Entre Os Paradigmas de Aristoteles e Democrito
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Pedro Mota
ENTRE OS PARADIGMAS DE DEMÓCRITO E DE ARISTÓTELES
Fora as recuperações teleológicas da organização vital, a vida apresenta-se ao
cientista contemporâneo como uma forma de auto-regulação-e-reprodução em
desenvolvimento filo e ontogenético, ou seja, uma génese, conservação e reprodução
de relações complexas entre moléculas não-simétricas hidrocarbónicas azotadas que
surgiram a partir de mecanismos de atracção e repulsão de moléculas mais simples
ditas inorgânicas, relações que constituíram sistemas capazes de gerar a partir da
transformação interna de matéria exterior os próprios meios de que se servem para
reproduzirem a sua actividade1.
Embora autores como Bunge afirmem «que não existe ainda uma teoria (um
sistema hipotético-dedutivo) abrangendo todas as espécies biológicas e todos os
aspectos básicos (as propriedades necessárias e suficientes) dos organismos»2,
constatação que permanece actual, aquela fórmula definidora (ou antes, descrição
genérica) mais ou menos adequada a todos os seres vivos, deixa de lado qualquer
sugestão de animismo ou de vitalismo para caracterizar a matéria viva.
1 Cf. OPARINE, A Origem da Vida, ver. port., Silva Couto, Porto, Brasília Editora, 1972;
NOVIKOFF, Alex, HOLTZMAN, Eric, Cells and Organells, N. Y., Holt Rinehart and Wiston, 1976,
trad. esp. Roberto Zarza, México, N. E. Interamericana, 1978, pp. 32-37 (metabolismo da
célula); DANCHIN, Antoine, “Vida”, in Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CN, 1985, Vol. 6, pp. 87-
144; MANSO, Carlos, FREIRE, Ana, AZEVEDO, Maria, Introdução à Bioquímica Humana, Lisboa,
FCG, 1986, 3ª ed., pp. 13-27.2 Cf. BUNGE, Mário, Epistemologia, trad. Claudio Navarra, São Paulo, TAQ, 1987, 2ª ed., p. 88.
Entende-se por vitalismo a recusa da hipótese mecanicista segundo a qual
todas as propriedades do ser vivo constituem as mesmas leis físico-químicas próprias
do nível molecular com o qual aquele se compõe. Para o vitalismo a realidade viva não
se resume a uma conjugação de moléculas que agem umas sobre as outras e de órgãos
dotados de configurações distintas adequadas à produção, transformação, por meios
químicos, de outras moléculas, e seu transporte, por meios mecânicos, garantindo
assim a manutenção da forma e da troca de matérias do corpo tal como uma fábrica
que assimila matérias-primas, as faz passar pelas suas máquinas, que se alimentam
com elas, e que expele uma certa quantidade de produtos acabados, designados
mercadorias.
A este materialismo simplista, o vitalismo opõe a «afirmação de que há no ser
vivo algo de irredutível às leis físico-químicas, que a autonomia, a individualidade de
um organismo, são mais do que uma simples aparência»1.
Sempre que uma vida estivesse para nascer, uma certa substância material
deveria experimentar um impulso inicial que teria origem, não na sua materialidade,
mas numa força de outra ordem, a qual ao mesmo tempo iniciaria o processo de
diversificação daquela substância em partes distintas, que, orientadas na sua
diferenciação e na sua função por aquele princípio vital, passariam a constituir a
estrutura física do corpo. É claro que o vitalismo, mais do que tentar uma explicação
(necessariamente analítico-sintética) para o problema da organização natural,
substituiu simplesmente um postulado misterioso (uma energia que organiza por si
mesma) ao animal-máquina feito de peças, de fluidos, de figuras que, por choques e
pressões, se põem em movimento umas às outras.
As concepções materialistas não deixaram, no entanto, de se opor, contra todas
as ilusões da evidência, ao vitalismo. Para elas, a matéria não é caracterizada por um
estado de inércia. O movimento é uma propriedade da natureza.
Todavia, nem sempre aqueles que investiram numa visão materialista do
mundo puderam ser coerentes consigo mesmos, tanto por causa da sua formação 1 CLEREMBARD, André, Dicionário das Grandes Filosofias, ent. “Vitalismo”, Lisboa, Ed. 70,
1982, pp. 340-341.
2
religiosa quanto pelas circunstâncias históricas em que se inseriam. Por exemplo,
quando, com a crescente importância da mecânica (rudimentar embora) e com a
criação de uma ciência correspondente, Descartes, no século XVII, procurou
interpretar o mundo, fê-lo à medida dessas produções humanas e teve por isso de
conceber uma filosofia cujo dualismo espírito/matéria é, em parte, a expressão da
insuficiência da sua metade mecanicista.
Às regras que determinam as mudanças nas partes da natureza, como leis do
seu movimento, leis que lhe são específicas e que podem ser descritas e formuladas
sem recurso à divindade, Descartes vai ter, pois, que juntar a paradoxal tese da
conservação metafísica da quantidade de movimento.
Para o mecanicismo, os elementos constitutivos dos corpos naturais podem
combinar-se, mediante as ligações que as suas características próprias permitem, em
corpos compostos, formando ocasionalmente um sistema de articulações, alavancas,
pressões, tudo isto posto em andamento, como já se disse, pela interacção das peças,
explicada em termos de dinâmica e de geometria.
Se o mundo inteiro é uma máquina, também os animais o são. Estas máquinas
seriam construídas com peças independentes, fabricadas à parte umas das outras.
Porém, como chegou a suceder que as peças se tivessem reunido para comporem
seres tão sofisticados?
O mecanicismo, enquanto filosofia insuficientemente materialista, deixa, sob a
sua posterior metamorfose organicista, uma porta aberta para que o vitalismo reentre
no teatro da ciência. Que melhor explicação para a existência de uma ordem no mundo
e nos seus entes do que tudo ser montado segundo um plano que previamente ideara
a figura? O próprio modo de reprodução dos seres vivos – que de uma célula informe
faz gerar um indivíduo ao mesmo tempo tão unido e tão diverso – sugere a imanência
de um sentido, a eficiência de uma finalidade.
