Entre o Fascinio Do Passado e o Enigma Do Futuro - Isaias Pessotti

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1 Margem, Faculdade de Ciências Sociais PUC – SP, nº. 5, São Paulo, EDUC, 1992. Entre o fascínio do passado e o enigma do futuro ISAÍAS PESSOTTI Resumo O artigo analisa as emoções suscitadas pelas narrativas do passado, pela vivência dos fatos presentes e pelas indefinições do futuro. Esse procedimento permite situar o ser humano – fraco, limitado, inseguro e dolorosamente autônomo – diante do enigma do futuro: como projetá-lo e construí-lo. A ciência é o único mapa confiável, mas traz a possibilidade de dominação cientificamente administrada dos povos, pessoas e recursos. A discussão e proposição de valores para o futuro devem ser buscados na junção dos conhecimentos histórico e científico. Esse é um papel superior da universidade. Palavras-chave: vivência do tempo; emoções e tempo, ciência e ética; universidade e ética; construção do futuro. Abstract The article analyses the emotions raised by the narrations of the past, by the experience of present facts and by the lack of definitions of the future. This procedure allows to place the human being – weak, limited, insecure and painfully autonomous – before the future’s enigma: how to design and build it. Science is the only reliable source, but it brings about the possibility of the scientifically administered domination of peoples, individuals and resources. The discussion and proposal of values for the future must be searched in the historical and scientifical knowledge. This is a major role of universities. Key Words: Time experience; emotions and time; Science and ethics; ethics and university; future construction.

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Margem, Faculdade de Ciências Sociais PUC – SP, nº. 5, São Paulo, EDUC,

1992.

Entre o fascínio do passado e o enigma do futuro

ISAÍAS PESSOTTI

Resumo

O artigo analisa as emoções suscitadas pelas narrativas do passado,

pela vivência dos fatos presentes e pelas indefinições do futuro. Esse

procedimento permite situar o ser humano – fraco, limitado, inseguro e

dolorosamente autônomo – diante do enigma do futuro: como projetá-lo e

construí-lo. A ciência é o único mapa confiável, mas traz a possibilidade de

dominação cientificamente administrada dos povos, pessoas e recursos. A

discussão e proposição de valores para o futuro devem ser buscados na

junção dos conhecimentos histórico e científico. Esse é um papel superior da

universidade.

Palavras-chave: vivência do tempo; emoções e tempo, ciência e ética;

universidade e ética; construção do futuro.

Abstract

The article analyses the emotions raised by the narrations of the past,

by the experience of present facts and by the lack of definitions of the future.

This procedure allows to place the human being – weak, limited, insecure and

painfully autonomous – before the future’s enigma: how to design and build

it. Science is the only reliable source, but it brings about the possibility of the

scientifically administered domination of peoples, individuals and resources.

The discussion and proposal of values for the future must be searched in the

historical and scientifical knowledge. This is a major role of universities.

Key Words: Time experience; emotions and time; Science and ethics;

ethics and university; future construction.

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O fascínio do passado nos é transmitido desde as primeiras historinhas

da infância, em que se narravam feitos, venturas e azares de heróis e vilões

que jamais eram contemporâneos de quem narrava ou escrevera a história.

Nada era presente, atual. Tudo era passado, tudo “era uma vez...”.

Um avô ou uma tia mais velha, mesmo que não fosse uma fonte de

carinho, era uma fonte de histórias, de saberes, de experiências. Era alguém

que tinha visto bondes puxados por burros, que sabia como fazer vassouras,

que tinha enfrentado desafios, imprevistos e acidentes. Alguém que, para o

nosso deslumbramento infantil, tinha algo dos heróis das historinhas. Assim,

o avô, ou a tia, mesmo presentes, faziam parte do “era uma vez...”.

Uma história sobre os fatos e personagens do momento não teria o

fascínio das coisas do “tempo antigo”, dos fatos acontecidos “muito longe

daqui”. Por quê? Porque a realidade presente, o que ocorre agora e aqui,

impõe-se como fato, em toda a sua realidade, em toda a sua objetividade. E,

enquanto realidade, impede a fantasia, o prazer lúdico de imaginar.

