Entre Rios

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Caminhos de migrantes nacionais e internacionais que os trouxeram ao Rio de Janeiro. Obra fruto da disciplina Redação em Hipertexto do curso de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense.

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2016NITERÓI

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carta de apresentação

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Em uma sala de aula do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Fe-deral Fluminense (IACS/UFF), alunos de Jornalismo redigiam textos, montavam páginas no InDesign e tiravam dúvidas com a professora. Às vezes, o único som ouvido era o digitar nos teclados, mas, na maior parte do tempo, tomava conta da sala o debate dos estudantes. O local que mais lembrava uma redação de revista, funcionou como berço para o projeto “Entre Rios”. A iniciativa foi criada e desenvolvida pela turma do segundo semestre de 2015 da disciplina “Redação de Hipertexto”, ministrada pela professora Carla Baiense. Este e-book é a obra final do projeto.

Após nós, estudantes, decidirmos que o tema seria migrações, foi acordado que se-riam contadas histórias de brasileiros e estrangeiros que, no recorte temporal da produção do livro, se encontravam na cidade do Rio de Janeiro. Partes das narrativas foram contadas em duas redes sociais, através da página no Facebook e da conta no Instagram. As histórias completas estão disponíveis nesta obra.

São dez personagens cujo único ponto comum é o destino que escolheram. Cada um tem uma relação com a cidade, afetada por cada história de vida. Os diversos pontos de vista desses migrantes tão diferentes entre si são abordados nesse conjunto de narrativas.

Além das reportagens sobre a história desses personagens, foram produzidas também matérias com contextualizações sobre o motivo que os fez sair de sua terra natal. De opor-tunidades de trabalho a chances de melhor estudo, desde guerras até o amor, as razões para a mudança são as mais diversas. E para terem escolhido o Rio, também.

Quem são e porque vieram não são as únicas perguntas respondidas. As reportagens também trazem respostas sobre o que os personagens faziam antes da mudança e o que fazem no Rio, como se sustentam, como a língua ou o sotaque afetam seu cotidiano, quais as impressões sobre a cidade, dentre tantas outras curiosidades. Esses dez migrantes não foram escolhidos à toa. Acreditamos que essas histórias, cheias de tropeços e vitórias, de-vam ser contadas.

Assim como a vida desses personagens, o desenvolvimento do Entre Rios também teve pelo caminho obstáculos e glórias. Esses foram essenciais para o aprendizado de todos que se envolveram com o projeto. A turma de alunos, criou, redigiu, montou e editou esta obra de forma horizontal e autônoma. Todos os erros e acertos fazem parte do resultado desse trabalho e o conhecimento adquirido será levado para a vida profissional de cada um de nós para construirmos um jornalismo melhor.

Cecília Boechat e Tatiana de Carvalho

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4 Prefácio

5 Prefácio6 BRASILEIROS

7 Alessandra13 Celso19 José Marcelo24 Elienice29 Terezinha

35 ESTRANGEIROS36 Kasper41 Eduard45 Noh e Hassan51 Solomon54 Luis Marcelo

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SUMÁRIO

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/PREFÁCIO

NAdA é PoR ACASO

Segundo dados do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (Acnur), 80% das pessoas forçadas a abandonar suas casas buscam abrigo em países em desenvolvimento. Isso significa, hoje, que mais de 34 milhões de pessoas estão em países como o Brasil.

Dos mais de 43 milhões de refugiados , mais ou menos a população da Co-lômbia, quase dois milhões estão no Paquistão, o país que mais recebeu gente. No Brasil, existem, oficialmente, cerca de 4400 pessoas vivendo como refugiadas.

E o sentimento contrário a eles, que cresce nos países desenvolvidos, ainda não assombra países como o nosso.

Talvez pelo tamanho continental, pelas tantas realidades que se espalham do extremo norte ao sul do Brasil, o certo mesmo é que o haitiano Edward, o dinamarquês Kasper, o sírio Hassan ou Alessandra, a mulher brasileira do Norte,procurem e encontrem no mesmo país,trabalho,respeito e chance de reco-meçar. Um país onde quem sai lá do Pará para ganhar a vida no sudeste, muitas vezes, também se sente um refugiado.

E na medida em que alunos de Jornalismo se transformam, na conclusão do curso, em contadores dessas histórias que remetem à essência dessa profissão tão criticada e fundamental, dá uma vontade danada de continuar reportando. Olhar com atenção para quem está ao lado,relatando informações bem apuradas e com esforço dando voz a quem percorre o país em busca da sobrevivência e da feli-cidade.

Afinal, é à procura de paz e alegria que também nos tornamos jornalistas.São vários caminhos, alguns atalhos, e a certeza de que só a ética pode nos

garantir noites tranquilas.Enquanto as guerras, os massacres e os desastres naturais nos trazem novos

vizinhos.Bem-vindos, coleguinhas, à vida nada fácil dos jornalistas!

Mônica PugaRepórter da Band

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alessandra

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Era verão no Rio de Janeiro. Esperava minha entrevistada entre o calor e as folhas – uma paisagem tropical ou qualquer um de seus significados levados ao extremo – estava na hora. Alessandra apareceu pontualmente, com seu vestido rosa de listras pretas e seu sorriso aberto. No rosto trazia não só sua expressão alegre, mas também a marca de sua terra. Fomos a um parque ali perto. Decidi então perguntar de onde ela veio, Alessandra sorriu e disse: “Nasci em Santarém, no oeste do Pará”, falou animada enquanto me localizava em um mapa mental onde ficava o lugar. A paraense era um contra-estereótipo por si só, já que era especializada em jornalismo científico e viciada em tecnologia.

Alessandra viveu em Santarém com seus dois irmãos e sua mãe até os 17 anos, até que decidiu se mudar para Belém para cursar Jornalismo na Universidade Federal do Pará (UFPA). A mudança representava um primeiro passo para a vida adulta e também para o longo cami-nho que Alessandra viria a percorrer em sua carreira. O primeiro ano longe de sua família foi marcado pelas saudades, mas também pelo sentimento de independência – “Era a única filha mulher, saí de uma cidade tranquila pra morar em uma capital, precisava passar por experi-ências como morar sozinha. Se ficasse em Santarém eu brinco que teria um monte de filhos e seria professora de escola pública”, diz orgulhosa.

A Mulher do Norte

Por Fabrycio azevedo

“Era a única filha mulher, saí de uma cidade tranquila pra morar em uma capital [...]. Se ficasse em San-tarém, teria um monte de filhos e se-

ria professora de escola pública”

“Quando eu saí da minha cidade eu sabia que não iria voltar, eu nunca pensei em voltar”, abaixou a cabeça tímida como se este sentimento a desumanizasse, “mas ainda volto nas férias, não pra morar”. A saudade existia ainda nas palavras de Alessandra, porém a sua independên-cia estava acima disto. Viver com a amiga de sua mãe, que a acolheu em Belém, começava a incomodar. Alessandra inicialmente morou lá, mas logo foi para a Moradia Estudantil da UFPA. Dentro da universidade descobriu o Jornalismo Científico ao participar do projeto Aca-demia Amazônia, uma revista digital sobre toda a região da floresta amazônica. Ela considera

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esta uma grande experiência na sua vida porque foi o pontapé inicial na vida profissional: na TV, Alessandra produziu, escreveu e colaborou com o programa. Passou de consumidora de notícias para produtora.

O jornalismo foi um acaso na vida de Alessandra. Desde os 12 anos querendo psicologia, mudou seus planos ao decidir o eixo temático do ensino médio: optou pelas ciências humanas. No ano do vestibular ela confessa a indecisão, olhava a grande lista de profissões, nada lhe chamou a atenção, optou por jornalismo já que gostava de escrever. Após se formar, Alessan-dra decidiu unir a sua formação com o desejo antigo da área científica e se inscreveu para um mestrado de Jornalismo Científico. O passo agora era maior, já que o mestrado era em São Bernardo do Campo. Alessandra avisou sua mãe e foi para São Paulo.

As raízes se prendem à terra, é um conhecimento universal, elas são o elo que existe no início da planta. Em sua origem, o vegetal tem a raiz. Os seres humanos por outro lado são mutáveis. A ligação entre Alessandra e sua terra se dá pela gastronomia: ela escancara um sorriso ao tocar no assunto, e o tema muda para os diversos tipos de peixes e frutas. “Quando penso em Santarém, penso em comida”, diz, seguido de um riso sonoro. Cupuaçu, açaí, jambu, tucupi, frutas e vegetais típicos levam a uma viagem visceral dentro da memória paraense da jornalista, que volta ao tempo em que ia ao mercado escolher peixe com sua avó, o sabor do pato no tucupi, e a sensação de comer jambu e sentir o efeito paralisante. Fora de Santarém, e mais, fora do Pará, Alessandra mantinha a memória gustativa como uma das ligações com sua cidade natal. Os gostos formavam uma parte de sua identidade.

Em outro estado, Alessandra começou o seu processo de se acostumar à cidade. Aquilo representava não só mais um passo em sua carreira, como também a prova de seu desapego. Ela enfrentava o mundo de peito aberto – defendendo que nunca fez um plano específico em sua vida – era o que chamam de “alma livre”. São Paulo também marcou a paraense porque ela conheceu o preconceito: “Foi a primeira vez que alguém disse que não gostaria de ter um relacionamento mais próximo por eu ser do Norte, a mulher do Norte”. Os hábitos e costumes anunciavam que Alessandra era estrangeira. Ela nunca seria dali. Se afastar de sua cidade não significou a perda de uma raiz, como a típica imagem de uma árvore, a memória é líquida, flutua.

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Casa, coração e lugarDepois de São Paulo, a paraense voltou para o Belém, desta vez com um mestrado no cur-

rículo. Ali trabalhou por um tempo até iniciar o doutorado. Seu tempo em Belém serviu para afiar ainda mais suas habilidades jornalísticas, já que trabalhou em uma TV local e chegou a dar aula na Universidade da Amazônia. A vida seguiu com uma sucessão de mudanças: Ales-sandra voltou para São Paulo, depois foi convidada para dar aula no Espírito Santo e vinha ao Rio de Janeiro, pois aqui estudava os vídeos de divulgação científica institucionais, o objeto de seu mestrado. Morou por oito anos em Vitória. Não conseguiu se livrar do estigma de estran-geira que carregava. Sempre seria a “Mulher do Norte”. O mestrado, e agora o doutorado que fazia, não era nada perante os olhos dos estudantes. Não era paulista, não era capixaba. Era o outro.

Todo o peso que ela carregava vinha de um estereótipo da mulher nortista. A mulher que, no popular, era analfabeta, gostava de dançar, cantar, não gostava de estudar nem de pensar. Aquele imagético era impossível de ser associado para Alessandra, porque ela passou boa par-te da sua vida na Academia. Viciada em tecnologia e sempre antenada, ela representava uma quebra de expectativa e isso incomodava.

Conheceu seu marido em Vitória e veio morar com ele no Rio de Janeiro. Quando che-gou, se deu umas férias (merecidas). Após oito anos trabalhando em Vitória, tendo terminado o doutorado, coordenando um mestrado em Espírito Santo, Alessandra queria dar uma pausa. Descansar. Após seis meses, a jornalista se inscreveu em dois concursos: um para trabalhar na Universidade do Recôncavo Baiano (UFRB) e outro para trabalhar na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). “Eu acho que ficava procurando “esse lugar”, sabe? Não era Vitória, nem Santarém”, diz Alessandra sorrindo, a busca ainda não tinha terminado. Talvez não exista mesmo um fim. Ela acabou passando para a UFRB em primeiro lugar, para lecionar na disciplina Teoria da Comunicação.

O sonho de morar na Bahia estava finalmente se encaminhando. Alessandra viveu a re-alidade e mergulhou em outra gastronomia. Mudou-se com seu marido para Cachoeira (BA) e viveu por cinco meses lá. Encantou-se porque finalmente seu sotaque e suas origens não se sobressaíram à sua formação. Na UFRB muitos vinham de outras cidades, eram assim como ela, calouros. Alessandra se incomodava, porque mesmo estando onde sonhava, ali não era a casa do seu marido. Ela não tinha uma casa certa, era uma alma livre, porém tinha tirado seu marido de sua casa. Na verdade ela não tirou, ele veio por vontade própria, mas entendia que seria preferível voltar para o Rio de Janeiro. Finalmente foi chamada para trabalhar como pro-fessora na UFRRJ. Não pensou duas vezes e aceitou. Atualmente é professora e coordenadora do curso de Jornalismo da UFRRJ.

Decidi terminar a entrevista fazendo a pergunta banal do arrependimento: “Não! Acho que saí de Santarém na hora certa, de Belém também, de São Paulo também. O que aconteceria se eu ficasse mais tempo em Belém?” pergunta retoricamente. Alessandra pode parecer uma pessoa que foge da vida porque vive mudando de lugares. Ela nunca fugiu de nenhum lugar. Ele sempre foi a mulher de Santarém.

Pedi para que ela trouxesse algum objeto que lembrasse Santarém, e ela me mostrou o balaio com um muriaquitã – uma rã talhada em pedra – e sorriu: “Pensei que ninguém nunca iria me pedir isso”, riu. Mesmo morando em mais de seis lugares, ela assumiu que leva aquilo

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sempre consigo. O amuleto é um dos principais produtos culturais de Santarém, e sua origem vem de uma lenda em que a imagem deveria ser entregue como uma proteção ao seu parceiro amoroso. Alessandra também visita sua família uma vez por ano e diz que aproveita para fazer tudo o que mais gosta: comer e passear. Em qualquer lugar, não importa onde ela esteja, carre-ga a rã de pedra, o balaio e a imagem do pato no tucupi. O cenário tropical vem nas lembran-ças, o rio, o sabor das folhas e das frutas. Trocou a macaxeira pelo aipim, o chifre de boi pela banana da terra, e o rio Tapajós pelo Rio de Janeiro. Neste fluxo, entre rios, é ali que a jornalista está, em busca eterna do “lugar”.

