Eu me

lembro como se fosse hoje. Foi numa quinta-feira chuvosa, eu fiquei preso na cidade.

Mas depois, aí sim. É declarado o estado de guerra. Nílton Cavalcanti, pai do_Ladingen

Cavalcanti, que foi professor do seu pai11 e meu colega. Foi professor de Biologia da

Faculdade de Filosofia (F.N.Fi.). O Nílton Cavalcanti era um ex-integralista, um

general. Foi o chefe do estado de guerra. E o estado de guerra foi de 35 a 37. Em 10 de

novembro de 37 Getúlio dá o golpe e implanta o Estado Novo. Aí acabou a brincadeira.

Filinto Müller intervém nos sindicatos, prendeu os professores, os bancários... Foi uma

revolta, uma violência, uma coisa terrível. Mas 1931, 32, 33, 34 e praticamente quase

todo o ano de 35 foram anos de ebulição, de efervescência, de liberdade sindical, de

criação. Tentaram até, na Constituição de 34, aquela chamada “representação classista”,

que foi uma burla. Porque era ministro do Trabalho... O primeiro ministro foi o Collor,

de janeiro de 31 até março de 32. Aí veio o Salgado Filho. Agora você vê como é

curioso isso com o Getúlio. Eu chamo a atenção e ninguém presta atenção. Dizia o

Getúlio que no tempo do Washington Luís a questão social era uma questão de polícia.

Continuou sendo, nos tempos do Getúlio. Ele dava as suas benesses, sua legislaçãozinha

e tal. Mas se o trabalhador urinasse fora da bacia, continuava sendo questão de polícia.

Basta dizer que os elementos... Três elementos eu vou lhe dar os nomes. Porque antes

de 30, quem fazia a conciliação trabalhista eram os delegados de polícia. Eu consultei

no Centro Industrial, que fica ali no n. 15 da Avenida Calógeras, no terceiro andar,

quando eu escrevi aquele livro chamado Idéias Sociais de Jorge Street, eu consultei lá

as atas e o Centro se correspondia com o chefe de polícia. Ele se correspondia com o

chefe de polícia, e a polícia tentava conciliar - não dava porrada -, conciliar os

empregados e os empregadores. E quem era o quarto delegado auxiliar, que era o DOPS

da época? Joaquim Pedro Salgado Filho. Era o Salgado Filho. E quem é que vai ser

ministro do Trabalho depois do Collor, de 32 a 34? Salgado Filho vai ser o ministro do

Trabalho. Ele vinha com aquela prática dele da Quarta Delegacia Auxiliar. Depois,

outro que era também da polícia: Luís Augusto de Rego Monteiro. Corporativista,

11 O físico José Leite Lopes, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). e da Faculdade Nacional de Filosofia

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 13 de 31

muito católico,tinha sido delegado de polícia. Foi para o Ministério do Trabalho. E vou

te dar agora um nome curioso. O meu primeiro chefe chamava-se Francisco Eulálio do

Nascimento Silva Filho. Era pai desse que foi ministro da revolução, muito amigo do

Roberto Campos, o Luís Gonzaga. Luís Gonzaga Nascimento Silva. Era pai desse.

Tinha sido também delegado de polícia, e foi ser exatamente presidente de uma das

comissões mistas de conciliação. Você vê como é curioso isso, não é mesmo? Eles

traziam aquela prática da polícia de antes de 30. De modo que você vê que o Getúlio

não era tão anjinho como se pensa, não.

José Sérgio: E o senhor entrou lá através...

Evaristo: Do meu pai, que era muito amigo do Salgado Filho. Porque meu pai foi

revolucionário de 30. A revolução de 30 teve essa virtude. Ela não foi uma revolução de

profundeza. Eu digo isso nos meus livros. O próprio Joaquim Pimenta, que foi

revolucionário, ele fala nisso. Foi uma revolução de superfície, de oligarquias,

simplesmente briga de elites. Não mudou nada. Mas de qualquer maneira, foi um pouco

mais nacionalista. Criou dois ministérios, o Ministério do Trabalho, Indústria e

Comércio e o Ministério da Educação e Saúde. Ela não reformou propriamente. Mas de

qualquer maneira, significou um avanço. Agora, o bem da revolução é que ela levou

para o Ministério do Trabalho todos os antigos líderes socialistas. Convidou Maurício

Lacerda para ministro. O Maurício não aceitou. O Maurício não aceitou ser ministro do

Trabalho. Mas o Maurício fez o mesmo papel em 30 - veja como a vida é curiosa - que

o Carlos Lacerda vai fazer em 64. Ele é que foi pela América do Sul fazendo a

propaganda da revolução. O Maurício de Lacerda foi a Buenos Aires, foi a Montevidéu

falar sobre a Revolução de 30. Porque houve uma Revolução de 30 também na

Argentina. Em 30 também houve uma Revolução na Argentina. Isso é que é curioso.

Então, Evaristo de Moraes foi o primeiro consultor jurídico do Ministério do Trabalho.

Ele é que fazia quase tudo para o Collor, não é? Mas o Collor é que escrevia. Meu pai

dizia que era um jovem muito inteligente. E meu pai emprestava os livros, conversava

com ele... Levou Evaristo de Moraes, Agripino Nazaré, Carlos Cavado, Deodato Maia,

Joaquim Pimenta... Essa gente toda no Ministério do Trabalho. E os patrões ficaram

assustados. E o Getúlio então, nos primeiros discursos... Você pega a política trabalhista

de Getúlio, aquelas edições de 38, publicadas pelo José Olympio, saíram pelo José

Olympio, aqueles volumes todos do Getúlio; você vê lá o discurso dele, por exemplo, de

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 14 de 31

3 de janeiro de 31. Nesse dia fazia um ano de posse da Revolução. Ele então fala sobre a

política trabalhista; depois em 32 também. E nesses discursos você vê que o Getúlio se

coloca logo entre as duas classes. Ele levanta desde então a bandeira da conciliação do

trabalho e do capital. “Os dois são indispensáveis...” – esse linguajar que você está

cansado de ouvir! “Os dois são indispensáveis à produção nacional e não-sei-o-quê...”

Ele levanta a bandeira da conciliação. Ele não toma partido dos trabalhadores, não. E

mais tarde, em 33, quando ele começa já a Constituinte, ele praticamente acaba com o

Tenentismo. Porque os tenentes, na época, representavam um movimento, mais ou

menos, para-socialista. Inclusive o Juarez Távora foi do Partido Socialista, em 32. O

Plínio Salgado chegou a ser de um partido. Aí, quando viu que era socialista, pulou fora

e fez o Manifesto Integralista, em 32. Você vê que porre ideológico era isso! A Igreja, o

Integralismo...

José Sérgio: Na Faculdade de Direito, onde o senhor entrou, também havia esse...