Consultemos agora a polaridade clássica Aristóteles/Demócrito, a respeito de
cujas filosofias, em última análise opostas, devemos contudo evitar cair na tentação da
caricatura.
3
Elas, se bem que não sejam absolutamente originais, são os lugares em que,
pela primeira vez, com sistema e explicitação, mecanicismo e vitalismo se expuseram
ao julgamento de tantos quantos no ocidente deitaram mãos ao trabalho de investigar
a natureza do vivente e cujos ecos se ouvem através dos séculos, prolongando uma
polémica que iluminou o pensamento de autores da modernidade, como Haller, Sthal,
Diderot, Kant, Hegel, Goldstein, Oparine1.
Demócrito de Abdera, que viveu entre cerca de 460 a. C. e cerca de 370 a. C. é o
mais famoso dos filósofos atomistas da Grécia Antiga. Demócrito argumentava em
favor da autodeterminação da matéria. É importante saber, antes de entramos no
cerne da sua doutrina, que esta foi em parte uma resposta ao argumento eleata contra
o movimento, ou seja, a uma das primeiras teses idealistas contra o movimento como
propriedade da matéria em geral.
Detenhamo-nos, pois, na comparação entre duas visões do mundo e atitudes
epistémicas paradigmáticas que, pela pena de sucessivos pensadores, se foram
degladiando no decorrer dos tempos até aos nossos dias e que, antagónicas
alternativas, se oferecem a uma escolha que decide, em geral e até certa medida, da
perspectiva pela qual a vida é olhada e praticada. Parménides de Eleia e Demócrito de
Abdera podem bem ser tidos pela incarnação original e radical desses dois modelos.
Há, entre outros, um célebre argumento de um dos (supostos) eleatas mais
célebres, Zenão (inventor, no dizer de Aristóteles, da dialéctica, oposição debatida e
rebatida de teses), que visa demonstrar, ad impossibile, o absurdo da divisão (física)
ao infinito da recta e, admitindo o carácter de descontinuidade (física) do ser,
1 «As concepções democritiana e aristotélica (...) constituíam os dois principais sistemas
antitéticos, dois pólos opostos da interpretação dos fenómenos naturais. O primeiro reflecte
os inícios da filosofia adoptada em seguida pela maioria dos cientistas modernos; o segundo
tinha uma visão teleológica da vida. A doutrina aristotélica tem sido o espectro que tem
infestado toda a história da biologia»(BECH, William, “Organismo” in Enciclopédia Einaudi,
Lisboa, IN-CM, 1991, Vol. 19, p. 77)
4
recusada pelos eleatas e defendida pelos atomistas, a falsidade do movimento, ou, pelo
menos, dado que ele é aparente, a sua incompreensibilidade1.
Mas, a acreditar na tese eleata da identidade entre ser e pensar, parecendo
supor o princípio da continuidade do ser, correlato da impossibilidade do pensar
conceber o movimento, Zenão, através de outro paradoxo, vai deduzir também o
oposto, isto é, que o movimento é uma ilusão, correlato da impossibilidade de se
pensar o movimento2.
Ora, em si mesmos, estes paradoxos apenas põem em evidência a confusão
pitagórica entre espaço, tempo e aritmética, entre a realidade do movimento – sem
dúvida susceptível de análise - e os números ou pontos geométricos – que não devem
ser vistos como elementos reais, físicos ou num3
Trata-se, em primeiro lugar, do Argumento do Estádio. Este tem a forma de um
paradoxo falacioso bastante simples, que é o seguinte: um atleta deve percorrer uma
pista afim de atingir a meta; todavia, isso é irrealizável porque terá primeiro de
perfazer metade da distância, devendo necessariamente ter percorrido a metade
dessa metade, de modo que antes se obrigará a alcançar o ponto médio desta última
fracção, e etc.; com base na hipótese de que o espaço é fisicamente divisível até ao
infinito, não só é impossível, em qualquer quantidade de tempo, chegar à meta como
nem sequer é pensável avançar o mínimo dos mínimos de espaço.
Em vez de se analisar o espaço percorrido num dado período de tempo
mediante uma unidade convencional de medida, infinitamente divisível, tomam-se o
espaço e o tempo como consistindo eles mesmos nesse processo de medição.
Assim, a própria divisão é tempo e, como é ad infinitum, ocupa um tempo
infinito, pelo que, uma vez que ser e pensar são o mesmo, não pode haver movimento.
A fórmula aritmética que lhe corresponde pode simbolizar-se como se segue:
1/ = 1/1 – 1 / [(n.2),n] 0, com n = n.2.
1 Cf. CARAÇA, Bento de Jesus, Conceitos Fundamentais da Matemática, Lisboa, Sá da Costa,
1989, 9ª ed., p. 78.2 Cf. SIMPLÍCIO, Phys., 145, 27 (Fr. 8, v. 26); 146, 15 (Fr. 8, v. 42); 146, 7 (Fr. 8. v. 42).3 Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, A 5, 985 b 23; CARAÇA, Bento de Jesus, Op. Cit., pp. 72,73.
5
ou, iterando, em extensão:
= 1/1 – ½ - ¼ - 1/n 0.
Desacreditando a possibilidade de se pensar o movimento contínuo, pelo
menos dentro da doutrina pitagórica, que identificava número e mónada, contagem e
tempo, o que também ia em socorro da eleática negação da mudança, Zenão passa de
seguida ao ataque à tese de que o espaço e o tempo são compostos de mínimos
indivisíveis, quer dizer, sendo os números mónadas ou algo que ocupa um espaço, de
tal modo que este é descontínuo. Foi precisamente isto que os pitagóricos, a bem
dizer, tinham defendido, para além da confusão acima referida, e para cujas
consequências o polemista pretendera conduzi-los, em resultado do vaivém dialéctico
em que os embrulhou.
