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Epistemologia das Ciências Sociais Paulo Augusto Seifert Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br

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FundaçãoBiblioteca

NacionalISBN

978-85-387-3139-9

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das Ciências Sociais

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Paulo Augusto Seifert

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Paulo Augusto Seifert

Epistemologia das Ciências Sociais

IESDE Brasil S.A.Curitiba

2012

Edição revisada

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© 2007 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ __________________________________________________________________________________S46e Seifert, Paulo Augusto Epistemologia das ciências sociais / Paulo Augusto Seifert. - 1. ed., rev. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2012. 126p. : 28 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-3139-9 1. Ciência - Filosofia. 2. Ciências sociais - Filosofia. 3. Teoria do conhecimento. 4. Epistemologia social. I. Título.

12-7088. CDD: 121 CDU: 165

28.09.12 15.10.12 039465 __________________________________________________________________________________

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: Shutterstock

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Sumário

Conhecimento, crença e fé | 7Sabemos o que julgamos saber? | 7O que é epistemologia? | 8Noções básicas em epistemologia: conhecimento, crença e fé | 10Conclusão | 13

Conhecimento e ceticismo | 15Anatomia do ceticismo | 15A dúvida cartesiana | 16Como responder ao cético? | 20Condições para o conhecimento | 20

Teorias epistemológicas | 25Fundacionalismo | 25Coerentismo | 30Antifundacionalismo | 31A epistemologia e as ciências sociais | 32

Relação entre ciências sociais e ciências naturais | 37Quantos tipos de ciência há? | 37Diferença de grau e de tipo | 41Naturalismo | 42Antinaturalismo | 43

Natureza humana e liberdade | 47É possível uma ciência da natureza humana e da sociedade? | 47Possibilidade e necessidade | 48Tipos de liberdade | 51

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Determinismo, indeterminismo e ciência | 57O problema | 57Determinismo | 58Indeterminismo | 63

Explanação científica | 67Explanação e leis | 67Indutivismo | 68Esclarecimentos conceituais | 71Dedutivismo | 72

Holismo e individualismo | 77Totalidades e partes | 77Entes sociais e indivíduos | 77Holismo metodológico | 78Individualismo metodológico | 80

Causalidade e realidade | 85O que significa dizer que A causou B? | 85Critérios de causação | 87Condições necessárias e suficientes | 88Ciência e realidade | 89

O sujeito e o objeto | 95Objetividade e subjetividade | 95Sobre o que é e o que deve ser | 96A origem dos valores | 98Os valores e os estudos sociais | 102

O comportamento significativo | 107Peter Winch e a ideia de uma ciência social | 107A organização da sociedade | 108Motivos, razões e propósitos | 111

Estudo de caso: a Teoria da Ciência de Lakatos | 115Falsificacionismo dogmático | 116Falsificacionismo metodológico | 117Falsificacionismo sofisticado | 118

Referências | 123

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Apresentação

Ciência é hoje sinônimo de conhecimento, não só etimológica, mas também

descritivamente. As pessoas se acostumaram a considerar que as explicações

que provêm da Ciência são melhores e mais verdadeiras do que aquelas

explicações que provêm do senso comum. Ou, por outro lado, que a Ciência

comprova aquilo que já se sabia de forma empírica ou intuitiva, e, assim

fazendo, atesta o conhecimento popular. Como na sentença, por vezes

utilizada em meios de comunicação, “a Ciência provou aquilo que nossas avós

sabiam”. Embora isto seja também um elogio ao conhecimento das avós, a

força da sentença se encontra no sujeito e no verbo. Ora, o termo “ciência”,

nesses contextos, designa uma atividade organizada, metódica, experimental,

executada por pessoas treinadas em determinadas áreas e metodologias. Esta

confiança na Ciência e nos cientistas é relativamente recente na história da

humanidade, data de aproximadamente 500 anos, e vem crescendo desde o

surgimento do que se chama ‘ciência moderna’. Parte significativa da confiança

está relacionada com os efeitos práticos, com os sucessos obtidos por diversas

ciências em melhorar a vida das pessoas. Não se pode duvidar, sensatamente,

que a vida é em geral melhor hoje do que era há mil anos ou mais. Por outro

lado, problemas gerados pelo desenvolvimento científico, como poluição,

aquecimento global, novas doenças, serão resolvidos, pensam muitos, com

mais Ciência.

Desde o século XIX, costuma-se dividir as diversas ciências em naturais e

sociais. Se ciência, então, é sinônimo de conhecimento, ciências sociais são

aquelas que nos possibilitam um conhecimento mais preciso, “científico”, da

sociedade, isto é, das instituições e fenômenos sociais. Vivemos, e precisamos

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viver, em sociedade; para tanto, saber como agir e interagir com outros é

fundamental, e todos temos, em maior ou menor grau, saberes sociais. Neste

livro, consideramos o saber social organizado nas ciências sociais de uma

perspectiva filosófica. Nosso assunto é justamente se e em que medida as

ciências sociais fornecem conhecimento confiável sobre a sociedade. Os textos

têm caráter introdutório, e foram pensados para estudantes universitários

que pretendem se dedicar às ciências sociais. A estrutura aqui observada é a

seguinte: inicialmente, considerações gerais sobre teoria do conhecimento, que

ocupa os capítulos 1 a 3; a partir do capítulo 4, a especificidade das ciências

sociais é levada em conta. Nesse capítulo, apresentam-se as duas concepções

gerais acerca da relação entre ciências sociais e ciências naturais. Os capítulos

5 e 6 tratam de questões filosóficas e metafísicas que dizem respeito aos seres

humanos, a saber, se somos livres em nossas ações. Dos capítulos 7 a 10, tópicos

importantes para as ciências sociais são considerados: como explicações

científicas são produzidas (cap. 7); a relação entre indivíduos e sociedade (cap. 8);

a relação entre Ciência e realidade (cap. 9); a relação entre quem conhece e

aquilo que é conhecido (cap. 10). Para finalizar, nos dois últimos capítulos,

discutem-se duas visões contrastantes de como fazer ciência social: a de que

o conhecimento da realidade social exige uma epistemologia e metodologias

exclusivas, diferentes das aplicadas nas ciências naturais (cap. 11); e a de que

a epistemologia e o método científico é basicamente o mesmo, independente

do objeto estudado (cap. 12). Espera-se que o futuro cientista social tenha, por

meio destes textos, contato inicial com um conjunto de questões, algumas

simples outras extremamente complexas, mas todas interessantes, acerca

da possibilidade e necessidade de um conhecimento científico da realidade

humana e social.

Paulo Seifert

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* Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de Filosofia na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), em Canoas/RS.

Conhecimento, crença e féPaulo Augusto Seifert *

Sabemos o que julgamos saber?O famoso filósofo grego Platão conta, em um de seus livros intitulado A República, uma história

conhecida como o Mito da Caverna. De acordo com esta alegoria, um grupo de pessoas vive preso dentro de uma caverna e, em razão de certas circunstâncias, tudo que eram capazes de ver se restringia às sombras projetadas no fundo da caverna. Essas sombras eram de seus próprios corpos, bem como de objetos e dos corpos de outras pessoas que viviam fora da caverna. As imagens desses objetos e corpos eram projetadas no fundo da caverna em razão de uma fogueira que se encontrava na entrada da mesma. Como as pessoas lá dentro só viam tais sombras elas julgavam que as sombras correspondiam ao real, e aquilo lhes parecia verdadeiro. Quando uma delas consegue se libertar e sair da caverna, fica inicialmen-te aturdida pela luz do sol e pela visão dos objetos reais. À medida que se acostuma, percebe então se-rem as coisas que ela vê fora da caverna o verdadeiramente real, e aquilo que via quando estava dentro da caverna eram apenas sombras.

Essa alegoria sugere que nem sempre aquilo que acreditamos ser verdadeiro realmente o é, e po-demos estar enganados naquilo que nos parece óbvio. Todos nós julgamos que sabemos certas coisas, especialmente aquelas que nos são familiares, aquelas das quais temos experiências constantes, repe-tidas, cotidianas. Tais experiências nos parecem confiáveis. Mas será que elas realmente são confiáveis? Um exemplo simples pode nos mostrar que talvez não, ou que, pelo menos em algumas situações, tal confiabilidade pode ser posta em dúvida. Aprendemos que há boas razões científicas para dizer que, contrário às aparências, o Sol não se move em torno da Terra, mas o inverso é verdadeiro. A Terra des-creve um movimento elíptico ao redor do Sol. Mas não é isto que percebemos. Percebemos que o Sol ora está em um lugar, ora em outro. Quanto à Terra, não vemos e nem sentimos que ela se move. Contudo, como a ciência nos ensina, aquilo que vemos é falso, e aquilo que nem vemos e nem sentimos é, neste caso, verdadeiro. Como isto pode ser? Não deveríamos nos fixar em nossas próprias percepções, e nelas acreditar? Acreditar somente naquilo que podemos ver ou sentir?

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8 Conhecimento, crença e fé

Acontece que nós temos, também, experiência de que nossos sentidos nos enganam, e que, por vezes, vemos coisas que não estão realmente ali, ou nos enganamos sobre as características dos objetos que percebemos. Quem já não passou pela experiência de, no entardecer, julgar que certo objeto visto era um pequeno animal (um cachorro, digamos), e ao se aproximar, perceber que era um arbusto. Cada um de nós pode pensar e lembrar de diferentes momentos em que nos enganamos quanto a sensações que tivemos; pode-se lembrar ainda a experiência de sonhos ou pesadelos intensos, de cujo caráter ilu-sório só nos damos conta ao despertarmos. E, se a situação é assim no que diz respeito a sensações co-muns, fica ainda mais complicado quando se tratam de teorias científicas, seja em ciências naturais ou em ciências sociais. Por exemplo, se tomarmos uma ciência social como a história, podemos estender esta dúvida da qual estávamos falando, e perguntar: como saber o que aconteceu em um passado dis-tante (antiga Roma, por exemplo) se dependemos dos testemunhos de outras pessoas, e de seu teste-munho escrito já que não mais estão vivas, e testemunhas não são muito confiáveis, e textos podem ter sido adulterados, e assim por diante?

O que é epistemologia?

Epistemologia geralQuestões como as do parágrafo anterior são tratadas pela epistemologia. Quando são questões

gerais que se referem a qualquer área da ciência, da moral, da religião, da filosofia, constitui o que se pode chamar de epistemologia geral. Por exemplo, a questão acerca da natureza e dos limites de nosso conhecimento (o que podemos saber?; o que podemos provar?) é desse tipo. Os filósofos costumei-ramente distinguem três tipos básicos de conhecimento, relacionados à forma como usamos o ter-mo “conhecer” ou “saber”: (1) conhecimento proposicional ou conhecimento de que algo é assim ou assado. Quando alguém diz: “eu sei que Jesus Cristo era judeu”, ela está usando o verbo saber em seu sentido proposicional1; (2) conhecimento direto ou por familiaridade, conhecimento este ligado ge-ralmente à observação de algo. Se alguém diz: “Eu conheço Salvador”, ele está nos dizendo, mesmo que indiretamente, que lá esteve, visitou a cidade, e assim por diante. Aqui, o termo “conhecer” é usa-do em sentido não proposicional; (3) conhecimento como habilidade, aquele relacionado com a capa-cidade de fazer algo. Se eu digo “sei nadar”, estou afirmando possuir uma certa habilidade. Essas são formas diferentes de conhecimento. Como se relacionam? Um desses tipos é mais fundamental, dele dependendo os outros?

1 “Proposição” é o termo usado pelos filósofos para distinguir uma certa espécie de sentença de outras, a saber, proposição é aquela sentença passível de atribuição de um valor de verdade. Pode-se dizer de uma proposição que ela é verdadeira ou falsa; aplica-se a ela o princípio do terceiro excluído. Assim, uma sentença como “Está chovendo agora” pode ser verdadeira ou falsa; é, portanto, uma proposição. Já a sentença “Feche a janela” não pode ser verdadeira nem falsa, pois é uma ordem, não afirma nem nega algo; é, portanto, uma sentença não proposicional. Da mesma forma, quando expressamos sentimentos, estamos usando a linguagem de modo não proposicional. Por exemplo, quando o ena-morado diz à amada, “você partiu-me o coração em pedaços”, essa sentença não é verdadeira nem falsa.

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Conhecimento, crença e fé 9

Mesmo que não se assuma explicitamente que o chamado conhecimento proposicional é o mais fundamental, geralmente as discussões epistemológicas giram em torno deste tipo. E se faz especialmente uma distinção em dois subtipos: conhecimento proposicional a priori e conhecimento proposicional a posteriori. O conhecimento a posteriori é o conhecimento empírico, aquele dependente da experiência perceptual. Embora não se possa simplesmente equiparar percepção com sensação (pense na alegação de que há percepção extrassensorial ou de que há intuição), a experiência senso-rial é tida, neste contexto, como o modelo privilegiado de experiência e fundamento do conhecimento empírico. Assim, por exemplo, quando se pede pelas evidências de que algo é verdadeiro, a pessoa frequentemente está solicitando que se apresentem elementos ligados às sensações, como algo que se viu, ou ouviu, ou se tocou, assim por diante. O conhecimento a priori é o conhecimento racional independente da percepção, aquele conhecimento cuja comprovação não precisa fazer referência alguma a uma experiência sensorial ou de outro tipo, se houver. Aquilo que nós sabemos antes (no senti-do lógico) de qualquer experiência, ou, como alguns preferem dizer, o conhecimento inato em nós.

Um dos mais importantes debates na epistemologia ocorre em referência a esta distinção entre o a priori e o a posteriori, ou, como também é chamado, as verdades de razão e as verdades de fato. Um exemplo de verdade de razão é “algo é igual a si mesmo”; um exemplo de verdade de fato é “Machado de Assis escreveu Dom Casmurro”. Esse debate opõe os empiristas aos racionalistas. Segundo o empi-rismo, todo e qualquer conhecimento depende, em última análise, da experiência sensorial. Se não for possível, em relação a qualquer fato ou objeto que se diz conhecer, apontar para alguma experi-ência a ele relacionado, tal suposto conhecimento é ilusório ou fantasioso. As verdades de razão não são inatas, mas adquiridas, e consistem em relações de ideias, não em um saber acerca da realidade. Já para o racionalismo, nem todo conhecimento depende da experiência sensorial; pelo contrário, as verdades mais fundamentais sobre a realidade são não sensoriais, e as percepções devem ser julgadas por meio dessas verdades, ou desses conhecimentos fundamentais. Assim, em oposição aos empi-ristas, os racionalistas concebem as verdades de razão como inatas, e elas se referem à realidade tal como é e não apenas às nossas ideias. O que significa que podemos obter algum conhecimento sobre o mundo também raciocinando, sem necessidade de ter experiências ou fazer experimentos. A mesma distinção é expressa em outros pares de opostos, como verdades necessárias/verdades contingentes, juízo analítico/juízo sintético.

Epistemologia aplicadaQuando questões como as mencionadas acima são tratadas em relação a alguma área espe-

cífica das ciências, ou a um tópico específico de uma ciência determinada, constitui o que podemos chamar de epistemologia aplicada. Por exemplo, a questão acerca do papel da memória no conheci-mento histórico, ou o assunto deste livro, epistemologia das ciências sociais. A epistemologia apli-cada não difere essencialmente, portanto, da epistemologia geral, nem aplicada aqui significa algo técnico. Apenas que há problemas epistemológicos que afetam qualquer área de conhecimento e outros que dizem respeito a determinadas áreas, mas não a outras. Há uma diferença, por exemplo, no que se refere à epistemologia da matemática e no que se refere à epistemologia da religião. Uma importante questão diz respeito a se existe alguma diferença epistemológica, e qual é, no que se refere às ciências naturais (como a Física, a Química, a Biologia) e às ciências sociais (como a Sociologia, a História, a Antropologia).

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10 Conhecimento, crença e fé

Episteme e doxaEpistemologia é um termo que provém do grego, e pode ser traduzido por “discurso sobre o

conhecimento” ou “teoria do conhecimento”2. A palavra grega episteme significa conhecimento, mas em um sentido forte (como era usual para os gregos, mas não o é para nós), o que hoje chamaríamos de conhecimento absoluto, aquele do qual somente um tolo duvidaria. Os gregos usavam esse termo para diferenciá-lo de um outro tipo de saber, aquele que chamavam de doxa, termo cuja tradução apropriada é opinião. E justamente, desde lá, consiste a tarefa fundamental da epistemologia, seja geral ou aplicada, em determinar a diferença entre conhecimento (episteme) e opinião (doxa), especialmente opinião ver-dadeira. Os gregos perceberam que ter uma opinião que corresponde aos fatos não é necessariamente conhecer os fatos. Como assim?

Noções básicas em epistemologia: conhecimento, crença e féPara um melhor entendimento do que se discute em epistemologia, convém diferenciar inicial-

mente as noções ligadas aos termos conhecimento, crença e fé. As distinções e relações que seguem não são exaustivas, e não pretendem cobrir todo o espectro do uso e significado de tais termos, mas somente esclarecer alguns pontos importantes e fundamentais para que possamos adequadamente diferenciar ciência e opinião.

Crença e conhecimentoO termo crença pode ser usado em um sentido lato (amplo) e/ou em um sentido estrito. No sen-

tido lato, inclui o conhecimento; no estrito, frequentemente é usado em contraposição a conhecimento. Quando digo que conheço algo (por exemplo, que sei que 3 . 3 = 9), então é também verdade que acre-dito nisso. Não faz sentido dizer que sei que 3 . 3 = 9, mas ao mesmo tempo dizer que não acredito que 3 . 3 = 9. Por outro lado, faz sentido dizer que acredito que Maria tem menos de 30 anos, mas não o sei, ou, como algumas pessoas também se expressam, que não tenho certeza. Qual a diferença?

Segundo muitos filósofos, quando digo que sei que uma certa sentença é verdadeira, três elementos pelo menos devem estar presentes: primeiro, que eu penso ser ela verdadeira; segundo, que ela é de fato verdadeira; e terceiro, que há evidência suficiente para produzir o assentimento de qualquer pessoa racional (a quem as mesmas evidências estejam disponíveis). Por exemplo, se digo que sei que Maria tem menos de 30 anos, e apresento como evidências sua certidão de nascimento, o testemunho de seu pai, sua carteira de identidade e outras provas similares, então qualquer pessoa racional deveria concordar comigo. Isso, entretanto, não exclui a possibilidade de que eu esteja errado. Se restringirmos a aplicação do termo conhecimento tão somente àquelas sentenças em relação às quais é impossível logicamente que estejamos errados, de pouca coisa poderíamos dizer que as conhecemos. Por exemplo, consideremos a sentença: “se penso, existo”; ou, na sua formulação clássica: “penso, logo existo”. Para qualquer um que afirma uma tal sentença, é impossível, sob qualquer circunstância imaginável ou concebível, que ele esteja errado; pois não há como alguém dizer “penso, mas não existo”. Ao dizer isto, a pessoa se contradiz, isto é, diz algo e logo

2 Composto por duas outras palavras: episteme + logos.

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Conhecimento, crença e fé 11

após diz o contrário do que disse. Isso não faz sentido. É como se nada dissesse. Contudo, tal peculiaridade não ocorre com a maioria das coisas que dizemos ou nas quais acreditamos. Quando digo “Maria tem menos de 30 anos”, isto pode ser falso, ou poderia ser diferente, ou pode ter sido verdadeiro no passado, mas agora não é mais. Em suma, posso estar enganado.

Assim, se evidências posteriores alterarem a situação, eu não poderia continuar dizendo que sei, ou sabia, que Maria tem menos de 30 anos, mas deveria então dizer que, dadas as evidências disponí-veis naquele momento, eu estava justificado em dizer que sabia. Por exemplo, se alguém mostrar que a certidão de nascimento de Maria é falsificada, e que o testemunho do pai dela depende do testemunho da mãe, já falecida (pois ele só veio a conhecer a menina quando já crescida, digamos, com um ano e meio), então teria eu agora evidências que excluem as evidências anteriores nas quais baseava minha crença, mesmo que seja efetivamente verdadeiro, objetivamente considerado, que Maria tem menos de 30 anos. Esse importante ponto mostra como o segundo elemento, mencionado antes (a saber, que quando dizemos saber algo, que este algo seja realmente verdadeiro) é problemático.

A diferença fundamental, portanto, entre conhecimento e crença (no sentido estrito) está no grau de evidência disponível. Uma crença não é necessariamente algo em que acredito sem ter nenhuma razão para tal, mas algo em que acredito sem possuir evidências suficientes (e estou disto ciente) para compelir ao assentimento qualquer pessoa racional. Daí ser adequado falar em graus de crença. Esses graus de crença seriam estabelecidos de acordo com sua relação às evidências, o que se chama de prin-cípio de proporcionalidade. Repetindo, o grau de uma crença, isto é, a força probatória que a sustenta, está em proporção direta com as evidências, com as razões que são apresentadas em seu favor, e inver-samente proporcional às contraevidências, as razões apresentadas contra ela. Quanto maior a evidência a favor, mais forte (objetivamente) a crença.

Agora, nem todas as crenças podem ou devem ser provadas; nem todas as crenças exigem evi-dências. Porque, se fosse necessário provar cada uma de nossas crenças, esta seria uma tarefa infinita: seria necessário apresentar a prova de uma crença, a prova da prova, a prova da prova da prova, e assim por diante, sem fim. Estaríamos na situação daquele personagem mítico, cuja tarefa era rolar uma pe-dra até o topo de uma montanha, mas, pouco antes de conseguir, a pedra rolava montanha abaixo, e ele tinha de recomeçar tudo de novo, sem fim.

O que fazer então? Parece haver três alternativas possíveis. Primeiro, manter que há crenças auto-evidentes, isto é, cuja verdade é conhecida por si mesma e não necessita, portanto, de prova alguma. Já mencionamos um exemplo: “penso, logo existo”. Alguns filósofos argumentaram que somente quando nossas crenças se baseiam em tais verdades autoevidentes podem elas ser consideradas conhecimento, no sentido próprio do termo. Ou, como preferem alguns, na esteira da concepção grega, conhecimento absoluto. Somente nesses casos especiais não haveria diferença entre crer e conhecer.

A segunda alternativa consiste em, numa certa altura do processo de prova, simplesmente nos darmos por satisfeitos com as evidências apresentadas, e aceitar a crença mesmo não tendo certeza absoluta de que é verdadeira. Essa aceitação pode se dar de dois modos: ou se aceita a crença plenamen-te, ou se aceita a crença provisoriamente3. Se a crença for aceita plenamente, julga-se que ela é verdadeira e confiável, e somente se volta a considerá-la se alguém apresentar uma contraevidência forte. Muitas das crenças que as pessoas têm são deste tipo: crenças acerca das propriedades dos objetos (de que cor são, que cheiro têm, qual seu tamanho etc.), crenças baseadas na memória (o que ocorreu ontem, o que os ou-

3 Conforme a classificação proposta por Mikael Stenmark, no texto “Racionalidade e compromisso religioso”, publicado na revista Numen, v. 2, n. 2, jul. dez. 1999.

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12 Conhecimento, crença e fé

tros disseram etc.), crenças baseadas no costume (que o Sol aparecerá novamente, que o leite alimenta, que o fogo queima etc.). Se a crença for aceita provisoriamente, não se recusa a crença, mas se julga que há necessidade de investigá-la mais, mesmo se ela própria é tomada como ponto de partida da investi-gação. Nesse caso, é possível proceder de duas maneiras: (1) buscar ativamente contraevidências, isto é, provas de que a crença está errada; (2) buscar ativamente novas evidências a favor da crença. As teorias científicas são normalmente, ou pelo menos inicialmente, desse tipo. Por exemplo, quando os astrôno-mos no século XVI passaram a aceitar a teoria copernicana (o heliocentrismo), a crença em tal teoria era inicialmente provisória. Usando elementos da própria teoria no processo de investigação, os cientistas encontrarão poucas contraevidências e muitas evidências novas a favor da teoria; assim, a crença em tal teoria passou a ser plena. Isso é o que os filósofos chamam de conhecimento provável ou conhecimento probabilístico.

A terceira alternativa possível diante da questão acerca dos fundamentos de nossa crença consiste em simplesmente reconhecer que algumas crenças não têm fundamento e nem são autoevidentes: ou as consideramos verdadeiras ou as consideramos falsas. Alguns as chamam de crenças fundamentais, e se justificam somente por fé. Um exemplo desse tipo de crença é a de que existem objetos físicos reais, inde-pendentes da forma como os percebemos, e com características realmente similares àquelas que as nossas sensações desses objetos nos fazem crer. Isso se chama crença na existência do mundo exterior. Há filósofos que, ao considerar o valor epistemológico desta crença, argumentaram que ela não pode ser provada e nem é autoevidente. Logo, concluíram que aceitamos tal crença porque temos fé na sua verdade.

Crença e féConforme o argumento do parágrafo anterior, fé seria um tipo de crença. Mas precisamos estar

atentos aqui, especialmente tendo em vista as associações usuais com o termo fé. Este contexto pode levar a ambiguidades epistemologicamente indesejáveis; mas, mesmo assim, ele é apropriado, bastando que tenhamos certos cuidados. Por fé muitas vezes se entende aquela crença que envolve intensidade no assentimento4, e liga-se emocionalmente à pessoa, de forma que, se estiver errada ou se for atacada, provocará sério desapontamento. Geralmente, o termo está ligado a crenças religiosas, mas não é exclusivo delas.

Levando em consideração o que foi dito até aqui, sendo a fé uma forma de crença, embora mais intensa, não se deve julgar de imediato que fé é algo irracional. Este tópico, sobre a racionalidade ou irracionalidade da fé (e quando é discutido, geralmente os filósofos estão se referindo à fé religiosa), é complexo, pois o termo fé é normalmente aplicado a um conjunto bastante amplo de sentenças (por exemplo, quando se fala na fé cristã), e pode ser o caso de serem algumas destas sentenças racionais e outras irracionais. Se considerarmos o conceito fé de um ponto de vista estritamente epistemológico, e no contexto da discussão feita aqui, a fé não é racional nem irracional. No limite, uma crença seria irracional se a pessoa que a mantém não fosse capaz de produzir evidência alguma em seu favor, e há diversas contra evidências disponíveis. Mas uma crença pode ser racional sem que seja aceita por todas as pessoas racionais que a discutem. Ela não constituiria assim um conhecimento, a não ser em um sentido derivado.

4 Veja o texto de John Locke na seção “Texto complementar”.

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Conhecimento, crença e fé 13

ConclusãoPodemos, então, concluir que uma das tarefas principais da epistemologia consiste em esclarecer

o uso da ideia de conhecimento, quais os critérios que precisamos utilizar para não confundi-lo com crença em sentido estrito ou com fé, quais os seus componentes, como obtemos conhecimento e qual o seu alcance. Não devemos supor, no entanto, que as respostas a essas questões serão exatamente cor-respondentes em qualquer área de conhecimento. Por essa razão, quando procuramos compreender epistemologicamente as ciências sociais, sem dúvida temos de considerar questões epistemológicas gerais, mas não precisamos supor previamente que não há diferenças importantes entre esta e outras áreas de conhecimento.

Texto complementar(LOCKE, 1990, p. 687-688)

“Fé nada mais é que um forte assentimento da mente, o qual, se bem conduzido, conforme nosso dever, não pode ser dado a qualquer coisa a não ser tendo-se boas razões [...] Aquele que crê, sem ter qualquer razão para crer, pode estar enamorado de suas próprias fantasias. Mas não procura a verda-de como deve nem presta a devida obediência a seu Criador, que deseja faça ele uso das faculdades de discernimento que recebeu para evitar o erro e o prejuízo. Quem não faz isso usando o melhor pos-sível suas faculdades, se às vezes atinge a verdade é antes por acaso do que por estar certo; e eu não sei se a sorte do acaso (acidente) excusará a irregularidade do procedimento.”

John Locke, Um Ensaio sobre o Entendimento Humano, livro IV, capítulo XVII, parágrafo 24. Locke (1632-1704), um dos mais importantes filósofos ingleses e considerado um dos principais criadores da epistemologia contemporânea. A tradução é feita do original inglês.

Atividades1. Considerando o que você viu até o momento sobre epistemologia, explique que uso ou aplicação

pode ter tal estudo na área das ciências sociais.

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14 Conhecimento, crença e fé

2. Faça uma lista de 20 crenças que você aceita, das quais dez você julga ter conhecimento e dez você aceita por fé. Compare com as listas de outros dois colegas e procure determinar as seme-lhanças e diferenças.

3. Por que é importante ter uma definição de conhecimento?

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Conhecimento e ceticismo

Anatomia do ceticismoAtualmente, o termo “ceticismo” é usado como antônimo de “conhecimento”, e cético é aquele

indivíduo que descrê da possibilidade de se conhecer algo, ou, conforme alguns se expressam, que não somos capazes de determinar se nossas crenças são verdadeiras ou não. Por vezes, o termo é também usado como sinônimo de incredulidade. Como na história da humanidade, a maioria das pessoas creu ou crê em Deus (sejam os deuses muitos ou um só), e tal crença não é considerada como uma mera opinião, mas se refere a um Ser que realmente existe; aquele que duvida da verdade de tal crença é chamado de cético. Nesse caso, é um cético religioso, como há outras modalidades de ceticismo, relati-vos à moral, à ciência etc. O que interessa para nós, nesse contexto, é um tipo de ceticismo mais básico, que, de alguma forma, sustenta outros ceticismos: o ceticismo epistemológico; aquele que consiste em negar a possibilidade de conhecimento ou mesmo de crença racional. Essa negação pode se referir a um tópico específico (no exemplo, a possibilidade de crença racional na existência de Deus) ou a todos os tópicos. O primeiro tipo é mais comum, e alguém pode ser cético com respeito a uma área de co-nhecimento, embora não o seja em relação à outra área qualquer. O segundo tipo é mais raro, embora alguns filósofos tenham defendido um ceticismo abrangente.

Ceticismo não deve ser confundido com discordância de opiniões, embora o cético discorde daquele que afirma saber algo. A discordância de opiniões pode existir sem o menor vestígio de ceti-cismo. A certeza da falsidade de uma crença ou explicação baseada na certeza da veracidade de uma crença ou explicação oposta constitui antes um tipo de dogmatismo. Ocorre que a coexistência de dog-matismos excludentes suscita dúvida em relação à possibilidade mesma de se alcançar a verdade acer-ca do tópico, como mostra, por exemplo, a história da cosmologia no mundo grego ou a história das religiões nas sociedades em que o pluralismo religioso é permitido. Situação similar ocorreu no início da Idade Moderna, em que se verificavam diversos conflitos em áreas diferentes: na religião, os movimentos reformistas; na ciência, a disputa entre geocentrismo e heliocentrismo; na filosofia, a disputa entre os defensores da filosofia praticada à época nas universidades (cujo método fora elaborado no período medieval) e os proponentes da nova filosofia.

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Quando concepções céticas se apresentam, especialmente se a dúvida é argumentada e não apenas fruto de um desespero teórico, é preciso aceitá-las ou responder a elas. Pois não se tratam apenas de dúvidas particulares (por exemplo, se o objeto que vejo sobre a mesa é uma caneta ou um lápis), mas dúvidas gerais sobre a confiabilidade das formas em que adquirimos, testamos e raciocinamos sobre nossas crenças (por exemplo, se nossos sentidos nos dão acesso direto à realidade). Uma das formas históricas mais interessantes e influentes de considerar o desafio cético encontramos na epistemologia de Descartes.

A dúvida cartesianaRené Descartes (1596-1650), cientista e filósofo francês, é considerado por muitos historiadores

como o fundador da filosofia moderna. Uma das principais razões para lhe atribuir tal designativo está justamente na ênfase posta por ele no problema epistemológico. Embora não fosse um cético, Descartes fez uso sistemático da dúvida no intuito de obter conhecimento seguro. Aqui mostra sua originalida-de: diferente de seus predecessores, que procuraram refutar as dúvidas céticas por meio de argumen-tos contrários, ele propõe levar o princípio cético até suas últimas consequências e reconhecer como conhecimento seguro somente aquilo que resiste a qualquer dúvida possível, e assim fundamentar a ciência em solo seguro e inabalável. Em uma de suas principais obras, intitulada Meditações (1641), ele apresenta seu plano filosófico e diz:

Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verda-deiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e constante nas ciências. (1.ª Meditação, parágrafo 1. DESCARTES, 1983, p. 85.)

Na consecução de tal propósito, Descartes elabora um método que ficará conhecido na história do pensamento como “dúvida cartesiana” ou “método da dúvida”. Consiste ele em testar nossas pretensões de conhecimento contra o pano de fundo de hipóteses de dúvida, hipóteses estas que colocariam em xeque, especialmente, as fontes (ou princípios) por meio dos quais nós justificamos nosso conhecimento, e não aspectos particulares daquilo que se supõe ou afirma saber. Questionar cada uma de nossas opiniões particulares sobre cada objeto ou evento particular seria uma tarefa infinita e impossível, caso necessária. Contudo, como bem percebe e argumenta o filósofo francês, tal procedimento é desnecessário, pois se for-mos capazes de mostrar que as fontes ou princípios de nossas opiniões são duvidosos ou seguros, todo o resto que deles decorre ou neles se fundamenta segue o resultado daquela investigação. Por exemplo, se alguém não está certo de que o objeto que vê a uma certa distância é uma bicicleta ou uma motocicleta, esta é uma dúvida particular, cuja resolução usualmente supõe que, no geral, o sentido da visão nos forne-ce informações confiáveis sobre a realidade, e que pode, conforme o caso, ser auxiliado por algum outro sentido (do tato, digamos). Uma dúvida mais ampla seria aquela acerca da confiabilidade da visão como tal; ou, ainda mais geral, dos sentidos (já que a visão é apenas um deles).