Evaristo: Ah, havia! Nesse momento, por exemplo, dominava a esquerda. O grande

líder... O único retrato de professor que eu tenho na minha mesa de trabalho é de

Edgardo de Castro Rebelo. Baiano, Edgardo de Castro Rebelo era marxista e escreveu

um livro, “Mauá, restaurando a verdade”, contra aquele livro do Alberto Faria. Nós

tínhamos duas matérias só, no primeiro ano: Introdução à Ciência do Direito, cujo

professor Castro Rebelo; e Economia Política, do Leônidas de Resende, que escreveu

um livro grosso, deste tamanho, “A Formação do capital e seu desenvolvimento”. Foi a

tese dele. O Leônidas ganhou o Alceu em 32. O Alceu veio com uma tese de

Antropologia, “Economia pré-política”.

José Sérgio: Alceu Amoroso Lima?

Evaristo: É. “Economia pré-política”, em 32. E realmente era de uma grande erudição,

mas baseada na escola histórico-político-cultural austríaca, alemã, do deus único,

contrário ao evolucionismo e assim por diante. A matéria não era Economia Política. A

do Leônidas, não. “A Formação do capital e seu desenvolvimento”. Um livro grosso, e

tal. Ganhou. E entra o Hermes Lima, que vinha de São Paulo. Em 34, começa a dar

aulas o Hermes Lima. Tinha um positivista lá, meio socializante, o Hahnnemann

Guimarães, que morreu como ministro do Supremo. O outro, também, era Luís

Carpenter, socialista. Luís Carpenter.

José Sérgio: Já era ali onde é hoje a Faculdade de Direito?

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 15 de 31

Evaristo: Onde é hoje a UNE, na Rua do Catete. Em 38 é que saiu dali. Começou a ser

na Moncorvo Filho, número 8, exatamente no ano de 1938. A minha turma foi a última

turma. Eu me formei em 37. Em 37 foi na Rua do Catete. Depois mudou-se e ali ficou

sendo a Faculdade do Rio de Janeiro, UERJ depois. Mas então, o Castro Rebelo era o

mentor da Faculdade. E tinha também um pessoal integralista. Eu vivi a luta exatamente

de 32... Eu entrei para a faculdade em fevereiro de 33, e em 37, quando eu me formei,

foi exatamente a luta entre comunismo e integralismo. E o chefe integralista na

faculdade de Direito era o... Delamare. Alcebíades Delamare. Era um homem que

escreveu uma biografia maluca sobre Cristóvão Colombo. Mas era um integralista

danado. Esse era livre-docente. E havia lá os integralistas. Como Getúlio, naquela

época, estava dando mão forte aos integralistas, principalmente depois de 35, até 37,

eles iam para a faculdade de camisa verde, faziam baderna. E havia também um

movimento que durou pouco, do qual vocês têm pouca notícia, mas que era mais ou

menos para-integralista: o patrianovismo. Esses patrianovistas eram realistas,

monarquistas. Agora, ultimamente, quando andou se falando em monarquismo, andou

se falando um pouquinho de novo em patrianovismo. Então, o patrianovismo era uma

linha auxiliar do integralismo. E havia muita briga, muita luta. Aí a gente se reunia, os

sindicatos... De repente, “- lá vem a polícia!”, e todo mundo saia correndo. Então, daí o

meu interesse pelo movimento sindical, pelo movimento socialista, pelos trabalhadores.

Veio daí. E eu comecei a estudar. Ah, havia um outro socialista também no Ministério

do Trabalho, que escreveu um livrinho que vale a pena você ler. É de 33, o livro dele.

Francisco Alexandre. O Francisco Alexandre era velho socialista também. Foi no livro

dele que eu li pela primeira vez sobre o Congresso Socialista de 1906. Depois eu me

aprofundei, mas ele dá a relação. Acho que ele tomou parte, até. De modo que desde ali

eu comecei. E fiquei na Comissão Mista de Conciliação de 34 até 41. Eu me formei em

37. Mesmo formado, eu ainda era secretário.

José Sérgio: Depois de 38 havia conciliação, ainda, com o Estado Novo?

Evaristo: Havia, mas mudou a Intendência. A Comissão Mista existiu até 41, quando

foi criada a Justiça do Trabalho. Criada a Justiça do Trabalho, as Comissões Mistas

desapareceram. A Justiça do Trabalho foi criada, entrou em vigor, em primeiro de maio

de 41. E desde que o Getúlio criou as Juntas de Conciliação e Julgamento, com esse

mesmo nome que tem hoje... Foi em 22 de novembro de 32. Era um presidente

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 16 de 31

bacharel, um vogal empregado e um vogal empregador. Na Comissão Afonso Arinos,

da qual eu fiz parte em 86, 87, eu acabava com os classistas. É um absurdo, isso. Isso é

corporativismo, isso é um absurdo. E você sabe que os representantes classistas,

temporários, conseguiam aposentadorias como se fossem magistrados de concurso, com

salários de magistrados? É um absurdo! Os pelegos! Você já ouviu falar em Ary

Campista, que foi ministro do Tribunal Superior do Trabalho? Ele e muitos outros.

Então, esses pelegos eram juízes do Trabalho e foi criado o imposto sindical, em 40, já

no Estado Novo...

Evaristo: O Estado Novo deturpou inteiramente com o movimento sindical. Porque a

Constituição de 37 foi mais ou menos copiada da Carta de Lavoro de 27, de Mussolini.

E botou a greve como crime. Veio o código penal de 1940 e felizmente um socialista

tomou parte no código, que foi o Roberto Lira.

José Sérgio: Roberto Lira?

Evaristo: É. O Roberto Lira, o Nelson Hungria e um outro que eu não me lembro o

nome agora. Eram três. Quem fazia a exposição de motivos dos códigos, que vale a

pena você ler para ver como ele coloca a greve como motivo anti-social, como crime?

Francisco Campos. Ele fazia a exposição de motivos desses códigos todos. Então o

movimento sindical cessou. Cessou porque o Estado Novo não brincava em serviço; a

greve era proibida como movimento anti-social, nociva à produção nacional e assim por

diante. Isso em 37. E fizeram logo uma lei sindical referendando, ratificando esse

entendimento. É o decreto-lei. Aí já é decreto-lei, porque no Estado Novo, o Getúlio,

pelo artigo 180 da Constituição de 37, o Getúlio podia suprir... Ele fechou a Câmara e o

Senado, durante o Estado Novo, durante oito anos, de 37 a 45. Não houve Câmara, nem

Senado. E o Getúlio, pelo artigo 180, ele podia legislar. Então, com fundamento no

artigo 180... Chamava-se decreto-lei. Durante o Governo Provisório os atos do Getúlio,

do chefe de Estado, chamam-se decreto. No Estado Novo, até 45, chama-se decreto-lei.