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/CONTEXTO

Educação em extinçãoBanhada pelo rio Amazonas, a região Norte é uma parte megalômana das terras tupi-

niquins. Dentro de seu território estão localizados a Floresta Amazônica, a maior floresta tropical do mundo, e também o Rio Amazonas, o segundo maior rio do mundo. Apesar de ocupar o imaginário por sua cultura rica, o Norte ocupa frequentemente os gráficos de piores índices de educação no país. A escassez educacional vem desde o começo da vida estudantil, o índice de analfabetismo da região é o segundo pior do país (11%), segundo o Ministério da Educação. As escolas também ocupam as taxas mais baixas em relação a recursos, uma pes-quisa da campanha Custo Aluno Qualidade Inicial indica que na região, 71% das unidades de ensino não apresentam itens básicos para os alunos.

A falta de recursos na educação ainda não apareceu diretamente em nenhuma tabela oficial que identifique como motivo de migração, mas histórias como a da Alessandra justi-ficam a mudança de estado. Nascida em Santarém foi para Belém estudar na Universidade Federal do Pará, pois sua cidade não tinha nenhuma instituição de ensino superior. A carên-cia na educação é explicada pelo brusco crescimento do estado do Pará a partir dos anos 80, graças à exploração das zonas rurais e agrícolas.

A partir dos anos 90 o cenário foi lentamente melhorando, mesmo assim o déficit de estudantes era de 85,2%¹ (no meio da década de 80, era 86,6%), de acordo com a Secretaria de Educação do Pará. Santarém foi um dos principais pólos de crescimento educacional na região Norte, o que não significa necessariamente uma ampliação do ensino superior. Como o déficit de população “escolarizável” era grande, o governo preocupou-se principalmente com o Ensino Fundamental, e bem pouco com o Ensino Médio. Os dados se modificaram a partir do plano de reestruturação das universidades (REUNI) em 2007 que visava dobrar o número de alunos em curso superior em dez anos. Embora o REUNI tenha incentivado os paraenses às universidades, atualmente o Pará ocupa um dos mais baixos índices de forma-dos: apenas 4,06% de toda a população paraense possui ensino superior.

As migrações de Alessandra se deram por um déficit educacional, inicialmente em sua cidade e posteriormente em seu estado. Os programas de educação na região Norte chegaram tardiamente, justificando (parcialmente) a diminuição de sua população para outros estados. Em busca de novas oportunidades de trabalho e na educação, o migrante nortista busca uma oportunidade além do trabalho agrícola. Se a Floresta Amazônica está frequentemente no foco dos principais noticiários e se torna símbolo do Brasil, a imagem de nortista “burro” precisa ser superada com um investimento maior na educação da Região Norte.

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Celso

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A ConstrUÇÃo Do BrAsiL

Por Nycolas saNtaNa e Gilberto Perez

“Sabe que eu esqueci a minha idade?”, diz Celso de Oliveira, paulista da cidade de Cha-vantes, no interior do estado de São Paulo, e atualmente morador da Ilha do Governador, zona norte do Rio de Janeiro. Na bolsa preta de couro, desagastada pelo tempo, traz as fotos que contam sua história e os dois objetos de maior valor: duas carteiras de trabalho com assinaturas e carimbos que carregam 23 anos de suor.

Aos 63 anos, Celso carrega no seu rosto e em sua barba longa as marcas de um brasileiro que fez parte da construção de grandes obras do país. “Eu nunca fui mandado embora”, afir-ma com precisão. Caminha de forma lenta como quem não tem pressa e diz não esquentar a cabeça. Entre risadas, piadas com os funcionários do salão de beleza que visita diariamente e olhares distantes, o aposentado avista o passado, orgulhoso das histórias dos diversos lugares por onde passou.

“Minha eMpresa seMpre Me transferia e eu era doido pra que Me transferisseM. Meu patrão Me perguntava ‘sr. Cel-

so de oliveira, tá pronto pra viajar?’, e eu falava ‘va-Mos!’”

Rodando praticamente todas as regiões do Brasil, sobretudo o Sudeste, Centro-Oeste e Norte do país, deu sua contribuição em um período de intensific ação das grandes obras ur-banas. Esteve presente na construção do Aeroporto Internacional do Galeão, da Passarela do Samba, da Rodovia Ayrton Senna, entre outras de caráter monumental. “Eu me lembro de todos os lugares por onde eu passei”, conta.

Desde os 14 anos de idade, já mostrava que tinha disposição para o trabalho. Antes de deixar sua cidade, trabalhou em padarias e como entregador do Jornal do Brasil. “Havia três padarias na minha cidade e os três donos queriam que eu trabalhasse pra eles”, lembra. Aos 18 anos, decidiu seguir os passos do pai e foi para o Rio de Janeiro. “Meu pai era mecânico da Companhia Brasileira de Projetos e Obras (CBPO) e tinha sido transferido. Aproveitei para ir com ele”.

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Celso deixou para trás uma vida interiorana na fazenda onde morava e uma possível car-reira de jogador de futebol. “Fui federado pela Federação Paulista de Futebol (FPF), e disputei a terceira divisão de profissionais”, conta. Recebia pouco nas passagens pelos times onde jogou - Associação Atlética Chavantense, Cobrapa Esporte Clube e Clube Atlético Ourinhense. Mas o dinheiro ajudava nas despesas da casas de três cômodos onde a família vivia.

“Meus pais eram pobres, e tudo que eu ganhava, dava para comprarem algumas coisas, por exemplo, um sofá, um aparelho de som”, lembra Celso. No entanto, garante que não passou necessidade. “Nunca faltou nada. A gente tinha uma plantação bem grande. Meu pai era colo-no da fazenda Santa Maria do Serreno. Plantávamos abóbora, milho, criávamos galinha, pato... Eu e meus irmãos fomos criados nessa fartura de alimentação”, afirma.

Com poucas oportunidades na cidade rural de Chavantes, Celso enfrentou com seu pai uma viagem de 15 horas de ônibus em busca de uma vida nova. No ano de 1971, desembarcou na Cidade Maravilhosa, tirou sua carteira de trabalho e se integrou nas obras de um dos princi-pais aeroportos do país, o Galeão – atualmente Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim. “Trabalhei lá por cinco anos e cinco meses”, lembra Celso.

Conta ainda que fez parte das obras do Metrô do Rio de Janeiro e lembra a carga horária a que era submetido. “Eu trabalhava todos os dias de 7h às 22h, e quando tinha algum problema com outro funcionário, eu dobrava o turno”, afirma.

Assim como seu pai, estava sujeito às transferências e as viagens vinham de acordo com o término de um serviço. “Minha empresa sempre me transferia e eu era doido pra que me trans-ferissem. Meu patrão me perguntava ‘Sr. Celso de Oliveira, tá pronto pra viajar?’ , e eu falava ‘vamos!’”, conta. “Quando eu recebia um serviço, me mandavam um telegrama, eu arrumava minha mala e partia”, acrescenta.

Do Rio de Janeiro, foi para Minas Gerais e, diferente dos serviços anteriores ligados ao setor de transporte, sua mão-de-obra serviu para o desenvolvimento do setor energético. “Em

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“o úniCo MoMento da Minha vida que eu passei difiCuldade foi na Cirurgia do Meu rosto. tive que fiCar seis Meses seM poder falar e

andar”

Minas Gerais eu trabalhei por dois anos e sete meses em um Alto-forno”, explica. Saindo de Minas Gerais, desembarcou no estado de São Paulo, onde trabalhou na construção da Rodovia Ayrton Senna, em Guarulhos, da Rodovia do Açúcar, em Itu, e da expansão do cais do Porto de Santos, permanecendo no estado por cerca de quatro anos.

Celso se lembra de mais três participações em construções pelo Brasil. Conta que traba-lhou em Jussara, no estado de Goiás, na construção de uma das rodovias que ligam o estado a Minas Gerais, e em Sorocaba, onde fez parte da construção das pontes entre Santos e Cam-pinas, e da construção da Passarela do Samba, no Rio de Janeiro. “Aquilo lá tá um esplendor, não é? Eu que fundei”, lembra, com orgulho na fala.

Quando ainda estava em Santos, Celso foi alertado que os empregos estavam ficando escassos nas grandes empresas. Ainda assim, foi convidado para trabalhar em outro grande projeto nacional: a exploração da Serra dos Carajás, no Pará. Foi trabalhar como mecânico. “A cidade mais próxima dos Carajás ficava a 12 horas de viagem de carro. Nunca ganhei tanto dinheiro na minha vida como lá”, diz. A rotina de trabalho também era desgastante na região, repetindo a carga horária de 15 horas. “Lá eu recebia mais dinheiro por hora extra do que de salário”, explica.

Após a passagem no Pará como mecânico, voltou para o Sudeste, onde recebeu um con-vite para trabalhar em outro setor, o alimentício. “Fui apresentado a Henrique Igayara para trabalhar com ele. Atualmente ele é um dos maiores donos de granjas do país, a Rica Ali-mentos”. Em 1986, foi para Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro, trabalhar como mecânico da empresa. “No começo, eles só tinham uma Kombi e vendiam frango”, lembra Celso, que acompanhou o crescimento da empresa. “Construímos galpões em Lídice, Passa Três, Volta Redonda... Cada um com 120m de comprimento pôr 40m de largura, cabendo 120 mil galinhas em cada um”, conta.

Em sua carreira como mecânico de motores, Celso carrega uma de suas principais mar-cas. “Eu estava consertando um motor V6 e eu reparei que estava vazando água no quarto cilindro. Pedi para um ajudante fazer um reparo, mas ele errou e o motor soltou um jato d’água no meu rosto”. A pressão da água o deixou cego do olho direito e provocou aneurisma cerebral.

“O único momento da minha vida que eu passei dificuldade foi na cirurgia do meu rosto. Tive que ficar seis meses sem poder falar e andar”, lembra Celso, que passou a desempenhar funções mais simples no seu emprego até se aposentar, aos 41 anos. “Eu não gostava daquilo não, eu preferia por a mão na massa!”.

Apesar das limitações impostas pelo acidente, Celso afirma que não teve problemas na adaptação e que sua vida seguiu normalmente. “Deus me deu essa vida para viver desse jeito!”, conta com um sorriso no rosto. “Não esquento a cabeça com nada não”.

Mesmo após esse momento difícil de sua vida, a sorte estaria do lado de Celso. “Dia 13 de outubro de 1995 eu fui um dos felizardos na loteria”, lembra Celso, vencedor do prêmio de R$ 4.446.000,60. A vida de Celso mudaria a partir desse dia. Mudaria, se não tivesse gastado todo

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o dinheiro que ganhou. “Eu era novo, bonito, atleta... Fui aproveitar a vida”, conta em meio a risadas. “Eu viajei muito com esse dinheiro e não me arrependo de nada do que fiz”.

“O lugar de que eu mais gostava era o que me dava emprego”. Apesar do tom de brinca-deira, Celso lembra que o lugar que mais gostou de conhecer foi Tietê, no estado de São Paulo. “A cidade era pequena, mas tinha tudo do que eu gostava”, lembra. E ainda pretende conhecer mais lugares. “Meu sonho é ter um carro automático e viajar pelo Brasil”, conta e depois acres-centa que gostaria de visitar Fernando de Noronha. “O Brasil é bonito demais! Tem muitos lugares lindos para se conhecer”.

Perguntado se sentia saudades de Chavantes, respondeu com risadas: “faz 35 anos que eu não volto lá”. No entanto ele admite que tem vontade de visitar a cidade novamente. Diz que seus amigos mantém contato com ele por telefone, embora a contragosto. “Quando eu perdi meu pai, minha tia me telefonou e avisou para eu voltar pra minha cidade, porque meu pai es-tava internado. Quando eu cheguei, ele já estava morto. Desde então, eu não gosto de atender e nem usar telefone”, conta.

Atualmente Celso é divorciado, têm dois filhos – um de 35 anos, que mora em Natal, no Rio Grande do Norte, e um de 25 anos, que mora em Lídice, no Rio de Janeiro –, com os quais mantém contato via internet. “Eles mandam recado para a minha cunhada e eu mando recado para eles”, explica. Mora com os três irmãos no bairro do Tauá, na Ilha do Governador. “Por mim, eu moraria em casa nenhuma”, afirma. “Pelo menos não com meus irmãos”, explica. Considera a sua família os funcionários do salão de beleza onde passa a tarde conversando. “Eu gosto de todo mundo daqui! Me dou bem com todos eles”.

Celso guarda boas lembranças do passado e faz questão de recordar uma das suas maiores qualidades, a de motorista. “Eu era um motorista dos bons! Pilotava muito bem uma carreta 1934”, lembra. No entanto, conta que não guarda objetos de valor do passado. “A gente vai evoluindo com o tempo e vai jogando tudo fora”.

“Da minha cidade eu só guardo as amizades que eu tive”. As recordações de Celso vão além da pequena cidade de Chavantes, elas estão em cada pedaço do Brasil por onde passou e em cada obra de que fez parte. Todas essas recordações são lembradas com o orgulho de quem nunca faltou um dia de trabalho para a construção do país.

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O país das obras faraônicas

O período conturbado anterior ao golpe de Estado em 1964 deixou toda a economia, que já vivia uma crise, paralisada, impedindo o presidente João Goulart de implementar medidas que pudessem promover a retomada do crescimento. Nesse contexto, a inflação chegou a quase 100% ao ano entre 1963 e 1964.