Para que nós entendamos adequadamente o que Descartes pretendeu fazer, três pontos são impor-tantes. Primeiro, os argumentos que ele apresenta são nada mais que hipóteses de dúvida. Não está ele afirmando ou supondo que isto é realmente o caso. Segundo, as hipóteses de dúvida são abrangentes, e referem-se não a conhecimentos particulares, mas aos princípios do conhecimento. Terceiro, constituem

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uma dúvida metódica, dirigida a entender em que nossas opiniões se baseiam ou como se justificam, e não uma dúvida prática, relacionada a nossas ações. Quanto a estas, Descartes adota uma postura pruden-cial, julgando conveniente orientar as ações pelos usos e costumes da sociedade em que se vive.

Como ele constrói essas hipóteses de dúvida? O procedimento é relativamente simples: usar como ponto de partida algo geralmente aceito, acrescentando algumas modificações, conforme necessário, para o propósito da dúvida metódica, e então ampliar o alcance da situação inicial. O único limite para esta experiência de pensamento (ou experimento mental) está na admissibilidade lógica da suposição, por mais absurda que possa parecer ao senso comum ou do ponto de vista moral. Importa também perceber que uma hipótese de dúvida, assim construída, não é um argumento positivo, que efetivamente pretende estabelecer uma conclusão. Se assim fosse, o propósito mesmo da dúvida me-tódica seria de início abortado, pois em lugar de estender a dúvida o mais longe possível para verificar quais crenças resistem, já começaria apresentando algumas crenças como certas, isto é, aquelas propos-tas na hipótese de dúvida. Assim, quando lemos as suposições cartesianas, não devemos nos deixar le-var pela ideia de que Descartes estaria realmente afirmando que, por exemplo, tudo é um sonho; basta que seja possível. Essa é outra diferença significativa entre o método por ele utilizado e a forma em que o ceticismo se apresentou anteriormente na história da epistemologia.

Hipótese do engano dos sentidosEssa é a hipótese cética mais usual e relacionada à experiência comum. Em algum momento, todos

nós passamos pela experiência de crer, mesmo momentaneamente, em algo que subsequentemente se mostrou ser uma ilusão sensorial. Não nos enganamos muitas vezes quando julgamos acerca do tamanho dos objetos que se encontram distantes de nós? E quanto à sua cor? Não ouvimos por vezes palavras que não foram ditas? E, conforme as condições ambientais ou de nosso corpo, não sentimos os objetos ora de uma forma ora de outra? Aquilo que sob uma luminosidade nos parece preto, sob outra nos aparece azul. Aquilo que, conforme nossas disposições corporais, nos parece doce em uma ocasião em outra nos parece amargo. E assim por diante. A hipótese do engano dos sentidos consiste em ampliar essa experiência comum e indagar: se os sentidos nos enganam algumas vezes, o que nos garante que não nos enganam sempre ou na maioria das vezes?

Além do mais, a ciência física que estava sendo elaborada a partir do século XVI, e da qual Descartes é um dos criadores e defensores, mostrava com clareza que a confiabilidade posta nos sen-tidos, e a crença nas informações sobre o mundo deles derivadas, parecia equivocada; muitas das teo-rias e desenvolvimentos na astronomia e na óptica, por exemplo, explicavam os fenômenos por meio de descrições que contrariam nossos sentidos. Uma importante distinção, reconhecida largamente, ainda hoje, foi feita entre as qualidades secundárias e as qualidades primárias dos objetos físicos. Aquelas pro-priedades dos objetos diretamente acessíveis à percepção, às propriedades sensoriais imediatas (espe-cialmente as ligadas a um único sentido), foram sendo desqualificadas como propriedades essenciais explicativas dos objetos. Chamadas de qualidades secundárias, as cores, as sensações táteis, os cheiros, os sons, os gostos deixam de ser consideradas propriedades intrínsecas das coisas para serem concebidas como uma espécie de ação exercida pelas coisas sobre nós, seres sentientes. Assim, por exemplo, quan-do vejo um objeto azul (um sofá, digamos), o azul que vejo não se encontra no sofá, mas na intera-ção dos elementos que o compõem com a minha estrutura perceptiva. Para muitos dos pensadores da Idade Moderna, tal interação é explicada como uma forma de ação causal exercida pelo objeto sobre

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nossa sensibilidade. E, se nenhum ser percipiente existisse, não haveria cores, sons, sabores etc. Como diz Galileu: “ [...] muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas nos sujeitos externos [os objetos físicos], não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós”. Nessa passagem, Galileu utiliza como exemplo a sensação de calor, e argumenta que o calor não é uma propriedade real do fogo, mas a ação de suas propriedades reais (como figura, número, movimento) so-bre nós. “Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo [no caso, o corpo humano], o calor torna-se sim-plesmente um vocábulo” (GALILEI, 1987, p. 121). Essas propriedades reais foram chamadas de qualidades primárias, sendo as principais a figura, número e movimento, e somente essas podem ser estudadas cien-tificamente. Não que as conhecemos independentemente dos sentidos, mas temos delas noção mais clara em razão do exercício de reflexão e argumentação sobre os dados sensoriais.

Apesar de a hipótese do engano dos sentidos pôr em dúvida muito do que consideramos verda-deiro em relação aos objetos físicos, permanecem ainda confiáveis aquelas sensações mais próximas, como a que tenho ao ver minhas mãos escrevendo este texto no computador. Além do mais, sobra todo conhecimento relativo às qualidades primárias e o relativo ao que independe dos sentidos, como as ver-dades lógicas e as verdades matemáticas.

Hipótese do sonhoAssim como a hipótese anterior, a do sonho é extraída de uma experiência comum. Há sonhos

cuja intensidade faz parecer durante algum tempo que o sonhado, mesmo depois de acordarmos, realmente ocorreu; em alguns casos, permanece uma sensação corporal relacionada a algum evento no sonho. Somos, no entanto, capazes de fazer a distinção entre a vigília e o sonho, pelo menos para propó-sitos da vida usual. Contudo, conforme a intensidade e repetição de alguns sonhos, podem esses exercer uma influência importante sobre a vida desperta, que pode ser positiva ou perniciosa. Essa força dos sonhos fez com que se julgasse serem alguns deles mensagens divinas ou premonições, antecipações do real. O que mostra que a separação entre o sonho enquanto fantasia e a vida cotidiana enquanto realidade não é radical. E quando refletimos ou lembramos do sonho, nos damos conta de que aquilo que acontecia enquanto sonhávamos era, dentro do próprio sonho, real. Se nos damos conta de que é um sonho, já estamos pelo menos semidespertos.

A hipótese do sonho consiste em ampliar o alcance desta experiência e indagar: o que me garante que não estou agora, ou sempre, sonhando? O que garante a você, leitor, de que isto que está fazendo agora: lendo este texto, provavelmente sentado em alguma cadeira, ouvindo algum som ao redor, não seja parte de um sonho? Pois mesmo as coisas comuns que fazemos no cotidiano são muitas vezes tam-bém sonhadas. Assim como no cotidiano vejo mesas, livros, canetas, computador, também vejo as mes-mas coisas em alguns de meus sonhos. Então, como eu sei que agora estou desperto e não sonhando? Se penso cuidadosamente nisso, diz Descartes, não há critérios suficientemente claros para distinguir a vigília do sono. Digamos que acordo, e isto me permite fazer a diferença; mas pode ser também ilu-sório, e este despertar faz parte de um sonho maior, e dentro deste sonho maior temos sonhos me-nores e aparência de vigília. Essa hipótese não é absurda, logicamente considerada; é perfeitamente possível que seja verdadeira. O cinema contemporâneo, graças aos recursos tecnológicos hoje dispo-níveis, tem produzido filmes que trabalham essa possibilidade, como Matrix. Em um famoso romance,

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O Mundo de Sofia, a personagem principal, Sofia, descobre em um determinado momento que ela não é uma menina que realmente existe (como achava até aquele momento), mas uma personagem em uma história. Essa descoberta não faz com que ela se torne uma pessoa real, mas faz com que ela procure meios de sair de dentro da história. E se esse fosse o caso de cada um de nós? Como tal descoberta afe-taria nossas crenças?

Admitindo-se a hipótese do sonho, embora muitas de nossas crenças comuns (especialmente aquelas relativas ao que consideramos que seja a realidade sensível do cotidiano) sejam abaladas, per-manecem ainda garantidas as crenças relacionadas às qualidades primárias, às crenças matemáticas, às regras do raciocínio. Por exemplo, o sonho deixa intacta a crença de que 3 . 3 = 9; mesmo que eu admita a possibilidade de que esteja agora sonhando, e não posso então estar seguro de que os objetos físicos ao meu redor têm as características que me parecem ter, ou mesmo que existam, o meu conhecimento matemático não se altera, e uma multiplicação não muda sua regra, esteja eu acordado ou sonhando.

Hipótese do Gênio MalignoEssa hipótese é construída a partir de uma determinada concepção de Deus, a concepção teísta.

De acordo com o teísmo, Deus é um Ser existente, infinito, onisciente, onipotente, onibenevolente, que criou e mantém todos os demais seres. Imagine-se, sugere Descartes, que haja um Ser que correspon-da a essa descrição com exceção de um atributo: o da veracidade. Assim, imaginemos que haja um deus onisciente, onipotente, onipresente, que se deleita em nos enganar. Toda vez que julgamos saber algo, esse Gênio Maligno (Descartes assim o chama) está a nos iludir. Assim, se pensamos que a árvore que vemos é verde, é o Gênio Maligno que produz esse pensamento em nós, enquanto na realidade a ár-vore é azul; se pensamos que os objetos físicos possuem dimensão, é o Gênio Maligno que produz em nós esse pensamento, e não há realmente objetos físicos; se pensamos que 4 . 4 = 16, esse pensamento é em nós produzido pelo Gênio Maligno, com o propósito de nos enganar, e o resultado correto pode-ria ser 14 ou 18. E assim por diante, em relação a cada tipo de conhecimento, seja das propriedades se-cundárias como das propriedades primárias dos objetos, da existência mesma dos objetos, da verdade das relações matemáticas. De todos esses “conhecimentos” podemos nos sentir seguros e não perce-ber onde estaria o erro. Contudo, se a hipótese do Gênio Maligno é possível (logicamente falando), essa certeza é fútil.

Essa hipótese de dúvida é mais abrangente que as anteriores. Será que ela é total e de nada é possível haver conhecimento? O que resta? Resta o sujeito que está pensando nessas coisas. Será que o Gênio Maligno é tão poderoso a ponto de me fazer crer que penso e existo, quando na verdade não existo nem penso? Aqui, Descartes julga ter encontrado a primeira verdade, indubitável, resistente a qualquer argumento cético: “Penso, logo existo” (sentença conhecida na história como “o Cogito”, em razão de sua versão em latim: Cogito, ergo sum). Essa verdade não pode ser enganação do Gênio Maligno, pois para ser enganado preciso1 pensar que algo é verdadeiro, e se penso, pelo menos enquanto penso, existo. A isso se acrescentam os pensamentos outros que tenho. Isto é, se penso que a árvore é verde, posso estar certo de que penso que a árvore é verde, embora não de que a árvore é verde. O problema dessa descoberta, por mais interessante que seja, está em sua limitação. A certeza aqui adquirida não vai além do pensar

1 Aqui se usa a primeira pessoa do singular, mas não é uma referência pessoal. É um eu abstrato, aplicável a qualquer indivíduo que refaça esse argumento.

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presente e da minha existência enquanto penso. Mesmo a memória de haver tido um pensamento há pouco (pensei há pouco que a árvore é verde) está sob influência do Gênio Maligno. Como isso nos ajudaria em relação ao conhecimento da realidade, às ciências? Como sair do pensamento para o mundo real, como construir uma ponte entre esses dois “mundos”? Embora a solução proposta por Descartes não tenha sido largamente aceita, a forma como ele colocou o problema estabeleceu o pano de fundo das investigações epistemológicas durante muito tempo (REID, 2002) e ainda exerce influência.

Como responder ao cético?O cético merece uma resposta, não apenas porque aquele que crê deve estar preparado a dar as

razões de sua crença a quem o questiona, mas porque, em certo sentido, o cético somos nós mesmos. A resposta dependerá de que tipo de ceticismo se trata; contudo, o que não devemos fazer é repetir dogma-ticamente nossa crença. O dogmatismo (a afirmação convicta de uma crença mesmo diante de objeções razoáveis) fornece alimento ao ceticismo; são ambos, como disse Hume (1984, p. 220), razões “da mes-ma espécie, embora contrárias em suas operações e tendências. Desse modo, quando [o dogmatismo] é forte, encontra no [ceticismo] um inimigo com a mesma força; e, como suas forças de início eram iguais, elas continuam iguais, enquanto uma das duas subsiste”.

Sem dúvida, podemos propor uma resposta geral ao ceticismo, mostrando que, a não ser que fique calado, o cético faz uso em sua argumentação das regras comuns de raciocínio, pressupondo-as, portanto. E, ao fazê-lo, já enfraquece sua própria posição. Mas isso é insuficiente, como foi insuficiente, mas não inútil, a demonstração cartesiana do Cogito. Se quisermos responder ao cético, devemos considerar atentamente seu argumento, e ceder onde for preciso ceder. E, se não nos tornarmos também céticos e ainda defendermos, como parece razoável, a possibilidade de conhecimento, que aprendamos a atitude cética, saudável no ca-minho da ciência e contra a superstição, e não imaginar que sabemos o que não sabemos2.

Condições para o conhecimentoComo distinguir o conhecimento efetivo da aparência de conhecimento? Se examinarmos a história

da Ciência, um ponto logo chama a atenção: aquilo que era considerada uma teoria científica aceita em uma determinada época, em um tempo posterior foi substituída ou complementada por outra teoria. Um exemplo fácil de compreender, mesmo para quem não tem formação científica estrita, pode ser encontrado na Astronomia. Durante muito tempo, acreditava-se que a teoria geocêntrica descrevia o mundo tal como ele é. Não que essa crença fosse um mito, um preconceito popular que a ciência física viria a refutar, como muitos outros mitos; essa era uma teoria científica. E um de seus enunciados principais era: “o Sol gira ao redor da Terra”. No entanto, como hoje se sabe, tal teoria foi substituída pelo heliocentrismo, no qual um dos enunciados principais é “a Terra gira ao redor do Sol”. Esse é um caso em que há incompatibilidade básica entre duas teorias alternativas, pois as sentenças mencionadas não são periféricas a cada teoria respectivamente, mas fazem parte de seu núcleo central. Assim, se uma teoria

2 Para uma exposição detalhada e bem argumentada dos benefícios e malefícios do ceticismo, ver a Seção XII, “Da Filosofia Cética ou Acadê-mica”, do livro Investigação sobre o Entendimento Humano, de David Hume (1984).

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constitui conhecimento efetivo, a outra constitui apenas aparência de conhecimento. Então, voltando à pergunta inicial, e adaptando-a ao exemplo: como determinamos que o heliocentrismo constitui conhecimento, enquanto o geocentrismo apenas aparência de conhecimento?

Uma resposta natural seria: porque sabemos agora que a teoria heliocêntrica é verdadeira, enquanto a teoria geocêntrica é falsa. E isso parece sensato, pois a verdade é uma das condições necessárias do co-nhecimento. Como já se tornou usual dizer, para que eu possa dizer “sei que p”3, e não apenas “acho que p”, três condições precisam ser satisfeitas: (1) “eu acredito que p” (crença); (2) “p é verdadeiro” (verdade); (3) “te-nho razões (ou evidências) adequadas para crer que p” (justificação). E, à primeira vista, não parece com-plicado estabelecer a segunda condição; mais complicado seria estabelecer a terceira. Parece óbvio que se alguém diz “a árvore é verde” (p), p é verdadeiro se for realmente o caso que a árvore é verde. Assim, o que nós deveríamos fazer é verificar se p é verdadeiro. Contudo, isso não é tão simples, especialmente quan-do lidamos com hipóteses e teorias. Além do que, a noção de verdade tem sido compreendida de maneira diferente. Há três principais teorias filosóficas sobre a noção de verdade: (a) teoria da correspondência; (b) teoria da coerência; e (c) teoria pragmática. Vamos aqui apenas mencioná-las resumidamente.

Segundo a primeira (a), uma sentença é verdadeira se corresponde aos fatos, é como uma cópia da realidade. Tal explicação, além de simples, concorda com o que normalmente as pessoas, inde-pendente de qualquer reflexão epistemológica, responderiam à pergunta: o que é a verdade? Então, o procedimento consiste em comparar aquilo que é dito com aquilo que é real. Mas fatos, e as coisas de que são fatos, são sempre individuais, particulares. E muito do que afirmamos, e que nos interessa em Ciência, constituem sentenças gerais, como é o caso de hipóteses e teorias. Quando Newton enunciou, em 1686, a terceira lei do movimento, “A uma ação sempre se opõe uma reação igual, ou seja, as ações de dois corpos um sobre o outro sempre são iguais e se dirigem a partes contrárias” (NEWTON, 1974, p. 20), não estava se referindo a algum evento que testemunhou, mas a qualquer evento, inclusive aqueles que viriam a ocorrer. A comparação já não é tão simples. Assim, se essa teoria é correta, precisa especi-ficar como, através de que processos, justificamos a correspondência.

Já para a segunda (b), o que importa é que as sentenças (ou as crenças expressas pelas sentenças) sejam consistentes, isto é, possam ser verdadeiras ao mesmo tempo. Assim, o sistema de crenças, que inclui teorias, hipóteses, sentenças experienciais, forma um todo coerente. Embora surpreendente à pri-meira vista, expressa um procedimento também usual. Se duas afirmações opostas são apresentadas, julgamos que pelo menos uma delas é falsa. Por exemplo, se alguém, em um discurso, afirma “um per-centual pequeno de inflação gera emprego”, e, mais adiante, “o desemprego se combate eliminando a inflação”, há uma inconsistência, e pelo menos uma das sentenças é falsa. Por outro lado, se a verdade está na coerência somente, como optar entre alternativas igualmente coerentes?

Por fim, a terceira teoria da verdade (c) admite que verdade significa a concordância de nossas ideias com a realidade. Contudo, concordar com a realidade, por sua vez, significa fazer diferença prática na vida, na experiência do sujeito. Deve-se perguntar: qual diferença concreta esta crença terá na vida de alguém? Ou como coloca o filósofo pragmatista William James (1981, p. 92): “Ideias verdadeiras são aquelas que podemos assimilar, validar, corroborar e verificar. Ideias falsas são aquelas que não pode-mos [fazer estas coisas]” (tradução do autor). Também essa concepção responde a um hábito. Quando ouvimos um discurso que parece nada ter a ver com a prática, tendemos a considerá-lo falso ou inútil. Por outro lado, como mostra a história das ciências sociais, ideias opostas podem ser assimiladas, vali-dadas, corroboradas e verificadas. Como optar entre elas?

3 A letra “p” substitui uma sentença qualquer, por exemplo, ”a laranja é doce’”, “o valor de uma mercadoria reflete a quantidade de trabalho envolvida em sua produção.”

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Cada uma dessas teorias tem sido elaborada por diferentes epistemólogos de forma a tentar res-ponder às objeções que são apresentadas. Em geral, procura-se incluir as outras duas como elementos dentro da concepção defendida, de modo que, assim fazendo, não sejam consideradas inconsistentes. Assim, alguém que sustente a teoria da verdade como coerência pode admitir que em alguns casos uma sentença é verdadeira se corresponde aos fatos (por exemplo, “o som é dó menor” é verdadeira se re-almente o som é dó menor), mas isso porque é consistente com outra crença mais fundamental, a sa-ber, que a realidade sensível é percebida pelos sentidos. Até o momento, nenhuma delas se mostrou completamente satisfatória, embora a teoria da correspondência continue sendo a mais promissora e provavelmente correta, já que dá conta de procedimentos que normalmente usamos para distinguir a verdade da falsidade.

Texto complementar(HUME, 1984)

Há uma espécie de ceticismo, anterior a todo estudo e filosofia, que é muito inculcado por Des-cartes e outros como preservativo soberano contra o erro e o juízo precipitado. Esse ceticismo reco-menda uma dúvida universal não só das opiniões e princípios que até então perfilhávamos, como também de nossas próprias faculdades. Dizem os nossos filósofos que devemos assegurar-nos da veracidade dessas opiniões e princípios por uma cadeia de raciocínio deduzida de algum princípio ori-ginal que absolutamente não possa ser falaz ou ilusório. Mas, ou não existe nenhum princípio original dessa sorte que tenha prerrogativa sobre os outros princípios convincentes e evidentes por si mesmos ou, se os houvesse, não poderíamos avançar um passo além deles a não ser pelo uso dessas mesmas fa-culdades de que nos aconselham a suspeitar. A dúvida cartesiana, portanto, se pudesse ser alcançada por alguma criatura humana (o que evidentemente não pode), seria de todo incurável; e nenhum ra-ciocínio nos poderia conduzir jamais a um estado de segurança e de convicção a respeito de qualquer assunto.

Deve-se confessar, contudo, que essa espécie de ceticismo, quando cultivada com mais mode-ração, pode ser entendida num sentimento muito razoável e é um preparo necessário para o estudo da Filosofia, pois preserva a necessária imparcialidade em nossos julgamentos e expurga nossa mente de todos os preconceitos que nos possam ter sido incutidos pela educação e pela opinião precipitada. Começar por princípios claros e evidentes em si mesmos, avançar com passos seguros e cautelosos, revisar frequentemente as nossas conclusões e examinar com exatidão as suas conse-quências, embora sejam tão reduzidos quanto vagarosos os progressos que por tal meio faremos em nossos sistemas, são os únicos métodos que jamais nos poderão dar a esperança de alcançar a verdade e atingir uma razoável estabilidade e certeza em nossas determinações.

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Atividades1. Em uma coluna, relacione dez crenças suas que você julga que são duvidosas; em outra, dez

crenças que você julga absolutamente verdadeiras. Compare com as de um colega, e procure explicar as semelhanças e diferenças.

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2. Pesquise em livros e internet textos sobre filosofia antiga, o nome de algum cético grego ou romano e tente resumir algum argumento cético por ele proposto (10 linhas no máximo). Em seguida, procure responder o argumento com suas próprias ideias.

3. Leia o texto complementar, e, conjuntamente com um colega, identifiquem o que parece ser seus pontos fortes e pontos fracos.

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Teorias epistemológicas

Se o conhecimento difere da opinião por constituir crença verdadeira justificada, uma das princi-pais tarefas de uma teoria epistemológica, embora não a única, está em explicar como tal justificação se obtém e em que ela consiste. Desde o início da filosofia moderna com Descartes, tal tarefa tem sido com-preendida como fundamental para as ciências, especialmente em razão dos argumentos céticos contra a possibilidade de haver conhecimento. E se o cientista pretende apresentar uma descrição verdadeira da realidade, que se oponha e substitua qualquer forma de superstição, parece óbvio a uma consideração atenta da situação que há necessidade de mostrar não somente que as teorias científicas correspondem (de alguma maneira) aos fatos, mas como tal relação se estabelece.

Historicamente, há diversas teorias epistemológicas que procuram explicar a possibilidade de conhecimento, as quais diferem em detalhes, mas podem ser agrupadas de acordo com certas ideias significativas. Vamos considerar, então, três destes agrupamentos: o fundacionalismo, o coerentismo e o antifundacionalismo.

Fundacionalismo1

Teorias fundacionalistas têm uma longa história no pensamento filosófico. Segundo tais teorias, a relação justificadora entre crenças tem a seguinte estrutura: algumas (ou muitas) crenças encontram sua evidência em outras crenças, que por sua vez se baseiam em outras crenças, e assim por diante. Mas não é possível ir ao infinito nesta estrutura: é preciso encontrar o fundamento último, a saber, cren-ças que não dependem de outras crenças, mesmo que dependam de alguma outra coisa. Uma metá-fora frequentemente utilizada é a da construção de uma casa. Não é possível começar uma casa pelo teto; é preciso pôr antes um fundamento. E, adaptando uma sentença de Jesus Cristo, a casa construída sobre fundamentos instáveis (areia) rapidamente cairá, mas aquela construída sobre fundamentos firmes

1 O termo “fundacionalismo” vem de fundação, no sentido arquitetônico desta palavra. Seu uso é recente na história da epistemologia. Alguns dos mais importantes fundacionalistas (Aristóteles, Descartes, Leibniz, Locke) não usavam esta palavra, embora seu ponto de vista seja ade-quadamente expresso por ela. A palavra passou a ser utilizada no século XX para designar tais teorias, especialmente no âmbito linguístico anglo-saxão. O termo em inglês é foundationalism, que, por vezes, é também traduzido por fundacionismo. Ambos os termos em português são apropriados. Aqui utilizaremos o substantivo “fundacionalismo” e correlatos.

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e seguros (rocha) permanecerá. Assim, para as teorias fundacionalistas, uma das tarefas primordiais da epistemologia, qualquer que seja o campo de conhecimento em consideração, está em identificar esses fundamentos firmes e seguros. Por exemplo, suponhamos que alguém hoje acredite que “Jesus Cristo foi traído por Judas Iscariotes com um beijo na face”. Esse é um conhecimento histórico. Qual o seu fun-damento, como ele é justificado?

Em se tratando de uma crença quanto a um fato histórico remoto, não há testemunhas vivas, mas apenas relatos escritos por ou baseados na palavra das testemunhas. Quem acredita no exemplo ante-rior, o faz porque acredita que os relatos são confiáveis, e os que produziram o relato acreditaram que as testemunhas eram confiáveis, e as testemunhas acreditavam nisto porque se lembravam do que viram. Essa sequência explicativa pode ser complexificada, e tem de ser quando se trata não apenas de uma sen-tença histórica, mas de uma teoria histórica. Em qualquer dos casos, entretanto, a sequência terá a mes-ma estrutura, de crenças servindo de base evidência para outras crenças, até se chegar a uma crença cuja base não é outra crença. Segundo o fundacionalismo, todo conhecimento exibe esse tipo de estrutura. Daí que uma distinção importante é a distinção entre crenças básicas e crenças não básicas. Uma crença não básica2 é aquela justificada por meio de outra crença, que por sua vez é justificada por outra crença, e assim por diante, até se atingir uma crença cuja justificação não se encontra em qualquer outra crença. Esta última é uma crença básica. Também as crenças básicas precisam ser justificadas; eu tenho a obriga-ção de explicar porquê creio nelas. A diferença é que não creio nelas com base em outras crenças, mas em algo diferente (como uma experiência, uma intuição, uma percepção, na memória etc.).

Se a estrutura do conhecimento depende de crenças básicas, importa determinar como adquirimos essas crenças básicas, e se as adquirimos corretamente. Não é suficiente dizer que cremos em algo de for-ma básica, como se não fosse necessário apresentar razões; é preciso mostrar que estas crenças têm ob-jetividade, e não dependem apenas das preferências individuais ou grupais. Em razão dessa exi gência3, o fundacionalismo procura identificar também os fundamentos das crenças básicas, e, justamente nes-se ponto, aparecem divergências entre concepções alternativas. Os candidatos mais usuais são as ver-dades autoevidentes (favorecidas pelo racionalismo) e as percepções sensoriais imediatas (favorecidas pelo empirismo). Como exemplos das primeiras, temos: “o todo é maior que a parte”; “algo é igual a si mesmo”; “tudo que ocorre tem uma causa”. Como exemplos das segundas, temos: “sinto dor de cabeça”; “aquilo que parece amarelo”; “lembro de ter ido ao cinema”. Geralmente, concorda-se que as condições para que uma crença seja básica são: não dependem de outras crenças, são indubitáveis, incorrigíveis, inalteráveis. Assim, por exemplo, se eu acredito que estou com dor de cabeça, não creio isto com base em alguma outra crença; creio diretamente. E também ninguém pode me dizer: “não é verdade que você está com dor de cabeça”4.

Aceito isto, como as crenças não básicas são justificadas pelas crenças básicas? A resposta é que a relação de base entre esses diferentes tipos de crença se liga às formas possíveis de nosso raciocínio: a

2 A maioria de nossas crenças são não básicas. Aquilo que acreditamos porque lemos em jornais, vimos na televisão, mas não presenciamos nem conversamos diretamente com uma testemunha, constitui exemplo disto. Para a maior parte das pessoas, o que elas acreditam acerca de um governo, por exemplo, depende da credibilidade que elas depositam nos meios públicos de informação.3 Isso é bem expresso por John Stuart Mill, filósofo inglês (1806 – 1873), um dos principais fundacionalistas históricos. Leia o texto dele incluído na seção “Texto complementar”.4 A não ser que a pessoa queira dizer que eu estou mentindo. Mas daí se trata de outra situação. O ponto aqui é que não é possível estar enga-nado quanto a sentir uma dor de cabeça, como é possível estar enganado acerca da cor de um certo objeto. Este tipo de percepção sensorial, tida pelos empiristas como fundamento privilegiado de crenças básicas, é também chamada experiência imediata (às vezes, também intuição), isto é, refere-se a nossas próprias sensações internas, independente se a elas correspondem objetos físicos externos. Um argumento funda-cionalista típico consiste em concluir que minha crença na existência de objetos físicos depende de minhas crenças acerca destas sensações imediatas.

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justificação pode ser dedutiva ou indutiva. Toda justificação epistemológica consiste em apresentar um argumento, em que um conjunto de sentenças é apresentado como exibindo um certo tipo de relação lógica, em que algumas servem de razão para aceitar outras. Conforme a amplitude do argumento, este entrelaçamento de sentenças pode ser curto ou longo, mas sua estrutura será sempre similar. Usualmente, admite-se que há duas formas estruturais, mesmo que se discorde acerca da importância ou do valor de cada uma delas na constituição das ciências, naturais ou sociais. Estas formas são: a dedução e a indução.

DeduçãoPara esclarecer os pontos básicos da dedução enquanto justificatória, utilizemos um exemplo sim-

ples. Digamos que alguém acredite que “os preços dos automóveis irão cair”, e perguntado por que acre-dita nisso, ela responde: “se a produção de qualquer bem aumenta, o seu preço unitário cai, e todas as montadoras aumentaram sua produção”. Aqui temos um exemplo de argumento dedutivo, que pode ser assim reformulado:

(1) Se a produção de qualquer bem aumenta, o seu preço unitário cai.::::

(2) A produção de automóveis aumentou.::::

(3) Logo, os preços dos automóveis irão cair.::::

Em lógica, as sentenças (1) e (2) são chamadas “premissas”, e a sentença (3) é chamada “conclusão”. As premissas são as razões para aceitar a conclusão. O que caracteriza qualquer argumento dedutivo vá-lido é a relação de implicação entre as premissas e a conclusão. Dizer que uma sentença implica outra sig-nifica que se uma é verdadeira, a outra também é5. Não há como afirmar uma e negar a outra. Considere o exemplo na nota abaixo: a sentença “ela é uma adolescente” (A) implica a sentença “ela tem menos de 20 anos” (B), isto é, se alguém disser “ela é uma adolescente e fez 25 anos ontem” (A e não B), esta pessoa está se contradizendo, ou não sabe o significado da palavra “adolescente”. Compare com o que ocorre se nós invertermos a relação entre as duas sentenças. A sentença “ela tem menos de 20 anos” não im-plica a sentença “ela é uma adolescente”; aqui, B não implica A. Por que não? Porque é possível que ela tenha menos de 20 anos e não seja uma adolescente; por exemplo, se tiver 5 anos; nesse caso, é verda-de que tem menos de 20 e não é verdade que seja uma adolescente, pois é uma criança. Importa ob-servar, contudo, que há aqui, entre B e A, uma outra relação importante: a consistência. Duas sentenças são consistentes quando podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Assim, para que haja implicação, é preciso haver antes consistência: se uma sentença deve ser verdadeira porque outra o é, então ambas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas o inverso não ocorre necessariamente: duas sentenças podem ser consistentes e não terem mesmo relação alguma6. Aplicando estes conceitos ao argumento acima, ela não pode aceitar as premissas (crer nelas) e recusar a conclusão, pois as premissas implicam a conclusão; por outro lado, a negação da conclusão é inconsistente com as premissas. A saber, se ela crer o oposto de (3), que “os preços dos automóveis não irão cair”, (1) ou (2), ou ambas, devem ser falsas.

Contudo, nem todo argumento dedutivo possui essa relação de implicação. No parágrafo ante-rior, falou-se de argumento dedutivo válido. Há também argumentos dedutivos inválidos, isto é, aqueles

5 Cuide-se para não fazer confusões linguísticas. No discurso lógico, não se fala que “algo implica em...” ou, menos ainda, que “implica com...” Nenhuma dessas preposições é adequada aqui. Diz-se simplesmente, “A implica B”, em que A substitui uma sentença qualquer, assim como B. Por exemplo, ela é uma adolescente “implica” ela tem menos de 20 anos”. 6 Por exemplo, a sentença “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil” e a sentença “Inflação alta produz desemprego” são consistentes, mas uma e outra não tem qualquer outro tipo interessante de relação.

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em que se pretende haver uma relação de implicação, mas não há. Mas como fazer a diferença? A di-ferença está na forma do argumento, não no conteúdo. Para saber se o argumento é válido, temos de prestar atenção em sua forma lógica. Frequentemente nós intuímos a forma lógica de um argumento, e sabemos se é válido ou não. Se queremos, porém, fazer e compreender hipóteses e teorias científicas, precisamos ter um treino mais adequado; parte deste treino pode ser providenciado pela lógica. O pro-cedimento que melhor nos educa neste assunto é a simbolização, como ocorre na Matemática. Sabemos calcular melhor e mais rápido em razão da notação matemática (1, 2, 3, 4...), independente do que está sendo calculado. No exemplo acima, isto é fácil de fazer. Se nós substituirmos cada sentença simples7 por uma letra, teríamos o seguinte:

p = a produção de automóveis aumentou (ou, a produção de qualquer bem aumenta).::::

q = os preços dos automóveis irão cair (ou, o seu preço unitário cai).::::

As sentenças em parênteses têm o mesmo significado, no contexto, do que as outras às quais se referem; portanto, não é necessário simbolizá-las diferentemente. Feito isto, podemos reformular o ar-gumento usando os símbolos, e teremos:

(1) Se p, então q

(2) q

(3) Logo, p.