E então, o 1.402 de 05 de julho de 39 – é o meu aniversário, 05 de julho, de modo que é

fácil guardar a data. 05 de julho de 39. Esse decreto-lei, 1.402, é ultra-reacionário,

fascista. E as eleições sindicais... A lista dos candidatos tinha que ir para o Ministério. O

Ministério mandava para o DOPS. Se o sujeito fosse suspeito de alguma coisa, saia da

lista. Essa lei criou o chamado “atestado negativo de ideologia”. Você tinha que provar

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 17 de 31

que não constava nada contra você, que era um bom moço. Foi um absurdo. Aí foi uma

sufocação do movimento sindical...

José Sérgio: E o senhor assistiu dentro do Ministério do Trabalho? Mudou muito a

composição?

Evaristo: Totalmente.

José Sérgio: Essa pessoas saíram? Aqueles antigos líderes...

Evaristo: O meu pai saiu logo em 32. O Pimenta continuou, mas sem forças; o

Agripino também continuou sem forças; o Deodato Maia morreu; Cavado pediu

demissão... Mudou inteiramente. Quem é que vai ser diretor do Departamento Nacional

do Trabalho? Luís Augusto de Rego Monteiro, antigo delegado de polícia. Diretor do

Departamento Nacional do Trabalho! Aí você vê como a coisa mudou.

José Sérgio: O Oliveira Vianna...

Evaristo: Quem é que vai ser consultor jurídico, substituindo meu pai, de 32 a 40,

exatamente durante o Estado Novo, que fez o 1.402, que fez a Justiça do Trabalho de

39, classista? Porque essa Justiça é corporativa, classista. Isso é um absurdo. Porque

esses pelegos se vendem ao capital, procuram estar sempre bem com o Governo...

Porque quem escolhe, quem nomeia é o Governo. Então essa gente não tem autonomia

deliberativa, de modo que é um absurdo a Justiça do Trabalho continuar corporativa. É

caríssima, eles recebem um dinheirão e em geral decidem com o presidente. Eles não

têm a competência. O que é pior no Tribunal Superior, com 17 membros, seis classistas.

O que é que eles vão discutir de Direito? Mas afinal de contas, mudou inteiramente a

feição. Desapareceu o movimento social, sindical, e entramos praticamente no fascismo,

no corporativismo fascista. O diretor do DNT é o Luís Augusto de Rego Monteiro, e

criam-se várias divisões... Por exemplo, há uma divisão DOAS, “doas a quem

doer”,eles diziam de deboche. DOAS quer dizer Divisão de Organização e Assistência

Sindical. Então, tinham os assistentes sindicais que assistiam as assembléias sindicais.

Tomavam parte nas assembléias, ficavam lá sentados. Quer dizer, um pobre diabo que

fosse mais afoito, que falasse mal do Governo, era logo preso, era fichado e tal. De

modo que era uma assembléia de cordeiros, bem comportados, com pelegos e tal. E esse

assistente sindical fazia relatório ao Ministério do Trabalho, ao Departamento Nacional

do Trabalho. E todo primeiro de maio havia a festa comemorativa do trabalho, com

Getúlio. As tais homenagens promovidas. O Ministério pagava. Porque antes de 42, de

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 18 de 31

ser cobrado o imposto sindical, os sindicatos viviam. No meu projeto de 86, do Afonso

Arinos, eu acabava com o imposto sindical. Mas o Sarney não mandou o projeto para a

Câmara, não. E até hoje a Constituição de 88 mantém indiretamente o imposto sindical,

o que é um absurdo. É uma boa Constituição, é avançada em certos pontos, mas

mantém. Então, o imposto sindical cria o pelego. Cada trabalhador paga um dia de

trabalho, para o imposto. E para os profissionais liberais e as empresas, eles têm lá uma

tabela. Agora você vê, de 38 a 42 os sindicatos resistiram. Faziam greves, convenções

coletivas, conseguiam muitos associados, contribuições e iam vivendo. E você vê que só

agora, depois de muitos anos é que ainda está se reformando... O Almir Pazzianoto

acabou com essa história do atestado negativo de ideologia. Acabou com muita coisa,

mas não acabou com tudo. Não pôde acabar com tudo, mas acabou com muita coisa.

Intervenção sindical... O artigo 528 da Consolidação... Você pega o artigo 528 e você

vê. Se sobre um sindicato aparecer qualquer suspeita, o Ministério intervém. E por

tempo indeterminado. A Revolução de 64 se serviu desse artigo. E houve mil e tantas

intervenções. De maneira que nós tivemos um movimento sindical pujante, mais

anarquista, anarco-sindicalista até 30... No Congresso de 06 saiu vitoriosa a tendência

anarquista. Desconfiavam muito dos socialistas. O meu pai, coitado, era socialista. Ele

achava que através de leis podia-se fazer a reforma social, através de deputados, de

Congresso... Os anarquistas não queriam nada com o Estado.

José Sérgio: O senhor foi fazer Direito influenciado pelo seu pai?

Evaristo: Ah, claro! O mais engraçado... Eu fiz enganado. Eu gosto mesmo é de

ciências, da Sociologia, da Filosofia... Tanto é que eu não advogo. Eu nunca advoguei.

Eu era secretário das Comissões Mistas. Quando Getúlio terminou, em 41, com as

Comissões Mistas, me nomeou procurador da Justiça do Trabalho. Acabou com a

Comissão e eu fui automaticamente...

José Sérgio: O senhor já era formado, né?

Evaristo: Eu já era formado e fui para a Bahia. Fiquei um ano na Bahia, como

procurador da Justiça do Trabalho. De 41 a 42. Depois, vim para o Rio. Agora, como eu

era contra o Getúlio... Eu escrevi o “Sindicato Único” onde eu critico duramente o

Getúlio.

José Sérgio: E o senhor fez esse livro a partir da experiência que o senhor tinha no

Ministério do Trabalho?

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 19 de 31

Evaristo: Ah, exato. Eu conhecia todos eles. José de Segadas Viana, que era diretor do

DNT, foi um dos autores da Consolidação também; o Alexandre Marcondes Filho, que

foi ministro do Trabalho. Até o golpe de 45, o Marcondes Filho foi ministro do

Trabalho. Então, eu fiz com essa minha experiência. E eu conhecia por dentro dele,

como era a podridão da intervenção sindical, da polícia, não havia movimento sindical

livre, o peleguismo e assim por diante. Essa deturpação toda que se viu até há pouco

tempo, e que agora está se alterando.

José Sérgio: O senhor como procurador, era na Justiça do Trabalho?

Evaristo: Justiça do Trabalho. E em geral. Mas eu trabalhava era com trabalhador

mesmo.

José Sérgio: E como é que o senhor dividia a vida profissional no Ministério e a vida

universitária?

Evaristo: Era muito fácil, porque meu pai, quando pediu ao Salgado Filho um emprego

para mim, porque eu era muito garoto... O meu pai era desquitado da minha mãe, e eu

morava com minha mãe lá em Inhaúma. Uma vida pobre... Eu só tive dois ternos antes

da minha vida universitária. O terno de casimira estava tão queimado de suor...