Como tomaram o Estado por um golpe numa situação de crise econômica, os militares precisa-vam criar um imaginário de crescimento para se legitimar no poder. As grandes obras dão a dimensão desse simbolismo da propaganda do regime sobre sua capacidade de promover o Brasil à condição de 8ª economia mundial.

Entre as principais obras, estão a Transamazônica, do governo Médici, orçada inicialmente em US$2 bilhões, que nunca foi concluída e gerou impactos negativos para o meio ambiente e os indíge-nas da Amazônia. Seu custo final jamais foi divulgado. Também importantes as Usinas Angras I, II e III, em Angra dos Reis-RJ, igualmente obra de Médici. A Usina de Angra I foi comprada da empresa norte-americana Westinghouse. Iniciada em 1972 para ficar pronta em 1976, só foi concluída em 1983. Seu custo inicial de US$300 milhões acabou em US$1,8 bilhões. Jamais funcionou além de 3% de sua capacidade e só nos dois primeiros anos quebrou 22 vezes. Angra II e III foram compradas em 1975 da alemã Siemens, elevando vertiginosamente o custo total das três usinas. Angra III só foi concluída em 2015 e custou o total de US$13 bi. Até hoje as Usinas de Angra são objeto de contestação pela comu-nidade científica e ambientalistas em função de suas falhas, riscos e sucessivos defeitos apresentados.

Também iniciado no governo Médici o Projeto Carajás tentou alavancar a exploração da maior jazida do melhor minério de ferro do mundo, em Carajás. Com obras iniciadas em 1978, incluiu a Usi-na Hidrelétrica de Tucuruí (US$7,5bi), a Estrada de Ferro de Carajás (sem divulgação de custo total) e a expansão e melhoria do Porto da Madeira (em Itaqui-MA), cuja construção começou em 1972. O minério de ferro era extraído pela então estatal Vale do Rio Doce. A obra trouxe benefícios para os negócios de exportação de minérios da Vale, especificamente, mas o impacto foi desastroso. Houve muitas irregularidades, violência contra a população, desrespeito a direitos trabalhistas, destruição ambiental. A grande beneficiária ainda é a Vale, já privatizada.

Essas políticas prepararam o país para o período do “Milagre”. O PIB brasileiro chegou a crescer entre 7% e 10,2% ao ano entre 1967 e 1973. Com uma média inflacionária de 17%, o Brasil conseguia exportar bastante. A renda média dos assalariados cresceu, mas num ritmo menor e acom-panhada de perda de direitos trabalhistas. O fim da estabilidade e a introdução do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço facilitou as demissões, aumentou a rotatividade da mão-de-obra e rebaixou salários. O crescimento do período significou impulso nos lucros das empresas e sacrifício dos tra-balhadores. Tanto que mais de 500 entidades sindicais sofreram intervenção entre 1964 e 1970. Entre 1962 e 1963 ocorreram 456 greves, em 1971, nenhuma greve aconteceu, tamanha era a repressão.

Devido à política do milagre, a inflação saiu de controle chegando a 215,264% ao ano em 1984, quando o Brasil já devia aos governos e bancos estrangeiros 53,8% do seu PIB, hoje seriam US$ 1,4 trilhões (100 bilhões só ao FMI), dívida quatro vezes maior do que a de 2015.

A idéia de fazer “o bolo crescer para depois dividir” se materializou numa divisão ainda mais desigual depois do “bolo crescido”. Com a crise do petróleo e a retração do mercado mundial, as ex-portações caíram e a dívida aumentou. Assim, do Brasil colonial, passando pelo do “Milagre”, o do neoliberalismo e chegando ao de hoje, ainda estamos em um país marcadamente exportador de pro-dutos não industrializados, de baixo valor agregado.

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josémarCelo

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Solonópole e Rio de Janeiro. Separados por mais de dois mil quilômetros, os dois lugares dividem o mesmo padroeiro, São Sebastião, e algo a mais: José Marcelo Bezerra. Aos 20 anos, José deixou o município no interior do Ceará, onde morava com os pais e 12 irmãos, para tentar a chance na cidade grande. De carona e morando de favor, o nordestino chegou ao Rio em 1951, mas passou por muitas coisas antes de desembarcar na cidade maravilhosa.

a terraMuitos anos antes, quando sequer sonhava com o Rio de Janeiro, José Marcelo trabalhava

em plantações, como quase todos de sua família. A atividade começou aos seis anos de idade e sua função, ainda singela, era afastar os animais que tentavam se alimentar dos grãos que seus irmãos plantavam. Quando ficou mais velho, ele seguiu os passos dos mais velhos e trabalhou em plantações de milho, feijão, algodão e aipim – ou macaxeira, como ele chama.

Apesar da grande variedade de cultivos, na sua casa a verdadeira especialidade era a mandioca. Além da plantação de sua família, outras pessoas da região utilizavam a terra para plantar o alimento, conta José, orgulhoso. Mesmo 66 anos após deixar o Ceará, o nordestino ainda explica com muitos detalhes a plantação da macaxeira, desde a colheita até o forno. In-clusive, era por causa dessa estrutura que os vizinhos iam até a casa da família Bezerra fazer a farinha.

DA terrA Ao AsFALto

Por Maria clara Pestre e ferNaNda Queiroz

“se veM pouCa, não CresCe, se veM Muita, alaga”

Em Solonópole quase todos se alimentavam do próprio cultivo, e o pouco comércio que existia era distante. A luz elétrica, que já iluminava as casas do Rio de Janeiro no início do século XX, nunca chegou na Solonópole que José Marcelo conheceu. As atividades de lazer eram limitadas, reclama José, mas lembra com gosto dos repentistas, que improvisavam rimas para a diversão do público.

A educação era em casa, e José estudava junto com os irmãos, sob a tutela de sua mãe. Nessa época, uma de suas maiores preocupações era a seca. Como a quase toda a alimentação da família vinha da terra, esse era um risco que eles não podiam correr. José explica que a chu-va no Nordeste é traiçoeira, e que deve chegar na medida certa para não estragar as plantações “Se vem pouca, não cresce, se vem muita, alaga”, conta.

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o asfaltoFoi aos vinte anos que resolveu deixar o Ceará em busca de mais oportunidades. Como

tinha parentes e conhecidos no Rio de Janeiro, a escolha foi simples. Outros de seus irmãos, entretanto, seguiram o caminho contrário e subiram o Brasil, para trabalhar nas fazendas de borracha no Norte. Em 1951 José partiu de Solonópole para o Rio de Janeiro, com um pouco de dinheiro economizado e uma rede de dormir nas costas.

Antes de chegar ao seu destino, entretanto, ele teve que se distanciar um pouco do Rio de Janeiro. De Solonópole ele percorreu 276 quilômetros até Fortaleza, onde pretendia arranjar uma carona para o Sudeste. A espera, que ele considera curta, foi de dois meses. Durante esse período ele morou junto com um primo, que trabalhava como ascensorista em um hotel na capital do Ceará.

Depois algum tempo, ele descobriu que muitos cariocas iam até Fortaleza para comprar carros e voltavam dirigindo para o Rio de Janeiro. Com muito jeitinho e um pouco do dinheiro que tinha economizado, um ainda jovem José conseguiu espaço em um carro que iria para o Rio. A partir daí começou a viagem que mudaria sua vida.

Recém-chegado no Rio, José conseguiu seu primeiro emprego com a ajuda de uma tia, que era Irmã Superiora no Hospital da Previdência. Ele trabalhou no hospital por algum tempo, mas logo passou para outras funções. José foi vendedor de loja, propagandista de laboratório e trabalhou em obras. Apesar da pouca idade, ele já estava acostumado a pegar pesado e não

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teve muita dificuldade em aguentar o tranco da cidade grande.Depois de passar por muitos empregos, José finalmente conseguiu o trabalho no qual se

aposentaria. Mais uma vez, a ajuda – talvez divina – da Irmã Superiora, o impulsionou. Ele começou a trabalhar na Light, onde ficaria por 29 anos. Quem diria, que depois de passar a infância inteira solto na roça, José iria fazer a vida dentro de uma indústria?

Além do trabalho, o Rio de Janeiro ligou José Marcelo ao amor. Foi na praça Saens Peña, no bairro da Tijuca, que ele conheceu sua futura esposa, lembra. O primeiro encontro foi rápi-do, mas o namoro durou muito tempo. José conta, com bastante humor, que demorou seis anos para pedir Leda em casamento. Sua esposa faleceu, mas do casamento ele levou uma filha, hoje com 53 anos, e dois netos – além de grandes memórias.

Sessenta e seis anos depois de deixar o Ceará, José é aposentado e mora no bairro da Ti-juca, no Rio de Janeiro. Ele lembra com muito carinho da família e de Solonópole, que ele só pôde rever uma vez durante todos esses anos. A visita única não teve um motivo feliz: foi até

o Ceará para encontrar a mãe que estava doente. Ele con-ta que enviou um telegrama para avisar que estava a ca-minho, mas acabou chegando antes da mensagem e fez uma surpresa não planejada.

Da viagem ele trouxe uma lembrança: uma peque-na caixa azul, em formato de coração, que envolve um pedaço do cabelo de seu pai. Hoje, dos 12 irmãos que José deixou no Ceará, apenas três ainda estão vivos e somente uma permanece na casa em que José nasceu.

Graças à tecnologia e ao intermédio de sua filha, José consegue ver fotos e até tro-car mensagens com os irmãos que estão no Ceará. Mas, seja por causa da visão ca-lejada pela idade, ou mesmo pelo tempo que transformou

a imagem que tinha de seus irmãos, ele tem dificuldade em reconhecer as pessoas na tela do celular. Mesmo assim, as fotos são recebidas com muita emoção e trazem um pedacinho da juventude quase esquecida de volta para o coração de um velho nordestino.

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Vidas secas

Por definição, migração refere-se a quando pessoas saem de áreas de repulsão para áreas de atração. Em geral, o local qual deixam apresenta condições ruins de vida, como guerras, conflitos de terra, fome, desemprego, desastres naturais, miséria, entre outros.

O caso do movimento migratório da década de 50 não foi diferente. A severa seca e o subdesenvolvimento do nordeste levaram inúmeras pessoas a saírem de suas cidades natais para tentarem a vida em outras que lhe proporcionassem mais e melhores condições.

Neste período, o Brasil sofria um intenso processo industrial extremamente concentra-do na região Sudeste. Registrava-se um desenvolvimento ascendente e uma economia em expansão, enquanto que o Nordeste entrava em declínio econômico com as secas constantes e a desconcentração populacional decorrente.

As distintas características dessas duas regiões, além de acentuar as desigualdades re-gionais, formaram um cenário propício à migração nordestina, em especial às áreas urba-nas. Assim, a rota Nordeste-Sudeste se tornou um caminho bastante percorrido por aqueles migrantes nordestinos que buscavam melhores condições de vida nos centros urbanos em ascensão.

Hoje, apesar dos nordestinos não estarem mais deixando as suas casas, a seca voltou com tudo. Considerada por especialistas hídricos “a pior dos últimos 50 anos”, o nordeste sofre novamente com a falta de chuvas e a estiagem que termina com plantações, lavouras e mata os gados criados nas fazendas da região.

O estudioso Pedro Severino de Sousa concedeu uma entrevista à Revista Nordeste ex-plicando que: “O problema da continuidade da seca no nordeste é cíclica. Há 500 anos que o homem branco, ao ter chegado à Bahia, no Nordeste setentrional, se tem conhecimento pelos registros históricos da seca. A seca é cíclica, mas nos últimos séculos XIX e XX vem se agravando. Antes, de 10 anos, dois anos era seca, foi aumentando para três. Hoje pratica-mente em 10 anos, 6 são secos”.

Assim, os nordestinos vivem sabendo que, por mais que estejam passando por um perí-odo de seca, não irá durar para sempre. Então, apenas seguem com as suas vidas esperando a próxima temporada de chuvas começar.

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elIenICe

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Elienice de Pinho Araújo, Nice, trabalhou em diversos lugares e ocupações diferentes desde que veio para o Rio de Janeiro, em 1991. Um de seus primeiros empregos foi em uma fábrica de roupas íntimas, onde protagonizou uma discussão digna de novela. A briga começou quando uma das mulheres com quem trabalhava chamou Elienice de “paraíba”. A piauiense conta que perdeu a cabeça e partiu para cima com a fala pronta: “Vou te ensinar como é que paraíba bate de facão na cara de carioca”, ameaçou.

Atualmente, quem vê a mulher com vergonha do gravador para a entrevista, tem difi-culdade em acreditar que ela é a mesma pessoa que um dia enfrentou a colega na fábrica de calcinhas. “Olha que merda! Não faço mais isso. Hoje em dia, se me chamam de paraíba, tá beleza”, conta Nice. Logo, ela relatou sobre como as duas se reencontraram, anos mais tarde, e “ficamos lá, as duas já velhas, olhando uma para a cara da outra, rindo do passado”, relembra.

Assim como tantos outros que já foram chamados de “paraíba”, Elienice veio do nordeste e ficou pelo trabalho. Nascida em um município com cerca de 150.000 habitantes do Piauí, Parnaíba, Nice viajou para o Rio de Janeiro acompanhando a ex-sogra, Graça Andrade, que precisava de cuidados médicos que não conseguiria em seu estado de origem. Nessa época, não tinha a intenção de ficar, mas conseguiu emprego e acabou morando na cidade.