Enquanto objetividade, anula ou, no mínimo, limita os processos subjetivos

de identificação com os personagens, ou a sublimação dos aspectos feios,

traumáticos ou desagradáveis do que se narra.

Então o charme do “era uma vez” e do “país distante” está no poder do

fugir do agora e do aqui. Está, portanto, no prazer da fantasia e da livre

elaboração emocional dos fatos e eventos da história. Está na negação da

realidade objetiva. Se o passado imaginado ou histórico nos encanta, é

porque ele não existe mais: não está aqui, não existe agora. Não é realidade;

não é, a rigor, fato. É registro, história.

Ao contrário, os episódios atuais, presentes, não são registros:

aparecem como fatos. E, enquanto fatos, impõem certas percepções e

excluem outras, impõem certas emoções e impedem outras. Mais ainda, o

episódio presente é um dado, “dado de fato”, inalterável. É a realidade com

toda sua força a impor-se a nós, pelo simples fato de existir, sem que a

subjetividade possa de algum modo alterá-la, mudá-la do rumo do belo e do

prazer; ou na direção dos desejos, conscientes ou não, de cada um.

No tempo do “era uma vez”, e no espaço do “país distante”, tudo é

diverso. A fantasia e a apropriação subjetiva dos eventos e personagens é

totalmente livre. Não havendo fatos a racionalidade não se impõe. Seria o

gozo da irracionalidade? Não da irracionalidade desejada, imposta, que seria

o delírio ou a loucura. Uma irracionalidade consentida, reversível.

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O fascínio das histórias infantis está, portanto, na liberdade de jogar

com a fantasia e a própria subjetividade emocional. Note-se: está na

liberdade de se entregar ao jogo da irracionalidade ou da ficção e não na

imposição desse jogo. É, se quiserem, um delírio consentido e cuja atração

está justamente no contraste que mantém com a percepção racional que o

presente impõe. Ou na possibilidade de acordar do sonho. De recorrer às

armas da razão, quando a fantasia trouxer medo, terror ou sofrimento.

O passado fascina porque, de certo modo, nós o dominamos, está sob

controle. O presente, não. O presente se impõe e escapa do nosso controle,

ele nos controla. Por isso é, quase sempre, desafio. É risco. Um risco que o

passado não traz. O passado não assusta, não ameaça.

Como o passado do “era uma vez” nos fascinava na infância, o passado

histórico também nos fascina. Por motivos parecidos. A Idade Média, a Grécia

antiga, as navegações pioneiras, o Renascimento, a vida dos imigrantes do

século passado e do início deste também encantam. Aqui não se trata do

reino da fantasia: além dos documentos das épocas, as armaduras e castelos

estão à vista, como os textos gregos, Atenas e seus templos, as cúpulas e

estátuas do Renascimento, os carroções dos imigrantes ou os tonéis ou

ferramentas que utilizaram. Não há ficção, não é um “faz de conta”. Mas o

fascínio é o mesmo ou quase o mesmo. Não há fantasia, mas se trata

também, aqui, de irrealidade. O passado histórico foi real, já não é.

Os restos de uma catedral ou uma carroça dos velhos imigrantes nos

fascinam justamente por sua natureza híbrida: são restos reais e presentes,

de eventos ou pessoas que são, agora, irreais e ausentes.

Agora o prazer buscado não é o da livre fantasia que o conto de fadas

desgarrava, nem o prazer de se apropriar dos eventos e poder alterá-los

livremente, nas asas da própria emoção. As velhas fotografias ou uma vasilha

de cerâmica pré-colombiana nos fascinam justamente porque são elementos

factuais. Provas de eventos e marcas reais de pessoas. Perderiam seu

encanto se descobríssemos que são imitações, ficções. Aqui a ficção seria o

desencanto. Diante do passado histórico, já não é a fantasia que nos

encanta, mas o que dele restou e que permanece real. Continua real, mas

não é do presente.