Fazendo isto, podemos ver claramente o que significa dizer que as premissas implicam a conclusão, ou, conforme outra maneira de se expressar, que a conclusão se segue necessariamente das premissas. Pois a primeira premissa diz: se p é verdadeiro, então q também é verdadeiro; e a segunda premissa diz, q é verdadeiro. Daí, a única conclusão possível é p também é verdadeiro. O esquema simbólico anterior é a forma lógica do argumento. Esta é uma das formas lógicas mais básicas, que usamos constantemen-te no cotidiano e nas ciências; seu nome é modus ponens (afirmação do antecedente)8.

Para mostrar um argumento inválido, podemos usar o mesmo exemplo, apenas invertendo a segunda premissa e a conclusão, colocando uma no lugar da outra. Teríamos, então, o seguinte:

(1) Se a produção de qualquer bem aumenta, o seu preço unitário cai;::::

(2) Os preços dos automóveis caíram;::::

(3) Logo, aumentou a produção de automóveis.::::

Nesse caso, a forma lógica deste argumento é: se p, então q; q; logo, p. É chamada de afirmação do consequente. O argumento é inválido, pois, mesmo sendo as premissas verdadeiras, a conclusão pode ser falsa; (3) também pode ser verdadeira, mas, se for, não o será por causa de (1) e (2), o que seria neces-sário para o argumento ser válido. Pois podemos perfeitamente especificar outras razões para os preços terem caído sem que haja produção maior. Por exemplo, pode ser que ninguém estivesse comprando automóveis novos, e, para acabar com o estoque, as montadoras resolveram abaixar os preços. Outra téc-nica que nos permite mostrar que esta forma lógica é inválida encontramos na técnica da substituição. Se a forma for válida, qualquer substituição sensata resultará em uma conclusão verdadeira, admitidas

7 Sentença simples é uma sentença que não pode ser decomposta em duas ou mais sentenças. Por exemplo, “a laranja é doce”. Sentença complexa é aquela que pode ser decomposta em uma ou mais sentenças. Por exemplo: “a laranja é doce, mas muito cara”, que pode ser decomposta em: “a laranja é doce’” e “a laranja é cara”.8 Em qualquer proposição hipotética, do tipo “se...então”, a sentença que vem após o “se” e antes do “então“ é chamada antecedente, e a que vem depois do então é chamada consequente.

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as premissas. Se a conclusão nos parecer falsa ou inaceitável, teremos que negar uma ou todas as premissas. Mas nas formas inválidas, podemos manter as premissas e negar a conclusão. Considere o seguinte exemplo: se alguém é mãe, então é mulher (se p, então q); esta pessoa é uma mulher (q); logo, esta pessoa é mãe (p). É fácil de ver que a conclusão não se segue das premissas, pois sabemos que há mulheres que não são mães.

InduçãoEm argumentos indutivos, a relação entre as premissas e a conclusão não é de implicação, mas

de probabilidade. Diferente da ideia de implicação (ou implica, ou não implica), probabilidade vem em graus: uma conclusão pode ser mais ou menos provável em relação às premissas que a sustentam. Isso porque a conclusão excede o que está contido nas premissas. A razão para tal se encontra no objeti-vo de obter uma conclusão a partir da qual se possam fazer previsões, geralmente por meio, então, de um argumento dedutivo, o que mostra a conexão entre estas duas formas de raciocínio. Se voltarmos ao exemplo utilizado no tópico sobre dedução, esta conexão se torna visível. Consideremos a premissa hipotética (1): “se a produção de qualquer bem aumenta, o seu preço unitário cai”. No argumento dedu-tivo, ela é suposta verdadeira. Mas, e se perguntarmos: como sabemos disto? A resposta a esta pergun-ta, acerca da justificação daquela premissa hipotética, pode ser encontrada em um argumento indutivo, construído como segue e tendo em mente que a proposição hipotética pode ser formulada categorica-mente9: “sempre que aumenta a produção de um bem, seu preço unitário cai”.

(1) Em 1974, a produção de automóveis aumentou e, em razão disso, as montadoras diminuí-::::ram o preço;

(2) Em 1984, a produção de automóveis aumentou e, em razão disso, as montadoras diminuí-::::ram o preço;

(3) Em 1994, a produção de automóveis aumentou e, em razão disso, as montadoras diminuí-::::ram o preço;

(4) Em 2004, a produção de automóveis aumentou e, em razão disso, as montadoras diminuí-::::ram o preço;

(5) Logo, sempre que aumenta a produção de um bem, seu preço unitário cai.::::

Se quiséssemos reforçar esta conclusão, poderíamos acrescentar outras premissas, relativas a outros tipos de bens, em que a relação aumento de produção e queda de preço foi também observada. Assim, por exemplo:

(1”) Em 1995, o aumento na produção de computadores fez o seu preço unitário cair;::::

(2”) Em 2005, o aumento na produção de computadores fez seu preço unitário cair;::::

(5) Logo, sempre que aumenta a produção de um bem, seu preço unitário cai.::::

O acréscimo de 1” e 2”, torna (5) mais provável do que antes. Mesmo assim, a conclusão tem uma generalidade que vai muito além do observado nas premissas, e se refere não só a casos do passado e do presente que não chegaram a ser observados, como a casos futuros. Assim, não carrega ela a certeza

9 Uma proposição categórica é aquela formulada afirmativa ou negativamente: “todos os homens são mortais”; “nenhum político é corrupto”. Uma proposição hipotética é aquela formulada condicionalmente: “se os homens são animais, então são mortais”.

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que uma conclusão de um argumento dedutivo válido possui, e basta acrescentar uma outra premissa verdadeira, não oposta às já existentes, para destruir o argumento. Por exemplo, se acrescentarmos:

(3”) Em 2000, o aumento da produção de hortigranjeiros ocasionou sua subida de preço unitário.::::

Essa sentença não é o oposto de qualquer uma das outras premissas, mas seu acréscimo no ar-gumento falsifica a conclusão. Isto não acontece na dedução: o acréscimo de qualquer outra premissa, desde que não oposta a uma já presente no argumento, não altera o valor de verdade da conclusão. Compare com o seguinte argumento dedutivo simples: todos os homens são mortais; Sócrates é ho-mem; logo, Sócrates é mortal. Qualquer outra proposição que eu acrescente, desde que não seja oposta a uma das premissas (não poderia ser “Sócrates é um deus”), em nada altera a conclusão. Por exemplo, se acrescentamos: o anjo Gabriel é imortal, ou cachorros são mortais, ou Platão é homem; nada disso afeta a conclusão.

Considerando a plausibilidade inicial de uma explicação fundacionalista, e sua tentativa de satisfazer um de nossos desejos mais profundos – o de estarmos certos sobre algo – sofre ela de uma séria desvanta-gem: a de que, usando dedução e/ou indução a partir de crenças básicas (indubitáveis), pouca coisa se po-deria saber, e muito daquilo que justamente recebe o nome de Ciência nada mais seria que “adivinhação”.

CoerentismoTeorias coerentistas procuram justificar a aceitabilidade de uma crença sem sair do sistema de

crenças, e sem estabelecer entre elas diferença quanto a seu papel na justificação do conhecimento. Uma metáfora frequentemente utilizada é a da rede, em que os diversos pontos estão entrelaçados em um todo, não havendo um ponto que sirva de suporte a outro ponto sem, por sua vez, ser suportado por outro ponto, e assim por diante até chegar ao primeiro ponto considerado. Também não importa por onde se começa. Assim, a distinção, tão importante para o fundacionalismo, entre crenças básicas e crenças não básicas perde sentido. Todas as crenças, do ponto de vista de seu lugar na estrutura cogni-tiva, têm o mesmo estatuto. O que as valida é sua compatibilidade mútua, sua coerência.

Embora reflitam um elemento importante da maneira como nós avaliamos aquilo que nos é pro-posto como verdadeiro, teorias coerentistas não encontram muitos defensores. O elemento é a ideia de que a verdade está, de algum modo, ligada à consistência. Considere o caso de uma investigação poli-cial. Suponha que tenha ocorrido um crime na rua A, e é perguntado ao vigia do prédio B, localizado na-quela rua perto do local do crime, se viu alguma coisa e se conhecia a vítima. Ele nega ambas as coisas. Posteriormente, o detetive recebe a informação, do garçom de um restaurante a duas quadras do pré-dio B, que o vigia e a vítima ali jantaram juntos uma vez por mês, regularmente, durante o último ano. De imediato, o detetive se dará conta de que há uma inconsistência entre os dois relatos, o do vigia e o do garçom, e não é possível crer em ambos. Não sabe ele, neste momento, qual dos relatos é falso, e pode ser que ambos o sejam; contudo, sabe que não podem ambos ser verdadeiros, pois são inconsistentes. Aqui a coerência é utilizada como critério negativo para a aceitabilidade de uma crença.

Enquanto critério negativo, a coerência é geralmente tida como condição necessária para a jus-tificação; procedemos assim no senso comum, e o fundacionalismo concorda com tal procedimento. O coerentismo, contudo, pretende que a coerência seja também um critério positivo, que seja suficiente para justificar uma crença. Assim, mesmo mantendo-se que algumas crenças são dependentes de

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outras em razão de serem delas inferidas por meio de um processo dedutivo ou indutivo, o que as justifi-ca não é esta dependência, mas sua coerência mútua. Assim, para saber se aceito ou não uma nova ideia, hipótese ou teoria, não devo olhar para os fatos, mas para minhas outras crenças (ideias, hipóteses e teo-rias que já aceito); isso porque “fatos” são, para o coerentista, outras crenças. Além de ser contraintuitivo10, o coerentismo sofre de outras desvantagens que o tornam, enquanto explicação epistemológica para a justificação do conhecimento, provavelmente falso. Entre estas desvantagens podemos mencionar:

para o coerentismo, é admissível que, em um processo suficientemente longo de dedução ou ::::indução, as crenças que servem de premissa para uma determinada conclusão possam tor-nar-se conclusão de um outro raciocínio em que, entre as premissas, encontra-se a conclusão daquele argumento anterior. Isto se chama de raciocínio circular, considerado “vicioso” pelos fundacionalistas, portanto, ilegítimo;

coerência é uma relação que se dá exclusivamente entre crenças, mas, para a justificação ::::de uma crença, não se pode depender exclusivamente de sua relação com outras crenças. É também importante, mesmo fundamental, a relação que tem com a experiência. Caso contrário, qualquer história coerente estaria, em razão disto, justificada, isto é, constituiria conhecimento. O que é absurdo, como podemos perceber considerando a diversidade de romances na literatura, verossímeis, mas falsos.

AntifundacionalismoO termo antifundacionalismo é um termo utilizado para designar um conjunto de teorias episte-

mológicas divergentes em muitos aspectos, mas concordantes em sua oposição ao fundacionalismo e ao coerentismo, combinada com a aceitação de parte do ceticismo. Engloba desde concepções mais ra-dicais, como o anarquismo epistemológico e metodológico de Feyerabend11, até concepções mais mo-deradas, que aceitam a fragilidade da razão e da experiência enquanto fontes de conhecimento, como o falibilismo de Peirce12 e o garantismo de Alvin Plantinga13.

Assim, em resumo, o antifundacionalismo tende a manter a distinção entre crenças básicas e crenças não básicas. Diferente do fundacionalismo, ele admite que crenças básicas possam ser revistas, corrigidas, alteradas, abandonando o ideal de um conhecimento indubitável, absolutamente seguro, ideal este que, na verdade, alimenta muitas objeções do ceticismo. O que, por sua vez, permite ampliar o seu espectro, incluindo assim crenças derivadas da memória, do testemunho, da simpatia14 e outras fontes usuais.

10 Uma ideia é contraintuitiva quando se opõe às nossas formas naturais de pensar, ou ao senso comum. Mas ser contraintuitiva não é sinônimo de ser falsa, como mostra o caso da crença de que a Terra gira ao redor do Sol. Se não somos instruídos, ou se não pensamos com cuidado no assunto, naturalmente tendemos a crer que o Sol se move e a Terra está parada, pois isto é o que vemos e sentimos. No entanto, aqui o que vemos e sentimos é falso.11 Paul Feyerabend (1924-1994), filósofo da ciência austríaco, defendeu a ideia de que tudo vale em Ciência, não sendo ela mais racional que a religião ou a moral, e que o sucesso de uma teoria científica é antes resultado de fatores políticos e de propaganda do que de sua capacidade de fornecer um conhecimento objetivo do mundo. Uma de suas principais obras é Contra o Método (1975).12 Charles S. Peirce (1839-1914), filósofo norte-americano, propôs uma concepção conhecida como falibilismo, segundo a qual não é preciso que nossas crenças sejam indubitáveis ou mesmo corretas, podendo estarmos satisfeitos com elas na medida da sua utilidade, e enquanto não formos forçados a revê-las em razão de novos dados.13 Alvin Plantinga, filósofo norte-americano, propõe uma epistemologia conhecida como garantismo, segundo a qual nossas crenças são garantidas pelo funcionamento apropriado de nossas faculdades cognitivas, podendo ser revistas caso haja motivo para crer em alguma disfunção nas suas operações.14 Por “simpatia” entenda-se aqui a capacidade pela qual adquirimos crenças acerca dos estados mentais de outras pessoas.

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Uma das mais interessantes e influentes teorias antifundacionalista é a teoria crítica de Karl Popper, também conhecida como falsificacionismo. Segundo Popper15, o que importa não é encontrar as fontes últimas do conhecimento, aquelas que garantiriam certeza, resistência a qualquer objeção cética, por mais fantasiosa que fosse, que se apresentasse. Toda fonte (percepção, memória, testemunho, raciocínio, intuição etc.) pode e deve ser utilizada, desde que esteja aberta ao exame crítico. Em Ciência, trata-se de propor conjecturas genuínas, ousadas, que devem depois ser testadas em sua capacidade de explicação e previsão, estando sujeitas a revisões ou abandono conforme o resultado de tais testes. Esse exame crítico tem por objetivo tentar refutar a tese (ou conjectura, ou hipótese, ou teoria), através de contraexemplos, na construção dos quais tem papel fundamental a lógica dedutiva. Para contar como uma teoria ou hipótese científica, a tese precisa resistir a tentativas frequentes de falsificá-la, e compete ao cientista imaginar experimentos (que diferem conforme a área da qual se está tratando) que tenham este propósito de refutação. Quanto mais resistir, mais próxima da verdade estará a tese. Devemos aceitar nossa incapacidade de atingir a verdade, de modo seguro e indubitável, mas não devemos rejeitar a ideia mesma de verdade. Teorias científicas, desse ponto de vista, devem ser entendidas como aproximações constantes da verdade. Portanto, não se trata de buscar confirmações, pois estas não garantem a verdade da tese. E isto por uma razão simples: premissas falsas, em um argumento dedutivo, podem levar a conclusões verdadeiras. Como, no raciocínio científico, a conclusão é uma proposição observacional deduzida da teoria junto com algumas condições dadas, se a teoria for falsa ela pode, mesmo assim, produzir conclusões verdadeiras, de forma que o teste se torna inútil. Por outro lado, se a conclusão for falsa, segue-se que a tese é provavelmente falsa. Por exemplo, se alguém conjecturasse que a criminalidade é consequência inevitável da pobreza, bastaria um pobre honesto para invalidar tal conjectura, mas muitos pobres desonestos não seriam ainda suficientes para determinar a universalidade de tal explicação. Nesse caso, dever-se-ia procurar ativamente por pobres honestos; enquanto não fossem encontrados, a conjectura é aceita temporariamente.

A epistemologia e as ciências sociaisA diversidade de posturas epistemológicas, da qual tratamos nos pontos anteriores, não

deve obscurecer o fato de que em muitos aspectos são similares. E muito menos nos fazer crer que a epistemologia não tem importância para as ciências sociais, ou não ajudaria a colocar as ciências sociais em um rumo mais estável enquanto ciências, já que ela própria é tão diversificada. Ocorre que não se faz Ciência sem pressupor ideias ou conceitos epistemológicos, apesar de a epistemologia de uma Ciência não fazer parte dela, no sentido de poder ser estabelecida através dos mesmos métodos pelos quais hipóteses ou teorias específicas daquela ciência são elaboradas e testadas. A epistemologia é parte da filosofia, e como tal deve ser tratada por métodos filosóficos, a saber, como análise conceitual e determinação de pressupostos.

As ciências sociais têm o propósito de compreender a vida social, e essa compreensão terá certamente efeito sobre a vida social. Pode-se dizer que, dessa perspectiva, a situação nas ciências sociais difere da que ocorre nas ciências naturais, pois a nossa compreensão da natureza não afeta, parece, as operações dos elementos naturais, que só se alteram na medida em que nós agimos sobre eles. Mesmo para o cotidiano de um indivíduo, noções epistemológicas são operantes. As relações sociais de uma

15 Karl Popper (1902-1994), filósofo da ciência austríaco. Ver, especialmente, Conjecturas e Refutações e Lógica das Ciências Sociais.

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pessoa com os demais são dependentes de suas ideias ou crenças sobre a realidade que a circunda, sobre a natureza de um ser humano, do comportamento, da sociedade. Inclusive em assuntos triviais, como o de ir almoçar em um restaurante. Esse ato simples pressupõe uma série de crenças acerca do funcionamento social. Se o sujeito estiver enganado acerca dessas crenças, o resultado será uma atuação social inadequada. Corrigir ou ampliar essa compreensão é tarefa das ciências sociais; esclarecer a importância de uma tal compreensão e o que está pressuposto em tê-la, nisto consiste o interesse da epistemologia das ciências sociais.

Texto complementar(LEIBNIZ, 1984)

[...] o fato de que a maioria dos homens ignora a lógica artificial, e de que tais pessoas não deixam de raciocinar, por vezes, melhor do que pessoas exercitadas na lógica, não prova a inutilidade des-ta última, assim como não ficaria demonstrada a inutilidade da aritmética, pelo fato de haver certas pessoas que contam corretamente sem saber ler e escrever, e sem saber manejar a pena, até ao pon-to de chegarem a corrigir as faltas de um outro que aprendeu a calcular, mas que pode descuidar ou deixar-se confundir com os caracteres ou números.

(MILL, 1989)

Conhecemos as verdades através de duas vias: algumas diretamente por si mesmas; outras, por meio de outras verdades. As primeiras são objetos de intuição ou de consciência; as segundas, de inferência. As verdades conhecidas pela intuição são as premissas originais das quais todas as de-mais são inferidas. Sendo nosso assentimento à conclusão baseado na verdade das premissas não poderíamos chegar a nenhum conhecimento pelo raciocínio, a não ser que alguma coisa pudesse ser conhecida antes de qualquer raciocínio. [...] Para tudo que conhecemos através da consciência, não há possibilidade de dúvida. Do que vemos e sentimos, corporal ou mentalmente, estamos ne-cessariamente seguros.

Atividades1. Escolha um dos pensadores mencionados, exceto Popper, e pesquise sobre ele na biblioteca e/ou

internet, produzindo um texto sobre as ideias dele acerca de um dos pontos discutidos nesta aula. O texto deve ter no mínimo 5 e no máximo 10 linhas.

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2. Leia atentamente a parte relativa à dedução e à indução, e invente, utilizando elementos da experi-ência comum, dois argumentos dedutivos e dois argumentos indutivos. Compare com a atividade de um colega.

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3. Explique a relação entre consistência e implicação lógica.

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Relação entre ciências sociais e ciências naturais

Um assunto usualmente controverso nas ciências sociais é como elas se relacionam com as ciências naturais. A utilização de uma ciência, ou um campo de conhecimento, como modelo para outra ciência, ou campo de conhecimento, tem longa história. Há pelo menos duas razões para isto. A primeira, que se pode considerar interna, está relacionada à concepção mesma do que seja ciência; a segunda, que se pode considerar externa, está relacionada ao sucesso de uma determinada ciência. Por sucesso, enten-da-se o grau de refinamento, universalidade, profundidade e capacidade de estabelecer com clareza e resolver metodologicamente os problemas que uma ciência se coloca. Nesse sentido, é inegável o su-cesso obtido pelas ciências naturais nos últimos três séculos, comparável somente ao que a matemática e a geometria haviam obtido no passado. Nas demais áreas de conhecimento, incluindo-se aí a moral, a religião, o Direito, a História, a Filosofia, a Sociologia, enfim, as ciências chamadas humanas, morais e/ou sociais, a impressão por vezes chega a ser oposta, a de que elas têm, até o momento, fracassado. Por fra-casso, entenda-se especialmente a diversidade de hipóteses e teorias propostas, e o desentendimento metodológico entre aqueles que as praticam.

Quantos tipos de ciência há?A Ciência é uma só, ou há diversas? Se considerarmos o procedimento mencionado no parágrafo

anterior, o de utilizar um método que obteve sucesso em uma área de conhecimento e aplicá-lo a ou-tra área, tal situação indica que se admite haver mais de uma ciência. Se considerarmos a questão de um ponto de vista histórico, também verificaremos que usualmente se admite haver mais de uma Ciência. Por outro lado, frequentemente na história do pensamento humano aparece a ideia de que a Ciência é una. No mundo grego, o termo “filosofia” abrangia todo conhecimento, e aquelas ciências que hoje chamamos por nomes diferentes eram parte da “filosofia”. Essas duas posturas não são necessariamente

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antagônicas, embora possam sê-lo. Dizer que há várias ciências pode significar uma separação radical entre tipos diferentes; mas então por que usar o mesmo termo? Mesmo admitindo uma separação mais forte, isto pode estar combinado com a suposição de um elemento comum mínimo, nem que seja so-mente para diferenciar daquilo que é “não ciência”. Para melhor compreender o tópico, convém consi-derá-lo a partir de dois problemas conexos, mas distintos. O primeiro problema consiste na classificação das ciências, e diz respeito a diferenciações dentro da Ciência; o segundo constitui o problema da demar-cação, e diz respeito à diferenciação entre aquilo que é ciência e aquilo que não é.

Classificação das ciênciasQualquer classificação, para não ser arbitrária, exige um critério, ou mais de um, que torne a ati-

vidade classificatória racional. Isto não impede que a classificação seja orientada por um interesse ex-terno. Muitas das classificações atuais têm em vista o ensino, e quanto mais especializado for, mais divisões e subdivisões são criadas, sendo que algumas delas, talvez, acabem se mostrando superficiais e mesmo enganosas. Por exemplo, a Biologia é dividida em genética, botânica, zoologia, ecologia etc. A Sociologia é dividida em sociologia do conhecimento, urbana, rural etc. Para cada um destes nomes cor-responde uma ciência específica? Dificilmente. Aqui as especificações parecem servir antes para delinear campos de estudo, conjunto de problemas. Já a Biologia é também uma especificação de uma classe mais abrangente, chamada de ciências naturais, entre as quais se incluem também a Química, a Física, a Astronomia, a Geologia; a Sociologia é uma especificação de outra classe mais abrangente, a das ci-ências humanas e sociais, entre as quais se incluem também a Economia, a Antropologia, a Geografia, a Ciência política. Para cada um destes nomes corresponde uma ciência específica? Provavelmente. É im-portante notar que há uma diferença mais significativa entre Biologia e Sociologia, do que há entre bo-tânica e zoologia, ou entre sociologia do conhecimento e sociologia urbana.

As propostas usualmente mais aceitas são aquelas que classificam as ciências utilizando como critério os seus objetos e seus problemas, e não seus métodos. Isso porque é mais fácil fazer este tipo de classificação, que alcança um consenso mais abrangente. A classificação ou distinção entre tipos básicos de ciências, que se diferenciam em razão da radical separação de seus métodos, é tema de debate, não se encontrando aqui o mesmo nível de concordância, como mostra a questão acerca da relação entre ciências sociais e ciências naturais (conforme pontos seguintes). Quanto aos objetos, são especificados de acordo com uma concepção, em boa parte intuitiva, de sua unidade, de suas características e do tipo de questões que se pretende responder acerca deles. Assim, a Sociologia tem por objeto a organização social e seus diversos elementos, como se relacionam entre si, como estão inseridos em uma ideia geral de sociedade, como as normas sociais influenciam os comportamentos individuais. No entanto, quando se distingue sociologia urbana e sociologia rural, não se está propondo duas novas ciências, além da ciência sociológica “pura”. É o mesmo objeto considerado sob uma perspectiva mais restrita, não um outro objeto.

Consideração semelhante nós devemos fazer diante de outra classificação muito comum hoje em dia: a distinção entre ciência “pura” e ciência aplicada. Essa distinção não equivale à questão da aplica-bilidade tecnológica de um determinado conhecimento científico, que consiste na resolução prática de um problema específico (por exemplo, como tornar mais eficientes e menos poluentes os motores a combustão). Para compreender esse ponto, pense em duas das assim chamadas “ciências sociais aplica-das”: a Administração e o Direito. Seria mais preciso dizer que a Administração e o Direito são atividades humanas que fazem uso de um conjunto de ciências diferentes, mas que, ao mesmo tempo, contêm

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quantidade significativa de normas morais, e estão direcionadas a tornar real alguns propósitos indivi-duais ou sociais. Esses propósitos fazem parte intrínseca destas ciências paliçadas, não lhes sendo mera-mente externos; daí se explica as diferenças entre o direito de um povo e o de outro povo, ou o direito em tempos diversos em uma mesma civilização. A conclusão se mostra: as chamadas ciências aplicadas são ciências em sentido derivativo, e não próprio.

Tendo em mente que há, portanto, diferentes formas de classificar as ciências, e que muitas classi-ficações parecem antes servir a propósitos práticos, como o ensino e a divisão de trabalho, e levando em conta o que historicamente foi proposto, podemos dizer, sem receio de errar excessivamente, que uma classificação adequada e condizente com uma compreensão consensual do que seja Ciência encontramos na seguinte divisão tripartite: ciências formais, ciências naturais e ciências humanas e sociais. O primei-ro tipo inclui a matemática e a lógica, que não possuem objeto real (um ser ou um evento) e servem de auxílio aos dois outros tipos, os quais, por sua vez, tratam de coisas efetivamente existentes e de suas ações e relações. As ciências naturais procuram conhecer a natureza em seus diversos aspectos; as so-ciais e humanas procuram conhecer o ser humano em suas manifestações individuais e sociais enquanto ser pensante.

O problema da demarcaçãoDemarcar significa delimitar, estabelecer os limites entre uma coisa e outra; como quando se de-

marca uma propriedade, alguém está dizendo: isto é meu, não é teu. O problema da demarcação con-siste em estabelecer critérios para distinguir entre o que é Ciência e o que não é Ciência. Diferentes propostas de demarcação dependem de diferentes compreensões do que seja Ciência. Há, no entanto, dois aspectos diferentes a que um critério de demarcação deve responder, e esses aspectos não podem ser confundidos.

Primeiro, distinguir Ciência de pseudociência. Uma pseudociência é um tipo de teoria que se pre-tende científica, e em muitos aspectos é similar a teorias científicas reconhecidas como modelos. Mas é uma falsa (pseudo) ciência seja porque seu pretenso objeto de estudo é uma ficção ou seus métodos de investigação são inadequados. Por outro lado, é importante não confundir pseudociência com teoria científica falsificada. Assim, por exemplo, a alquimia é uma pseudociência, mas o geocentrismo é uma teoria científica cuja falsidade foi estabelecida. Nem toda teoria científica é verdadeira.

Segundo, distinguir Ciência de outros produtos legítimos do espírito humano, como arte, moral, direito e religião. Este segundo aspecto assume importância maior quando se considera o fato histórico de que também a moral e a religião (ou teologia) foram defendidas como ciências. Não se trata de ciência da moral ou ciência da religião (a sociologia tem como um de seus objetos o fenômeno religioso, sendo assim ciência da religião; mas, obviamente, sociologia e religião são coisas diferentes), mas a moral e a teologia enquanto ciências. Atualmente, como mostram as frequentes discussões acerca do conflito entre Ciência e religião, ou do conflito entre Ciência e ética, a ideia de que moral ou religião constituem ou possam constituir ciência está fora de moda. Isto porque parece claro para a maioria dos envolvidos nestes debates que moral, direito, religião, arte, não são ciências. Ora, para que isto não seja apenas uma questão de nomes, é preciso especificar qual critério ou critérios justificam esta distinção.

Uma proposta é a de que a diferença entre Ciência e aquilo que não é Ciência corresponde à dife-rença entre o ser, o dever ser e o sentir. A Ciência trata daquilo que é; os demais produtos do pensamento humano tratam daquilo que deve ser e daquilo que expressa emoções. Arte não é Ciência, porque

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expõe sentimentos, não descrevendo, mas expressando. Quando, por exemplo, lemos uma poesia, não buscamos ali informação, e, se houver, serve apenas como canal para a emoção que o poeta quer ex-pressar ou criar. Não faz muito sentido utilizar um poema como Morte e Vida Severina enquanto fonte empírica (como se fosse um relato cuja veracidade ou falsidade interessa investigar para aceitar ou re-cusar o poema) acerca da vida dos nordestinos em uma determinada época. A moral, por sua vez, não descreve como as pessoas realmente agem, mas como deveriam agir. Isto é claro se considerarmos uma das normas morais mais fundamentais: “não matarás”. Mesmo que as pessoas vivessem em um estado de selvageria constante, em que o perigo de ser morto e a possibilidade de matar fosse comum, isto não invalidaria a norma, pois ela não é uma generalização a partir do comportamento efetivo das pessoas. E quanto à religião? Religião é, sem dúvida, moral e sentimento. Mas é principalmente, do ponto de vista dos crentes, um discurso sobre a realidade, do qual se extraem ou se justificam ensinamentos morais e se estimulam sentimentos. Assim, para manter tal critério de demarcação, há duas saídas: afirmar que a religião é Ciência, ou negar que exista o objeto da religião, Deus1. Essa negação não pode ser fruto me-ramente de convicção pessoal (a fé sem Deus do ateu), mas precisa resultar de algum tipo de demons-tração ou comprovação filosófica ou científica, similar, por exemplo, à negação da existência da pedra filosofal2. Isso é importante, na medida em que não há ciência daquilo que não existe. Tanto uma quanto a outra alternativa enfrenta sérios problemas. Outra dificuldade da proposta está em que obscurece a distinção entre pseudociência e teoria científica falsa. Pois, algumas pseudociências, como a astrologia, têm por objeto realidades cuja existência não se pode razoavelmente negar; contudo, não é também o caso de que a astrologia seja uma teoria científica cuja falsidade foi estabelecida, já que ela é imune à crítica científica, e até mesmo podem os astrólogos apontar para diversas evidências, observações que confirmam suas teorias e profecias.

Outro critério de demarcação, mais promissor, foi proposto por Popper (1982): o de testabilidade das hipóteses e teorias. Para serem consideradas científicas, hipóteses e teorias devem ser capazes de entrar em conflito com observações possíveis ou concebíveis; não podem ser compatíveis com qualquer estado de coisas. Isso é diferente de saber ou determinar se uma teoria é verdadeira ou aceitável; pois poderia ser verdadeira sem ser científica. Também difere de apresentar observações que confirmem positivamente a hipótese ou teoria. Se uma teoria for construída de tal forma que nos faça ver as coisas de uma determinada maneira, encontrará, sem dúvida, frequentes casos que parecem confirmá-la. Teorias conspiratórias são assim; se o sujeito julga que todas as pessoas estão envolvidas em uma conspiração para tornar-lhe a vida desgraçada, não há evidência desfavorável que o faça mudar de opinião. Se alguém procurar ajudá-lo, desconfiará das boas intenções desta pessoa, esperando ser enganado ou manipulado, sempre interpretando todos os eventos a partir de sua visão totalizante. Por essa razão, é preciso procurar por casos que contradigam a teoria ou procurar produzir experimentos contrários. Tais casos ou experimentos contrários devem ser possíveis por princípio, se a teoria pretende ser científica. Deve ser possível extrair da teoria predições “arriscadas”, suficientemente específicas para, através de observações rigorosamente conduzidas, serem passíveis de falsificação.3 Esse é um critério

1 O termo “Deus” é aqui utilizado como um nome comum, não como nome próprio, para se referir àquela realidade da qual falam as religiões. Portanto, não é sinônimo de um ser pessoal, pois, neste sentido, algumas formas de Budismo não têm Deus. É verdade, entretanto, que a maioria das religiões concebe Deus como um ser pessoal.2 A pedra filosofal é a fórmula através da qual, segundo a alquimia, se poderiam transmutar metais não preciosos em ouro.3 Conforme o que diz Popper (1982, p. 67) sobre a astrologia: “A astrologia não passou no teste. Os astrólogos estavam muito impressionados e iludidos com aquilo que acreditavam ser evidência confirmadora – tanto assim que pouco se preocupavam com qualquer evidência desfavo-rável. Além disso, tornando suas profecias e interpretações suficientemente vagas, eram capazes de explicar qualquer coisa que possivelmente refutasse sua teoria se ela e as profecias fossem mais precisas. Para escapar à falsificação, destruíram a ‘testabilidade’ de sua teoria. É um truque típico do adivinhador fazer predições tão vagas que dificilmente falham: elas se tornam irrefutáveis”.

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negativo: uma teoria científica deve proibir certos fatos observáveis. Popper o chama de critério de refutabilidade. Essa proposta tem vantagens consideráveis: (1) permite manter a distinção entre Ciência e pseudociência; (2) permite compreender como uma teoria pode ser científica e, mesmo assim, falsa, tornando a história da Ciência mais interessante e razoável; (3) não implica a destruição de outras esferas da experiência humana, como a moral e a religião, pela redução da verdade à Ciência. Permanecem possíveis conhecimento e verdade que não sejam científicos, ou, dito de outro modo, a Ciência é apenas um dos meios de se conhecer a verdade.