O argumento que Zenão considerou adequado para completar o paradoxo
contra o movimento (quer se considere o mundo contínuo ou descontínuo, não pode
ser pensado o movimento, pelo menos do ponto de vista do matematismo idealista da
época) foi o que dá pelo nome de A Seta Voadora: em cada momento, a flecha ocupa
um lugar e um instante; como estes são descontínuos, nada se passa nem nada pode
passar entre um lugar e o outro ou entre um instante e o outro; assim, adoptando esta
teoria do espaço e do tempo, é impossível conceber o movimento1. Se, porém, como
vimos, defendêssemos a tese ontológica contrária, o resultado seria o mesmo.
Como os eleatas não podiam relativizar o princípio do terceiro-excluído
(mudar a lógica se esta não consegue dar conta da realidade), relegaram o movimento
para o mundo da ilusão e puseram em marcha uma longa tradição especulativa que
iria colocar muitos mais problemas do que aqueles que seria capaz de resolver. Mas,
pelo menos, ficámos com os problemas.
E, como diz Jean-Paul Dumont, «Tal foi o ensino da escola de Eleia que,
mantendo, a identidade total do pensamento e do ser, levou, com receio de se
contradizer, o realismo até ao absurdo ou, se preferirmos, o idealismo até ao
absoluto»2.1 Cf. ARISTÓTELES, Op. Cit., Z 9, 239 b 30.2 DUMONT, Jean-Paul, Dicionário das Grandes Filosofias, ent. “Eleatismo”, p. 89.
6
Em suma, dos pitagóricos aos eleatas estamos perante um caso típico de
confusão da teoria com a realidade, transformando ilusoriamente a primeira no
fundamento da segunda, com a agravante de se confundir também a propriedade
(objectiva) mensurável da realidade (que a matemática reflecte) com uma
propriedade dinâmica que se pode medir (com o auxílio de técnicas e convenções).
Mas o movimento não é idêntico à medida: esta é que é uma propriedade
daquele. O movimento existe e só porque existe é que é mensurável. Por isso, o
movimento não se discute; o que se pode e deve discutir é a teoria da medição.
Esta, no tempo de Zenão, era estática, segmentava, segundo uma unidade
arbitrária, que se podia diminuir à vontade, o espaço percorrido. Tal divisão
convencional e implementada em fracções é a divisão sobre um espaço definido, que
se pode efectivamente percorrer num tempo que depende de uma velocidade real, que
só tem a ver com a distância e não com as divisões feitas sobre essa distância: por
mais divisões que nela sejam traçadas, a distância mantém-se a mesma.
Só muito mais tarde, com Newton e Leibniz1, é que a medição fixista dá lugar ao
cálculo de fluxões, ou infinitesimal, dando conta pela primeira vez, teoricamente, do
facto do infinito actual, da unidade do finito com o infinito, da distância que separa um
ponto do outro ser composta de um número infinito de pontos efectivamente
percorrido, ou seja, em termos matemáticos, que um mesmo ponto é ele mesmo uma
distância infinitesimal, que portanto, um ponto é já um movimento, não o movimento
real, mas que, em termos formais, dá mais conta da quantidade no movimento que as
teorias anteriores2.
1 Cf. LEIBNIZ, “Nova methodus por maximis et minimis, itemque tangentibus”, in Acta
Eruditorum de Lípsia, 1664; NEWTON, Philosophia Naturalis Principia Mathematica, 1687.2 Cf. CARAÇA, Bento de Jesus, Op. Cit., pp. 251-254.
7
Todavia, ainda teríamos de esperar por Dedekind1, na segunda metade do
século XIX, para ver unidos continuidade e descontinuidade num segmento de recta, e
resolver o problema da congruência da imagem do ponto como tendo uma extensão
não nula, ainda que a menor conceptível, portanto do número, com a noção de
continuidade2.
Voltando à Antiguidade, recordemos que Demócrito havia observado a
contenda entre dois campos: o do continuismo metafísico eleático e o do
matematismo descontinuista pitagórico, não menos metafísico.
Era evidente que a assunção deste último, se bem que mais consonante com a
evidência empírica da descontinuidade do real, o reduzia de tal maneira a uma
quantificação discreta e idêntica que se tornava pasto, como vimos, de argumentos
contra a existência do movimento, não menos constatável empiricamente.
Impunha-se minar, não só a ontologia eleática como o quantitativismo
pitagórico, que não opunha, como aquela3, o inteligível, representado pela matemática,
ao sensível dos corpos, mas que, reduzindo a essência da realidade ao ponto (unidade
que tem posição), às combinações numéricas,4 constituiu um lugar de partida, quer
para uma futura oposição racional/sensível, quer para um misticismo sincrético, mais
próximo das origens, e substituir-lhes uma física referida às coisas e à relação entre o
dado destas e os seus constituintes e leis de combinação imanentes. Contra o
dualismo, cujas sementes começavam a germinar com a mística combinatória dos
1 Cf. OSTROWSKI, A., Lições de Cálculo Diferencial e Integral, trad. port. Pedro Braumann,
Lisboa, FCG, 1981, 4ª ed., Vol. I, p. 25. Pode ler-se aí o “Teorema da continuidade de
Dedekind”. É com este matemático que o infinito actual começa a tornar-se inteligível, pelo
teorema segundo o qual há uma correspondência biunívoca entre o todo e uma sua parte
própria. Cf. também em CAMPOS, Ferreira, Introdução à Análise Matemática, Lisboa, FCG, 4ª
ed., 1991, pp. 271-283.2 Cf. CARAÇA, Bento de Jesus, Op. Cit., pp. 302-312. 3 Na verdade, o sincretismo da quantidade e da qualidade (as coisas diferentes são números
diferentes) era uma característica do pitagorismo comum.4 Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, I, 5, 985.
8
filósofos de Samos, Demócrito vai defender um monismo rigorosamente materialista,
que não confunda entidades mentais abstractas e objectos reais, mistura insustentável
que conduz inevitavelmente à sua oposição.