No Rio, Nice trabalhou em fábricas, vendeu doces, foi camelô, babá e também diarista. Hoje ela é doméstica e trabalha cuidando de pessoas mais velhas. “Veja, eu estou sendo acom-panhante de idoso e ainda psicóloga e cozinheira. Eu faço tudo”, conta com bom humor, mas com um fundo de verdade. Boa de discurso, ela não mede esforços para levantar o astral de sua atual cliente. “Acorda pra vida, mulher! Teu homem já foi embora. O problema é homem? Arruma outro. Se o problema não for homem, vai viver a sua vida. Tem filho, tem neto. Tem que viver a vida, tem que se mexer”, exemplifica uma de suas falas.

No entanto, alegrar a vida das pessoas com quem trabalha não é o único desafio em sua vida profissional. Antes da PEC das Domésticas, sua carteira não era assinada e seu salário era combinado informalmente com os contratantes. Em uma tentativa de se restabelecer em sua cidade natal, Nice também teve dificuldades com esse arranjo. Nessa época, em Parnaíba, ela conta que, além da oferta de empregos estar mais baixa que no Rio, havia o mesmo problema para combinar o pagamento. “Aqui, por exemplo, você ganha um salário. Já ganhei 950 e tal. Lá o salário mínimo é menor e você ganha menos da metade dele. É tipo assim: o salário é 600

‘SOU MAIS CARIOCA qUE PIAUIENSE’

Por edson neto e luísa Verçosa

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reais, mas a dona da casa quer te pagar 150”, explica. Para cuidar de crianças, o talento da doméstica era natural. Conseguiu seu primeiro em-

prego de babá por conta desse dom. Nice conhecia o pai da criança por conta de seu trabalho como vendedora numa barraca de rua onde ele era cliente. Raimundo, o futuro patrão, ofere-ceu a ela o emprego no momento em que percebeu sua habilidade com o menino. O garoto, Gabriel, não queria o colo de ninguém além dos pais, mas, por algum motivo, quis o dela. “Ele foi comigo de primeira”, contou vantagem. Para Nice, na época, era mais lucrativo ser babá ao invés de continuar na barraca. “Poxa, tenho três filhos, tinha que arranjar coisa melhor. Foi aí que eu comecei a tomar conta do Gabriel”, relatou.

Hoje, ficar no Rio é mais fácil com a presença dos filhos Talita, Eduardo e Tiago, mas não era assim quando se estabeleceu na nova cidade. No início, trouxe apenas sua filha, Talita, mas a menina logo voltaria para Parnaíba. Por conta do trabalho, Nice não podia tomar conta da Talita de dia. Sua mãe, dona Tereza Pinho, soube que a neta estava aos cuidados de uma amiga do pai e fez Elienice levar a menina de volta. Com o tempo, seus filhos foram se juntando a ela, um a um, quando já mais velhos.

Até que os filhos estivessem no Rio a melhor forma de se comunicar com eles, e com o resto da família que ficou no Piauí, era o orelhão. Muito antes dos smartphones, essa era a me-lhor forma para contatar alguém. “Eu comprava um saco de fichas e ia para o orelhão. Quando minha mãe falava ‘alô’, eu já tinha que ter outra ficha preparada”, contou. O tempo passou e esse problema ela não tem mais. “Começou o orelhão com cartão, depois o celular e agora mi-nha mãe tem whatsapp!”, fez graça.

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Apesar do progresso tecnológico, a saudade de sua terra natal nunca passou. Nice fala de tudo que deixou no Nordeste com nostalgia. Lembra de seus pais, amigos e não deixa de falar da culinária local, em especial dos camarões, palmitos e da piaba, peixe local. No entanto, mesmo com todo o carinho por Parnaíba, o Rio e sua grandeza de metrópole já conquistaram a mulher que tinha vindo só de passagem. “Estou aqui há 24 anos, mais tempo que morei no Norte. Sou mais carioca que piauiense”, diz. Sua cidade é agora uma lembrança boa e um óti-mo lugar para visitar em suas férias, quando a saudade aperta demais.

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A PEC das domésticas

A proposta de Emenda à Constituição brasileira, que ficou conhecida como PEC das Do-mésticas, foi enfim completamente regulamentada em junho de 2015. Os trabalhadores con-templados são os maiores de 18 anos e que trabalham por pelo menos dois dias da semana em casas de família. A lei existe desde 2013. Os patrões já eram obrigados a pagar INSS, férias, vale-transporte e outros benefícios. Mas só agora foram regulamentados direitos polêmicos como o FGTS, adicional noturno e seguro para acidente de trabalho.

Os termos que usei te incomodaram? Eles foram escolhidos a partir da visão do empre-gador, e a que foi mais explorada pela imprensa. Quem trabalha e não tem o reconhecimento merecido, nunca chamaria seus direitos de obrigação ou polêmicos. Afinal, em um posição social mais vantajosa, eles seriam apenas direitos.

A PEC das Domésticas abrange outros cargos apesar do apelido que recebeu. Além dis-so, a ementa levantou questões que andavam adormecidas no Brasil. Foram lançados filmes, surgiram textões no Facebook, - ou apenas os 140 caracteres do Twitter - enquanto se forma-vam dois grupos distintos: os patrões e os empregados. Ela uniu pessoas como a Nice, vindas de regiões mais pobres do país para tentar a sorte nas cidades grandes, os empregados, e que exigiram os seus chamados benefícios de um grupo que se acostumou em mandar, os patrões.

Essa dicotomia foi explorada em filmes recentes como “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert. Val, a empregada, é a protagonista. É mais uma entre tantas nordestinas que deixa-ram a filha na terra natal e prezam por manter a ordem na casa. Ordem essa que balança quan-do sua filha, Jéssica, chega a São Paulo e é mal acolhida onde sua mãe trabalha e mora. Ela não é rebelde. Pelo menos não deveria ser aos olhos dos empregados. Jéssica só causa espanto ao espectador - e aos demais personagens - pois não se porta como inferior.

O longa teve grande repercussão nas redes sociais. O que mais chama a atenção é a rela-ção da família com Val. No começo, há uma ilusão de que é tratada como igual, pertencente. É exatamente isso que muda comé. Ela vem para abrir os olhos da mãe e de muitos espectadores de que a empregada ainda é tratada como inferior. A família sai de sua zona de conforto, tudo muda.

A regra não dita disseminada pelas cidades ainda segue os tempos de casa grande e sen-zala. Para melhor entendimento, é só trocar “senzala” por quartinho da empregada”. Existe uma divisão quase invisível que determina méritos dentro da estrutura de uma casa.

A relação entre empregados e empregadores sempre foi nebulosa. O Brasil foi um país escravocrata por muito tempo, demorou a abolir. De lá para cá, muito mudou, é verdade, mas ainda se tem um caminho longo a percorrer.

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TereZInHa

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“JÁ qUE é CIdAdE dE dEUS, qUEM SABE LÁ EU

TENhO SORTE?”Por Camila martins e samantha su

Pelos corredores da Universidade Federal do Rio de Janeiro é possível que ela passe des-percebida. Terezinha da Costa mal sabia o que aconteceria quando ancorou sua vida no Rio de Janeiro há mais de 20 anos. Hoje, entre a limpeza do laboratório do Centro de Tecnologia e reuniões, ela é uma das principais figuras na luta pelo direito dos trabalhadores terceirizados. Nascida em Cataguases, no interior de Minas Gerais, transformou a inocência de uma moça do interior na força para brigar por melhores condições de vida. O trabalho acompanhou sua trajetória desde muito cedo: “Eu morava na roça mesmo, comecei a trabalhar com seis anos de idade. Fiquei lá até os 15, quando fui para Viçosa”, conta.

Aos 19 anos, Terezinha morava em Viçosa e sua filha mais nova, Ana Paula, teve hepatite. A doença foi o ponto de partida para ela chegar à cidade de pedra que era o Rio de Janeiro. “Ela adoeceu e eu não tinha dinheiro para comprar remédio para ela. Tinha uma venda que eu pegava fiado e pagava todo fim de mês. Eu cheguei lá e pedi um dinheiro emprestado para comprar os remédios dela porque eu não tinha recebido ainda meu salário. O dono, que se

“Como eu tenho muita fé, eu olhei assim e pensei: ‘já que é Ci-dade de Deus, quem sabe lá eu

tenho sorte’”chamava Geraldo Elias, me disse que emprestava, mas que era para eu não me acostumar. Eu, apesar de pobre, sempre tive um gênio difícil. A atitude dele ali foi cruel demais com uma mãe desesperada, ele sabia que eu pagava, todo mês certinho. Aí eu fiz uma promessa para mim mesma, assim que minha filha melhorasse eu iria sair de Viçosa”, ela narra.

Dias depois, com uma melhora progressiva da menina, Terezinha veio determinada para o Rio com um grupo de amigas que tinham “uns parentes” por aqui. Deixou os dois filhos com a mãe e prometeu melhorar de vida. A chegada, no entanto, não foi de boas-vindas. “Eu, na mi-nha inocência, achava que o Rio era como em Minas, que a gente sai, bate nas portas e conse-gue emprego. Só que na rodoviária cada uma tomou seu rumo. Eu fiquei sozinha ali, não tinha ninguém me esperando. Quando amanheceu o dia, eu saí em busca de um emprego. Quando olhei, só tinha prédio. Andei, andei, andei e me lembro de chegar até a Central do Brasil a pé.”

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Terezinha nunca mais viu as amigas e descobriu, por um senhor, que para conseguir um emprego na cidade grande era preciso qualificação. “Eu voltei pra rodoviária, tinha trazido algumas moedas, naquela época eram cruzeiros, e fiquei na rodoviária por duas semanas. Du-rante o dia eu saía e ficava andando. À noite, eu voltava e dormia sentada em uma cadeira”, conta. Até que, sem banho e sem comida, comendo um pão de sal por dia para economizar o dinheiro que tinha trazido, em uma das andanças pelo entorno, ela viu um ônibus: 266 Cidade de Deus. “Como eu tenho muita fé, eu olhei assim e pensei: ‘já que é Cidade de Deus, quem sabe lá eu tenho sorte’”

Entrou no ônibus catando as poucas moedas. A cobradora, que se chamava Arminda, lhe devolveu as moedinhas e perguntou de onde ela era. Terezinha contou a sua história e Armin-da se comoveu: “ela me disse ‘Terezinha, eu sou pobre, não tenho muito para te oferecer, mas eu tenho um teto e uma comida, você quer ir lá para casa?’ Eu não tinha mais o que pensar, melhor uma casa pobre do que a rodoviária. Ela saiu comigo e fomos procurar um serviço da forma como poderia ser encontrado: pelo jornal”.

“Lutar contra a terceirização não é lutar contra seu próprio emprego,

muito pelo contrário, é garantir ele”

Durante quinze dias Terezinha trabalhou em uma casa, como faxineira, na Voluntários da Pátria, em Botafogo. A expectativa pelo novo emprego acabou logo, no décimo quinto dia de trabalho: um dos homens que moravam lá entrou no quarto em que ela dormia e tentou violen-tá-la sexualmente. “Eu já tinha sido estuprada quando era criança. Dessa vez não aconteceu, mas só porque e saí gritando e desci os oito andares de escada e fui embora. Não sabia que podia chamar a polícia, peguei o ônibus, desci na Central e entrei no 383. Cheguei lá debaixo de tiroteio, um dos traficantes me empurrou para o lado e pediu para eu me proteger. Eu não entendia nada, não estava acostumada com essas coisas de tiroteio. Os tiros acabaram umas 19h e essa mesma pessoa me levou de volta para a Arminda, porque ela era muito conhecida por lá. Cheguei desesperada porque estava com minha roupa rasgada. Na época, a Arminda quis processar, mas eu disse para ela ‘o que que o pobre pode fazer contra os ricos?’, é melhor deixar quieto”, desabafa.

Passaram três meses em Realengo. Arminda, que Terezinha considera uma segunda mãe, dava água, comida e cigarros. Em troca, Terezinha cuidava da casa e olhava os quatro filhos pequenos da cobradora. Mas morar de favor nunca foi o objetivo: “Eu já estava meio desespe-rada porque, por mais que ela me tratasse bem, eu sabia que precisava arrumar dinheiro. Até porque eu tinha meus filhos lá em Minas. Foi essa a primeira vez que eu mandei uma carta para casa. Disse que eu não podia enviar nada ainda, porque não tinha encontrado um empre-go. Minha irmã me respondeu dizendo que a patroa dela lá de Viçosa tinha uma parente aqui, chamada Hilda, que precisava de empregada doméstica”. Terezinha voltou a trabalhar como empregada doméstica. Na Fonte da Saudade, no bairro da Gávea, permaneceu por mais cinco anos. Até que Hilda teve câncer. “Diante daquele sofrimento todo, que eu não estava acostu-mada, pedi minhas contas logo que ela faleceu e fui embora”, conta.

Da casa na Fonte da Saudade até o “barraco de tábua” na favela Nova Holanda, no com-plexo da Maré, Terezinha ia e voltava todo dia juntando o dinheiro para mandar para casa e

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para se manter no Rio. “Eu sempre tive um objetivo, eu vim pra cá vencer. Ou eu venço aqui, ou eu morro aqui, mas não volto da mesma forma que cheguei”, ela enfatiza. Continuou tra-balhando como diarista e passou dez anos “fazendo de tudo”, como diz: “eu queria trabalhar de segunda a sábado para juntar dinheiro e construir direito a minha casa”. Entre as casas de família no Rio, Terezinha também se apaixonou e foi casada durante seis anos. “Ele era uma boa pessoa, mas depois se envolveu com as drogas. Foi outro sofrimento para mim, fiquei sem nada, porque o que eu comprei, ele roubou de dentro de casa. Mas minha fé sempre foi maior do que minhas dificuldades, mesmo trabalhando na miséria. Eu não podia juntar nada, porque tinha que trabalhar pra repor o que ele tinha roubado.”

