Epistemologia da Comunicação (Gregory Bateson)

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    GREGORY BATESON: RUMO A UMA EPISTEMOLOGIA DA COMUNICAO

    ETIENNE [email protected]

    RESUMO

    Como se constri nosso saber? Como nascem nossos conhecimentos ou, melhor dizendo, as idias que nsfazemos das coisas deste mundo? A partir de que imperativos epistemolgicos podemos pensar fundar umacincia do conhecimento?

    Ao longo de milnios, esses conhecimentos se multiplicaram e se diversificaram. Com eles, emergiram centenasde epistemologias locais que, no entanto, cruzam-se no horizonte de suas indispensveis inter-relaes. Como eat onde uma Epistemologia da Comunicao (uma epistemologia, muitas vezes ainda, por demais local)participar, no futuro, desta teia de relaes e saber fomentar o que se poderia chamar uma ecologia do

    esprito?

    Para tanto, procura-se delinear, nesta comunicao, alguns parmetros iniciais de elaborao de umaEpistemologia da Comunicao, tirando proveito da gigantesca e complexa obra de Gregory Bateson (1904-1980), um penetrante pensador da questo, que foi, ao mesmo tempo, um bilogo, um antroplogo, umpsiquiatra e um amante da comunicao humana.

    Palavras Chave: Epistemologia da comunicao; Gregory Bateson.

    IntroduoNa medida que o GT Epistemologia da Comunicao se prope a discutir, entre outras abordagens, as relaesda Comunicao com outras disciplinas, gostaria, nesta interveno, de poder iniciar uma reflexo em tornodeste assunto. Para tanto, escolherei um autor que muito prezo e que, a meu ver, ser um dos mais importantesinspiradores de uma Ecologia do Esprito1 nos prximos dois decnios deste novo sculo. Chama-se GregoryBateson (1904-1980). Direi, logo e brevemente, quem foi este inigualvel observador das coisas deste mundo eprocurarei delinear alguns parmetros de elaborao de uma epistemologia da comunicao, tirando proveito dagigantesca e complexa obra deste pensador, que foi, ao mesmo tempo, um bilogo, um antroplogo, umpsiquiatra e um amante da comunicao humana. Antes de chegar l, parece-me indispensvel traar duas

    consideraes preliminares importantes.

    Da Epistemologia em geral...

    Sabemos, todos, que a palavra epistemologia logo seduz tanto quanto provoca estranhamento pelo simplesfato que no sabemos exatamente o que ela designa e, sobretudo, ao que nos remete. Pessoas cultas diro quea etimologia da palavra grega e significa um estudo, um discurso (um logos) sobre a epistm, isto ,sobre o conhecimento ou, melhor dizendo, sobre o saber. Eis, ento, nossa palavra-chave: a Epistemologia(com um E maisculo) a Cincia do saber, de todo tipo de conhecimento.

    Reconhecemos que essa definio nos diz um pouco de tudo e muito de nada. Para ser mais concreto, diria, desta

    maneira, que todos ns adquirimos, ao longo das nossas existncias, uma srie de conhecimentos:conhecimentos dos mais variados tipos (sobre a vida, a morte, o sofrimento, o amor, o trabalho; conhecimentosreferentes ao fato de que falamos, de que nos comunicamos, de que vivemos em sociedades regidas por

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    sistemas econmicos, educacionais, ecolgicos, em sociedades onde existem o direito, a medicina, a religioetc...).

    Devemos at convir e acrescentar que todos os nossos conhecimentos adquiridos, muitas vezes, so ouincompletos ou simplesmente errados. Eis o que explica o fato de que, por falta de bons hbitos epistemolgicos,arriscamos-nos a ter problemas na vida e, claro, cada um tem.

    A palavra Epistemologia, assim situada, pode comear a se tornar um pouco mais concreta e clara. Falar deEpistemologia significa levantar essas questes: O que implica o ato de conhecer as coisas deste mundo?mas, sobretudo, como poder chegar a conhecer as coisas deste mundo?, quais os imperativos, as exigncias eos caminhos de uma cincia do conhecimento, de qualquer tipo de conhecimento (no apenas da comunicaohumana)?

