Entrevista com Anthony Seeger

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    Por que canta Anthony Seeger?

    Clarice Cohn (Departamento de Cincias Sociais/UFSCar),Jos Glebson Vieira (Departamento de Cincias Sociais/UERN),

    Leandro Mahalem de Lima (mestre/PPGAS-USP),Renato Sztutman (Departamento de Antropologia/USP) eRose Satiko Gitirana Hikiji (Departamento de Antropologia/USP)

    Atualmente professor de etnomusicologia na University of California(UCLA, Los Angeles), o nova-iorquino Anthony Seeger (63 anos) dispede uma vasta e notvel biografia, integralmente permeada por duas pai-xes: a antropologia social e a msica. Oriundo de uma famlia repletade msicos e compositores bem-sucedidos, Seeger, tocador de banjo,decidiu-se por estender a outra direo a paixo que herdou dos paren-tes. Optou pelas Cincias Sociais e, desde sua graduao em Harvardem 1967, vem realizando sua vocao com maestria. A etnologia ame-rndia a sua principal forma de arte.

    Sua experincia como etnlogo est intimamente relacionada a seutrabalho de campo entre um grupo conhecido na literatura como Suy,que hoje prefere ser chamado Ki~sdj, povo de lngua j, do Brasil Cen-tral (Parque Indgena do Xingu), realizado no incio da dcada de 1970,durante sua pesquisa de doutorado (University of Chicago, concludo

    em 1974). Entre 1975 e 1982, Seeger foi pesquisador e professor noPrograma de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacio-nal (PPGAS-MN-UFRJ, Rio de Janeiro). preciso ressaltar tambmque o etnomusiclogo possui destacada atuao como diretor de arqui-vos audiovisuais. Entre 1982 e 1988 comeou a exercer tal atividade

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    como diretor do Archives of Traditional Music da Indiana University.E posteriormente, entre 1988 e 2000, dedicou-se integralmente arqui-vologia como diretor e curador do selo Folkways do Smithsonian Ins-titution, no qual produziu 250 discos e idealizou a recente pgina virtualde etnomusicologia Smithsonian Global Sound. Atualmente, ele dire-tor do Ethnomusicology Archive na UCLA.

    Seeger autor de vrios trabalhos sobre etnologia do Brasil Central,msica amerndia, etnomusicologia e direitos de propriedade intelec-tual. Dentre suas obras, destacam-se: Os ndios e ns: estudos sobre socie-dades tribais brasileiras(Campus, 1980); Nature and Society in CentralBrazil: The Suy Indians of Mato Grosso(Harvard University Press, 1981);Why Suy Sing: A Musical Anthropology of an Amazonian People(Cam-bridge University Press, 1987). Alm disso, Seeger editor de diversascoletneas sobre arquivos, tais como a recente Archives for the Future:Global Perspectives on Audiovisual Archives in the 21st Century (SeagullPress, 2004), produzida em parceria com Shubha Chaudhuri. O curr-culo de Anthony Seeger pode ser acessado em http://www.ethnomusic.ucla.edu/people/seegercv.htm. Uma traduo de Why Suy Sing, rea-lizada por Guilherme Werlang, deve ser publicada em breve pela edito-ra CosacNaify.

    Em fins de novembro de 2007, Seeger esteve em So Paulo a convitedo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo (IEB-USP) para participar do seminrioMemria das Culturas, no qual apre-sentou, com humor e seriedade, a proposta de seu Smithsonian GlobalSound. Aproveitamo-nos da ocasio. Seeger coordialmente concedeu esta

    entrevista, em portugus fluente, a Clarice Cohn, Jos Glebson Vieira,Leandro Mahalem de Lima, Renato Sztutman e Rose Satiko Hikiji.

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    Ns queremos comear ouvindo um pouco sobre sua experincia aqui noBrasil. Como foi sua chegada, sua trajetria, enfim, como foi sua histriaaqui no Brasil?

    Cheguei ao Brasil por causa de Lvi-Strauss, de um lado, e por causade Max Weber, de outro. Meu interesse era estudar relaes entre orga-nizao social e cosmologia e tambm a msica (arte). Eu estava estu-dando Antropologia em Chicago e poderia escolher qualquer parte domundo. Na poca eu no era um brasilianista e no sou ainda. E, comesse projeto, eu queria conhecer tambm as perspectivas de um grupono capitalista. Eu achava que j havia muitos estudos sobre arte no ca-pitalismo e muito poucos estudos sobre arte em sociedades no capita-listas. E para isso, evidentemente, precisava estudar um grupo isoladodo sistema capitalista, porque mudava a organizao social e cosmolgi-ca. Pensei na Nova Guin, Austrlia, Brasil e Peru... Procurei StephenHugh-Jones e ele me disse que o Xingu era mais vivel para meus inte-resses de que o Alto Rio Negro. Tambm Terence Turner tinha conheci-do um Ki~sdj que havia passado pelas aldeias Gorotire (Kayap) e su-geriu que eu poderia ir para l. S Amadeu Lanna (da USP) que tinhapassado por l. Havia muito pouca coisa escrita sobre os Ki~sdj. Almdisso, minha esposa havia realizado seu PhD. em estudos de lnguas la-tinas, especificamente o espanhol e o portugus. Ento, o Brasil foi umaescolha bvia, no porque eu gostava de samba e chope, nem porqueestava dedicado a um grupo especfico, mas por causa de um projeto depesquisa. Quero salientar que minha mulher, Judith Seeger, me acom-panhou o tempo todo no Brasil. Ela somente no est conosco hoje

    porque est lecionando nos Estados Unidos. Embora fale eu nestaentrevista, muito no teria acontecido sem a sua presena e senso dehumor. Se no acreditam em mim, perguntem a Roberto DaMatta ouaos Ki~sdj.

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    O senhor foi aluno de Terence Turner?Fui aluno de Terence Turner e de Victor Turner. Fui para Cornell,

    originalmente, para estudar com os dois Victor por causa de sua an-lise do ritual, Terence por causa de seu intersse em sociedades J. Noano seguinte, os dois foram para Chigaco e eu os segui. Eu achava queos trabalhos de Victor sobre os smbolos e os sentidos da ao ritual erammuito importantes. Terence era muito jovem na poca. Acredito quefui seu primeiro aluno na ps-graduao, mas foi timo professor.