Mandava-se lavar um terno naquela época por seis mil réis. Era mil réis. O Cruzeiro

começou em 42. Então, eu não fui buscar o terno. Não valia a pena! (risos) Eu usava

chapéu. O estudante era obrigado a ir à aula de gravata. A gente ia de paletó, gravata,

chapéu. Eu usei chapéu até trinta e tantos. Eu tinha um chapéu de pano e um chapéu de

palha. A gente ia à aula assim. Era muito engraçado. Você vê retratos de estudantes

daquela época, estão todos vestidos assim. Eu morava com mamãe. E meu pai disse ao

Salgado Filho: “- Arrume um emprego para o rapaz – o rapaz era eu – em que ele possa

continuar estudando.” Eu não tinha ponto nem horário. Eu nunca tive ponto nem

horário. De maneira que eu ia na Comissão Mista todo dia. Funcionou no edifício d’A

Noite. No sétimo andar do edifício d’A Noite. Eu tinha uma chave da porta. Eu ia lá

todo dia e fazia as atas da Comissão, convocava as reuniões, aquele negócio todo. E

estudava. Eu freqüentava muitas aulas. As aulas eram de manhã. Hoje eu só saio da

cama às oito e meia. Mas também, eu só vou dormir à uma hora. Mas naquele tempo a

aula era oito ou nove horas da manhã. E fui um bom estudante. E com a influência do

Castro Rebelo. O Castro Rebelo é curioso. Porque ele foi professor do Osvaldo Aranha.

Então, o Aranha o colocou no Conselho Nacional do Trabalho. Ele foi do Conselho

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 20 de 31

Nacional do Trabalho, que hoje é o Tribunal Superior do Trabalho. O Castro Rebelo foi

do Conselho. De modo que eu, com a lição do Castro, com a lição do Leônidas na

faculdade, eu escrevi um estudo que foi minha estréia literária numa revista da

faculdade chamada “Idéia”. Era escrito com letra vermelha, maiúscula. Eu escrevi

“Marx e a Sociologia contemporânea”. Começava citando logo o Sorel, George Sorel.

Dizendo que enquanto o pessoal vive cego no meio do espaço, a sociologia marxista

enxergava, explicava e tal. E tinha lá na Comissão Mista de Conciliação um

representante de um empregador que era um grande construtor civil, Eduardo

Vasconcelos Pederneiras. Essa construtora dele desapareceu há uns dez anos. Eduardo

Vasconcelos Pederneiras. E o Eduardo Pederneiras era um sujeito magrinho, alto, e era

um menino, um rapaz. E eu era tão ingênuo que dei o ensaio para ele ler. Dei a revista

para ele ler. Distribuí. Ele disse: “- Isso parece com o seu pai. Isso é um estudo

comunista!” Eu ainda tenho aí a revista. Foi meu primeiro ensaio, em 1934. Depois

escrevi outro: “Nós e a espiritualidade”, no qual eu combatia aqueles que diziam que o

marxismo era um puro materialismo, era puro estômago. E cito um trecho muito bom,

que você pode procurar rever no “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica

alemã”, de Engels. Ele define o que é ideologia; ele diz que a ideologia, uma vez criada,

reage sobre a base. E não seria ideologia se ela não tivesse vida própria. De modo que

ela reage sobre a base, e não é só dizer que a base econômica é tudo, não. Então, eu fiz

esse trabalho também na revista Época. E continuei sempre nesse sentido. Em 37, na

Idéia, eu publiquei um estudo que eu acho que foi o primeiro no Brasil sobre Sociologia

do Conhecimento. “Marx e a Sociologia do Conhecimento”, que eu também tenho aí.

Porque você sabe que o Karl Mannheim se baseou muito em Marx, não é? E eu citava

principalmente aqueles estudos do Marx de 1844, “Os manuscritos de 1844”, em que

ele defende o homem é o produto de suas relações sociais. Eu citava isso. E pensava

que ia ser preso. Eu e o Délio Maranhão, que agora está muito doente12. Meu colega de

turma, Délio Maranhão, foi um grande juiz do Trabalho. Foi o maior juiz do Trabalho

que nós já tivemos. Ele está à morte. Está muito mal. Délio Barreto de Albuquerque

Maranhão. Grande amigo meu. E o Délio e eu fomos diretores da Idéia. E eu dizia: “-

Nós vamos ser presos a qualquer momento!” Mas não sei por quê não fui preso. Eu até

quando me refiro a Marx, eu digo brincando “aquele senhor barbado”. E daí a minha

12 Délio Maranhão veio a falecer em 1996.

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 21 de 31

inclinação e as minhas idéias por esse movimento, por esses estudos.

José Sérgio: O senhor foi se chegando para a Sociologia dentro da Faculdade de

Direito?

Evaristo: Dentro da Faculdade de Direito, exato. Engraçado, o primeiro livrinho de

Sociologia que eu li foi uma Sociologia, vamos dizer, formalista. O livro é interessante,

mas é anti-marxista. É do Leopold von Wiese, da Escola de Colônia. “Sociologia,

História e principais problemas”. Saiu tradução espanhola em 33, na Labor. E eu

comprei. O histórico é bom. Ele e o Simmel – de quem eu organizei uma coletânea para

a Ática - ele e o Simmel são os chefes . O Simmel morreu em 1918. Mas eles criaram o

que ele chamava Beziehungslehre_. A escola acho que era a da Teoria das Relações

Sociais. Então ficou uma coisa muito formalista, uma coisa muito abstrata. Basta dizer

que em um livro que eu tenho aí, “Sistema de Sociologia Geral”, do von Wiese, deste

tamanho, ele pretende relacionar todos os tipos de relações sociais. Chega a seiscentos e

tanto. É um absurdo! O Simmel, não. O Simmel dá, por exemplo, relação de

subordinação, relação de coordenação. Então, ele dá tipos abstratos de relações, dentro

das quais cabem vários conteúdos concretos. Por exemplo, subordinação: O capitão e o

soldado no Exército; o patrão e o empregado; antigamente, o marido e a mulher, pai e

filho. E vai por aí afora. É uma relação de subordinação. E vários exemplos históricos

concretos entram nesse tipo. Coordenação: é do mesmo nível. Sócios em uma

sociedade; os irmãos... E assim por diante. Foi meu primeiro livro. Depois continuei

estudando. Criamos na Faculdade de Direito uma Sociedade de Sociologia.

José Sérgio: Entre os estudantes?

Evaristo: Só estudantes.

José Sérgio: Quer dizer, os estudantes tinham um peso grande nessas instituições, na

publicação de coisas...

Evaristo: Ah, tinham. Você não imagina. Fazíamos comícios à vontade... Você passa

por lá, tem aquele portão de ferro. A única entrada daquele prédio é aquele portão de

ferro. Nós amarrávamos com cadeado e a polícia não podia entrar. Nós ficávamos lá

dentro e a polícia não podia entrar.