    ... s epistemologias locais

    Se falei, at agora, da Epistemologia com um E maisculo [enquanto Cincia geral do Conhecimento, detodo e qualquer conhecimento], h de se convir que existem centenas de epistemologias (com um e

    minsculo): epistemologias estas que, sem nenhum desdm nem julgamento prvio de valores, chamarei deepistemologias locais. Essa multiplicidade at despertou minha curiosidade. Fui procurar em dois sites degrandes bibliotecas virtuais (um francs: http://www.alapage.com e um americano: http://www.amazon.com)informaes referentes a publicaes (livros) elencadas sob os verbetes epistmologie e epistemology.Melhor que a livraria francesa, que oferecia 152 indicaes de livros sobre o assunto, a colega americana brindavaseu consultor com 1447 entradas de livros sobre o mesmo assunto. Claro que no tive a pacincia nem o tempode percorrer essa imensa vitrine do conhecimento humano. Passei o tempo suficiente, todavia, para observar trscoisas que resumo:

    - As epistemologias locais so, hoje, mltiplas e de toda ordem: Epistemologia gentica; Epistemologia daIdentidade; Epistemologia do Tempo; Epistemologia Jurdica; Epistemologia do Direito; Epistemologia da

    Linguagem; Epistemologia da Ao moral; Epistemologia do Conhecimento musical; Epistemologia daCincias Sociais; Epistemologia da Sociologia; Epistemologia das Matemticas; Epistemologia da Biologia;Epistemologia da Medicina; Epistemologia da Geografia; Epistemologia da Religio; Epistemologia doSagrado; Epistemologia das Cincias da Natureza; Epistemologia da Economia, mas, tambm, Epistemologiada Estratgia em Economia; Epistemologia das Atividades fsicas e esportivas... Epistemologia das Cincias daInformao; Epistemologia da pesquisa informatizada e - claro - a Epistemologia da Comunicao.

    - As epistemologias locais atuais tm, por vezes, um sexo. Obras publicadas nos Estados Unidos tratam deEpistemologias femininas e masculinas e um recente best-seller, que estuda as questes da homossexualidadee da heterossexualidade, intitula-se Epistemology of Closet.

    - As epistemologias locais e a prpria Epistemologia participam, tambm, do tempo. As epistemologias so,felizmente, viajantes ou, melhor dizendo, perpassam o tempo humano e procuram desvend-lo nas suasmltiplas representaes e esforos de compreenso. Olhando para os sites aos quais me referi, vocsencontraro, evidentemente, referncias s obras dos grandes filsofos gregos, de pensadores chamadosmodernos, indo de Emmanuel Kant a Michel Foucault, como vocs descobriro, tambm, obras que reivindicam aurgncia da ecloso de uma Epistemologia construtiva Ps-Moderna.

    O que queremos, desta maneira, quando buscamos definir uma epistemologia da comunicao? Como conceb-la (hoje, isto , no tempo)? Como conceb-la na teia de relaes que entretm com tantas outras reas doconhecimento (a multiplicidade das epistemologias locais)? Como conceb-la na complementaridade necessriade seus discursos (masculino/feminino; clssico/moderno e ps-moderno)? Somente poderemos pretender

    chegar, possivelmente, a tal empreendimento olhando para uma paisagem e no para um quadro... tanto maisque sem comunicao no existiria conhecimento nenhum.

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    tempo de apresentar, embora muito brevemente, Gregory Bateson.

    Gregory Bateson

    Margaret Mead (1901-1978) e Gregory Bateson (1904-1980) acabavam de se casar quando, de maro de 1936 at1939, empreendiam uma famosa pesquisa junto aos nativos da ilha de Bali, da qual resultaria Balinese Character.

    Separaram-se, em 1951, guardando, todavia, uma recproca admirao e cumplicidade intelectual at suasmortes, ambas de cncer.

