Entrevistas Projeto Selec¸ao de Talentos˜ Fundac¸ao Getulio … · 2018. 11. 1. · Entrevistas...

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Entrevistas Projeto Selec ¸˜ ao de Talentos Fundac ¸˜ ao Getulio Vargas esar Camacho Julho 2018 introduc ¸˜ ao Esta publicac ¸˜ ao apresenta entrevistas por distinguidos jornalistas, de quatro estudantes universit ´ arios da Fundac ¸˜ ao Getulio Vargas (FGV), no Rio de Ja- neiro, onde cursam Economia ou Matem ´ atica Aplicada. Em comum eles t ˆ em a origem, em cidades pequenas, onde estudaram em escolas p ´ ublicas e fo- ram premiados, em v ´ arias ocasi ˜ oes, na Olimp´ ıada Brasileira de Matem ´ atica das Escolas P ´ ublicas (OBMEP). Os relatos mostram suas trajet ´ orias de vida. O desempenho acad ˆ emico deles j ´ a permite vislumbrar o brilhante futuro que ter ˜ ao. S ˜ ao hist ´ orias de sucesso e uma amostra do potencial de talento que o pa´ ıs possui, escondido em entornos afastados, o qual, se bem encaminhado pode encontrar sua realizac ¸˜ ao em n´ ıvel muito elevado. A OBMEP ´ e uma atividade do Instituto de Matem ´ atica Pura e Aplicada (IMPA). As hist ´ orias do IMPA e da FGV est ˜ ao fortemente entrelac ¸ adas. O N ´ ucleo T ´ ecnico Cient´ ıfico de Matem ´ atica da FGV criado em 1945 j ´ a congre- gava os matem ´ aticos que em 1952 criariam o IMPA. Todos os ex-diretores do IMPA participaram dos conselhos maiores da FGV, ou se envolveram dire- tamente em tarefas acad ˆ emicas nessa instituic ¸˜ ao. Reciprocamente, v ´ arios professores da FGV foram alunos do IMPA; alguns fizeram parte do seu Conselho de Administrac ¸˜ ao e foram testemunhas da criac ¸˜ ao da OBMEP. Foi assim natural que ao deixar a direc ¸˜ ao do IMPA em 2015, depois de 12 anos de mandato, eu mantivesse uma s ´ erie de conversas com Carlos Ivan Simonsen das quais surgiu a ideia de criarmos um programa em sequ ˆ encia ` a OBMEP uma iniciativa que consiste em abrir a alunos distinguidos com premiac ¸˜ oes a oportunidade de fazer seus estudos universit ´ arios nos programas da FGV. Da´ ı nasceu o Centro para o Desenvolvimento da Matem´ atica e Ciˆ encias da FGV que eu dirijo, e que est ´ a encarregado de realizar essa tarefa. A primeira turma recrutada em 2017 ´ e formada por 11 alunos – sete em Matem ´ atica Aplicada e quatro em Economia –, provenientes de escolas p ´ ublicas. Em 2018 foram 22 alunos, 14 em Matem ´ atica, quatro em Economia, tr ˆ es em Ci ˆ encias Sociais, e um em Administrac ¸˜ ao. Esse ano, personalidades do setor privado contribu´ ıram com a doac ¸˜ ao de bolsas de manutenc ¸˜ ao para o sus- tento desses alunos. Est ˜ ao a cargo da FGV toda a infraestrutura necess ´ aria de apoio a esses estudantes e a isenc ¸˜ ao total das anuidades escolares. 1

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EntrevistasProjeto Selecao de TalentosFundacao Getulio Vargas

Cesar Camacho

Julho 2018

introducao Esta publicacao apresenta entrevistas por distinguidos jornalistas, de quatroestudantes universitarios da Fundacao Getulio Vargas (FGV), no Rio de Ja-neiro, onde cursam Economia ou Matematica Aplicada. Em comum eles tema origem, em cidades pequenas, onde estudaram em escolas publicas e fo-ram premiados, em varias ocasioes, na Olimpıada Brasileira de Matematicadas Escolas Publicas (OBMEP).Os relatos mostram suas trajetorias de vida. O desempenho academicodeles ja permite vislumbrar o brilhante futuro que terao. Sao historias desucesso e uma amostra do potencial de talento que o paıs possui, escondidoem entornos afastados, o qual, se bem encaminhado pode encontrar suarealizacao em nıvel muito elevado.A OBMEP e uma atividade do Instituto de Matematica Pura e Aplicada(IMPA). As historias do IMPA e da FGV estao fortemente entrelacadas. ONucleo Tecnico Cientıfico de Matematica da FGV criado em 1945 ja congre-gava os matematicos que em 1952 criariam o IMPA. Todos os ex-diretores doIMPA participaram dos conselhos maiores da FGV, ou se envolveram dire-tamente em tarefas academicas nessa instituicao. Reciprocamente, variosprofessores da FGV foram alunos do IMPA; alguns fizeram parte do seuConselho de Administracao e foram testemunhas da criacao da OBMEP. Foiassim natural que ao deixar a direcao do IMPA em 2015, depois de 12 anos demandato, eu mantivesse uma serie de conversas com Carlos Ivan Simonsendas quais surgiu a ideia de criarmos um programa em sequencia a OBMEP –uma iniciativa que consiste em abrir a alunos distinguidos com premiacoesa oportunidade de fazer seus estudos universitarios nos programas da FGV.Daı nasceu o Centro para o Desenvolvimento da Matematica e Ciencias daFGV que eu dirijo, e que esta encarregado de realizar essa tarefa. A primeiraturma recrutada em 2017 e formada por 11 alunos – sete em MatematicaAplicada e quatro em Economia –, provenientes de escolas publicas. Em2018 foram 22 alunos, 14 em Matematica, quatro em Economia, tres emCiencias Sociais, e um em Administracao. Esse ano, personalidades do setorprivado contribuıram com a doacao de bolsas de manutencao para o sus-tento desses alunos. Estao a cargo da FGV toda a infraestrutura necessariade apoio a esses estudantes e a isencao total das anuidades escolares.

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O sucesso do projeto nos leva a projetar um crescimento significativo donumero de estudantes, de maneira a alcancar 100 alunos por ano a partirde 2020. Esse salto sera realizado somente depois de termos garantido onecessario suporte pedagogico, psicologico e humano que os estudantesda FGV atualmente recebem, e que tem sido responsavel pelo sucesso doprograma ate hoje. Acreditamos que desta maneira estaremos contribuindopara a formacao de profissionais altamente qualificados que poderao desem-penhar um papel relevante para o paıs num futuro nao muito distante.

a obmep A OBMEP foi criada em 2005, proposta por alguns matematicos que atuavamem torno do IMPA e da Sociedade Brasileira de Matematica ( SBM). E umaatividade inspirada no Projeto Numeratizar do Estado do Ceara, idealizadopelo matematico Joao Lucas Barbosa. Esse projeto teve vida breve (2003–2004), mas antes de acabar, suas liderancas tentaram sem sucesso estende-loa nıvel nacional, com a ajuda da SBM. O Projeto Numeratizar chamou aatencao por ter um conteudo de inclusao social. Os alunos premiados nacompeticao recebiam bolsas e um curso de iniciacao cientıfica, o PIC, a cargode professores universitarios, caracterısticas que a OBMEP viria a adotar,acrescentando outros programas.Em outubro de 2003 assumi a Direcao do IMPA e alguns meses depois odeputado Eduardo Campos viria a assumir a conducao do Ministerio daCiencia e Tecnologia (MCT), ao qual o Instituto esta subordinado. No comecode sua administracao Eduardo Campos tomou a iniciativa de propor quealguns dos institutos de pesquisa vinculados ao MCT recebessem o selo de“Institutos da UNESCO”. Com essa finalidade, convidou seus diretores afazer uma apresentacao na sede dessa instituicao, em Paris. Essa iniciativafoi frustrada por serios entraves burocraticos. Mas duas consequenciasimportantes derivariam dessa visita. A primeira ocorreu no encontro denossa delegacao com o ministro de Ciencia e Tecnologia frances, quandopropostas de intercambio foram discutidas. Com o de acordo previo doMinistro Campos apresentei a demanda do IMPA de ser uma “Unite MixteInternational” do CNRS, privilegio concedido nessa ocasiao e que so essainstituicao detem no Brasil ate hoje, em qualquer area do conhecimento. Asegunda consequencia foi a oportunidade que tive de conversar com Edu-ardo Campos, durante varios dias, sobre o IMPA e praticamente todas suasatividades. Quando abordei a possibilidade de fazermos uma olimpıadanacional de Matematica de grande abrangencia, para milhoes de alunos,seus olhos brilharam. Quantos participantes poderıamos alcancar, quantocustaria? – perguntou imediatamente. Quando respondi que o custo seriade um real por aluno, ele abriu um largo sorriso. So isso?Ele me disse que na semana seguinte teria uma viagem a Washington juntocom o Presidente da Republica e que mencionaria essa ideia a ele. Mas ja me

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instruiu que me preparasse porque terıamos um encontro com o Presidente.E foi assim que ocorreu. Poucos dias depois da viagem a Washington, oMinistro Campos me telefonou pedindo uma exposicao da proposta quelevarıamos ao Presidente. Convidei a participar dessa reuniao ao Lucas Bar-bosa e a Presidente da SBM, Suely Druck, a qual ficou encarregada de fazera apresentacao. Alguns dias depois desse encontro o Ministro Campos meconvidou para uma reuniao em Brasılia que ficou na minha memoria. Neladefinimos, nos dois, o que seria a OBMEP: uma olimpıada so para as escolaspublicas, e dirigida pelo IMPA. Nao poderia ser diferente; nas conversas deParis o Ministro Campos entendeu o papel relevante do IMPA na Cienciabrasileira e o seu prestıgio no seio da comunidade matematica. De fato, naoexiste outra instituicao com a capacidade de convocacao da comunidadematematica nacional para colaborar com um projeto destinado a atendermilhoes de alunos. Isto decorre da sua respeitabilidade, consequencia do ex-traordinario nıvel cientıfico que adquiriu. Alem disso, e uma instituicao queja recebia rotineiramente recursos governamentais e tinha seus processos degestao e fiscalizacao instalados na sua estrutura de organizacao social.No fim da reuniao ele me disse: vou lhe apresentar agora uma pessoa impor-tante que esta aguardando na sala ao lado. Foi aı que conheci pessoalmenteMiguel Arraes, com quem tive a oportunidade de conversar. Quando che-guei ao Brasil pela primeira vez, com 21 anos de idade, para estudar com odestacado matematico Elon Lages Lima, na Universidade de Brasılia, em1965, Miguel Arraes, nessa epoca exilado na Argelia, era para os alunosbrasileiros da UnB uma unanimidade, um heroi nacional. Para mim foi umencontro particularmente significativo e alvissareiro.A intervencao de Eduardo Campos foi crucial. Mesmo depois da atividadeser um sucesso houve ministros e outras altas autoridades que me confes-saram que no inıcio nao acreditavam que fosse dar certo. A reuniao com oPresidente foi memoravel, o Lucas levou varios medalhistas da olimpıadado Ceara, a ideia foi aprovada e o nome foi escolhido: OBMEP. Foi acertada,ainda, a participacao do MEC junto com o MCT do lado do Governo e doIMPA e da SBM do lado academico. O de acordo presidencial teve ainda oefeito de trazer a colaboracao setores governamentais que de outra maneiranao participariam ja que a ideia de uma premiacao pelo merito, surpreen-dentemente, contrariava alguns educadores.No inıcio o IMPA operou junto com a SBM mas poucos anos depois pordecisao das autoridades do MCT, ja com novo ministro, a OBMEP foi definidacomo atividade do IMPA, reconhecida e financiada no contrato de gestaoque assina com o MCT. Posteriormente, ainda na minha gestao, o contratode gestao do instituto foi estendido de maneira a incluir o MEC como in-terveniente. Os recursos para a OBMEP foram financiados em partes iguaispelos dois ministerios.E preciso reconhecer a contribuicao de varias pessoas que trabalharam ar-duamente para tornar esta atividade uma realidade, especialmente nos

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primeiros anos da implantacao da atividade. Suely Druck, que me acom-panhou nos primeiros anos em todas as atividades, e Monica Souza, naimplantacao da complexa logıstica para atender milhoes de estudantes. Acomunidade matematica tao unida e colaboradora: foram mais de oitocen-tas pessoas trabalhando em rede nacional, uma boa parte delas professoresuniversitarios, incluindo-se os diversos comites, de provas, e outros, co-ordenadores regionais, coordenadores de iniciacao cientıfica; milhares deprofessores das escolas, as secretarias de educacao, municipais, estaduais.Nas comemoracoes de fim de ano, no IMPA, em 2004, meu telefone celulartocou. Era Henrique Paim, a epoca presidente do FNDE, que me informavado repasse de recursos para o IMPA iniciar a OBMEP. Era o comeco destahistoria.