José Sérgio: E aí o senhor resolveu fazer faculdade de Filosofia...

Evaristo: Então, me formei em Direito em 37. Já gostava de Filosofia. Havia na

faculdade uma revista chamada A Época. Eu fui diretor quatro anos da seção de

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 22 de 31

filosofia, dessa revista A Época. O meu primeiro artigo foi criticando a filosofia anti-

intelectualista de hoje. Era o Conde von Keyserling_, era essa gente toda mística. Eu

metia o pau neles. A filosofia anti-intelectualista de hoje. Foi logo o meu primeiro

artigo. E nisso, com o Estado Novo, em princípios de 39 e fins de 38... Em 35 foi criado

no Brasil a Universidade do Distrito Federal, a UDF, do Anísio Teixeira, do Castro

Rebelo, do Hermes Lima... O Castro foi diretor de uma faculdade, o Hermes Lima foi

diretor de outra, o Anísio Teixeira... Então, eles acabaram com a UDF e criaram a

Faculdade Nacional de Filosofia, cujo primeiro vestibular foi na Praia Vermelha, No

antigo prédio da Faculdade de Medicina.. Não existe nem mais o prédio hoje. E eu

então fiz vestibular para Filosofia em abril de 39,já formado em Direito. Meu pai ainda

estava vivo. Meu pai vai morrer em junho de 39, de repente. Tirei primeiro lugar, em

Filosofia. Tenho prova disso.

José Sérgio: E o senhor fez o curso todo de Filosofia?

Evaristo: Fiz, mas interrompi muito tempo. Porque meu pai morreu em junho de 39;

minha mãe em dezembro de 39. Dois golpes na cabeça no mesmo ano.

José Sérgio: E o senhor tinha irmãos?

Evaristo: Tinha. O Jorge Moraes, que foi meu assistente na Faculdade de Direito, ainda

está vivo13. Um, o Paulo, que morreu em 85. Minha irmã Ivonete, que está viva. E esse

meu irmão Evaristinho14 é filho de outra mãe. Ele nasceu em 09 de abril de 33. Mas

essa senhora viveu com meu pai por dez anos e foi uma boa amiga dele, uma boa

mulher. E eu gosto dele, ele é meu amigo. Essa confusão toda dos nossos nomes... José

Sérgio: O senhor disse então que parou, com a morte de seu pai.

Evaristo: Parei o ano de 40; em 41 fui nomeado procurador da Bahia. Fui para a Bahia

e voltei só em 43. Me casei em dezembro de 43. Vou fazer bodas de ouro agora no dia

23, se Deus quiser. Me casei em 23 de dezembro de 43 e sou muito feliz.

José Sérgio: E “O Problema do sindicato único no Brasil”? Era uma tese?

Evaristo: Era uma tese. Eu ia fazer...

José Sérgio: Era para a Faculdade de Filosofia ou era para a Faculdade de Direito?

Evaristo: Era para a Faculdade de Direito.

José Sérgio: Era a tese de livre-docência?

13 Morreria em 1999. 14 Falecido em 1997.

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 23 de 31

Evaristo: Era a tese de livre-docência. O Getúlio estava no poder. O Getúlio ficou de

51 a 54. Eu levei 16 anos para ser promovido a procurador de primeira categoria. Eu fui

nomeado em 41 para segunda categoria, e só fui promovido em maio de 57. Fui

promovido por antigüidade. Eu já era professor e tudo. Ia sempre na lista por

merecimento, e fui promovido por antigüidade, porque não poderia deixar de ser. Era o

_Parsifal Barroso o ministro. Fui falar com o Castro Rebelo e ele me disse: “- É

bobagem você fazer essa tese, porque você está atacando aí um presidente e tal...”. E na

faculdade, o diretor era um sujeito do PTB, Luís Costa Carvalho. O Costa Carvalho, que

morreu com noventa e tantos anos. O Costa Carvalho era advogado do PTB e diretor da

Faculdade de Direito. Colega de turma do Castro. Eles não se gostavam. Ele disse: “-

Você vai fazer essa tese, vão te reprovar”. Eu então não fiz, e fiz outra tese: “A Justa

causa na rescisão do contrato de trabalho”. Fiz uma tese técnica. Eu já era procurador,

tinha muita experiência de rescisão de contrato de trabalho. Recolhi a tese do “sindicato

único” e fiz o concurso de livre-docente de Direito do Trabalho em março de 53.

Briguei com a banca... A banca era boa. Tinha o Santiago Dantas, o Arnaldo Menezes

da Fonseca, o Djacir Menezes, presidido pelo Hermes Lima, o Joaquim Pimenta e um

sujeito que não gostava de mim, que me perseguiu, que era o Oscar Stevenson,

professor de Direito Penal. O Santiago me elogiou muito, tirei distinção e tudo. O

Santiago já estava mudando, já tinha deixado o integralismo.

José Sérgio: E o senhor já era professor nessa época, de alguma das faculdades?

Evaristo: Ah, era. Porque o Hidelbrando Leal, muito vivo, pegava os alunos do último

ano, eles começavam a ensinar e ele recebia! Então, em 49, no último ano de

licenciatura, comecei como auxiliar de ensino a dar aulas de Sociologia no curso de

Jornalismo, na Faculdade de Filosofia. Era naquele salão grande. Todo mundo queria

ser jornalista... Depois, fui ensinar no segundo ano de Filosofia, que também tinha aula

de Sociologia. Mas então, em 50, 51 eu comecei a ensinar Sociologia no segundo ano

do curso de Filosofia. Dava provas, dava nota, dava tudo. E quando eu quis fazer a

docência de Sociologia – que foi em dezembro de 55, na Faculdade de Filosofia, na

Casa de Itália – eu pedi certidão disso tudo. Fiz a docência de Sociologia em dezembro

de 55. Porque podia fazer docência aquele que tivesse cursado a disciplina. E eu tinha

cursado a disciplina de Sociologia.

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 24 de 31

José Sérgio: Quer dizer, aí o senhor ficou entre a Faculdade de Direito e a Faculdade de

Filosofia, né?