    Nos anos de 1940, poca da publicao de Balinese Character. A Photographic Analysis2, no se discutiaverdadeiramente as questes epistemolgicas e heursticas que os diversos suportes comunicacionais (a fala, aescrita, as visualidades) poderiam explorar, juntamente, respeitando os termos de suas singularidades e de suascomplementaridades, enunciativas, representativas e interpretativas. Passaram-se exatos sessenta anos. BalineseCharacter andava frente de seu tempo e, por essa razo, tornou-se mtico

    Hoje em dia, a obra de Bateson e Mead poder ser julgada como tendo sido um empreendimento arriscado,parcialmente convincente. Poder ser encarada, tambm, como um monumento de questionamentos heursticos.

    No cabe aqui julgar a obra a partir desse ou daquele ponto de vista. Importa contextualizar as idias que deramorigem obra e entend-las melhor.

    O livro , com efeito, uma tentativa de explorar, verbal e visualmente, de que maneira uma criana nascida emBali torna-se uma criana balinesa. Por meio de que comportamentos sociais adquiridos durante sua infncia, deque condutas ensinadas pelo seu meio cultural, distinguir-se-, para sempre, de uma criana nascida, porexemplo em Manaus, situada nos antpodas da pequena ilha vulcnica de Bali? Em outros termos: qual ocarter, o estilo de ser e de viver dos nativos deste pedao de terra de uns 5000 quilmetros quadrados,situado no Oceano ndico que, hoje, pertence Indonsia?

    Balinese Character representa, desse modo, um marco na histria da antropologia, da antropologia visual em

    especial, mas, tambm uma marco na maneira com que se pode repensar a comunicao humana e as inter-relaes heursticas existentes entre seus diversos suportes. Na poca, uma idia bastante nova (a questo doethos)3 e um duplo desafio: conjugar o texto e a imagem. Dois gigantes: Margaret Mead e Gregory Bateson. Umadata: 1942. Uma interrogao, enfim: como entender que, logo aps a Segunda Guerra Mundial, GregoryBateson, bilogo e antroplogo de formao, afastou-se dos seus 25.000 negativos Leica e dos sete quilmetrosde filme que tinha rodado com Mead, durante os trs anos de sua permanncia na ilha de Bali?

    Pouco antes dos anos 50, com efeito, Bateson, filho do famoso genetecista ingls William Bateson, parte paraoutros horizontes vivenciais e, sobretudo, comunicacionais: observa e filma as lontras e os seus jogos relacionaisem So Francisco; observa e estuda,em 1962, a comunicao oral dos delfins nas Ilhas Virgens. No intervalo,congrega em torno de si psiquiatras (Jurgen Ruesch, Don D. Jackson, Paul Watzlawick, Albert E. Scheflen),

    antroplogos (Erving Goffman, Edward T. Hall, Ray Birdwhistell), na chamada Escola de Palo Alto. Todosbuscavam repensar, numa perspectiva orquestral (inspirada pelos trabalhos de Norbert Wiener4) e nomeramente telegrfica(como fazia, na poca, Claude Shannon5), as questes relativas comunicao humana.

    O que Bateson buscava nos anos 50 e o que deveria efetivamente desenvolver at sua morte em 1980?Procurava equacionar melhor a vasta interrogao sobre a comunicao humana nos termos de uma estrutura6que pudesse ligar os seres vivos entre si a natureza e o pensamento, a comunicao e a antropologia.

    Sem nunca ter abjurado suas origens intelectuais e acadmicas, Bateson tornar-se-, durante mais de trinta anos,o visionrio lcido e o fundador crtico de uma nova maneira de encarar as relaes entre comunicao eantropologia. Balinese Character foi, para ele, o terreno fecundo da emergncia de uma nova problematizao e

    de um repensar da comunicao humana.

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    De Bateson pode-se afirmar, vinte anos aps a sua morte, duas coisas: ao lado de seus colegas psiquiatras eantroplogos, ele no somente delineou os parmetros de uma Nova Comunicao, mas soube plantar osalicerces de uma Antropologia da Comunicao e de uma Epistemologia da Comunicao. Em outras palavras:o que significa pensar antropologicamente a comunicao humana? Ou, ainda, o que significa, na perspectivaaberta por Bateson, investigar etnograficamente os comportamentos, as situaes, os objetos que, numacomunidade, so percebidos como portadores de um valor comunicativo?