Num salto dialéctico, o grande pensador de Abdera conservará a ideia
pitagórica de um mundo formado por entidades discretas, mas trocando-lhe os
números por elementos dotados de propriedades físicas, e aceitará de Parménides a
tese de que não pode haver movimento sem não-ser, mas, numa reviravolta,
afirmando o aparente contra-senso de que o não-ser é1. Pois para Demócrito, o contra-
senso devia residir afinal na crença de que o vazio é não-ser.
Desprezando qualquer especulação sobre pretensas distinções entre ser e
existência, que iria fazer as delícias de milhares de anos de metafísica, considera que o
vácuo existe e que o movimento é intrínseco à natureza das coisas, isto é, dos átomos2.
A postura metodológica de Demócrito em vez de derivar o movimento de uma
coerência com princípios especulativos, explícitos ou não, começou antes por
constatá-lo para em seguida procurar construir uma teoria que fosse consistente com
ele.
Aliás, nem sequer se preocupou com questões como a origem do movimento,
porque para ele essa pergunta provavelmente não teria sentido3: o movimento é
espontâneo, inerente aos átomos, e seria caótico se não fosse a colisão recíproca
destes, que, por efeito das diversas formas e tamanhos que apresentam, se vai
orientando em direcções e figuras privilegiadas, como o turbilhão.
É assim que se formam os corpos e as suas partes, dos mais ínfimos aos
macroscópicos: os átomos colidem e emaranham-se de acordo com as possibilidades
de encaixe que resultam das suas diversas formas, mantendo-se juntos até que novas
colisões os sacudam e façam desagregar-se os seres que se haviam por aquele modo
constituído.
1 Cf. Idem, Op. Cit., A 4, 985 b 4.2 Cf. Idem, Phys., II, 4, 196; CÍCERO, De Fato, 10, 23; ÉCIO, I, 23, 3.3 Cf. KIRK, G., RAVEN, G., Os Filósofos Pré-Socráticos, trad. port. Louro Fonseca e out., Lisboa,
FCG, 2ª ed., 1982, pp. 431-432.
9
Demócrito não faz intervir aqui qualquer outro princípio que não seja o das
acções mecânicas entre os referidos indivisíveis, idênticos a si mesmos mas possuindo
uma grande diversidade de formas e tamanhos, e cuja agregação é a única causa da
infinita variedade de seres e movimentos derivados que povoam e agitam o universo1.
Afirmando-se como um lídimo herdeiro da escola jónica no que toca à procura
de causas naturais ou princípios materiais (a água, o indefinido, o fogo) para
fenómenos empíricos, fazendo descansar os deuses na paz eterna do seu Olimpo, e
não se deixando encantar pelo ponto de fuga na perspectiva de um Ser e de uma
Verdade transcendentes que começam a tomar forma nas escolas itálicas, o nosso
autor foi capaz, juntamente com Epicuro (não esquecendo o seu mestre Leucipo), de
nos oferecer a única filosofia da natureza que, passados dois mil e quinhentos anos,
ainda se nos afigura como parente, embora vetusta, das concepções modernas, pois foi
nesses tempos clássicos aquela que substituiu aos elementos primordiais, como traços
mais gerais das constatações empíricas, e às substâncias, tomadas na sua
imediaticidade linguística, realidades que se podiam compreender em termos de
grandezas físicas quantitativamente determinadas, congregando nesta grandiosa ideia
a esperança longínqua de uma operacionalidade das teorias2.
A doutrina de Demócrito revela com mais clareza os limites no seu tentame de
entender de maneira atomística a vida. E é curioso como um termo eufémico usado no
presente para denotar a morte possa já ter possuído uma função explicativa nas
opiniões sobre a vida que correram na Antiguidade, pois que para este pensador
aquela não consiste senão num equilíbrio entre o inspirar e o expirar.
O ser vivo é aquele que se conserva no jogo das relações de pressão entre o
interior e o exterior, pelo qual entram e saem os átomos esféricos, que a aparência
macroscópica e a linguagem comum, que a traduz, denominam de fogo e de alma.
Quando o animal deixa de opor resistência à compressão da atmosfera, o seu fogo e a
sua alma expiram e ele morre. Viver é, pois, abrir os pulmões enchendo-os de átomos
1 Cf. ARISTÓTELES, Sobre Demócrito ap. Simplício, De Caelo, 295, 11.2 Cf. DIÓGENES LAÉRCIO, (sobre Leucipo) IX, 31 (DK 67 A 1), (sobre Demócrito) IX, 45; ÉCIO, I,
26, 2.
10
esféricos e ter a força, após a pressão atmosférica os ter feito sair, de voltar a faze-los
entrar1. Todavia, parece não ter explicado de onde vem essa capacidade, que energia
interna é necessária para que tal ciclo se repita inúmeras vezes. Na verdade, estava-se
ainda muito longe da descoberta do metabolismo como a característica mais essencial
da vida.
O que se deve reter, como a promessa de um ar renovado, são as ideias gerais,
de projecto, que vão muito para além da ingenuidade à qual o tempo de Demócrito era
incapaz de fugir.
Essas ideias representam um materialismo avant la lettre, que tantas
contribuições iria dispensar ao conhecimento do homem, e será por isso de uma
ridícula sobranceria e de pouca elegância fazer graça à custa de afirmações como
aquela segundo a qual o espírito, ou a alma, está espalhada pelo corpo, dando-lhe
movimento e autonomia, e é constituída por átomos esféricos que vibram nos
interstícios dos outros elementos indivisíveis que formam a estrutura corporal, pois
os átomos esféricos são, nas suas relações com os outros, ora alma ora fogo, ora um
pouco de ambos2.
É que, subjacente a esta pobreza conceptual, respira uma sabedoria telúrica: o
que o vulgo denomina de alma não é, para Demócrito, mais do que um produto da
matéria, talvez melhor, da realidade física, tese que veremos repetida, com outros
desenvolvimentos, muitas centenas de anos mais tarde, por exemplo, com Diderot, no
século XVIII, e com Engels, na centena seguinte. Será caso para dizer que as ideias não
se esgotam nos conceitos.