A fé, que moveu a determinação para permanecer na cidade grande, apesar de tudo, sem-pre esteve presente, principalmente nas pessoas que conheceu. Ainda assim, sentir fome tam-bém foi uma realidade: “Eu tive uma ferida no meu pé que remédio nenhum dava jeito. Nisso perdi meu emprego, fiquei uns seis meses cuidando desse pé. Foi uma época também difícil, porque eu não tinha dinheiro para me cuidar. Eu tenho lá na Nova Holanda uma vizinha, que também foi como mãe pra mim. Eu nunca tive coragem de dizer que eu estava com fome, mas ela sabia da minha situação e ela mandava um prato de comida pra mim. O nome dela é Rosete, mas eu chamo carinhosamente de Pita. Somos amigas até hoje.”

Terezinha ainda viaja de dois em dois meses para Minas, para ver a família. Apesar de tudo, nunca quis que os filhos viessem para a casa no Rio: “Não tenho coragem. Eu moro num

lugar que, por mais que você não queira ver, a violência está ali”. Ana Paula, que tinha apenas 3 anos quando Terezinha saiu de casa, há seis anos teve a Vitória, que é o xodó da avó. Wan-derson Roberto é o filho mais velho, que hoje já tem 34 anos.

Foi só depois de se curar que a história ini-ciada lá em Cataguases se misturou com a Uni-versidade do Brasil. Terezinha foi contratada pela primeira vez por uma empresa terceirizada chamada Monte Verde. “Não vou dizer que mi-nha vida é um paraíso, pra nenhum assalariado é, ainda mais terceirizado no Rio de Janeiro. Se eu pudesse dar um conselho para mim mesma lá no passado, eu diria para não vir. Para nós que viemos de fora fazer a vida aqui, a gente encontra muita gente querendo tirar vantagem, em todos os sentidos”, desabafa.

Para Terezinha, apesar de empregada pelo sistema, o modelo é comparável ao trabalho escravo. “Antes eu não tinha consciência. Eu achava que eu era livre, hoje eu vejo que estou acorrentada. Tiraram meus sonhos e meus di-reitos, mas não basta que eu tenha um prato de comida, os meus irmãos também precisam ter. Ninguém vai fiscalizar se a gente tem o que comer, mas tem supervisor para ver se estamos trabalhando bem”.

Desde que participou ativamente por mais direitos dos trabalhadores terceirizados, Tere-

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zinha não perdeu mais a vontade de lutar. Em maio, após participar ativamente da ocupação da reitoria, ela foi demitida pela antiga empresa. O caso mobilizou a comunidade acadêmica pela sua reintegração. Apesar da prática de assédio moral das empresas terceirizadas serem recorrentes e pouco punidas, Terezinha permaneceu na UFRJ e de lá para cá foram inúmeras palestras, debates e mesas de discussão.. “Lutar contra a terceirização não é lutar contra seu próprio emprego, muito pelo contrário, é garantir ele. Eu não sei o que a vida reserva para mim, hoje ela tá toda parada e voltada para ajudar as pessoas a lutarem por seus direitos. Eu sei que eu quero voltar aos estudos e fazer faculdade de Direito para continuar brigando por isso”, diz ela, renovando as expectativas.

Quando perguntada finalmente sobre a relação com o Rio de Janeiro, a moça de Cata-guases é justa, sem nunca perder a fé: “O Rio de Janeiro me tirou muito, mas também me deu muito. O pouco que tenho, o pouco que aprendi, foi nessa cidade. Eu, de certa forma, cresci e amadureci. Sofrer, eu sofro todos os dias, porque é difícil um pobre, principalmente uma terceirizada, sobreviver na universidade. Ou no Rio de Janeiro, especialmente por conta des-sa crise que o Estado está causando nas pessoas. A crise não é deles não, eles que causam na gente, até porque se a crise fosse deles, eles não estariam construindo essas obras gigantescas enquanto a gente sofre no hospital público. Mas o que eu fico mais feliz mesmo é de poder en-contrar pessoas que estão dispostas a ajudar e aqui eu encontrei muitas”, confessa.

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A Luta na Universidade

Terezinha da Costa é hoje uma das diretoras da Associação de Trabalhadores Terceirizados da UFRJ (Attufrj), movimento que surgiu depois de mais de três meses de atraso nos salários do setor da limpeza, no início de 2015. O fato adiou em duas semanas o início das aulas na universidade e foi uma das motivações para que o movimento estudantil ocupasse a reitoria, em maio do mesmo ano. As dificuldades, porém, já não eram novidades nessa época. A vida de Terezinha nunca foi fácil, nas-cida no interior de Minas Gerais, saiu de casa aos 19 anos em busca de uma melhor condição de vida. No Rio de Janeiro encontrou inúmeras dificuldades, teve que se adaptar a rotina na cidade grande e durante muitos anos passou por diversos trabalhos informais, tendo que contar com a ajuda de amigos para se manter na capital.

Depois de muito lutar para sua sobrevivência, Terezinha foi contratada pela primeira vez por uma empresa terceirizada chamada Monte Verde e até hoje já passou por mais de 4 empresas tercei-rizadas diferentes. Depois de lidar com diversos casos de assédio moral, Terezinha foi demitida da empresa que trabalhava e iniciou-se um movimento em sua defesa na comunidade acadêmica. Após muita persistência foi recontratada após um Termo de Ajuste de Conduta ser acionado pela UFRJ no Ministério Público do Trabalho e a firma ter o contrato cancelado na época. Devido a sequência de atrasos nos pagamentos dos terceirizados em 2014, Terezinha passou a se engajar mais, cobrando in-formações da empresa e até hoje persiste na luta pelos direitos dos trabalhadores.

A terceirização já é considerada uma das formas mais precárias de trabalho na contemporanei-dade. Juiz do Trabalho e ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Tra-balho (Anamatra), Grijalbo Fernandes Coutinho declarou uma vez que “a terceirização é uma forma selvagem de precarização”. Não só juristas pelo direito do trabalho, mas sociólogos respeitados, como Ruy Braga, apontam a flexibilização de direitos e a completa instabilidade do modelo. Muito atrelada como forma de repasse de verbas públicas à iniciativa privada, esse tipo de contratação emprega mais de 12,7 milhões de trabalhadores no Brasil. Desses, 73% recebem até 2 salários mínimos.

A servidora também não esconde a responsabilidade da universidade, para quem já dedicou bons anos de sua vida. “Quando a UFRJ contrata empresas assim, ela está contratando trabalho e não pessoas. Logo, ela age como se estivesse lidando com máquinas e não com gente”.

Após o governo Fernando Henrique Cardoso, cargos considerados de atividades meio, ou seja, que não estão vinculados ao produto final da universidade, foram extintos do concurso público. Isso impediu que os trabalhadores dos setores da limpeza, almoxarifado, portaria e segurança tivessem vinculo empregatício com a universidade, e colocou ainda mais trabalhadores em uma dinâmijca precária de trabalho. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu também a contratação fa-cultativa de professores nas universidades públicas via Organização Social, modelo muito semelhante à terceirização.

Terezinha hoje é uma das figuras mais consolidadas no movimento social dos trabalhadores ter-ceirizados na UFRJ, expondo as más condições de trabalho. Ela denunciou tentativas de assédio moral e atuou nas mobilizações contra os descontos na folha de pagamento e na luta pela regularização dos salários. Além disso, Terezinha organiza arrecadações de cestas básicas para os trabalhadores e par-ticipa de diversas mesas, debates e audiências na cidade.

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Um estrangeiro vendendo doces em uma faculdade do Brasil. O clichê nos força a pen-sar que o motivo que o trouxe até aqui foi o estudo, um intercâmbio talvez. Mas o inesperado nos mostra uma história curiosa e envolvente. Um jovem que, aos 20 anos, se apaixonou e se mudou para o país da namorada.

“Por causa do amor, pode falar assim” é uma das primeiras falas de Kasper Vorm, 23 anos, ao ser indagado sobre o motivo que o trouxe até aqui. O dinamarquês conheceu a bra-sileira Valéria Citelli, que fazia intercâmbio na Dinamarca. Os dois começaram a namorar e quando ela voltou, ele veio logo depois. Os planos eram ficar no Brasil durante seis meses, no máximo um ano. Mas Kasper, que chegou aqui em 2012, já completou seu terceiro ano no país e não sabe quando vai voltar.

POR AMORPor Carolina lopes

“Acho que agora eu quase perdi essa noção materialista. Porque é uma coisa que eu aprendi aqui no Brasil. o que im-porta é (sic) as pessoas, é muito engra-

çado ver pessoas que têm pouco e que são tão feliz (sic)”

Kasper chegou ao Brasil e foi para São Carlos, no interior de São Paulo, cidade de sua namorada. Moravam ele, a namorada e o cunhado, enquanto Valéria fazia vestibular. Quan-do chegou ao Brasil, o dinamarquês não sabia nenhuma palavra de português e, aos poucos, foi aprendendo com a convivência na pequena cidade do interior. Cinco meses depois, o ca-sal se mudou para o Rio e outra forma de falar foi apresentada ao estrangeiro.

“Eu fiquei cinco meses lá no interior do São Paulo, mudei para Niterói e agora comecei de novo a aprender. A forma de falar é diferente, pelo menos para um estrangeiro, é muito diferente. Era muito difícil aprender português, demorou muito”, disse Kasper, que ainda tem algumas dificuldades na língua. Chegou a fazer aulas em um curso de português para estrangeiros na Universidade Federal Fluminense (UFF), mas aprendia de um modo formal, o que não ajudava no dia-a-dia, então resolveu parar.

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Nos primeiros seis meses no Brasil, Kasper estava com visto temporário. Após esse período, ele e Valéria formalizaram a união estável, fazendo com que o visto permanente lhe fosse concedido. Como já trabalhava na Dinamarca, tinha um dinheiro para se manter por um tempo no Brasil, mas quando percebeu que esses recursos iriam acabar, começou a trabalhar em um hostel na Zona Sul do Rio. Porém, o salário era muito baixo e foi então que começou a fazer cupcakes para vender no Gragoatá, na UFF, a partir de uma ideia de sua namorada. Hoje, ainda vendendo cupcakes, Kasper também trabalha com marketing digital em uma pequena empresa de Santa Teresa.

mais felicidade, menos dinheiroBrasil e Dinamarca são países muito diferentes. Tamanho, clima, esportes, festas e

cultura. Muitas coisas chamaram a atenção do dinamarquês ao viver a cultura brasileira. A diferença cultural entre os dois países tem vários aspectos e um deles, que Kasper sinalizou, é a pressão que os jovens daqui sofrem para decidir seu futuro. Logo que saem da escola, os jovens já querem e/ou precisam entrar em uma faculdade. Desde muito cedo são cons-tantemente indagados: “e o que vai fazer de faculdade?”. Na Dinamarca, segundo Kasper, não há essa pressão. Os jovens começam a trabalhar mais cedo, portanto, têm a chance de viver diversas experiências antes de decidirem seu futuro. Kasper, por exemplo, trabalhava enquanto estava no colégio e até hoje, aos 23 anos, ainda não fez faculdade.

Isso acaba gerando certa independência em relação aos pais. Eles ganham seu próprio dinheiro, o que não é o suficiente para se manter, mas para satisfazer algumas necessidades. Devido a essa independência, não é algo fora do normal que pais aceitem bem a ideia de seus filhos viajarem em busca de diferentes experiências ou oportunidades em outros lugares. Quando Kasper decidiu vir ao Brasil, sua família o apoiou. Mas o dinamarquês já está aqui há três anos, o que ele conta, de modo descontraído, que já não é mais tão normal para seus pais. Apesar disso, eles respeitam a decisão do filho.

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Outra diferença cultural que ele apresentou como experiência própria de vida é a men-talidade em relação a bens materiais. Como desde muito jovem já ganhava dinheiro traba-lhando, Kasper pensava em gastar comprando coisas. O que ele percebeu aqui no Brasil é que a maioria das pessoas não liga tanto para isso.

“Lá eu estava mais focado em dinheiro, tem que ganhar muito dinheiro para comprar várias coisas, como uma televisão nova. Acho que agora eu quase perdi essa noção mate-rialista. Porque é uma coisa que eu aprendi aqui no Brasil. O que importa é (sic) as pessoas, é muito engraçado ver pessoas que têm pouco e que são tão feliz (sic).” – Kasper Vorm, 23 anos, dinamarquês

será que volta?Quando decidiu se mudar para o Brasil, Kasper deixou sua família e amigos na Dina-

marca e também o jeito como vivia, que mudou completamente. Para ele, uma experiência como essa o fez mudar de mentalidade, crescer como pessoa e entrar em conflito com cer-tos aspectos do seu próprio país. Ao tomar a decisão de mudar de país, ele perdeu muitos amigos, mas conta que os verdadeiros ficaram: “Eu perdi muitos amigos, mas felizmente os amigos que tenho ainda são meus melhores amigos. Então é muito bom para filtrar sabe, quem ‘é’ (sic) seus amigos de verdade”.

Depois de algum tempo morando aqui, ele voltou para visitar sua família e percebeu as diferenças e o conflito que enfrentava com seu próprio país. Lá, ele conta, as pessoas são mais distantes umas das outras. Acostumado com o hábito dos brasileiros, falava com pessoas que nem conhecia, tinha vontade de conhecer melhor o próximo. Porém, as pessoas estranhavam seu jeitinho brasileiro de ser mais aberto e extrovertido.

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O dinamarquês se encantou pelo Brasil e ainda não pretende voltar à terra natal, mas não planeja ficar aqui para sempre. “Olha, o ideal seria morar seis meses no Brasil e seis na Dinamarca, esse é o meu sonho”. Mas esse sonho, ele conta, é difícil de ser realizado, pois é complicado para um estrangeiro – principalmente de fora da Europa – conseguir visto per-manente para morar na Dinamarca, como é o caso de Valéria.