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Luciano Fabio Busatto VenturimVenda Nova do Imigrante (ES)

Raphael Kapa

No ano de 2013, a Olımpiada Brasileira de Matematica das Escolas Publicascompletava dez anos e, no meio de 19 milhoes de estudantes de todo o Brasildisputando a competicao, um deles acabou provocando um efeito dominoque modificou a vida de seus colegas – especialmente de um.

Vestido com o uniforme branco e azul da escola Fioravante Caliman, locali-zada na cidade de Venda Nova do Imigrante, no Espırito Santo, Jose Antoniocontinuava a tirar suas tradicionais duvidas sobre os desafios propostospela disputa com seu professor Cristiano. O ritual se repetia desde a 6a serie,quando ele teve contato com o evento. A curiosidade do garoto fez comque seus colegas comecassem a se interessar pelo tema. Um deles era o seumelhor amigo, Luciano Fabio.

Magro, de sorriso facil e sempre falando de estudo, Luciano se interessoupela rotina academica de Jose Antonio, acabou superando-o e subverteu alogica de um estudante da cidade do interior do Espırito Santo com poucomais de 25 mil habitantes.

– Ele entrou na OBMEP, se dedicou muito e acabou me passando – conta Ze,aos risos.

Os dois, juntos com outro amigo, Guilherme, ja vinham participando daOlımpiada desde o 6o ano do ensino fundamental de maneira tımida. Naepoca, Ze se destacou e conheceu o Programa de Iniciacao Cientıfica daOBMEP, onde teve acesso a questoes bem diferentes das que via no colegio.Luciano, ao tomar conhecimento do que ele estava estudando naquele outroespaco, dedicou-se cada vez mais a alcancar o amigo.

– Sou competitivo. Talvez, no inıcio, tenha entrado por causa disso. OZe estava se destacando e eu queria isso tambem. Mas, quando comeceia estudar, tive um prazer enorme em resolver problemas em que vocepassa muito tempo tentando e, do nada, ocorre um momento de luz e voceconsegue. Isso e muito prazeroso.

Hoje, Luciano esta morando a uma distancia de 473 quilometros de suacidade natal, apos conquistar uma vaga na Fundacao Getulio Vargas, no Riode Janeiro, com direito a bolsa.

– Desde sempre o Ze Antonio era o aluno bom em tudo. O Luciano foi

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comendo pelas beiradas, lembra o professor Cristiano.

Com a medalha de ouro na OBMEP, tudo mudou.

A notıcia foi dada a Luciano pelo amigo Ze, que nao havia conseguido omesmo exito. Celebraram juntos, comendo pizza.

Os pais de Luciano se orgulham da trajetoria do filho. A mae, Marli, se-cretaria na oficina de automoveis de que ela e o marido sao donos, diz queele foi alem de suas expectativas.

– A gente sempre espera ter o filho por perto, mas fico muito feliz quandoele fala contente sobre tudo que esta vivendo no Rio de Janeiro, conta Marli.

A vida na capixaba Venda Nova do Imigrante era boa. Sem luxos, mas comconforto. Marli e Luciano, o pai homonimo, tambem tiveram Gabriela. Ela,alias, faz graduacao em Matematica, mas, segundo o irmao, o que cobicame diferente. Gabriela, como muito deseja a mae, pretende ser professora eficar no Espırito Santo. Luciano sonha desbravar o mundo.

O rapaz se identifica com o pai. Conta que os dois tem a mesma obstinacaopor bons resultados. Tambem dividem o gosto pelo cinema. Mas a famıliaVenturim tinha que se deslocar mais de 80 quilometros para ver um longa-metragem. No Rio, o cinema e o refugio de Luciano nas pausas dos estudos.

Na residencia de tres quartos que dividia com os pais e a irma, Lucianopassava muito tempo recluso, estudando. Passou no duro processo seletivodo Instituto Federal do Espırito Santo (Ifes), no campus de sua cidade, umdos 22 do estado.

O instituto tem a regua alta, e a vida de Luciano ficou puxada. O ensinomedio seria mais um passo no aprofundamento da sua criatividade.

– O Ifes era o colegio que tinha o melhor ensino medio e os professores maisbem preparados na cidade. E tem um processo seletivo para se entrar la.Nao significa que todos os alunos sejam otimos, mas ha uma diferenciacao –diz Luciano sobre o bom ensino que teve.

– Eramos mais cobrados, o nıvel aumentou – completa Ze, que, como naopodia deixar de ser, foi com Luciano para a nova escola.

O professor de fısica – dono de um “doutorado aos 30 anos”, conta Luci-ano – foi outro que o marcou. O mestre mostrava prazer em ensinar e eraotimo tambem em Matematica. Tirava as duvidas de Luciano e o ajudounas questoes do Programa de Iniciacao Cientıfica da OBMEP, de que o es-tudante participaria. Bernardo atraıa seu interesse com desafios. Sua areade pesquisa nao tinha nada a ver com a que ensinava – era muito mais

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avancada.

– Ele era super cool – lembra Luciano. Se voce for ve-lo, nao acha que ele eaquele fısico tipo, sei la, Einstein. Ele usava brinco, tinha tatuagem. Tudoque a gente perguntava, ele sabia, ate perguntas que nao estavam na materia.Isso gerava em nos curiosidade de procurar mais.

Luciano esbarrou com uma excecao. No Brasil, segundo levantamento de2016 da ONG Todos pela Educacao, somente 39,7% dos docentes que ensinavamfısica tinham formacao adequada para isso. A mesma afericao aponta que,entre todos os professores brasileiros, somente 1,8% possuıam mestrado e0,3%, doutorado. A percepcao da importancia da formacao continuada fezcom que Luciano desde entao comecasse a pensar que seu caminho tambemenvolveria mestrados e doutorados – ate aquele momento dentro do Brasilmesmo.

Procurado para dar entrevista, Bernardo se mostrou grato pela lembrancado ex-aluno.

– Ver alunos como o Luciano brilhando e muito bom. O fato de ele terpercebido que a formacao dos professores modifica uma aula e uma vitoria.O Ifes tem muitos professores jovens com mestrado e doutorado. Isso fazcom que a gente saia do lugar comum na sala de aula, analisa o professor,que gosta de inserir mais complexidade as suas aulas de ensino medio.

– Voce pode ate achar que aquilo que esta mostrando nao vai fazer sentidopara aqueles alunos, mas sempre existe alguma pergunta e algum aconteci-mento que voce menciona e gera interesse.

Foi o caso de temas da fısica moderna como cosmologia, buracos negros efenomenos quanticos, que levam as perguntas para as dobras do espaco.

Luciano sempre procurava Bernardo via WhatsApp para tirar duvidassobre esses assuntos, que tambem embasavam discussoes com o amigo ZeAntonio.

Depois da primeira medalha de ouro na OBMEP, veio o inesperado. Ape-sar de ter estudado muito mais e de ter feito “uma prova muito melhor”,Luciano nao levou o ouro. Ficou com a prata.

Para um jovem que, em menos de uma hora, repete tres vezes que e movidoa resultado, este episodio e trazido a luz com pesar, mas sem vitimizacao.Pelo contrario. A queda na premiacao foi o incentivo para ele estudar aindamais no ano seguinte. Mas, mesmo com todo o empenho e toda a ambicao,o ouro nao veio de novo.

– Esta segunda prata foi mais frustrante. Na primeira, havia a questao da

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mudanca de nıvel da prova. Na segunda vez, nao. Foi decepcionante.

A frustracao de Luciano foi por nao estar no grupo dos 500 medalhistasde ouro entre os 17,9 milhoes de estudantes que participaram da Obmep.A medalha de prata foi concedida naquela edicao a 1.500 alunos, ou seja,0,008% de todos os concorrentes. Mas, para Luciano, nao era o bastante.

O que mais o fascinava em ser medalhista era a possibilidade de expandirseu universo em todos os sentidos. Por ter recebido a laurea e por ter tidoum otimo desempenho no Programa de Iniciacao Cientıfica da Olimpıada,Luciano pode viajar pela primeira vez para fora do Espırito Santo e ampliarseus conhecimentos sobre a Matematica. Foi ao Encontro do Hotel deHilbert, em Florianopolis, promovido pela organizacao da OBMEP, quelevava os melhores alunos do PIC a um mergulho intensivo no mundo daMatematica.

O Hilbert lembrado no nome do evento chama-se David, o alemao queelaborou o fato matematico conhecido como “Paradoxo do Hotel de Hilbert”,sobre conjuntos infinitos.

Luciano participou de dois encontros. Neles, os alunos se dividiam emtres nıveis e passavam cinco dias assistindo a palestras, resolvendo jogosmatematicos, participando de oficinas e se divertindo com atividades recre-ativas, que incluıam gincanas e exibicao de filmes. Ao final de cada dia, oevento tambem lancava um problema e os estudantes que apresentavam asmelhores solucoes eram premiados.

– Eu nao pensava que a OBMEP podia me trazer possibilidades tao grandes.Mesmo no ensino medio, quando ja estava mais velho, nao tinha essaideia. Nao desse jeito como tudo aconteceu. A olimpıada e responsavel poresmagadora parte das minhas experiencias academicas e de vida: a primeiravez em que viajei de aviao, tambem a primeira em que viajei sem meus pais.E ela me proporcionou o envolvimento com a iniciacao cientıfica. Foi assimque me destaquei dentro da escola. Pude aprender bem mais do que eraensinado la.

A Olimpıada lhe trouxe tudo isso, mas tambem aquela decepcao de naoser o melhor – o que lhe serve de combustıvel para tentar alcancar novasalturas. Suas altas qualificacoes o fizeram ser chamado para disputar umavaga na Fundacao Getulio Vargas, com bolsa de estudo para se manter noRio de Janeiro.

Enquanto se preparava para o Enem de 2016, uma rotina de estudos queficou pesada no ultimo ano do ensino medio, Luciano recebeu um e-mailda FGV em sua em geral vazia caixa de mensagens. O estudante leu aquelamensagem e conta que precisou rele-la varias outras vezes. Afirma que,

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aquela epoca, pensou tratar-se de “um spam de tao absurdo que parecia”.Mas nao era. Era uma proposta da Fundacao.

Luciano viria para o Rio, prestaria o vestibular e, se passasse, ganhariaos benefıcios ja citados. Seu sonho ate aquela manha era a UniversidadeFederal de Minas Gerais. Mais uma vez, a OBMEP mudou o curso da vida.

– Voce esta morando com seus pais e alguem lhe oferece 2.000 reais paraestudar em uma universidade gigante, com a mensalidade paga. E o melhorcurso de economia do Brasil, talvez da America Latina. E como se elestivessem me pincado e me colocado diante de tudo isso aqui.

O episodio soou tao extraordinario que Luciano comecou a festejar e contoupara sua irma, que tambem celebrou. Mas logo lhe veio uma ideia estranha,de que aquilo poderia ser irreal. Ligou para sua mae, que foi categorica: elenao deveria responder nada, aquilo so podia ser vırus. . .

O garoto conta que queria acreditar que a mensagem era verdadeira. Naoera somente pelo convite em si, mas por ter sido chamado, descoberto. O e-mail era claro: dizia que seu nome foi escolhido devido ao seu desempenhona Obmep. Emocionado, Luciano faz o seguinte relato:

– Quando voce recebe esse tipo de notıcia, parece uma coroacao para ogaroto que guardava dinheiro para a faculdade e que estudou muito fora daaula, dedicando-se mais a outras coisas que nao eram obrigatorias para oseu historico escolar. Estudei muito, brinquei pouco. Isso e algo que a gentefica pensando se vale a pena durante um tempo. Quando chega essa notıcia,voce ve que vale.

Sua mae ainda nao estava convicta sobre a veracidade do convite. Os diasseguintes foram de provacao: ligacoes e mais ligacoes para checar aquelee-mail. Ate que se esgotaram todas as ressalvas de dona Marli a viagem deseu filho para prestar o vestibular no Rio. Com a aprovacao que viria logodepois, comecou uma nova rodada de conversas entre mae e filho.