    A obra de Gregory Bateson, mereceu, at hoje, pouca considerao por parte dos crculos editoriais brasileiros.Bateson no causa medo nem assombra ningum: um pensador discreto que sempre soube inovar e a quemdispensaremos, por certo, particular ateno no alvorecer deste novo sculo. Por que motivo? Bateson , antesde mais nada, um olhar, um observador que deixa a sua observao repercutir e questionar seu pensamento.Diferentemente de Margaret Mead, ele no procura entender o mundo a partir de suas idias. Procura, sim, ainterpelao constante do mundo sobre suas possveis e potenciais idias. Bateson deixa ao mundo dos seresvivos a tarefa e a responsabilidade de trabalhar e de despertar o seu pensamento.

    Praticamente toda a obra (antropolgica, epistemolgica mas, tambm, comunicacional) de Bateson (e de seuscolegas aos quais me referi anteriormente) permanece insuficientemente explorada, penso, nos meios

    universitrios brasileiros. Sem dvida, evoca-se o nome do pensador e alguns de seus conceitos-chave.Entretanto, fora uma antologia de textos sobre a comunicao, apenas um dos importantes livros de GregoryBateson foi, at hoje, traduzido em lngua portuguesa6a.

    A situao teria sido semelhante na Europa no fosse um acaso: um pesquisador belga, Yves Winkin, realizou seudoutorado na University of Pennsylvania, Annenberg School for Communication, focalizando precisamente achamada Escola de Palo Alto e, praticamente, entrevistando, na poca (1976-1979), todos os seus membros(Bateson, Birdwhistell, Goffman, Hall, Jackson, Scheflen, Sigman, Watzlawick). Resultou disto um livro publicadona Frana em 1981, intitulado La nouvelle communication7que, na Europa, tornou-se, desde ento, um best-seller.

    Rumo Epistemologia batesoniana ou O que todo aluno sabe8

    Cinco pontos focais (ou direcionamentos):

    Bateson parte desta questo que todo aluno levanta: Como podemos conhecer?, Como advm nossoconhecimento? Quais so os condicionantes da emergncia do saber, de qualquer natureza que seja: biolgico,fsico, lingstico, matemtico, pedaggico, antropolgico, comunicacional?

    1. A primeira resposta de Bateson a seguinte: No decorrer da minha existncia escreve coloquei asdescries de tijolos e de jarras, de bolas de sinuca e de galxias numa caixinha... e deixei-as repousar em paz.Numa outra caixa, coloquei coisas vivas: os caranguejos do mar, os homens, os problemas de beleza e as questes

    de diferena. o contedo da segunda caixa...[que, a mim, interessa]9. Bateson no pode ser mais claro: ouniverso , para ele, um imenso organismo em constante ao e interao. O que nele interessa o que vive. SuaEpistemologia ser antes de mais nada uma Epistemologia que se constri a partir dos seres vivos.

    2. Muitas vezes - acrescentar Bateson - concebemos a Epistemologia como sendo um ramo da filosofia,conseqentemente algo de eminentemente abstrato de que cuidariam os filsofos, fora do campo dainvestigao emprica. Viso distorcida evidentemente que, todavia, permite a Bateson firmar algo fundamental.Para ele, nunca poderemos pensar construir uma cincia do conhecimento fora do campo da investigaoemprica. Com outras palavras, a Epistemologia batesoniana pertence ordem do concreto, do palpvel, dosensvel e no pode se construir no campo da abstrao, na esfera da razo pura, fora da concretude de umarealidade emprica.

    3. A maneira atravs da qual, desta vez, adquirimos conhecimentos ou informaes origina-se, sempre, insistirBateson, da observao e da experimentao (ou de uma experincia). O ser humano somente pode adquirir

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    conhecimentos atravs dos seus rgos sensoriais ou atravs de seus prprios experimentos. De tal modo queno se pode falar de uma Epistemologia que no seja, por necessidade, vinculada e atrelada a um constante eprvio trabalho de observao.