Ora, avista-se no horizonte um outro projecto, diametralmente oposto, no que
toca à relação entre as partes e o todo, e que irá fazer também escola até aos nossos
dias, acompanhando o primeiro num desacordo cuja fecundidade a espaços irá fazer
justiça ao valor e significado duplo da palavra dialéctica.
Trata-se do programa vitalista, tematizado em extensão e profundidade pela
primeira vez por Aristóteles. 1 Cf. ARISTÓTELES, De Respirat., c. 4; Idem, De Anima, I, 2, 403.2 Cf. Idem, De Anima, A 2, 405 a 11.
11
Este espírito universal, contudo, foi em si mesmo um lugar de disputa, no qual
se entrechocaram as duas correntes filosóficas dominantes do mundo grego antigo.
Para não nos alongarmos demasiado, concentremo-nos sobretudo nas duas
categorias ontológicas básicas do estagirita: a matéria e a forma.
Elas já possuem história quando vão passar às mãos do filósofo, uma história
que as fez ziguezaguear, cada uma, entre sentidos opostos ao sabor das perspectivas
de interesse e das noções de bem e de mal.
Contrastando com o seu mestre, para Aristóteles a matéria é mais potência que
resistência1, embora sendo menos força de enteléquia que indeterminação2.
Se enriquece a noção pré-socrática de natureza, mãe de todas as coisas, não a
resgata por completo do dualismo idealista que opõe universalidade e particularidade,
inteligível e sensível3.
No sentido mais fortemente abraçado pelo estagirita, matéria é o substracto
dotado da capacidade4 de realizar a forma, ao qual o termo de hilemorfismo5 se
aproxima melhor6. Nesta consideração da vida, Aristóteles é, digamos assim, um
quase-materialista, mas um quase-materialista de contornos vitalistas, que não se
pode confundir com a tese da sensibilidade geral da matéria, que, por sua vez, alguns
comentadores interpretam como um quase-hilozoismo7, e que haverá de ter, na era
moderna, como defensor um Diderot, o qual ao mesmo tempo, algo paradoxalmente
face ao ponto de vista daqueles, irá insistir na agregação por atracção de átomos e de
moléculas através do conjugar das suas energias activas e potenciais: um certo e vago
antever da teoria molecular moderna8.
1 Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, XII, 5, 1071; XII, 3, 1070; XII, 2, 1069.2 Cf. Idem, Op. Cit., 1048 b – 1050 a.3 Cf. Idem, Op. Cit., 1036 a, 1029 a. 4 Possibilidade inexplicável da matéria, suporte irracional, ininteligível, do ser.5 As substâncias naturais são constituídas por uma unidade indissociável de matéria e forma.6 Cf. Idem, De Anima, 412 b.7 O hilozoismo é uma doutrina segundo a qual toda a matéria é dotada de vida.8 Cf. DIDEROT, Le Rêve de d’Alembert, Paris, Éditions Sociales, 1962, p. 27.
12
Por outro lado, voltando ao estagirita e ao papel da matéria na sua filosofia da
natureza, há aquele segundo sentido para o qual Aristóteles cambia quando trata de
questões como a que virá a resultar no principio da individuação, no qual a matéria
parece ressurgir como contingência, resistente ao conhecimento, como elemento
irracional.1
Sendo, portanto, contingente o que distingue as coisas umas das outras,
nomeadamente dentro de uma mesma espécie, então pergunta-se o que é necessário,
uma vez ser possível observar uma certa ordem no mundo e, sobretudo, no modo
como uma certa qualidade de seres se desenvolvem, desde um gérmen informe até
uma organização individual presentificada que, excepto o caso dos monstros, dos
atípicos, é inevitavelmente a da espécie que os precede.
A distinção semântica entre matéria e forma, tornada modelo ontológico,
apesar do titânico esforço de a reconduzir a um sínolo2, que não seria só conjunção
estática mas substância real, analisada em termos como aqueles que não passariam de
aspectos de uma e a mesma dinâmica, não pode todavia impedir-se de deixar um
resíduo lógico que se manifesta na habilidade que Aristóteles tem de usar para
impedir a fixação das determinações duais do sínolo na semântica originalmente
contraditória de cada um dos termos, sem ao mesmo tempo cair no extremo de os
confundir3.
E como ignora na sua substância a quantidade (poson), ou seja, desprezando-a
enquanto categoria ôntica substancial, reduzindo-a a uma predicação inessencial4,
1 Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, 1040 b 5-16; Z, 1034 a 5-8; Z, 1035 b 27-31; I, 1054 a 34; Z,
1036 a 8. 2 Cf. Idem, Metafísica, VII, 11, 1036; VIII, 1, 1042.3 Cf. Idem, Op. Cit., XII, 3, 1033.4 A matemática (ciência da quantidade discreta e da contínua) é, para Aristóteles, apenas
apropriada ao estudo dos objectos físicos, de cujo movimento se abstrai e de que abstrai as
figuras, planos e volumes; a matemática é analítica, não sintética, e por isso sem homologia
com o corpo vivo, as partes destes devendo ser consideradas em função do seu todo, fazendo
assim pouco sentido um método que apenas as dividida, some, figure. Também significativo é
13
resta-lhe o puro verbalismo, um jogo funcional no domínio semântico das palavras,
ficando a braços com subtilezas especulativas a propósito de, dado o ponto de partida
significante de cada um dos termos, qual das atribuições (acto, potência)
respectivamente lhes cabem e do que se há-de significar com um em função do que se
significa com o outro, e em especial da magna dificuldade de se saber onde acaba a
potência e começa o acto, além do mistério do instante inicial da potência e da questão
de, aqui, precisarmos já, ou não, de fazer intervir a acção.
O resultado de tudo isto é, está bem de ver, um círculo vicioso, logomaquia
impotente para penetrar na estrutura geral objectiva do ser.
Assim, uma vez que essas duas palavras existem e lhes podemos atribuir
significados diferentes, devem representar dois aspectos distintos, ainda que do
mesmo processo.
