Entrevista Com Os Escritores Flavio Carneiro e Flavio Vargas

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ENTREVISTA COM FLÁVIO CARNEIRO E FLÁVIO FARGAS 1 – Flávio’S, em seu trabalho de criação, escrevendo ou ilustrando, a ideia surge rápida como a espontaneidade de uma criança, devagar como os passos de uma tartaruga, ou é preciso ruminar muito tempo antes de pôr as palavras ou os desenhos no papel? Carneiro: A ideia de uma história costuma surgir do nada – ou a gente pensa que é do nada –, de repente, quando menos se espera. Mas é só a ideia, a semente da história. A história mesmo, inteira, demora a tomar corpo. E colocá-la no papel é um processo mais lento ainda, que requer muitas páginas jogadas fora. É um trabalho meticuloso, de reescrever mais do que escrever, de cortar e acrescentar, até que o texto final me agrade enquanto leitor. Só mando para a editora a história que eu, como leitor, gostaria de ler. Por isso o teste final é esse, o de responder “sim” à pergunta que faço, com meu próprio texto nas mãos: Eu gostaria de ler isso, se fosse de outro autor? Fargas: No meu caso, a primeira fase do trabalho, que é conceber as imagens que vou transformar em ilustração, é a mais demorada e a que me consome mais os neurônios. Porque é ali que está o segredo de tudo. Um trabalho bem feito na concepção das imagens facilita muito as etapas posteriores. Por isso prefiro ruminar bastante antes de partir para a finalização. 2 – No livro, o sonho e a imaginação têm papel de destaque nos personagens da tartaruga, da vaca e da menina. Para vocês, qual a importância de sonhar, em especial quando criança? Carneiro: Sonhar é fundamental, para a criança e para o adulto. O sonho é que faz você se sentir não apenas vivo, mas com vontade de continuar vivendo. A criança representa o tempo inteiro, o que significa que, de algum modo, está sempre sonhando. Quando minha filha Maria, de 3 anos, me diz que sua boneca está muito cansada mas só dorme quando ela, Maria, lhe conta uma história, quando faz isso está sonhando, de um jeito muito particular, só seu. E minha função, como pai, é não deixar que ela deixe de sonhar assim quando for crescendo e o mundo lhe parecer hostil em relação aos sonhadores. Fargas: Eu vivo essa situação diariamente porque tenho três filhos pequenos em casa (Sofia, 8, Mateus, 3, e Lucas, 7 meses). É um compromisso meu estimular ao máximo a imaginação, a criatividade e a capacidade deles de sonhar. Tento criar condições para que eles possam se realizar enquanto crianças, naquilo que a infância tem de mais bonito: a liberdade quase poética que advém do fato de eles ainda não terem internalizado completamente noções do certo e do errado, do pode e do não pode. Claro que ensinar a noção de limite é fundamental. Mas, enquanto pais e educadores, temos que ter consciência dos nossos limites também, na hora de impor limites. Paradoxal, não é? Mas é assim que penso. A parede da minha varanda, por exemplo, virou um grande quadro para Sofia e Mateus pintarem. E brincar de construir coisas usando "lixo" (caixas de leite vazias e rolinhos de papel higiênico vazios, por exemplo) é uma das maiores diversões dos meu filhos. Enfim, como disse Albert Einstein, a imaginação é mais poderosa que o conhecimento…

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ENTREVISTA COM FLÁVIO CARNEIRO E FLÁVIO FARGAS

1 – Flávio’S, em seu trabalho de criação, escrevendo ou ilustrando, a ideia surge rápida como a espontaneidade de uma criança, devagar como os passos de uma tartaruga, ou é preciso ruminar muito tempo antes de pôr as palavras ou os desenhos no papel?

Carneiro: A ideia de uma história costuma surgir do nada – ou a gente pensa que é do nada –, de repente, quando menos se espera. Mas é só a ideia, a semente da história. A história mesmo, inteira, demora a tomar corpo. E colocá-la no papel é um processo mais lento ainda, que requer muitas páginas jogadas fora. É um trabalho meticuloso, de reescrever mais do que escrever, de cortar e acrescentar, até que o texto final me agrade enquanto leitor. Só mando para a editora a história que eu, como leitor, gostaria de ler. Por isso o teste final é esse, o de responder “sim” à pergunta que faço, com meu próprio texto nas mãos: Eu gostaria de ler isso, se fosse de outro autor? Fargas: No meu caso, a primeira fase do trabalho, que é conceber as imagens que vou transformar

em ilustração, é a mais demorada e a que me consome mais os neurônios. Porque é ali que

está o segredo de tudo. Um trabalho bem feito na concepção das imagens facilita muito as

etapas posteriores. Por isso prefiro ruminar bastante antes de partir para a finalização.

2 – No livro, o sonho e a imaginação têm papel de destaque nos personagens da tartaruga, da vaca e da menina. Para vocês, qual a importância de sonhar, em especial quando criança?

