Epidemia de Suicídio Entre Os Guaraní - Kaiowá

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  • OPINIO

    Epidemia de Suicdio entre osGuaran-Kaiw: Indagando suas Causas eAvanando a Hiptese do Recuo Impossvel

    Anastcio F. Morgado*

    O suicdio de seis jovens Guaran-Kaiw num perodode duas semanas por si s suficiente para preencherqualquer critrio de epidemia. Em uma populao deaproximadamente 7.500 indgenas, h informaes deque foram registrados 52 suicdios de 1987 at agostode 1991; a epidemia mais dramtica entre o subgrupoKaiw: 14 de seus membros suicidaram-se no ano de1990, e uns tantos outros suicdios j ocorreram no 1osemestre de 1991. Predomina entre jovens de 12 a 20anos de idade, atingindo igualmente rapazes e moas.Para explicar uma epidemia desse tipo, prope-se ahiptese do recuo impossvel, onde se verifica oesgotamento de qualquer possibilidade de recuar noespao, diante da "civilizao ocidental", e,simultaneamente, seus valores de dignidade humana soaviltados. No h mais uma s opo de ir para umafloresta e foram virtualmente capturados pela cidade (aaldeia dos Kaiw fica no permetro urbano deDourados), mas sem chances de qualquer inseroocupacional s restando-lhes alguma forma deprostituio. Em tal situao de desvalia extrema, aauto-imolao a ltima forma de ainda sobreviver asua cultura. Houve epidemias de suicdio em indgenasde outros pases, mas esses encontravam-se tambm emlimite de recuo e sem chances de insero na civilizaoocidental. No Brasil e no exterior, outras tribosindgenas foram urbanizadas, sem tragdias como aexperimentada pelos Kaiw, porque tiveram algumainsero socialmente condigna.

    Epidemia de Suicdio entre osGuaran-Kaiw: Indagandosuas Causas e Avanando aHiptese do Recuo ImpossvelAnastcio Morgado (cad4morg)

    Escola Nacional de SadePblica/Fiocruz, Depto. deEpidemiologia, rua LeopoldoBulhes, 1480, 8o andar,Manguinhos, 21041, Rio deJaneiro, RJ.

    FALTA DE UM BALANO QUANTITATIVOA imprensa tem feito uma razovel cobertura dos

  • problemas sofridos pelos indgenas, notadamente sobre aepidemia de suicdio entre os Guaran-Kaiw. Em flagrantecontraste com isso, h penria de informao especiali-zada: o nmero de suicdios ostensivos entre os referidosindgenas no se encontra disponvel nem mesmo em umrelatrio. H, pois, que se contentar com cifras imprecisas,publicadas pela imprensa leiga, e as oriundas de "infor-mao pessoal".

    O fato de seis jovens Kaiw terem-se enforcado numperodo curtssimo (duas semanas) por si s suficientepara preencher qualquer critrio de epidemia. Em umapopulao de aproximadamente 7.500 indgenas, De Paulainforma que, de 1987 at agosto de 1991, foram registra-dos 52 suicdios, mas no se sabe o nmero ocorrido emcada ano para que se possa calcular a taxa de mortalidadeanual. O nmero acima deve estar subestimado, pois oindgena evita falar de suicdio, o que um estudo de Ogdenet al. (1970) documentou com clareza.

    Sabe-se que a epidemia em pauta mais dramticaentre o subgrupo Kaiw: 14 de seus membros suicidaram--se no ano de 1990, e uns tantos outros suicdios jocorreram no lo semestre de 1991. A epidemia predominanos jovens de 12 a 20 anos de idade, atingindo igualmenterapazes e moas. O feitio do suicdio sui generis: comum lao curto, garroteia-se o pescoo, sem que o corpofique dependurado (s vezes os ps ficam arrastando-se aosolo). No um gesto cego, impulsivo e repentino, comopretendem apresentar, e sim um rito com vestgios namitologia indgena que encenado em circunstnciasagonizantes.

    O CONTEXTO GEOGRFICO E SCIO-ECONMICODAS ALDEIAS

    To importante quanto os suicdios so os dados quedizem respeito ao espao fsico, aos meios de subsistnciae situao geogrfica das aldeias dos Guaran-Kaiw,entre os quais destacam-se os seguintes:

    1 - um grupo indgena que mantm contato intensocom a populao de grandes cidades: a aldeia dos Kaiw contgua ao permetro urbano de Dourados (150 mil

  • habitantes), que dista 200 Km de Campo Grande, capitalde Mato Grosso do Sul;

    2 - Esto privados da coleta extrativa, o meio desubsistncia bsico de sua cultura, e, ao mesmo tempo, h,na prtica, um paredo culturalmente intransponvel, decerca de 20 milhes de anos, para que se possa ter umainsero mnima em qualquer rea produtiva do mercadoocidental.