A forma será, pois, um aspecto do ser que tem algo de próprio e que o aspecto
matéria não tem: é o acto, que se distingue da potência. Mas distingue-se-lhe de que
maneira? O acto, sem dúvida, não é uma coisa. Poderia ser considerado simplesmente
uma função da matéria, como fazem os autênticos materialistas, mas disso a
Metafísica não se parece aproximar. Segundo o que está escrito nesta obra, a matéria é
apenas o substracto que tem, numa expressão ambígua, a potência de actuar (ou ser
actuada) orientada para e por uma forma.
Mas o simples facto de distinguir logicamente os dois termos de um sínolo
indica que para Aristóteles a substância do real é mais do que matéria, é unidade
desta com a forma, a qual aparece, pois, não como uma determinação da primeira mas,
o facto de que a substância segunda, a única inteligível, é definida, como o nome indica,
somente em termos qualitativos, substantivos. E uma substância não se pode transformar, em
si-mesma, numa outra substância. Além disso, a geração é a actualização de uma forma
substancial. No estudo dos seres vivos, as causas finais são, pois, as verdadeiramente
eficientes, não as materiais. O que é essencial é que a forma se eterniza incorporando-se numa
série ininterrupta. Não há continuidade quantitativa, mas uma descontinuidade qualitativa
irredutível. Cf. ARISTÓTELES, De Partibus Animalium, 30-640 a 8; Metafísica, Z, 1033 a 24 – b
19; Z, 1034 b 18; 1070 a 21-24.
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pelo contrário, como um determinante dela, que, na sua qualidade de aspecto
material, é o determinável. Desqualifica, pois, a matéria através de uma análise que se
quereria apenas lógica mas que resulta em efeitos ônticos, muito embora Aristóteles
insista sempre na unidade realmente indissociável da substância1.
A matéria é apenas uma das causas da existência de algo, distinta daquelas
ditas formais.
E, para percebermos melhor como assim é, atentemos no princípio teleológico
que, neste autor, dá pelo nome de causa final, um dos significados da forma.
É que esta constitui o plano de estrutura, ligada à aparência das coisas,
designada pela palavra, que substantifica e ajuíza predicando, à imitação da frase
indo-europeia, mas que também pode consistir num processo de desenvolvimento
para um fim, que é a sua própria forma, no caso dos seres vivos.
Este fim não é senão, de facto, a realização da causa final que a matéria tem a
potência de atingir mas que ainda não é. E se a matéria possui essa capacidade de se
tornar o que ainda não é, isso só é possível na medida em que a causa final é, enquanto
energeia, o funcionamento duma capacidade de actualização. A forma, como causa, já
é, enquanto a matéria é o substante indeterminado de uma mudança predestinada.2
Se quisermos, portanto, caracterizar a ontologia de Aristóteles, devemos fazer
uso de uma hermenêutica cuidadosa, sendo-nos dadas duas saídas: a ideia de que para
ele a matéria é o substracto inferior de uma forma que a enquadra numa finalidade
adequada e que é a causa, na ordem do sentido, pré-determinada e determinante,
ainda que imanente, razão da eternidade das espécies; ou interpretá-la como um
esforço de criar, com elementos teóricos insuficientes, uma concepção monista
materialista da realidade que tivesse em conta não só a estrutura como também o
devir, reduzindo a categoria de forma ao significado de aptidão da matéria para se
auto-organizar e desenvolver.
Todavia, dadas as relações terminológicas verificadas na sua filosofia, devemos
tender mais para a primeira interpretação do que para a segunda. A biologia 1 Cf. Idem, Metafísica, Z, 1041 a 5 – b 30.2 Cf. Idem, Op. Cit., , 1049 b4 – 1050 b 2; , 1050 b 6 – 1051 a 2.
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aristotélica é, com efeito, teleológica e funcionalista. Os órgãos não são os primeiros
na ordem do sentido do ser vivo: são as funções1.
No De Anima o filósofo, a respeito do vivente, ao aplicar a este a teoria do ser
em geral, determina a forma como a alma, sendo causa, e a matéria como corpo, sendo
instrumento2.
Ao compreendermos a biologia na sua ontologia, será aceitável usarmos este
raciocínio analógico: não há instrumento sem instrumentista, mas também não ocorre
a ninguém que tivesse havido um instrumentista que houvesse aprendido a tocar sem
instrumento. Mais: o instrumentista de Aristóteles só o é em potência na medida em
que está em acto, ou seja, quando dá vida ao instrumento. E, reciprocamente, este é-o
por ser tocado segundo uma ordem de ritmos e de harmonias que torna efectivo,
actual, o que antes estava apenas em potência, que era apenas uma peça morta de
madeira e cordas. Todavia, embora o instrumentista (a alma) não seja acto sem o
instrumento (o corpo), este, como ser material, não ganha forma sem aquela, e aquela
não é senão o seu princípio organizador e director, como tal imanente e não
transcendente.3 E, do mesmo modo que o instrumento está em potência até que um
instrumentista se decida a tangê-lo, pondo-o assim em acto, também, mostrando-se
aqui melhor como a forma tem a primazia sobre a matéria, ou o acto sobre a potência,
a transformação do barro numa casa consiste no impulso, como causa eficiente, dado a
uma matéria capaz, pela causa final ou formal, ou seja, pela precedência ontológica de
uma estrutura energética, ou funcionamento duma capacidade dirigida para um
estado de completude hilemórfica.4
Podemo-nos, pois, inclinar para a opinião de que Aristóteles antropomorfizou a
Natureza, numa relação de continuidade com a esfera do éthos.
1 Cf. Idem, Op. Cit., H, 1043 a 16, 33; H, 1044 b 1.2 Cf. Idem, De Anima, II, 4, 415.3 Cf. Idem, De Anima, I, 1, 403.4 Cf. Idem, Metafísica, 1049 a – 1050 a.