    Mas o senhor j conhecia suas preocupaes e os estudos j?Sim, durante minha graduao, em Harvard, havia sido aluno de

    David Maybury-Lewis e li muito Lvi-Strauss com o Pierre Maranda.Eu e Roberto nos encontramos nos seminrios de Victor Turner, queeram seminrios abertos a todos. Acho que Victor modulou seu semi-nrio seguindo seu professor, Max Gluckman, com base na proposta deMalinowski, professor de Gluckman. Era uma linhagem, uma maneirade abordar um assunto. Semanalmente nos encontrvamos na casa doVictor, a partir das oito horas at por volta de dez ou at meia-noite.

    A conversa comeava com o trabalho de algum. s vezes, Victor lia ocaptulo que estava escrevendo e depois parvamos para tomar cerveja.Se havia motivao, continuvamos com debates e entrvamos noiteadentro. Era um seminrio realmente deslumbrante. Era uma espciede ritual de um grupo de etnografia. Havia alunos de ps-graduao eprofessores no somente de etnologia, mas tambm de estudos religiosos,professores visitantes e de diversos outros departamentos. Era magnfico.

    Como foi a recepo de Victor Turner ao material trazido do Brasilpor voc?

    Quando voltei do campo, em 1973, eu tive a sorte de receber umabolsa para elaborar minha tese. Era muito difcil obter, s duas pessoas

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    conseguiram. Quando cheguei dos Ki~sdj, Terence estava entre o cam-po e a Califrnia. Fiz o rascunho dos assuntos que iria cobrir nos pri-meiros seis meses e comecei a escrever meu trabalho. Escrevi, escrevi,escrevi quatro pginas por dia, durante trs meses sem mostrar aningum, porque estava sem orientador para me cobrar. De repente,estava com quatrocentas pginas escritas. Primeiro contatei Terence, quevoou da Califrnia para Chicago e ficou deitado no cho de meu apar-tamento lendo a tese durante uma noite toda. Ao final disse tudo bem,saiu e pegou outro avio e nada mais. Quando Victor leu, ele disse: semproblemas, mas acho que a descrio est muito regular. Ser que real-mente as coisas so assim, to previsveis? Porque, entre os Ndembu,eles dizem uma coisa, mas fazem outras; havia diferenas de opinio so-bre coisas. Meus estudos me levaram a outras concluses.... E eu res-pondi que achava que sim, que de fato eram.

    E at hoje o senhor acha que so?Mais ou menos. No estou dizendo que o que eles faziam era exata-mente o que eles diziam, mas sim que o que eles diziam era bastantecoerente e no tinham muitas diferenas de interpretao. Na poca ogrupo tinha aproximadamente setenta pessoas, e eles conversavam bas-tante entre si sobre o que eu estava investigando. Ento, eu acho que eraperfeitamente possvel que eles entrassem em acordo. Era um grupo pe-queno, e consistncia em um grupo pequeno algo que se pode esperar.

    Fale-nos um pouco sobre a influncia de Lvi-Strauss em seu trabalho.

    Na poca, Lvi-Strauss era muito lido. O ibope dele era muito altotanto em Harvard quanto em Chicago, como em toda a Antropologia.Mas a parte da obra que me trouxe para o Brasil foi Tristes trpicos, osestudos sobre organizao social j e asMythologiques. Quando eu esta-va escrevendo minha tese, eu descobri o quanto ele tinha percebido por

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    meio dos mitos aquilo que eu estava descobrindo entre os Ki~sdj. Aimportncia dos sentidos... a lgica das qualidades sensveis... essas coisasque ele bolou a partir daquilo que ele estava vendo por meio dos mitos.

    Logo no incio o senhor havia mencionado que seu interesse primordialj era a msica e tambm todas as discusses de Lvi-Strauss sobre o dualismo.E ns tnhamos uma pergunta exatamente sobre esse desenvolvimento domodelo j, aqui no Brasil, para o qual o senhor ofereceu uma contribuiomuito importante.

    Antes de mim havia o Harvard Central Brasil Project. DavidMaybury-Lewis certamente foi importante na formao de alunos degraduao. Havia uma grande distncia entre professores e alunos degraduao (como eu era) em Harvard. Os trabalhos dos antroplogosbrasileiros tinham muita influncia no trabalho do Harvard CentralBrazil Project, mas s aprendi a ler portugus na ps-graduao. Foi umprojeto muito interessante e tive sorte de poder participar de numa cer-ta maneira.

    Poderamos dizer que o senhor parte da segunda gerao?Poderamos dizer, afinal de contas sou filho de filho; sou neto inte-

    lectual de Maybury-Lewis. S que Terence Turner (para continuar ametfora familiar) estava querendo at um certo ponto matar o paipor meio das fortes crticas a Maybury-Lewis. A idia do grupo J eracriar um espao de compatibilidade, mas isso nunca aconteceu da ma-neira esperada.

    E o senhor, em relao a Terence Turner, tambm queria mat-lo en-quanto pai intelectual?

    No, eu no sou dessas coisas. Eu fiquei muito mais contente emno matar o pai, no precisava trabalhamos sobre assuntos diferentes.

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    Aprendemos cantos um do outro em festas agradveis na casa de Victorou Terence (perguntem um dia sobre o repertrio de cantos de Rugbyque Terence possui).

    Mas, de fato, suas contribuies para esse debate rebatem exatamente nascoisas que estavam sendo feitas pelo grupo de Harvard e do Museu Nacio-nal, no?

    Sim, eu estava colocando meu trabalho dentro de um contexto queeu achava muito interessante que era o Projeto J. Eu li tudo antes e fizmeu projeto de tese em relao a isso, porque os Ki~sdj no tinhamsido estudados pelo Projeto J. Eu achava interessante estudar uma reaem que havia pessoas estudando outros grupos da lngua da famlia lin-gustica j, que eram jovens e vivos ainda. Eu poderia indagar para elesaquilo que eles no escreveram. Todos eles tinham gravaes e idiassobre msica, mas no escreveram sobre isso porque no achavam im-portante ou porque no se achavam preparados para a anlise damsica. Ento, em parte, era uma situao que eu considero ideal.