Diferença de grau e de tipoO mundo tal como o percebemos é muito diversificado; as coisas nos aparecem em diversos tama-

nhos, cores, figuras. Se observarmos o mundo vegetal, a enorme variedade de plantas, suas cores, seus cheiros, suas texturas, nos damos conta de que há diferenças por toda a natureza. Contudo, podemos dizer, em uma frase paradoxal, que nem toda diferença é igual. A diferença que há entre um cachorro pequeno e um cachorro grande não é igual à diferença que há entre um cachorro e uma pedra. A dife-rença entre um homem inteligente e um homem estúpido não é igual à diferença que há entre um ho-mem estúpido e um macaco inteligente. Qual o ponto de interesse nisto?

A diferença está relacionada à comparação, e, portanto, há pelo menos duas coisas. Quando com-paramos duas coisas, costumamos apontar ao que elas têm em comum e em que se diferenciam. Pois se elas nada têm em comum, como explicaríamos sua diferença? Diferença está relacionada ao conceito de alteridade. Alteridade significa apenas negar que algo seja outra coisa, como na sentença “p é outra coi-sa que q”, sem dizer em que e como diferem. Alguém que experimenta pela primeira vez uma comida exótica pode se encontrar na situação de ter que explicar com que ela se parece e em que difere daqui-lo que antes provara. Talvez só consiga dizer que não tem o mesmo sabor ou parecido, sem ir além da mera negação. Mas, quando a alteridade é determinada, temos a diferença, que pode ser dividida em di-ferença de grau e diferença de tipo.

A diferença de grau ocorre quando o elemento comum de comparação é homogêneo e represen-tativo. Assim, por exemplo, quando comparamos sabores, e dizemos de algo que é doce, e não amargo, ou que é mais doce do que aquela outra fruta, a diferença à qual nos referimos vem em gradações, e po-demos transformar um no outro por um processo de acréscimo ou diminuição deste elemento comum. Por outro lado, o que podemos fazer para tornar um certo grau de doçura mais audível? Nada, pois são heterogêneos, e sua diferença não é quantitativa, mas qualitativa, uma diferença de tipo. Ainda têm algo em comum, são sensações, e não, digamos, pensamentos. E quanto à comparação entre um homem e um animal. Dizemos que um leão é mais veloz que um homem, e tal linguagem não é figurativa, porque o que neles se compara é passível de mais e de menos. No entanto, se alguém diz que o homem é mais criativo que o leão, isso só faz sentido figurativamente, ou antropomorficamente. Certas qualidades, ou coisas, ou seres, são comensuráveis. Nesses casos, temos diferença de grau entre uma coisa e outra. Não sendo comensuráveis, qualidades, coisas ou seres exibem uma diferença de tipo.

Utilizando essa distinção entre grau e tipo à relação entre ciências naturais e ciências sociais, e con-siderando tanto os objetos como os métodos destas ciências, há duas propostas divergentes. A primeira, que o método das ciências naturais e o das ciências sociais é basicamente o mesmo, diferindo apenas na sua aplicabilidade e alcance. Esta concepção é chamada de naturalismo, pois toma as ciências naturais

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como modelo para qualquer conhecimento que se pretenda científico. A segunda, que os métodos são completamente distintos, não sendo possível aplicar nas ciências sociais os métodos consagrados nas naturais. Essa concepção é chamada de antinaturalismo. Apesar dessa oposição, isto não significa que as duas posturas não compartilhem alguns pressupostos. O sociólogo Boaventura Santos, em seu opúsculo intitulado Um Discurso sobre as Ciências4 (SANTOS, 2002), ao criticar o modelo de racionalidade dominan-te na ciência moderna, elaborado a partir do século XVI no âmbito das ciências naturais, argumenta que tanto a abordagem positivista como a abordagem antipositivista das ciências sociais partilham com este modelo uma visão mecanicista da natureza.

NaturalismoSegundo os naturalistas, se a sociedade e o comportamento dos indivíduos, dos grupos, das ins-

tituições, assim como a forma em que as relações sociais são criadas, se desenvolvem, se alteram, de-saparecem etc., são passíveis de conhecimento científico, é por meio daqueles métodos associados às chamadas ciências naturais que esse conhecimento será obtido, avaliado, estabelecido. Assim como o cientista natural explica os fenômenos por meio de algum tipo de causação física, o cientista social, ao procurar explicar a atividade humana, deve fazê-lo através de algum tipo de causação social. O ser hu-mano faz parte da natureza, não apenas enquanto corporal, mas em sua integralidade. Se há algo além da natureza (um Deus, por exemplo), esta coisa ou ser não poderia ser objeto da Ciência. Mas o homem não é, certamente, esta coisa. Convém distinguir dois tipos de naturalismo: o naturalismo radical e o na-turalismo moderado.

O naturalismo radical está associado a concepções reducionistas, isto é, à tentativa de mostrar que eventos ou seres de um tipo nada mais são que realmente eventos e seres de outro tipo. O reducionismo metodológico propõe que os métodos específicos da uma ciência (a Sociologia, por exemplo)5 podem ser explicados pelos métodos específicos de outra ciência (a Biologia, por exemplo). Já o reducionismo ontológico argumenta que certas entidades que se supõem existir ou eventos que se supõem ocorrer nada mais são que formas diferentes de falar de outras entidades e outros eventos. Temos um exemplo na discussão contemporânea das ciências cognitivas acerca da relação entre o cérebro e a consciência. Segundo uma teoria famosa na área, o modelo computacional da mente, nossa consciência deve ser en-tendida como se fosse um computador sofisticado, que recebe, processa, armazena, interpreta e usa in-formação. E estas são todas operações cerebrais. A única diferença relevante entre nós e computadores está no fato de nosso hardware ser orgânico. Mas não há nada além do cérebro, nem a mente pensante cartesiana nem a alma religiosa. Continuamos usando termos mentais (como penso, julgo, decido, odeio etc.) por conveniência prática, assim como continuamos a falar do pôr do sol, embora saibamos que o Sol não se põe.

4 Nesse texto, usa ele os termos “positivista” e “antipositivista” para se referir às abordagens que estamos comentando, respectivamente, “naturalista” e “antinaturalista”. Outros teóricos também preferem ou usam aqueles termos; considere-se com sinônimos respectivos aos termos utilizados aqui.5 Comte defendia a ideia de que a economia era redutível à Sociologia, já que não existem fenômenos tais como os econômicos. Exemplo mencionado em Alan Ryan (1977).

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Já o naturalismo moderado não nega haver diferenças importantes entre os eventos sociais e os eventos físicos, ou que o ser humano é sui generis, e aceita, portanto, que eventos sociais são irredutíveis a eventos físicos. Apesar disso, argumenta que eventos sociais de alguma forma fundamental dependem de eventos físicos, mesmo que não sejam estritamente idênticos a estes. Usando o exemplo menciona-do no parágrafo anterior, para o naturalismo biológico6, a consciência é ainda concebida como um ele-mento natural, uma característica biológica ordinária do mundo, dependente do cérebro. Não há mente enquanto um algo distinto do corpo, mas a consciência não é meramente uma palavra que designa eventos neurofisiológicos. É um fenômeno natural, mas singular, e não pode ser reduzida a outros fe-nômenos. De forma similar, as regras gerais do método científico, tal como desenvolvido e utilizado nas ciências naturais, também se aplicam às ciências sociais, embora certas características específicas dos eventos sociais exijam uma mudança na aplicação daquelas regras gerais. Permanece que hipóteses de-vem ser formuladas, que elas sejam passíveis de teste para confirmação ou refutação, que se proponham leis gerais a partir das quais elaborar previsões. Por exemplo, se aceita que tratamentos estatísticos sobre a opinião e intenção das pessoas são viáveis. Isto é, que seja possível fazer uma pesquisa sobre crenças religiosas e daí extrair ou comparar com hipóteses gerais sobre a religião e deduzir destas hipóteses al-gumas afirmações testáveis empiricamente.

AntinaturalismoPara as concepções antinaturalísticas, os métodos nas ciências sociais devem ser radicalmente di-

versos dos métodos das ciências naturais, assim como será diferente o conceito de lei. Isto porque os dois grupos de ciências são incomensuráveis. Há entre eles uma diferença de tipo. As características dos agentes e eventos sociais exigem métodos de compreensão dos fatos, e não de explicação causal. Os an-tinaturalistas procuram apresentar quais seriam estas características e porque elas não são passíveis de uma explicação do tipo usual nas ciências naturais, a saber, por meio de generalizações causais e leis na-turais. Vejamos três destas características.7

Impossibilidade da experimentaçãoOs fatos sociais não podem ser repetidos artificialmente em laboratório sob situação controlada.

Não há como refazer, nem aproximativamente, eventos históricos ocorridos no passado. As ciências so-ciais dependem de dados observacionais não experimentais, dados históricos (em sentido estrito) que não podem ser verificados da mesma maneira que dados físicos, por repetição, mas apenas por fonte testemunhal. Não é possível (e nem desejável) repetir, por exemplo, a tomada de Troia pelos gregos, ou a batalha de Waterloo (em que Napoleão foi derrotado), para obter uma compreensão adequada e cien-tífica do fenômeno da guerra.

6 Esta é a designação dada pelo filósofo americano John R. Searle (1997) à sua concepção materialista moderada da mente ou consciência. Conforme seu livro A Redescoberta da Mente.7 Nesse ponto, uso como referência principal o texto de Karl Popper, A Miséria do Historicismo. Especialmente o capítulo 1.

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NovidadeOs eventos sociais são sempre de caráter intrinsecamente novo, e não constituem um mero rearranjo

daquilo que já existe. Mesmo que haja aspectos repetitivos, a situação é outra. Por exemplo, apesar de haver similaridades entre o surgimento e consolidação da democracia na América do Norte e o mesmo fenômeno no Brasil, compreender um, não nos capacita a compreender o outro da mesma forma que a explicação causal de um evento meteorológico nos permite compreender evento posterior da mesma natureza. A compreensão é de outro tipo, pois sempre haverá diferenças (novidades) não negligenciáveis entre um evento social e outro.

ComplexidadeOs fenômenos sociais possuem uma complexidade muitas vezes maior do que os fenômenos físicos,

e pressupõem uma quantidade maior de conhecimentos, aí incluídos os das ciências naturais. Assim, mesmo que houvesse nos fenômenos sociais regularidades similares às que observamos nos fenômenos naturais, é provável que sejamos incapazes de identificá-las, dada sua complexidade. Por exemplo, é muito mais simples explicar a migração das aves, o período em que ocorre, suas causas e consequências, do que explicar as mudanças nas estruturas familiares no último século, o que as motivou e que consequência gerou. Daí porque os cientistas naturais concordam mais facilmente entre si, enquanto os sociólogos apresentam interpretações alternativas e excludentes dos mesmos fatos históricos.

Texto complementar(RYAN, 1977, p. 21)

As questões relativas a se as ciências sociais são realmente ciências – que é o rótulo mais fácil para a multiplicidade de questões que os filósofos podem formular sobre as ciências sociais – não po-dem ser resolvidas simplesmente decidindo ou recusando chamá-las ciências. Pois as questões exi-gem que se explique o que torna uma investigação científica, que elucide as diferenças entre senso comum e ciência, ou que se estabeleça a distinção entre o insight do sociólogo e o insight do nove-lista, cujas explicações, embora não sendo científicas, parecem dizer-nos algo. Consequentemente, alguém que negasse a existência de uma coisa tal como a ciência da vida social não estaria negando que as pessoas tivessem sido realmente chamadas de cientistas sociais; sua situação se pareceria muito mais com a de um ateu que negasse que a teologia tenha objeto. O ateu poderia concordar que durante séculos existiram pessoas chamadas teólogos; mas, prosseguiria ela, uma vez que não existe Deus, o objeto carece de base inicial, e essas pessoas foram incorretamente denominadas, pois intencionalmente a teologia é o estudo da natureza de Deus, e não há como estudar a natureza de algo que, em primeiro lugar, não existe; não pode haver ciência sem um objeto de estudo.

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Atividades1. Com outro colega, faça uma pesquisa para descobrir o que é o teste de Turing e o descreva de

forma sucinta, comentando suas reações a tal ideia.

2. Releia com atenção o comentário de Popper sobre astrologia, citado na nota 3, e tente dar dois exemplos históricos que confirmem o que ele está dizendo.

3. Encontre uma classificação das ciências (pode ser em sites do governo ou de universidades) e interprete sua estrutura usando os conceitos explicados na primeira parte da aula. Fazer esta tarefa em grupo de três.

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46 Relação entre ciências sociais e ciências naturais

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Natureza humana e liberdade

É possível uma ciência da natureza humana e da sociedade? Se há uma ciência do comportamento humano, seja em relação a ações individuais ou em relação

a ações coletivas, pressupõe ela que as pessoas estejam, de alguma forma, determinadas a agir tal como efetivamente agem? Esse problema, embora em outros formatos, surge constantemente relacionado ao conhecimento ou sua possibilidade. Por exemplo, durante muito tempo os teólogos cristãos discu-tiram se a onisciência (omni = tudo + scientia = conhecimento) divina excluía a liberdade humana. Pois, se Deus tudo sabe, esse conhecimento inclui o passado, presente e futuro. Mas se Deus sabe hoje o que eu farei amanhã, e Deus não erra, que alternativa me resta a não ser agir no futuro conforme o conheci-mento presente (ou melhor, eterno) de Deus. Logo, não sou livre, pois já não posso escolher1. Raciocínio similar pode ser construído para qualquer tipo de conhecimento que tenha como objeto a ação huma-na; não é este justamente o caso das ciências sociais? A maneira como se aborda o estudo da sociedade e do ser humano depende do que consideramos sejam um e outro; e se este estudo pretende ser cientí-fico, deve seguir critérios que o caracterizem como tal.

Ora, somente fatos que se seguem de acordo com leis constantes parecem adequados para inves-tigação científica. No que se refere às ciências da natureza, enquanto distinta da humanidade, é ainda geralmente aceito que todo efeito resulta com exatidão de sua causa, de forma que, dadas as mesmas circunstâncias, nenhum outro efeito poderia resultar da operação daquela causa. Se houvesse mudança constante nos eventos naturais, jamais poderíamos dizer que um evento foi produzido por outro, e a lei da causalidade nos seria desconhecida, e a ciência impossível. Mas e quanto às ciências da natureza hu-mana e da sociedade? Se forem possíveis, isso significa que há leis da mente e leis da sociedade? Ou será

1 Lembre-se de que, no discurso filosófico, a não ser que seja explicitamente dito o contrário ou o contexto claramente o mostra, o termo “eu’” é genérico. Não se refere de modo específico ao sujeito que escreve, ou a alguma outra pessoa determinada. Aplica-se a qualquer um que refaça o pensamento em sua própria mente.

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48 Natureza humana e liberdade

que o fato de sermos conscientes, agirmos livremente e reconhecermos um domínio de valores torna a abordagem científica, no sentido há pouco referido, inadequada para a compreensão da natureza hu-mana e da sociedade?

Convém considerar, no contexto, com mais atenção a questão da liberdade por duas razões: (1) sua importância em relação à possibilidade de uma ciência social; (2) o fato de ainda haver discordância profunda sobre o tema mostra que as pessoas associam ideias diferentes às expressões usadas, provo-cando ambiguidades. O termo “liberdade” refere-se a um daqueles conceitos fundamentais que todos julgamos compreender, e conseguimos geralmente aplicá-lo com sucesso nas situações concretas. Mas, se instigados a explicar o que é a liberdade, quais seus tipos, quais os critérios para distinguir o livre do não livre, quem é livre, e assim por diante, facilmente nos daremos conta da dificuldade da tarefa. Aqui se aplica o que disse belamente Santo Agostinho2 (1984, p. 217-218) acerca do tempo:

Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pen-samento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. (Grifo do autor).

Substitua nessa citação “tempo” por “liberdade” e continuamos com uma verdade inegável. Contudo, não podemos escapar da questão, pois na ideia de liberdade estão envoltos muitos outros conceitos importantes para uma ciência do humano, na qual estão incluídas as ciências sociais.

Possibilidade e necessidadeUm primeiro ponto a assinalar está na conexão intrínseca entre a ideia de liberdade e a noção de

possibilidade. De maneira tosca e provisória, podemos dizer que livre é algo ou alguém que pode algo, e não livre (ou predeterminado) é algo ou alguém que não pode. Em relação àquilo que alguém pode, ela é livre. Quem tudo pode, é absolutamente ou completamente livre. Dessa perspectiva inicial, parece claro que somos livres parcialmente: podemos muitas coisas, uns mais que outros, e não podemos muitas outras coisas. Contudo, cabe perguntar: o que significa poder algo? O que é possibilidade? Se procurarmos definir este conceito, não convém apelar para um dicionário comum, pois geralmente, neste caso, costuma-se utilizar o próprio conceito na definição. Por exemplo, possível é “aquilo que pode ser, acontecer ou praticar-se” (BORBA, 2004, p. 1.101. Grifo do autor).

Uma definição mais adequada se encontra na filosofia: “possível é o que não implica contradição”. Todas as ideias, noções, verdades concebíveis ou imagináveis satisfazem este critério. Imaginar e conceber são duas operações mentais diferentes, embora parte daquilo que imagino também concebo, e parte daquilo que concebo também imagino. Por outro lado, há coisas que alguém concebe, mas é incapaz de imaginar; há coisas que se imaginam, mas das quais não se têm concepção. Assim, posso imaginar e conceber um carro azul. Imagino na medida em que tenho uma representação mental (“uma imagem”) do carro, e concebo na medida em que compreendo o que é um carro, sei diferenciá-lo de um animal, uma bicicleta, sei o que pode ser feito com ele, sou capaz de explicar a outra pessoa o que é este

2 Santo Agostinho (354-430) foi um dos principais pensadores cristãos, e viveu no período logo após a promulgação do cristianismo como religião oficial do Império Romano Ocidental. Convertido ao cristianismo após os 30 anos de idade, versado em filosofia grega e romana, tornou-se figura central na elaboração da teologia cristã e exerceu enorme influência na filosofia posterior.

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objeto etc. Por outro lado, uma pessoa que vê um helicóptero pela primeira vez, e nunca viu qualquer outra máquina similar, imagina o helicóptero, ao lembrar-se do que viu (e sua imaginação pode ser vívida), mas não é capaz de concebê-lo, pois o máximo que poderá dizer é que o helicóptero não é isto ou aquilo. Por fim, concebemos coisas que somos incapazes de imaginar; concebo que o mundo existe há milhões de anos, mas não sou capaz de imaginar um lapso de tempo desta magnitude. Sentenças universais (como a que afirma a mortalidade de todo homem) e leis científicas (como a lei de inércia, ou a lei da corrupção) são concebidas, mas não imaginadas. Tomemos o exemplo da lei da corrupção: “Todo homem que exerce poder sobre outros homens tende a dele abusar, abuso que aumenta proporcionalmente ao poder obtido e à fraca resistência alheia”. Posso imaginar exemplos específicos disto, mas a própria lei, em razão de sua generalidade, pode apenas ser concebida.

Em resumo, podemos referir a capacidade de imaginar à nossa percepção sensível e a capacidade de conceber ao nosso intelecto. Somos capazes de imaginar aquilo de que alguma vez tivemos experi-ência sensorial, através da memória; e podemos imaginar objetos nunca antes sentidos pela combina-ção, diminuição, exagero daquilo que, em algum momento, tivemos experiência (como no caso, por exemplo, de monstros ou de seres extraterrestres). Concebemos quando generalizamos essas experiên-cias ou quando criamos noções abstratas.

Esta definição de possível como aquilo que não implica contradição recebe o nome de possibilidade lógica. Seu valor para a questão da liberdade e a relação desta com uma ciência da natureza humana está especialmente no que ela exclui, e que se acrescenta à forma proposicional “não é logicamente possível que [...]”. Ao negar a possibilidade lógica de algo, negamos que seja imaginável ou concebível, não negamos apenas sua ocorrência ou sua probabilidade. Se alguém diz que algo não existe porque é logicamente impossível, não está apenas dizendo que ninguém jamais viu tal coisa. Por exemplo, a sentença “não há triângulos com mais de três lados” difere da sentença “não há seres extraterrestres”, embora ambas parecem tratar do que existe ou não. Mas extraterrestres poderiam existir (inclusive, há quem acredite que eles efetivamente existem), enquanto triângulos de quatro lados não poderiam existir. Mas também em um sentido diferente daquele em que não pode existir um homem capaz de correr a uma velocidade de 100km por hora. Dada a nossa constituição física, isto não vai ocorrer, mas seria logicamente possível: podemos imaginar esta situação, ou concebê-la, e inventar um personagem (de uma história de quadrinhos, digamos) com tal habilidade que seja, ao mesmo tempo, humana. No caso do triângulo com quatro lados, é simplesmente impossível, porque a ideia é absurda, uma ideia vazia, sem significado.3 Seria como alguém falar “bá, bó, blu, ble”, como se estivesse a nos dar alguma informação. No caso do triângulo, apenas parece fazer sentido, já que os termos individuais têm significado, mas sua conjunção em uma mesma sentença nada significa. Nada significa, pois implica uma contradição: todo triângulo tem três lados e isto faz parte da definição de triângulo, não é algo que descobrimos acerca de triângulos apenas olhando para eles. Então, o absurdo aparece claramente se nós traduzirmos a expressão “triângulo com quatro lados” por “figura geométrica de três lados com quatro lados”.

Correlacionada à noção de possibilidade está a de necessidade, que pode ser assim definida: “necessário é aquilo cujo oposto implica contradição”. Isso é chamado necessidade lógica. O oposto de um termo ou de uma sentença se obtém lhes acrescentando a negação, de forma a deixar claro que o oposto de algo é tudo aquilo que não é aquele algo. Por exemplo, o oposto de preto é não preto (seria um equívoco dizer branco, pois além do branco há o azul, o amarelo, o vermelho, todos não pretos). O oposto de “todos os homens são mortais” é “não é o caso que todos os homens são mortais”, ou

3 Em relação a isto, há uma distinção, tornada teoricamente clara pelo matemático e filósofo alemão Gottlob Frege (1848-1925), entre o signi-ficado e a referência de um termo ou uma sentença.

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“alguns homens não são mortais”. Se compararmos opostos, eles são sempre contraditórios: se um for verdadeiro, o outro será falso, e vice-versa, não sendo o caso de ambos serem verdadeiros ou ambos falsos. Por exemplo, nenhum objeto pode ser ao mesmo tempo preto e não preto em toda sua extensão; mas poderia ser ou preto ou não preto. Nesse sentido, a frase “aquele carro tem cor preta” não é logicamente necessária, pois seu oposto “aquele carro não é preto” não implica contradição, isto é, sua verdade é possível. Em que casos, então, uma sentença implica contradição? Na história do pensamento, muitos explicaram que uma sentença implica contradição quando nega uma verdade autoevidente. Contudo, não há consenso acerca de quais e quantas são as verdades autoevidentes. Algumas que parecem indiscutíveis: “uma coisa é igual a si mesma”; “se penso, existo”; “a soma de 3 + 3 + 2 = 8”. Pois o oposto destas implica contradição: não há caso concebível em que “algo é desigual a si mesmo”; “penso, mas não existo”; “a soma de 3 + 3 + 2 é diferente de 8”.

Note-se que, ao explicar a necessidade lógica, usamos por vezes o termo “possível”. A razão disso está em que o possível inclui o necessário, mas não vice-versa. Tudo que é necessário é também possível; nem tudo que é possível é também necessário. Mas até o momento, estivemos considerando o possível e o necessário em um sentido amplo. Quando queremos saber se algo é possível, na maioria das vezes estamos em dúvida acerca da possibilidade de algo tendo em vista outras condições definidas. Sem dúvida, é logicamente possível a qualquer um de nós que lê este texto voar até o restaurante mais próximo, pulando da janela de nosso apartamento ou casa. Isso pode até ser interessante de imaginar (talvez resolvesse o problema de trânsito nas grandes cidades), mas não é usual que tomemos a sério tais possibilidades. Interessa-nos antes, especialmente para a questão da liberdade, o que é possível para nós tal como somos, ou dito de outra maneira, aquilo que é compossível conosco. Chamemos isto de possibilidade real. Assim, modificando o exemplo anterior, é possível, neste sentido, ir ao restaurante caminhando ou de carro, se não houver nada que impeça uma ou ambas as alternativas. Pensando em situações normais, e considerando nossas condições físicas e mentais, frequentemente estamos diante de alternativas excludentes que nos parecem todas possíveis. Essas alternativas serão diferentes de pessoa a pessoa, mas acreditamos que existem, e que precisamos decidir; para tanto, deliberamos, pesamos os prós e os contras, nosso hábitos nos influenciam, bem como nossos valores e inclinações. Então, escolhemos e agimos; após agirmos, a situação se altera, não sendo mais possível, concomitantemente, a alternativa descartada. Para o processo de deliberação e opção, importa que tanto a alternativa escolhida quanto a alternativa rejeitada sejam, naquele momento, realmente, e não apenas logicamente, possíveis. Se entre ir ao restaurante caminhando ou de carro, uma delas fosse apenas logicamente possível, parece que, então, teríamos de abandonar a ideia de possibilidade real. Pois se há apenas uma alternativa possível, diríamos que ela é necessária, no sentido de uma necessidade real. As regularidades causais descobertas pelas ciências naturais, e que são expressas em hipóteses e/ou teorias, exemplificam tal necessidade, também chamada de necessidade causal: a causa produz necessariamente seu efeito. As ações dos corpos físicos uns sobre os outros não são “escolhidas” por eles. Contudo, quando falamos de liberdade, supomos que um curso de ação alternativa era possível. Qual tipo de possibilidade é pressuposto?

Antes de responder tal questão, convém ainda mencionar outro tipo de possibilidade: a moral. Possibilidade moral refere-se apenas a agentes conscientes e capazes de estabelecer valores, ou reco-nhecer normas morais objetivas ou subjetivas, e julgar as alternativas que se apresentam a partir da perspectiva moral. De todos os tipos de possibilidade até aqui comentados, este é o mais complexo, cuja explicitação exige um cuidado maior. Quando se diz que algo é moralmente possível a um indiví-duo, é preciso levar em conta quais os valores que ela aceita. Assim, pessoas que valorizam mais o bem- -estar do que a honestidade, não teriam impedimento moral em aceitar propina. Por outro lado, pessoas que consideram honestidade um valor em si, considerariam a aceitação de propina como não estando

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em seu campo de possibilidade moral. Assim, quando alguém afirma que todos são capazes de roubar, para que esta sentença seja tida como aceitável ou óbvia, o significado de “capazes de roubar” deve es-tar ligado à ideia de possibilidade real (ou causal). Então, é provavelmente verdadeira, ou com poucas exceções (alguém em coma, por exemplo). Mas se for entendida em um sentido moral, é certamente falsa. É o que ocorre com a hipótese de que qualquer indivíduo age sempre movido por autointeresse. Diante de casos óbvios de altruísmo, os defensores de tal hipótese precisam recorrer a uma ideia mais forte, desprovida de confirmação, a de que “no fundo” todos são egoístas. Parte desse equívoco se deve à confusão entre possibilidade real e possibilidade moral. Para o cientista social, compete estar atento a hipóteses “preconcebidas” e não incluí-las sub-repticiamente em suas tentativas de explicação racional. Podem estas hipóteses ser verdadeiras, em “um sentido mais profundo”, mas não serão científicas.

Tipos de liberdadeAdaptando uma classificação sugerida por Leibniz4, podemos diferenciar dois tipos básicos de

liberdade, um dos quais se subdivide em dois subtipos, um dos quais, por sua vez, em outros dois. Conforme esquema abaixo:

Liberdade

Liberdade de direito

Liberdade de fato

Liberdade de ação

Liberdade da vontade

Livre-arbítrio

Liberdade moral

Liberdade de direitoPor liberdade de direito se entende aquilo que é permitido pela lei positiva e pelos usos e costu-

mes em uma determinada organização social. Como diz Hobbes (1988, p. 134), é o “silêncio da lei”. Nos casos em que o poder constituído para tal não tenha estabelecido uma regra, os cidadãos têm a liberda-de de fazer ou de omitir, conforme julgarem apropriado. Em razão disso, tal liberdade não depende dire-tamente de habilidades naturais, sejam corporais ou mentais, mas da forma como as relações sociais são estruturadas de acordo com normas artificiais. Apesar de artificiais, tais normas não são necessariamente arbitrárias; e podem estar relacionadas a concepções acerca do ser humano e da sociedade, como po-dem dizer respeito a um determinado interesse, de classe ou comum. Se compararmos, por exemplo, liberdade política com liberdade no trânsito, podemos ver uma diferença importante. Há coisas que po-demos e não podemos fazer no trânsito, incluindo neste contexto tanto veículos quanto pedestres. Tais limitações legais à nossa liberdade de movimento têm em vista o interesse comum e, por fim, a própria possibilidade de movimento. Sem regras, aumenta a probabilidade de caos, o que termina dificultan-do a própria liberdade de movimento. Seguir regras, que à primeira vista constituem impedimento à

4 Leibniz, Gottfried W. (1646-1716), filósofo e matemático alemão. A classificação encontra-se na obra Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano (LEIBNIZ, 1984, p. 125-126).

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liberdade, mostra-se como condição para o seu exercício. Quanto à liberdade política, até recentemente, mesmo em democracias sólidas, as mulheres eram impedidas de exercer direitos políticos, de votar e serem votadas. Essa limitação à liberdade política de uma parte da população era justificada com base em uma concepção preconceituosa do feminino, ou em propósitos, geralmente não explicitados, de do-minação. Aqui os estudos sociais desempenham papel fundamental, para trazer à tona e tornar explíci-tos as motivações que sustentam regras sociais.

Liberdade de fatoLiberdade de fato relaciona-se fundamentalmente à nossa vontade, mas de duas formas distintas:

como liberdade de ação, a saber, no poder de fazer o que se quer; e como liberdade de vontade, a saber, no poder de querer o que se quer. A liberdade de ação encontra graus e variedades conforme os meios de que dispõe o agente para exercer e tornar real sua vontade. Esses meios são naturais, como habilidade física, saúde, inteligência, sagacidade, ou artificiais, como riqueza, prestígio, poder religioso ou político. Assim, uma pessoa doente tem menos liberdade de ação do que uma pessoa saudável, e um homem famoso é mais livre do que um desconhecido. Na medida do uso das coisas que habitualmente se encontram sob nosso poder, especialmente nosso corpo, somos mais ou menos livres.

Esse aspecto mostra a íntima conexão entre liberdade de direito e liberdade de ação, e sua influência recíproca. A maior parte das discussões acerca de liberdades move-se de um tipo a outro. Tomemos como exemplo a liberdade de imprensa. Quando se argumenta que, em uma democracia, a imprensa e a livre troca de informações e opiniões são fundamentais, trata-se, sem dúvida, do exercício de habilidades físicas e mentais, que diferem de indivíduo a indivíduo. Mas isto é geralmente dado como um suposto; o que se demanda é seu correspondente na esfera do direito, que não se impeça, por meio de lei ou força física, o exercício daquelas habilidades físicas e mentais. E, muitas vezes, a demanda não se restringe a este elemento negativo, mas exige que as leis garantam positivamente a liberdade de expressão. Sabe-se hoje, com mais clareza, que nesse aspecto a liberdade do indivíduo está ligada à educação que recebe (ou, talvez melhor dito, da que participa) e ao tempo ocioso disponível. De modo que, em uma sociedade na qual indivíduos não têm a acesso à educação e precisam trabalhar longas horas no dia para sobreviverem, sua liberdade de expressão está limitada, mesmo que não haja proibição explícita a seu exercício.

Em resumo, a liberdade de ação diz respeito àquilo que fazemos voluntariamente, cuja explicação se encontra em nós próprios enquanto seres pensantes e desejantes. Não inclui ações involuntárias ou ações coagidas. Nesse sentido, é parcial; mesmo o ser humano mais livre que possa ter existido não o foi de maneira absoluta, pois há sempre impedimentos, em maior ou menor grau conforme as circunstâncias, e nos enganamos acerca daquilo que somos capazes de realizar. Livre, então, é o ato que segue da von-tade do agente. Mas, e quanto à própria vontade? O que a explica? Será ela determinada por fatores in-ternos ou por fatores externos?

A liberdade da vontade é anterior à de ação, e refere-se à primeira parte daquela. Repetindo a defi-nição da liberdade de ação: ser livre consiste no poder de fazer o que se quer. Conforme indicado acima, essa noção possui dois sentidos: o de livre-arbítrio e o de liberdade moral. Livre-arbítrio é a expressão filosófica que corresponde àquele sentimento prático da nossa liberdade: quando queremos algo, não percebemos que estejamos sendo coagidos a querer, como por vezes o somos a fazer algo (e, nesses casos, dizemos ter agido contra a nossa própria vontade), no momento mesmo em que queremos.

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Podemos até, de certa maneira, lamentar que desejamos algo, mas nada afasta ou suprime, em nossa consciência, este sentimento comum de livre-arbítrio. Quanto à compulsão e aos vícios, que parecem contradizer isto, tal não é realmente o caso.