Tocar uma estátua romana ou uma espada etrusca ou uma velha roda

d’água nos emociona. Por quê? Porque ao tocá-las nós entramos no passado,

convivemos, por um instante, com o escultor romano, o guerreiro etrusco, ou

o carpinteiro de cem anos atrás. É um contato pessoal, através dos sinais que

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ele deixou. Essa sensação de convivência, de intimidade, fica mais evidente,

até dramático, quando o que ficou do passado não são ruínas ou objetos,

mas os escritos, os textos, a palavra escrita. É por isso que os manuscritos

antigos têm um charme irresistível. Não são apenas palavras mortas do

tempo que passou; são mensagens, carregadas de significados que

perduram, guardados nas palavras. Quando alguém as decifra tornam-se

vivas, tão vivas como eram para quem as escrevia.

Ao ler um escrito medieval, por exemplo, faz-se um contato com o

passado. Só que agora não é um contato simbólico e mediado por um

objeto-sinal. É um contato real, vivo e direto, com o autor do escrito ou com

o copista que o escreveu no pergaminho. Agora se interage com pessoas

distantes, que habitam outro tempo. Agora chegamos ao autor, como

chegava qualquer leitor contemporâneo dele. Do mesmo modo que a leitura

da carta de um amigo distante nos coloca em contato real, direto e pessoal,

com ele.

Mas há uma diferença: ao contrário de um texto atual, o conteúdo de

um pergaminho medieval não toca a nossa vida de hoje. Por isso, a

compreensão que temos dele, as idéias que ele nos desperta, são isentas de

qualquer exigência de lógica, coerência ideológica e de correção da

informação. Pode-se lê-lo e entendê-lo sem qualquer referência à realidade,

ou às categorias do pensamento atual, aos critérios de acerto desse tempo.

Não há, nessa leitura, qualquer risco de erro. É uma liberdade de “leitura”

que, diante de um texto de hoje não nos é dada, não sentimos. É essa

liberdade que assemelha o fascínio do passado histórico ao do conto de

fada, do “era uma vez”.

Mas há outras razões para o charme do passado histórico.

Diversamente do presente e do futuro, ele não tem imprevistos. É aventura,

ventura ou desventura consumada. É um universo racionalizado, ordenado,.

Onde os imprevistos e os contrastes se acabaram. É um reino de paz, de

serenidade. Não há mais desejos insatisfeitos ou angústias pelo que pode

ocorrer. As paixões estão caladas, as desgraças não existem. As dores se

aquietaram. O passado é, assim, um lugar seguro, um refúgio, livre das

incertezas do presente, dos temores pelo futuro. Também por isso, nos

fascina.

Outra explicação para o charme do passado, ou para o prazer que

sentimos ao conhecê-lo, tem raízes na insegurança da criança sobre suas

origens. É a ansiedade de sentir-se estranha. De não saber as causas de sua

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presença no meio de pessoas que sabem e podem mais que ela, e que

viveram experiências que ela não conhece, falam de coisas e fatos que ela

jamais viu. Conhecer o passado significa, agora, o alívio da angústia de

existir por acidente, sem razões, sem explicação. A criança adora saber como

viviam seus pais e seus avós porque, ao conhecer esse passado, enxerga sua

existência como parte coerente de um processo, como “fruto” dele. O

conhecimento do passado, neste caso, atrai porque ordena o caos, ilumina a

penumbra. Aclara o horizonte.

Também o adulto encontra prazer em descobrir como viviam seus

avós, como era sua cidade antes de ele nascer, como foi a chegada do

primeiro médico à vila. Por quê? Pelo mesmo motivo: ele encontra, ao saber

desse passado, explicações que lhe faltavam, significados novos para

acontecimentos que pareciam incompreensíveis, respostas para perguntas

que gostaria de ter feito e não fez. Ele também busca, e acha, no passado, a

resposta a incertezas, a reordenação do que não se explicava. (O

conhecimento do passado traz o prazer de achar respostas. Mesmo a

perguntas jamais formuladas, inconscientes, disfarçadas sob a forma de

angústias e inseguranças.)

E o passado alheio? O dos acontecimentos políticos, sociais e culturais?

Tem seu charme, também ele.