    AS PSEUDOCAUSAS E SUAS CARACTERSTICAS

    Com freqncia ouve-se atribuir o suicdio daquelesindgenas a certos cultos protestantes, consumo de lcool,desagregao da famlia, etc. Tal atribuio mostraremosser enganosa, ficando claro que no se trata de causas, esim de pseudocausas. Estas so eleitas como sendo causaspor terem as seguintes caractersticas:

    a) Esto associadas, no espao e no tempo, com aspessoas que cometem suicdio, satisfazendo-se o critrio deantecedente constante;

    b) Serem manifestaes ostensivas, muito notrias epassveis de serem apresentadas ao grande pblico comose fossem prticas negativas e morbgenas, e, por isso,indesejveis;

    c) Serem arroladas em um pensamento lgico-causalque d aparncia de produzir o efeito suicdio.

    Por hiptese, as pseudocausas mencionadas acimafuncionam como variveis ocultantes (confundir) porestarem associadas causa verdadeira, mas no teremefeito real sobre o suicdio, ou por terem este efeito, pormindependentemente da causa verdadeira. provvel quehaja muitas variveis desses dois tipos na epidemia empauta (p. ex., presena de mdicos, enfermeiras, pesquisa-dores), mas, para elas, no se produz a necessidade docritrio B acima. O critrio C uma justificativa tericaque se exige para a incluso "moralista" no critrio B. Defato, so estes dois critrios (B e C) que acirram o debate.No h dvidas de que as dificuldades em alcanar o eixoda causa verdadeira tambm contribuem para apegar-se apseudocausas.

  • OS CULTOS EVANGLICOS ENGENDRARIAMSUICDIO ?

    O pensamento lgico-causal que aparentemente produzo efeito suicdio nessa suposta causa exprime-se por duasvariantes explicativas, pouco diferentes uma da outra. Aprimeira, e a mais difundida, , em suma, o chavo batidoque se segue. Prometendo a "salvao", os pastores dessescultos pregariam uma espcie de averso para com a vidaterrena e que os sacrifcios passados aqui na terra seriamrecompensados no alm, depois da morte. Ao mesmotempo, tais pastores inculcariam uma interpretao pecami-nosa da vida sexual, em que "saciar o prazer carnal" fossealgo bestial, uma afronta aos desgnios do Senhor; taldesobedincia levaria os indgenas a padecerem de remorsoe sentimento de culpa implacveis. Diante desse choquefrontal da vida terrena com os desgnios do Senhor e coma promessa daquela do alm, o jovem indgena ficaria numimpasse fatal. Nesta lgica, o suicdio seria, ento, umaforma aceitvel para o indgena resolver as agruras de suavida aqui na terra, alm de adquirir a salvao eterna desua alma.

    bvio que esta lgica presta-se bem para explicar aepidemia de suicdio, sobretudo num meio sujeito sanhada catequese por parte dos mais divergentes credosreligiosos, uns mais consentidos que outros no seio dapopulao externa comunidade indgena. A este respeito,foi cheio de significado ver na TV um programa sobre adeplorvel situao dos Guaran-Kaiw, em que o lder deuma religio incitava repetidamente os indgenas a "surraresses pastores".

    Alm da incluso nas trs caractersticas acima, asuposta causa do culto evanglico revela-se paradoxal numcontexto mais amplo. Isto porque considera-se que a freligiosa valoriza a vida de cada um e fortalece a coesodo grupo, e, ao contrrio, a ausncia de f deixa a pessoa merc das frustraes ao longo da exclusiva busca deprazer pessoal.