Evaristo: Aí fiquei entre os dois. Em dezembro de 57, então... Pimenta fez em 56

setenta anos e caiu fora. E eu fui nomeado interino. Era livre-docente de Trabalho. Fui

nomeado interino lá na Faculdade de Direito. Aí, em dezembro de 57 eu fiz a cátedra de

Direito do Trabalho. Então fiquei catedrático de Direito do Trabalho de 57 pra cá e

livre-docente lá na nossa, de Sociologia. E ensinava. Depois, em 58 é que foi o grande

passo. Isso é que é engraçado. Vai caber a um homem que era da UDN... Não era muito

reacionário, não. Do ponto de vista teórico, não era, mas nas suas ações, ele era. Era

meu amigo. Você sabe que existia na UNESCO aqui na América três órgãos: a

FLACSO, no Chile, que era a faculdade, a escola; o Centro Latino-Americano de

Pesquisas em Ciências Sociais, que era no Rio de Janeiro, na Avenida Pasteur; e no

Uruguai, em Montevidéu, era o Comitê Administrativo. Temístocles Brandão

Cavalcante fazia parte desse Centro Administrativo. O Temístocles era especialista em

Ciência Política, ele gostava muito de Ciência Política. Catedrático de Direito

Administrativo da Faculdade de Ciências Econômicas, onde o Costa Pinto foi

catedrático. O Temístocles foi diretor 15 anos, lá. Em 51 ele apresentou um projeto no

Conselho Universitário criando o Instituto de Ciências Sociais. E foi bem planejado. O

Instituto de Ciências Sociais foi o primeiro instituto multidisciplinar, interdisciplinar, e

deixou de ser instituto de cátedra. Porque antes, cada catedrático era dono do seu

minifúndio. Deolindo Couto era dono do Instituto de Neurologia, o Deolindo Couto era

dono do Instituto de Psiquiatria, o Clementino Fraga do Instituto de Nutrição, e assim

por diante. O dele, não. Esse Instituto era dirigido por um comitê formado por sete

professores eleitos pelas Congregações. Dois da Faculdade de Ciências Econômicas:

Costa Pinto e Temístocles Cavalcante; dois da Faculdade de Filosofia: o Darcy Ribeiro

e o Victor Nunes Leal; dois da Faculdade de Direito: eu e Irineu de Albuquerque Melo;

e um do Museu Nacional: o Luís Castro Faria – que faz anos comigo, dia 05 de julho.

Então você vê que era interdisciplinar e desses sete saía o presidente do Instituto. E era

proibida a reeleição. Então, havia continuidade burocrática pelos sete. Cada ano era um

diretor. Foi fundado a 26 de dezembro de 58. Levou de 51 a 58 no Conselho

Universitário. O Temístocles lutou muito para isso sair. Parece mentira. Em 58 saiu.

Inauguramos no gabinete Pedro Calmon, ali na Praia Vermelha em 26 de dezembro de

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 25 de 31

58. E você vai ficar admirado de quem é que estava presente: o senhor Eremildo Viana.

O cachorro estava ali presente... Naquele tempo ele se metia a bom moço. Aí,

começamos a funcionar na Faculdade de Filosofia mesmo; depois, uma sala alugada no

IBGE; depois no Piauí 72, no Edifício Piauí, na Almirante Barroso, 72; e depois, em 61,

mudamos para a Marquês de Olinda 64, porque a Faculdade de Ciências Econômicas

mudou para a Praia Vermelha. E ficou ali até 70, setenta e poucos. Até ir para onde

vocês estão. E nesse Instituto eu fui diretor quatro vezes. Porque 58, 59, foi o Victor

Nunes Leal, professor de Ciência Política na Faculdade de Filosofia, e eu, vice-

presidente. O Victor era chefe da Casa Civil do Juscelino. Então, quem presidia era eu.

Em 60, eu fui eleito presidente. Quando ele foi fechado, em 68, depois da intervenção

fizeram um galpão nos fundos dele ali na Rua Marquês de Olinda – o galpão foi feito

em meses – e foi dissolvida a Faculdade de Filosofia, era reitor o Raimundo Moniz de

Aragão, que não é flor que se cheire. E então era presidente a Marina Vasconcelos. A

Marina Vasconcelos foi a última presidente do Instituto. E foi o primeiro presidente do

IFCS, o Djacir Menezes. Veio para o IFCS, porque eram três departamentos... O Moniz

Aragão dizia: “dividir para reinar”. Porque a Faculdade de Filosofia parava o tráfego!

Então, os reacionários começavam a gritar. O Carlos Lacerda, aquela turma toda. “ –

Uma faculdade no centro da cidade é um absurdo...” Então eles dividiram: Instituto de

Física, Instituto de Matemática, e o nosso trouxe Ciências Sociais, História e Filosofia.

Transformou-se em IFCS. Resultado: naquele momento acabava a pesquisa em

ciências sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E por muitos anos. Porque o

nosso Instituto só fazia pesquisa, não tinha ensino.. Como nenhum de nós era

matemático, nós tínhamos uma matemática lá para fazer os modelos estatísticos, os

modelos de pesquisa. Era a Vera Werneck. Era pesquisador lá o Luciano Martins; o

José Pessoa de Queirós, que suicidou-se, jogou-se de um edifício abaixo, ali na rua da

Carioca; o Maurício Vinhas de Queirós; a Stella Amorim.... Todos esses foram

pesquisadores. E um sujeito que depois foi trabalhar no CNPq, o Ivan de Freitas. E eu

consegui naquela época uma Rural Willys para os pesquisadores, porque eles iam às

fábricas, iam a comícios e tal... Realizávamos congressos, seminários, pesquisas... E

tinha um diretor de programa, que era para coordenar aquele pessoal. Nós tivemos dois.

Todos os dois já morreram. Um era muito bom. Em 51 ele teve que fugir do Brasil, era

de esquerda. O outro era católico, mas também era um homem de bem. O primeiro foi

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 26 de 31

Tomás Pompeu Acioli Borges. Era um sujeito alto e tal. Cunhado do Juraci Magalhães.

O Juraci está vivo ainda aí. Tomás Pompeu Acioli Borges. Morava aqui perto. Foi o

primeiro diretor de programas. Economista. Depois foi para a FAO. O segundo foi o

Manuel Diegues Júnior. Um bom homem. Professor de Sociologia da Católica. Era

católico, mas um homem decente, bom mesmo. Basta dizer que quando a Marina

morreu, só dois professores foram ao enterro dela. O Gilberto Velho diz que lembra

isso. Eu e o Diegues. Mais ninguém. Ninguém mais compareceu. A Marina, coitada, o

enterro foi num domingo, um sol danado, estavam lá alguns poucos alunos, a Hortênsia,

o Gilberto Velho... Só fomos eu e o Diegues. Mas esse Instituto foi uma experiência

formidáve!. Publicávamos uma revista, que você conhece. Uns quatro ou cinco

números. Colaboravam todos. Também representou o Museu Nacional um sujeito de

valor, que é o Roberto Cardoso de Oliveira. Foi presidente do Instituto também. Depois

foi para Brasília. E publicávamos umas monografiazinhas. O Melatti. Fez um trabalho

sobre índios, saiu lá. Aquele trabalho sobre o Matarazzo, do José de Souza Martins, é lá

do nosso Instituto. Um trabalho sobre mudança social, do Costa Pinto, é lá do nosso

Instituto.

José Sérgio: Havia relação com a sociologia de São Paulo?