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Com efeito, numa concepção fixista e teleológica do mundo, ele crê que “o olho
existe para ver”, e não que o “ver” seja produto duma evolução ecológica e fisiológica.5
Não espanta, pois, que ao longo dos milénios se tenha hipostasiado
(pessoalizado e sub-posto) este princípio teleológico, isto é, tomado à letra a
expressão apresentando-a como uma força própria, uma virtude imaterial, imitada do
projecto do artífice, a finalidade, imanente no caso do seres naturais ou imprimida de
5 Por certo, estamos demasiado distantes do tempo de Aristóteles, de uma época cujos
habitantes possuíam uma complexa imagem do mundo tão diferente da nossa, que devemos
ter legítimas dúvidas acerca da interpretação que fazemos da terminologia por ele usada. O
passar dos séculos tratou de tornar para nós ainda mais ambíguas e obscuras pelo menos
algumas das suas categorias básicas. É por isso – e por conjuntamente se pôr em relevo este
ou aquele aspecto do seu pensamento e respectivo significado contemporâneo e histórico, em
detrimento doutros – que não nos podemos admirar da existência de interpretações
divergentes – quiçá complementares – da obra do estagirita. Sobretudo, enfatiza-se ora o
carácter conservador da sua doutrina ora se põe o acento no progresso epistemológico que
teria protagonizado. Por exemplo, Robert Lenoble, parecendo desprezar as ideias de filósofos
materialistas anteriores ou contemporâneos, e dando um desconto, por considerar produto
duma inércia natural, à identificação de Aristóteles entre vida e energia da razão cósmica
(‘nous’, espírito ordenador) que actualiza todos os movimentos e formas do universo (cf. Meta.
1072 b), o qual entende precisamente a alma como a forma que actualiza a vida dum corpo
natural (cf. De An., II, 412 a), defende que o filósofo realizou um progresso, pelo facto de
objectivar e definir, e escreve: «O pensamento mágico oscilava entre dois temas, em nada
contraditórios mas ambivalentes: todo o ser é símbolo, todo o ser é uma alma. Para
Aristóteles, o ser define-se pela sua “natureza”, e neste sentido “a Natureza é um princípio
() e uma causa () de movimento e, igualmente, de repouso para a coisa na qual reside
imediatamente () e na qualidade de atributo essencial () e não acidental
() dessa coisa”. O ser natural é substância: “” (Física, II, 192 b).
Sejam quais forem as discussões que venham a estabelecer-se mais tarde (não sem múltiplas
confusões) sobre este tema maldito da substância, há que compreender que foi o meio de
transformar estes mesmos símbolos de coisas em “factos”, o qual também tornou possível a
observação objectiva. A constituição e a multiplicação de “substâncias” dotadas de uma
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fora no que respeita aos artefactos. Do mesmo modo que o artífice tem a virtude, o
poder de dar forma ao barro ou à madeira, a alma é a virtude dos corpos orgânicos, a
qual, como fim organizador, se distingue da sua matéria. A visão é a energeia ou
virtude do olho; a vida a virtude do corpo. 1
Ao “atomismo físico” de Demócrito contrapõe-se agora o “epigenetismo”
aristotélico, derivado de uma concepção teleológica da natureza. A biologia mecânica
reencontra um adversário agigantado por um génio até à altura só com paralelo no
seu Mestre idealista.
O que é, então, a epigénese e que relação tem com o vitalismo, de que já
falámos nas páginas iniciais deste pequeno ensaio, que vamos ter de pensar concluir?
É preciso notar desde já que Aristóteles se opõe, por diversas mas pertinentes
razões, não só a Demócrito como ao médico Hipócrates e ao filósofo de Agrigento,
Empédocles.
Este último propusera uma notável doutrina segundo a qual a adequação das
partes aos fins, dos órgãos à funções, se deve à selecção natural, que resulta na
sobrevivência dos mais aptos. A contingência constituiria deste modo a lei da
estruturação do seres vivos. Para ele, os monstros não poderiam subsistir
simplesmente por causa de uma inadaptação mecânica do corpo ao meio2.
estrutura independente do homem, projectava no mundo inteiro a faculdade recentemente
adquirida pela consciência de diversificar os seus centros de interesse.» (LENOBLE, R.,
História da Ideia de Natureza, trad. Teresa Pérez, Ed. 70, Lisboa, 1990, pp. 70-71). 1 As virtudes, a que os estóicos deram um impulso milenar, apenas travado pela filosofia
mecânica moderna, que abriu caminho à ideia de que não há qualquer poder que não seja o
das relações fenoménicas funcionais, constituíram aquilo a que Gaston Bachelard chamou de
“obstáculo animista”. A “ciência”, esquecendo o lado positivo de Aristóteles (observações e
classificações metódicas, passe evidentemente as suas definições substancialistas), foi-se
degradando pela preguiça dos pleonasmos e valorização mágica das palavras até chegar a
expressões indeterminadas como “a virtude dormitiva do ópio”. 2 Cf. ÉCIO, V, 19, 5 (DK 31 A 72); ARISTÓTELES, De Caelo, 2, 300 b 30 (Fr. 57); Pys. B 8, 29;
SIMPLÍCIO, De Caelo, 587, I; 587, 20.
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Empédocles poderia ter sustentado ainda, em abono – e em complemento - da
sua doutrina, que a monstruosidade tem tendência a desaparecer e a dar lugar a um
padrão reprodutivo devido ao acaso selectivo.
Foi, de facto, por aí que Aristóteles pegou, contra-argumentando com a
evidência empírica de que a suposta redução da monstruosidade não se poderá dar a
posteriori, mas a priori, ou seja, não após o nascimento mas antes dele, no acto da
reprodução1.
É que os animais são gerados conforme o tipo, sendo a monstruosidade, para
fazer justiça à palavra, um desvio, um erro, fruto do acaso. Não é o contrário que se
passa: o tipo ser produto do acaso.
A reprodução deve obedecer, antes, a um plano pré-estabelecido, a que o
estagirita chama de causa final, que representa uma ideia teleológica do vivo e que
para ele deve ser pensada como finalidade interna2.
Nada de diferente, aliás, se verá dois milhares de anos depois na doutrina de
um outro grande filósofo: Kant.