    A segunda variante explicativa do suposto efeito nocivodas misses evanglicas do domnio da demonologia.Uma boa descrio dela feita por Grumberg (1991), apropsito do "suicdio em cadeia" entre os Guaran-Kaiw

  • do Paraguai. Por essa lgica, as referidas misses desa-gregariam a unidade cultural indgena e considerariam sero suicdio decorrente da "influncia do satans e de Xamsendemoniados"; frente a isso, o remdio seria a converso,o abandono das prticas xamnicas e o rompimento derelaes e de comunicao com o grupo que preserva atradio. Como a unidade indgena o grupo inteiro, talruptura desagregaria irremediavelmente os Guaran-Kaiw.A perda de um subgrupo (dos convertidos) seria intolervelpara eles; matar-se seria ento uma forma de protestarcontra isso e, assim, funcionaria como um ltimo recursopara manter a coeso da comunidade. Nessa lgica,converter-se para a religio dos brancos seria uma submis-so extrema, restando s o suicdio como forma deprotesto.

    Importa observar que na lgica acima h, de sada,uma premissa que se transpe direta e linearmente concluso o que torna o argumento muito frgil umavez que a ocorrncia de suicdio faz parte da desagregaocultural que precede o "suicdio em cadeia".

    Mas a associao causai desse autor no resiste anlise de rastreio de fatores potencialmente causais quenormalmente se faz quando se trata de epidemia. Assim,argumenta Grumberg (1991) que de 38 comunidadesindgenas, quatro vinham cometendo "suicdio em cadeia",entre as quais havia misso evanglica em trs. Destemodo, no se explicou a ocorrncia do fenmeno suicdiona 4a comunidade aquela sem a presena das misses.Esta diferena de suma importncia por testemunharcondies comparveis no mesmo permetro geogrfico dastrs comunidades com presena das referidas misses. Asituao descrita eqivale privao do fator de risco emum grupo experimental que, no caso, refutou o hipotti-co fator de risco (misses evanglicas), porque o efeitocontinuou a ser produzido na 4a comunidade. Note-se queem estudos populacionais raro encontrar tal conjunto desituaes que configure uma "experincia mental" que,sozinha, tenha fora para descartar um suposto fator derisco. A propsito, esta a principal limitao dos cnonesde J. S. Mill para investigar, fora de laboratrio, o antece-dente constante e incondicional (causa) de um dado efeito.

    No fosse a alegada imputao ser refutada pelo

  • robusto mtodo da diferena, h falta de concordncia,tanto contempornea quanto histrica, que a torna inveros-smil. Assim, trabalhos sobre epidemias de suicdio emindgenas de pases outros que os latino-americanos, comoos de Berlin (1987), Dizmang et al. (1974), Jarvis & Boldt(1982), Levy & Kunitz (1971), Ogden et al. (1970), Hislopet al. (1987) e Ward & Fox (1977), nem fazem aluso alegada causa religiosa. E tudo indica que no Canad e nosEUA os cultos religiosos predominantes entre suas tribosindgenas sejam similares aos cultos no banco dos rus nasaldeias dos Guaran-Kaiw (no Brasil e Paraguai, pelomenos). Longitudinalmente, a explicao via possessodemonaca, que Grumberg endossa sem qualific-laenquanto tal, inconsistente ao longo da histria dospovos latino-americanos. Sabe-se que esse fenmenoremonta chegada de religiosos Amrica do Sul, cujaspregaes Southey (1862, p. 2) registrou para o Brasil:tribus... no reconhecendo rei nem Deus, adorando odiabo n'este mundo e votadas a elle eternamente nooutro... . Pelo que esse historiador descreve, a demonologiapregada pelos jesutas aos indgenas dos sculos XVIII eXIX no contm diferenas em relao supostamentepregada pelos evanglicos aos indgenas de hoje. Por queum mesmo fator seria maligno agora e benigno nos sculosde ento ?

    LCOOL E SUICDIO - UMA VELHA QUESTO

    No problema em pauta, destaca-se logo o fato de quemuitos dos que cometeram suicdio no consumiam lcoolem excesso; isso particularmente verdadeiro para ogrande contingente de jovens. Embora no haja dadosprecisos, as informaes pessoais dos que conhecem aregio indicam que os adolescentes indgenas tinham umconsumo ocasional, pequeno e, muito importante, numcontexto socializado do grupo.

    muito duvidoso que tal padro de consumo alcolicodesempenhe algum papel no suicdio desses jovens, mesmoque a associao entre suicdio/consumo de lcool (beberisolado, sozinho) seja verdadeira no contexto geral.Mesmo que fosse isso, o consumo no seria uma varivelindependente de transtornos psiquitricos, particularmente

  • depresso, transtorno anti-social da personalidade eesquizofrenia.