    4. Outro ponto focal da Epistemologia Batesoniana que deve merecer toda a nossa ateno, pois aqui queBateson mais inova e pode nos inspirar. Eis o que diz substancialmente: Nunca poderemos pretender conhecer

    as coisas deste mundo, isoladamente. Todo conhecimento se insere num contexto. Isto, alis, se entende se verdade que o universo no qual vivemos um imenso organismo em constante ao e interao. A Epistemologiano , desta maneira, uma cincia de que devemos esperar definies isoladas e pontuais das coisas quepovoam nosso universo e, sim, uma cincia capaz de nos revelar com profundidade o que essas mesmas coisasho de dizer delas mesmas em funo das interaes que entretm umas com outras. Assim encarada, aEpistemologia deve ser, antes de mais nada, um processo de aquisio e de estocagem da informao, a partirdo qual podero se construir as idias (e apenas idias) que ns fazemos das coisas.

    tempo de exemplificar essas consideraes. Bateson no procura entender o que a tromba de um elefanteou o nariz de um ser humano. No procura definir o que um homem, o que uma mulher. AEpistemologia de Bateson busca sempre entender como se constrem as idias que ns fazemos das coisas: da

    tromba do elefante, do nariz humano; do homem, da mulher. A Epistemologia batesoniana procuraresponder seguinte pergunta: como passamos (processo) de uma coisa observada (por exemplo, a trombade um elefante, situada entre dois olhos e o nariz humano, tambm situado entre dois olhos) idia demamfero; ou, ainda, como passamos da observao da morfologia genital do homem e da mulher idia desexualidade; ou, ainda, por qu e como chegamos a relacionar tromba/nariz entre um par de olhos, com aposio de um verbo que, numa frase, fica inserido entre um sujeito e um complemento, geralmentenecessrios.

    Eis a Epistemologia que reivindica Bateson. Ela deve ser - dir ele - indutiva e experimental e, como todaverdadeira cincia, dedutiva e, sobretudo, adutiva [...], isto , dever sempre procurar colocar lado a ladofragmentos de fenmenos similares10.

    5. Chegamos, deste modo, a um ltimo determinante da Epistemologia batesoniana. A observao e aexperimentao [a partir das quais a Epistemologia se torna possvel e pode ser processada, construindo asidias que nos ns fazemos de uma realidade em interao contnua com uma outra]... so sempre constitudas,dir Bateson, de informaes de diferenas. O sapo incapaz de ver uma mosca a no ser quando ela semovimenta. O olho humano, ele, capaz de distinguir uma mosca imvel e uma mosca em movimento. So essasinformaes de uma diferena que tornam possveis a ecloso de idias e, acrescento, os processos de suasrepresentaes, de suas enunciaes, de suas conceitualizaes e de suas (inevitveis) interpretaes.

    No poderamos chegar idia de mamfero sem ter previamente observado a tromba do elefante e o narizdo ser humano, ambos situados entre um par de olhos, ambos nos proporcionando uma informao de

    diferenas. No chegaramos idia de sexualidade sem, previamente, ter observado a complementaridademorfolgica dos sexos masculino e feminino, cada um deles nos proporcionando uma informao dediferenas. Ouso arriscar-me, acrescentando: no chegaramos idia de suportes imagticos sem ter,previamente, observado a natureza e a singularidade de cada um deles (pintura, fotografia, cinema, vdeo,infografia), cada um desses meios e suportes comunicacionais oferecendo-nos uma informao de diferenas.

    O que vimos at agora?

    1. Uma epistemologia da comunicao no pode se conceber corretamente sem que se tenha conscincia daexistncia de outras epistemologias locais, com as quais se relaciona em graus variveis.

    2. Todas as chamadas epistemologias locais (inclusive a epistemologia da comunicao), fundamentam-se numtrabalho prvio de observao da realidade concreta e sensvel. No chegaro a ser consistentes fora do campode uma investigao emprica.