    Como voc chegou ao campo em 1971?Foi algo muito desastroso e difcil para um estrangeiro, para uma

    pessoa que no tinha parentes no pas, com quem pudesse morar e queestava acompanhado de sua mulher. Chegamos ao Brasil em setembro1970 (uma poca difcil no Brasil). Fiz estgio no Museu Nacional comRoberto DaMatta, e enviei todos os papis para entrar no campo. Apstrs meses de espera, acabou nosso dinheiro e fomos despejados. Estva-

    mos alugando um quarto de uma pessoa que, de fato, no tinha direitoa ter outras pessoas no apartamento. Era uma coisa desmedida. Fomosdespejados porque o dono do apartamento queria receber mais dinhei-ro durante o carnaval. Felizmente, tnhamos uma carta de apresentaoa uma famlia aqui em So Paulo um amigo de um amigo do pai de

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    minha mulher. Ento, lhe apresentamos a carta, fomos convidados paraum almoo de domingo e ficamos por quatro meses na casa. Sem essagentileza de estranhos, eu acho que os Ki~sdj no teriam sido estuda-dos por mim. Em So Paulo, morando aqui com eles, eu comecei estu-dando no Museu Paulista, e passei a pensar que poderia estudar um ou-tro grupo J que no estivesse vivendo um problema de terras no Xingu.Ento, eu pensei em fazer trabalhos com os Kaingang, aqui, enquantoestava esperando. Eu me encontrei com pessoas e grupos de antroplo-gos da USP que eram extremamente gentis. Gosto muito de So Paulo,tenho muitos amigos aqui. Em parte pela temporada forada que tivede passar aqui, meu portugus melhorou bastante.

    Afinal, uma noite estivemos em uma festa de antroplogos da USPna casa de Eunice [Durham]. Ns levamos nosso banjo e cantamosmsicasfolkde libertao em plena ditadura. Ruth Cardoso estava l eposteriormente Fernando Henrique Cardoso chegou. Ele estava cassa-do na poca e, ento, algum lhe disse: Escuta, coitados desses ameri-canos. Esto aqui h seis meses esperando a Funai e nada acontece. Serque voc no conhece ningum que possa ajudar?. Ele disse: Bom, eutenho um professor que diretor do Museu do Folclore no Rio de Ja-neiro, talvez ele possa ajudar.... Escreveu uma carta, telefonou para seuamigo e ns fomos para o Rio e o visitamos. Ento, o professor nosdisse: Ah sim, o ministro do Interior foi meu aluno na faculdade. En-to, ele escreveu uma carta para o ministro, para solicitar a liberao doprocesso para o presidente da Funai. Ento, a autorizao saiu em duassemanas. O que me revelou muito sobre como, de fato, as coisas funcio-

    nam. Tambm, alm disso, nesse momento, a estrada BR-080 tinha sidoinaugurada e as terras do Parque desapropriadas.

    Esta, ento, foi mais uma situao na qual seu banjo foi um bilhete deentrada...

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    quando acabou, eles disseram: agora voc canta para a gente. Ento,ns ficamos sentados no ptio para cantar, e saiu um Yawalapit, aindavestido de festa, com culos escuros e um gravador Sony na mo, e elegravou a gente. Ento, foi timo e um indicador de que ns amos serestudados tambm.

    E os primeiros contatos com os Ki~sdj?Cludio falou ao chefe dos Ki~sdj: Est chegando um casal de an-

    troplogos americanos. Eles querem estudar sua lngua e sua msica.Eles vo escrever uma coisa e eu vou ler. Se voc no gostar das pessoas,eles vo embora. Ensine-os bem. Os Ki~sdj me contaram isso seismeses depois. Na poca, eles no queriam hospedar um antroplogo.Descobri isso recentemente pela Marcela Coelho de Souza, que agoraest estudando os Ki~sdj. Mas, depois de refletir, eles decidiram nosreceber porque poderamos representar alguma ajuda no futuro. Ento,nos aceitaram.

    O senhor acredita que a msica foi importante nesse momento?A msica foi fundamental para a nossa aproximao, inclusive com

    o Cludio Villas-Boas. As relaes com ele em certos momentos foramdifceis, mas ele aturou a gente. Ele tocava violo...

    Bem?De fato, bem. Mas muito quieto e quase nunca em pblico. Subi-

    mos o rio com os Ki~sdj de canoa e chegamos aldeia. Ento, nos

    perguntaram se queramos morar numa casa separada ou com algum.Dissemos que achvamos que seria muito difcil morar sozinhos numacasa separada. Moramos na casa do chefe Kuiussi. Eles diziam o que oCludio dizia: Eles so americanos. Os americanos so muito bravos.Eles jogam bombas. Esto jogando bombas em cima das pessoas no

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    Vietn. Mas esse casal, essas duas pessoas gostam de msica e vo cantarpara vocs sempre que vocs pedirem. Ento, cantar era, at certo pon-to, uma obrigao.

    Qual era a situao dos Ki~sdj no Parque Indgena do Xingu naque-le momento?

    Eles estavam em um momento interessante. Porque quando AmadeuLanna foi l, ele descreveu os Ki~sdj como sendo o nico grupo alto-xinguano que falava J. Entre mim e o Lanna, em torno de quarentaTapayuna [outro grupo de lngua j], que sobreviveram pacificaodesastrosa no Rio Arinos, foram conduzidos ao Parque e alocados naaldeia dos Ki~sdj. De repente, os Ki~sdj fizeram uma nova aldeia re-donda e comearam a cantar quase somente msicas j. Eles estavamentre si conversando sobre os mitos, ritos, e suas maneiras de fazer edizer coisas.

    Queramos voltar a algo que voc disse: o fato de que eles conversavamsobre o que vocs estavam fazendo em campo. Isso muito interessante. A re-

    flexo dos ndios sobre o conhecimento dos antroplogos. Eles tinham de falaras coisas certas, j que Cludio iria avaliar depois. Mas eles tambm esta-vam refletindo sobre o renascimento que eles prprios estavam vivendo...

    Os primeiros dias foram estranhos. Alguns homens falavam algumaspalavras em portugus. Eles sempre checavam para saber se eu tinhaentendido o que eles diziam, por causa de Cludio. Mas depois deixoude haver essa insistncia. Eu no falava Ki~sdj e no havia maneiras

    de aprender de antemo essa lngua antes de chegar. No havia estu-dos. Eles no aceitaram os missionrios do Summer Institute of Lin-guistics (SIL). Eu tinha uma gramtica kayap, mas no era a mesmacoisa. Os prprios Ki~sdj diziam que s entendiam Kayap se fizessemmuito esforo.

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    E como o senhor conseguia se comunicar com eles?Tinha feito um curso de como aprender uma lngua no escrita como

    aluno de ps-graduao em Chicago. Nos comunicamos inicialmenteusando algumas palavras em portugus com aqueles Ki~sdj que parti-ciparam de expedies de pacificao nas quais a lngua franca era oportugus. Aos poucos os Ki~sdj, com muita pacincia, nos ensinarama falar. Devemos muito a nossos professores.