    Poder-se-ia afirmar que fosse de um baixo limiar parasuicdio o padro de consumo alcolico dos jovensindgenas, o que uma hiptese interessante. Mas, alm doj citado consumo no geral pelo grupo, houve um outrodado que depe contra essa hiptese. Trata-se de informa-o de um programa de TV (no o j citado acima) emque o dono de um bar da aldeia era coagido pelo reprtera confessar que vendia "cachaa" aos indgenas Kaiw.Firme e pausadamente, o referido vendedor comparou oconsumo dos indgenas em pauta com o de outras aldeias,que a seu ver no era diferente, e acrescentou: "mas osoutros no esto pondo fim vida".

    A desagregao cultural apresentada de maneirainconsistente, fora de um contexto terico consistente comos fatos, tambm pseudocausa; entretanto, quandocontextualizada, muito provvel que ela seja um aspectoou uni grande sintonia da causa verdadeira, como servisto a seguir.

    A PROVVEL CAUSA VERDADEIRA

    A maior parte da presente opinio foi destinada adescartar pseudocausas fruto de pr-julgamentos dosenso comum e de amplificao pelos mass media. Osdados quantitativos e o contexto resumidos acima podemcontribuir positivamente para conhecer melhor a origem daepidemia em questo. Mais especificamente, indigenistas,antroplogos, epidemiologistas e profissionais de SadePblica em geral reconhecem que problemas de sade/de-gradao cultural dos indgenas so duas coisas indissoci-veis. Tudo indica que, no incio da instalao desseprocesso, o antecedente constante e incondicional era adegradao cultural; mas, depois, torna-se um crculovicioso em que os problemas de sade agravam aqueladegradao. Um bom exemplo dessa determinao enretour descrito por Verani & Morgado (1991). Algunsantroplogos tm falado em "morte cultural" um grauextremo da mencionada degradao cultural, enquanto osindigenistas preferem falar em "ausncia de perspectivas" como sendo o fator determinante da epidemia em

  • apreo; adianto, desde logo, que a causa verdadeira aquiassumida no se ope a nenhuma dessas duas colocaes.No obstante isso, preferimos considerar esse processocausal pela hiptese do recuo impossvel, caracterizadapela ocorrncia simultnea de dois tipos de sujeiomxima da pessoa:

    1) Total esgotamento de opo para recuar ou mudar,sem nenhuma possibilidade de territrio para os indgenasviverem, enquanto povo com identidade prpria. Atrecentemente podia-se recuar; agora, isso acabou, e parasempre;

    2) Degradao extrema de condies universais dedignidade do ser humano, que independe da pessoa ser umindgena ou no; liquidar o patrimnio material e cultural,corromper os costumes e aviltar a pessoa ruim paraqualquer grupo de indivduos.

    Este 2o tipo de sujeio aproxima-se da j mencionadamorte cultural dos indgenas, que, em nossa hiptese, dognero humano em geral. O 1o tipo de sujeio pode servisto como prximo da hiptese de limitao geogrfica daAntropologia, mas esta no fixa a necessidade absoluta deimpossibilidade de recuar, de limite intransponvel.

    Tudo indica que a degradao mais que cultural, e elatem sido progressiva e inexorvel desde a poca de Cabral.Em nossa histria, a expresso "descoberta do Brasil" negacaractersticas psicolgicas fundamentais aos povos que jhabitavam este solo at mesmo a de testemunharconhecimento da existncia da matria, da geografia e dotempo; os primeiros missionrios negaram as religies ecultura dos indgenas, empenhando-se em convert-los parao catolicismo. Enfim, era como se eles fossem privadosno do conhecimento da Escola de Sagres, e sim doconhecimento imediato dado pelos cinco sentidos! Nestesquase cinco sculos, o recuo das tribos indgenas dolitoral/meio urbano para o interior tem sido uma constante;embora com inmeros percalos, eles tm conseguidomanter viva sua cultura. Agora pergunto: h pelo menosuma chance dos Guaran-Kaiw recuarem para algum outroespao ? No, no h. Recuaram at no poder mais;foram definitivamente desterrados de seu habitat natural.Se o mundo deles viver junto natureza rstica e tosca,