Aqui é útil a distinção que os pensadores medievais faziam entre vontade antecedente e vontade consequente. Quando estamos deliberando sobre um curso de ação, pesamos diversos motivos para agir de uma forma e motivos para agir de outra forma. Na medida em que aprovamos motivos, são eles ob-jetos, cada qual individualmente, de uma vontade antecedente. Algumas entram em conflito, e precisa-mos decidir; ao decidirmos, formamos a vontade consequente, aquela que antecede e provoca a ação. Agora, se perguntarmos acerca da relação entre esses motivos e nossa vontade final, qual a resposta adequada? Podemos dizer que nossa vontade é uma expressão de nosso caráter, mas isto ainda não re-solve a questão. Pois, se minhas ações procedem de meu caráter, de onde procede meu caráter? Parece que uma resposta sensata seria que meu caráter procede de minha constituição fisico-psíquica, de minha educação e de minhas circunstâncias. Mas de que maneira? Tal como a ação, nada impedindo, se-gue da vontade, isto é, inevitavelmente?

Suponhamos a seguinte situação: alguém está decidindo entre ler um livro ou assistir um filme. Usemos a letra S para indicar esta pessoa, t1 para indicar o tempo em que a deliberação5 ocorre, t2 o tempo em que a decisão é tomada, A para a alternativa escolhida e B para a alternativa recusada. A questão acerca do livre-arbítrio pode ser assim formulada: se S em t2 opta por A, teria sido ainda possível optar por B? Isto, se S voltasse a t1, poderia ela escolher em t2 a alternativa B? Se respondermos que sim, afirma-mos a existência do livre-arbítrio, e concebemos que nosso caráter é influenciado pela constituição físi-co-psíquica, pela educação e pelas circunstâncias, mas não é por elas determinado. Cada decisão, além dessas influências ou motivos, inclui também um ato autônomo da vontade. Na história da filosofia, tal noção foi chamada de liberdade de indiferença. Se respondermos que não, negamos a indiferença, em-bora isso não equivalha a negar qualquer tipo de liberdade e a equiparar o ser humano a um autômato, mesmo que de tipo superior. Outras interpretações continuam em aberto. Pode ser o caso, como sugeriu Leibniz (1984), que as razões e motivos fortes apresentados à vontade pelo entendimento, apenas incli-nam a vontade, mas não a necessitam, e isto é o livre-arbítrio. A questão debatida no tópico acerca da li-berdade e da necessidade consiste justamente em resolver se possuímos ou não tal propriedade.

Para concluir, há ainda o que se chama de liberdade moral. Essa consiste no domínio das paixões e dos impulsos internos, de tal forma que a vontade se orienta pelo que é moralmente correto: é o poder de querer como se deve. Em geral, a noção encontra-se associada à concepção de valores morais como objetivos e universais, mas não necessariamente. Supondo que valores morais sejam historicamente construídos, mesmo assim teria lugar a noção de liberdade moral. Há uma expressão disto presente no senso comum, aquela em que aparece um conflito entre o dever (a obrigação) e o prazer. Aquele que cumpre o seu dever, e não o que cede ao prazer (portanto, voluntariamente), é aqui o mais livre. Essa ideia inverte a relação usual entre possibilidade e necessidade que se verifica nos outros tipos de liberdade. Naqueles, quanto mais necessário, menos livre; quanto mais aberto à possibilidade, mais livre. Aqui, o inverso: quanto mais aberto à possibilidade, menos livre; quanto mais necessário, mais livre. Há, portanto, graus na liberdade moral, como na liberdade de ação. O que não é o caso quanto à liberdade de vontade; ou a possuímos, ou não. Donde a necessidade moral é aquela em que se encontra o sábio, que não pode

5 Por deliberação entenda-se aquela operação efetuada pelo entendimento, que compara e pesa diversas razões e motivos antes de indicar o caminho à faculdade volitiva. Como no ditado popular, que recomenda “pensar antes de falar”, por vezes equivocadamente entendido como reco-mendando “falar o que se pensa”, expressão que habitualmente indica que o sujeito “fala sem pensar’” Sem deliberação, não há vontade livre.

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agir senão de acordo com a regra moral. Daí, ser também chamada de a necessidade do sábio. De todos os motivos que atuam na deliberação sobre a decisão da vontade, pesa mais o que é correto. Regras morais são também constantes como leis causais. Por aqui pode haver uma conexão possível com a ideia de uma ciência social: compreender os eventos e relações sociais enquanto relacionados a regras sociais.

Texto complementar

(JAMES, 1996, p. 139-141)

A possibilidade, enquanto distinta da necessidade por um lado, e da impossibilidade por ou-tro, é uma categoria essencial do pensamento humano. [...] Nosso sentimento de “liberdade” supõe que, pelo menos, algumas coisas são decididas aqui e agora, que o momento pode conter alguma novidade, ser um ponto de partida original de acontecimentos, e não meramente transmitir um im-pulso provindo de alguma outra parte. Nós imaginamos que, em alguns aspectos, o futuro pode não estar coimplicado no passado, mas possa ser realmente acrescentável ao passado, e, na verdade, acrescentável em uma direção ou outra, de tal forma que a próxima sequência de eventos pode ser, em qualquer momento dado, genuinamente ambíguo, isto é, possa vir a ser isto, mas também possa vir a ser aquilo (...) Livre-arbítrio significa nada mais que novidade real.

Atividades1. Com outros dois colegas, leia e discuta a situação a seguir. Respondam à questão proposta utilizando

os conceitos apresentados na aula, e produzindo um texto conjunto de no máximo 10 linhas.

Você pertence a um comitê de investimentos em uma grande cidade. Vocês dispõem de certa quantia de dinheiro para investir, que pode ser utilizada ou para abrir um restaurante popular para pessoas desabrigadas ou para dar início a uma galeria de arte municipal. Você é o primeiro a manifestar seu voto. Se você não for favorável ao projeto do restaurante, ninguém mais do co-mitê será, e os desabrigados sofrerão. Por outro lado, o número de desabrigados em sua cidade é ainda relativamente pequeno, e há na cidade muitos estudantes de arte e pessoas interessadas em arte que obteriam grande satisfação em uma galeria com novas e antigas pinturas bem esco-lhidas. O que você deve fazer?

a) Ser favorável à abertura de um restaurante popular.

b) Ser favorável à criação de uma galeria de arte.

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2. Faça uma pesquisa sobre liberdade de expressão, apresentando razões a favor e razões contra. Apresente suas conclusões em, no máximo, 15 linhas.

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3. Leia atentamente o Texto complementar. Você concorda com o autor do texto? Procure imaginar dois exemplos que confirmem a opinião por ele expressa, e dois exemplos contrários.

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Determinismo, indeterminismo e ciência

O problemaNo modelo de ciência desenvolvido a partir do século XVI, e que tem obtido grande sucesso ex-

plicativo, preditivo e tecnológico, um dos pressupostos filosóficos básicos é o de ser a ciência deter-minística, pressuposto ligado à concepção mecanicista da natureza, mas não indissoluvelmente. Este determinismo científico encontra expressão no princípio de causalidade, segundo o qual tudo que ocorre tem uma causa determinada que opera de acordo com leis gerais (as leis causais). Assim, supondo um evento qualquer X, sua ocorrência somente tem lugar porque ocorre um evento antecedente (logicamente, mesmo que não temporalmente) Y, cuja ocorrência teve lugar porque outro evento antecedente Z ocor-reu, e assim por diante, até um evento original ou indefinidamente. A sequência seria, então:

Z Y X

Isto é, Z é a causa de Y, que é causa de X. E essa passagem de uma causa para outra opera em ra-zão de uma regra geral, a saber, uma lei causal. Não é a lei que causa os eventos, mas os agentes; a lei consiste em uma generalização de seu modo de operação. Para que seja possível enunciar uma lei desse tipo, o modo de operação deve ser constante e regular. Se os agentes mudassem a cada momento seu modo de operação, não haveria leis causais e muito menos ciência. Apesar de avanços contemporâneos na Ciência, a Física especialmente, constatarem o que parece ser indeterminação na natureza, esta ima-gem da ciência permanece largamente aceita. Fala-se hoje muito em probabilidades causais. A ideia é basicamente a mesma: para haver ciência, é preciso que haja regularidades, repetições de um mesmo padrão, e que este padrão possa ser expresso na forma de uma generalização. Não há ciência daquilo que é particular.

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58 Determinismo, indeterminismo e ciência

Esse aspecto universal do discurso científico não é, em si mesmo, algo fora do ordinário. Na lingua-gem comum, quando falamos das coisas, de pessoas, de acontecimentos, usamos termos gerais para falar de coisas particulares. Sem o uso desses termos, a comunicação seria impossível, especialmente na au-sência do objeto; estando o objeto presente, poder-se-ia apontar para ele. Se alguém diz: “no quintal de minha casa há uma árvore de limão com folhas alaranjadas”, ela está falando de um objeto específico, mas usa termos que podem ser aplicados a outros objetos e em outras situações, e que designam pro-priedades gerais. “Laranja” pode ser aquela folha, aquele caderno, aquele carro. Mesmo um termo mais especificador na sentença acima, “minha”, só especifica em razão do contexto, porque também é uma pa-lavra geral, que pode perfeitamente ser usada, e de modo apropriado, por outras pessoas, em outras si-tuações. A generalidade da linguagem permite que nos comuniquemos. Assim também, a generalidade da lei causal permite que compreendamos a relação de causa e efeito.

O princípio de causalidade precisa ser distinguido de um outro princípio similar: o de razão suficiente. Com esse nome, o princípio está associado, na história do pensamento, ao filósofo alemão Leibniz (2002, p. 123), que o enuncia da seguinte maneira: “Princípio que afirma que nada se faz sem uma razão suficiente, isto é, nada ocorre sem que seja possível àquele que conhece suficientemente as coisas dar uma razão que baste para determinar porque é desta forma e não diferente.”

Pois o princípio de razão suficiente, se verdadeiro, aplicar-se-ia mesmo que não houvesse leis ge-rais aplicáveis a um caso específico. E isto significaria que, para eventos que ocorressem sem ser possível colocá-los sob uma generalização causal, mesmo assim não teríamos de aceitar que ocorre por acaso, sem nenhuma explicação possível. Na sequência da aula, a importância deste ponto ficará clara.

Se as ciências pressupõem uma visão determinística do mundo material, e se as ciências sociais têm por objeto o comportamento humano, enquanto manifesto no âmbito da coletividade (os chamados “fenômenos sociais”), isto significa que também essas ciências pressupõem, ou deveriam fazê-lo, uma visão determinística do mundo mental? E, se for o caso, isto significa que a crença no livre-arbítrio é falsa? Para abordar essa questão, considerando os principais tipos de resposta que foram propostos, vamos iniciar estabelecendo uma definição do que seja livre-arbítrio, que será chamado simplesmente de liberdade no resto da aula. A definição a seguir é construída tendo em vista as ações voluntárias, e como elas ocorrem, assunto este da discussão filosófica acerca da liberdade e necessidade.

Liberdade significa que, se você tivesse agido diferentemente, o futuro seria também diferente. E você poderia ter agido diferente do que agiu, se sua vontade tivesse sido diferente. E isto depende exclusivamente de você. Estava em seu poder ter escolhido uma ação diferente daquela que você realmente escolheu.

DeterminismoDeterminismo em relação a ações humanas consiste na concepção de que nossas ações são deter-

minadas por nossa vontade, que por sua vez é determinada por nossas preferências, crenças, desejos, sensações, hábitos. Vamos chamar esses elementos de causas imediatas ou causas próximas da vontade,

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Determinismo, indeterminismo e ciência 59

a qual resulta do balanço desses elementos1. E os fatores determinantes das causas imediatas são: a edu-cação que recebemos, o ambiente em que crescemos e vivemos, a genética e outros fatores mais espe-cíficos conforme o caso. Justamente a eficácia desses fatores determinantes (ou causas remotas) permite que tenhamos uma influência indireta sobre nossa própria vontade. Em relação às ações que julgamos moralmente superiores e, contudo, não as realizamos porque nossa vontade vai em direção contrária, podemos tomar medidas que, em um futuro próximo ou mais distante, nossa vontade escolha a ação esperada. Assim se explica como, apesar de a alternativa A nos parecer a melhor (pelo uso de nosso en-tendimento e de nosso sentimento moral), escolhemos B. Conforme disse um poeta grego, “Vejo o me-lhor e o aprovo, mas faço o pior”. Contudo, faz voluntariamente, as paixões tendo mais influência sobre a vontade do que a razão. Nesse sentido, muitos filósofos antigos diziam que apenas a pessoa sábia é livre, pois não permite que suas próprias paixões governem suas ações.

O determinismo não deve ser confundido com fatalismo, embora por vezes os termos sejam uti-lizados como sinônimos. Contudo, tratam-se de concepções cuja diferença é mais fundamental do que a similaridade. Na verdade, o fatalismo é inconsistente com o determinismo, pois recusa o nexo causal entre eventos passados e futuros, ideia determinística crucial. Segundo o determinismo, o futuro é mol-dado pelo passado, será o que será porque o passado foi o que foi. Já o fatalismo pretende que parte do futuro, pelo menos, será como será não importa o passado com o qual está relacionado. Como dis-se Leibniz, o fatalismo se apoia em uma razão preguiçosa, que não se dá ao trabalho de examinar as cau-sas efetivas dos acontecimentos. Aplicado ao nexo entre vontade e ação, o fatalismo afirma que certos acontecimentos, que dependem de nossa vontade para sua realização tanto quanto podemos julgar, ocorrerão quer queiramos quer não. Isto sem dúvida é verdade em relação às coisas que independem de nossa vontade e ação, mas não em relação ao que resulta de nossas ações voluntárias. Veja no quadro a seguir o relato sobre Édipo, história da mitologia grega que exemplifica o pensamento fatalista.

1 Nesse contexto, “vontade” deve ser entendida exclusivamente como aquele momento anterior à ação, isto é, a escolha, a decisão que produz a ação se nada impedir. Daí ser diferente de desejo. Muitas vezes, usamos a palavra vontade como sinônimo de desejo, mas aqui é necessário fazer a distinção porque algumas de nossas ações voluntárias resultam de um conflito entre o que desejamos e o que julgamos ser nossa obrigação. Mas, se optamos por agir de acordo com nossa obrigação, isto consiste em um ato da vontade; não estamos agindo contra nossa vontade, embora possamos estar agindo contra nosso desejo ou nossa inclinação.

Fatalismo e o mito de ÉdipoAs tragédias gregas representam expressões acuradas de uma visão fatalista dos eventos. Em

diversos casos, personagens, mesmo deliberadamente, tentando evitar certas profecias, acabavam por cumpri-las. Ao tentar fugir de seu destino, o realizavam. A ideia motriz que sustenta tais histórias é a recusa de que o conhecimento de uma profecia possa constituir um elemento que venha a des-fazê-la. É uma concepção oposta àquela dos profetas no judaísmo, em que a profecia geralmente tinha caráter condicional. Um dos mitos gregos mais conhecidos é o de Édipo. Conforme o rela-to resumido feito por Pierre Grimal (1983, p. 74-75): “A dinastia de Cadmos foi continuada por seu neto Labdacos e, em seguida, pelo filho desse, chamado Laio. Durante a minoridade de Laio, o rei-no de Tebas caiu em mãos de usurpadores, e Laio teve de se exilar em Elide, junto ao rei Pélops. Aí, apaixonou-se pelo filho desse, o jovem e belo Crisipo, e inventou os amores contra a natureza. Pélops o amaldiçoou e expulsou. Nesse meio tempo, tendo morrido os usurpadores, Laio voltou a Tebas e reconquistou seu reino. Mas trazia consigo a maldição de Pélops. O oráculo revelou-lhe que,

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doravante, estava proibido de engendrar um filho. Se o fizesse, o filho o mataria e seria causa das mais terríveis desgraças para toda sua família. Laio não deu ouvidos e engendrou Édipo. Mas, não querendo negligenciar a previsão ameaçadora, deu ordens para que o filho fosse abandonado na montanha. Havia furado os tornozelos da criança para ligá-los por uma corda; foi o inchamento pro-vocado por essa ferida que valeu à criança o nome de Édipo, que significa, com efeito, “Pés-Inchados”. Mas Édipo não morreu, como o desejava seu pai. Foi recolhido por pastores do rei de Corinto (ou de Sícone), Polibo, e educado na corte desse, acreditando firmemente que Polibo e sua mulher, Peribéia, fossem seus verdadeiros pais. Isso durou até o dia em que um coríntio, numa briga com o jovem, re-velou-lhe que ele não passava de um enjeitado. Édipo resolveu imediatamente ir até Delfos interro-gar o oráculo e conhecer a verdade. E foi no curso dessa viagem que realizou a antiga profecia. Pois, na encruzilhada de Potniai, encontrou o rei Laio, numa passsagem em que o caminho se estreitava. O arauto de Laio ordenou-lhe que deixasse o caminho livre; como Édipo não se apressasse em obe-decer, matou um de seus cavalos. Édipo, furioso, matou o arauto e seu senhor. Ignorando toda a ex-tensão de seu crime, Édipo continuou seu caminho para Tebas, onde se encontrou na presença da Esfinge, um monstro metade leão metade mulher, que colocava enigmas aos passantes e devorava os que não sabiam responder. Édipo resolveu os enigmas e, por despeito, a Esfinge lançou-se contra as rochas e se matou. Em seu reconhecimento, os tebanos fizeram do estrangeiro o seu rei, dando-lhe como esposa a mulher de Laio, Jocasta. Mas uma peste se abateu sobre a cidade. O oráculo, con-sultado, revelou que ela não cessaria enquanto o assassino de Laio não fosse punido. Pouco a pouco, descobriu-se a verdade. Édipo, desesperado, cegou-se. Jocasta se enforcou”.

Por que razões acreditar no determinismo? Mesmo cientes da influência de diversos elementos so-bre nossa vontade tanto das causas imediatas quanto dos fatores determinantes destas, sentimos que, ao deliberarmos e decidirmos, somos livres, e estas causas e fatores não forçam nossa vontade, como outros elementos (como a vontade alheia) podem, por vezes, forçar nossa ação. Nossa experiência diá-ria constitui prova suficiente, natural, de nossa liberdade de decisão e de ação. Se refletirmos sobre isso, não é a alegação de que somos livres que precisa de prova, mas a de que nosso sentimento de liberdade é ilusório; tal afirmação precisa ser provada, já que é contraintuitiva. Justamente apresentar tais provas ou justificativas constitui parte fundamental das concepções determinísticas; dependendo do momento histórico, estas justificativas variam, mas há duas que predominam e é interessante mencionar.

A primeira justificativa está ligada a concepções religiosas. As versões mais sofisticadas partem de características ou atributos2 de Deus. Nas religiões teístas (cristianismo, judaísmo, islamismo), bem como na maior parte da tradição filosófica ocidental, Deus é infinito, eterno, onisciente, onipotente, necessá-rio, imutável, impassível, único criador de todos os outros seres. A partir de alguns destes atributos, é possível construir um argumento contra a liberdade humana. Se Deus é onipotente, nada pode resistir à Sua vontade, seja externa como internamente.3 Se nada pode resistir à vontade de Deus, e se tudo

2 “Atributos” são aquelas características ou propriedades que um ser possui essencialmente, isto é, não pode deixar de tê-las sem deixar de existir ou de ser o que é. Já as propriedades acidentais, um ser pode ter como pode não ter, sem que isto afete o que ele é. Por exemplo, a capa-cidade de pensar é essencial ao ser humano; um ser que não pensa, como uma pedra, não é humano, ou deixou de sê-lo, como, por exemplo, um cadáver. Em relação a Deus, considera-se que todas as características Lhe são essenciais. Daí, falar-se nos atributos divinos.3 Embora outros seres, homens, animais ou algum outro (se houver), possam impor sua vontade sobre nós, e nós realizarmos aquilo que a vontade deles determina, e não a nossa vontade, geralmente essa imposição encontra seu limite no aspecto externo do ato. Não são capazes de mudar nossa vontade, pelo menos não diretamente. Para Deus, não haveria tal limitação.

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aquilo que existe foi criado de acordo com Sua vontade, então todas as ações das criaturas, e todos os eventos, ocorrem porque Deus assim quer. Se tudo ocorre conforme Deus quer, então as causas remotas de nossa vontade estão predeterminadas, e, por consequência, também as causas imediatas, de forma a produzir inevitavelmente seu resultado. Logo, não está em nosso poder querer de forma diferente daquela que efetivamente queremos. Por exemplo, se Marta quer agora tomar um sorvete, os fatores determinantes dessa vontade estão previamente determinados por fatores antecedentes, e assim por diante, até chegar à vontade de Deus. Assim, Deus é a causa remotíssima da vontade de cada um de nós. Além disso, por ser onipotente, pode, se quiser, agir diretamente, e fazer com que tenhamos uma vontade qualquer, independente da cadeia causal. Esse argumento enfrenta dificuldades dentro das tradições religiosas onde surgiu, por exemplo, seu aparente conflito com a doutrina da responsabilidade humana pelo pecado. Donde, as ideias de predestinação, que Deus escolheu, antes de todos os tempos, alguns para salvação, outros para danação; tais ideias são uma extensão do argumento determinista original. De qualquer forma, exerceu e exerce grande força sobre a imaginação das pessoas, e, se válido, constitui uma razão para questionar nosso sentimento de liberdade.

A segunda justificativa é de tipo filosófico-científica, e aponta para a abrangência da noção de causalidade natural. As ciências que conseguiram efetivamente explicar os fenômenos observados e prever com precisão fenômenos futuros, só o fizeram porque tomaram como pressuposto que a cau-salidade natural é universal e sem exceção. O exemplo preferido, nessa justificativa, tem sido uma das teorias centrais da física moderna, a mecânica clássica, baseada na obra de Isaac Newton, e que tem uma perspectiva determinista: o estado de um sistema em um tempo qualquer, mais as leis da mecâ-nica, fixa seu estado em tempos posteriores. Esse modelo, aplicado com sucesso ao mundo natural, torna-se ponto de referência para as ciências humanas e sociais, especialmente quando conjugado com a ideia de que também o ser humano faz parte da natureza. Não é ele sui generis, apenas um ser natural mais sofisticado, com estrutura mais complexa que os demais, mas passível do mesmo tipo de investigação, já que sujeito às mesmas leis determinísticas universais da natureza. É preciso, sem dúvida, levar em conta suas especificidades, mas estas não alteram significativamente a perspectiva. Como assinalava o filósofo Stuart Mill, no século XIX, os mesmos processos e métodos por meio dos quais as leis que regulam fenômenos mais simples alcançaram consenso entre os cientistas devem ser aplicados, consciente e deliberadamente, na formulação das leis da mente e da sociedade. Reconhece ele, entretanto, que as ciências sociais não alcançarão facilmente (e talvez nunca) um estatuto científi-co similar ao da astronomia. Isso porque as ciências sociais tratam do comportamento dos indivíduos e de suas relações em um meio comum, e isto depende de seu caráter e das circunstâncias em que se encontram, e as causas que atuam sobre o caráter humano são numerosas e diversificadas em um grau tão significativo que:

[...] nada que aconteceu a uma pessoa durante sua vida deixa de ter certa influência, de forma que, no conjunto, não há nunca dois casos perfeitamente similares. Logo, mesmo se nossa ciência da natureza humana fosse teoricamente perfeita, isto é, se nós pudéssemos calcular um caráter como podemos calcular a órbita de um planeta, a partir dos fatos dados; ainda assim, como os fatos nunca são dados em sua totalidade [no caso do comportamento humano], nem são precisamente similares em casos diferentes [como ocorre com muitos fenômenos naturais], talvez não pos-samos fazer predições positivas ou estabelecer proposições universais. (MILL, 1868, p. 429-430)

Aceitando a postura determinística, como fica a liberdade humana? É de alguma forma compatível com o determinismo? Correspondendo às duas respostas possíveis, há duas versões do determinismo: o necessitarismo e o compatibilismo.

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NecessitarismoO termo refere-se ao conceito de necessidade e tem o propósito de indicar que tal versão assume

integralmente a ideia de necessidade causal, excluindo o livre-arbítrio, qualquer que seja a modalidade, em razão de sua incompatibilidade com o determinismo. Assim, conforme Espinosa4, defensor desse ponto de vista, o sentimento de liberdade de decisão e ação nada mais é que uma ilusão, gerada pela combinação de dois elementos: (1) a consciência de nossas escolhas, ações, vontades; (2) a ignorância que em geral nos encontramos de suas causas efetivas. Mesmo quando parece que escolhemos o mais livremente possível, a saber, em vista de um objetivo moral, o que nos impulsiona é um apetite, isto é, a percepção presente de uma vantagem, antecipada na imaginação. Essa é a causa real da vontade; o objetivo, enquanto tal, não tem eficácia causal. A ideia de liberdade é, a partir disto, redefinida como a consciência da necessidade. Na medida em que dominamos nossas paixões e desejos, e nos conduzimos pela razão, isto é, conhecendo as causas que nos determinam, somos livres. Tornar-se livre significa ser capaz de representar, no pensamento, o curso dos eventos tal como eles se concretizarão depois; mas tudo resultará da necessidade da causa. Dito de outro modo, tudo acontece necessariamente.

CompatibilismoComo o nome indica, esta é uma versão do determinismo que o considera compatível com a liber-

dade. Há duas estratégias utilizadas pelos compatibilistas, e que podem ser apresentadas separadamen-te ou em conjunto. Uma delas consiste em redefinir o conceito de liberdade, de forma a excluir qualquer resquício de indiferença de escolha. A escolha será sempre determinada por fatores internos e externos que atuam sobre a vontade, e a escolha seguirá o resultado da interação desses fatores, que conduzirá, embora sem forçar a vontade, a uma única alternativa. Se o processo pudesse ser refeito, por uma volta ao estado passado, anterior à escolha, o resultado seria sempre o mesmo, como um filme que nós vol-tássemos para rever uma cena. Por mais que repetíssemos o processo, a sequência se repetiria. A liberda-de se mantém, pois a alternativa não escolhida permanece logicamente possível. Por exemplo, se Marta está decidindo entre comprar um carro novo ou uma viagem ao Nordeste, ambas as alternativas são lo-gicamente possíveis para ela, no sentido de compossibilidade. Isto é, levando em consideração suas ca-racterísticas gerais como pessoa, seu meio ambiente, suas circunstâncias, tanto uma quanto a outra lhe parecem possível, e por isso ela delibera, compara uma alternativa à outra, e decide. No entanto, essa decisão já estava determinada nas suas características específicas, aquelas das quais ela não tem clara consciência. O conhecimento dessa determinação se dá somente após a escolha. Digamos que ela te-nha escolhido comprar um carro novo; se, por algum processo tecnológico, ela pudesse voltar ao pas-sado, faria sempre a mesma escolha. Claro que volta ao passado significa voltar exatamente à mesma situação. Se significasse voltar sabendo da escolha que tinha feito e das consequências, mesmo que o restante permanecesse igual, isto não seria uma volta ao passado em sentido estrito. Pois ela não seria a mesma. Essa estratégia, apesar de diversa do necessitarismo em detalhes, conduz ao mesmo resultado: o comportamento humano está definido em suas causas, entre as quais se incluem leis da natureza hu-mana (similares a leis causais da natureza física), o caráter do agente (que também pode ser classificado em tipos, a saber, não é ocaso que cada indivíduo tenha um caráter único) e as circunstâncias nas quais ele se encontra.

4 Baruch de Espinosa (1632-1677), filósofo holandês. Conforme especialmente sua Ética, capítulos 4 e 5. No Brasil, utiliza-se também a grafia “Spinoza”. A referência é a mesma.

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Determinismo, indeterminismo e ciência 63

Outra estratégia, mais promissora e mais próxima do indeterminismo, consiste em manter que a vontade e as ações de um indivíduo são causalmente determinadas, mas por um tipo de lei diferente das leis gerais. Cada indivíduo, no que se refere a suas ações voluntárias conscientes e cuidadosamente de-liberadas, é um caso único, não havendo leis universais do comportamento humano, a partir das quais, somado o caráter e circunstâncias, a vontade seria determinada. Tudo o mais na natureza está sujeito a leis universais, exceto as mentes livres. Falar em leis da natureza humana faria sentido apenas figurativa-mente, na medida em que as pessoas decidem seguir certas regras e costumam manter sua decisão. Este tipo de compatibilismo, proposto por Leibniz (1988, p. 16-24), está relacionado a uma concepção ima-terialista da mente, segundo a qual somente espíritos têm existência real, e os corpos são fenômenos, agregados compostos de substâncias imateriais, as almas. Apesar de interessante, não cabe aqui uma discussão mais pormenorizada.5

IndeterminismoE se levarmos nosso sentimento de liberdade de decisão a sério e, já que ele conflita com o princípio

universal da causalidade, nós optarmos por, em lugar de considerar o sentimento ilusório, julgar que o princípio tem aplicabilidade restrita ao mundo natural, e não se aplica a nós, a não ser naquela parte em que também somos seres naturais, nossa corporalidade e o que estiver a ela associado, mas deixando fora nossa consciência e nossa vontade. Nesse caso, aceitamos alguma versão de indeterminismo. O raciocínio básico seria o seguinte:

Se o determinismo é verdadeiro, então nenhuma ação humana é livre.

Algumas ações humanas, aquelas que resultam de deliberação, são livres.

Logo, o determinismo é falso.

Adaptando o raciocínio ao exemplo anterior, Marta poderia, em um sentido forte, ter escolhido viajar ao Nordeste. Ela não ter escolhido comprar um carro novo deixa em aberto esta possibilidade, não apenas logicamente, mas causalmente. É como uma encruzilhada; qualquer dos caminhos poderia ter sido tomado, e não há princípio geral de causalidade ou de razão suficiente que impeça tal realidade. Mas, que razões há para aceitar o indeterminismo? Mencionemos duas justificativas, uma ligada à mo-ral, outra à criatividade.

Se nós fôssemos, como pretendem os deterministas, completamente determinados pelas causas que atuam sobre nossa vontade, as noções éticas perderiam seu significado. Conceitos e regras morais supõem escolha e decisão livre do agente, e somente temos deveres e obrigações se os atos a que se re-ferem estão em nosso poder, isto é, se somos capazes de optar entre fazer algo ou abster-se de algo. Na mesma linha, não faria sentido elogiar ou censurar alguém por fazer aquilo que ele não é capaz de evitar. Nossos procedimentos indicam este pressuposto. Por exemplo, se alguém for acusado de roubar, mas se

5 Esse tipo de compatibilismo tem em comum com o indeterminismo a importância dada ao processo de deliberação, a saber, aquela atividade mental por meio da qual pesamos os motivos e tomamos uma decisão. Ao deliberarmos, pressupomos certas coisas, entre as quais podem-se des-tacar: (1) só podemos deliberar sobre ações futuras, nunca passadas ou presentes; (2) só podemos deliberar sobre aquilo que nos parece possível ou em nosso controle; não deliberamos sobre o que nos parece impossível ou além de nosso controle; (3) só podemos deliberar acerca de nosso comportamento individual, não sobre o comportamento alheio.

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64 Determinismo, indeterminismo e ciência

conseguir provar razoavelmente que a pessoa sofre de cleptomania, ela não será moralmente ou legal-mente considerada culpada. Sofre de uma doença, necessita tratamento. Mas justamente porque isto não é usual, mas atípico, somos capazes de estabelecer a diferença. Diante do ato consumado, julgamos normalmente que ele poderia ter sido evitado; é preciso provar, em um caso específico, não ser isto ver-dadeiro. Se o determinismo for verdadeiro, então não temos controle, de forma moralmente significa-tiva, sobre nosso comportamento; e não seríamos, portanto, responsáveis por nossos atos. Contudo, só na medida em que somos livres para obedecer ou desobedecer a regras, podemos ter obrigações morais. Como as temos, e nosso sentimento moral nos convence disso (especialmente quando alguém nos prejudica), segue-se que não é possível aplicar a todas as nossas ações um critério determinístico. Responsabilidade exige alguma forma de livre-arbítrio.

Outra justificativa encontra-se no fenômeno da criatividade. Apesar de muitas de nossas ações serem fruto de hábitos e costumes, experimentamos constantemente o fenômeno da novidade pro-dutiva. E se considerarmos, por exemplo, a história da música, vamos perceber o surgimento de novas formas de compor e executar, que surgem espontaneamente, insuspeitas mesmo para quem é espe-cialista na área. Não só novidade, como diversidade, pluralidade de produção musical. Como explicar isso? Faz realmente sentido supor que o criativo, o novo já estava presente em suas causas da maneira que o determinismo supõe? Não faz mais sentido aceitar que o efeito difere daquilo que está presente na causa? Assim argumenta o indeterminismo: não que suprimamos a causa, mas que a entendamos, em alguns casos, de modo a excluir a necessidade. As sinfonias de Beethoven foram por ele criadas; nesse sentido é ele sua causa, seu produtor. Mas assim como foi um grande músico, poderia ter sido um agricultor. E, sendo músico, poderia ter escrito apenas uma ou duas sinfonias, e, a partir daquele momento, repetir-se. Não só nas grandes coisas, mas na vida comum, o momento seguinte contém novidade genuína (JAMES, 1996).

Texto complementar(TAYLOR, 1969, p. 99)

Todos os homens, mesmo que não pensem assim, ostentam uma atitude profundamente fata-lista em relação ao passado, como algo a cujo respeito nada podem fazer, salvo aceitá-lo tal como é. A filosofia do fatalismo requer, apenas, que ampliemos esta mesma atitude às coisas futuras. (Assim), podemos facilmente imaginar uma raça de homens cujo conhecimento do futuro seja comparável ao nosso conhecimento do passado, mas para a qual o passado está em trevas e mistério. Semelhantes homens achariam perfeitamente natural ser fatalistas sobre o futuro, mas pensar sobre o passado como algo misterioso e repleto de “possibilidades alternativas.”

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Determinismo, indeterminismo e ciência 65

Atividades1. Leia atentamente o texto no quadro “Fatalismo e o mito de Édipo” e explique quem dos persona-

gens foi vítima do fatalismo: Édipo ou Laio, seu pai. Compare sua resposta com a de um colega.

2. Discuta com outros dois colegas o Texto complementar, argumentando contra ou a favor da opi-nião do autor. Expliquem suas ideias em um texto de no mínimo 7 e no máximo 15 linhas.