Kasper não pretende expandir seu negócio com os cupcakes, apesar de já ter evoluído bastante desde o início das vendas. A ideia não é tornar seu negócio muito maior, pois não tem mais a mentalidade de ganhar tanto dinheiro como antes e um dia pretende voltar para seu país de origem. Quando será esse dia e se ele chegará? O próprio Kasper não sabe.

Hoje, o objetivo dele é continuar trabalhando com os cupcakes e com marketing digital. Porém, mais importante que isso é o aprendizado que ele vem tirando dessa experiência e o que poderá passar de ensinamentos. “Acho que o objetivo aqui no Brasil é uma viagem de aprendizagem, porque quando eu volto na Dinamarca eu tenho essa noção que eu vou pre-cisar educar as pessoas, mostrar como que você também consegue viver e ficar mais feliz ainda. Eu preciso pelo menos mostrar e contar a minha história.”

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eduard

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“Um vento me trouxe para o Brasil.” Foi assim que, em seu português engessado, Edward definiu o seu processo de imigração. Sentado à mesa de uma loja de conveniência em um posto de gasolina, às margens da Rodovia Amaral Peixoto, em Araruama , onde tra-balha como frentista, ele contou parte de sua história com um sorriso descontraído e feliz por relatar sua experiência.

Haitiano, 45 anos , cheio de sonhos e com um visto de permanência concedido pelo governo brasileiro, Eduard busca ser adotado pelo Brasil. Almeja acolhimento, respeito e as mínimas condições de vida que o país caribenho não tem condições de oferecer aos seus filhos.

Ao contrário de muitos de seus conterrâneos, que aqui aportaram fugidos de guerras ou terremotos, da fome, ou da miséria extrema, Eduard chegou ao Brasil movido, segundo ele, por algo que já é cultural no Haiti: O sonho e o desejo de todo jovem de viver em outro país em busca de uma vida melhor. Depois de duas tentativas frustradas no México e nos Estados Unidos, veio parar no Brasil de forma curiosa. Em 2011, saiu de casa com um visto para o Equador, onde se encontraria com um amigo também haitiano. Chegando lá, o amigo estava de partida para o Brasil e chamou-o para vir junto. “Mas eu não ter visto pra Brasil, eu ter visto para Equador”, ponderou. Foi então informado pelo amigo que o Brasil teria aberto as portas aos haitianos.

Depois de três dias sacolejando em um ônibus velho desembarcava em Tabatinga, no Amazonas, cidade fronteiriça entre o Brasil, Colômbia e Peru. Só então, descobriu que aqui não se falava espanhol, como o restante da América do Sul. Viu logo que tinha trocado a segurança de sua casa e o aconchego de sua cama por um papelão no chão duro nas ruas estranhas de um lugar em que nem a língua conhecia. Dias depois foi acolhido por um padre que abria a casa paroquial aos imigrantes e passou a fazer pequenos serviços nas redondezas. Fugia, desgarrava-se dos haitianos, colegas de infortúnio, procurava juntar-se aos brasilei-ros, pois achava que era o único meio de se familiarizar com a língua.

Em pouco mais de um mês, tinha documentos brasileiros e estava empregado em uma empresa de transportes, onde conheceu Josué, cuja família o acolheu. Durante os dois anos que trabalhou na empresa, conheceu Minas Gerais, Paraná, São Paulo e passou alguns dias na casa de uma irmã de Josué, em Araruama, interior do Rio de Janeiro, cidade pela qual se

POR ACASO, BRASIL

Por Charles soares

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apaixonou. Em 2013, já casado com uma brasileira, Eduard deixou para trás a pouca segu-rança que conquistara no norte do país e veio para Araruama à procura de casa e trabalho.

Hoje, há cinco anos no Brasil, se diz realizado e faz juras de amor a essa terra. Diz ter sido muito bem acolhido aqui, se sente respeitado e desfia elogios aos brasileiros, à boa convivência e aos direitos sociais que o trabalhador aqui possui, coisa inimaginável em seu país. Empregado como frentista em um posto de combustível, ganhando um pouco menos de dois salários mínimos, afirma exultante: “Aqui eu consegue juntar dinheiro, na Haiti, é só pra comida, nem roupa eu poder comprar.” Eduard diz não ter a menor vontade de voltar para o Haiti, já se considera brasileiro. Sua narrativa é um capítulo importante que contribui com tantos outros invisíveis que ao longo da história vem compondo esse grande romance Brasil.

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O Brasil e os haitianos

Segundo a haitiana Jenny Télémaque , autora da monografia “Imigração haitiana na mídia brasileira: entre fatos e representações” , a primeira onda de haitianos que se mudou para o estrangeiro visava buscar temporariamente oportunidades educacionais e abrigar-se da coação econômica e a opressão política em seu país. Nesse período em que viveu sob o governo ditador de François e Jean-Claude Duvalier, - Papa Doc e Baby Doc - em 1957 a 1986, a deterioração socioeconômica, as políticas repressivas e a postura violenta de controle dos tontons macoutes (milícia defensora do governo) eram, portanto, as principais causas dessa migração. Nesse período, havia cerca de 2 milhões de haitianos vivendo em outros países e remetendo renda para o Haiti. Apesar disso, o Brasil não era um dos destinos alme-jados, principalmente por causa da língua e de poucas perspectivas econômicas.

Após a derrubada do governo ditatorial em 1986, por uma revolta popular armada, o Haiti passou a enfrentar graves problemas de políticas internas com enfrentamentos civis e resquícios da milícia do governo deposto. Em 2004, as forças armadas brasileiras passaram a compor a missão de paz da ONU, enviando cerca de 1,5 mil militares ao Haiti. Com o ter-remoto que assolou o país em 2010 e com o bom momento do cenário econômico brasileiro é que o Brasil passou a ser uma opção de destino para os haitianos. Depois que o governo brasileiro concedeu o visto humanitário, cerca de quatrocentos haitianos passaram a chegar por mês via Amazonas e foram se espalhando pelo sul e sudeste, em busca de trabalho. Hoje, segundo o Ministério da Justiça, são mais de 58 mil haitianos que vivem legalmente no país.

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noH e Hassan

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Da janela do avião, a vista para o Cristo Redentor: não há dúvidas que se está no Rio. Algumas cadeiras são, imediatamente, preenchidas pela euforia de turistas, outras pelo alí-vio de se estar em casa. Mas, no dia 15 de outubro de 2015, havia uma poltrona ocupada pela esperança. Hassan Sulaiman chegava ao Brasil fugido do Estado Islâmico, que dominou Damasco, capital da Síria e sua cidade natal. Desceu do avião em busca de um recomeço.

Mas, o princípio da vida de Hassan no Brasil não foi fácil. O sírio dormiu por quatro dias nas ruas da capital fluminense. Por ter visto na internet que o Rio de Janeiro tem proble-mas quanto à segurança, o medo o preencheu. Mas, ele conta que não sofreu nada. Inclusive, conseguiu ajuda e moradia.

O sírio conheceu um árabe oriundo da Argélia, país do norte da África, que o levou até a Cáritas, uma entidade de atuação social junto a minorias, como refugiados. A instituição apresentou Hassan ao Padre Alex, que o abrigou na Igreja São Batista, localizada em Bota-fogo, zona sul do Rio.

O homem de sorriso tímido e 40 anos viria a conhecer, mais tarde, outro sacerdote que o ajudaria. Hassan conheceu o Padre Geovane, que o autorizou a vender comidas árabes na porta da Igreja São João Batista, que fica em frente à estação de metrô do Largo do Macha-do. É com a venda de quibes e esfirras que o sírio tenta reconstruir sua vida no Brasil, ao mesmo tempo em que envia dinheiro para os filhos na Síria e paga aqueles que compraram sua passagem para o Rio.

“Outras pessoas deram para ele o dinheiro. Ajudando ele a conseguir fugir. A passagem é seis mil reais. Isso é muito caro para sírios”, conta Noh Khalil, o narrador de toda essa história.

O pouco tempo em terras brasileiras não foi suficiente para o homem de 40 anos apren-der português. Noh, porém, mora no Brasil há um ano e meio e frequenta aulas de português para estrangeiros na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os dois se conheceram na Igreja São Batista em uma visita de Noh a outros amigos sírios que moram lá. O jovem de 25 anos trabalha com Hassan alguns dias da semana na barraquinha de salgados árabes.

Noh viveu e cresceu em Tartus, cidade a mais de 200km da capital Damasco. Apesar do Estado Islâmico não ter entrado e dominado a cidade, o jovem sírio também saiu do país refugiado. A situação econômica em toda Síria está prejudicada devido à guerra. “Não tem

PASSAGEM PARA O BRASIL, SÍRIA NA

BAGAGEMPor Cecília Boechat e Tatiana de Carvalho

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o que comer, não tem luz, não tem trabalho. Não tem nada.”, disse.A insegurança não é um sentimento produzido apenas pela organização jihadista. Os

homens sírios também temem cruzar com soldados da força armada do país. “Na minha ci-dade, os homens não podem andar na rua, porque se uma força do exército encontra um ho-mem, [o] leva para a guerra. Tenho vários amigos que foram pegos e morreram em combate”, conta o jovem. A entrada compulsória para o exército e a falta de infraestrutura tornaram a situação de Noh no país insustentável.

O ex-estudante de Direito fugiu para Beirute, capital do Líbano, e de lá pegou um navio sem saber o seu destino. A embarcação não era para tráfego de pessoas, apenas transporta-va containers pelo mundo. Um primo de Noh conhecia o presidente do navio e, por isso, o jovem sírio conseguiu subir a bordo. Ele não pagou passagem e, às vezes, ajudava os tripu-lantes nas tarefas como forma de agradecimento.

Os 23 dias à deriva terminaram no porto da capital fluminense. Ele conta que ficou sa-tisfeito com o seu destino. “Quando eu cheguei no Rio de Janeiro eu já sabia o nome dessa cidade e eu fiquei muito feliz”, disse. Apesar de nunca ter pisado em terras brasileiras antes, Noh conhecia a cidade natal dos cariocas pela internet.

O jovem procurou por dois dias um hotel para dormir. Ao encontrar, entrou em contato com sua família na Síria. Seu irmão conseguiu o contato de um amigo que mora na cidade e que ajudou o ex-estudante a arrumar um quarto na Tijuca, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Passado um ano e meio, ele ainda mora no mesmo lugar. Outras coisas, porém, mudaram.

Noh agora consegue se comunicar em português. O jovem aprendeu a língua oficial do Brasil com a ajuda de outras pessoas e do curso na UFRJ. Hassan, porém, não tem tempo para estudar, já que precisa enviar dinheiro para a Síria. “Mas, eu e nossos amigos estamos ajudando ele. Ele tem livros [didáticos] e assistir televisão ajuda”, conta o jovem sírio.

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de braços não tão abertosA ajuda entre os refugiados não se limita à língua. Cheios de esperança, mas sem

dinheiro para sobreviver, a solução encontrada por eles estava no que deixaram para trás. Hassan, Noh e outros nove sírios alugaram uma casa para produzirem os salgados típicos da sua terra natal. Além da barraquinha deles no Largo do Machado, há outras duas em outros pontos da cidade: uma em Botafogo e outra na Glória, também na zona sul.

No dia 13 de janeiro, fiscais da Prefeitura do Rio recolheram a barraca e os produtos de dois sírios que trabalham em Botafogo. O motivo foi a falta de autorização para trabalhar como vendedor ambulante. O mesmo já havia acontecido com um terceiro amigo deles dias antes. No dia seguinte, os três sírios foram recebidos na própria prefeitura, que lhes conce-deu a documentação necessária. Uma cliente de Hansan mostrava a ele e a Noh a notícia, estampada no jornal O Globo.

O sírio de 40 anos também quer que a prefeitura lhe dê a autorização. “Ele tem medo da prefeitura pegar todo o material dele. Ele vai dormir na rua se fizerem isso com ele. Ele tem que dar dinheiro para seus filhos”, fala Noh sobre o amigo.

Não é a primeira vez que Hassan precisa se preocupar com a burocracia do Brasil. A embaixada brasileira no Líbano exigiu vários documentos para conceder o visto. As exigên-cias foram feitas mesmo ele sendo refugiado. A solução envolveu idas e vindas entre Beirute e Tartus durante quatro meses. Noh explica que o trajeto não é seguro. “Se é perigoso? É sim. Na rua é muito perigoso. Tem uma cidade do Líbano que tem Estado Islâmico”, conta.

O jovem também explica que a burocracia para sírios conseguirem documentação é maior devido à nacionalidade. “Por isso, eu não consegui vir de avião. Vim de navio”, expli-ca.

Mas, Hansan diz não ter o que reclamar do Brasil, só a agradecer. “Depois que conver-sou com brasileiros se sente outro. Ele sente que pode começar uma vida aqui mais fácil do que em outros países. Ele gosta dos brasileiros. Todos têm muito carinho por ele. Ele diz que aqui ninguém o machuca, todos apenas o ajudam”, disse Noh sobre o amigo.

A entrevista com os sírios foi interrompida algumas vezes - e não só por clientes que queriam esfirras ou quibes. Fiéis da Igreja São João Batista vinham até Hassan cumprimen-tá-lo. Ganhavam dois beijinhos no rosto com um sorriso sincero estampado na face morena.

O homem de meia idade reforçou ao longo de toda a conversa seu agradecimento ao Brasil. Hassan é grato ao Padre Alex pela hospedagem e ao Padre Geovane pelo cantinho dado para seu trabalho. O sírio também não esquece todos os brasileiros que passaram pelo caminho. “Ele não lembra de todos os nomes, mas quer agradecer o carinho”, contou Noh.