– Minha mae ficou ate o ultimo dia tentando me convencer a ficar em VendaNova. Ela chora ate hoje quando estou la e volto para o Rio. Mesmo quandoeu ja estava com a matrıcula feita, ela insistiu que eu desistisse, lembraLuciano

A mae e mais breve ao comentar o assunto:

– Toda mae pensa em proteger o filho. E natural ficar preocupada.

A inseguranca em relacao a nova vida de Luciano e todas as incertezas queisso traz, juntou-se a crise na seguranca publica no Rio de Janeiro.

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– Venda Nova e uma calma absurda, um clima diferente. Agora funcionapara mim mais como um refugio para sair desse caos que e o Rio de Janeiro eir para um lugar todo organizadinho. Mas nao me vejo voltando. Nao sei. . .Talvez no futuro, bem no longo prazo, pondera o rapaz, que, questionadose seria so na aposentadoria, diz:

– E, talvez na aposentadoria. . .

Por enquanto, os planos dele permanecem bem agitados e cada vez maisdistantes do Espırito Santo. Sua rotina beira treze horas de estudos diarios.Por este motivo, divide um apartamento proximo a faculdade com maisquatro estudantes. O espaco do seu quarto – que em Venda Nova erasoberano – e dividido agora com um colega. Diz nao se importar muito,porque so vai para a nova casa para comer e dormir. Repete intensamenteque o tempo que tem e dedicado ao estudo.

Das 7h30 ate 12h50, as disciplinas ocupam sua agenda. Na parte da tarde,ate as 20h, e, as vezes, 21h, estuda para “dar conta” das materias lecionadasde manha. Sem tempo disponıvel, so viu o Cristo Redentor e o Pao deAcucar no caminho para a faculdade. Promete que vai visitar, mas semmuita certeza.

Luciano, que nunca estudou uma lıngua estrangeira, comecou a aprenderingles em um curso oferecido em parceria com a FGV. Ele considera esteaprendizado fundamental para os proximos passos na carreira. A vontadede fazer mestrado e doutorado, que cultiva desde o ensino basico, continuafirme. Mas nao mais necessariamente em uma universidade federal.

– Hoje penso em fazer a pos-graduacao la fora. A FGV abre muitas opor-tunidades nesse sentido e, agora, me vejo tendo possibilidades que naoimaginava, conta Luciano, ja sabendo que dona Marli talvez nao fique muitofeliz com os seus anseios.

Ele sempre disse aos pais que planejava ir alem de Venda Nova, mas achavaque ficaria no Brasil, em alguma capital. Apesar de pensar em correr omundo, tal como o protagonista de seu filme predileto, Forrest Gump,Luciano nao se esquece do grupo que participou de sua formacao.

– Noventa por cento do que fiz na vida foi incentivo dos meus amigos.Era porque eu estava inserido naquele meio social que tambem gostavade estudar e tinha curiosidade, enaltece, sem tambem analisar que suasmotivacoes para os estudos fogem do que normalmente se ve em casosde alunos que se destacam. E prossegue: Acho que meus amigos tiverammais influencia nisso tudo do que talvez meus pais e professores. Sempretive professores muito bons, mas nao um mentor. Tive que correr atras,indo atras deles. E alguns muito bons, como o Cristiano e o Bernardo,

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correspondiam alem da media. Mas, no final, eram os amigos que faziamessa parte de troca, no dia a dia.

A ausencia de um mentor cruza novamente o caminho de Luciano como da OBMEP. Cesar Camacho foi entre 2003 e 2015 diretor do Instituto deMatematica Pura e Aplicada e um dos criadores da OBMEP. Logo apos sairdo cargo, foi convidado para atuar na FGV, onde desenvolveu o projeto que,como disse o jovem do Espırito Santo, “o pincou”. Diz Camacho:

– Existem no paıs centenas de jovens identificados como capacitados paraavancar nos estudos da Matematica e que nao conseguem ir para a faculdade.A impossibilidade se da muitas vezes por questoes financeiras. E difıcil paraum jovem de um municıpio do interior do paıs se manter em uma cidadegrande, com seu alto custo de vida. Nossa iniciativa visa a diminuir a perdade talentos que o paıs tem na transicao do ensino medio para o superior.

O projeto comecou em 2017 com onze alunos. Eles sao convidados a presta-rem o vestibular da instituicao em virtude dos seus resultados na OBMEP eoutras variaveis, como a questao de renda e localidade. Se aprovados noprocesso de admissao, podem cursar a FGV sem pagar mensalidade e aindarecebem um auxılio de R$ 2.000 para se manter no Rio.

Da primeira turma, sete cursam Matematica Aplicada e os outros quatro –Luciano entre eles – estudam Economia. Camacho frisa que o aluno podeescolher outras carreiras dentro da FGV. Na edicao deste ano, foram 24vagas distribuıdas entre Matematica Aplicada, Economia, Ciencias Sociais eAdministracao. A expectativa para o ano que vem e dobrar este numero.

No caso de Luciano, a experiencia na FGV tambem trouxe a figura que lhefaltava em sua trajetoria.

– Esse e o momento da minha vida em que estou tendo pela primeira vezalgum tipo de mentoria, pondera. As vezes, vou la no Camacho paraconversar sobre minhas duvidas, falar da minha trajetoria academica, e elesempre me passa o equilıbrio de que necessito.

Camacho diz que o projeto nao pressupunha essa relacao tao proxima, ateporque pretende ampliar o numero de beneficiarios e provavelmente naotera condicoes de atender a todos como um mentor. Porem, aponta que suasala sempre esta aberta, e acredita que este contato e sempre muito impor-tante. Sobre Luciano, o professor o coloca como o resultado da equacao queele elaborou.

– O Luciano e brilhante. E um dos melhores estudantes em uma das me-lhores escolas no Brasil, que e a FGV. Ele traduz perfeitamente o que e esseprograma. Esta iniciativa e para ajudarmos a formar uma elite de pensa-

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dores que surja de lugares onde nao haveria essas oportunidades. Mostrarque alunos de colegios publicos de cidades do interior podem ser liderancasporque ja sao talentos, muitas vezes desperdicados. Queremos dar ao Brasiluma amostra do que pode ser feito com os talentos que o paıs ja tem.

O jovem capixaba esta certamente aberto as oportunidades que ja vierame as que provavelmente virao. Pretende experimentar a iniciativa privada,mas sem perder de vista uma atuacao social por onde passar.

– Quero fazer mestrado e doutorado no exterior ou talvez um intercambio,ainda na faculdade. Sera a primeira vez que vou sair do Brasil. Acho que,no longo prazo, quero. . . nao sei, acho que quero participar de um governo.Gosto da ideia de me envolver com polıtica, mas acho ruim do jeito comoela esta atualmente. Me vejo talvez, no futuro, sendo ministro da Fazendaou tendo algum outro cargo polıtico.

– Por que nao?, indaga Camacho.

O projeto da OBMEP, criada para ajudar a revelar talentos escondidos emtodo o paıs, teve adesao nacional na casa de milhoes.

– A ideia era fazer uma selecao de talentos de escolas publicas em grandeescala, abrir janelas de oportunidade para um publico menos favorecido –lembra Camacho.

Em uma cidade do interior com 25.000 habitantes, um garoto ganha umapremiacao da OBMEP e comeca a participar do seu Programa de IniciacaoCientıfica. Animado, Ze Antonio desperta o interesse de seus amigos atambem entrarem na jornada. E aı Luciano e despertado para a Matematicae seus desafios, e nao larga mais o estudo.

Ze, o amigo de sempre, agora cursa Engenharia Civil na UniversidadeFederal de Minas Gerais. Ele diz:

– Para avaliar a mudanca que a OBMEP trouxe na vida do Luciano, faco umarelacao de quando a gente comecou e onde a gente esta atualmente. A partirdo momento em que conheceu a Olimpıada, que ele viu que era algo de quepoderia participar, ele se dedicou e focou como nenhum de nos. Assim, eleconstruiu essa brilhante historia que o levou ate onde esta, na FGV. Vejotudo isso como um misto de chance e determinacao. Sao oportunidadesdadas as pessoas certas, que valorizam, aproveitam e batalham.

O futuro de Luciano ainda e uma variavel indefinida nesta equacao. Masisso nao quer dizer que as pecas deste jogo estao imoveis. Ao contrario.

– Quando soube que um reporter iria escrever sobre o Luciano, contei paraa minha turma da oitava serie. E uma forma de eles verem a importancia

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de valorizar o estudo. A unica coisa que importa para nos e o sucesso dosalunos. Nao so o dele, mas do Ze e de todos os outros. Quando falei isso naturma, os alunos ficaram ‘e mesmo?’, ‘isso pode acontecer com a gente?” –conta o professor Cristiano, que ficava uma hora a mais no trabalho paraajudar a resolver as questoes da OBMEP com Luciano e os outros.

O garoto de Venda Nova definitivamente nao se contenta com pouco.

– Tenho amigos que se esforcaram e conseguiram ir para outras faculdadesmuito boas tambem, mas eles nao tiveram essa mesma oportunidade queestou tendo. Fico me perguntando por que fui chamado para participardeste projeto e um amigo que teve melhores resultados nao foi. Isso me levaa querer espalhar essas oportunidades para mais gente.

Pelo visto, a historia de Luciano esta apenas comecando.

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Felipe Vieira CostaSıtio do Mato (BA)

Monica Weinberg

Pequeno ainda, entre tres e quatro anos de idade, Felipe Vieira da Costaencontrou diversao em apertar as teclas de uma daquelas calculadorasantigas. Era, no inıcio, uma alegria sensorial. O crescente entusiasmo peloobjeto, promovido a brinquedo predileto, chamou a atencao da mae. Elaapresentou ao filho os detalhes – primeiro os numeros, depois os sinaisdas operacoes basicas – e o desafiava com contas cada vez mais longas ecomplexas. Logo, porem, mesmo essas se tornariam triviais para ele. Felipesaltou a casa das centenas, dos milhares, e um dia, la pelos 10 anos, fezMaria Conceicao Vieira, de 40 anos, dona de magistratura completa, massem faculdade, concluir: ”Ele nos ultrapassou”, lembra a mae.

Aos 18 anos, Felipe se transformou em um jovem de mente singular. Andana rua e analisa a geometria dos predios, faz calculos, recorda teoremas. Temum mundo proprio, movido a Matematica. Ela e como um prolongamentodele mesmo. Todos os dias, sai de casa cedıssimo, por volta das 6h, para afaculdade – de Matematica, como nao? –, preenche o estomago como numato mecanico para saciar a fome do almoco, volta aos estudos e so retorna arepublica que divide com outros cinco colegas da Fundacao Getulio Vargas,na Zona Sul do Rio de Janeiro, a noite. E, sim, ainda fica as voltas comleitura e exercıcios. Repartem o espaco tres alunos de Matematica e tres deEconomia, o que, Felipe brinca, garante aquele lar de gente que cultiva osilencio o ”equilıbrio necessario”.

Quem via Felipe manusear sua calculadora em idade precoce e o observaagora, tao bem encaixado onde esta, pode supor que a mare foi naturalmenteo conduzindo para um lugar que e seu por direito. Nao haveria outropossıvel. Engano.Varios cenarios adversos o poderiam ter afastado daMatematica, mas um episodio decisivo o conectou a ela de forma definitiva.

Felipe estava no 6o ano quando o professor Belchior de Almeida Silva, 40anos, o chamou para participar da Olimpıada Brasileira de Matematica dasEscolas Publicas, da qual Felipe nunca ouvira falar. Ele foi mesmo assim,sem estudar, so para ver como era. E era, definitivamente, muito diferentedo que havia visto na escola – mais complicado e avancado. O resultadoveio meses mais tarde, e com ele, um fato inesperado: Felipe ganhou umamedalha de bronze. Por falta de internet e de comunicacao, acabou sabendoda laurea depois da premiacao. Ele perdeu a festa, o palco, os aplausos, ea medalha chegou dias depois via correio. Os pais ficaram desconsolados,

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mas o filho prometeu, resoluto: ”Ano que vem estudo para valer, levo aprata e voces vao me ver recebendo a medalha.”

No ano seguinte, o garoto que nasceu em Sao Paulo e passou boa parteda vida escolar em Sıtio do Mato – cidade de origem dos pais e dos avosagricultores, a 771 quilometros de Salvador, no interior da Bahia – fez muitomais do que prometera. Avisaram que o resultado da Olimpıada enfimchegara e Felipe estava do lado da mae quando comecou a procurar o seunome, de tras para frente. Primeiro, entre os bronzes. Nada. Depois, entreas pratas. Nada tambem. A ansiedade o possuiu. Mas aı veio o que paraele era inesperado: o ouro. Felipe foi o segundo colocado da competicaoem seu estado. Alegria fulminante. Nos proximos anos, um apos o outro,ele faturaria mais cinco medalhas douradas. Com aquele bronze, somaram-se sete, o que faz dele um dos maiores vencedores da olimpıada desde aprimeira edicao, em 2005.