  • para eles chegou o fim do mundo. Ningum expressoumelhor este triste fim como o Cacique dos Kaiw (Sr.Irnio): Hoje no tem mais passarinho, precisa criargalinha; no tem mais anta, precisa ter vaca (revista Isto, 24/10/90). bvio que os Kaiw no tm recursos paraque possam ter carne bovina mesa na melhor dashipteses, uma famlia inteira ter aos domingos um frangopara temperar um almoo festivo. Em suma, eles perderama anta e em seu lugar ficou a fome e um vazio que jamaisser preenchido. De certa forma, os Kaiw foram captura-dos pela cidade, sem chances de qualquer insero ocupa-cional para garantir-lhes uma sobrevivncia essencial; nacidade s lhes resta alguma forma de prostituio. Ahiptese do recuo impossvel o extremo de situaesque obrigam a um recuo intermedirio, ao qual chamamosde movimentos migratrios - uma expresso geral queinclui desde iniciativas pessoais para mudar de uma boacoisa para outra melhor, at virtual expulso do territrioem que um grupo se encontra. Pithan e cols. (1991)descrevem nesta revista uma situao vivenciada pelosYanommi em que estes ficam obrigados a um recuointermedirio, se por acaso no demarquem logo seuterritrio. Hernandez (1991) mostrou que a malria graaepidmica e incessantemente nos Yanommi do Brasil,associada afluncia de garimpeiros; essa doena nosYanommi do lado da Venezuela segue um perfil endmi-co h vrias dcadas. A propsito, Yanommi quer dizer"eu sou gente", e Kaiw, "habitante da floresta". Portanto,o cognome dessas duas comunidades indgenas significaque o Kaiw gente que habita a floresta; esse seumundo. O suicdio, malria, etc so coisas ruins que vmde um outro mundo.

    Houve epidemias de suicdio em indgenas de outrospases, mas encontravam-se tambm em limite de recuo ecom chances escassas de insero na civilizao ocidental.Ainda em outros pases, e mesmo no Brasil, tribos indge-nas foram urbanizadas, sem tragdias como a experimen-tada pelos Kaiw, porque tiveram alguma insero social-mente condigna. Sem tal insero, por mnima que seja, ostuchaua Kaiw, de cultura to dispare da nossa, ficamcapturados no meio urbano. Tal situao, de desvaliaextrema, de recuo impossvel, faz vir tona um rito no

  • encenado em condies normais, o de auto-imolar-se comouma ltima forma de fazer sobreviver sua cultura e outrasdimenses igualmente fundamentais.

    H representaes culturais que, ao olhar ocidental, sopatognicas, como observa Sperber (1975). Esse tipo derepresentao sobre a morte descrito por vrios antrop-logos na mitologia indgena, a qual desempenharia o papelde fator predisponente da auto-imolao. Em suma, amorte no um aniquilamento do sujeito, e pode ser umaderradeira forma de manter viva a cultura, ou do sujeitocontinuar vivo sob outra forma. Haveria, ento, um ritualda auto-imolao, celebrado em situaes de desvaliaincontornvel. Surpreendeu-se (revista Isto , 24/10/90)esse ritual, entoado com tristes canes, no incio de suaencenao: trs adolescentes entre 1314 anos foramsurpreendidas num ritual macabro; abraavam-se echoravam em um quarto. Acima da cama, as blusas de lamarradas a um caibro, com os ns j preparados,anunciavam um enforcamento trplice; estavam despedin-do-se, quando algum ouviu os rudos, entrou no quarto econseguiu evitar a tragdia.

    De fato, pouco se acrescenta causa verdadeira;antroplogos e indigenistas conhecem-na h muito tempo,e o cacique das vtimas, que tem um aparelho mentalsimilar ao de seus antepassados poca de Cabral, sabebem qual ela . Mas h uma vasta maioria que prefere osensacionalismo das pseudocausas. Infelizmente, no sopoucos os que negligenciam o conhecimento oriundo delongo e duro trabalho dos que incansavelmente amanhamo terreno. como se algum fosse implantar um programade preveno da tuberculose entre os indgenas e no sedesse ao trabalho de verificar o que Nutels (1952) fznesse sentido. O que fica de importante a investigar, forado objetivo da presente opinio, dissecar a necessidadeque leva ao af de apegar-se a pseudocausas, e se ahiptese do recuo impossvel se restringe a indgenas.