    E foi essa experincia do aprendizado da lngua que o levou a pensar assemelhanas do processo da etnografia com a experincia da criana?

    Em parte, porque ali ns ramos totalmente crianas, embora eu ti-vesse 26 anos. Eu no falava, no enxergava (por exemplo, o pssaro talna rvore grande). E a mesma coisa com o andar: no sabamos andarnas matas ou no leito dos rios. Eles estavam sempre muito preocupadoscom a gente. Ns ramos realmente muito inocentes. Como meu do-mnio da lngua era fraco, eu precisava investigar as coisas em ordem coisas presentes para depois falarmos de coisas abstratas. Ento comeceicom a roa. Plantamos uma roa, aprendi muito. Viajamos de canoanos rios e aprendemos aspectos de lugares e espcies de animais, plantase insetos. E depois foi o parentesco. Perguntava a todo mundo sobreparentesco. Em seguida, o ritual. Eles conversavam muito entre si sobreo que eu perguntava. Eu chegava ao centro do ptio e eles, s vezes, le-vantavam algo que eu havia esquecido de perguntar. E, de fato, ajudoumuito trabalhar dessa maneira. Victor Turner no tinha muitas suges-tes sobre o trabalho de campo, apenas dizia: voc deve seguir o que

    importante para eles.

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    E, chegando para estudar msica, como voc chegou a um trabalho sobrenatureza e cultura?

    Era mais fcil falar de roa, pesca, parentesco do que de mitos, ri-tuais, ciclos de desenvolvimento domstico (grupos de idade, crianasetc.)... Como que se formula uma pergunta sobre metades? Eles nosabiam o que eram metades em portugus, e eu no sabia perguntar cor-retamente sobre coisas que no podia ver. A minha maneira de desco-brir as coisas era ir ao ptio da aldeia noite e ficar calado escutando.De vez em quando surgia uma palavra que eu no entendia, ento es-crevia na escurido e no dia seguinte perguntava. Uma vez estvamosnos ornamentando para uma festa, e um Ki~sdj disse: Tem doisdanando l no ptio. Eram aproximadamente 25, e eu lhe disse isso.E ele: S tem dois. Sempre quando estamos colocando ornamentos debrao dizemos onde est o outro como este? Sempre temos um e ou-tro. Os dois danando eram as duas metades. Eram 25, mas eramdois de fato. Essa foi a observao-chave que me levou a descobrir comose falava sobre metades. Com os cantos, foi a mesma coisa. Como quese pergunta como se estrutura sua msica?. Perguntei, perguntei...Como so os esteios centrais da msica? Meu melhor informante di-zia: No sei o que voc quer dizer... Casa tem esteio, mas msica no.Foi somente mais para o final que escutei uma pessoa falando para ou-tra: Voc esqueceu o sinddaquela coisa.... Eu perguntei o que eraisso. E descobri que todo canto tem duas partes, uma chamada sinde aoutrakradi, que so como leste e oeste. E de repente descobri que oscantos, na viso deles, tm a mesma estrutura que o espao e as meta-

    des. Ento, descobri exatamente o que eu estava investigando: havia umasobreposio de estruturas de relaes sociais (de cosmologia e de espa-o-tempo) e de msica. Mas msica uma coisa difcil de conversar,pois todas as sociedades do mundo se referem a ela usando metfora.

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    Havia uma estrutura dual na msica...Inteiramente dual. Mas no somente isso. Havia cantos individuais

    chamados akia.Quando uma pessoa canta, ela canta de acordo com suaidade. Ento, o canto de uma pessoa muda ao longo da vida. O cantode uma criana tem somente uma parte. Quando chega a aproximada-mente 10 anos, de repente, passa a cantar em duas partes. Depois, trspartes. A pessoa canta muito alto quando jovem, mdio-alto quandotem filhos e depois no canta mais quando tem netos. Existe um gritoespecial para os velhos. Ento, os sons eram todos ornados de um ladocom coisas fixas e de outro mudavam conforme a posio pessoal nessesistema. Eu chamava a sociedade de uma orquestra, mas os instru-mentos eram pessoas de idades e gneros diferentes que se representa-vam por meio de seu canto.

    O mesmo pode ser dito da oratria masculina?A fala sim, pois s homens adultos desempenhavam a oratria. Os

    mais jovens falavam de uma certa maneira e raramente falavam em cer-tos lugares. Os mais velhos falavam em certos lugares. As mulheres tam-bm tm vrios tipos de falar, dependendo da formalidade da ocasio.Quando eu fui ao campo em 1971, no tinha velhos, porque tinhammorrido todos. Eu cheguei a uma aldeia em que o mais velho era apro-ximadamente dez anos mais velho do que eu. Ento, no tinha homensvelhos. Por isso no sei se os velhos no falavam. Eu sei que os muitosvelhos Tapayuna no falavam.

    Entre os Kayap, os mais velhos se retiram da cena imediata...Poderia ser... consistente.

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    Mais alto significa mais forte ou mais agudo?Mais agudo e tambm mais forte. Eles no se preocupam com tom

    fixo, porque no tocam flauta sistematicamente e no escrevem msica.Ento, os mais jovens deveriam ser aqueles que cantam mais alto (emamplitude) e mais agudo (em tom).

    O senhor aprendeu a cantar em Ki~sdj?Claro. Eles disseram que entre seus cativos eu era o melhor cantador.

    Em que momento o senhor comeou a cantar com eles?No primeiro ritual que eles fizeram, perguntaram se eu queria cantar

    com eles. Eu disse que sim. E eles disseram que eu no ia conseguiraprender os cantos individuais. Eu falei que talvez pudesse aprender.Eu gravei, fiz uma transcrio e, no dia seguinte, estava cantando. Foi aprimeira vez que os jovens acharam interessante aprender a escrever. Por-que assim poderiam aprender mais rapidamente as canes.

    Sua primeira cano foi como jovem ou como homem maduro?Como jovem. Meu primeiro canto tinha duas partes, mas eram rela-

    tivamente curtas e fcil de lembrar. [Comea a cantar o trecho.]

    Este canto unssono?No, cada pessoa tem um canto tipo akiadiferente. Ento, quando

    tem 25 pessoas cantando so 25 cantos diferentes. Cada melodia dife-rente. Isso polifonia. Tem muito mais vozes diferentes do que Bach

    escreveu. Eu chamei meu livro Por que Cantam os Suy?(Why Suy Sing?)por no entender porque todos gritavam coisas diferentes. Era um somto estranho... muito diferente de tudo o que eu j tinha ouvido.