Ha poucos, bem poucos estudantes que conquistaram sete ouros – contraos seis de Felipe. Mas todos vieram de colegios militares federais, a eliteda rede publica. Felipe, por sua vez, peregrinou por escolas nas quais seutalento teria passado despercebido, e seria possivelmente desperdicado, naofosse o arguto olhar do professor Belchior e a insistencia dos pais em ve-loconcretizar seu talento.

Certa vez, a mae foi chamada a escola para uma reuniao inesperada. Comosempre fez, Maria Conceicao compareceu. O professor de Matematica deentao expos sua questao. Ele demonstrava preocupacao com um habitode Felipe que, havia tempos, causava constrangimento na classe: sempreque o mestre lancava uma pergunta a turma, ele respondia, no ato, antesde todo mundo. ”Melhor ele mudar isso”, aconselhou o professor a MariaConceicao. Ela estranhou, mas, para preservar o filho, aconselhou: ”Naoresponda tanto, e para evitar confusao.”

Em outra ocasiao, o irmao mais novo chegou em casa dizendo a mae que umgaroto queria bater em Felipe porque ele tinha todas as respostas prontas.Diante do desestımulo ao jogo intelectual que aticava sua mente, Felipepoderia ter jogado a toalha ali, desanimado de vez, so que seguiu menta-lizando as solucoes para os problemas, silencioso. O silencio, na verdade,nao o incomodava. Felipe sempre foi mais introspectivo, tımido, na dele;dentro de sua cabeca e que a vida fervilhava.

Foi no 6o ano, o mesmo de sua estreia na Olimpıada, que ingressou em suavida academica Belchior, o professor de Matematica da Escola MunicipalProfessor Avelino Nunes. Sempre se encontravam na igreja, onde Felipepertencia ao grupo de jovens. Belchior lhe apresentou a OBMEP e muitomais. ”Felipe era rapido, absorvia tudo e ia alem dos outros. Aı comecei

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a lhe dar exercıcios mais adiantados e ele resolvia tudo. Seu raciocınio foificando bom, afiado. Era so puxar que ele ia adiante, muito alem, alias,do esperado”, conta o professor, que lembra, com graca, das escapadas deFelipe da propria classe para assistir a do 9o ano, tres series adiante, ondeBelchior tambem lecionava.

Em dia de prova, o menino travava uma batalha com o relogio. ”O problemadele nao era a prova, mas o desafio de resolve-la bem no menor tempopossıvel”, relembra o professor. Felipe reconhece em Belchior uma figuracentral em sua biografia.”Ele foi decisivo”, resume. O professor, de seulado, retribui: ”Eu so tinha o curso de Letras e, por falta de professoresna cidade, fui ensinar Matematica. Com o Felipe, nao tive opcao senaoprocurar uma faculdade e me especializar na materia. Vi que precisavaevoluir”. Como nao havia faculdade em Sıtio do Mato, Belchior fez o cursoa distancia. Continuou, assim, a dar aulas para Felipe no Colegio EstadualNossa Senhora do Rosario, onde ele concluiu o ensino medio – so que destavez, de fısica. ”Ele ia bem em todas as disciplinas”, arremata o professor.Este e um fenomeno comum entre feras da Matematica: o raciocınio logicotende a pavimentar o sucesso em outros campos, segundo mostram aspesquisas.

A mente Matematica de Felipe e certamente fruto de uma combinacao defatores que ja se revelou poderosa na trajetoria de grandes mestres dosnumeros ao longo da historia. Seu talento inato era cristalino para MariaConceicao, a mae, e Quirino Souza Costa, o pai, de 43 anos, gerente deuma loja de material de construcao que parou os estudos no final do ciclofundamental. ”Eu olhava para as coisas que ele conseguia fazer pequeno,com aquela calculadora, e pensava: ’Nao e normal’”. Em Sao Paulo ainda,onde viveu em um sobrado no bairro de Elisa Maria, na Zona Norte, pediapara que os pais lhe apresentassem somas e multiplicacoes com numerosgrandes. Parava, pensava e sempre resolvia, sem se demorar muito.

Para o menino, Sao Paulo era ”rica”– foi a cidade para onde migraramatras de oportunidades Maria Conceicao e Quirino, cada qual sozinho, apropria sorte. Depois e que namoraram e casaram. O irmao Matheus, de15 anos, tambem nasceu ali e logo entrou na brincadeira do primogenito,lhe sugerindo contas cheias de algarismos. Absorta com os dois filhos, amae, que arranjara emprego em telemarketing vendendo telefones fixos(um bom negocio a epoca), parou de trabalhar para exercer a maternidadeintegralmente – aı tambem um esteio para Felipe. Voltaram a Sıtio do Matoquando ele tinha nove anos. A ideia era ter uma vida mais tranquila. MariaConceicao e Quirino viviam com medo da criminalidade paulistana. Aoavistar a acanhada cidade de Sıtio do Mato, Felipe pensou: ”E humilde.”

A evidente aptidao para os numeros, somava-se a curiosidade inesgotavel

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do menino, que os pais, mesmo as vezes sem ter resposta na ponta dalıngua, nao inibiam. Ao contrario: incentivavam como podiam. ”Eu o ouviaatentamente e tentava responder as suas questoes”, diz o pai. A escola naodeu, na maior parte do tempo, o empurrao para o qual Felipe esteve semprepronto, mas, quando ele veio, foi pelas maos de um mestre que enxergouaquilo que Quirino observara antes: o garoto tinha uma cabeca incomum.”Nao era normal”, conclui.

A parte do esforco incansavel, da obsessao pelo resultado, apareceu como tempo. A mae lembra que o filho nunca foi de estudar muito. Pres-tava atencao as aulas e dava-se por satisfeito. Mas isso mudou conformeFelipe foise sentindo duelado e trazido a complexidade da Matematica.”Na Olimpıada, eu estudava as provas antigas depois da aula. Agora, nafaculdade, minha vida esta completamente voltada para a Matematica”,diz Felipe, sem nenhum peso, nem duvida, nem drama. ”Estou fazendoexatamente o que quero.”

A ciencia ja concluiu que estımulos fornecidos desde cedo aqueles de talentoespecial para a Matematica podem ter efeitos poderosos e longevos. Emnenhuma outra fase da vida, as pessoas estao tao propensas a ser criativascom os numeros. ”Os estudos confirmam que, ate cerca de 20 anos, os jovensainda nao mecanizaram os caminhos para solucionar os problemas, o quedeixa o cerebro mais livre para o exercıcio da criatividade, algo essencialneste campo”, afirmou o alemao Martin Grotschel, da Universidade Tecnicade Berlim. Muitos genios da Matematica vieram a tona na adolescencia.Com 16 anos, o frances Blaise Pascal (1623-1662) criou seus primeiros teore-mas na area da geometria. O americano John Nash escreveu sua tese sobrea teoria dos jogos aos 21 anos. Levou o Premio Nobel de Economia. Felipe,que nao e muito dado a literatura – ”nunca me dediquei a isso, mas li AVolta ao Mundo em 80 dias, e gostei”– adora historias sobre a genialidade.

Ele estava em casa, em Sıtio do Mato, com a mae, o pai e o irmao, quandorecebeu o telefonema que reprogramaria sua vida. Felipe ouviu do outrolado da linha:

”Queremos que voce venha fazer o vestibular da Fundacao Getulio Vargas,no Rio de Janeiro. Se passar, ganha uma bolsa mensal de 2.000 reais.”O pairecebe 1 300 reais por mes. Achou que era bom demais para nao ser trote.

Nao era. O plano anterior, tracado cuidadosamente com os pais, era segraduar na Universidade de Brasılia, a capital mais proxima de Sıtio doMato, distante 754 quilometros de sua casa. Cogitava cursar engenharia ouciencias contabeis. Mas a chance que lhe surgia naquele instante pareceuirrecusavel, apesar de deixar os pais inseguros ao imagina-lo tao longe.

Felipe foi pescado entre estudantes de origem pobre com elevada perfor-

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mance na OBMEP – tao alta, em seu caso, que ele acabou sobrevivendo apeneira ainda mais estreita: foi selecionado pelo Programa de IniciacaoCientıfica da Olimpıada, o PIC, e depois no evento da Olimpıada conhecidocomo Encontro do Hotel de Hilbert, onde passou uma semana imerso emMatematica. ”Nesse encontro, Felipe foi escolhido para sentar a mesa commais vinte alunos e os ministros da Educacao e da Ciencia e Tecnologia. Eudisse a ele: ’Nunca esconda de onde veio’”, orgulha-se Quirino.

Passados todos os crivos, o jovem embarcou enfim em longa viagem parao Rio de Janeiro para fazer o seu vestibular – carro ate Bom Jesus da Lapa,onibus ate Brasılia e de la o aviao em um periplo de quase doze horas. Foifazer a prova na cidade que mal conhecera quando recebeu seus sucessivosouros. Nao havia dado tempo nem de pisar na areia da praia.

A mae o acompanhou desta vez. No final da primeira prova, ele, seguro,lhe disse: ”Mae, pode ir procurando apartamento.”Eram mais de 1.000candidatos para 24 vagas, e ele ficou em 27o. ”E aı que voce sente que umabase escolar mais fraca faz diferenca. Tive dificuldade em ingles”, rememoraFelipe. Informaram, no entanto, que a probabilidade de entrar era enorme.Sempre ha desistencias, diziam. Em duas semanas, ja impregnado da ideiade fazer o curso no Rio, veio o telefonema confirmando sua entrada. Elecomemorou.

Logo ao chegar na cidade e na faculdade, o menino chamado de ”pau-lista”pelos colegas teve uma sensacao que raras vezes lhe viera: ”Acheia minha turma.”Todos amavam Matematica, e isso nao era estranho. Oentusiasmo com a novidade o fez experimentar o mar, andar de bicicletae ouvir Beethoven na Sala Cecılia Meireles. Atualmente no 3o perıodo dafaculdade, Felipe esta mais mergulhado do que nunca nos afazeres que aMatematica lhe impoe. Diz que que nao tem tempo de sair nem de namorar.Lazer e pizza de frango com catupiry. ”Estou focado”, explica com a falamansa, tranquila.

Na republica da Praia de Botafogo, compartilhada entre futuros matematicose economistas, codigos bem estabelecidos regem a rotina dos seis univer-sitarios. Cada um tem a sua tarefa e todos concordam com a ideia de queaquele e um lugar de estudos, e o ambiente para tal deve ser zelado. Musica,nem pensar. Filmes, series, cada um ve a seu tempo –se e que ve – no com-putador. Nos finais de semana, as vezes da-se a tregua para uma partida dexadrez ou domino. Felipe tambem gosta de games, daqueles que envolvemestrategia. Em um movimento mais radical, vai ate a praia.

Colega da Matematica, Robert Kennedy (”meus pais puseram esse nome porfalta de imaginacao”, explica), 18 anos e quatro medalhas de ouro na OBMEP,divide um quarto singelo com Felipe: duas camas, dois criados mudos, um

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armario e estantes –nada de quadros ou bibelos. A primeira impressao queRobert Kennedy teve do amigo foi de ”uma pessoa tımida”.”Agora ele estamais espontaneo”, diz. ”E tranquilo conviver com ele”, fala outro colega derepublica, Matheus Paes, 18 anos. As piadas na casa, como nao poderia serdiferente, giram em torno de trocadilhos matematicos: ”derivado do leite”,por exemplo, faz lembrar as derivadas da Matematica, e por aı vai. Nadaem que um reles mortal encontre significado ou graca.

Ha algumas maneiras para medir o nıvel de um matematico em formacao.O professor Cesar Camacho, ex-diretor do IMPA e atual diretor da Escola deMatematica Aplicada da FGV, decidiu submeter seus alunos, entao calouros,a um curso de Analise Real, assim definida por ele: ”E o calculo diferencialensinado de maneira rigorosa, perfeita, logicamente completa.”Quem cravaacima de 8,5 no exame aplicado ao final desse curso esta preparado para adificuldade das disciplinas de mestrado e doutorado. Felipe tirou 9.