Conhecer os detalhes da colonização portuguesa no Brasil, do

assassinato de Júlio César, das batalhas dos templários da Terra Santa ou da

abdicação de D. Pedro I dá a sensação de penetrar no proibido, no

escondido. Não só: dá a sensação de pertencer a um processo maior, que

inclui aqueles episódios. Mesmo que eles não nos empolguem, ainda que nos

incomodem, o simples fato de conhecer esse passado dá algum sentido mais

claro à nossa concepção do presente e da vida. Neste caso, o conhecimento

histórico não só dissipa as trevas, mas também nos dá recursos para julgar o

passado; não só nos reduz as ansiedades, mas nos torna, em certo modo,

donos de episódios que não eram nossos e nos mostra participantes de

processos que nem conhecíamos. O conhecimento histórico, agora, amplia a

nossa significação. Também por isso nos fascina. Ele nos faz saber em que

rota caminha a nave que nos transporta, por quais portos ela já passou.

Há mais uma explicação para os encantos do passado e do

conhecimento histórico. Também envolve a busca dessa significação nossa

no processo temporal em que navegamos. Mas há alguma diferença aqui. A

que vai entre o enxergar-se como participante de um processo histórico

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impessoal que nos envolve e o perceber-se parceiro ou seguidor de outros

homens, que agora habitam o passado.

Quanto mais se conhece sobre as lutas e projetos dos que passaram,

mais se pode perceber quanto os próprios combates e planos são

continuação daqueles. Quanto a luta é a mesma e os alvos não mudaram.

Assim, o conhecimento do passado histórico nos vincula a outros homens,

que sequer nos conheceram, mas que nós podemos conhecer e amar, como

companheiros de luta, de crença, de valores. E então nos sentimos

depositários de bandeiras que acreditávamos só nossas, mas foram herdadas

dos que as defraldaram antes de nós. Aqui não se trata apenas de encontrar

uma significação maior para a própria trajetória no planeta: agora, o que o

conhecimento histórico nos dá é companhia. É significação afetiva para a

nossa luta ou projeto. É comunicação pessoal com os valores e idéias dos

que nos precederam.

Há ainda outra graça, talvez menor, no conhecimento do passado

histórico. Ele nos mostra quanto as inovações são velhas, quanto as mesmas

descobertas se repetem, quanto os pioneiros de hoje foram precedidos na

história. Mostra a inexorável continuidade da trajetória do conhecimento.

Quanto as novidades são antigas. Qual a graça disso? É a certeza de que o

melhor conhecimento de hoje será ultrapassado amanhã, e de que, portanto,

a angustiante busca da verdade permanente não vale a pena que custa.

Agora, o conhecimento histórico nos absolve e isenta da culpa de não

sermos deuses. De sermos finitos.

O conhecimento histórico pode, ademais, ser fonte de prazer, quando

enxergamos os episódios e personagens, ressuscitados dentro de alguma

trama coerente. Como ocorre nos romances ditos históricos. Por que a ficção

histórica, principalmente quando brotada de documentação autêntica, pode

fascinar-nos?

Para responder a essa pergunta, convém começar com um pouco de

história: no final das tragédias gregas, principalmente das de Eurípedes, uma

fala de algum personagem, de algum deus ou do coro apontava o destino

ulterior das figuras participantes: desgraça e vergonha para os vilões, honra

e glória para os heróis e mártires. A katá strophé era o retorno à serenidade

após as emoções intensas do pathos. Assim, os terrores e ódios, compaixões

e desprezos que a tragédia suscitara eram abolidos. Superados por uma

reordenação de fatos e personagens numa harmonia racional, sublimada.

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A ficção “histórica”, parece, faz o contrário: promove o retorno a um

passado, em que o bem e o mal, as dores e os desejos já se aquietaram. A

volta a um mundo já sublimado e racionalizado, para reativar as emoções, as

ansiedades, ou, numa palavra, o pathos. Episódios e personagens revivem

para recriar paixões, emoções, ansiedades. Por exemplo, monges,

inquisidores e hereges ressuscitam e nos provocam medo, ódios ou

compaixão.

A ficção histórica produz no leitor a vivência emotiva, patética, de

episódios passados, depois de se terem transformado em história. Aliás o

conhecimento propriamente histórico é, essencialmente, uma reordenação

racional e sublimadora; é um que, como a katá strophé, abole as dores, anula

os conflitos, transforma vida e paixões em registro sereno.