Carneiro: Sonhar é fundamental, para a criança e para o adulto. O sonho é que faz você se sentir não apenas vivo, mas com vontade de continuar vivendo. A criança representa o tempo inteiro, o que significa que, de algum modo, está sempre sonhando. Quando minha filha Maria, de 3 anos, me diz que sua boneca está muito cansada mas só dorme quando ela, Maria, lhe conta uma história, quando faz isso está sonhando, de um jeito muito particular, só seu. E minha função, como pai, é não deixar que ela deixe de sonhar assim quando for crescendo e o mundo lhe parecer hostil em relação aos sonhadores. Fargas: Eu vivo essa situação diariamente porque tenho três filhos pequenos em casa (Sofia, 8,

Mateus, 3, e Lucas, 7 meses). É um compromisso meu estimular ao máximo a imaginação,

a criatividade e a capacidade deles de sonhar. Tento criar condições para que eles possam

se realizar enquanto crianças, naquilo que a infância tem de mais bonito: a liberdade quase

poética que advém do fato de eles ainda não terem internalizado completamente noções do

certo e do errado, do pode e do não pode. Claro que ensinar a noção de limite é

fundamental. Mas, enquanto pais e educadores, temos que ter consciência dos nossos

limites também, na hora de impor limites. Paradoxal, não é? Mas é assim que penso. A

parede da minha varanda, por exemplo, virou um grande quadro para Sofia e Mateus

pintarem. E brincar de construir coisas usando "lixo" (caixas de leite vazias e rolinhos de

papel higiênico vazios, por exemplo) é uma das maiores diversões dos meu filhos. Enfim,

como disse Albert Einstein, a imaginação é mais poderosa que o conhecimento…

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3 – A história guarda um segredo sobre o quê de diferente da tartaruga Devagar e da vaca Divagando. Com as crianças cada vez mais espertas, como manter o mistério e fugir do óbvio, tanto no texto quanto nas ilustrações?

Carneiro: Acho que o autor nunca deve dizer tudo, deve sempre deixar espaços vazios, que a imaginação do leitor vai preencher. E deve sempre apostar na inteligência e na imaginação do leitor. Quando escrevo penso numa criança – e num adulto, mesmo em textos infantojuvenis penso no leitor adulto, que acharia prazeroso ler aquela história – que goste de imaginar. E o que o escritor faz é isso, é montar esse brinquedo chamado livro e dar de presente ao seu leitor, um brinquedo que só funciona quando acionado pela imaginação de quem quer brincar com ele. Agora, como fazer isso, como escrever esse texto-brinquedo vai depender de cada história. Cada uma pede um jeito de ser contada, cada história é uma nova aventura da escrita, nunca é igual à anterior. Fargas: Essa qualidade de surpreender o leitor – desejável em qualquer livro, diga-se de passagem –

é muito forte neste livro. Em grande parte, baseado nas conversas que tive com o Carneiro

é que eu fui construindo a parte visual do livro de modo a evitar o óbvio e preservar o

mistério. Não foi fácil não, mas achei o resultado muito bom.

4 – Tendo ambos experiências com outros tipos de público — um (Carneiro) é escritor consolidado junto aos leitores adultos; outro (Fargas) trabalhou anos em agências de publicidade e, depois, com design gráfico —, escrever ou desenhar para crianças é mais difícil? O que significa para vocês trabalhar com o público infantil?

Carneiro: Não sei se é mais difícil. Acho que a dificuldade é a mesma, embora pareça que não, que escrever para crianças é mais fácil do que escrever para adultos. No meu caso, o prazer e a dificuldade são iguais. O mais difícil é sempre encontrar o tom do narrador. É preciso encontrar alguém certo para contar a história que você quer contar. Não é você, autor, que conta, você inventa alguém para contar a sua história. E esse alguém precisa ser convincente, precisa ser coerente consigo mesmo, com o seu jeito de narrar. Já tive narradores bem diferentes entre si: um velho franciscano, um jovem louco por romances policiais, um sequestrador (que sequestra uma mulher apenas para lhe contar uma história), um menino de 14 anos que vai investigar o paradeiro da mãe, uma menina que conversa com seu despertador, até sereia já coloquei para contar uma história. E essa busca por uma voz narrativa, por alguém que conte a história, existe tanto na ficção para adultos quando na infantojuvenil. Fargas: Pode parecer piegas, mas é verdade verdadeira: desenhar para crianças, no meu caso, além

de um prazer incomensurável, é compromisso de vida. Trabalhando com livro infantis eu

descobri finalmente que era ali que eu poderia fazer o que mais gosto na vida – desenhar –

e, ao mesmo tempo, ser útil. Imaginar que minhas ilustrações podem ajudar uma criança a

gostar de ler e ajudar no seu desenvolvimento é gratificante. Se é fácil ou difícil? Não sei

mesmo dizer. Só sei que é gostoso demais.

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5 – O que cada um achou do trabalho do outro nessa parceria — texto e ilustrações? Carneiro: Achei sensacional o trabalho do Fargas. Conversamos muito durante todo o processo de ilustração, ele me mandava esboços e a gente ia conversando sobre os desenhos. Não acho que seja um texto fácil de ilustrar porque a ambiguidade em torno da verdadeira natureza da vaca e da tartaruga só pode ser desfeita no final. Além disso, é preciso que as ilustrações possam ser relidas de certa maneira. Quer dizer, depois que o leitor descobre quem de fato são Devagar e Divagando, ele pode querer rever as ilustrações, para descobrir se as pistas estavam ali. É como num romance policial, não dá para enganar o leitor, as pistas têm que estar ali, diante dos olhos dele, mas não muito evidentes, claro. O Fargas conseguiu esse efeito, as ilustrações mantêm essa ambiguidade até o fim da história. Além de serem muito bonitas, com um traço muito original. Fargas: Eu amei ilustrar Devagar & Divagando. A mistura de crianças com bichos é a minha

preferida (só perde para um belo prato de frango com quiabo). E quando o texto é bom

então, como neste caso, é só alegria.