    A este respeito, a tragdia de Jonestown, na Guiana,em novembro de 1978, exemplo nico em que 923pessoas (negros em sua maioria) cometeram suicdio emconjunto. Os que opinaram sobre sua causa atriburam-naa insanidade mental ou a um presumvel poder sugestivoe desplico de Jim-Jones, lder daquelas 923 pessoas, ou

  • ento que fora um ato de protesto contra a marginalizaodo negro nos EUA. Essas explicaes so muito inespecfi-cas, emocionais, teoricamente frgeis e inconsistentes. Essetipo de atribuio foi mantido, mesmo na literaturacientfica, fora da esfera anglo-saxnica, como o caso dotrabalho de Reverzky & Soubrier (1979).

    Achamos que a referida tragdia, embora fora docontexto indgena, se explique melhor pela hiptese dorecuo impossvel. Eles no chegaram a um limite derecuo, como os Guaran-Kaiw, mas chegaram beiradele. Eram pessoas que, nos EUA, estavam no limbo damarginalizao. Os negros fizeram projeto para retornaremao original solo africano. Enfim, recuaram para a Guiana.Mais do que isso seria embrenharem-se na floresta, isto ,recuar a um tribalismo indgena. O governo norte-america-no estava no encalo de Jim-Jones; algumas autoridadesforam at Jonestown, sendo que o senador Leo Ryan faziadiligncias na rea e foi ali mesmo assassinado, na vsperada tragdia. Nesse mesmo dia, o prprio Jim-Jonesdeclarou: No vamos suicidar-nos e sim praticar um atorevolucionrio. Jim sabia que estava prestes a ser captura-do e levado para os EUA; enfim, estavam acuados eprximos do fim do mundo, isto , chegaram beira do recuo impossvel. A declarao acima indica queJim-Jones, tal qual as trs adolescentes Kaiw surpreendi-das no ritual descrito anteriormente, estava consciente e deposse das faculdades mentais. Isto , sob o aspectopsicolgico, as epidemias dos Kaiw e a de Jonestown tmum similar padro psicolgico. importante reexplicar areferida tragdia, por ter antecedentes parecidos e efeitos,at prova em contrrio, idnticos aos dos Guaran-Kaiw.Alm disso, enfraquece uma certa valorizao que algunspsiclogos e antroplogos esto dando ao "fator predispo-nente do suicdio": as representaes sobre a morte namitologia indgena. Seria muito pouco provvel que acomunidade sediada em Jonestown tambm tivesse talpredisposio. Se admiti-la, ento ela carece de valorespecfico, porque a ela seria do gnero humano em geral.Essas consideraes permitem concluir que grupos huma-nos em condies de recuo impossvel prescindem derepresentaes especficas sobre a morte para virem apraticar ato de auto-imolao.

  • Ao que se conhece, situaes de impossibilidade derecuar, levando a efeitos coletivos como os descritosacima, so acontecimentos relativamente recentes nahumanidade. Com a progressiva restrio de espao, noser surpresa se eventos dramticos como os citados acimavenham a ocorrer com maior freqncia. No Brasil dehoje, no h, por exemplo, mais tribos de indgenasisoladas do homem branco; todas elas so conhecidas,visitadas e estudadas. Enfim, o homem branco chega cadavez mais perto delas. A questo sobretudo de espao,pois desde um remoto passado aconteceram situaes emque agrupamentos humanos inteiros foram subjugados,submetidos a condies desumanas e at mesmo escraviza-dos. Mas, em geral, conseguia-se algum jeito de escapar,deixando-nos hericas descries do xodo e das dispo-ras: sempre libertam-se de algum jugo terrvel e, comglria, vo-se estabelecer em outras plagas, s vezes emlongnquos espaos.

    The suicide of six young Guaran-Kaiw Indians withinthe timespan of two weeks is enough to fulfill anycriteria to define an epidemic. In a total population of7,500 individuals, the available data account for 52cases of suicide between 1987 and August 1991. Theepidemic is more dramatic among the Kaiw subgroupamong which 14 individuals died in 1990 and a numberof suicides were reported for the first semester of 1991.For both sexes, most deaths were observed in the agegroup 12-20 years.The author advances the hypothesis of the impossiblereturn according to which, under extreme pressureexerted by western society, they see no possibility ofreturning to their traditional way of living.Under circumstances of extreme self-devaluation, suicidebecomes the last alternative for the survival of theirculture. Suicide epidemics have been reported amongAmerindians in other countries suffering from the samekind of pressure. In Brazil and also in other countries,

  • other tribes have been urbanized and yet did notexperience the tragedy which the Kaiw are goingthrough because they had some kind of acceptableinsertion in the national society.

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