Como explicar, então, o charme, a sedução de obras como O nome da

rosa, em que o leitor se defronta, não com a serenidade das atas e registros

mas com medos, perigos e situações cruentas? Onde não se acha, portanto,

qualquer sublimação tranqüilizadora.

Ocorre que o passado que o romance ressuscita, mesmo repleto de

terrores, é vivido como uma aventura já consumada. É até relatada pelo

protagonista. E, portanto, inofensiva. Na verdade, o novo pathos é vivido sem

impotência, sem angústia: por mais conflituosa ou trágica que seja, a trama é

vivida com a segurança, inconsciente até, de que tudo pode retornar ao

plano do sublime ou do racional em qualquer momento. Com a segurança da

katá strophé.

Talvez não aconteça o mesmo, com obras de ficção não histórica:

nessas, ou se elabora o quotidiano, ou se decola para a fantasia. No primeiro

caso, não se pode sublimar as contradições e conflitos do dia-a-dia nem se

exclui eventual sobreposição ou paralelismo a aspectos da vida real do leitor,

o que lhe impede uma verdadeira fuga do presente. No segundo, é

necessário, quase por definição, que a trama não seja ancorada em qualquer

ordenação racionalizadora.

Em outros termos, ou o leitor revive o seu quotidiano, através dos

personagens ou precisa abandonar-se à insegurança da fantasia ilimitada, à

insegurança do... delírio. Ora, o pensamento delirante fascina porque é fuga

de uma realidade tediosa ou sofrida, ou porque é aventura. Mas ele é

também ameaça, traz ansiedade, quando a narrativa lhe impõe o

desgarramento da órbita da racionalidade. Quando ele se sente empurrado

para o espaço negro do absurdo. Ou da loucura.

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É necessário, então, para que o prazer da aventura não se desgaste na

ansiedade, que não se perca a sensação de poder voltar à racionalidade; ou à

sublimação post-factum.

Uma obra de ficção, histórica ou não, atrai porque traz o prazer lúdico

da fantasia, do pensamento delirante. Mas para fascinar o leitor, deve

preservar-lhe a segurança de não se extraviar num universo sem limites, de

não “se perder de si mesmo”. E nisso reside, talvez, o charme do romance

histórico: ele é menos uma viagem ao espaço sideral que uma visita ao velho

sótão dos avós. Uma visita que revive pessoas, diálogos e episódios, mesmo

tristes ou cruéis. Mas eles são revividos com a segurança de que, fechada a

porta, glórias e medos, grandezas e vergonhas, dramas e temores, tudo isso,

todo esse universo se esfuma.

É o pathos, agora mais sereno, após a katá stophé. A essas emoções

mais serenas, livres da ansiedade pode-se juntar, no romance, algum enigma

a desafiar a razão.

Então se junta o encanto da fantasia ao prazer tranqüilizante do

conhecimento histórico e ao emprego lúdico das armas da razão.

Agora a teia em que se enreda o leitor é mais completa ainda. A ficção

histórica de enigma seduz porque oferece ao leitor o prazer lúdico do

pensamento delirante (na revivência afetiva do passado), imune à

insegurança ansiosa do absurdo e com a sensação de pleno gozo de sua

razão.

O fascínio, em resumo, estaria no equilíbrio tênue entre o real,

portanto racionalizável, e o imaginário. O que seduz, no romance histórico,

não é o evidente, nem o absurdo. É o verossímil.

Após essas reflexões sobre os encantos do passado e o conhecimento

histórico, e já que se fala tanto em novo milênio, olhemos um pouco para os

enigmas do futuro e o conhecimento científico.

O futuro é o reino do amanhã, o território do que ainda vai ser. Para o

entusiasmo da nossa infância aparecia identificado com a promessa de ser

grande, de saber tudo ou quase tudo, de ser forte. Tanto quanto nos

sentiamos pequenos, ignorantes e fracos. O futuro era uma linha de

chegada, o acesso à plenitude. O fim das impotências, da fraqueza. A

conquista da autonomia.