O jovem de 20 e poucos anos tem duas más lembranças do Brasil. “Fui assaltado duas vezes. Na segunda, além de levarem meu celular, eu fui agredido. Ele gritou ‘perdeu’ e eu não entendi. Perguntei ‘perdeu o que?’ e ele mostrou uma faca. Eram cinco caras para me

“A verdade é que lá [na Síria] é muito difícil. Todo mundo sonha

em conseguir sair de lá”

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bater, até que um apareceu com um pedaço de vidro para me atacar. Eu fiquei com muito medo”, conta.

Na fuga da Síria também houve um acontecimento desagradável, mas Noh diz que é irrelevante, assim como as coisas de que não gosta no Brasil. “Aconteceu uma coisa dentro do navio, mas eu estava feliz porque estava saindo de lá. A verdade é que lá [na Síria] é muito difícil. Todo mundo sonha em conseguir sair de lá”, diz.

O jovem gosta da receptividade dos brasileiros. “Isso é muito diferente de todos os lugares do mundo. Onde eu estive é comum ninguém falar com ninguém. Aqui são todos muito abertos. Aqui todos querem conversar comigo”, conta.

O objetivo do jovem sírio também é começar a vida de novo. Depois de terminar o cur-so de português para estrangeiros, Noh pretende fazer uma faculdade. Antes, porém, diz que precisa arranjar um emprego além da venda de salgados.

O aroma dos quibes e das esfirras que perfumava a esquina naquela manhã nublada atraía a atenção dos transeuntes, mas não era o suficiente para narrar a peregrinação desses dois homens que deixaram para trás toda a vida que conheciam em busca de um recomeço. Hassan, Noh, e muitos outros refugiados podem contar apenas com a solidariedade de um país estranho para sobreviver. Mas, apesar de todas as dificuldades e sofrimento, aqueles rostos apresentavam sorrisos serenos e olhos cheios da esperança de quem luta por uma vida melhor.

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As faces da guerra na Síria

A Síria, localizada na Ásia Ocidental, sofre com uma guerra civil que se instaurou no país em março de 2011, após a Primavera Árabe. A queda de ditadores da Tunísia e do Egito em decorrência da onda de manifestações inspirou os sírios a irem às ruas contra o atual go-verno, presidido por Bashar al Assad. O ditador segue no cargo desde 2000, após 30 anos de poder do próprio pai. A intensa repressão do governo aos protestos teve como resposta o uso de armas por grupos da oposição. O conflito vitimiza, principalmente, os civis, que sofrem com massacres, prisões e torturas, além da fome e da miséria.

A população passou a ser vítima, também, de uma organização contrária ao governo e à oposição. O Estado Islâmico (EI) aproveitou-se da guerra síria para conquistar territórios no país. O grupo foi criado em 2013 como um membro da organização terrorista al-Qaeda. No ano seguinte, os grupos se separaram. Hoje, o Estado Islâmico controla mais de cem cidades na Síria.

A guerra entre o governo, a oposição e o grupo terrorista destruiu cidades inteiras, como é o caso de Damasco, capital do país. A cidade é constantemente bombardeada. Esse, porém, não é o único problema ocasionado pelo conflito.

Segundo o assessor de direitos humanos da Anistia Internacional, Maurício Santoro, o cenário do país para quem permanece lá é muito delicado. “A situação é extremamente precária devido a guerra, a deterioração da economia, a disseminação de doenças e a fome. Cerca de 1 em 4 sírios tiveram que fugir de suas casas, alguns mudando de regiões dentro do país, outros buscando abrigo no exterior. O país como um todo foi afetado, mesmo aque-las áreas que não foram diretamente atingidas pelos combates ou pela ocupação de grupos rebeldes”, afirma.

Em 2011, no começo da revolta contra o governo de Assad, a população residente na Síria girava em torno dos 21,9 milhões. No ano passado, a taxa de habitantes fechou em 23 milhões. O crescimento, porém, poderia ter sido maior. Segundo dados do Centro Sírio para Pesquisa e Política, em cinco anos de guerra civil 400 mil sírios foram mortos durante o conflito armado e 70 mil não resistiram à falta d’água e de cuidados médicos.

De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU) publicados em janeiro de 2016, 13,5 milhões de sírios já foram forçados a sair de suas casas. Apesar da distância, o Brasil tem mostrado uma política acolhedora para com os refugiados. Desde o começo do conflito até setembro de 2015, dois mil sírios buscaram asilo no Brasil, número que supera os da Grécia, Espanha e Itália. Em 2013, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) decidiu facilitar a concessão de visto para refugiados sírios. Em 2015, a medida foi prorrogada por mais dois anos. O Brasil é o país da América Latina que mais acolheu refugiados sírios e, no continente americano, fica atrás apenas do Canadá.

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solomon

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A cidade do Rio de Janeiro sempre teve a maciça presença de estrangeiros. Desde os colo-nizadores, nas disputas entre portugueses e franceses, até se tornar um dos principais destinos turísticos do mundo. Mas nem todo “gringo” é turista por aqui. Alguns vieram para ficar, es-tudar, trabalhar e, consequentemente, se apaixonar. Como é o caso de Solomon Boakye, estu-dante de Gana, um pequeno país da África Ocidental, que o estrangeiro localiza com precisão:

“Eu nasci numa cidade que se chama Acra, capital de Gana, na região Kadjebi Asato, limitada a norte por Burquina Faso, a leste pelo Togo, a sul pelo Golfo de Guiné e a oeste pela Costa do Marfim”.

Por kalema Herve e luíza Calaça

‘A vIdA AqUI é MUITO CARA’

“Aqui o curso superior é gratuito. A gen-te não paga pelos estudos, em compara-ção ao que acontece no meu país onde a educação superior é paga e é muito

cara mesmo”O que atraiu Solomon até aqui não foi a natureza exuberante, nem o jeito “cool” do cario-

ca, que alçou a cidade ao primeiro lugar do ranking dos lugares mais legais do planeta, segun-do o site da CNN. Para ele, o Rio é a porta de entrada para a universidade.

“Aqui o curso superior é gratuito. A gente não paga pelos estudos, em comparação ao que acontece no meu país onde a educação superior é paga e é muito cara mesmo”.

Solomon se refere ao Programa Estudantes Convênio de Graduação (PEC-G), que oferece oportunidades de formação superior a cidadãos de países em desenvolvimento com os quais o Brasil mantém acordos educacionais e culturais. Em contrapartida, o Programa exige que o estudante retorne a seu país de origem para aplicar os conhecimentos na própria comunidade. No caso de Solomon, a carreira escolhida foi a Medicina, que ele cursa na Universidade Fede-ral do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Na chegada ao Brasil, se deparou com a inevitável barreira linguística. Para quem tem o inglês como língua materna - Gana foi colônia inglesa até 1957 - aprender o Português em seis meses, como o programa propõe, não é tão simples. “A língua portuguesa é uma língua bem difícil. Particularmente para pessoas que falam a língua inglesa, como no meu caso. Mas já estou me adaptando, mesmo ainda com algumas dificuldades”.

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Mas há outros desafios para se adaptar. Para ele, o custo para se manter no Brasil está fora da realidade do estrangeiro. “Em geral, a vida aqui é muito cara. Aluguel, transporte, comida”. E complexa. Como explicar para alguém de fora a burocracia envolvida em tarefas cotidianas, como alugar um apartamento? “Os documentos exigidos pelos donos da casa, a exigência do fiador, de depósito às vezes de três meses, é muito caro. Nenhum aluno estrangeiro tem con-dição de pagar”, lamentou.

Outros aspectos da cidade podem chocar o olhar estrangeiro. Para Solomon, o que salta aos olhos é a violência urbana. Seu ponto de vista é bem peculiar. Gana tem uma das taxas de criminalidade mais baixas do mundo. Em 2011, segundo o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC), a taxa de homicídios do país era de 1,7 para cada 100 mil habitan-tes. O Brasil, no mesmo ano, registrou 23,3.

“Mas agora eu já estou adaptando às situações aqui na cidade’’, resume, encerrando a questão.

Se em alguns momentos a adaptação é difícil, há motivos para continuar por aqui. O estu-dante lembra a receptividade do carioca, corroborando a perspectiva estrangeira sobre o povo da cidade. No ranking da CNN, que elegeu em 2011 os 12 lugares mais legais para se visitar, o país saiu na frente de turcos, japoneses, chineses, belgas, espanhóis e norte-americanos. Além do estereótipo – samba- futebol- carnaval –, o site lembra as pessoas bonitas que circulam pe-las areias de Copacabana. Solomon concorda: “Os cariocas são muito simpáticos e recebem os estrangeiros bem”.

Praia, aliás, é uma das paixões do ganês em terras cariocas. “As praias também são bem conservadas e isso atrai muitos turistas”, disse satisfeito, sem se incomodar com o calor escal-dante que faz por aqui. Ao contrário, ele acha a temperatura bem agradável, devido à proximi-dade com o clima de seu país “Eu venho de um país de temperatura tropical, então para mim a estação aqui tem a ver com a estação em Gana. Isso faz com que eu goste da cidade. Isso me faz bem. Sentir que eu ainda estou vivendo na minha cidade Natal”.

Quando o assunto é culinária local, imediatamente lembramos do pão de queijo de Minas Gerais, do churrasco do Rio Grande do Sul, do acarajé da Bahia. Mas e quanto ao Rio de Janei-ro? Muita gente acha que o estado não tem uma gastronomia típica, o que não é inteiramente verdade, segundo Solomon, amante da culinária local. “O que eu gosto mais aqui no Rio são as comidas, as culinárias. Eu gosto da comida brasileira. Feijoada, farofa e o arroz e feijão. O feijão preto, porque no meu país não tem feijão preto”.

Quando voltar a Gana, Solomon vai levar mais uma lembrança bem particular. Durante seu trabalho como voluntário da Copa do Mundo o ganês pode se aproximar ainda mais da cidade e do povo carioca “Acho que isso foi uma coisa boa para mim, para gostar do Rio de Janeiro. Porque o Rio de Janeiro me ofereceu essa oportunidade de trabalhar como voluntário. Isso me ajudou a conhecer muitas pessoas e eu fiz muitos contatos que, eu acredito, irão me ajudar no futuro”.

Deixar o seu país para ir atrás de um sonho não é fácil, ainda mais quando você fala uma diferente língua. O Estrangeiro-Carioca conta a experiência de sua viagem que encontrou quando chegou ao Brasil “A minha viagem foi mais tranquila, mesmo não tendo nenhuma noção como é o Brasil eu o escolhi para encarar esse desafio. Mas Graças a Deus foi bem tran-quilo para mim”.

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luIs marCelo

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O ano era 1998. Um número de telefone, um nome e uma sigla de sindicato haveriam de ser o suficiente para reencontrar aquela mulher especial com quem vivera um encontro me-morável após uma noite de samba no Candongueiro, em Niterói, quando lá foi pela primeira vez. Carmen. Carmen. Nome fácil de lembrar para um hispanófono. Sepe. Um sindicato chamado Sepe (Sêpe, o pensamento de sotaque argentino dele dizia, sem conseguir abrir o primeiro E) .

Foram inúmeras tentativas de falar direto com o telefone que ela lhe dera sem sucesso. Afinal, após nove longos meses, não haveria mais de ser o mesmo, já deveria ter mudado. Mas ele estava decidido e, bancando o investigador, encontrou um número do Sepe - Sindi-cato Estadual dos Profissionais da Educação. Telefonou e falou com a sede central, em cuja diretoria não havia nenhuma Carmen. O sindicato tem nove regionais na Capital e mais cerca de cinquenta núcleos pelos municípios do estado. Comovidos com a história, os funcionários foram puxando uma corrente de telefones pelas regionais e núcleos municipais até alguém lembrar que no Sepe São Gonçalo havia uma diretora chamada Carmen. Bingo. Lidando com um sindicato formado majoritariamente por mulheres educadoras progressistas, a sen-sibilidade político-afetiva encontrada facilitou a vida do “argentino apaixonado”, como o imaginaram as colegas sindicalistas de Carmen.

Mas a história de nosso portenho-carioca não começou aqui. Em verdade, resulta de uma interessante genealogia binacional, que vale a pena retomar.

No início do século passado, saindo da província de Corrientes, ao norte da Argentina, fronteira com o Brasil, a avó paterna chegou a São Paulo. Ali formou uma família da qual nasceu o pai dele, o qual, já adulto, rumou para a Argentina, onde se casou com uma porte-nha e deu início a uma nova família, cujo primeiro filho é o nosso personagem: Luis Marcelo Codazzi. Tempos difíceis e sócios não muito leais levaram o pai da família a buscar novos fronts de sobrevivência. E no início da década de 1970 surgiu para ele a oportunidade de um novo negócio, agora em território brasileiro, na cidade de Curitiba. Então, para lá se mudou a família, mas o rebento mais velho permaneceu em Buenos Aires, com tias que lá ficaram. E daqui precisamos fazer um novo corte para voltar um pouco à infância deste que seria uma espécie de gênio rebelde e incompreendido.

Contava a mãe de Luis Marcelo Codazzi que ele aprendera a ler sozinho aos cinco anos.