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66 Determinismo, indeterminismo e ciência

3. Por que nós normalmente não emitimos juízos morais em relação a animais, isto é, não dizemos, por exemplo, de um cão que ele é moralmente culpado por ter mordido uma criança?

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Explanação científica

Explanação e leisUm elemento característico de nossa vida intelectual e prática aparece como evidente a qualquer

um que esteja prestando atenção: buscamos, de forma constante e persistente, por explicações. Não es-tamos satisfeitos em simplesmente viver; nossa experiência, para que faça sentido e seja enriquecida, precisa ser compreendida. Quando examinamos a história do pensamento humano, percebemos desde cedo as tentativas de satisfazer esta necessidade. As mitologias, pelo menos inicialmente, consistiram em explicações de como e porque o universo e os eventos que dele fazem parte existem. Os rituais religio-sos, na medida em que serviam a propósitos de sobrevivência, traziam embutidas concepções acerca do funcionamento dos seres. Algumas dessas explicações obtiveram mais aceitabilidade e sucesso prático do que outras. E sua diversidade colocou a questão: como distinguir uma boa explicação de uma má ex-plicação? Podemos especificar os critérios que permitem fazer essa distinção? Além disso, algumas expli-cações alternativas não parecem necessariamente excludentes, quando representam tipos explicativos diferentes, que poderiam ser sobrepostos. Uma explicação moral não conflita inevitavelmente com uma explicação científica.

Como nosso interesse se concentra nesse último tipo, a pergunta antes colocada se restringe a esse âmbito. Uma resposta que parece adequada é de que explicações científicas devem usar apenas ideias e conceitos ligados à natureza (evitando referência a qualquer entidade ou noção supranatural), e devem explicar os fenômenos observados por meio de generalizações o mais abrangentes possível, o que veio a se chamar de “leis naturais”. Essa perspectiva não exclui a possibilidade, ou mesmo neces-sidade, de outras explicações, não legiformes (por meio de leis, com o formato de leis), que resolvam problemas tópicos ou práticos. Mantendo-se tal flexibilidade, o que conta como uma explicação boa depende consideravelmente do contexto em que ela está sendo oferecida e qual problema procura re-solver. Como, então, formulamos essas explicações e, principalmente no caso das científicas, como ob-temos conhecimento das leis da natureza ou como construímos teorias científicas? Examinemos duas abordagens: o indutivismo e o dedutivismo.

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68 Explanação científica

IndutivismoIndutivismo é a palavra geral que se aplica às concepções segundo as quais as ciências, em sua ten-

tativa de estabelecer leis gerais (que expliquem os fenômenos e permitam realizar previsões), dependem basicamente de procedimentos de tipo indutivo. Assim, por meio de uma quantidade razoável de obser-vações, conduzidas de forma adequada, inferimos uma lei geral, que explica o que foi observado e permite predizer que, em situação similar, ocorrerá o mesmo. Na forma de um esquema, representando as observa-ções com letras minúsculas p, q, r, s etc. e a lei geral ou teoria pela maiúscula T, teríamos então:

Observação p

+

Observação q

+

Observação r

+

Observação s

+

Logo, T é uma teoria válida

Esse esquema geral se traduz em diferentes formas de inferência indutiva, que têm em comum este processo de generalização. A forma mais básica é chamada de indução por simples enumeração e exibe a seguinte estrutura: se observamos que uma série de objetos do mesmo tipo tem alguma pro-priedade ou qualidade, e não sabemos de nenhum objeto daquele tipo que não tem aquela qualidade, concluímos que todos os objetos daquele tipo possuem aquela propriedade. Por exemplo: com base em observações próprias, relatos de outras pessoas e leitura de textos acerca da vida das pessoas, alguém observa o seguinte padrão: as pessoas nascem, vivem durante algum tempo e morrem. Ela pode então concluir: “todos os seres humanos são mortais”. Essa é uma generalização legiforme, pois parte de uma quantidade finita de observações para uma regra geral, que supõe uma relação entre dois elementos (no caso, humanidade e mortalidade) não meramente acidental, mas intrínseca. A generalização pode ser também expressa hipoteticamente: “se algo for humano, é também mortal”; ou negativamente: “ne-nhum ser humano é imortal”. Expressá-la de forma hipotética tem uma razão importante na sequência da explicação científica: a previsão acerca de casos similares. Para prever, não se usa mais o raciocínio in-dutivo, mas o dedutivo. Assim, no exemplo acima, diante de um ser humano, concluo, com base na ge-neralização, que ela morrerá. Esse método é também chamado por alguns autores, como Mill (1868), de método dedutivo, o que pode causar alguma confusão. Para as concepções indutivistas, a dedução vem

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Explanação científica 69

depois, como recurso auxiliar, mas o estabelecimento das leis gerais mais simples (ou generalizações causais, ou leis naturais) depende exclusivamente de processos indutivos, baseados em observações ou na experiência. O raciocínio dedutivo serve para obter leis mais complexas, que dependem das mais simples, obtidas por indução direta a partir das observações particulares.

A indução por simples enumeração não é o único tipo, e nem mesmo o principal tipo, conforme o tópico de procedimento aceito. Nas ciências sociais, argumenta-se, é preciso fazer uso da analogia e da inferência a favor da melhor explicação. Se, como supõem especialmente os que defendem uma abor-dagem interpretativa nas ciências sociais, a explicação de eventos sociais depende de se determinar as intenções dos agentes, como isto pode ser feito? A questão é crucial na medida em que só podemos ob-servar o comportamento das pessoas, e não suas intenções, já que estas são internas, inacessíveis a um observador. Como proceder? Obviamente, podemos perguntar às pessoas quais são os motivos de suas ações, mas suas explicações também constituem comportamento, no caso, discursivo, e não seria im-prudente levar em conta a possibilidade de estarem mentindo ou mesmo estarem enganadas. Parece, então, restar o recurso da analogia. Mas devemos distinguir dois usos da analogia: o raciocínio analógico e a indução por analogia.

No raciocínio analógico, comparamos duas coisas, geralmente diferentes em sua natureza (tipo) e não só em grau, para, a partir do que parece claro em um dos casos, ampliar o entendimento do segundo. Esse procedimento é comum nas diversas áreas do pensamento humano, na religião, na moral, na filo-sofia; grandes líderes religiosos fazem uso constante do raciocínio analógico, como Jesus, que utilizava elementos da realidade sensível para falar da realidade espiritual, como ao comparar o reino dos céus a uma rede que, lançada ao mar, recolhe peixes de toda espécie.

Nos ensinamentos morais, essa técnica aparece constantemente, como na famosa analogia de Epicteto: “Se uma criança enfiar o braço num vasilhame de boca estreita, para dele tirar figos e nozes, e se encher a mão com eles, o que lhe acontecerá? Não poderá retirá-la e chorará. ‘Larga alguns (di-zem-lhe) e retirarás a mão’. Tu, faze o mesmo com teus desejos. Não deseje senão um pequeno número de coisas, tu as obterás” (apud PERELMANN, 1996, p. 434). Aqui, a analogia consiste em uma similitude de relação, que pode ser assim simbolizada: A está para B assim como C está para D. Nas ciências so-ciais, admite-se que o raciocínio analógico deva ser utilizado, e por vezes, constitui o recurso argumen-tativo mais adequado para tornar, ou procurar tornar, clara uma concepção qualquer. Assim, quando Aristóteles compara a sociedade com um corpo humano, quer ele esclarecer o aspecto holístico de sua concepção de sociedade, para mostrar que os indivíduos, assim como as partes de um corpo, nada são sem o convívio social. A analogia não é, pois, uma identidade. No exemplo de Aristóteles, ele não está dizendo que a sociedade é, em algum sentido literal profundo (metafísico), um organismo, mas que as relações que existem entre os indivíduos em uma sociedade correspondem às relações dos membros em um corpo. Importa, no raciocínio analógico, compreender o ponto de comparação.

Já na indução por analogia, o argumento tem uma pretensão mais forte. A comparação aqui se refere a coisas consideradas do mesmo tipo, ou idênticas em algum aspecto fundamental que permitiria inferir propriedades ou características de algo a partir das propriedades e características de outra coisa. Assim, retomando a questão antes posta, sobre comportamento e intenção, a indução analógica aplicada ao problema tem o seguinte formato, em que E representa um estado mental (uma percepção, uma crença, um desejo, assim por diante) e C representa um comportamento observável.

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70 Explanação científica

Diversas vezes, ao ter E em minha mente, agi de forma C.

Portanto, E é sempre seguido pelo comportamento C, ou C é sempre precedido por E.

Frequentemente observo que outras pessoas exibem comportamento C.

Portanto, outras pessoas têm em sua mente E quando exibem comportamento C.

Nós usualmente julgamos que as pessoas estão sentindo ou pensando algo porque observamos seus comportamentos externos, e dizemos coisas como “ele está agindo assim porque está de luto”. E, se isso significa, como pensa geralmente o senso comum, mais do que a observação e correlação de dois comportamentos externos, e no exemplo “luto” refere-se a algo subjetivo, como obtemos este tipo de conhecimento? Para o indutivismo, por analogia, já que não temos experiência direta dos eventos men-tais de outra pessoa, embora tenhamos de nossos eventos mentais. E, se as ciências sociais investigam o comportamento dos indivíduos enquanto participantes de uma coletividade, vê-se a utilidade desse procedimento analógico. Isso caso se aceite a perspectiva acima, chamada de empiricista1. Importantes cientistas sociais negam que é esse o método pelo qual sabemos das intenções dos outros. Max Weber, por exemplo, diz que o método adequado para as ciências sociais é o método da compreensão, que se baseia na imaginação intuitiva, pela qual revivemos em nós o comportamento alheio, sem, no entanto, ser necessário produzir uma ação análoga. Quando não somos capazes de fazê-lo, em razão de nos-sas próprias limitações formativas, ainda seria possível interpretá-los intelectualmente. O cientista social compreende melhor quanto mais for capaz de realizar esta revivência (WEBER, 2000, p. 4). É por isso que, por exemplo, antropólogos adeptos desta abordagem foram viver junto às populações indígenas estu-dadas, viver com eles para melhor compreender.

Outra forma de estabelecer leis gerais, e que aproxima o indutivismo do dedutivismo, é a inferên-cia para a melhor explicação. A estrutura é a seguinte: se há um conjunto de dados a ser explicado, e uma teoria que: (1) explica os dados; e (2) os explica melhor que qualquer teoria alternativa, então é racional aceitar a teoria (ou, a teoria é válida). Esse procedimento só é indutivo se combinado com a ideia de que elementos fundamentais para a inferência2 foram obtidos por meio de indução direta. Tomemos como exemplo o estudo de Durkheim sobre suicídio. Para Durkheim, na compreensão de fenômenos sociais, as ideias e crenças das pessoas não são fatores importantes, já que podem ser confusas ou não apresen-tarem diferença significativa em relação ao fenômeno a ser explicado. Deve-se antes procurar as causas ou condições sociais que explicam os dados. Durkheim apresenta diversas explicações alternativas para

1 Na tentativa de explicar nossas crenças sobre o que outras pessoas estão pensando ou sentindo subjetivamente (“em suas mentes”), a difi-culdades do empiricismo está em seu ponto de partida. A suposição básica é que o cientista, nesses casos, inicia com aquilo que percebe em sua própria mente e, como julga entender o que está pensando e sentindo, procura determinar a partir do comportamento dos outros se eles estão pensando ou sentindo coisas similares. Compreender os outros é fundamental para nossa própria existência, porque precisamos saber o que provavelmente as pessoas farão em determinadas situações e porque precisamos conhecer o caráter dos outros (se são confiáveis, por exemplo). Ao que nossa experiência indica, a natureza nos ajuda nesse processo, e somos efetivamente capazes de nos compreender mutu-amente até certo ponto. Como se explica esta habilidade natural? Segundo Mill, um indutivista clássico, porque há induções primitivas, das quais não estamos muitas vezes cientes. Aprimorá-las e torná-las mais eficientes é o objeto da ciência da natureza humana, para o sociólogo Weber, porque possuímos uma faculdade intuitiva. Essas duas explicações produzem duas formas diferentes de abordagem nas ciências so-ciais: respectivamente, o naturalismo e o antinaturalismo. 2 “Inferência” é um processo pelo qual se extrai uma conclusão de premissas ou pressupostos aceitos (mesmo que provisoriamente). Refere-se a crenças de alguém: uma inferência acontece somente se alguém, em razão de sua crença nas premissas, passa a acreditar na conclusão ou continua nela acreditando com mais convicção do que antes. Uma inferência pode ser dedutiva ou indutiva. Como se obtêm as premissas, especialmente aquela que funciona como premissa maior (“a hipótese” ou “generalização”), este é o ponto em que a inferência para a melhor explicação difere no contexto indutivista do contexto dedutivista.

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Explanação científica 71

o tópico que o interessa: as taxas de suicídio, e suas relações com grupos sociais determinados; descarta ele algumas e vai mantendo outras. Ao verificar a relação entre religião e suicídio, e as diferentes taxas de suicídio nos países católicos e protestantes, argumenta ele que as doutrinas religiosas não são impor-tantes neste aspecto, pois são basicamente as mesmas. Sua explicação faz referência a uma teoria ge-ral: que pertencer a grupos com maior grau de integração (isto é, o grau em que sentimentos coletivos são partilhados) e de regulação (isto é, o grau em que regras comuns são mantidas e seu cumprimento pelos membros do grupo exigido) aumenta a resistência das pessoas à depressão. Como o catolicismo é uma religião mais fortemente integrada que o protestantismo, pode-se deduzir que a depressão terá maior ocorrência entre comunidades protestantes. Como uma das formas de medir a depressão é veri-ficar taxas de suicídio, estas serão provavelmente mais altas, não havendo outros elementos que inter-firam, entre as comunidades protestantes. E isso é testável. O que fez Durkheim aqui: recusou teorias alternativas, como o clima, como as crenças religiosas, e propôs o que julgou ser uma teoria melhor, com maior abrangência. O que isso tem a ver com indutivismo? Se a teoria proposta, ou as hipóteses auxi-liares, forem entendidas como tendo de ser confirmadas por procedimento indutivo, então ela se liga a uma abordagem indutivista acerca da validação de leis; se isto não importa, e se a teoria foi proposta in-tuitivamente ou como palpite, mas submetida a teste rigoroso, então se liga a uma abordagem deduti-vista (ver adiante, ponto sobre dedutivismo).

Esclarecimentos conceituaisAntes de passar ao dedutivismo, convém esclarecer alguns pontos em relação a conceitos utilizados

nos parágrafos anteriores, e cujo bom entendimento é fundamental para o que segue.

Nem toda generalização é do tipo que interessa à ciência. Por exemplo, se estou em uma sala com diversas mesas, e devo colocar em um relatório qual é a sua cor, procedo da seguinte maneira: observo cada uma delas e anoto sua cor. Digamos que cada uma delas seja branca; então escrevo “todas as me-sas na sala são brancas”. Essa é uma generalização, no sentido de que exemplifica uma proposição geral. Mas a partir dela não se podem fazer previsões acerca de outras mesas, em outras salas. É o que se cha-ma de generalização descritiva. Se tomarmos um conjunto qualquer de objetos e simplesmente descre-vermos suas características, mesmo exaustivamente, não estaremos fornecendo o que se considera uma explanação científica. Para isso, precisamos sugerir uma generalização, que possa ser testada e exiba duas características: primeiro, afirme uma conexão entre determinadas características de forma que a presença de uma delas “produz” a outra, a saber, é sua causa; segundo, constitua uma regra a partir da qual possamos prever situações futuras. É realmente o caso que ambos os critérios sejam necessários para que uma generalização seja aceita como científica? Tomando novamente o exemplo da mortalidade humana; a hipótese satisfaz o segundo critério, mas não o primeiro. Dificilmente alguém suporá que a humanidade é causa da mortalidade. A mortalidade indica uma disposição da humanidade em ser atuada sobre, isto é, algum outro objeto pode matar um ser humano; esse objeto seria, então, no caso específi-co, a causa da morte de um indivíduo.

Essas considerações importam em razão de que não devemos confundir causa e concomitân-cia ou correlação, apesar de terem em comum a conjunção constante de dois objetos. Podemos ver isso considerando duas sentenças simples: “desemprego é estressante” e “bananas verdes são amargas”. No primeiro caso, parece claro que a conexão entre desemprego e estresse não é somente de serem

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concomitantes, de aparecerem frequentemente juntos; estamos dizendo que o desemprego provoca o estresse. No segundo caso, a cor da banana não é considerada como produzindo, de alguma forma ocul-ta, seu sabor. Tais qualidades são concomitantes na fruta. Contudo, nem sempre será fácil estabelecer a diferença entre causação e conjunção constante, e, mesmo assim, parece razoável aceitar determinadas hipóteses como explanações científicas.

Outro ponto importante está no uso do termo “observação”, e não “fato” ou “percepção”. Isso para evitar a ideia simplista de que há fatos puros, percepções universais de eventos, a partir dos quais se pu-desse decidir, com neutralidade completa, o que realmente aconteceu, ou, conforme uma expressão popular, “a verdade dos fatos”. Neutralidade e objetividade científica não são equivalentes. Como mos-trou Popper (1975), é ilusório pensar que há algo de direto e imediato em nossa experiência; há sempre uma expectativa de que as coisas sejam de uma ou outra forma. Em Ciência, isto é ainda mais relevante. Enquanto cientistas, já estamos imersos em um sistema de expectativas, de teorias e de hipóteses, pres-suposto pelas observações.3

DedutivismoDadas as dificuldades filosóficas do indutivismo, e a opinião de que não corresponde ao que efe-

tivamente ocorre no desenvolvimento das ciências, outras formas de explicar como se elaboram leis ou teorias científicas foram propostas. Uma das alternativas mais influentes atende pela expressão “méto-do hipotético-dedutivo”, a que chamaremos, para abreviar e usar um termo paralelo ao anterior, “dedu-tivismo”. Nessa abordagem, desloca-se a ênfase da tentativa de obter teorias científicas verdadeiras ou válidas, para a noção de testabilidade. A testabilidade de uma teoria difere de sua confirmabilidade. No indutivismo, se o processo indutivo tiver sido corretamente aplicado, julga-se haver obtido uma lei ge-ral, a partir da qual casos específicos podem ser explicados ou previstos, e se supõe também que a reali-dade seja responsiva a esse tipo de procedimento. Então, ao deduzir da teoria, e considerados os dados disponíveis, um caso particular, busca-se na observação a confirmação da conclusão, e não sua testa-bilidade, especialmente em sentido restrito, isto é, não se busca por contraexemplos. No dedutivismo, esse processo é invertido: a prova empírica de uma hipótese vem após sua formulação. Ou, dito de ou-tra maneira, a teoria não resulta necessariamente de uma generalização, mas é simplesmente proposta. Em resumo, pouco importa onde e como os cientistas produzem teorias. Teorias são hipóteses, e o que importa é testá-las em busca de uma falsificação, um contraexemplo.

Consideremos a hipótese de que as pessoas aumentam seu consumo conforme aumenta a renda, mas não na mesma proporção, pois ocorre também um aumento de poupança (KEYNES4, 1936). Essa hi-pótese serve para explicar, por exemplo, a baixa taxa de poupança entre classes mais pobres e prever seu aumento em proporção à melhora de sua situação econômica. Como o economista inglês chegou a esta generalização? Por processos indutivos, por intuição, por pura especulação, em razão de suas crenças re-ligiosas? Para a abordagem dedutivista, isto pouco importa; o que ele faz em seguida, isto importa. Se ele se apega à sua hipótese como uma verdade absoluta, e considera que todos os fenômenos observáveis relativos ao assunto, mesmo se claramente se opõem ao que propôs, e procura constantemente redefinir

3 Veja o texto complementar, extraído de Popper (1975).4 John Maynard Keynes (1883-1946), economista inglês cuja obra impactou profundamente a teoria econômica do século XX. A hipótese referida é apresentada em seu texto The General Theory of Employment, Interest and Money, de 1936.

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a hipótese ou reinterpretar os fenômenos, então a hipótese deixa de ter valor científico. Pensemos em um exemplo claro disso: a proposta de que as pirâmides do Egito foram construídas por, ou pelo menos sob supervisão de, seres extraterrestres. Obviamente, aceitando-se o indutivismo, tal explicação seria descartada de imediato: não há fenômenos observáveis que possam sugerir isso. Mas também na pers-pectiva dedutivista tal explicação não tem valor, pois, por seu próprio conteúdo, não há como ser tes-tada. E o proponente da mesma provavelmente não se deixaria convencer de que está errado, mesmo diante das mais fortes contraevidências.

Esquematicamente, então, pelo modelo hipotético-dedutivo o cientista inicia propondo uma hi-pótese; em seguida, deduz dela algo que deve ser observável ou algo que não pode ser observado se ela for válida; e, por meio de observações, confere se o que foi deduzido (as conclusões) é verdadeiro5. Há dois elementos a se considerar. Primeiro, ao colocar a ênfase na testabilidade, especialmente na busca de contraevidências, o dedutivismo renuncia à ideia de que seja possível confirmar uma teoria. Se as de-duções são falsificadas pela experiência, pode-se afirmar com segurança que a teoria perde credibilida-de, já que de premissas verdadeiras não se seguem conclusões falsas. Voltando ao exemplo de Keynes, caso a renda aumente, e, por sua vez, o consumo aumente proporcionalmente, tal observação invalida-ria a hipótese proposta. Por outro lado, se todas as observações feitas confirmam a hipótese, isso não significa que ela, em algum momento, se torne comprovada. Embora possa parecer natural julgar que uma teoria cujas deduções se verifiquem repetidamente se torne “estabelecida”, tal juízo mostra uma pressuposição indutivista, a saber, que uma observação particular (uma evidência empírica) pode servir para verificar uma proposição geral (uma hipótese). E o dedutivismo é proposto justamente porque não se considera o processo indutivo adequado para estabelecer generalizações científicas. A resistência a testes torna uma teoria mais aceitável ou racional para aquele que a mantém. O segundo elemento li-ga-se a outro equívoco: o de equiparar a proposta dedutivista à ideia de que a Ciência é uma espécie de adivinhação, de aposta, em que qualquer hipótese apresentada esteja inicialmente (antes dos testes em-píricos) em situação de igualdade. Popper (1975), um dos expoentes da perspectiva dedutivista, indica quatro formas pelas quais se podem submeter uma teoria à prova: (1) comparação lógica das conclusões para testar a coerência interna do sistema; (2) investigação de sua forma lógica, para determinar se tem caráter de uma teoria empírica ou não; (3) comparação com outras teorias, para determinar se constitui-rá progresso científico; (4) teste da teoria por meio de aplicações empíricas de suas conclusões.

Podemos comparar o indutivismo e o dedutivismo por meio da distinção entre contexto da desco-berta e contexto da justificação. Por contexto da descoberta entende-se como, através de que processo, qual a história da invenção de uma teoria. Por contexto da justificação entende-se a forma pela qual uma teoria é comprovada ou refutada, os critérios utilizados para sua aceitação ou recusa. Assim, para o indu-tivismo, o contexto de descoberta e o de justificação são equivalentes; se uma teoria é proposta por meio de processos adequados, ela é também válida. Ao testar uma teoria para verificar se ela se aplica a casos futuros, o que estamos efetivamente fazendo consiste em verificar se ela foi construída de modo apro-priado. Já no dedutivismo, importa o contexto da justificação, os métodos e critérios utilizados para por à prova a teoria (conforme os itens anteriormente mencionados). O contexto de descoberta tem, no má-ximo, um valor pragmático, no sentido de que alguns métodos têm produzido teorias mais resistentes; dessa perspectiva, então, a indução tem mais valor do que o sonho. Em resumo, o dedutivismo pode in-cluir, embora reformulado, o indutivismo; o inverso não ocorre.

5 Em algumas formulações, se diz que o cientista deduz previsões a partir das hipóteses e investiga se elas se cumprem na realidade. Conforme isso é entendido, não corresponde exatamente ao que propõe o dedutivismo, a não ser que se explique que há previsões em relação ao que poderia ter ocorrido. Mas como este não é o significado usual do termo ‘previsão’, que aponta para o futuro, é melhor não utilizá-lo, e falar antes em conclusões. Muitas explicações biológicas não fazem previsões, mas se referem a um passado que já não se repete.

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Texto complementar(POPPER, 1975)

Na Ciência, a observação, em vez da percepção, é que desempenha o papel decisivo. Mas a ob-servação é um processo em que nós desempenhamos papel intensamente ativo. Uma observação é uma percepção, mas uma percepção que é planejada e preparada. Não “temos” uma observa-ção (como podemos “ter” uma experiência de sentidos) mas “fazemos” uma observação. Sempre uma observação é precedida por um interesse em particular, uma indagação, ou um problema – em suma, por algo teórico. Afinal de contas, podemos colocar qualquer indagação em forma de uma hi-pótese ou conjectura a que acrescentamos: “É assim? Sim ou não?” Desse modo, podemos afirmar que cada observação é precedida por um problema, uma hipótese (ou seja o que pudermos chamá--lo); de qualquer modo, por algo que nos interessa, por algo teórico ou especulativo. Por isto é que as observações são sempre seletivas e pressupõem alguma coisa como um princípio de seleção. [...] Em cada instante de nosso desenvolvimento pré-científico ou científico, estamos vivendo no cen-tro do que costumo chamar de “horizonte de expectativas”. Com isso, quero significar a soma total de nossas expectativas, sejam subconscientes ou conscientes, ou talvez mesmo explicitamente profe-ridas em alguma linguagem. Animais e criancinhas têm também seus vários e diferentes horizontes de expectativas, embora sem dúvida num nível mais baixo de consciência do que, digamos, o de um cientista, cujo horizonte de expectativas consiste em considerável extensão de teorias ou hipóteses formuladas linguisticamente.

Atividades1. Leia e comente o Texto complementar, mencionando o que você considera pontos fortes e pontos

fracos.

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2. Com base na distinção feita na aula entre generalização legiforme e generalização descritiva, discuta e apresente, junto com um outro colega, três exemplos de cada uma.

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76 Explanação científica

3. Com base na explicação do que é um raciocínio analógico, faça uma pesquisa, junto com um colega, e encontre três exemplos históricos deste tipo de argumentação.

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Holismo e individualismo

Totalidades e partesEm nossa experiência, objetos são usualmente totalidades, no sentido de que se compõem de

partes arranjadas de determinada maneira. Essas partes, por sua vez, podem constituir outras totali dades, compostas de partes com algum outro arranjo. Um todo é, ao mesmo tempo, uma unidade. Considere um time de futebol: é, sem dúvida, uma totalidade, e nos referimos a ele como se fosse um indivíduo, algo único, diferente de outros times, com tais e tais características. Por outro lado, é composto de outras partes que, por sua vez, também são totalidades e, portanto, unidades: os jogadores, os técnicos, os médicos etc. Cada um desses é uma totalidade com partes: mãos, pés, cabeças etc. Ao refletirmos sobre isso, percebemos que há similaridades entre os dois tipos, mas também diferenças importantes que afetam a ideia de totalidade em cada caso. No primeiro, a destruição do todo não acarreta a destruição das partes, mas no segundo caso sim. Morrendo um jogador, as suas partes não somente perdem suas funções, que tinham no todo, como deixam de ser.1 Fechado um clube, os jogadores perdem as funções que ali tinham, as quais estavam definidas na estrutura daquela organização, mas continuam a ser. Assim, a interação e interdependência entre partes e a totalidade diferem conforme o tipo de objeto que estamos considerando. Nosso assunto aqui é a interação e interdependência entre a sociedade, como um todo, e os indivíduos que a compõem. Como entender tal totalidade?

Entes sociais e indivíduosComo se deve entender o que é uma sociedade? A sociedade é um agrupamento de pessoas, que

partilham alguns objetivos e interesses comuns, com tradições e histórias próprias que a diferenciam de outros agrupamentos humanos? A essa questão parece claro que devemos responder na afirmativa. Mas exatamente como tal agrupamento deve ser entendido? Como mencionado antes, quando consi-

1 Se alguém objetar que, atualmente, muitos órgãos podem ser transplantados, isso não afeta o argumento. Pois, se podem, também precisam ser anexados a uma outra totalidade, outro corpo, enquanto um jogador não.

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78 Holismo e individualismo

deramos totalidades e suas partes, percebemos que usamos esses termos para coisas que exibem, no entanto, características diferentes nesta relação entre o todo e as partes que o compõem. Por exemplo, tanto o corpo humano quanto um batalhão podem ser considerados como certa espécie de totalidade, composta de partes. Contudo, a forma como as partes se relacionam nessas totalidades difere: julgamos que a relação em um corpo é mais íntima ou intrínseca do que a relação entre os diversos indivíduos que compõem um batalhão. Nesse último caso, sua relação é extrínseca, constituída por normas e tra-dição, e não por uma unidade prévia. Não se forma um corpo humano a partir de suas partes, como se fosse um Frankenstein; forma-se e se desenvolve a partir de um embrião, que já contém essas partes de modo potencial. Outros agrupamentos, mesmo considerados como totalidades, exibem relações en-tre partes ainda mais fracas. Imagine um monte de feno, ou um muro de pedras. São totalidades, mas a relação de suas partes é superficial. Qual desses exemplos melhor equivale ao tipo de totalidade (ou unidade) em que uma sociedade consiste? A concepção segundo a qual uma sociedade se assemelha ao corpo humano, sendo anterior e mais do que a mera soma de seus membros, chama-se holismo. A concepção que nega ser a sociedade independente, em um sentido mais forte, dos indivíduos que a for-mam, chama-se individualismo.

Holismo metodológicoO holismo é uma concepção organicista da sociedade, já que considera que seus integrantes ad-

quirem sentido e propósito a partir de seu papel social. Não apenas a sociedade é mais do que a soma dos indivíduos e de suas relações puramente pessoais, mas os indivíduos o são na medida em que integram uma sociedade. Esse ponto de vista é antigo, e o filósofo grego Aristóteles já o expressava claramente ao dizer que a sociedade existe independentemente, por si mesma, e é anterior ao indivíduo; isso por-que o todo é necessariamente anterior à parte.2 Isso não é verdadeiro em relação a qualquer totalidade, mas o exemplo que Aristóteles fornece mostra em que tipo está ele pensando: se um corpo humano morre, não há mais mão nem pé, pois não podem exercer sua função e capacidade. Essa propensão na-tural do ser humano ao convívio com seus semelhantes constitui uma das observações cruciais sobre a natureza humana, e sua importância aparece também em relatos religiosos, por exemplo, no livro bíblico de Gênesis. No relato da criação, Deus em algum momento diz não ser bom que o homem esteja só e que faria para ele uma companheira.3 Mitos e analogias semelhantes são interpretados pelo holismo como indicando um elemento constitutivo da natureza humana. O ser humano só é humano na medida em que vive em sociedade. Isso não deve ser entendido como uma explicação histórica de como surgi-ram as sociedades, mas do que elas essencialmente são.

2 Aristóteles (384-322 a.C.), um dos mais influentes filósofos de todos os tempos. O trecho referido é de seu texto Política. Traduzo na sequência parte do texto, e as palavras ”cidade” e ”associação política” devem ser compreendidas como sinônimos de “sociedade”, conforme entendia o próprio Aristóteles: (2002, p. 224) “O homem é por natureza um animal político [...] Podemos agora acrescentar que a cidade é anterior, na ordem da natureza, à família e ao indivíduo. A razão para isso é que o todo é necessariamente anterior à parte. Se o corpo todo é destruído, não haverá um pé ou uma mão, a não ser naquele sentido ambíguo em que se usa a mesma palavra para indicar uma coisa diferente, como quando se fala de uma ‘mão’ feita de pedra [...] Vemos assim que a cidade existe por natureza e que é anterior ao indivíduo. Pois se o indivíduo não é autossuficiente quando isolado, ele estará na mesma relação ao todo que outras partes têm em relação a seus todos. O homem isolado, que é incapaz de partilhar nos benefícios da associação política, ou disto não tem necessidade porque já é autossuficiente, não faz parte da cidade, e deve portanto ser ou uma besta ou um deus” .3 Gênesis, cap. 2.

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Holismo e individualismo 79

No que se refere aos estudos sociais, essa perspectiva adquiriu expressão intelectual a partir dos escritos do filósofo alemão Hegel (1770-1831), segundo o qual o indivíduo pode alcançar plena liberdade caso viva com autoconsciência (que nunca se adquire isoladamente, mas depende essencialmente do reconhecimento dos outros) e seja parte de uma sociedade racionalmente organizada. Assim, a sociedade é como um ente metafísico, algo que existe por direito próprio; como se fosse, ela mesma, um indivíduo, e não uma pluralidade de indivíduos. Se isso é assim, segue-se que as ciências sociais não podem adotar boa parte dos métodos das ciências naturais, especialmente da Física, já que tais métodos foram desenvolvidos para lidar com objetos que nada mais são que aglomerados de átomos. Para compreender qualquer aspecto que se esteja investigando em uma sociedade, é preciso ter como referência a história, as instituições, os regulamentos, os ritos que sejam próprios dela. Métodos interpretativos devem ser aplicados, que, por assim dizer, partam de dentro; observação externa e controlada, como aquela feita com fenômenos naturais, conduz a teorias inadequadas. Ao aplicar, então, a concepção holística de sociedade à determinação dos métodos pelos quais se pode estudá-la cientificamente, temos o holismo metodológico.