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    O senhor diz em um de seus artigos que a oratria falada, o mito contado, a cano cantada, mas que todos so msica para seus ouvidos...Gostaramos que falasse um pouco mais sobre isso.

    Eu achava que a distino entre fala e msica (especialmente quandoa msica toda cantos e, por conseqncia, palavras) era uma coisa pro-blemtica. Na fala se usam tons e tambm se manipula o tempo; namsica se usam tons e se manipula o tempo. Ento, eu achava que, emvez de dizer que esta msica e aquela fala, existe a maneira de semanipular os tons e os tempos na fala cotidiana assim como aqui con-versando em volta de uma mesa, que diferente da maneira de usar afala ritual (mais recitativa como uma pera) , que era diferente daoratria para um pblico, que era tambm diferente dos cantos. Mastodos tm esses aspectos de tons, palavras e tempos. Acho que umaquesto de quais so os parmetros em que se muda de um para o outro.Eu estava tentando evitar falar exclusivamente na msica, minha in-teno era mostrar o leque amplo que existia no desempenho oral.

    possvel fazer etnomusicologia sem ser msico?Eu acho que sim. Depende da anlise que se pretende fazer do de-

    sempenho musical. Certos tipos de anlise requerem formao musical,outros no.

    Voc acha que um no-msico, ou algum que no tivesse uma relaoprofunda com a msica, que chegasse aos K i~sdj teria a percepo da im-portncia da experincia musical tal qual o senhor descreve?

    Eu acho que no, porque eu acho que no lhe interessaria. Tem mui-tos estudos sobre os rituais j e muitas referncias ao fato de que elescantam, mas ningum tinha se aprofundado nos sons da msica.

    Em Nature and Society, baseado em minha tese de doutorado, eu noescrevi sobre msica porque ainda no entendia. Primeiro porque o tra-

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    balho j tinha 400 pginas. E tambm porque eu estava preocupado comas relaes entre cosmologia, organizao social e msica, e acabei fi-cando em cosmologia e organizao social. Eu no entendia o suficientesobre msica. Acabei deixando a msica para um estudo posterior, de-pois de j dominar melhor a lngua.

    E como foi a vinda para o Museu Nacional depois de escrever a tese?As relaes pessoais so muito importantes em tudo no Brasil no

    apenas no Brasil, mas em todo lugar... Cheguei em 1970 e sa no finalde minha pesquisa de doutrado em 1973. Na sada do campo, em mar-o de 1973, Roberto DaMatta me perguntou: Voc quer dar um cursocomigo sobre parentesco? Vai ser divertido.... Eu no tinha nada a per-der, no precisava chegar a Chicago to cedo, tinha coisas que eu queriaanalisar nos meus dados antes de partir, ento respondi que sim. Ento,ele arranjou uns 3.000 dlares, o suficiente para eu alugar um aparta-mento e dar aula uma vez por semana. E trabalhamos muito bem jun-tos. Ele com saltos imaginativos muito grandes, e eu: Bem, mas vamosver o que o Morgan dizia.... Foi muito divertido. Eu fiz amizade comtodos os professores na poca. Fizemos festas, e eu cantei. Depois volteipara Chicago, escrevi minha tese, consegui um emprego e perdi o con-tato constante com o Brasil. Na Califrnia, de repente, eu recebi umtelefonema de Roberto DaMatta. Ele me perguntou: Tony, voc quervoltar para o Brasil? Eu tenho cinco vagas que a Universidade me deu,porque Roberto Cardoso saiu, Melatti saiu... Tem Moacir, tem Lygia,tem Otvio, tem Gilberto, mas no tem ningum da Etnologia, e ns

    achamos que voc seria ideal porque voc a nica pessoa que ns co-nhecemos que fala a lngua e que poderia tratar da rea indgena comseriedade. Voc realmente passou um tempo estudando e aprendendo alngua.... E eu falei: Espere que daqui uns dias eu lhe telefono de vol-ta. Ento eu telefonei para Terence Turner, e ele disse: Eu acho que

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    voc no deve ir. Voc sabe que de vez em quando, no Brasil, parece quevai ter coisas que no acontecem e voc vai jogar este emprego fora, vaichegar l e vai se perguntar ser que vou ter mesmo este emprego?.Perguntei ento a Victor Turner: Ah. Eu acho que voc no deve ir.Eu tenho alguns colegas meus de faculdade, alunos de Gluckman, queforam para a frica e sumiram, ficaram envolvidos em coisas por l, maspararam de participar da antropologia internacional. Perguntei a DavidSchneider: Voc no deve ir. Voc est com um excelente emprego,um bom lugar, por que voc quer sair?. Apesar de todos os conselhos,eu aceitei o convite de ir ao Museu Nacional. Mas eu vim para o Brasilem parte porque j sabia o que ia encontrar no Museu Nacional e con-fiava em Roberto. E tambm tinha a inteno de no me perder da an-tropologia internacional, poupando dinheiro para ir a congressos inter-nacionais todos os anos em perodo de frias. Eu vim j avisado dosproblemas, mas certo de que seria interessante porque poderia fazer maispesquisa de campo, poderia tomar chope gelado e, alm disso, minhamulher estava interessada em fazer uma tese sobre o romanceiro no Bra-sil e poderia fazer seu trabalho durante esse tempo.

    Uma das coisas interessantes de sua obra que ela tenta dar uma respostaum pouco diferente ao modelo do dualismo j e bororo, tal como foi proposto

    por Maybury-Lewis...Agora vocs esto iniciando uma conversa sobre trabalhos que escre-

    vi h dcadas. bem provvel que vocs saibam melhor o que escrevinaquela poca de que eu. Meus trabalhos mais recentes so sobre a m-

    sica, mas vou tentar responder.Eu estava partindo de minha pesquisa junto aos Ki~sdj, e, se haviacongruncias com Lvi-Strauss e outros autores, era porque eu tinha ob-servado e ouvido isso dos Ki~sdj. Esse era o ponto de partida de minhaetnografia. Eu estava falando com esses outros autores. Sobre o dualis-

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    mo, parecia realmente que, quando havia um, voc poderia procurarem todos os nveis um outro tudo vinha em pares. Em outras pala-vras, tudo o que eu digo em 400 pginas pode ser reduzido a uma ob-servao dos Ki~sdj. Quando falvamos sobre Natureza e Cultura, elesinsistiam que eu conhecesse a todos os aspectos da vida. Eu no poderiaficar na aldeia de braos cruzados. E outra coisa que havia uma relaodas coisas da natureza, de fato, que atuavam sobre a vida social. No erauma coisa de oposio rgida, um l e outro c. Obviamente tem umagrande troca entre um e outro, de vrios tipos de relao, de comida, depensar, de cantos...