UMA INTELIGÊNCIABINACIONAL

Por alayr Pessôa Filha

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Entrando no que seria aqui um jardim de infância, mostraram a ele vários alimentos em uma tenda, frutas, legumes, hortaliças e ele as nomeou todas, diante do que a professora comen-tou: “Você conhece todos esses alimentos!”, e ele: “Não!Está escrito nas plaquinhas atrás!”. Daí, concluíram que ele já deveria estar na primeira série. Seguiu e, chegando à terceira, es-teve em classe multisseriada, onde também havia aula para a quarta série. Inteligente acima da média, prestou atenção às lições dadas do outro lado da sala e ao final do ano conseguiu aprovação em exame final de 4ª série, galgando mais um degrau rumo a outro patamar de escolaridade. Claro que isso lhe custou algum sacrifício, posto que assim estava sempre fora do eixo idade-série, estudando com alunos mais velhos e brincando com mais novos de sé-ries anteriores. Isso não é tanto um privilégio como se costuma pensar, pode ter consequên-cias quanto à adequação do sujeito, seu estar no mundo, seu pertencimento, particularmente quando se é jovem.

Assim, ainda muito jovem, Luis Marcelo já havia conseguido ingressar na ambicionada Escola Técnica Henry Ford que, segundo ele, deu-lhe base muito mais sólida para enfrentar o ciclo básico de Engenharia em Buenos Aires e depois no Brasil. Menino novo e franzino, levava desvantagem em relação aos colegas nas aulas que requeriam trabalho braçal, o que segundo conta, lhe gerou um trauma que até hoje o faz resistir aos trabalhos caseiros com ferramentas, que via de regra se pedem aos homens.

Findo seu período escolar médio, ingressou por prova na Universidade de Buenos Aires para cursar Engenharia. Porém, como gênio rebelde que se tornou, andou “dando cabeçadas” e preocupação às tias com quem morava. Alertados os pais no Brasil, sua mãe foi buscá-lo em 1979. Contudo, voltou sem ele, que, só depois de resolver pendências legais em uma delegacia de Buenos Aires, veio para o Brasil. Mas ainda era considerado um rapaz “proble-mático”, não por vinculações políticas, mas pelos efeitos nefastos do clima sombrio que cir-cundava uma juventude sem perspectivas numa Argentina em crise, onde o regime ditador enfrentara muito mais resistência e impusera milhares de mortes. Por terra e acompanhado de seus amigos de aventuras, na chegada do trem à estação, não conseguiram entrar no Bra-sil sem que alguém se responsabilizasse por eles. Buscados pela mãe de Luis, entraram ele e seus amigos, mas não para pousar em Curitiba e viver tranquilamente com a família. Com os amigos, Luis circulou, rodou até se separarem e também, em razão de mais uma crise nos negócios do pai, a família se mudar para o Rio.

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Estabelecidos no Rio, Luis Marcelo trabalhou e ingressou na UFRJ, seguindo a moda-lidade de Ciências da Computação, que, sendo uma novidade à época, ainda era um curso atrelado ao título de Matemático. Luis chegou a se afastar do curso e, nesse tempo, casou-se e teve filhos. Não por isso deixou de terminar a faculdade. Ao contrário, retornou e se for-mou para arranjar emprego. Participou de várias iniciativas pioneiras na área de informática, mas precisava de algo mais sólido. Em 1988, quando ainda não havia sido promulgada a Constituição Cidadã, logrou ser selecionado para trabalhar no Banco do Estado de Alagoas e para lá foi com a sua própria família. Ficou até que o banco enfrentou a crise causada pe-las artimanhas do então governador Fernando Collor, que emprestava aos amigos também usineiros e ao mesmo tempo criava legislação que os desobrigava de pagar impostos, com validade retroativa. Assim, o estado ficava devedor dos usineiros e estes, por seu turno não pagavam os empréstimos tomados ao banco. Quebraram o banco e o estado. Como bancário desempregado e sindicalizado, Luis permaneceu lutando com o sindicato pelo recebimento das verbas trabalhistas.

Mas a essa altura, ele já estava separado da primeira esposa com quem tivera quatro filhos. Após a separação, ex-esposa e filhos voltaram para o Rio, enquanto ele permaneceu em Alagoas, já casado com sua segunda esposa, com quem veio a ter mais dois filhos. Ficou difícil se manter em Alagoas, precisando sustentar a ex-esposa e os quatro filhos no Rio, enquanto o segundo casamento também já começava e entrar em crise. Luis procurou então novas oportunidades, enquanto fazia trabalhos como free lancer, até que foi contratado pela Datavix, vinculada à Engevix – sim, aquela mesma da Lava- Jato com o que nosso persona-gem nada tem a ver, era só um empregado! Lá ficou algum tempo até ser demitido e voltar ao free lancer até que conseguiu uma oportunidade no Pactual – mais um envolvido nas inves-tigações em pauta hoje no país. Mas aqui, trabalhou só com a parte de seguro e previdência, pelo que os jovens banqueiros, novos “majoritários” do Banco Pactual, não tinham muito in-teresse, e por isso venderam para uma empresa canadense. Sendo Luis também muito fluente em inglês, sua presença era fundamental para dar seguimento ao negócio. Ali ele ficou até 1999, quando a sede do Canadá trocou toda a equipe, inclusive o chefe canadense com quem ele já tinha desenvolvido uma relação mais próxima.

Mas nesse tempo, Luis já tinha conhecido Carmen, a professora sindicalista de São Gonçalo, a quem, via sindicato, reencontrou. Ao cabo de um ano, já tinham uma relação consolidada. A marca registrada dessa relação é, sem dúvida o amor pelo samba, pelo som brasileiro, o chorinho, bossa nova... Com um novo cunhado, Luis seguiu estudos de violão. A música, a que se dedicava quando mais jovem, voltou a fazer parte de sua vida, ainda que só como lazer nas rodas de samba. Também a percussão é objeto de sua atenção curiosa e estudiosa. No entanto, a vida e suas necessidades mais prementes nem sempre permitiram que Luis se tornasse um virtuose em algum instrumento.

Mais focado com o tempo, resolveu levar adiante uma segunda tentativa de naturaliza-ção, já que a primeira, tempos antes, fracassara. Agora estava decidido a ir até o fim. Feito isso, ou enquanto era feito, Luis, dedicou-se à preparação para concorrer a uma vaga no serviço público. E uma vez oficialmente brasileiro, tornou-se Fiscal concursado da Susep – Superintendência de Seguros Privados. Assim, se despediu da Seguradora do Pactual para ser fiscal das seguradoras.

Porém, sua permanência na Susepe não durou muito, porque dois anos depois, Luis já

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estava aprovado em outro concurso, para o BNDES. No novo local de trabalho, reencontrou a música, entrando para o coral do banco, com o qual se apresenta dentro e fora do Brasil.

Tanto esforço por uma colocação melhor tinha também uma motivação especial: desde 1996, o filho mais velho de Luis lutava contra um câncer que, por fim, levou-o no ano 2000. Nosso “brasileño”, como faria qualquer pai, endividou-se buscando de todos os modos a cura para o filho, que afinal não veio.

Levou tempo para alcançar alguma estabilização financeira, após toda a luta pela vida do filho. Também enfrentou o momento da doença grave que acometera o pai, o qual passou por delicado tratamento, teve sequelas, mas sobreviveu. Alguma tranquilidade só veio quan-do, finalmente, os créditos trabalhistas devidos pelo Banco de Alagoas foram pagos após longo processo na Justiça do Trabalho. A estabilização emocional e afetiva também foi se consolidando na fixação de residência no Rio de Janeiro e ao lado da companheira Carmen. Com ela, Luis atravessou bons e maus momentos de mãos dadas, fez trabalhos de compu-tação, divertiu-se, chorou, sambou, desfilou em blocos, brincou vários carnavais. E assim, enquanto ela conquistava sua residência própria em São Gonçalo, ele conquistava seu lugar ao sol no Rio de Janeiro. Sempre ajudando-se mutuamente.

Desse modo, “o Rio tem um significado de equilíbrio, de harmonia”, diz Luis, esse her-mano que adotou o Brasil e por ele foi adotado como filho natural e legítimo.

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Entre dois golpes

A Argentina na década de 1970 vivia a crise política que desembocou no último dos seis golpes de estado de sua história e levou ao poder uma junta militar, em 24 de março de 1976. O ato deu início ao chamado Processo de Reorganização Nacional, ou simplesmente “O Pro-cesso”, curiosamente, mesmo título da obra de Franz Kafka.

Foi o período da instauração de regimes autoritários por toda a América Latina, com golpes financiados pelos EUA, em meio à Guerra Fria, e ao temor de que a revolução cubana “contaminasse” todo o continente.

Maria Estela Martínez de Perón, popularmente conhecida como Isabelita Perón, estava à frente da presidência da Argentina, e o país passava por uma grave crise econômica. Além da alta da inflação, houve desaceleração das atividades produtivas, devido ao aumento do preço do petróleo, provocado pela guerra iniciada por Israel contra Síria e Egito. A crise forneceu combustível para o golpe, que levaria o país a viver naquela década “praticamente uma guerra civil”, como relata Luis Marcelo.

Com o golpe, as três forças armadas atuaram juntas, dividindo o país em três partes e formaram uma junta de comandantes que decidiria quem seria o presidente do país. Também impuseram o Estatuto, uma espécie de constituição que lhes dava plenos e irrestritos poderes. Dissolveram, ainda, o Congresso, substituindo-o por uma Comissão Argentina de Assessora-mento, formada por nove oficiais, com poderes para criar novas normas.

Assim, extinguiu-se a separação de Poderes, podendo o Executivo também legislar. Ju-ízes foram removidos e os que permaneceram tiveram que jurar sua lealdade ao regime, ou melhor: ao Estatuto erigido pela Junta e pelo Processo. Este nada mais foi do que a oficializa-ção do terrorismo de Estado, com violações cotidianas de direitos humanos, tortura, morte e desaparecimento de pessoas e sequestro sistemático de crianças e bebês nascidos das vítimas do regime.

No Brasil, os militares também haviam realizado um golpe que derrubou o Presidente João Goulart, o Jango, em 1964, e instituído o Ato Institucional n. 5 em 1968, recrudescendo ainda mais o regime autoritário.

Pouco antes do fim do regime na Argentina, Domingo Felipe Cavallo assumiu a pasta da Economia, que até então era ocupada por José Martínez de Hoz, e promoveu, em 1982, a es-tatização da dívida externa privada. A medida beneficiou mais de 70 empresas, corporações e grupos econômicos, em detrimento dos interesses nacionais e dos trabalhadores.

Tal medida já vislumbrava o fim do regime militar. Em 1983, a Argentina extinguiu o Pro-cesso, elegendo, diretamente, seu primeiro Presidente após o golpe, Raúl Alfonsín. No Brasil, também aumentava a pressão nesse sentido, e se iniciava o debate pelas eleições diretas, após o estabelecimento da anistia.

A Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, criada em 1983 para apurar e investigar os sequestros e desparecimentos de militantes e suspeitos da ditadura argentina, elaborou o documento “Informe Nunca Mais”, publicado em 1984. A Comissão identifica o desaparecimento de 30 mil pessoas no período. A prática de não deixar rastros de suas vítimas,

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no entanto, leva a concluir que os 30 mil desaparecidos foram mortos pelas forças do regime ditatorial.

Esse número, aliado à diferença de extensão territorial e populacional entre Argentina e Brasil, dá conta da brutalidade e absurda força letal da ditadura naquele país. Isso, contudo, não diminui a gravidade das consequências do regime de exceção empresarial-militar brasileiro.

O relatório da Comissão da Verdade, instituída em 2011 para apurar os crimes da Dita-dura no Brasil, reconhece 434 casos de mortes e desaparecimentos. Cumpre lembrar, todavia, que a ditatura continuou matando, mesmo após o fim oficial do regime. Como no caso de Car-los Alexandre Azevedo, filho do cientista político e jornalista Dermi Azevedo. Torturado com apenas um ano e oito meses de idade pela polícia do Deops paulista, que já havia prendido seu pai, Alexandre nunca superou as marcas da crueldade. Desenvolveu fobia social e acabou se suicidando, em fevereiro de 2013, aos 40 anos.

Enquanto aqui viveu, Luis Marcelo acompanhou a redemocratização e testemunhou a transição “pacífica” para a democracia no Brasil, a promulgação da chamada Constituição Cidadã em 05/10/1988, mesmo dia do plebiscito que no Chile disse não à continuidade da di-tadura de Pinochet. Também testemunhou a primeira eleição direta para presidente no Brasil, que levou à presidência, em 1989, o mesmo homem que faliu o estado e o banco de Alagoas, lesando seus direitos trabalhistas: Fernando Collor de Melo, apresentado ao país em outra pele pela mídia, como o “caçador de marajás”, aquele que teria moralizado o serviço público no estado que governou. Luis testemunhou igualmente a queda desse presidente fabricado pela mídia, que sofreu processo de impeachment, mas não chegou a ser deposto, porque renunciou antes, em 1992.

Do mesmo modo, após a ascensão dos movimentos sociais na América Latina, os dois pa-íses entraram no período neoliberal, das privatizações, com Fernando Henrique Cardoso aqui, e Carlos Menen lá. Em seguida, outro período, em que chegam ao poder candidatos ligados aos movimentos sociais, como Lula no Brasil, ou à tradição peronista, como Ernesto Kirchner, na Argentina, a continuidade destes na figura de duas mulheres, Dilma Roussef e Cristina Kis-chner, respectivamente, e a perspectiva de um novo ciclo de derrocada de governos de perfil mais popular na América Latina. Daniel Scioli, candidato de Kirchner, foi derrotado nas urnas por Mauricio Macri na Argentina. No Brasil, a crise de governabilidade e das instituições do Estado brasileiro coloca o governo do Partido dos Trabalhadores na corda bamba.

E Luis Marcelo, hoje um brasileiro, mas ainda torcedor do Boca Juniors, amigo dos livros, do conhecimento e da música, desafeto da alienação, segue a vida com a exata noção da impor-tância de cada período que não só testemunhou como viveu intensamente.

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