Depois crescemos, aprendemos muito, ficamos até mais fortes. Só que

a linha de chegada não existia. A plenitude continua a fugir de nós como

miragem. Apenas se termina um trabalho, percebe-se que ele poderia ser

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totalmente outro. Apenas se alcança um alvo e ele aponta para outros.

Atinge-se uma meta e dela partem novas estradas. Mais caminhamos, mais

avançamos no território que era o das esperanças, mais percebemos que

continuamos fracos, limitados, inseguros. E, agora, dolorosamente

autônomos. Entregues a nós.

Tudo quanto o passado tinha de consumado e ordenado, o futuro tem

de indefinição e inconsistência. Por isso, diante do futuro, o homem se acha

indefeso, impotente. Não há acasos no passado: a causalidade está lá,

aprisionada, exaurida: foram ditas todas as palavras, sofridas todas as dores,

fruídos todos os prazeres. Os complexos processos causais que

determinaram guerras e epopéias, heresias e inquisições, sonatas e

catedrais, mesquinharias e grandezas estão lá, agora intemporais,

desativados. E, enquanto desativados, seu conhecimento dispensa qualquer

urgência.

Diante do futuro o homem se defronta com a vastidão de um horizonte

nebuloso e sem contornos que pertence ao acaso. Ao domínio do

imponderável. Mas é um território de incerteza que terá de ser atravessado. E

na medida em que a incerteza é risco de sofrimento e desgraça, o futuro não

traz só a indefinição cognitiva. Ele é, também, ameaça ou, no mínimo, um

desafio.

A mera abolição racional do acaso não assegura a calmaria. Saber que

amanhã não choverá não basta para nos proteger da chuva. O que o futuro

exige é, agora, mais que a busca de certezas: é preparação para o risco. Com

tudo o que nisso possa haver de temor ou de ousadia, de confiança ou

timidez. Mas como preparar-se para riscos que não se esclarecem? Como

prever os acidentes e as perdas? Armando-se de saber e de experiências que

possam servir para uma gama de amplas situações. O futuro, então, impõe o

aperfeiçoamento pessoal. O desafio que ele propõe é dúplice: requer o

equipar-se de saberes e estratégias, de um lado. De outro, exige coragem,

virtude.

Não seria mais cômodo, nessa situação, experimentar estóica ou

cinicamente que a vida traga o que tiver de trazer, sem as angústias que

marcam a espécie humana?

Uma espécie que, posta entre a besta e um deus, não tem a

imprevidência daquela nem a potência deste e que, portanto, está condenada

a antecipar o perigo e a sentir-se impotente?

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É que, diante do futuro, desnuda-se a impotência e a fragilidade do

homem. Como sempre ocorreu. Em tempos passados, diante da impotência e

a um deus que sabe tudo e que sendo também onipotente podia garantir

esquivas e vitórias diante de qualquer urgência improvisada. O recurso à

divindade – portanto, ao mito e ao dogma – era o remédio para a ansiedade

diante do futuro. Porque abolia a incerteza e supria a importância.

Já desde o Renascimento e, principalmente, a partir do século XVII, os

sucessos da racionalidade na indagação da natureza abalaram os mitos e os

dogmas, Com o crescente desprestígio das crenças frente à eficácia da

racionalidade no domínio das coisas, a divindade começou a perecer sua

função ansiolítica: já não é mais ela que afasta os fantasmas da incerteza e

dá virtude ao homem assustado.

Essas funções, agora, cabem à razão e ao seu método: pertencem à

Ciência. Saber e Técnica agora são produtos da racionalidade. Agora, no

território do futuro, começam a sumir os fantasmas e a nascer esperanças. O

futuro passa a ser promessa.

Desse modo, o enigma do futuro hoje é outro: já não se trata de

adivinhar como ele é, quais monstros o habitam e como enfrentá-los. O

futuro agora se despovoa: é uma terra vazia, destinada a abrigar o que brotar

da racionalidade científica. o futuro agora deve ser construído. O enigma é:

como projetar o futuro e construí-lo? O desafio novo é o de afirmar o poder

do conhecimento e do engenho humano sobre a natureza, sobre o espaço e

sobre o tempo.