Conforme notado anteriormente ao se falar de Aristóteles, há no conceito de totalidade ambigui-dades que fazem da perspectiva holística, especialmente em seu aspecto metodológico, problemática. O axioma de que “o todo é maior do que as partes” não é claro, e não permite tirar a conclusão, sem acréscimos, de que o todo é independente das partes que o constituem. O axioma pode significar que “o conjunto de certas coisas é sempre maior do que qualquer uma das coisas que dele fazem parte”. Nesse sentido, é óbvio, mas irrelevante. Ou pode significar que “o todo é algo além da soma das partes e de suas relações”, o que efetivamente pressupõe o holismo, mas, mesmo assim, não se pode legitimamente extrair disso a tese da independência e anterioridade do todo; ela é embutida, simplesmente afirmada. Porque poderia ser o caso, da relação entre o todo e as partes, semelhante à posição do naturalismo bio-lógico acerca da relação entre o cérebro e a consciência. A consciência não é apenas eventos físico-quími-cos cerebrais, sua soma e suas relações; é algo mais, diferente daqueles eventos, contudo não existe sem eles, e de forma alguma é anterior, em qualquer sentido, porque é causada por eles. Assim também, na medida em que a sociedade é uma totalidade, e reconheçamos ter ela características e propriedades que nenhum dos indivíduos que a integram, ou mesmo a soma deles, tem, não é necessário considerarmos a sociedade anterior ou independente dos indivíduos que a compõem.

Popper4 (1980, p. 60) aponta para outra ambiguidade fundamental no uso do termo “todos”. O termo é usado para se referir tanto à (1) totalidade das características ou elementos de algo e das relações entre suas partes constitutivas, como (2) características e elementos de algo enquanto uma estrutura organizada, e não apenas um amontoado. No sentido (2), totalidades são também estudadas pelas ciências naturais, como faz a Biologia com organismos; mas há uma seletividade, um interesse a partir do qual essa totalidade é demarcada. Por exemplo, se vamos estudar o comportamento de uma colmeia, não levamos em consideração todas as relações possíveis com o restante da natureza; se o fizéssemos, a tarefa seria impossível. A seleção de alguns aspectos é inevitável; selecionar os relevantes para o problema a ser resolvido cientificamente exige habilidade e cuidado. Para o holismo, entretanto, as ciências sociais deveriam estudar o todo social, no sentido (1) de totalidade. Aqui, a impossibilidade é ainda mais

4 Popper, neste texto, também argumenta que a perspectiva holística liga-se inevitavelmente a uma concepção política utopista e totalitária, já que, se a sociedade é um todo, e ela necessita ser reformulada, é preciso reconstruir a sociedade como um todo, isto é, fazer a revolução. Como um sujeito que, em lugar de reformar a casa em que habita, a põe abaixo para construir uma nova, com base em outro projeto arqui-tetônico. Há holistas que sem dúvida justificam tal avaliação, especialmente os de orientação marxista. Mas a acusação, se geral, é injusta, e possivelmente não se aplica a Platão, um dos alvos de Popper. Para as ideias de Platão (c. 429-347 a.C.) sobre como compreender e organizar a sociedade, veja-se seu importante texto A República.

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patente. Mesmo admitindo que tal perspectiva holística não possa ser empreendida de imediato, mas deve ser construída por meio de uma reflexão cuidadosa (comparando e combinando os elementos), até alcançar a posição do todo, isso seria impossível. Não apenas porque a tarefa estaria além de nossas capacidades; mas porque ela seria infinita; cada conjunto de relações comparado e combinado introduz um novo evento social, a saber, essa reflexão feita, digamos, por um sociólogo. O sociólogo não pode sair da sociedade, naquele sentido (1), para produzir sua investigação, e ela própria, enquanto acontece, é também um evento social. Restaria, então, aos holistas compreender outras sociedades, não aquela à qual pertence. Contudo, não haveria como escapar da seletividade, já feita, aliás, pelos integrantes daquela sociedade na escolha dos relatos relevantes.

Individualismo metodológicoO individualismo é a concepção segundo a qual os indivíduos têm precedência sobre a sociedade,

sob dois aspectos. Primeiro, uma sociedade qualquer nada mais é do que uma coleção de indivíduos e as relações que mantêm entre si. A sociedade é sempre posterior ao indivíduo, tanto temporalmente como constitutivamente: inicialmente existem os indivíduos, e a sociedade é criada por eles, não apenas tornada concreta. Uma das teorias políticas mais influentes, de abordagem individualista, é o contratua-lismo, de acordo com o qual a sociedade resulta de um contrato, geralmente tácito, entre seus membros, que, tendo em vista interesses comuns, concordam em estabelecer entre eles um conjunto de regras. Essas regras dão origem ao governo e às leis, e devem ser cumpridas por todos aos quais se aplicam, sob pena de punição e eventual exclusão do convívio social.

Segundo, que todas as explicações sobre fenômenos sociais devem reduzir-se a explicações acerca do comportamento individual e suas consequências. Conforme Max Weber (2000), a regra metodológi-ca a ser seguida nas ciências sociais consiste em mostrar como os fenômenos sociais resultam de ações individuais5, e estas devem ser explicadas com referência aos estados intencionais6 que motivam os agentes. Generalizações baseadas tão somente em análises estatísticas são, deste ponto de vista, inade-quadas. No entanto, a abordagem de Weber pode ser desmembrada: por um lado, a ideia de que fenô-menos sociais (o nível macro) devem ser explicados a partir de ações sociais realizadas por indivíduos (o nível micro); por outro, que estas ações devam ser entendidas a partir de seu sentido para o agente. Na tradição empiricista, muito antes de Weber, a redução do nível macro ao nível micro constituía um de seus supostos básicos para o entendimento científico da sociedade7. Se alguém pretender explicar, por

5 Para a diferença entre uma ação individual e uma ação social, conforme Weber: “Por ‘ação’ [individual] entende-se um comportamento humano (tanto faz tratar-se de um fazer externo ou interno, de omitir ou permitir) sempre que e na medida em que o agente ou os agentes o relacionem com um sentido subjetivo. Ação ‘social’, por sua vez, significa uma ação que, quanto a seu sentido visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de outros, orientando-se por este em seu curso” (WEBER, 2000, p. 3). Essa explicação considera fundamental, para a análise dos fenômenos sociais, a intencionalidade dos agentes, não sendo, portanto, suficiente considerar apenas seu comportamento ex-terno e, a partir disso, elaborar generalizações causais. Há uma diferença importante entre comportamento e ação. Na perspectiva weberiana, por exemplo, “espirrar” é um comportamento, “pedir desculpas” pelo espirro é uma ação. 6 Um “estado intencional” é um estado mental com conteúdo proposicional, como crenças, desejos, experiências, significados, interpretações. Sempre se refere, se direciona a alguma outra coisa. Não deve ser confundido com “intenção”, no sentido de fazer algo ou querer algo proposi-talmente. Nesse sentido, toda intenção (propósito) é intencional, mas não o inverso. Por exemplo, quanto temos esperança de algo, isso é um estado intencional, embora não tenha a ver com propósito algum.7 Embora a expressão “individualismo metodológico” seja frequentemente associada à concepção weberiana da compreensão interpretativa, não há razão para limitá-la a esta, especialmente quando estamos comparando holismo e individualismo como formas opostas de explicar o que seja a sociedade. Se a sociedade nada mais é que um agregado de indivíduos, o método para investigar a sociedade será, obviamente, “individualista” (MILL, 1968).

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Holismo e individualismo 81

exemplo, os atos e práticas de empresas multinacionais, ela deve prestar atenção às intenções e propó-sitos daqueles indivíduos que as controlam e determinam as decisões. Mesmo que seja usual referir-se às finalidades e intenções de entidades empresariais (usando expressões como “missão”, “visão”, “ética da empresa”), e que frequentemente falamos de coletividades sociais (Estados, empresas, igrejas, organiza-ções etc.) como se fossem indivíduos, isso só faz sentido na medida em que resulta de características e atribuições próprias dos indivíduos que atuam nessas organizações. Isso não significa que a abordagem individualista tenha de fazer referência constante a indivíduos reais. É preciso distinguir entre indivíduos reais e indivíduos tipológicos. Os primeiros são pessoas realmente existentes; os segundos são modelos para comportamento individual, e diz respeito a um papel social. De qualquer maneira, o preenchimento desse papel social será sempre executado por um indivíduo real, e se o papel demanda certas finalida-des e intenções, o indivíduo que o ocupa deve torná-los seus. Caso não o faça, há risco de alienação ou ruptura.

Também não significa que aquilo que se atribui a entes sociais é idêntico ao que se atribui a entes individuais. Isso não faria sentido. Se considerarmos, por exemplo, propriedades de certos entes sociais não são elas necessariamente a soma aritmética simples de uma mesma propriedade nos indivíduos que a compõem. Por exemplo, se é correto atribuir riqueza à Igreja Católica, sua riqueza não está na soma da riqueza de cada um de seus fiéis; mas que esta riqueza provém deles. Semelhantemente, quando consideramos as ações sociais tais como elas são executadas por meio de coletividades sociais, como governos, empresas, igrejas, a maneira como tais instituições são organizadas pode ser um elemento constitutivo do significado da ação individual.

Nesse ponto, há uma diferença entre o que podemos chamar de individualismo clássico e o indi-vidualismo interpretativo, embora ambos sejam expressões de uma mesma abordagem básica. No in-dividualismo clássico, como nos filósofos ingleses Thomas Hobbes e John Stuart Mill (leia citação no quadro a seguir), considera-se possível (ou mesmo necessário) desenvolver uma caracterização com-pleta da psicologia individual que seja pré-social, e a partir dessa ciência da natureza humana deduzir o que acontecerá quando um grupo de indivíduos interagirem uns com os outros. Já no individua-lismo interpretativo, que tem em Weber um de seus principais expoentes, permanece em aberto a possibilidade de que a psicologia individual contenha uma dimensão social irredutível. Isso porque o individualismo interpretativo não está comprometido com qualquer concepção prévia acerca dos conteúdos dos estados intencionais que motivam os agentes. Talvez um exemplo apropriado dessa possibilidade se encontre na religião. O sentimento de culpa ou vergonha, poderoso motivador, refe-re-se em boa parte à forma como se estrutura uma comunidade religiosa, sem a qual perde ele parte importante de seu significado. Reconhecer isso, no entanto, não implica uma visão holística, mas apenas que as formas de organização social podem também atuar sobre o indivíduo de maneira a produzir nele características e comportamentos que só podem ser compreendidos levando em con-sideração aquelas formas, havendo então uma influência recíproca. Contudo, permanece como su-posto básico a prioridade do indivíduo. A unidade a partir da qual a vida social se constitui é a ação do indivíduo, de modo que explicar instituições e eventos sociais nada mais é do que mostrar como resultam das ações e interações de indivíduos.

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82 Holismo e individualismo

Stuart Mill e o individualismo metodológico

O filósofo inglês, nascido na Escócia, John Stuart Mill (1773-1836), defendeu, com clareza exem-plar, a abordagem indutivista e individualista nas ciências sociais. Embora ciente de que fenômenos sociais são muito complexos para permitir o uso de métodos experimentais tais como aplicados nas ciências naturais, argumentava que as leis acerca de totalidades (as leis sociais, que seriam então deri-vadas) devem ser deduzidas de leis acerca das partes (as leis psicológicas, que seriam então originais), e, após essa dedução, testar as leis derivadas confrontando-as com os dados acumulados na história. Podemos ver esta ideia belamente expressa em um trecho do livro VI de seu Sistema de Lógica, parte em que trata das ciências sociais: “As leis dos fenômenos da sociedade nada mais são, ou podem ser, que as leis das ações e paixões dos seres humanos unidos em grupo no estado social. Contudo, em um estado de sociedade, os homens ainda são homens; suas ações e paixões obedecem às leis da na-tureza humana individual. Os homens, quando agrupados, não se convertem em outro tipo de subs-tância, com propriedades diferentes, como ocorre com hidrogênio e oxigênio ao formarem a água [...] Seres humanos em sociedade possuem apenas aquelas propriedades derivadas das leis da natureza do indivíduo, e que podem ser reduzidas a estas” (MILL, 1868, p. 466)

Uma situação em que esse jogo entre o interesse do indivíduo e o interesse social, e como tal se reflete na determinação da escolha, feita pelo indivíduo, de sua ação social é ilustrada no dilema dos prisioneiros. Essa história representa e tem estrutura similar a muitas situações com que somos con-frontados na vida diária, e pode ser reformulado conforme o problema: se devemos respeitar regras de trânsito, se devemos poupar água etc.

Dois prisioneiros (vamos chamá-los de Adão e Eva) estão sendo interrogados em salas separadas. A polícia suspeita de que ambos cometeram juntos certo crime, mas não possui evidência suficiente que possa ser justificada em um julgamento. Assim, é preciso que um ou ambos confessem. Para Adão, di-zem os policiais: “Se você confessar implicando Eva, mas ela não confessar, então você será libertado e ela irá para a cadeia por dez anos. Se ela confessar, mas você não, ela será libertada e você irá para a ca-deia por 10 anos. Se ambos confessarem, cada um pegará uma pena de 5 anos de prisão. Se nenhum de vocês confessar, arranjaremos algum motivo para mandá-los para a prisão por um ano”. A mesma coisa é dita para Eva. Embora os dois não possam se comunicar, os policiais asseguram-se de que ambos estejam cientes de terem recebido a mesma proposta. Qual a escolha mais racional?

As opções são as seguintes:

1. Adão confessa e recebe imunidade, enquanto Eva se cala e recebe uma sentença pesada (10 anos de cadeia);

2. Ambos se calam e recebem uma sentença suave (1 ano de cadeia);

3. Ambos confessam e recebem uma sentença moderada (5 anos de cadeia);

4. Eva confessa e recebe imunidade, enquanto Adão se cala e recebe uma sentença pesada (10 anos de cadeia).

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Holismo e individualismo 83

Supondo que para Adão a melhor opção é 1, seguida de 2, 3, 4; e que para Eva, a melhor opção é 4, seguida de 2, 3, 1. Como escolherão? Provavelmente raciocinarão assim: “Meu cúmplice vai confessar ou ficar calado. Se ela confessar, devo fazer o mesmo, para não ser o ludibriado da situação; se ela ficar calada, devo também confessar, pois assim ficarei livre, o que sem dúvida é o melhor que me pode acontecer. Então, não importa o que minha cúmplice fizer, devo confessar”. Nessas condições, ambos confessarão, e, assim fazendo, acabam impedindo que ocorra aquilo que seria o melhor para ambos con-juntamente, isto é, a opção 2. Confessando ambos, tornam eles realidade a situação descrita em 3, que é pior.

Considerando a situação de uma perspectiva individual, para Adão 1 é a melhor alternativa e 4 a pior; para Eva, 4 é a melhor alternativa e 1 a pior. De uma perspectiva coletiva, 2 é a melhor alternativa e 3 é a pior. O raciocínio, que tem por objetivo evitar a pior alternativa do ponto de vista individual, acaba por conduzir à pior alternativa do ponto de vista coletivo. Mas, se ambos decidirem enquanto coletivi-dade, o resultado é melhor para cada um deles como indivíduo do que é se a decisão levar em conta apenas os motivos estritamente individuais. O dilema mostra justamente a possibilidade de a ação do in-divíduo refletir critérios que só passam a existir após a constituição de uma coletividade. Exemplos simi-lares apontam também nessa direção: se pesquisarmos as razões de por que as pessoas votam de uma determinada maneira, podemos descobrir que o fazem em razão de seu padrão de vida, da profissão que exercem. Como poderia isso ser uma verdade acerca da “natureza do homem individual”? Questões como essa levam alguns cientistas sociais a optar por alguma versão de holismo; mas, como vimos, isso não seria problemático para um o individualismo interpretativo.

Texto complementar(RYAN, 1977, p. 236)

As alegações do holismo fundamentam-se em duas considerações principais. A primeira delas é a opinião geral de que a Sociologia deve ter um objeto de estudo distinto. Sempre se acreditou que o estudo dos motivos, valores, capacidades e habilidades cognitivas dos sujeitos pertencesse à psicologia individual, de tal modo que deveriam ser propriedades de todos sociais, e não de suas partes, o objeto da Sociologia. A segunda consideração situa-se nos próprios fenômenos. Há regu-laridades e constâncias no comportamento dos grupos que nos permitem deles falar como tendo uma estrutura estável a despeito de um número flutuante de membros, e falar acerca da existên-cia de papéis sociais que podem ser representados por diferentes pessoas em diferentes momen-tos. Um determinado time de futebol preserva sua identidade de grupo apesar das substituições de jogadores; preserva algo a que chamamos de caráter através dos períodos; e podemos falar, mesmo num nível de abstração, não apenas da estrutura do papel de um time de futebol, mas também das estruturas do papel dos times em geral.

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84 Holismo e individualismo

Atividades1. Imagine-se na situação descrita no dilema do prisioneiro. Qual seria sua escolha? Justifique.

2. Junto com um colega, mencione e explique algum comportamento que vocês têm somente pelo fato de serem parte de um determinado grupo, e que não teriam caso não estivessem a ele inte-grados.

3. Há quem argumente da seguinte maneira: a racionalidade individual (isto é, fazer a coisa mais inteligente do ponto de vista de seu próprio interesse) pode ser mais bem satisfeita não cooperando sempre com os outros, mas fazendo de conta que coopera. Qual sua opinião sobre isso? Você consegue imaginar situações em que isso é verdadeiro?

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Causalidade e realidade

O que significa dizer que A causou B?A primeira e uma das mais influentes análises da causalidade encontra-se na obra de Aristóteles.

De acordo com o filósofo grego, a Ciência consiste na determinação das causas das coisas, mas, ao inda-garmos pelo porquê de uma coisa, esse porquê pode ser diferente, e há, portanto, diferentes tipos de causa. Distingue ele quatro tipos: (1) causa material, aquilo de que algo é feito, que permanece na coisa e sobre a qual as causas restantes agem; (2) causa formal, a essência ou ideia de uma coisa, aquilo que lhe faz ser o que é e permite distingui-las das demais; (3) causa eficiente, aquilo que produz a coisa, o que dá início ao movimento ou ao repouso; (4) causa final, o objetivo ou propósito da coisa, aquilo para o que foi feita. Tomemos o exemplo de um sapato de couro costurado à mão. A causa material é o couro, já que é feito de tal matéria e esta permanece no produto final; a causa formal é o modelo utilizado (o desenho, a ideia) para sua confecção; a causa eficiente é a pessoa que o produziu; a causa final é o propósito para o qual foi feito, para servir de calçado, para facilitar a caminhada. De acordo com Aristóteles, devemos procurar, nas explicações acerca das coisas e eventos, a presença dessas quatro causas.

Esse modelo explicativo deixou de ser usado, pelo menos para explicar fenômenos naturais, a partir do surgimento da ciência moderna com o Renascimento (século XVI em diante). As causas formais e fi-nais foram deixadas de lado, pois a natureza não exibe projeto nem propósito; manteve-se a causa mate-rial, mas entendida apenas como aquilo que é objeto de mudança. A ênfase foi posta na causa eficiente, considerada por Galileu como condição necessária e suficiente para o surgimento de algo: “somente esta deve ser chamada de causa, na presença da qual o efeito sempre se segue, e se removida o efeito desaparece” (apud BUNGE, 1963, p. 33). A renúncia em manter especialmente a causa final na explica-ção dos fenômenos naturais está relacionada à ineficiência desse procedimento. Como a natureza não pode nos dizer qual a sua intenção, e nem explicar o que faz utilizando noções morais ou referindo seus “atos” a valores quaisquer, a atribuição de uma causa final dependerá das inclinações e preferências do investigador. Na verdade, a utilização desse tipo de explicação teleológica1 em relação à natureza con-sistiria em antropomorfismo, a projeção de características próprias de nossa forma de ação ao mundo natural. Isso só poderia fazer sentido em um contexto metafísico ou religioso, supondo a existência de

1 “Teleologia” é um termo provindo do grego telos, que significa finalidade. Teleologia é, assim, o estudo da finalidade ou desígnio das coisas.

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86 Causalidade e realidade

Deus e Sua criação do mundo tendo em vista algum propósito. E, mesmo assim, isso não significaria que Deus embutiu na natureza e em seu funcionamento leis teleológicas, de forma a que nós tenhamos de perguntar sempre: para que serve isso? Qual o propósito, por exemplo, de terem os seres humanos dois olhos, em lugar de um ou três?

Assim, em razão de argumentos similares, a ciência moderna abandonou a abordagem aristotélica, concentrando-se na causa eficiente como o único tipo verdadeiro de causa. Há, especialmente, dois pontos que foram fundamentais neste processo. Primeiro, falar em causa final parecia implicar a existên-cia de um agente intencional, que teria criado as leis regulando o comportamento das coisas, à seme-lhança do que ocorre com leis humanas em um Estado organizado. Quanto às leis humanas, faz sentido perguntar o que queria o legislador com isto, e supor que entender a intenção do legislador permite me-lhor compreender as leis. Segundo, a noção de causa final parecia implicar o que se chama de causalida-de invertida, a saber, a ideia de que a vantagem ou objetivo futuro em relação a algo produz de algum modo, ou ajuda a produzir, a existência desse algo. Como se o futuro tivesse algum poder produtivo so-bre o presente, ideia tida por absurda, já que aceita, como óbvia, a anterioridade temporal da causa em relação ao efeito. Por exemplo, não faria sentido dizer que a perspectiva de ser mãe causou a gravidez de uma mulher. O desejo de ser mãe fez com que ela agisse de determinada maneira, que, por sua vez, em acordo com os processos corporais que regulam o fenômeno, produziu a gravidez desejada. Esse desejo já é algo presente, embora dirigido a uma expectativa futura, como se fosse uma antecipação. Assim, pode funcionar como causa, já que é anterior ao seu efeito.

Isso também se liga, inicialmente, à separação radical feita por Descartes entre ser humano e natu-reza, baseada em sua distinção entre dois tipos básicos de substância: a mente e a matéria. Substâncias mentais são imateriais, indivisíveis e conscientes de si (“pensantes”, como dizia Descartes), e suas pro-priedades são não físicas, como crenças, desejos, paixões. Entre as substâncias pensantes estão incluídos Deus, espíritos, almas humanas. Substâncias materiais são extensas, divisíveis e inconscientes, e suas propriedades são físicas, como cores, sabores, texturas, dimensão, mobilidade. Tudo que não é mental, é material, e Descartes incluía nesta última categoria também os animais, a que chamava de “máquinas”. A analogia com máquinas e seu funcionamento rendeu a esta abordagem o nome de mecanicismo, con-cepção segundo a qual a natureza consiste apenas em extensão e movimento, e cujo funcionamento pode ser explicado e previsto por meio de leis naturais, isto é, físico-matemáticas.

Esse dualismo parecia inicialmente garantir que o abandono das causas finais se restringiria ao domínio do mundo natural, e se aplicaria ao ser humano apenas na medida em que participa também daquele domínio. Contudo, não foi o caso, como mostra claramente a postura adotada por Espinosa, que aceitou as ideias básicas de Descartes acerca do método científico, mas recusou seu dualismo. Segundo Espinosa, tudo é natureza. Isto inclui o ser humano e, portanto, também a ele não se aplica à noção de causa final. O argumento proposto pelo filósofo holandês é claro, ao se referir a um dos exemplos típicos utilizados na literatura da época para explicar a distinção aristotélica entre os quatro tipos de causa: a edificação de uma casa. Constrói-se uma casa para que ela sirva de habitação, e esse propósito tem nexo causal com as ações que conduzem à sua construção efetiva, de acordo com a concepção aristotélica. Diz Espinosa (1983, p. 226):

“A causa a que chamam final não é senão o próprio apetite humano, enquanto é considerado como princípio ou causa primeira de uma coisa qualquer. Por exemplo, quando dizemos que a habitação foi a causa final desta ou daquela casa não entendemos outra coisa senão isto: que o homem, por ter imaginado as vantagens da vida doméstica, teve o ape-tite de edificar uma casa. É por isso que a habitação, enquanto considerada como causa final, não é senão este apetite singular, que, na realidade, é a causa eficiente, a qual é considerada como a primeira, por os homens ignorarem comu-mente a causa dos seus apetites”.

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Causalidade e realidade 87

Em suma, a causa final fica reduzida à causa eficiente, em todo e qualquer caso. Essa postura, con-jugada com uma concepção empiricista2 da causalidade, levaria ao behaviorismo do século XX, que procura explicar as ações humanas somente através de seu comportamento observável e suas causas, evitando qualquer noção de introspecção e subjetividade. Transposto ao âmbito das ciências sociais, isso significa que na explicação dos fenômenos sociais não interessa o sentido que as pessoas atribuem a seus atos, mas apenas o que efetivamente fazem.

Apesar de esta linha naturalística ter se tornado influente nas ciências sociais, desde sua constitui-ção enquanto disciplina científica no século XIX, uma postura mais alinhada com o dualismo cartesiano se fez logo presente. De acordo com essa segunda vertente, as ciências sociais possuem um estatuto metodológico próprio, em razão de ser a ação humana radicalmente subjetiva. Essa subjetividade não desaparece no âmbito das relações sociais; pelo contrário, as fundamenta. Além do mais, como uma mesma ação humana pode estar ligada a sentidos muito diferentes, o comportamento humano não pode ser explicado tendo em vista somente suas características externas e quantificáveis, mas deve ser compreendido a partir dos eventos intencionais (atitudes, crenças, hábitos, desejos) dos agentes e do significado que eles atribuem ao que fazem. A análise dos fatos sociais, portanto, deve incluir as ideias dos participantes. Embora simpatizante, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, em um pequeno e in-teressante opúsculo intitulado Um Discurso sobre as Ciências, argumenta que esta postura partilha com a anterior (a espinosista) elementos fundamentais do modelo de racionalidade cartesiana, a saber, a di-cotomia ser humano/natureza e uma visão mecanicista da segunda. Faz, então, também parte do que chama de “paradigma dominante”, que se encontra em crise. Santos aponta para um novo paradigma emergente, no qual as ciências naturais, especialmente a Física e a Biologia em seus avanços recentes, têm introduzido, em suas teorias, os conceitos de historicidade e de processo, de liberdade e autodeter-minação, e mesmo o conceito de consciência, todos eles antes reservados para o ser humano. Diz ele: “Os conceitos de teleomorfismo, autopoiesis, auto-organização, potencialidade organizada, originali-dade, individualidade, historicidade atribuem à natureza um comportamento humano” (SANTOS, 2002, p. 41). E estas não seriam apenas analogias, mas categorias de inteligibilidade universais. Relacionado ao tópico que estamos discutindo diretamente, consiste em uma retomada, embora em um outro patamar ainda não de todo claro, da concepção aristotélica de causa final.

Critérios de causaçãoMesmo que a ênfase na causa eficiente, como foi mostrado acima, tenha resultado em conclusões

indesejáveis e provavelmente falsas no que diz respeito aos estudos sociais, corrigiu um equívoco da aná-lise aristotélica e conduziu a um patamar mais seguro a compreensão da causalidade, ao focar o agente como o responsável pela causação. Assim, quando falamos que A causou B, não apenas afirmamos uma conexão constante e única entre ambos, mas também que A produziu B; conexão intrínseca e produtivi-dade sendo elementos necessários para causação. Por exemplo, ao dizer que “Beatriz queimou a mão na fogueira de São João”, sentença particular especificando a relação entre dois objetos (ou eventos), não es-tamos apenas estabelecendo uma conexão entre a fogueira e a queimadura (que a segunda sucedeu a primeira), mas supondo uma relação de produtividade entre a fogueira e a queimadura. E isso pode ser ex-presso em uma lei causal: “Fogueiras invariavelmente causam queimaduras na pele humana”.

2 Uma concepção empiricista da causalidade concebe “causa” como uma categoria puramente epistemológica, concentrando-se no critério de conexão constante entre duas experiências, desconsiderando o critério da produção (que a causa produz o efeito).

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Isso é importante porque explica a distinção entre generalizações causais e generalizações esta-tísticas. Nos estudos sociais, frequentemente o que obtêm por meio da investigação constitui somente correlações entre diferentes fenômenos, sem que se possa especificar uma conexão causal entre eles. Exemplos usuais disso se encontram em estudos políticos; a hipótese “trabalhadores sindicalizados vo-tam em partidos de esquerda”, embora permita entender o comportamento de um grupo de eleitores e mesmo prever comportamento futuro, é uma generalização estatística extremamente útil. Considerá-la como uma lei causal indica uma confusão entre conexão constante e produtividade. Se considerarmos tal hipótese com atenção, podemos perceber que o nexo entre sindicalização e voto não é necessário ou produtivo; o mais provável é que ambos tenham uma causa em comum, talvez uma crença acerca de como a sociedade deve organizar-se em relação ao tópico da divisão do trabalho. Generalizações es-tatísticas, embora nos permitam compreender como um conjunto de fenômenos sociais ocorre, não nos esclarecem o porquê ocorrem da forma em que se mostram. Um interessante exemplo é a tese de Rosalind e Ivo Feierabend, proposta em 1966, de que as sociedades mais e as menos modernizadas são as mais estáveis e menos violentas, enquanto aquelas que se encontram a meio caminho da modernidade são as mais suscetíveis à instabilidade e violência política (MACINTYRE, 1984, p. 90).

Condições necessárias e suficientesNo início da aula, foi mencionada a opinião de Galileu, para quem a causa eficiente constitui con-

dição necessária e suficiente para o surgimento de algo. O que significam as expressões “condição ne-cessária” e “condição suficiente”? Consideremos um exemplo simples: se alguém diz, “Se Maria é mãe, então Maria é mulher”, está indicando que “ser mãe” é uma condição suficiente para “ser mulher”. No entanto, não é uma condição necessária, porque é perfeitamente possível ser mulher e não ser mãe. Por outro lado, o enunciado indica uma condição necessária, a saber, que para ser mãe, é preciso ser mulher; mas ser mulher, por sua vez, não é suficiente para ser mãe. Quando comparamos esses resultados, pa-rece razoável acreditar que há uma simetria entre uma condição suficiente e uma condição necessária, de tal forma que “se A é uma condição suficiente para B, então B é uma condição necessária para A”. Vejamos outro exemplo: “Pedro se lembra de ter ido ao cinema ontem”. Analisando essa sentença a par-tir dos conceitos de condição necessária e condição suficiente, teríamos: é uma condição necessária para Pedro lembrar-se (tendo em vista o que é memória), que o evento tenha ocorrido no passado. E, por outro lado, Pedro ter essa lembrança é uma condição suficiente para que o evento tenha ocorrido no passado. Essa concepção da simetria entre condições necessárias e suficientes é conhecida como teoria padrão.

Será ela o caso em todas as situações? Consideremos outro exemplo: “se André venceu na Mega- -Sena, ele está rico”. Vencer na Mega-Sena é condição suficiente para ficar rico, mas ficar rico certamente não é uma condição necessária para ganhar na Mega-Sena. Qual a diferença entre os dois tipos de situ-ação. No primeiro tipo, a relação entre o antecedente e o consequente (por exemplo, “mãe” e “mulher”) contém um elemento lógico que não está presente no segundo tipo (por exemplo, “ganhar na Mega- -Sena” e “ficar rico”). Quando se trata, então, de relações fundamentalmente contingentes, não se deve supor ou procurar pela simetria entre condição suficiente e necessária.

Podemos, portanto, explicar a diferença entre condições suficientes e condições necessárias da seguinte maneira: X é uma condição suficiente para Y significa que sempre que X está presente, Y tam-bém está presente; e X é uma condição necessária para Y significa que sempre que X está ausente, Y

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também está ausente. Aplicando isto à causação, segue-se que uma causa é sempre uma condição sufi-ciente, e somente uma condição necessária quando o efeito que está sendo considerado não possa ser produzido também por outras causas.

Ciência e realidadeQuando falamos que uma coisa é causa de outra, e quando elaboramos leis causais, a que isso se

refere? Quando descrevemos um objeto, no discurso comum (por exemplo, que a árvore no jardim é uma macieira), supomos que essa descrição se refere à realidade, e pode ser verdadeira ou falsa. Argumentos céticos põem isso em dúvida, e procuram mostrar que supor que o mundo é tal como nós o percebe-mos constitui uma ilusão. E quanto a teorias científicas? Ao confrontar o senso comum e a teoria cientí-fica, muitas vezes julga-se que o senso comum nos fornece crenças frequentemente falsas, e uma das funções da ciência é eliminar tabus, corrigir o senso comum. As teorias científicas descrevem e explicam o mundo, seja natural ou social, tal como ele é? Dito de outro modo, como as teorias científicas se rela-cionam com o mundo real? Para tratar dessa questão, vamos utilizar como exemplo a discussão acerca das causas do suicídio tendo como referência a ciência francesa.3

A compreensão, derivada de Esquirol, de que o suicídio é sempre um sintoma de doença mental, implica que as tentativas de entender o fenômeno (e eventualmente tratá-lo) devem considerar as cau-sas dos tipos pertinentes de transtorno mental, a saber, as causas biológicas próprias de problemas psicopatológicos. Nessa linha, uma das explicações propostas, a do psiquiatra De Fleury, concluía que tendências suicidas são encontradas principalmente em pessoas com transtorno depressivo cíclico (ci-clotimia), que conduz a um estado de ansiedade mórbida. Esse transtorno psíquico depende de carac-terísticas hereditárias; em suma, a disposição ao suicídio está geneticamente determinada em algumas pessoas. E, caso se queira entender as taxas de suicídio em uma população, é preciso, então, fazer o le-vantamento da distribuição desse transtorno mental nessa população.

Em oposição a essa tese psiquiátrica, Durkheim propõe a tese de que as taxas de suicídio em uma dada população deveriam ser explicadas sociologicamente, isto é, o fenômeno é antes social que psíquico. Na teoria por ele proposta, o suicídio está relacionado a características constitutivas de uma estrutura social, principalmente um baixo nível de integração do indivíduo na estrutura social e a falta de normas reguladoras na sociedade – o egoísmo e a anomia, respectivamente, como Durkheim nomeava tais ca-racterísticas. Assim, nas sociedades que exibem maior grau de egoísmo e anomia, as taxas de suicídio serão altas, independente da psique individual dos suicidas (alguns exibirão transtornos mentais, outros não). Em suma, o suicídio é basicamente um fenômeno social e secundariamente psíquico.