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    3. Esta observao emprica no tem como finalidade conhecer as coisas em si, uma tarefa tanto impossvelcomo infrutfera. Deve, sim, permitir-nos estocar informaes de diferenas existentes entre essas realidadesobservadas. Ser a partir dessas informaes de diferenas que se construiro e nascero nossas idias.

    Duas outras paisagens em direo a uma epistemologia da comunicao.

    Ter-se-ia notado que, na perspectiva de Bateson, a comunicao encontra-se no corao da elaborao de toda ede qualquer epistemologia. A cincia do saber apoia-se e somente pode se desenvolver com base numaobservao e a partir de uma estocagem de informaes.

    Gostaria, desta maneira, de esboar para terminar duas paisagens heursticas que nos permitiriam avanarem direo a uma epistemologia da comunicao: algumas perguntas em torno da observao, de um lado;alguns outros questionamentos referentes estrutura que liga (the pattern which connects) todas as criaturasvivas, de outro.

    Da observao

    Como antroplogo (pois todos sabem que a observao a base do ofcio de todo antroplogo), continuo mequestionando. Pergunto-me: O que significa observar? O que observar? Como observar?... Mas, tambm, serque uma imagem, por exemplo, no nos permitiria eventualmente observar o que nosso olho no capaz deperceber e por que razo? Eis uma primeira srie de questes aparentemente banais e, por esse motivo, muitasvezes relegadas ou simplesmente ignoradas. Uma epistemologia da comunicao deveria lhes dar, penso, umaprioridade.

    Levanto, no entanto, algumas outras interrogaes. Sabemos que no existiria observao possvel sem aexistncia de nossos rgos sensoriais (a viso sem dvida, mas, tambm, a audio, o olfato, o paladar, o tato, ogestual, etc.). Eis um dado bvio. Mas o que sabemos realmente desses canais fundadores da comunicao

    humana? Como cada um deles funciona? Como esses canais se relacionam e se inter-relacionam? Quais seriam aslgicas de funcionamento de cada desses rgos sensoriais, embutidas num nico crebro? Ainda mais: quaisseriam as relaes existentes entre as funes e performances cognitivas (perceber, decidir, inferir, estimar,corrigir, memorizar) cravadas, ou na nossa visualidade, ou na nossa audio, ou no nosso olfato... Essas questes,evidentemente, pertencem diretamente ao campo da neurologia cerebral e das neurocincias cognitivas. Masser que, numa perspectiva batesoniana, no deveriam interessar a todos os comuniclogos? Ser que oespecialista da comunicao, o antroplogo, o bilogo, o matemtico podem, de antemo, ignorar acomplexidade e a importncia dessas questes em nome da especificidade de sua cincia?

    Tratando das imagens que - sabemos - so de natureza to diversa (imagem fotogrfica, cinematogrfica,videogrfica, infogrfica...), ser que no valeria a pena chegar a entender melhor como, a partir de simples sinais

    luminosos, construem-se essas diversas imagens dentro do crebro, ao passar pelo impressionante laboratriofotoqumico e pela rede tica das clulas retinianas, que transformariam, segundo Changeux11, esses sinais emobjetos mentais, gnese de todo pensamento? Nesta linha de reflexo, valeria lembrar, tambm, a idia depensamento sensorial, um conceito que j desenvolvia, nos anos 30 do sculo XX, o cineasta russo Eisenstein(que conhecia os trabalhos do filsofo francs Lucien Lvy-Bruhl, recentemente revisitados por Claude Lvi-Strauss e Jack Goody sob os vocbulos respectivos de Pensamento selvagem e de Domesticao dopensamento selvagem). Ser que todas essas questes permaneceriam alheias elaborao de umaepistemologia da comunicao ou de uma Epistemologia tout-court?

    A estrutura que liga (the pattern which connects) os seres vivos.