O conhecimento científico é o único mapa relativamente confiável para

a multiplicidade de estradas que o futuro guarda e que o homem deverá

percorrer. O futuro assusta menos nesse tempo de riqueza tecnológica, que

o conhecimento científico gerou e que pode melhorar a qualidade de vida,

preservar o ambiente, banir sofrimentos, distanciar a morte e enfeitar a vida.

Assim, o conhecimento científico não só assumiu a função iluminadora

do dogma e o papel tranqüilizante do mito: ele trouxe sementes e

ferramentas para povoar de esperança o território do futuro, onde só havia

fantasmas. Basta pensar nos avanços da medicina, da genética, da

engenharia de alimentos.

É, portanto, o conhecimento científico que oferece alguma segurança

de um futuro mais feliz para o homem. Uma segurança que deriva das

possibilidades de um controle cada vez mais preciso de variáveis cada vez

mais numerosas. Que encolhe, a cada dia, o terreno do acaso, do risco.

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A ciência nos deu fórmulas que nos podem levar a diferentes direções.

Que nos permitem caminhar, prever impasses, cruzamentos, acidentes de

percurso. Armados do conhecimento científico, enfrentaremos o futuro com

um mapa cuja malha viária se faz cada dia mais complexa e interdependente.

É um mapa mais preciso a cada dia. E é com ele que deveremos atravessar o

futuro, com menos sofrimento ou com mais segurança. Um futuro risonho,

portanto?

Talvez não. O mapa da ciência não tem norte. Pode dar-nos fórmulas,

mas não rumos. Falta a bússola. E a bússola dos valores está desgovernada.

Sem ela, apostar na esperança é puro jogo. Com o risco que todo jogo

implica.

Nesse impasse não nos socorre o mito nem o dogma, que ambos

foram substituídos pela ciência. Mas também ela agora não nos salva. O

poder da tecnologia, que o conhecimento científico trouxe ao homem, não

aponta rumos, oferece métodos. Para produzir antibióticos ou guerra

bacteriológica, por exemplo. A ciência não só nos desamparara na hora de

escolher os rumos do progresso. Criou um risco maior: junto com o poder da

tecnologia ela gerou a tecnologia do poder. A dominação de povos, riquezas

e pessoas, idéias, recursos de sobrevivência, mercados, opiniões e

consciências não se faz mais com a tirania do dogma, com os fanatismos do

mito, coisas do passado. A razão os suplantou, a ciência os baniu. No futuro

toda aquela dominação se exercerá, como já se ensaia agora, segundo as

regras do conhecimento científico.

O poder cientificamente administrado: este é o grande fantasma do

futuro. Um formidável aparato de controle tecnológico das coisas e das

pessoas. Controle para quê? Para qual fim? Tanto quanto o saber aspira à

ordenação teórica, à formalização, à coerência ou, numa palavra, à forma, o

poder aspira à força e aborrece as formas, prescinde das coerências e das

formas teóricas; ele tem por meta o próprio crescimento e a própria

ampliação. Cresce oportunista, como uma rede informe e mutável de pontos

de apoio e de realimentação.

Há uma contradição insanável entre a forma e a força, entre os fins do

saber e os do poder. Seguramente o rumo do futuro, se ditado pelo poder,

qualquer que seja seu dono, visará apenas ao próprio crescimento desse

poder. Podemos esperar, então, que a indicação de rumos virá dos homens

do saber? Virá da instituição destinada a produzir e buscar o saber? Virá da

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Universidade? Seria ela capaz de consertar a bússola? De apontar valores que

norteiem a travessia do futuro?

Os valores que um povo ou uma comunidade persegue, ainda que não

formulados com clareza, são produtos de reflexão sobre a experiência e, por

isso, resultados de algum tipo de conhecimento histórico. Mas são, também,

aspirações, projetos e, desse modo, programação do futuro. Uma

programação que será tanto mais viável quanto mais se fundar em métodos

seguros, quanto mais se socorrer do conhecimento científico (aquele que

aponta as variáveis que precisam ser manipuladas para chegar a um certo

efeito).