Evaristo: A gente trazia gente para cá. Não a sociologia da Escola de Sociologia e

Política, mas o Florestan Fernandes, por exemplo, veio. Fizemos um simpósio aqui com

Florestan, lá no Instituto. E mantínhamos contato. Houve um congresso... Eu fui vice-

presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia. O Florestan, presidente. Isso foi em

1962. Florestan presidente; eu, vice-presidente. O Otávio Ianni, o Fernando Henrique

Cardoso... Eu examinei dois concursos de Sociologia. Um foi o do Ruy Coelho. Eu

examinei a docência dele em 1962. Ele fez uma tese sobre Augusto Comte. Ele era da

cadeira do Fernando Azevedo. Depois foi diretor da Faculdade de Filosofia de São

Paulo. E examinei em junho de 64 a cátedra do Florestan Fernandes.

José Sérgio: “A Integração do negro na sociedade de classes”...

Evaristo: Uma tese desse tamanho, um tijolo assim! E ele estava com medo de ser

preso, porque estava muito visado. Presidente da banca: um grande sujeito, Sérgio

Buarque de HolandaVeio o Thales de Azevedo da Bahia, eu, ele, aquele filósofo de

esquerda, eu tenho um livro dele aí, “A História das idéias no Brasil”...

José Sérgio: O Cruz Costa?

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 27 de 31

Evaristo: O Cruz Costa, o João Cruz Costa. Então, examinei o Florestan Fernandes. É

um grande sujeito, gosto muito dele até hoje. E você vê a coisa como fervia...!

José Sérgio: O senhor dava Sociologia Industrial nessa época?

Evaristo: É, eu mudei o nome para Sociologia do Trabalho. A princípio eu dava

Sociologia Geral e depois mudei para do Trabalho. Aí, quando veio 68, acabaram com o

Instituto e em 69 eu fui preso. Saí preso dessa casa. Saí preso em junho de 69 e deixei o

Instituto. E como eu era regente de cátedra, não era catedrático... Livre-docente, regente

de cátedra, eu não era propriamente vitalício, não tinha direito ao cargo. De modo que

saí de lá.

José Sérgio: O senhor era catedrático na Faculdade de Direito?

Evaristo: Na Faculdade de Direito.

José Sérgio: Mas estava licenciado?

Evaristo: Não estava, não. Porque a Constituição, em 67, permitia você poder fazer um

contrato. Eu tinha um contrato na nossa de Filosofia. Aí a Vanda Torok fez tudo para ir

para lá. A Vanda era formada em Geografia e História, com o Delgado de Carvalho, que

foi quem a iniciou na coisa. O Delgado foi um conquistador danado. Era um velhote

bonito e tal... Então ela fez tudo, me denunciou, aí eu deixei a Filosofia, em 69. Ela

denunciou aquela gente toda e tal. Basta dizer que em abril de 69 foram demitidos 12

professores do Instituto de Filosofia. 12 professores! Da universidade foram demitidos

ao todo, em todo o Brasil, 44 professores. A minha televisão ficava ali, e eu me lembro

que eu... Aquele sujeito do repórter Esso, Gontijo Teodoro, deu. E eu prestei atenção.

Desses 44 em todo o Brasil, só do nosso Instituto dava 12. Para você ver como era... Eu

ainda não fui preso nessa época, não. Eu ainda consegui ir vivendo. Larguei o Instituto e

fui vivendo. Me pegaram foi com o AI-5. Eu ainda fui colega do seu pai em 68 e 69, no

Conselho de Pesquisa, o “Conselhinho” da Universidade. Fui colega lá do José Leite

Lopes, no “Conselhinho”. Até que me pegaram em 69. Primeiro de setembro de 69 eu

fui preso. Fui aposentado. Preso eu fui em junho de 69. E a Sociologia, você vê... A

pesquisa... São Paulo distanciou-se muito do Rio de Janeiro. Distanciou-se muito.

Porque aqui a pesquisa agora é que está voltando. Agora é que está voltando, com

vocês. É outra geração. É outra geração muito diferente. Houve um hiato muito grande.

Costa Pinto15, que era muito pedante, muito prosa, muito vaidoso, mas que era um

15 Luís Aguiar Costa Pinto, falecido em ...

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 28 de 31

homem de talento, em 65 foi embora do Brasil e nunca mais voltou. Levou uma aluna

que é um doce de coco, a Sulamita. Era uma morena de cabelo preto. Ele foi trabalhar

na ONU. Ficou lá no Canadá e até hoje está lá. Esse não voltou mais. Aposentou-se nas

duas faculdades.

José Sérgio: E o livro do Sindicato Único, ele saiu como livro então?

Evaristo: Saiu como livro. Como saiu em 52, o Getúlio era presidente e eu atacava o

Getúlio nominalmente, ele promoveu o Flores da Cunha procurador de primeira

categoria do Rio Grande do Sul e não me promoveu. E o Guilherme Figueiredo recebeu

sua promoção em um ano. Ele escrevia numa revista chamada “Diretrizes”, do Samuel

Wainer. Uma boa revista. Então, ele escreveu lá uma notinha que eu tenho guardada.

Ele disse: “- O Evaristo de Moraes Filho, como disse que a legislação social já existia

antes de 30 e atacou o Getúlio Vargas não foi promovido, não-sei-o-quê...” E eu

sempre fui perseguido. O Dutra não gostava de mim, me chamava de comunista, me

mandou para a Bahia. Em 45, eu já casado, com uma filha, fui removido para a Bahia.

Fiquei por dois anos, de 45 a 47. E fui servir na Biblioteca Nacional. Rubem Borba de

Moraes, que já morreu, era diretor, me requisitou, eu fiquei no gabinete dele, ali

encostado, na Biblioteca Nacional. Fiquei lá até 47. Depois voltei à Procuradoria, e

assim por diante.

José Sérgio: Quer dizer, quando o senhor saiu da Procuradoria é que o senhor pôde se

dedicar integralmente à Universidade.

Evaristo: Exato. Eu estava na Procuradoria, mas lá não tinha ponto nem horário. Ficava

à vontade. Mas sempre com fama de comunista. No “ Sindicato Único” a minha tese era

defender o sindicato único antes do fascismo. Porque ele não é fascista. Porque na

França mesmo, Henri Capitant e Paul Cuche no fim do século passado já quiseram

fazer o sindicato único, o chamado sindicato “obrigatório”. Eles iam além. Você exercia

uma profissão e era obrigatoriamente sindicalizado. Daí eu chamar nesse meu livro o

sindicato de “a gestalt da profissão”. A configuração da profissão, a forma da profissão.

Uma solidariedade necessária, obrigatória. Nesse sentido, era revolucionário. Daí eu

citar Maxime Leroy - que era um grande socialista francês - no começo logo do livro,

dizendo que a unidade da profissão era igual à unidade do corpo. O circulismo católico

foi contra. O Alceu Amoroso Lima, em 34, conseguiu a pluralidade sindical. Para ter o

circulismo católico. E tinha o sindicato católico, o sindicato por empresa... Você

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 29 de 31

imagina o sindicato por empresa! A empresa pagava a sede do sindicato, pagava as

despesas do sindicato... E assim por diante. Matava o sindicato, né? Você deve ter visto

muito isto lá no Nordeste. O usineiro dominando o sindicato.