    A prpria idia de que os animais entoam os cantos interessante parapensar a relao entre natureza e cultura entre os J.

    Sim. Eu acho que em Why Suy Sing?, especialmente, se torna me-nos rgido nesse aspecto. As categorias de espao so mais rgidas...

    Um outro etnomusiclogo, Steven Feld, fala que o canto dos pssaros en-tre os Kaluli da Papua-Nova Guin msica, e os ocidentais estabelecemessa diviso em que a msica fruto da agncia humana. E nessa cosmolo-

    gia no, a natureza tambm produziria msica...Sim. No perspectivismo, em que os animais se pensam humanos,

    mas os Ki~sdj pensavam os animais como sociais tambm. Os Ki~sdjforam l para as aldeais diferentes de espcies animais ou vegetais, ouseus espritos foram para a aldeia, a estavam todos cantando. L, osKi~sdj aprenderam as canes e trouxeram. Quando estavam cantan-

    do, estavam cantando na aldeia msica de animais e peixes e vegetais.Eles no modelaram seus cantos nos pssaros cantando nas rvores, masnos pssaros cantando juntos em sua prpria aldeia. Feld, sobre os Kaluli,fala dos pssaros de fato, que voc pode gravar l. Os Ki~sdj dizem queos cantos dos pssaros so cantos dos pssaros em suas aldeias, dos peixes

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    em suas aldeias. muito diferente nesse sentido. Mas o Steve e eu so-mos fs um do outro.

    Como o senhor v os temas do animismo e do perspectivismo em um gru-po J?

    No sei. Eu dirigi uma companhia de discos durante 12 anos. Minhasvoltas para os Ki~sdj desde 1994 tm sido muito mais no sentido deamizade, curiosidade e assistncia. No posso falar como o perspectivis-mo funciona para os J porque realmente no tentei aplicar entre osKi~sdj. Acredito que tem coisas profundas a que poderiam me ajudara repensar coisas perdidas que tenho em minhas anotaes. Mas, pararesponder mais que de forma anedtica sobre esse tema, teria de revercom seriedade meus cadernos de campo.

    O perspectivismo muito pensado a partir de metforas visuais. Poderia

    ser pensado tambm por meio da msica, de metforas musicais?Podemos falar dos animais ouvindo os homens cantar? No conhe-o um caso de mito em que um animal aprendeu um canto de umser humano.

    O exemplo dos pssaros um exemplo propriamente perspectivista. Por-que no o canto do pssaro que msica, mas o canto dos pssaros em suaagncia humana, entre eles se vendo como humanos.

    Sim. Mas eu no tenho pensado sistematicamente sobre a questo.

    O senhor poderia falar um pouco sobre a redao do artigo A constru-o da pessoa..., em conjunto com DaMatta e Viveiros de Castro?Eu acho que esse texto saiu em parte dos dados ki~sdj e apinaj, e

    do trabalho que citamos,African Models in the New Guinea Highlands,de Barnes. No h linhagens clssicas (tipo Grego ou Romano ou

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    Nuer) entre os J e, se elas existem ali, certamente no so to impor-tantes e consistentes como em partes da frica. Ento, a nica coisa quedava para generalizar era o corpo. O corpo era obviamente importante:era o principal objeto de desenhos, e as idias de crescimento e sociali-zao do corpo eram amplamente espalhadas na literatura etnogrficasobre a Amrica do Sul. A viso do antroplogo geralmente comea comleituras, depois passa para a experincia de campo e posteriormente pelareflexo sobre assuntos diante de outras leituras. Fizemos esse trabalho aseis mos, o que foi complicado mas funcionou. Convidamos colegaspara uma reunio no Museu Nacional e achamos que estvamos encon-trando uma maneira de comear a pensar comparativamente a Amricado Sul.

    Como suas reflexes sobre corpo e pessoa se articulam a temas como per-formance e drama? Estamos pensando aqui na influncia de Victor Turner

    em sua obra.Victor tambm gostava de msica, danava e cantava cantos ndembu.Desde o incio me interessei por trabalhar com msica e performance.Trabalhava com msica e me interessava por performance. Para mimera um tema bvio. Tem aspectos da antropologia que no procuramver como as pessoas esto, de fato, encarnando e fazendo as coisas; mui-tos antroplogos so presos a fala e categorias. Mas em msica e ritual oimportante o desempenho, que faz que as coisas aconteam. O pro-cesso de fazer a coisa importante. Isso me leva diretamente para a per-formance e o que ela significava. Veio em parte de Victor Turner, em

    parte no estudo de desempenho de falar, e em parte realmente porqueestava estudando msica. Quando falo em Antropologia Musical emWhy Suy Sing? porque eu achava que o estudo da msica, a atenoao desempenho e a ateno s coisas acontecendo no momento da aopoderiam trazer coisas boas para a Antropologia. Eu escrevi isso em 1987

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    quando a antropologia era um pouco mais rgida, agora ela j incorpo-rou essas idias de processo.

    Isso foi bem recebido por Victor Turner?No sei. Eu no o encontrei tanto quando eu estava morando aqui e

    ele em Virginia. Nos vamos de passagem em reunies da AmericanAnthropological Association.Ele veio ao Brasil um ano para passar oCarnaval e ficamos fazendo um swiminar na piscina de RobertoDaMatta. Passamos horas e horas na piscina durante o dia trocandoidias sobre tudo, depois festejamos noite. Mas no tocamos nesse as-sunto, trocamos mais idias sobre Carnaval, msica, communitas, a vida,coisas assim...

    Qual o lugar da msica na proposta antropolgica de uma melhor com-preenso acerca do Homem?