Então, a discussão e a eventual proposição dos valores para o futuro

deveriam ser buscadas onde se juntam o conhecimento histórico e o

conhecimento científico. Onde homens responsáveis analisassem as lições da

experiência humana e a partir dessa análise propusessem objetivos de

interesse comum e tecnologia científica eficaz para consegui-los.

Não seria esse o papel superior de uma universidade? Restaria a

questão da conversão dos projetos em atuação política, sem dúvida. Por isso,

deixemos de parte, agora, essa condição decisivamente limitante. A

universalidade não tem poder para tanto. Mas como produtora de saber

deveria ser, naturalmente, capaz de enxergar, nas lições da experiência

histórica, as carências e no método científico, as possibilidades de supri-las.

É isso o que as universidades fazem?

Qual o papel da universidades entre as calmas lições do passado e os

intrigantes impasses do futuro? É nela que se gera o conhecimento histórico

e o conhecimento científico e é nela que a reflexão sobre o passado e as

projeções para o futuro se podem encontrar. O que tem a mostrar, ou, pelo

menos, a dizer, sobre isso, a nossa universidade brasileira?

Receio que a universidade ignore até o rumo para o qual ela própria

navega. Tenho um palpite pouco entusiasmante sobre a universidade: ela

tende a desvalorizar o passado e o saber crítico, a abdicar de construir o

futuro. Está mergulhada num imediatismo estreito, que se revela na pesquisa

oportunista, no culto às revistas de prestígio, no descaso pela graduação em

favor da pós-graduação, nos critérios de avaliação que privilegiam a

produção editorial acelerada, nos financiamentos preferenciais a setores que

produzem agora, com prejuízo dos que poderiam produzir amanhã, se

devidamente financiados. No favorecimento à pesquisa de relevância

tecnológica etc.

Page 13: Entre o Fascinio Do Passado e o Enigma Do Futuro - Isaias Pessotti

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Esses critérios regem, paralelamente, a distribuição do poder dentro da

universidade. Essa busca do poder, conduzida quase sempre sem grandeza,

suplantou a busca do saber que era a alma da academia. Tentam legitimar

aqueles critérios acenando com a urgência de conquistar os poderes da

tecnologia. É importante colher e mostrar a colheita, muito mais do que

semear. Para isso, os novos gerentes da universidade não hesitam em impor

normas, em prescrever cobranças, em desfavorecer os recalcitrantes. Em

resumo, não hesitam em exercer seu bisonho poder. Por sorte, de forma

ainda grotesca, ainda primária, ainda distante de uma tecnologia do poder.

Esses desvios de rumo, da universidade, a tornam, até certo ponto,

mera espectadora, e portanto inútil, ou incompetente, na hora de apontar

rumos para a travessia do futuro. Ela deveria ter o que propor e dizer. Pelo

menos deveria saber quais rumos projeta para si mesma. Mas isso pode

esperar, ao que parece. O mais urgente é o verbo mágico: produzir. A crise

maior não é essa absurda e grave ausência de rumos, de valores a serem

perseguidos: é o descaso diante dessa ausência.

Quanto ao “mundo externo”, por sorte, o desnorteamento da

universidade não trará prejuízo maior. Ele está habituado a caminhar sem

ela.

Os rumos do futuro estão ditados, na realidade, pelo processo

histórico de organização dos grupos sociais em torno de seus objetivos. Esse

processo será tanto mais rápido, quanto mais conhecimento tiverem esses

grupos. Quanto mais o saber histórico e científico fizer parte da educação e

das pessoas. E, sobretudo, quanto mais o cidadão comum entender os

processos que o poder emprega para controlar a vida das pessoas.

Não cabe à universidade ditar os rumos da sociedade. Cabe-lhe

difundir o saber nos vários grupos sociais. Cabe-lhe espalhar a informação

sobre os processos de controle do comportamento. Sobre a tecnologia do

poder. Para que esses grupos sociais enxerguem sua posição no processo

histórico, e então proponham os seus próprios rumos. Não só: para que

saibam, eles também, empregar, para seus fins, a tecnologia do poder.

Isaías Pessotti, psicólogo, professor da USP – Ribeirão Preto.