    Toda a obra batesoniana fica perpassada por uma determinao e uma busca: Procuro a estrutura que liga osseres vivos. Bateson dir: Qual a estrutura que liga o caranguejo do mar lagosta e a orqudea prmula? E oque os liga, eles quatro, a mim? E o que me liga a vocs? E ns seis ameba, por uma lado, ao esquizofrnico que

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    Alm dessas obras, convm acrescentar:

    - Bateson Mary Catherine. With a Daughters Eye, New York, William Morrow and Company, 1984. Versofrancesa: Regard sur mes parents. Une vocation de Margaret Mead et de Gregory Bateson, Paris, Seuil, 1989.

    - (Coletivo) Bateson: Premier tat dun Hritage. Colloque de Cerisy sous la direction dYves Winkin, Paris, Seuil,1988.

    - Lipset, David. Gregory Bateson. The Legacy of a Scientist, Boston, Beacon Press, 1982.

    - Winkin, Yves. A nova comunicao. Da teoria ao trabalho de campo, Campinas, Papirus Editora, 1998.

    Campinas, junho de 2001

    Notas

    1 Bateson, Gregory. Steps to an Ecology of Mind, Chandler, 1972.

    2 Bateson, Gregory e Mead, Margaret. Balinese Character. A Photographic Analysis, New York, The New YorkAcademy of Sciences, 1942. Reimpresso: 1962.

    [3] Um conceito (ethos) que deve muito ao de configurao e de modelo cultural [pattern] elaborados porRuth Benedict: Patterns of Culture (1934) e que Bateson j definir e explorar na sua primeira monografiaantropolgica: Naven. A Survey of the Problems suggested by a Composite Picture of the Culture of a NewGuineia Tribe drawn from Three Points of View (1936).

    4 Wiener, Norbert. Cybernetics, or Control and Communication in Animal and the Machine, Paris, Hermann, 1948.

    5 Shannon, Claude e Weaver, Warren. The Mathematical Theory of Communication, Urbana-Champaign (III),University of Illinois Press, 1949.

    6 O conceito batesoniano de estrutura ligando, em termos comunicacionais, seres vivos entre si, fundamental na obra do antroplogo e pensador que pretendemos estudar. Situa-se nos antpodas do conceito(eminentemente abstrato) de estrutura elaborado por Claude Lvi-Strauss.

    6a Mind and Nature. A Necessary Unity, New York, Dulton, 1979, o ltimo livro publicado por Bateson antes desua morte (1980). Verso portuguesa A Natureza e o Esprito. Uma unidade necessria, Lisboa, Quixote, 1987 e

    brasileira (Francisco Alves), 1993.

    7 Bateson, Birdwhistell, Goffman, Hall, Jackson, Scheflen, Sigman, Watzlawick. La nouvelle communication. Textesrecueillis et prsents par Yves Winkin, Paris, Seuil, 1981 (com vrias reedies desde ento). O livro, na primeiraparte, faz uma apresentao geral e histrica da ecloso da Escola de Palo Alto, descreve os seus componentese faz um sntese de seus principais empreendimentos. Na segunda parte do livro, Yves Winkin oferece, para cadados integrantes do Colgio Invisvel, um texto particularmente significativo e representativo do pensamento decada um dos autores, seguido de uma entrevista com os prprios.

    8 0 que todo aluno sabe o ttulo do segundo captulo de Mind and Nature. A Necessary Unity, New York,Dulton, 1979. Alm das idias desenvolvidas neste captulo, que Bateson qualifica, no sem humor ou ponta de

    ironia, de idias muito elementares sobre a epistemologia, remeto a um dos seus ltimos artigos (de duasdensas pginas), escrito e publicado em 1979: The Science of Knowing, in The Esalen Catalog, 17, n2 (abril-

    junho), p. 6-7.

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    9 Id. Mind and Nature. A Necessary Unity . p.15.

    10 Id. The Science of Knowing, p.7.

    11 Changeux, Jean-Pierre. Lhomme neuronal, Paris, Fayard (Col. Pluriel), 1983.

    ETIENNE SAMAIN professor do Programa de Ps-Graduao em Multimeios da UNICAMP- Brasil