E um feito para poucos. Vencedor da medalha Fields, o Nobel da MatematicaArtur Avila resolveu todos os problemas de Analise ainda na escola. Felipee os colegas serao testados agora em uma prova que afere capacidadesalguns degraus acima. ”Queremos testar os limites deles”, diz Camacho.Casos como o do medalhista Artur sao inspiradores para a turma de Felipee para um monte de meninos e meninas que ja nascem em guerra coma Matematica. Os herois brasileiros costumam emergir dos gramados dofutebol – e nao do mundo da ciencia. Pois, em certa medida, Artur virouıdolo – e isso e bom.

Na baiana Sıtio do Mato, onde Felipe passou boa parte de sua infanciadepois dos primeiros anos em Sao Paulo, nao ha tradicao de ensino dequalidade – muito menos de Matematica, disciplina que a maioria dosalunos nao entende nem gosta, ou detesta. O Indice de DesenvolvimentoHumano (IDH) do municıpio e 0,564 (bem abaixo da media brasileira, 0,754).Ate menos de duas decadas atras, nem ensino medio havia na cidade: asopcoes eram fazer o magisterio ou nada. Por isso a mae de Felipe seguiu omagisterio, que nunca exerceu; o pai parou antes.

Muitos dos atuais estudantes de la nao encontram incentivos em casa nemna escola para avancar. Foi neste improvavel cenario que o talento de Felipegerminou. Alem dele, so um outro estudante de Sıtio do Mato entrou na listada Olimpıada, com uma mencao honrosa, o premio que precede o bronze– nao havia notıcia de nenhum feito parecido nesta regiao Oeste da Bahia.Quando Felipe comecou a ganhar medalhas em serie, era como se a cidadenao soubesse o que fazer com aquele fato inusitado. Aos poucos, o meninocalado virou uma heroica excecao, motivo de orgulho em um vilarejo carentedisso. Mas, ha dois anos, ninguem mais no municıpio se classificou paraa OBMEP. Isso preocupa o professor Belchior, que esta se empenhando em

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espalhar o exemplo do garoto cujo talento ajudou a projetar. ”Quero outrosFelipes aqui”, ele fala.

Ir bem na Olimpıada de Matematica nao significa memorizar formulas eaplica-las a problemas previsıveis, mas entrelacar criatividade e logica parasolucionar situacoes palpaveis. Quando Felipe esteve frente a frente com suaprimeira prova, achou bem mais difıcil do que o conteudo que vira na escola.Era menos linear, mais abstrato. Ele nunca correlacionara as ideias daquelemodo. Quando pos na cabeca que levaria um ouro, depois daquele bronzesem festa de premiacao, estudou este tipo de problema, treinou e treinou,sempre depois do horario escolar, com o afinco de quem quer porque quero podio. ”Mudou minha maneira de enxergar a Matematica”, diz, destavez fazendo eco com milhares de jovens que assim foram despertados paraos numeros e, como Felipe, abriram brechas em meio a um amontoado deobstaculos. Professores tambem encontraram na materia mais sentido eprazer depois da Olimpıada.

O sucesso da OBMEP em envolver jovens com a Matematica, encontrar men-tes de alto potencial e poli-las com o incentivo certo, merece ser observado,especialmente em um paıs que repudia a materia. Ha muitos depoimentosde alunos que detestavam a Matematica e foram fisgados por ela porque sesentiram incentivados a pensar, a se divertir e a aplica-la em seu dia a diaenquanto estudavam para a prova. O desafio de levar uma medalha e outromotor. Ha um detalhe importante sobre a Olimpıada: ela custa pouco maisde 2 reais por aluno – um caso de baixo investimento e largo impacto.

A experiencia brasileira no ensino da Matematica tem sido pouco exitosa.Pesquisas mostram que os aspirantes a professor da materia costumamsair da banda dos 30% piores alunos do ensino medio – eles escolhema Matematica mais pela facilidade de acesso a um curso superior poucodisputado do que por gostarem verdadeiramente dela. E justamente ocontrario do que ocorre em nacoes mais desenvolvidas, onde ensinar dauma perspectiva de carreira e prestıgio, e os melhores buscam estar a frentede salas de aula.

No Brasil, os recem-formados se jogam a frente da classe, na maioria dasvezes, sem o preparo necessario para reverter algo que se tornou cultural: aideia de que a Matematica e chata, macante, um punhado de formulas semqualquer sentido. Por inexperiencia e inepcia, eles acabam contribuindopara consolidar a rejeicao geral. O casamento do despreparo de um ladocom o desinteresse de outro tem resultado em geracoes de brasileiros queinvariavelmente ocupam o pelotao de tras na comparacao internacional: osalunos daqui aparecem sempre entre os ultimos em Matematica no Pisa,a prova da OCDE (organizacao que reune os paıses mais ricos), e nao hanenhum sinal no horizonte de medio prazo de que terao condicoes de deixar

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a rabeira.

Nao e de espantar que Felipe, o craque da Matematica, mais tarde ”o meninode ouro”de Sıtio do Mato, se sentisse ”anormal”.”Ficava observando osoutros para entender o que era afinal ser normal”, conta. Ele nao era excluıdo– gostava de jogar futebol, especialmente na defesa ou na posicao de goleiro,e isso o inseria socialmente. E torcedor do Corinthians. Mas a Matematica foiuma viagem quase solitaria, quando nao escondida, um mundo a parte queele discretamente cultivava. Ate virem as medalhas. A primeira de todas,aquele bronze, nao causou grande alarde. No ano seguinte, o primeiro ourofez muita gente da cidade afirmar, com certo desdem: ”Foi sorte”. So queaı veio mais uma e mais uma e mais uma. E Felipe virou, quase que porteimosia, um sımbolo do que Sıtio do Mato deveria perseguir. No ColegioEstadual Nossa Senhora do Rosario, uma foto sua emoldurada, quandoainda era tetracampeao olımpico, esta pendurada com destaque e orgulho.”O entusiasmo e a maior forca da alma”, diz o texto junto a imagem.

Com autocrıtica demolidora, Felipe sabe que ainda falta chao para se tornarum grande pesquisador da Matematica, como ele planeja. ”Sera que algumdia vou chegar a um nıvel de raciocınio realmente fascinante, que faca adiferenca?”, se pergunta. O simples fato de se sentir perturbado por estaquestao o credencia, ao menos, a disputa. O menino que ainda aprendea equilibrar o corpo longilıneo em seu 1,94 metro ganhou envergadura.Quando conquistou seu primeiro ouro, aos 12 anos, Felipe entrou em umaviao tambem pela primeira vez, rumo ao Rio de Janeiro, para receber –desta vez, sim – sua medalha com toda a pompa no Theatro Municipal. Ja abordo, gravou um pequeno filme em que dizia: ”Mae, olha, estou voando”.E continua.

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Davila Carvalho MeirelesDores do Turvo (MG)

Paula Autran

Davila Carvalho Meireles entra na pequena sala da Fundacao Getulio Vargas,no Rio de Janeiro, e logo desfaz a ideia de monstro da Matematica que suassete medalhas na Olimpıada Brasileira de Matematica das Escolas Publicas,podem transmitir. No melhor sentido. Do “alto” dos seus 18 anos, a ex-alunarecordista de medalhas da Escola Estadual Terezinha Pereira, na distanteDores do Turvo, na Zona da Mata de Minas Gerais, chegou a ser em 2012 amais bem classificada em seu estado e a ter o segundo melhor desempenhoem todo o paıs. Isso em um universo de mais de 19 milhoes de estudantes(quase 10% da populacao brasileira) de mais de 46 mil escolas (localizadasem 99,4% dos municıpios brasileiros). Ela agora e caloura bolsista do cursode Economia da FGV. Dona de cinco ouros e dois bronzes – um feito e tantona escola que ja acumula 109 medalhas e se destaca em um estado que lideracom folga o ranking de premiacoes na Olimpıada –, ela nao chega a ter1,60m de altura. Mas, com talento inversamente proporcional a estatura, equando conta sua historia que ela cresce.

“Quanto eu meco e a pergunta que todo mundo faz. Mas sou pessima. . . Naoem numeros, mas de memoria. Nao me lembro nunca”, ri a moca bonita,de longos cabelos pretos, que timidamente manuseia o celular. “Sempretive facilidade com a Matematica, mas era muito vacilona. Era pessimapara estudar, para manter o foco. Rotina e algo difıcil para mim. Tinhaum professor que dava pontos de vista: deveres que valiam ponto no finaldo bimestre. Nunca recebi esse ponto. Sempre fui bem em provas, porqueprocurava entender a materia em vez de decorar. Estudava de vespera, pararevisar, e era o suficiente. Tirava notas altas, mas era pouco organizada”.

Filha mais nova do pedreiro Joao Muniz Meireles e da dona de casa VilmaLucia de Carvalho Meirelles, Davila cresceu na roca, na localidade de AguasClaras, a 13 quilometros do centro de Dores do Turvo. Seus pais, com ensinofundamental incompleto, vendem o leite que tiram das poucas cabecas degado que tem a empresas de laticınios da regiao. Mas foi com eles quea menina aprendeu o que chama da Matematica do dia a dia. Com seuJoao, por exemplo, conheceu calculos basicos, principalmente relacionadosa dinheiro, como multiplicacao e juros. “Mesmo sem ter estudado muito,minha mae tambem e boa em Matematica. Quando comecei a aprendera fazer contas de dividir e de multiplicar, ela me ajudava. Mas como eutinha facilidade de pegar a materia, quase nao precisava. Ja meu irmaoe pessimo. Ate para somar”, entrega ela sobre David, de 24 anos, que

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parou de estudar no segundo ano do ensino medio e hoje tem uma pequenaserralheria. Ele e Davila – cujo nome a mae viu em uma revista e resolveudar a filha porque era diferente e combinava com o do irmao – foram alunosda Escola Municipal Launita Marotta, ali perto, durante os anos iniciais doensino fundamental. Depois, precisavam pegar o unico onibus que levavatodos os jovens estudantes daquela area rural, sacolejando por mais de umahora na estrada de chao, ate o centro de Dores do Turvo para a TerezinhaPereira:

“A gente so tinha como ir de onibus. Eu acordava muito cedo, mas sempreme atrasava para tudo. Entao, perdia muita aula”, diz.

Nem isso foi empecilho para a menina que, em um dos anos do ensinomedio, so tinha um caderno misturando todas as materias. Assim que entrouna Terezinha Pereira – unica opcao escolar para alunos dorenses do sextoano do ensino fundamental ao terceiro ano do ensino medio, justamente osegmento que disputa a Olimpıada –, Davila ficou sabendo da competicao,da qual todos os alunos da escola participavam desde sua criacao, em 2005.O ano era 2011, e ela estava na antiga quinta serie (o atual sexto ano).

“Passei na primeira fase e contei para meus pais”, lembra ela, empolgadacom a possibilidade de se destacar na segunda e, assim, ganhar premios(como camisas oficiais da Selecao Brasileira, celulares e tablets) doados porex-alunos, hoje profissionais de sucesso, e fazer o Programa de Iniciacao Ci-entıfica, uma oportunidade dada aos estudantes que conquistam medalhasna OBMEP. “Aı minha mae procurou saber mais sobre o assunto com umaamiga, que e professora, e com minha tia, que da aulas de Matematica. TiaVanimarcia disse logo: ‘isso e muito difıcil! E muito improvavel ela passar’”.

Vanimarcia, a tia por parte de mae que, por ser uma das mais novas dafamılia, viveu outros tempos e teve a chance de estudar, nao estava sendoexatamente pessimista. Ate entao, nao passava pela cabeca de ninguem verum dorense entrar (e se destacar) no mapa da Matematica olımpica. Ganharum ouro na OBMEP significava ficar entre os 500 melhores colocados dopaıs. Mas a sobrinha fez a prova mesmo assim, so com o que sabia, semgrandes preparos. E, em sua estreia, conseguiu uma medalha de bronze. Foio impulso que faltava para ela decolar. Quer dizer, uma parte deste impulso.A outra foi o fato de seu vizinho, amigo e colega de turma Evandro JuniorFirmiano da Silva ter debutado na Olimpıada com um ouro.

“Eu e ele sempre fomos meio competitivos em nota na escola, porque sempretivemos um nıvel similar. Aı pensei: ‘se ele consegue, eu tambem vouconseguir’. No ano seguinte, 2012, nos dois ganhamos ouro, mas fiquei como segundo lugar nacional”, gaba-se ela, que atribui o feito mais a confiancaque adquiriu com a primeira medalha e as dicas dos professores do que

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propriamente aos estudos: “No primeiro ano, nao achei que fosse passar”.No saldo final da disputa entre Davila e Evandro, a moca levou a melhor,terminando a competicao com uma medalha de ouro a frente do amigo,que hoje cursa Engenharia Agrıcola e Ambiental na Universidade Federalde Vicosa (MG) – sem contar outras quatro medalhas ganhas por ela naOlimpıada Brasileira de Astronomia e Astronautica (OBA), mas esta ja eoutra historia. Os dois sao os maiores premiados da escola.