Por fim, lembremos que contra Hipócrates e a sua pangénese, Aristóteles vai
propor uma noção tão interessante quanto difícil é de entender a sua capacidade
explicativa: a da já referida epigénese.
O Médico acreditava que a contribuição dos progenitores vinha da totalidade
do seu corpo, cujos dissemelhantes materiais estariam reduzidos a uma dimensão
microscópica no gérmen, pois era indiscutível a parecença entre o filho e os pais3.
Passando por cima das múltiplas objecções de Aristóteles, para não nos
alongarmos muito, este contrapõe, estabelecendo uma analogia significativa com a
relação entre o artífice e o artefacto, que o carácter do sémen não é ser constituído
nem por sangue nem por carne mas por aquilo que a partir de si permite gerar sangue
e carne, e esse aquilo não é senão o movimento de um plano diferenciador que,
1 Cf. ARISTÓTELES, Phys., II, 8.2 Cf. Idem, De Generatione Animalium, 744 b 16; De Caelo, 291 b 13, a 24; De Partibus
Animalium, 686 a 22; Phys., II, 9.3 Cf. Idem, De Generatione Animalium, I, 17-18.
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imanente à sua matéria indiferenciada, por isso mesmo já dotada de uma dynamis de
diferenciação, actua como se fosse um carpinteiro, causa final e causa eficiente, a
conferir uma forma funcional ao substracto de que se serve, que lhe é natural ou
adequado1.
Note-se, de passagem, que se deve evitar a confusão entre pangénese e a
célebre doutrina do pré-formismo.
Esta, como o termo indica, não insiste tanto, como a outra, na presença no ovo
das matérias constituintes do corpo desenvolvido, mas mais na presença das suas
partes no mesmo2.
Aristóteles contesta-a, fazendo certamente uso da sua prática de dissecação,
aprendida do pai, com a prova de que, se assim fosse, os órgãos estariam formados
todos ao mesmo tempo, quando o que se observa é o aparecimento sucessivo de
tecidos e órgãos, que considera obedecer a uma lei de diferenciação, antecipando von
Baer, a de que o carácter mais geral precede o mais específico3. É por isso que,
representando o crescimento a função vital mínima, portanto mais geral, e sendo o
coração o órgão cuja função é alimentá-lo, é este o primeiro a ser formado.
E é nisto que consiste a epigénese, ou epigenesia, pois o seu étimo grego
provém da união do prefixo epi (sobre) com o lexema genesis (geração) para designar
a “teoria” da formação dos seres orgânicos por gerações graduais.
Haveria, portanto, um emergir, uma passagem da potência à existência, por
fases, das múltiplas formas do corpo, em função de um plano que construiria, por
sucessivas sobreposições de condições suficientes às necessárias, em termos
funcionais e estruturais, um organismo completo, o que quer dizer uma planta ou um
animal que pode executar por si mesmo o ciclo da vida.
É a esta completude do ciclo que Aristóteles aplica a expressão genérica de
causa final, pela qual os vários órgãos recebem a sua razão de ser, formando-se para o
papel que ela os chama a desempenhar. Não admira que esta doutrina conduza a uma
1 Cf. Idem, Op. Cit., 722 b 1 – 724 a 9.2 Cf. Idem, Op. Cit., 733 b 23.3 Cf. Idem, Op. Cit., 736 a 35 – b 5.
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certa inclinação para interpretar a forma reificando-a de algum modo. Sendo esta
palavra uma transposição latina para as causas não materiais – que nesta língua
significa tanto disposição das partes quanto molde -, o seu correspondente aristotélico
– energeia, que quer dizer funcionamento, actividade, acto, actualização –, é capaz
muito facilmente de receber um sentido coisificado ou uma distinção substantiva
relativamente ao conteúdo.
Mas mesmo que fossemos fiéis à interpretação que Aristóteles dá de eidos1, ou
do menos platonizante génos2, essa fidelidade pode insensivelmente inclinar-se para a
noção de força vital3, em suma, para a doutrina do vitalismo.
Este, muito simplesmente, resume-se à defesa do princípio de que a essência da
vida é a força vital, o que não passa de uma pueril tautologia, tentativa inglória de dar
um fundamento primeiro a algumas supostas leis, como a da precedência do geral
sobre o específico.
Terminamos este ensaio, com a seguinte declaração, que decorre da linha de
raciocínio que lhe presidiu:
Para os materialistas e os físicos, não há necessidade de evocar uma qualquer
forma para explicar o movimento, seja de que tipo for. O movimento, enquanto
processo ou estrutura, na sua aparente estabilidade, instável e provisória, é intrínseco
à matéria, a realidade última do “ser”, só com respeito à qual a forma deve ser
referida, enquanto determinação (e não como determinante), significando a sua
estrutura e maneira de ser, que não se pode encarar de um modo puramente
qualitativo, como é o da terminologia aristotélica, mas deve ser explicada através de
relações qualitativo-quantitativas. Apenas uma física desse género mostrará,
superando as seguintes palavras aristotélicas que nada esclarecem e muito
antropomorfizam, que a matéria não é apenas potência: é sobretudo acto.
1 Cf. Idem, Metafísica, 1013 a; De Gen. et Corr., II, 335 b. 2 Em todo o caso, ambos ousiai (essências).3 Cujo sentido carregado de um poder misterioso surge com a facilidade de uma degradação
mística do esforço racional do estagirita no definir dos termos de energeia e entelécheia. Cf.
ARISTÓTELES, Metafísica, 1049 b – 1050 a; 1048 b.
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Em suma, para os materialistas, a distinção própria do hilemorfismo, nos
termos da análise lógica que produziu, foi, não só improfícua como levou para
caminhos gnosiologicamente ilusórios e humanamente devastadores.
Porém, o seu poder hipnótico mostrou ser tão penetrante, o seu falso sentido
de harmonia de tal maneira apaziguador, que ainda no século XVIII homens como
Diderot tinham que combater com todas as suas energias esse poder do passado. Sem
menosprezo para o génio de Aristóteles, poderíamos terminar com este gnoma:
As Luzes brilham mais quando as trevas são densas.
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