José Sérgio: O Joaquim Pimenta, ele também defendia o sindicato único?

Evaristo: Defendia. Ele tem um livro interessante, “Retalhos do passado”, são as

memórias dele. E um outro livro, “A Sociologia do Trabalho”, que publicou em 43

numa coleção que eu dirigia. Ele não era reacionário, não,ele era socialista.

José Sérgio: O senhor dirigia essa coleção nessa época, em 43? 16

Evaristo: Dirigia. Era co-editada por um editor de São Paulo, hoje eu acho que não

existe mais. Era um sujeito foragido da Polônia, me esqueço o nome dele. Quem

inaugurou a coleção, curioso isso, foi o Oliveira Vianna com “ Problemas de direito

sindical”. E ele procurou negar o fascismo dele. Era 43, a coisa já estava virando e ele

procurou negar. O segundo volume foi “Sociologia Jurídica do Trabalho”, do Pimenta;

depois o terceiro foi um livro já de Direito do Trabalho, Dorval Lacerda, “Renúncia do

Trabalho”.

José Sérgio: E o senhor resolveu editar o livro na época porque achava oportuno... O

momento era oportuno de fazer uma revisão...

Evaristo: Ah, é. Porque ainda estava em vigor a Constituição de 46. E estando em vigor

a Constituição de 46, como é que nós tínhamos ainda o imposto sindical? Como é que

nós tínhamos ainda a intervenção sindical? De maneira que eu citei alguns julgados do

Tribunal Federal de Recursos, uns contra e outros a favor do imposto sindical. E eu lutei

contra o imposto sindical, contra a intervenção sindical, contra o atestado negativo de

ideologia, pela liberdade e autonomia sindical e assim por diante. De modo que eu

publiquei o livro com essa intenção.

José Sérgio: O senhor chegou a dar cursos no Ministério do Trabalho?

Evaristo: Houve um curso lá. Um sujeito que era juiz do Trabalho, do Tribunal

Superior, chamado Astolfo Serra. Esse Astolfo Serra era maranhense e era um homem

livre, inteligente... Foi em 47. Eu me lembro que nas primeiras aulas eu ficava com o

coração pulando, porque era um curso para a multidão, era um curso livre, aberto. Não

há nada pior do que você dar aula para uma turma não-homogênea. Porque você dava

coisa que era adiantada para um, atrasada para outro; reacionária para um, avançada

16 O entrevistador refere-se à coleção Direito do Trabalho da Editora Max Limonad.

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Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 30 de 31

para outro, assim por diante. Eu dei aulas lá de Introdução ao Direito do Trabalho. E

comecei meu ensino de Direito do Trabalho em 47. Porque só em 56 é que eu fui

nomeado catedrático interino de Direito do Trabalho. Em 51 eu já fui contratado para

Direito do Trabalho. Basta dizer que o Petrônio Portella, que foi Ministro da Justiça da

revolução foi meu aluno. “- Mas como é que você é meu aluno se você é da minha

idade?” “- Mas foi da sua primeira turma, o senhor era muito moço...” E realmente, eu

comecei em 1951. 1950 foi o primeiro ano em que eu dei aula de Direito do Trabalho

contratado. Naquele tempo não havia ainda a obrigatoriedade de fazer doutorado e essas

coisas todas não. O sujeito saía formado e podia fazer concurso. Então, eu comecei em

47 o curso no Ministério do Trabalho, ensinei lá muito tempo, depois também dei

Sociologia Industrial, depois em 49 eu comecei Sociologia na Faculdade de Filosofia,

em 50, Direito do Trabalho na Faculdade de Direito, aí nunca mais deixei. Até 69. Mas

só contaram como tempo de serviço meu de 54 para cá. Daí eu ter poucos anos e ganhar

uma miséria de anuênios. Foi uma vida de luta, sabe? Foi esse regime que acabou com

tudo. E eu sou o único catedrático - essa é que é a minha honra -, o único titular que não

aceitou a anistia no Rio de Janeiro. Eu sou o único. Só duas pessoas não aceitaram no

Rio de Janeiro: eu e uma moça chamada Elisa Frota Pessoa. A Elisa me telefonou e

disse: “- Mas Evaristo, você vai aceitar?” Eu disse: “- Não. Não fiz nada, fui preso. Não

fiz nada, fui aposentado. Não fiz nada, fui anistiado. Isso é paranóia coletiva, isso é

loucura. Eu não fiz nada!” Então, o Renato Caldas, que foi um relativo bom reitor –era

bisneto do Duque de Caxias, morreu num desastre de automóvel - escreveu uma carta a

todos os professores, a mim, a teu pai, a todos os professores, para nós não passarmos

pelo vexame de requerer a volta. Isso foi interessante. Mas eu escrevi uma carta para ele

de resposta dizendo que eu não aceitava. Ele me cantou, me cantou, esperou, e eu não

voltei. Até que prescreveu. Você tinha uns dois meses, um mês, para requerer. E eu não

requeri. De modo que só eu e a Frota Pessoa que não voltamos. Eu sou o único titular

que não voltou a ser professor. Porque eu sou aposentado com o tempo parcial de 69. É

uma miséria. Esse mês, com todo o décimo terceiro salário – eu recebi ontem a nota –

foi 292 mil cruzeiros. Com todo o décimo terceiro. E eu não voltei a ensinar; não

reassumi. Quem era diretor da Faculdade de Direito? Arthur Machado Paupério,,

integralista. Um sujeito nojento. Quem era professor de Sociologia criminal? José

Arthur Rios. Eu não voltei a ensinar. Em São Paulo não voltaram o Florestan Fernandes,

Page 31: ENTRE O DIREITO E AS CIENCIAS SOCIAIS: UMA … José... · literatura do direito social e da sociologia , como a própria trajetória de seu autor, entre a Faculdade Nacional de Direito

Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 31 de 31

o Ianni, o Gianotti. Mas no Rio, eu fui o único titular que não reassumiu a cátedra. Hoje

eu estaria com um salário bem maior, bem melhor. Mas pela minha idade eu tinha que

agüentar ainda... Em 79 eu tinha 62, 63 anos. Eu tinha que agüentar ainda uns sete anos.

Eu não ia agüentar. Eu ia brigar lá na Faculdade. Mas fui o único titular que não aceitou

a anistia. Quer dizer, para mim os algozes não foram anistiados porque eu não aceitei a

anistia.

José Sérgio: Porque aí, o senhor voltaria para a Faculdade de Direito, né?

Evaristo: De Direito, é. De Filosofia, eles tentaram. Me elegeram patrono lá, uma vez.

Eu fui patrono de uma turma na faculdade. Examinei um concurso lá, também. Mas

não voltei.