Ex-professor de Matematica tanto de Davila e Evandro quanto de Va-nimarcia, Geraldo Amintas, o Guingo, nao se surpreendeu com a alunade ouro, que sempre considerou um ponto fora da curva. Ele se lembra bemde como a menina gostava da materia, embora nao fosse muito chegadaem estudar. E de como sempre teve um raciocınio muito desenvolvidoe voltado para os numeros. Nem sempre tirava a nota maxima. Mas oserros normalmente aconteciam por um descuido, uma troca de sinais, umdetalhe. Nao por nao achar o caminho da resposta certa. “Raramente agente propunha um problema para o qual ela nao chegasse a uma solucao.Davila tinha prazer em pegar um problema desafiador. Sentir-se desafiadamexia muito com ela. E o prazer foi essencial para diferencia-la dos demais.Ela estudava menos porque estava em sua zona de conforto. Mas, se naofosse tao relaxada, teria resultados ainda melhores”, avalia o mestre, com 38anos de experiencia na Terezinha Pereira e 14 na OBMEP.

Dores do Turvo ganhou muito com Davila e seus colegas de escola. E o quese pode notar logo na entrada da cidade – que tem 231 km2 e pouco mais de4.800 habitantes, a maioria ainda morando na Zona Rural –, em uma dasplacas que avisam: ”Dores do Turvo, a trilha do ouro da Matematica”. A 223quilometros de Belo Horizonte, seu nome e uma homenagem a padroeirada cidade, Nossa Senhora das Dores, e ao principal rio da regiao, o Turvo.Ate 2008, so era conhecida por sua economia baseada na agricultura e napecuaria leiteira. Mas naquela ocasiao, sua unica escola estadual conquistoua primeira das 21 medalhas de ouro da OBMEP que viria a acumular ate2017. Pronto, estava pavimentado o caminho de estudantes como Davila,que aquela altura ja estava em sua segunda medalha dourada.

Capitaneada pela Terezinha Pereira, com seus cerca de 500 alunos, o pacatomunicıpio – cercado de montanhas por todos os lados, com direito a pracaprincipal, coreto, igreja matriz e charretes como um dos meios de transporte,mas sem agencias bancarias, cinemas nem teatros – teve o melhor desem-penho em um balanco de nove anos feito pela OBMEP em 2013, quandotambem alcancou o primeiro lugar no ranking daquela edicao. Hoje tem 30medalhas de prata e 58 de bronze, alem das 21 de ouro e de 184 mencoeshonrosas, acumuladas desde 2005. So em 2017, foram quatro douradas,quatro prateadas e sete de bronze, mais 17 mencoes. Isso em um estadoque acumula o maior numero de medalhas de ouro em todas as edicoes da

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Olimpıada e que sempre ficou em primeiro lugar na soma das medalhas deouro, com quase um terco das 500 medalhas mais valiosas.

Os bons resultados acabaram se refletindo tanto no Indice de Desenvolvi-mento da Educacao Basica (o Ideb, que mede a qualidade do aprendizadonacional) quanto no Exame Nacional do Ensino Medio (Enem). No primeiro,cuja prova e realizada de dois em dois anos, a evolucao da Terezinha Pe-reira pode ser comprovada quando se comparam os ındices alcancados pelaescola em 2007, que foi 4, e em 2017, quando chegou a 5,6. Ja no Enem, aTerezinha Pereira ficou em primeiro lugar em Matematica entre todas asescolas publicas nao seletivas do Brasil em 2014, mas, embora mantendoum bom rendimento, nao voltou mais a lideranca desde entao. Um casoa ser estudado, pelo conjunto da obra. Tanto que, em 2013, o professorCesar Camacho – entao diretor do Instituto de Matematica Pura e Aplicada,instituicao responsavel pela Olimpıada – esteve na cidade de IDH 0,629(ocupando a 3501a posicao entre os 5.565 municıpios brasileiros) para en-tender o que fez a Terezinha Pereira se destacar nacionalmente. “Percebique existe uma corrente benefica que nao somente envolve os professores ea direcao da escola, mas ate o prefeito”, diz ele, que levou consigo o entaoministro da Ciencia, Tecnologia e Inovacao, Marco Antonio Raupp, tambemmatematico, para a prova dos nove.

Na ocasiao, o prefeito de Dores do Turvo era Ronaldo Marotta de Souza,o Roninho, que ajudava disponibilizando transporte quando a escola pre-cisava fazer algum deslocamento dos alunos e fornecendo apoio logısticopara a realizacao de eventos. Ja o governo de Minas Gerais – na epoca, ogovernador era Antonio Anastasia – dava incentivos aos medalhistas doestado e aos seus professores, o que deixou de acontecer nas ultimas duasedicoes da OBMEP. Por incentivo, leia-se doar notebooks e, para os que ja ha-viam recebido essa premiacao na edicao anterior, uma quantia em dinheiro(R$ 1.000, na epoca). Os professores, por sua vez, recebiam R$ 1.500 reaisquando havia medalhistas na escola. Mas tudo isso ficou no passado.

Geraldo Amintas – que se tornou um dos professores mais premiados daOBMEP – foi destaque por ocasiao da passagem dos 10 anos da Olimpıada,em 2014, junto a outros nove colegas do Brasil. Sem contar o trofeu Fernandode Azevedo – Educador do Ano 2013, concedido pela Academia Brasileirade Educacao. Alem disso, foi condecorado com a maior honraria concedidapelo governo de Minas Gerais, a Medalha da Inconfidencia.

Ele conta que a ate entao desconhecida Escola Estadual Terezinha Pereiranao tinha tradicao alguma na materia que leciona quando participou daprimeira edicao da OBMEP, em 2005, e acabou ficando com cinco mencoeshonrosas. “Aı vimos como os meninos tinham potencial. E, no ano seguinte,comecamos o investimento. De 2010 para frente, nos tornamos referencia

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nas olimpıadas, o que para nos foi um marco. Conseguimos mexer coma autoestima dos alunos. Eles passaram a ver que, se sao bons em umacompeticao nacional, podem muito bem entrar em um curso de maiorcomplexidade”, explica o professor, ciente de que as medalhas representambem mais do que um pedaco de metal. “O mais importante e que elas sejamo instrumento para transformar a vida desses alunos, abrindo para todosnovas perspectivas de futuro”.

O “investimento” a que Amintas se refere se traduz em material didaticoe reforco escolar. Todos os alunos da Terezinha Pereira fazem a primeirafase da Olimpıada “sem compromisso”, e os que passam para a segunda,alem de assistir as aulas normais pela manha, passam ate cinco horas apos oturno escolar debrucados sobre o material de estudos fornecido pela OBMEP.Tambem sao usadas listas com exercıcios das competicoes anteriores parapreparar os estudantes para o tipo de prova proposta pela Olimpıada. Aregra e: nada de decorar formulas. A metodologia investe no raciocıniologico. Um prato cheio para Davila.

“Sao questoes mais criativas, mais logicas. Eu, como tenho pouca memoria,prefiro fazer este tipo de prova, em que voce tem que raciocinar na hora”,explica ela, que, por ter tirado logo de cara um bronze, comecou a se in-teressar mais e quase virou o que chama de “uma cdf”. Ate porque naTerezinha Pereira a cobranca era maior, as materias eram mais difıceis doque na escola rural. E ela comecou a achar este negocio de escola muito inte-ressante: “Adoro aprender”. Alem disso, teve a oportunidade de aprimorarseus conhecimentos em seis edicoes do Programa de Iniciacao Cientıfica daObmep – direito conquistado com suas medalhas na Olimpıada. Davila fezas duas modalidades possıveis do PIC. Tanto a presencial, com encontrosna cidade de Uba ministrados por professores da Universidade Federal deVicosa, quanto a distancia, com aulas virtuais: “O ensino no PIC era muitoelevado e me deixava cada vez mais interessada”.

A jovem apegada ao concreto e pouco afeita a probabilidades a esta alturaja sonhava. E alto. Por meio das olimpıadas, percebeu que a Matematicaja estava em sua vida, mas ainda nao sabia muito bem o que fazer com ela.Professores, como Guingo, falavam de mil oportunidades e a estimulavama focar em algumas. “Aı comecei a pensar: o que eu quero fazer? Sabia quetinha que ter um pouco de calculo, mas, como tinha facilidade com outrasmaterias, entre elas geografia e biologia, nao fazia a mınima ideia do quequeria realmente”, conta ela, que chegou a fazer uma lista de possibilidades,encabecada por engenharia e arquitetura.

No ensino medio, Davila sentiu o baque de, no primeiro ano, receber denovo um bronze em vez de um ouro. Nesta fase, o nıvel de dificuldade daprova aumenta, o numero de medalhas e reduzido, e ela nao conseguiu ficar

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entre os cem melhores do Brasil. Por pouco tempo, ja que voltou ao ouronos dois anos seguintes.

Era chegada a epoca de, finalmente, resolver o problema mais difıcil que seapresentava: fazer vestibular e Enem para estudar o que e onde? No Enem,resolveu focar em engenharia civil, que pretendia cursar ou na UniversidadeFederal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, ou na Universidade Federalde Juiz de Fora. Correndo por fora, estava uma oportunidade para estudarEconomia na Fundacao Getulio Vargas, no Rio de Janeiro, por meio de umprograma do Centro para o Desenvolvimento da Matematica e Ciencias, cri-ado em 2016. Se passasse na prova, considerada bastante exigente, receberiaisencao de mensalidades durante os quatro anos do curso (as quais ficariama cargo da propria FGV), mais uma bolsa, bancada por doadores privados,para se manter no Rio. Inscreveu-se tambem.

Davila ja estava com 17 anos em 2017, e, para facilitar seus estudos – evi-tando perder horas do dia entre a zona rural e o centro de Dores do Turvo– foi morar mais perto da escola e do cursinho pre-vestibular que fazia, nacasa de uma tia paterna. “Eu chegava meia-noite do cursinho e tinha queacordar as 6h30m para a aula. Nao dava para dormir durante o dia”, re-lembra ela, que, no pouco tempo livre que sobrava, divertia-se com amigosnos barzinhos, pizzarias e lanchonetes da cidade. Nesta epoca, Davila soia para a casa dos pais aos domingos. Quando dava, porque as vezes tinhaaulas e simulados nos fins de semana. Ja era um estagio para o ano seguinte,quando sairia da cidade de uma forma ou de outra.

Quando se inscreveu para o Enem, Davila cometeu um erro. Daqueles queo professor Amintas atribuiria a falta de atencao com que as vezes faziaseus deveres e testes. Ela preencheu a ficha como se fosse responder asquestoes so como um treino, sem concorrer a uma vaga. Com isso, emboratenha obtido um resultado que lhe possibilitaria entrar em uma das federaisque almejava, suas notas nao valeram. “Um amigo advogado quis meajudar, mas me disseram que nao ia adiantar nada eu entrar com uma acaojudicial a fim de tentar fazer valer os pontos”, conformou-se. “Ate passarno vestibular daqui da FGV, eu nao tinha certeza ainda se era isso que euqueria. O resultado saiu em outubro do ano passado”. E ca esta a tımidacaloura de Economia, encarando a mudanca nao so de cidade como de vida.

Para permanecer no curso pelos proximos quatro anos, Davila precisa man-ter o coeficiente de rendimento 7, o que nao e pouca coisa. Esta matriculadaem seis materias neste primeiro semestre (uma delas a temida Calculo 1),e ja sentiu como o ritmo da faculdade e bem mais acelerado do que o daTerezinha Pereira. “Aqui voce tem que ter uma rotina de estudos e nao podenao fazer o dever de casa. Tem que fazer, e por conta propria, porque naovai ter um professor te cobrando”, ja entendeu. Cesar Camacho sabe que

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a mudanca e radical. “Tivemos muita preocupacao em dar um apoio maisproximo, mais humano, a esses estudantes no comeco, mas, quando chegamao segundo ano, todos se transformam. Eles aprendem a administrar melhoro tempo para fazer outras coisas alem de estudar”, garante o professor.