    Boa pergunta. No sei se tenho uma resposta direta. Vamos ver... [si-lncio]. Se voc olhar para o tempo que as pessoas j passam cantando eo tempo que precisavam usar para caar ou pescar, a msica tomavamuito tempo, muita ateno e muitos recursos. Deveria ter algo muitoimportante para eles na msica e no ritual. Se no, por que fariam? Etambm os Ki~sdj sempre apontavam para a msica e achavam queesses cantos eram muito importantes para eles. Eles cantavam os cantosde seis grupos indgenas diferentes, um canto em francs que eles apren-deram com os Trumai, muitos cantos em ingls que eles aprenderamcom a gente. Para eles o canto era fascinante. Quando passava um visi-

    tante na aldeia, eles chamavam noite para o ptio e insistiam que can-tasse, canto aps canto aps canto... Os Kayap faziam a mesma coisaquando eu passava por l.

    O canto foi tambm importante como uma relao com o mundo.E, se os Arawet e os Tupi em geral tm uma certa relao com o outro,

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    de aproveitar para seu prprio grupo do ser do outro, eu acho que osKi~sdj estavam fazendo uma maneira de se relacionar com as pessoaspor meio da aprendizagem e desempenho da msica. Eles no adota-ram os nomes dos inimigos, mas sim adotaram as msicas dos inimigos.

    A msica no importante igualmente em todas as sociedades. Todassociedades tm estruturas de sons que so claramente distintas das es-truturas de comunicao. Mais redundantes, as estruturas de sons somais regularizadas e repetidas. Mas isso no quer dizer que a importnciada msica para os J seja necessariamente igual para os Suni no Iraque.De fato, em certas prticas do Isl, a msica considerada um mal.

    Mas o canto uma coisa fundamental na liturgia do Isl, no?No Isl, quando eles fazem a orao, dizem que no msica (embo-

    ra soe musicalmente). um discurso, um sermo. tudo msica parameus ouvidos. Mas para eles diferente. A recitao do Qran geralmen-te no usa instrumentos musicais. So os instrumentos que fazem e le-vam dana e a relaes imprprias entre as pessoas. H uma repressomuito forte por parte do Taleban com relao msica. Mas eu achoque entre os Ki~sdj, entre os indgenas do Brasil, e propriamente das

    Amricas, a msica realmente uma parte importante da vida, da ma-neira de se construir como indivduos e pessoas, da maneira de se cons-truir como grupos e da maneira de se relacionar com os outros grupos.Posso falar sobre um projeto que no fiz ainda?

    Claro. Adoraremos ouvir.

    H muito tempo eu queria fazer uma pesquisa comparativa com osgrupos J sobre msica, especialmente Apinaj, Kayap e Timbira. En-tre eles h uma semelhana de cosmologia, de ritos, de nomes e de orga-nizao social. Tudo isso muito consistente. A questo : e a msica?Se essa relao entre msica, a cosmologia e o espao-tempo que encon-

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    trei entre os Ki~sdj presente nos outros... Porque se for presente nosoutros uma coisa interessante e amplia minha anlise. Se no for, en-to ser que os Ki~sdj e eu inventamos os princpios que descrevo ope-rando em sua msica sozinhos? Eu escrevi Why Suy Sing? para mostraras possveis relaes entre cosmologia, organizao social e a msica, masser que eu, querendo ver essas coisas, as inventei com um grupo pe-queno que era de fato muito simptico nos ajudando com a pesquisa?Eu ganhei duas bolsas para pensar isso em 1988, mas eu fui contratadopelo Smithsonian Institute, ento larguei a pesquisa. Mas estou come-ando a fazer isso agora. Eu fui em maio de 2007 para Carolina, noMaranho, para visitar o arquivo de msicas timbira. O meu primeiroprojeto era ir para as terras de todos os antroplogos que fizeram pes-quisas com os grupos j, ficar em suas casas, tomar cerveja, fazer cpiasde todas as suas gravaes, anotar coisas que eles poderiam dizer e de-pois fazer a pesquisa comparativa. Mas agora, com o surgimento dosarquivos propriamente indgenas, mais interessante. As gravaes noso perfeitas, mas foram feitas por pessoas que realmente entendem amsica que esto gravando. Podem ser mais completas e mais cuidado-samente escolhidas.

    Gostaramos que o senhor falasse um pouco sobre a proposta e concepodo Smithsonian Global Sound.

    Primeiro deixe-me falar um pouco sobre os arquivos multimdia,porque eu acho que a preservao de msica importante em si. En-quanto aluno de ps-graduao, j conhecia o arquivo de Indiana e j

    coloquei cpias de minhas gravaes dos Ki

    ~

    sdj imediatamente depoisde voltar do campo, para a salvaguarda. Quando eu estava gravando comos Ki~sdj, falei para eles: um dia talvez seus bisnetos vo querer ouvirestas suas msicas. Eles podem ir para o arquivo de Indiana sempre quequiserem, que elas vo estar l. Eles ficaram contentes, mas era um

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    qentemente com oprimidos do que com opressores. O arquivo na In-diana University estava cheio de vozes, que eram as vozes de pessoas queestavam falando com etnomusiclogos, antroplogos, que estavam fa-lando de coisas que no falariam se tivessem sido gravadas por outraspessoas. E muitas coisas que estavam l que poderiam ser teis no esta-vam em outras fontes, no estavam nos livros dos vencedores e no esta-vam nos livros dos antroplogos que utilizaram somente uma parte dasentrevistas. Ento, por isso, passei seis anos l.

    A frustrao do arquivista que voc tem o material, mas no temdireito de divulgar em parte pelas leis de propriedade intelectual, emparte pelas restries do doador, do pesquisador... Quando recebi a ofertade dirigir um selo de discos que era famoso por ter muitas msicas deEtnologia do mundo todo, de sons que so muito esquisitos, mas inte-ressantes um disco inteiro sobre sons de rs norte-americanas, porexemplo , eu achei ideal porque l eu estava em posio de, em vez deter problemas de distribuir, fazer quantas cpias fossem possveis e man-dar para o mundo. Aceitei.

    Eles foram muito gentis. Eles disseram que eu poderia fazer qualquercoisa que eu quisesse, menos perder dinheiro. Mas eles s me deram17.000 dlares para operacionalizar a coisa uma misria. Uma com-panhia de discos funciona com milhes de dlares. Ento foi um desa-fio muito grande. Produzimos mais ou menos vinte discos por ano,mantivemos dois mil cento e tantos outros que j existiam, e estavvamoscaptando outras companhias de discos para adicionar ao acervo materiaisque poderiam ser distribudos. Aps 12 anos, voltei a dar aulas. Passei

    de 1988 a 2000 no Smithsonian. Aprendi e me diverti muito, especial-mente quando estava montando alguma coisa nova. Manter um pou-co chato, voc tem sempre de pensar sobre dinheiro no final do ano,tem sempre de reclamar dos antroplogos que no sabem escrever en-xuto, que escrevem textos to longos que no cabem nos CDs. Depois

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    de um certo nmero de anos, estava ficando mais como um trabalhoque como uma diverso. Estvamos vendendo cerca de 200 mil cpiaspor ano, e em cada uma tinha algo que eu havia feito. Ou era o editorou escrevia a apresentao. Eu estava presente em milhares de lugares.Foi realmente liberador no sentido de atingir o grande pblico. claroque o grande pblico no era to grande assim em comparao com aSony, por exemplo. Mas eu estava atingindo um grande nmero de pes-soas com minhas idias e meu trabalho.