Davila divide um apartamento com outras duas estudantes, uma de SaoPaulo e outra de Santa Catarina, que vieram para a FGV pelo mesmo projeto,so que para estudar Matematica Aplicada. O predio fica no Flamengo, pertoda faculdade, que e na Praia de Botafogo. “Aqui nao estou me atrasandopara as aulas. Comecei acordando no primeiro toque do despertador. Agoraele toca umas quatro vezes e eu ainda estou dormindo. Acho que o momentoem que vou me atrasar ainda vai chegar. Mas espero contornar a situacao”,diverte-se.

A menina de Dores do Turvo ja tinha vindo ao Rio umas duas vezes (ela naose lembra exatamente quantas), em virtude das premiacoes na Olimpıada.Sim, porque as cerimonias de premiacao da OBMEP costumam ser emenderecos nobres, como o Theatro Municipal ou a sala principal da Ci-dade das Artes, e com a presenca de presidente, ministros, governadores,prefeitos. . . E Davila ja havia vindo buscar na cidade algumas das suasmedalhas, ao lado de colegas da delegacao de Minas que sempre chamavamatencao ao subir no palco. Afinal, em meio a alguns estados que nao temnenhuma medalha dourada – e sao representados por seu medalhista deprata com melhor pontuacao –, quando se anuncia ”Minas Gerais!”, e umafila interminavel de jovens a espera de suas medalhas.

Em uma das vezes em que esteve no Rio, Davila veio com outros alunos daescola para um passeio turıstico. Em outra, foi ao IMPA. Agora, adapta-se aodia a dia carioca. Nao acha que morar sozinha em uma cidade grande sejamuito difıcil, mas seu maior aprendizado no momento e como administraro proprio dinheiro. “Eu nunca tinha pagado as contas. Agora estou vendoo valor do dinheiro, ne? Porque aqui e tudo mais caro, principalmente osprodutos de Minas, como queijo, leite. Quando seu pai paga as contas, vocenao acha nada caro. Mas quando quem paga e voce. . . ”, diz o prodıgio daMatematica.

Nas horas livres do estudo, cada vez mais escassas, ela tambem tenta equa-cionar o lazer com a roupa para lavar e passar, a faxina e a louca. Gosta de irao Aterro, a barzinhos na Lapa e a sorveterias. De praia, apesar de mineira,nao faz questao. E namorado ainda nao tem. Tambem nao faz planos delongo prazo, nem no que diz respeito a onde quer morar e trabalhar quandoestiver formada. So sabe que nao sera em Dores do Turvo: “Como diz aminha mae, sair de casa e sair mesmo. Nao vai dar para voltar. Minhamae me deu a maior forca para sair, e meu pai tambem. Acho que elesgostaram mais da ideia de eu vir para o Rio do que eu mesma. Ficaram

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muito orgulhosos”.

“Davila sempre foi muito inteligente. Tem um talento que e dela mesma, naopuxou a ninguem. E as olimpıadas incentivaram muito o sonho dela, queera estudar fora”, diz o pai, Seu Joao, que nunca se atreveu a opinar sobreo futuro da filha: “Aqui na roca, a gente nunca pensa no que os filhos vaofazer. Foi otimo ela ir. A roca e ruim demais”. Noves fora a saudade, DonaVilma tambem e so alegria com o sucesso da filha: “Agora sou conhecidacomo a mae da Davila, nao e a Davila que e a filha da Vilma”.

A relacao com a famılia, a distancia, esta longe de ser uma questao. Como jaestava morando “sozinha” ha um ano, na casa da tia no centro de Dores deTurvo, e sempre teve liberdade para sair e ficar na casa de amigos, Davila naoproblematiza a saudade. “As vezes, me sinto um pouco diferente, porquemeus amigos falam que ligam para os pais todos os dias. E eu nao tenhotanto essa preocupacao. Minha mae sabe que se acontecer alguma coisade errado, eu ligo. Sempre me virei muito bem”. Ja olhando para Doresdo Turvo pelo retrovisor, Davila segue ciente da importancia da TerezinhaPereira em sua vida. Mas faz graca ao falar serio: “A escola era uma misturade obrigacao, diversao e necessidade. Gostava de ir para ver meus amigos esei da importancia dela para eu chegar ate aqui. Mas e inegavel que as vezesa vontade de ir era mınima”. Por outro lado, a frente, ela reconhece quedificilmente haveria horizonte para alguem como ela sem uma boa escola.

A quem pergunta se ja se ve como uma economista, ela sorri e respondeque ainda nao. Mas diz que esta se adaptando as materias e gostando deentender o mercado financeiro. Ainda nao sabe com que area da economiavira a trabalhar, mas diz que isso surgira naturalmente. “Nao sou de decidiras coisas com muita antecedencia. A vida vai nos mostrando o que e paraser e o que nao e. Nao penso muito no futuro. So no futuro proximo, quandoeu me formar. As coisas mudam muito. Ate o terceiro ano do ensino medio,eu nao fazia a mınima ideia de FGV, de curso de Economia, de vir para ca etal”, diz a menina, que segue em busca de solucoes para as incognitas davida.

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Bruna Fernanda FistarolTaio (SC)

Vanessa Fajardo

Havia se tornado um ritual. Ao terminar a aula, a professora Nislaine olhavapara a melhor aluna da classe e perguntava: “Expliquei alguma novidadehoje?” Ela sabia que a estudante antecipava o conteudo previsto na gradecurricular e estudava sozinha os temas da aula de biologia. Bruna, porsua vez, respondia aquela questao timidamente e em voz baixa: “Mais oumenos. . . ”.

Os caminhos de Bruna e Nislaine se cruzaram na Escola de Ensino BasicoLeopoldo Jacobsen, em Taio, cidade de 18 mil habitantes, no interior deSanta Catarina, a 270 quilometros de Florianopolis. Ate entao, no ensinofundamental, Bruna Fernanda Fistarol estudara na escola Hercılio Anderle,que ficava na rua de sua casa, a 20 quilometros do centro de Taio.

Na nova escola, Bruna, entao com 14 anos, chegou com o diferencial de seruma campea da Olimpıada Brasileira de Matematica das Escolas Publicas.Ela havia recebido duas mencoes honrosas uma medalha de bronze, e umamedalha de ouro, premiacao inedita em seu antigo colegio do nıvel fun-damental. A dedicacao da estudante foi instantaneamente notada pelaprofessora Nislaine Lima da Silva Tamanini. Em quinze anos de docencia,nunca tivera uma aluna como Bruna, que so tirava 10. A professora re-conhece ser rıgida para dar a nota maxima – que so leva mesmo quem asurpreende. Foi o caso de Bruna.

Em 2016, Bruna voou alto. Passou para o curso de Matematica Aplicadana Fundacao Getulio Vargas do Rio de Janeiro, com bolsa e tudo. Deixoupara tras a casa da famılia com horta, pes de laranja e tangerina, alemde sete bichos de estimacao (quatro gatos e tres cachorros), para dividirum apartamento no bairro do Flamengo, na Zona Sul carioca, com duasestudantes da FGV. Aos 18 anos, pouco mais de um ano apos de ter saıdo decasa, Bruna acredita que esta adaptada a nova realidade – apesar de aindasentir medo de ser assaltada e de ter saudades da mae, de comida pronta eda roupa lavada.

A catarinense encabulada e inquieta ja quis ser medica. Hoje ve que naoteria afinidade com o curso. Com a Matematica, vive uma relacao de amore odio. Foi em 2010, quando estava na 5a serie (atual 6o ano), que Brunaestreou na OBMEP, promovida desde 2005 pelo IMPA. Ela fez a prova naescola Hercılio Anderle apenas porque, no dia da 1a fase, alguem falou para

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os alunos: “Facam a prova.” E Bruna, sem saber direito do que se tratava, fez.A jovem sempre foi boa aluna em todas as disciplinas, nao tinha predilecaopor nenhuma, mas nesta epoca a Matematica a ganhou, porque possibilitavaque ela desenvolvesse algo de que realmente gosta: o raciocınio logico.

Treze anos depois de ser criada, a OBMEP funciona muitas vezes comoum “trampolim para a fama” por meio dos estudos. E comum que osmedalhistas se tornem “celebridades” em suas escolas e municıpios, viremnotıcia em veıculos regionais e ate sejam recrutados por colegios particulares.Quando participou pela primeira vez da olimpıada, Bruna nao conhecia adimensao da competicao. Fez a prova meio que por fazer e, um ano maistarde, voltou a participar por iniciativa propria. Ganhou mencao honrosanas duas ocasioes. Alias, so soube que o desempenho na 5a serie lhe renderauma mencao quando ja havia feito a prova do ano seguinte.

Os premios foram o incentivo para que corresse atras da medalha de ouro.“Coloquei isso como sonho”, diz. Comecou, entao, a batalha que e apreparacao para este tipo de exame. Pegou o banco de provas antigasda competicao e passou a resolve-las com atencao, disciplina e metodo.Estudava sozinha todos os dias em casa. As vezes, levava duvidas paraos professores ou assistia a alguma vıdeo-aula – recurso ainda escasso nainternet naquela epoca.

No ano seguinte, conquistou um bronze. “Fui a unica premiada da escola.Ate chorei quando soube, parecia impossıvel”, conta. Naquele mesmo ano,Bruna foi convidada a participar do Programa de Iniciacao Cientıfica, desti-nado a medalhistas da competicao. Uma vaga no PIC era muitas vezes maiscomemorada do que a propria medalha na OBMEP. O programa apresentavauma Matematica mais enigmatica, com novas abordagens, e estimulava ointeresse pela investigacao cientıfica. Eram realizadas discussoes em forunsna internet sobre problemas matematicos, alem de dez encontros presenciaisem polos distribuıdos pelo paıs – em sua maioria, universidades.

“Era uma Matematica diferente, que nos fazia aprender a pensar. Na es-cola, eles ensinam a aplicar as formulas; no PIC, voce aprendia a chegar aessas formulas. Alem de tudo, o clima era bem descontraıdo, a gente faziaamizades. Eu gostava bastante”, lembra.

Discutir e resolver charadas era divertido para Bruna. Embora possa pare-cer enfadonho para uma adolescente estar em um encontro para estudar eaprender Matematica, Bruna recorda a experiencia com entusiasmo. A cata-rinense atribui tambem ao PIC a conquista das medalhas de ouro que viriamna sequencia, a partir do 9o ano, justamente porque o programa ajudava adesenvolver o pensamento matematico, combustıvel indispensavel para irbem na OBMEP. Foram quatro medalhas de ouro consecutivas: uma no 9o

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ano e uma para cada ano do ensino medio.

Antes de consultar seu nome na lista dos premiados, ainda no 9o ano,Bruna estava ansiosa. Nao havia um horario exato para divulgar o roldos laureados. “Sao poucos alunos em todo o Brasil que conseguem amedalha de ouro. Eu nao estava acreditando que fosse conseguir, mas seguiestudando”, diz. Ela sabia que, ao ingressar no ensino medio, seria maisdifıcil repetir o feito do ano anterior. O grau de exigencia da prova aumentae o numero de medalhas de ouro diminui. Enquanto para os alunos dosanos finais do ensino fundamental eram distribuıdas 400 medalhas, apenas100 eram reservadas aos estudantes dos tres anos do ensino medio.

Aquela altura, Bruna nao era mais uma desconhecida na escola. Podia naocontar seus feitos a ninguem, mas professores, funcionarios e estudantessabiam que ela era campea na Matematica. Virou notıcia nos jornais dacidade e exemplo de boa aluna. A partir daquelas medalhas, uma conquistacomecou a puxar a outra. “A OBMEP e o PIC abriram as portas para eu virestudar na FGV, e foi por causa da FGV que me envolvi na pesquisa emlaboratorio, de que gosto tanto”.

O primeiro ouro veio com um duplo sabor de vitoria: ela conquistou odireito de participar da pomposa cerimonia de entrega de premios quereune polıticos, autoridades governamentais e do meio cientıfico, alem deestudantes de todo o paıs. Foi assim que Bruna ganhou a primeira viagemde aviao e a primeira ida ao Rio de Janeiro. “Eu tinha 14 anos e estava commedo de viajar de aviao, mas agora eu gosto”. Ela recorda com saudade dascerimonias de premiacao da OBMEP e das comidas dos hoteis luxuosos ondeos medalhistas de ouro ficavam hospedados. “Era meio surreal, os hoteislegais, chiques. E eu encontrava bastante gente com quem so conversavapela internet”.

As medalhas renderam a estudante catarinense a oportunidade de perma-necer no PIC. Seu bom desempenho no programa a levou ao Encontro doHotel de Hilbert, evento que reunia os 200 melhores dentre os milharesde participantes do programa. O desempenho era contabilizado a partirdas notas nas provas e nos foruns virtuais. Bruna esteve nas edicoes de2014 e 2015, que ocorreram em Florianopolis. A programacao do encontroincluıa atividades diversas, dentre elas palestras com grandes nomes daMatematica. Um dos palestrantes de 2014 foi o engenheiro civil e mestreem Matematica Eduardo Wagner, que anos depois se tornaria professor deBruna na FGV.

A notoriedade veio com a Matematica, mas Bruna poderia ter se destacadoem qualquer outra disciplina, pois era boa aluna em tudo, diz sua maeSilvani Mari Fistarol, de 42 anos. Ela conta que o filho mais novo, Leandro,

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de 10 anos, exige mais atencao e vigilancia nas tarefas escolares. Mas Brunanao – sempre “foi adiantada na escola” e so tirava nota dez. E quietinhaate dentro de casa, so se abre com quem tem intimidade. E sao poucos. Osamigos sao os mesmos desde a infancia.

Everson Alexandre, de 18 anos, e o melhor amigo de Bruna desde a pre-escola. So se separaram ha dois anos, quando terminaram o ensino medioe tiveram de deixar Taio para fazer faculdade. Bruna se mudou para oRio e Everson foi morar em Rio do Sul ( SC) para cursar Administracao.Apesar de ambos serem estudiosos, Bruna se destacava mais na escola. Ela oincentivou a estudar Matematica, mas ele descobriu que tinha mais pendorpara as humanas. “A Bruna sentava sempre na frente e so tirava nove oudez. Era vista como “nerd”. Todo mundo sabia que era a mais inteligenteda sala”, lembra Everson.

Nos primeiros dias de aula na nova escola do ensino medio, Bruna e Eversonestavam acanhados. Nao a toa. Deixaram um colegio pequeno da area ruralde Passo Manso para um maior, na zona urbana da cidade. Nao demoroumuito para que a professora Nislaine percebesse que era so uma timidezinicial. Sob a sua tutela, eles tiveram trabalhos classificados para a etapaestadual da Feira de Ciencia e Tecnologia promovida pelo governo estadualde Santa Catarina, nos anos de 2014 e 2015. Estavam entre os 100 melhorestrabalhos de todo o estado. “Viam a Bruna como genio, e ela sofria com essaimagem. Ate hoje a cito como exemplo em sala de aula. Ela tinha incentivoem casa para estudar, mas nao era pressao”, recorda a professora Nislaine.

No primeiro ano do ensino medio, Nislaine, 37 anos, convidou a dupla paraparticipar de um projeto de pesquisa sobre o impacto ambiental causadopelo consumo de carne em Santa Catarina. Eles mergulharam na pesquisa,leram sobre o tema, visitaram criadouros destinados ao abate de animaise capricharam na apresentacao. Foi a epoca em que Bruna flertou com ovegetarianismo. Desistiu. No terceiro ano, Bruna e Everson fizeram umprojeto sobre as superbacterias. “Falamos sobre como as pessoas lidamcom os antibioticos e como a negligencia colabora para o surgimento dassuperbacterias”, relata. A experiencia funcionou como um clique para umnovo olhar para a biologia e para a ciencia.

Segundo a professora – que tem filhos de 7 e 12 anos e considera Bruna“filha de coracao”, ela une extrema inteligencia a empenho maximo. Elalembra, porem, a falta de traquejo social da aluna. “Nao dava para negarque isso fez com que a gente criasse um vınculo”, conta Nislaine, que setornou madrinha de crisma da pupila.

Quando chegou ao terceiro ano do ensino medio, em 2016, Bruna tinha todasas atencoes voltadas para o vestibular. Na epoca, a estudante pretendia

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cursar medicina. Estudava em casa, sozinha. A medalha de ouro na OBMEP

daquele ano, a quarta de sua colecao, foi quase um “efeito colateral” dessapreparacao. “E que nao existe estudar para a OBMEP. Enquanto exercitaseu raciocınio, voce esta se preparando”, explica. Entretanto, dessa vezas coisas nao saıram conforme o planejado. Em junho de 2016, quandoprestou vestibular para medicina na Associacao Catarinense das FundacoesEducacionais (Acafe), em Florianopolis, Bruna nao passou. “Era uma provamuito conteudista e carregada. Mais decoreba que deducao. Um vestibulartıpico para aluno de cursinho”, fala.

Em compensacao, no Exame Nacional do Ensino Medio (Enem), Bruna tevemedia alta, de 759 pontos. O governo federal considera como media 450pontos, pontuacao mınima exigida para participar de programas de auxılioao ingresso no ensino superior, como Prouni e Fies. Bruna fez 900 pontos emMatematica e 940 na redacao que teve como tema “Caminhos para combatera intolerancia religiosa no Brasil.”

Em agosto de 2016, uma ligacao fez com que Bruna chacoalhasse seus planosde vida. Ela foi convidada a prestar o vestibular para o curso de MatematicaAplicada na Fundacao Getulio Vargas, no Rio de Janeiro. Se passasse, ficariaisenta da mensalidade e ganharia uma bolsa mensal para se manter nacidade. Deu certo. Bruna faz parte hoje da primeira turma de onze alunosde um projeto-piloto patrocinado pela FGV. Para a selecao dos participantes,foram utilizados criterios como o perfil socioeconomico e a trajetoria dosalunos na OBMEP. “Sair de uma cidade pequena, do entorno familiar, paraestudar em uma metropole como o Rio nao e uma transicao tranquila. Saoalunos que muitas vezes nao vieram de escolas boas e nao foram preparadospara a universidade”, diz o Professor Cesar Camacho, ex-diretor do IMPA.

Bruna nao havia cogitado estudar Matematica com este nıvel de comple-xidade, muito menos a mais de mil quilometros de distancia de casa. Aomesmo tempo, achava que poderia ser uma boa chance para a sua carreira.“Por que nao?”, pensou. Na epoca, a estudante pediu conselhos a um pro-fessor da escola, que a encorajou a aceitar a proposta. A prova foi realizadaem outubro do mesmo ano.

O nome de Bruna apareceu na segunda lista de chamada da FGV, divulgadano dia 22 de novembro de 2016. Eram 24 vagas e ela foi classificada no 32o

lugar. Em menos de tres meses, deixaria sua cidade natal. No inıcio, os paisde Bruna ficaram temerosos com a possibilidade de a filha se mudar parauma metropole. Eles so conheciam a cidade pelo noticiario, quase sempreligado a violencia. “Mas a gente precisa apoiar as escolhas deles. Bateumedo, mas ela optou, quis ir, e eu achei bom”, resume Silvani.

Chegou, enfim, a hora de se estabelecer em um grande centro urbano e se

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consolidar como aluna de umas das instituicoes de ensino superior maisrespeitadas do paıs. As aulas comecariam em uma semana. “Sair de casafoi bem dolorido, mas eu estava cheia de expectativa. Foi uma mistura devarias coisas, tudo muito intenso. Sofri bastante”, conta a adolescente.

Depois de tres semanas de aula, Bruna retornou pela primeira vez a casados pais para aproveitar o recesso de carnaval. Foi difıcil entrar no aviaopara regressar ao Rio de Janeiro. “Entrei em desespero, nao queria voltar, foibem desgastante”, ela conta. Aos poucos, os sentimentos foram mudando,ela se aquietou, se adaptou, e uma nova rotina se estabeleceu.

O apartamento de dois quartos no bairro do Flamengo, na Zona Sul carioca,fica a 10 minutos de caminhada da faculdade. O imovel e dividido comduas garotas, tambem alunas da FGV. Bruna fica em um quarto sozinha e asdemais (Renata Miranda e Davila Meireles) dividem o segundo dormitorio.Bruna e Renata ja tinham se cruzado nos eventos da OBMEP, como e comumno mundo dos aficionados por Matematica.

Bruna nao vai a praia. Primeiro porque nao e muito fa, segundo porque naoda tempo mesmo. Nos fins de semana, quando nao esta estudando, gostade andar de bicicleta pelas ciclovias de Botafogo e Flamengo, proximas aoapartamento. Tambem gosta de ver os gatos – “de quatro patas”, frisa – noaterro do Flamengo. Em casa, assiste a series – “menos as da moda” –, etoca piano e violao, mas nunca em publico.

Nao gosta de ler – nem se lembra de ter lido um livro ate o final, o queimpressiona por escrever tao bem. Ela atribui suas habilidades com textoaos anos de participacao no PIC, onde nao desenvolveu diretamente a escrita,mas “exercitava bastante o raciocınio”. Nao e viciada em redes sociais e atecogita excluir a conta no Facebook. Diz que ficaria bem um dia sem celular,o que ainda nao aconteceu. As mensagens enviadas a ela via Whatsappnunca sao respondidas rapidamente, a nao ser que sejam mandadas depoisdas 18h.

O desempenho excelente em toda a educacao basica nao livrou Bruna depassar aperto no inıcio da faculdade. A defasagem da rede publica pesou, eela precisou correr atras do prejuızo acumulado ao longo de anos para acom-panhar a turma. “Fiquei bastante apreensiva. A OBMEP nao cobrava muitoconteudo e eu era de escola publica. Minha base era defasada, principal-mente para aprender calculo”, admite. As dificuldades foram amenizadaspelo fato de a Faculdade de Matematica ser pequena, com professores muitoacessıveis, prontos para tirar duvidas. Hoje, Bruna diz que nao tem pro-blema para ombrear com a turma, apesar de o curso “ser difıcil”. Paragarantir a permanencia da bolsa, tem de tirar notas acima da media (7). Oacompanhamento do programa e rıgido.

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Seria obvio imaginar que a aluna que foi destaque em uma competicao deMatematica amasse a disciplina. Mas isso nao e verdade. Bruna vive umdilema existencial porque nao gosta de Matematica, mas quer concluir ocurso. Acredita que, uma vez formada, tera mais facilidade para migrarou aliar os conhecimentos adquiridos a biologia – esta, sim, uma area queadora. “Sao poucas as pessoas que fazem a ponte entre essas duas materias.Acho que, se terminar o curso, terei muita vantagem”, avalia.

O que a atraıa nas olimpıadas era o enigma, o desafio, os problemas em buscade solucao. E com esse mesmo espırito que ela enxerga a biologia. “Querofazer ciencia, descobrir coisas, mas preciso reconhecer que o ferramentalmatematico e muito importante para se diferenciar”, diz.

Faz pouco tempo que ela pisou pela primeira vez em um laboratorio deverdade. Nas escolas por onde passou, nao havia infraestrutura. Doismicroscopios opticos “que nao davam para fazer nada” foram o maximo aque teve acesso no ensino medio. Quando esteve no Instituto Nacional deCancer (INCA), no Rio de Janeiro, ficou deslumbrada. E no estagio em umaou duas tardes por semana, a depender da disponibilidade da orientadora,que se sente feliz. Comecou ali em setembro do ano passado para suprira “abstinencia de biologia”. Tambem cursa uma disciplina de biologiamolecular, como ouvinte, no Instituto Federal do Rio de Janeiro. “Estouaprendendo a lidar com uma bancada de laboratorio, com material genetico,pipetas. E a coisa que eu mais gosto de fazer”, reconhece.

O estagio foi ideia do professor Cesar Camacho. “A Bruna e muito espe-cial. Poderia estudar onde quisesse e optou por vir para a FGV. Ela, noentanto, sempre nos disse que estava interessada em fazer coisas ligadas abiologia molecular. Eu diria que o futuro dela e fazer doutorado no exterior.Provavelmente sera uma biologa com uma formacao extraordinaria emMatematica”, diz Camacho.

O INCA trabalha com pesquisas de mutacao em genes relacionados ao cancer.La, Bruna diz que encontrou uma nova famılia, alem de “bacterias, geis deagarose e moleculas”. Ela se empolga quando fala de clonagem, genes ecelulas. Ao mesmo tempo diz que os experimentos por enquanto sao soaprendizagem, que ainda esta longe de fazer pesquisa.

“Amo biologia molecular. As moleculas sao tao inteligentes que chega a serhumilhante. E incrıvel ver como uma enzima funciona”, diz. Nas ferias dejulho, Bruna voltara a Passo Manso, e sua nova gatinha de estimacao, Lily,deve ir junto. Ela pretende se desligar um pouco das responsabilidades decuidar de uma casa, da graduacao difıcil e dos dilemas sobre o que fazerno futuro. Quer aproveitar o clima de vida no interior, os pais, os bichos, evoltar a ser apenas filha, sem ter de ficar pensando, pelo menos por ora, nas

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equacoes da vida adulta.

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