    O Global Sound tem como base trs atores fundamentais: o arquivista, ocoletor e o artista. Prope uma relao autntica entre essas partes. Como

    funciona a captao e transferncia de recursos entre o arquivista, o coletor eo artista no projeto do Global Sound?

    O Global Sound comea com quatro pontos iniciais. Primeiro, acha-va que as artes tradicionais, nas aldeias indgenas e no mundo todo, es-tavam sendo afetadas pela falta de pessoas para aprender dos velhos. Eisso estava acontecendo em parte porque s a arte nova tinha proteo edinheiro. A arte popular, a arte nova tinham copyright. Conhecimentotradicional e folclore em muitos pases so excludos de copyright. En-to eu queria criar um sistema de distribuio em que uma parte dodinheiro ganho fosse diretamente para os artistas. Assim, eles ganhari-am no apenas uma soma em dinheiro, mas tambm prestgio. Comdinheiro e prestgio em jogo, jovens poderiam talvez comear a estudarcom os mestres.

    O dinheiro ganho individualmente?Em princpio individualmente. Varia de caso a caso. Mas indivduoou grupo, at se for para grupo todo, confirma a importncia do quevoc est fazendo. E talvez d pra comprar 1 litro de gasolina, enfim,uma coisa pequena.

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    O segundo ponto era que os arquivos no mundo todo so mal finan-ciados e tm problemas de prestgio porque as pessoas pensam que sorepositrios de coisas que ningum quer mais, ao invs de pensar queso uma maneira de construir o futuro. Dinheiro para os arquivos trariatambm prestgio.

    E terceiro que eu achava que havia muita gente no mundo todoque estaria interessada nesses materiais oriundos de arquvios, materiaisestes que no eram gravados para publicao. No eram cortados paracaber em discos, mas eram feitos de pesquisa. E a melhor maneira defazer esse tipo de difuso seria pela Internet.

    Finalmente eu achava que poderia criar um espao na Internet queno seria apenas para os arquivos sonoros digitais, que so fceis de fazere transmitir, mas que incluiria informaes e textos que faltavam namaioria das maneiras de organizar msica na Internet. Criamos o Glo-bal Sound para isso. A idia era criar uma rede de arquivos do mundotodo cada arquivo colocaria na Internet uma parte da coleo sobrea qual ele detinha os direitos e poderamos colocar as msicas doSmithsonian. A inteno era cobrar pelos downloads. Metade do dinhei-ro recebido ficaria com o Smithsonian para juntar novos arquivos aoprojeto e pagar o preo de manter o site. E a outra metade ia para osarquivos e eles deveriam pagar a metade do que recebiam para os artistasdos itens que foram baixados. A realizao desse projeto foi complicada.Demorou anos para lanar o stio. Mas est funcionando finalmente.

    Alm de poder comprar faixas individuais e ver toda documentao, asuniversidades e escolas podem licenciar o acesso para todos os alunos de

    todo o material. O material escrito sobre o som de graa, a nica coisaque se paga a msica.

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    E o projeto se auto-sustenta?Ele se auto-sustenta, mas para iniciar recebemos financiamento da

    Rockafeller Foundation.

    Gostaramos que falasse rapidamente de sua posio como artista.Como artista eu tive meu pico aos 18 anos. Durou at os 20. Como

    aluno de graduao em Harvard eu realmente no me liguei muito aosestudos, mas me diverti. No terceiro ano, de repente estava trabalhandomuito como aluno e decidi que precisava diminuir a msica no pararde tocar, mas de tocar seriamente, de pensar em ser msico. Um tiomeu, Mike Seeger, passou por Boston fazendo um show com seu gru-po, The New Lost City Ramblers. Eles estavam no final de uma longaturn, estavam num bar cheio de fumaa e ningum estava prestandoateno na msica deles. Depois jantamos juntos e eles reclamaram detudo. Ento pensei se no haveria algum jeito de viver da msica queno envolvesse esse tipo de sofrimento. Eu passei a achar mais interes-sante estudar a msica do que tentar fazer msica como profisso. Almdisso, eu tinha vrios parentes que faziam msica, e o sobrenome seriaalgo complicado. Enfim, parti para uma outra maneira de trabalhar coma msica. A Antropologia da Msica seria a maneira. Mas, para isso, euteria de ser bom antroplogo. Ento, eu me aprimorei para ser um bomantroplogo, eu estudei antropologia de verdade. Embora tenha tocadoem festas e com amigos, a maior parte do tempo estava estudando an-tropologia pra valer.

    Quero acabar falando um pouco sobre ps-graduao. muito dif-

    cil ser aluno de ps-graduao. Eu tive muita sorte de ter bolsa o tempotodo trabalhei muito e adorei. Realmente me diverti em meus anos deps-graduao. Embora parea que a vida muito difcil, que so muitopobres, que no h tempo para ler e pesquisar, voc tem muito mais

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    coisas para fazer depois de deixar de ser aluno. Nunca mais vai ter tantotempo para pesquisa e leitura. Vocs que esto nessa fase aproveitem,vocs que j saram, lamento muito. Mas, se Deus quiser, vocs conse-guem uma posio como a que eu consegui no Museu Nacional, comtimos colegas e alunos desafiantes.

    Apesar de tudo, sem o banjo e minha mulher, a vida teria sido muitodiferente. Em quase todos as oportunidades que tive em minha carreirao banjo teve um papel. Um bom exemplo foi minha entrada no MuseuNacional, muito facilitada pelo gosto que as pessoas tm pela msica.No Smithsonian a mesma coisa. E hoje sou responsvel por um grupode alunos que tocam msica de Bluegrass e stringband. Nunca me penseicomo um dos mais inteligentes entre os antroplogos, mas sou um dospoucos que tocam banjo.