Ao considerarmos essas duas teorias, antes de decidir por qualquer delas, podemos saber que são logicamente excludentes. Se uma for verdadeira, a outra será falsa, embora possa ser que sejam ambas falsas. A decisão dependerá em boa parte do que se entende como a função de uma teoria científica, isto é, de qual a epistemologia que se aceita. Podemos distinguir três tipos de epistemologia ou filosofia da ciência: realismo, instrumentalismo, criticismo, que diferem justamente na compreensão de como se dá a relação entre ciência e realidade.

3 Resumo baseado no texto de Anthony Giddens. O problema do suicídio na sociologia francesa. In: Em Defesa da Sociologia. São Paulo: Unesp, 2001. Os textos mencionados no resumo são: Esquirol, E. Dês Maladies Mentales [Sobre as Doenças Mentais]. Paris: 1838; Fleury, M. de. L’Angoisse Humaine [A Angústia Humana]. Paris, 1924; Durkheim, E. Le suicide. Paris, 1897.

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90 Causalidade e realidade

RealismoO realismo4 concebe as teorias científicas como descrições da natureza tal como ela é independente

do observador (o cientista). As propriedades, as conexões causais, as leis gerais propostas na ciência correspondem a coisas reais; teorias científicas são modelos conceituais que nos permitem compreender a estrutura não observável do mundo, aquilo que está por trás das aparências, o efetivamente real. Podemos visualizar essa compreensão sobre a relação entre ciência e realidade fazendo uso de uma ilustração proposta por Popper.

(PO

PPER

, 198

2, p

. 135

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o.)

Realidade (I)

Observação (II) Ciência (III)

A

B

a

P

B

a

b

T

Figura 1 – Relação entre ciência e realidade.

Nessa simbolização, a e b são os fenômenos, aquilo que observamos, A e B são as realidades cor-respondentes àquelas observações, e a e в são as descrições dessas realidades. P representa as proprie-dades de A e B, isto é, aquilo e como elas são; T é a teoria que descreve P. A partir de T e de a podemos deduzir в, isto é, podemos explicar, com a ajuda de nossa teoria, porque a é causa de b. Para o realismo, assim funciona a Ciência: como uma descrição geral da realidade, descrição que permite explicar os fe-nômenos por nós observados, através de leis gerais (leis da natureza) que especificam conexões causais entre coisas e entre eventos.

O realista não nega nem desconhece que há mudanças significativas na história das ciências, e teorias aceitas numa certa época são consideradas falsas e substituídas por outras em épocas poste-riores. Não nega esse fato, mas nega que tenha um significado mais profundo quanto à natureza da Ciência; o fato mostra apenas que, como em moral, política, hábitos pessoais etc., também na Ciência se cometem erros. Mas, justamente porque a Ciência se refere à realidade, a correção das teorias é possível, através da observação e experimentação constantes, até se alcançar uma teoria verdadeira, demonstra-da além de qualquer dúvida razoável. A Ciência progride na medida em que tais teorias são elaboradas, por meio de generalizações de observações e resultados experimentais. Teorias científicas, em resumo, são descobertas, e o que elas descobrem são as leis da natureza, que realmente existem e regulam as ati-vidades de todos os seres e os eventos decorrentes. A partir desse conhecimento do real podem ser fei-tas previsões sobre eventos futuros.

4 Chamado também de “realismo clássico”, para distinguir do criticismo, que pode ser entendido como uma espécie de realismo, e, numa compreensão como tal, chamado de “realismo crítico”. Popper chama o realismo clássico de essencialismo (POPPER, 1982, p. 131).

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Causalidade e realidade 91

Aplicando a concepção realista ao nosso exemplo das teorias sobre taxas de suicídio, temos o se-guinte resultado: qualquer uma delas, se for científica, deve se referir à realidade e, portanto, pode ser testada comparando uma e outra, fazendo observações sistemáticas e aplicando as regras do método científico. Aquela que for confirmada será mantida e a outra descartada como falsa; pode ser que o teste empírico mostre que ambas são falsas, mas é certo, antes de qualquer investigação, que não podem am-bas ser verdadeiras, pois fornecem explicações excludentes.

InstrumentalismoEnquanto o realismo está associado a uma abordagem objetivista5, o instrumentalismo consiste

em uma visão relativista da Ciência. As teorias são invenções (não descobertas) humanas, sistemas e técnicas construídas para correlacionar as observações e fazer previsões; também são ferramentas usa-das para obter controle técnico, domínio sobre a natureza ou a sociedade. Tendo considerado as obje-ções céticas, contra a possibilidade de conhecimento, como definitivas, o instrumentalismo concebe a aplicabilidade e utilidade das teorias como os critérios pelos quais são aceitas ou recusadas, e não sua eventual correspondência ou descrição da realidade (esta é inacessível para nós). Assim como usamos ferramentas físicas, fruto de nossa inventividade, para agirmos sobre os objetos, usamos ferramentas te-óricas com o mesmo propósito. Portanto, assim como uma faca6 não é mais “verdadeira” do que outra faca, também não se deve julgar que teorias científicas são verdadeiras ou falsas, ou que elas se referem a uma realidade independente com a qual possam ser comparadas para verificar isso. São instrumentos melhores ou piores, isto é, permitem fazer previsões úteis em maior ou menor grau.

Essa perspectiva epistemológica vem de longa data, mas só encontrou solo fértil para se desen-volver a partir do final do século XIX, quando passa a ser aceita não apenas por alguns filósofos, mas por uma considerável parte da comunidade científica. Em relação à figura 1, o instrumentalismo implica a supressão do quadrado I no que se refere à função da Ciência. Não é necessário, para um instrumenta-lista, negar a existência do mundo físico ou social aos quais as teorias científicas se aplicam, ou mesmo que possamos saber algo sobre eles. O instrumentalista nega que a Ciência, entendida como o procedi-mento de elaborar teorias gerais e produzir previsões confiáveis, seja capaz de descrever esses mundos; ao mesmo tempo, pode defender que outras formas de conhecimento, como a religião ou a intuição, nos dão acesso à realidade. Dito de outra forma, é possível ser um instrumentalista científico e um rea-lista religioso.

Quanto ao exemplo do suicídio, a interpretação instrumentalista consiste em perguntar qual das duas alternativas melhor permite prever fatos relacionados ao tópico, e agir sobre o problema. Então, mantém-se a teoria que melhor satisfaz esses critérios. No limite, se uma delas funciona bem em relação a uma parcela da população, enquanto a outra funciona melhor em relação a outra parcela da população, mantêm-se ambas.

5 Objetivismo é a concepção de que as teorias científicas são validadas por critérios claros e testadas em confronto com dados empíricos indis-putáveis, não teóricos. Tanto os critérios como os dados (observações, experimentos) são considerados independentes do sujeito individual e de influências culturais. Para o relativismo, é justamente o inverso: qualquer dado empírico, observação ou experimento, depende de alguma teoria prévia, e os critérios para aceitar ou recusar uma teoria são culturais. 6 Comparar “facas” com “teorias científicas “ pode ser muito esclarecedor nesse contexto. Quando dizemos que uma faca é boa, não queremos apenas dizer que é afiada, cortante, assim por diante. Também fazemos relação com o propósito para o qual a utilizamos. Uma faca boa para cortar carnes pode ser um desastre para cortar pão ou algum outro alimento. Assim, saber o que se pretende com uma determinada teoria científica auxilia a ajuizar se ela é adequada ou não.

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92 Causalidade e realidade

CriticismoPara o criticismo científico, teorias são representações parciais de aspectos limitados do mundo

físico ou social, e há sempre envolvimento do observador. Qualquer observação ou experimento está relacionado com alguma teoria prévia, embora não necessariamente consciente. Uma teoria científica é intrinsecamente conjectural, não podendo ser comprovada ou verificada, muito menos considerada uma explicação definitiva do mundo real. Por outro lado, constitui tentativa séria de descobrir a verdade, e se refere ao real. Enquanto representação parcial, a Ciência pode conviver com outras representações parciais, como o senso comum especialmente. O criticismo mantém a compatibilidade entre a incerteza, não apenas passageira, mas constitutiva, das teorias e sua pretensão de descrever a realidade. Embora não sejamos capazes de determinar quais teorias são verdadeiras, não são elas meros instrumentos pre-ditivos e de controle, e devemos submetê-las a testes rigorosos, confrontando as hipóteses aos dados observados (embora não haja dados puros, completamente neutros) e utilizando as previsões deduzidas das teorias como recurso para o teste. Neste ponto, o criticismo compartilha com o instrumentalismo a ideia de que toda observação e todo experimento estão carregados de pressupostos, provindos dos conhecimentos anteriores, tanto de outras teorias científicas já aceitas como do senso comum.

Diferente do instrumentalismo, e na mesma linha do realismo7, o objetivo da Ciência, de acordo com essa abordagem, é compreender, não controlar. Por isso, corroborar previsões constitui um teste vá-lido dessa compreensão (teorias cujas previsões não se concretizam ou não podem ser testadas perdem seu caráter científico ou são conjecturas fracas), embora fazer previsões não seja em si mesmo um obje-tivo da Ciência. Em relação à figura 1, mantêm-se os três aspectos; muda a forma de entender sua inter- -relação. Teorias são invenções nossas, não descrições literais de coisas no mundo8, mas isso não impe-de que as entendamos como aproximações do real, isto é, como capazes de produzir descobertas reais, embora parciais e não definitivas. E devemos fazê-lo, caso contrário, qualquer especulação ou fantasia está no mesmo nível de uma teoria científica.

No que se refere a nosso exemplo, uma abordagem crítica das duas alternativas consiste em sub-metê-las a diversificados testes, examinar sua consistência com outras teorias, compará-las com observa-ções cuidadosas dos fenômenos, esclarecer seus pressupostos e também submetê-los a testes, examinar se as teorias possibilitam fazer previsões confiáveis e, então, confrontá-las com os dados empíricos. Seguido esse procedimento, a teoria que melhor resistir aos testes será aceita, e a outra descartada. Para o criticismo, a obtenção e progresso do conhecimento científico se dá por competição teórica, de forma que a pluralidade de teorias não é necessariamente sinal de fraqueza. Assim, a explicação escolhida das taxas de suicídio (seja a tese psiquiátrica, seja a tese sociológica), mesmo que bem estabelecida por tes-tes, deve ainda ser considerada provisória e sujeita a revisões. Em certo sentido, portanto, o criticismo é uma perspectiva que se situa entre o realismo e o instrumentalismo, tendo em comum com o primeiro o ideal da verdade e com o segundo a consciência da incerteza intrínseca do conhecimento humano.

7 Esta é a razão porque alguns autores se referem ao criticismo com a expressão “realismo crítico’” conforme nota 4.8 Assim, por exemplo, não é fundamental considerarmos, como faz o realismo, que átomos existam no mundo tal como descritos na teoria física caso esta se refira ao real, e também não é preciso, como faz o instrumentalismo, considerar que o átomo seja apenas uma ideia abstrata, ou o que se chama de “entidade teorética”, uma entidade que não sabemos se é real.

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Causalidade e realidade 93

Texto complementar(SANTOS, 2002, p. 52)

Todo conhecimento científico é autoconhecimento. A Ciência não descobre, cria, e o ato criativo protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica no seu conjunto tem de se conhecer intimamente antes que conheça o que com ele se conhece do real. Os pressupostos metafísicos, os sistemas de crenças, os juízos de valor não estão nem depois da explicação científica da natureza ou da sociedade. São parte integrante dessa mesma explicação. A ciência moderna não é a única expli-cação possível da realidade e não há sequer qualquer explicação científica para a considerar melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia. A razão porque privilegiamos hoje uma forma de conhecimento assente na previsão e no controle dos fenô-menos nada tem de científico. É um juízo de valor. A explicação científica dos fenômenos é a auto-justificação da Ciência enquanto fenômeno central de nossa contemporaneidade. A ciência é, assim, autobiográfica.

Atividades1. Com base na definição de condições suficientes e de condições necessárias, elabore três exemplos

de cada uma. Compare com o de um colega.

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94 Causalidade e realidade

2. Releia atentamente o ponto sobre realismo, instrumentalismo e criticismo. Qual dessas aborda-gens parece ser a que melhor descreve a opinião que você tinha (ou ainda tem) sobre Ciência antes de ler o tópico. Explique.

3. Leia o Texto complementar e aponte o que, em sua opinião, você concorda e o que você discorda.

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O sujeito e o objeto

Objetividade e subjetividadeSempre que refletimos sobre a natureza do conhecimento, nos damos conta de que pelo menos

dois elementos constituem um ato cognitivo: o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido. Dessa perspectiva, conhecimento é uma relação e difere de outros processos mentais que nos ocorrem. Por exemplo, quando sinto dor, não há um objeto do qual a dor é dor e um sujeito que sente a dor. Há, sem dúvida, uma causa ou um motivo, real ou aparente, ao qual se pode atribuir a origem da dor. Por vezes, localizamos a dor em alguma parte de nosso corpo: dor de cabeça, de dente, no estômago etc. Mesmo assim, a dor não se refere ao estômago da mesma maneira que, ao dizer que a árvore está no quintal, esta minha percepção refere-se a uma árvore no quintal. Ou quando digo, “eu sei que Dom Pedro I proclamou a independência do Brasil”, há uma clara distinção, pressuposta na sentença, entre o conhecedor e o co-nhecido. Embora essa estrutura seja a usual no conhecimento científico, nem sempre o sujeito e o objeto diferem, ou pelo menos não diferem significativamente.

Quando Sócrates, seguindo o lema inscrito no oráculo de Delfos, recomenda “Conhece-te a ti mesmo”, está ele sugerindo que o sujeito faça de si um objeto, alienando-se de si mesmo? Pouco prová-vel, pois, neste caso, o sujeito, neste processo, se dividiria em dois: ela enquanto sujeito e ela enquanto objeto. Mas então surgiria um problema: na medida em que ela se conhece como objeto, ela como sujeito passa por uma transformação, pois acrescenta em si algo que antes não possuía, e, ao fazê-lo, transforma-se, e o objeto que ela conhece já não é ela mesma. Complicado?! Machado de Assis, em seu famoso romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, imagina o caso de um falecido que resolve contar sua própria vida, um defunto autor que olha para si mesmo, que lembra de si mesmo, “cá no outro mun-do” (p. 10). Essa fantasia parece justamente indicar a única forma de conhecer-se a si mesmo, a saber, es-tando morto.

Nas ciências sociais, diferente do que ocorre nas ciências naturais, sujeito e objeto de conhecimento são o mesmo. Por essa razão, há quem argumente não ser possível haver objetividade nas ciências sociais, e objetividade constitui uma condição necessária para o conhecimento; a conclusão é, portanto, que nas ciências sociais há apenas opinião, ou melhor ainda, diversidade de opinião. Conforme a conhecida pergunta, que esconde certo grau de malícia: se as ciências sociais podem ser objetivas, como se explica

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96 O sujeito e o objeto

que encontramos figuras expoentes destas ciências falando de modo tão diverso sobre o mesmo tópico? E esse é um fenômeno relativamente comum, se comparado com o que ocorre no âmbito das ciências naturais. Parece que as ciências sociais estão impregnadas, inevitavelmente, de subjetividade. O que há na subjetividade de tão problemático? Para responder essa questão, é preciso primeiro eliminar uma ambiguidade presente no termo “subjetivo”. Subjetivo significa aquilo que é tendencioso ou parcial; mas também significa simplesmente aquilo que se refere ao sujeito. No primeiro sentido, diz respeito a crenças mal fundadas, preconceitos, ou opções de sujeitos individuais; no segundo, diz respeito à impossibilidade de qualquer ser humano superar os limites da subjetividade humana. O subjetivo, nesse segundo sentido, é algo objetivo, na medida em que constitui um elemento inescapável da condição humana. Desse modo, estudar cientificamente o humano e o social não pode significar a eliminação e erradicação da subjetividade, pois isso teria como consequência a eliminação e erradicação do próprio “objeto” (tópico, assunto) de estudo.

Ao considerarmos, portanto, a relação entre objetividade e subjetividade, nós temos de levar em conta essa ambiguidade. Contudo, há um elemento comum em ambos os significados: a ideia de valor. E uma das críticas feitas aos estudos sociais encontra-se em argumentos que procuram mostrar que os valores dos cientistas sociais necessariamente estão embutidos em suas conclusões. Diante disso, con-vém considerar com mais detalhe certas questões relativas a valores1.

Sobre o que é e o que deve serNo segundo livro da Torah hebraica (o Antigo Testamento dos cristãos), intitulado Êxodo, além da

história do povo hebreu, há diversas leis. Um delas (cap. 21, ver. 28.) diz o seguinte: “Se algum boi chi-frar homem ou mulher, que morra, o boi será apedrejado, e não lhe comerão a carne; mas o dono do boi será absolvido”. Ao ler uma sentença como essa, muitas pessoas provavelmente acharão estranho, e talvez julguem haver uma explicação adequada para o que parece, à primeira vista, algo desproposi-tado. Aparentemente, o boi está sendo punido, e não seu dono. Aplicando aos dias atuais, em grandes cidades, seria como punir apenas cães ferozes (rottweilers, por exemplo) sem responsabilizar seus do-nos. Independente do sentido original da regra no mundo judeu, o ponto surpreendente se liga a um de nossos pressupostos mais importantes: seres humanos, diferente de coisas e de animais, têm obriga-ções morais. É geralmente aceito que não se deve mentir, a não ser que haja uma razão muito específica para fazê-lo (alguns dirão ainda que em hipótese alguma); também se considera que temos a obrigação de, em algumas situações, ajudar outras pessoas. Essas são crenças morais. As pessoas, em geral e espe-cialmente na sociedade em que vivem, mantêm conjuntos de crenças morais muito similares, e elas não têm, na vida cotidiana, dificuldade de identificar uma crença moral. Crenças morais se referem a regras morais (embora não lhes sejam idênticas), e geralmente é fácil distingui-las de outras regras. Dificilmente alguém julgaria que a regra, de um jogo de xadrez, “não se deve mover o peão lateralmente”, seja uma regra moral. Na mesma linha, crenças morais se referem a valores morais, e se distinguem de outros va-lores. Temos, então, valores estéticos, morais, religiosos, políticos, cognitivos, sociais. Outros tipos de

1 Valores são também chamados por alguns autores, seguindo a nomenclatura típica no mundo grego, de “virtudes”, em oposição a “vícios” (MACINTYRE, 1984). Nesse caso, o contexto determina o significado, e valor é entendido em sentido positivo (como usual também na economia, quando, por exemplo, se fala em “agregar valor”). Contudo, tendo em vista que toda a argumentação aqui apresentada relaciona-se com ideias diferentes do que é um valor ou não, portanto, de diferentes e mesmo opostos valores, o termo é usado em um sentido neutro.

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O sujeito e o objeto 97

regras, como regras técnicas, regras de jogo, não são adequadamente classificadas como valores. Mesmo diferenciando esses tipos, em casos concretos pode haver alguma dificuldade, ou um mesmo valor ser subsumido em diferentes categorias. Por exemplo, o valor da humildade é tanto religioso quanto mo-ral. Já uma regra como “devemos pagar nossos impostos” se refere a um valor político, mas não é claro se também a um valor moral. As considerações que se seguem têm aplicabilidade às diversas catego-rias, embora em grau maior ou menor. Em razão de sua conexão mais óbvia com o assunto, iremos usar como fio condutor a ideia de valores morais.

Uma resposta influente diz que a característica fundamental de um valor é ser acerca de como os fatos deveriam ser, e não como eles efetivamente são. Dizer que nós devemos respeitar o que pertence a outro não equivale a dizer que, de fato, as pessoas respeitam a propriedade alheia. É antes afirmar que temos uma obrigação, um dever de fazê-lo, e caso não o façamos, agimos mal. Uma crença moral não descreve as ações das pessoas, mas as prescreve. Isso transparece ao considerarmos raciocínios morais ou práticos.2 Em um raciocínio moral, a conclusão nunca pode ser derivada exclusivamente de premissas factuais. Por exemplo, se um político em um cargo executivo está considerando a possibilidade de aceitar suborno para liberar uma obra. E digamos que as premissas que ele entretém são: aceitar suborno é proibido pela lei e passível de punição; se os jornais descobrirem, tornarão minha vida insuportável; meus pais me ensinaram a não aceitar dinheiro ilícito. Digamos ainda que a conclusão de seu raciocínio prático seja: devo recusar o suborno. Ora, não há qualquer processo inferencial, seja indutivo ou dedutivo, que permita tirar essa conclusão a partir daquelas premissas. Há, então, alguma premissa oculta, cuja presença autoriza a conclusão. Coloquemos o argumento em forma:

Premissa 1: aceitar suborno é proibido pela lei e passível de punição.

Premissa 2: se os jornais descobrirem, tornarão minha vida insuportável.

Premissa 3: meus pais me ensinaram a não aceitar dinheiro ilícito.

Premissa 4 (oculta):: é preciso evitar ações que a maioria das pessoas julga serem erradas.

Conclusão: devo recusar o suborno.

Se considerarmos cada uma das três primeiras premissas (todas elas se referem a questões de fato, e podem ser verdadeiras ou falsas) individualmente ou em conjunto, veremos que nenhuma delas cons-titui uma razão que justifique a conclusão. Tomemos a primeira. A proibição legal de suborno poderia ser vista de uma outra perspectiva; por exemplo, se o sujeito julga que transgredir normas legais é esti-mulante, e que deve viver sua vida da forma mais estimulante possível, aceitará o suborno, tomando as medidas para não ser pego, provavelmente. Somente a quarta premissa (que se refere a uma questão de valor, e não pode ser verdadeira ou falsa), em conjunto com as demais, conduz à conclusão. Essa quarta premissa é uma regra moral, e determina como alguém deve agir; as outras especificam o contexto em que ela se aplica. Assim com qualquer raciocínio prático, isto é, com qualquer raciocínio que tenha como objeto aquilo que deve ser, e não apenas aquilo que é.

2 O raciocínio moral é um tipo de raciocínio prático, geralmente considerado, pelos filósofos, o mais eminente deles. Um raciocínio prático consiste em um processo inferencial por meio do qual razões a favor ou contra são consideradas ao se escolher entre alternativas para agir, e tem em vista a formação de uma vontade ou intenção de agir de determinada maneira, de seguir um “curso de ação” Embora muitas vezes fazemos o que fazemos por força de hábito, este tipo de raciocínio é frequente no cotidiano.

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98 O sujeito e o objeto

A tese de que a conclusão de um raciocínio moral nunca é derivada exclusivamente de premissas factuais é, na verdade, a aplicação de uma tese mais geral. Como crenças morais se referem a valores mo-rais, e estes são apenas um tipo de valores, vale o mesmo princípio sempre que estiver presente algum valor, a saber, que há uma separação radical entre questões de fato, por um lado, e questões de valor, por outro. Não apenas no sentido de que são diferentes, mas principalmente no sentido de que não é possível passar de um ao outro; consequentemente, há entre juízos de fato e juízos de valor uma distinção lógica, não existindo uma “ponte” que liga o fato ao valor, ou vice-versa. Da regra “Não matarás”, não se segue nenhuma previsão possível acerca do comportamento das pessoas. E, ao examinar o comportamento de um grupo social, é possível chegar a uma conclusão do tipo “as pessoas tendem a se auxiliar mutuamente em momentos de dificuldade”, mas isso não equivale nem conduz à regra “as pessoas devem se auxiliar mutuamente em momentos de dificuldade”. Em uma explicação social adequada, pode-se argumentar, é preciso descobrir quais são e fazer referência às regras que as pessoas observam em suas relações so-ciais; só assim compreendemos o que elas estão fazendo. Regras morais, portanto, referem-se a questões de fato, especialmente quando se trata de sua aplicação. Contudo, não derivam delas. Por exemplo, uma regra moral aceita na Antiguidade era “os desiguais devem ser tratados de forma desigual”. Para aplicar tal regra em situações concretas, era preciso saber quem era igual a quem, e igual em que aspecto; essa é uma investigação factual. Em casos assim, a regra pode permanecer a mesma, mas afetar diferentemente as ações, na medida em que muda a compreensão acerca do fato. Por exemplo, o tratamento desigual às mulheres se devia, pelo menos em parte, a acreditar que elas são diferentes dos homens em aspectos re-levantes. Na medida em que a Ciência foi desmistificando tais opiniões, mudou o tratamento.

A origem dos valoresSe os fatos, em uma situação dada qualquer, não fornecem razão suficiente para qualquer conclu-

são acerca do que deve ser feito, e a conclusão somente segue caso um juízo de valor seja acrescentado às premissas factuais, qual, então, a origem desse juízo de valor? Uma das consequências da argumentação apresentada no ponto anterior está em que juízos de valor podem ser derivados somente com base em juízos de valor prévios, e estes, por sua vez, em outros juízos de valor, até se atingir princípios básicos de valor. Assim, a ideia de testar uma crença moral de modo similar à forma com que testamos crenças em-píricas, a saber, olhando para os fatos, ou apresentando evidências factuais, deve ser rejeitada. Isso por-que não se trata aqui de explicar como aprendemos regras morais, mas qual é seu fundamento. Essa é uma distinção importante, já que a possibilidade de confusão é maior quando estamos falando de valo-res do que quando falamos de sensações. Por exemplo, se eu digo que “Bach compôs Jesus alegria dos homens”, e me for perguntado por que acredito nisso, posso legitimamente apontar para certos fatos: aprendi isso na escola, li livros que fazem tal afirmação, ouvi a peça musical ser executada por uma or-questra, e assim por diante. Muito disso está relacionado com aprendizado, e não faz muito sentido pe-dir mais explicações. Por outro lado, se alguém diz, “não se deve emprestar com juros a um irmão, nem dinheiro, nem comida, nem qualquer coisa que se empresta com juros”, e for perguntado por que acre-dita nisso, ela pode dizer que os pais lhe ensinaram isso; só que, embora esta explicação esclareça par-cialmente sua crença, ela não é suficiente, pois ainda se poderia replicar: “mas você concorda com isso, acha que é correto, que se deve agir segundo esta regra?”.

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O sujeito e o objeto 99

Uma resposta influente na filosofia moral recente, e que tem, consequentemente, exercido um papel relevante nas concepções acerca da relação entre crenças morais e estudos sociais, é a chamada posição subjetivista, ou, simplesmente, subjetivismo. Para o subjetivismo, não há procedimento racional capaz de nos conduzir na avaliação de crenças morais básicas alternativas. Diferente do que ocorre com teorias científicas, em relação a concepções (“teorias”) morais não é possível elaborar experimentos ri-gorosos para testá-las ou para, usando a expressão de Popper, falsificá-las. Se eu disser que as crenças morais de uma pessoa devem ser julgadas de acordo com o critério da felicidade (“é moralmente correto aquilo que conduz ao bem pessoal do indivíduo, e moralmente incorreto aquilo que conduz ao mal pes-soal do indivíduo”), o próprio critério, bem como a definição de felicidade, faz parte constitutiva da con-cepção moral aceita por aqueles que pretendem usar tal critério. Alguém que entende por “felicidade” outra coisa, e, além disso, julga que a felicidade é um valor secundário, fará uma avaliação diferente. Em suma, cada qual estará julgando crenças morais alheias de um ponto de vista interno ao seu próprio sis-tema moral. E isso, para o relativismo, é inescapável.

De acordo com o relativismo, essa situação se apresenta claramente quando comparamos dife-rentes culturas ou diferentes tradições dentro de uma mesma cultura. Este é considerado um dos prin-cipais argumentos em favor do relativismo: o da pluralidade cultural. Pessoas que pertencem a culturas diferentes muitas vezes (embora não totalmente3) possuem crenças morais diferentes. Por exemplo, sa-crificar crianças é algo completamente inaceitável e condenado em nossa cultura, mas algumas culturas antigas admitiam o sacrifício de crianças como um método para resolver catástrofes sociais: uma epide-mia, desastre constante na agricultura, e assim por diante; tal método era moralmente correto, não ape-nas uma imposição externa. Em sociedades pluralistas, típicas de um mundo globalizado, e em que há uma cultura geral homogênea, continuam existindo diferentes sistemas morais, ou diferentes tradições morais. Um exemplo seria o desacordo entre um liberal clássico e um socialista acerca do valor da pro-priedade privada dos meios de produção. O liberal argumenta que a propriedade privada deve ser in-centivada porque é o fundamento da liberdade individual; o socialista argumenta que a propriedade privada deve ser abolida porque impede a igualdade entre os cidadãos. Na abordagem relativista, não há argumentação efetiva entre essas duas tradições, já que pertencem a sistemas de crença diversos e irredutíveis. Para o socialista, a liberdade defendida pelo liberal gera desigualdade; para o liberal, a igual-dade defendida pelo socialista gera perda de liberdade. Como, então, podem eles embarcar em uma ar-gumentação genuína, se o que vale para um deles como uma razão é para o outro irrelevante?

Assim, a abordagem relativista aponta para a dificuldade que temos em entender como disputas entre diferentes culturas ou diferentes tradições morais podem ser resolvidas. Tais disputas envolveriam uma situação incontornável: uma das partes utilizará noções que pertencem à sua cultura ou tradição, e recorrerá a explicações e razões que fazem sentido naquele contexto, e a outra parte na disputa utilizará noções e critérios provindos do contexto de sua cultura ou tradição, diferente da primeira. O resultado geral é que apresentar evidências favoráveis, propor razões, contra-argumentar com evidências desfa-voráveis, tudo isto não será relevante, de um ponto de vista racional, para escolher entre sistemas mo-rais divergentes. Ou, dito de outra maneira, para a posição subjetivista argumentos só funcionam dentro de uma mesma cultura ou sistema. Por exemplo, se há, entre dois cristãos, uma dúvida acerca da corre-ção moral de se emprestar dinheiro com juros, um julgando não haver problema, o outro julgando que

3 Esse é um elemento importante, porque, ao compararmos diferentes culturas, também perceberemos que há muito em comum nos valores que elas mantêm. O relativismo concentra-se, sem uma explicação adequada, nas diferenças marcantes, que chamam a atenção. Embora, sem dúvida, tais diferenças apresentem um problema, pode-se questionar se, diante de tantas similaridades, têm elas a força alegada pelo relativismo para estabelecer a impossibilidade de argumentação moral.

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100 O sujeito e o objeto

prejudica o próximo, os dois podem resolver sua diferença apelando para uma tradição comum, espe-cialmente, no caso, a uma fonte doutrinária comum: as Sagradas Escrituras.4

Por outro lado, se for posta a questão de qual cultura ou sistema está “certo” ou, para adaptar à dis-cussão ao que ocorre hoje em relação a teorias científicas, qual deles é a “melhor” moralidade, então, diz o relativismo, evidências e raciocínio objetivo não têm lugar. Os valores são “arbitrários”, no sentido de que dependem, em última análise, de uma escolha individual, e seu compartilhamento coletivo em uma cultura não é do mesmo tipo de compartilhamento do mesmo mundo físico, objetivo e externo a nós.

Embora isso pareça conduzir a um beco sem saída, relativistas argumentam que tal situação con-diz com outro elemento favorável à sua abordagem: torna a moral cognoscível. Se os valores servem, em um raciocínio prático, para obter uma conclusão que sirva para orientar nossa ação, não podería-mos fazer isso se não soubéssemos o que é moralmente correto. Mas se a moralidade diz respeito àqui-lo que as pessoas, em uma determinada cultura, pensam que é certo ou errado, ela é objeto passível de conhecimento. Precisamos saber o que é moralmente correto ou errado para agirmos. Assim, é razoável entender moralidade como o conjunto de valores morais aceitos em uma cultura ou tradição. Esse racio-cínio segue a mesma linha do anterior, ligado ao fato da pluralidade cultural. Pressupõe, contra qualquer tipo de racionalismo moral, a impossibilidade de argumentação acerca de valores básicos, já que valo-res não se referem a fatos. Aqui é preciso notar outra diferença importante entre concepções objetivis-tas da moralidade e concepções subjetivistas: interpretam de forma diversa a tese da separação radical entre questões de valor e questões de fato. Como o subjetivismo considera que apenas fatos observá-veis e entidades são reais, e como valores não são fatos e não podem deles ser deduzidos, segue-se que valores não são reais, a não ser enquanto crenças de determinadas pessoas ou de culturas e tradições. Crenças são fenômenos observáveis, pelo menos na medida em que são expressas e se referem a regras públicas.5 Já o objetivismo considera que fatos são apenas uma parte do real. Dizer que juízos de valor não podem ser extraídos de juízos de fato implica que são tipos diferentes de coisas, nada além disso. O raciocínio é inverso: já que não podemos deduzir valores de fatos, e alguns valores são objetivos, isto é, não dependem de neles crermos ou não, segue-se que a forma pela qual conhecemos valores difere da forma pela qual conhecemos fatos. É importante notar que objetivismo moral não significa que todo e qualquer valor moral já aceito na história da humanidade corresponda a algo real, independente de nos-sos gostos e preferências. Os valores objetivos são as virtudes (veja, novamente, a nota 2), como hones-tidade, veracidade, justiça, coragem, temperança, amor etc. Os vícios, por sua vez, são, estes sim, valores subjetivos, no sentido pejorativo: nada de real corresponde a eles. Seriam como as ilusões de óptica no que se refere a sensações, ou como fantasias. Eu posso imaginar um dragão vermelho de olhos azuis, soltando fogo pela boca; mas nem por isso ele existe ou é real. Posso até pensar que é real, e isso ter um efeito desastroso sobre minha vida. Analogamente, valores morais falsos, ou vícios, são fantasias com grande efeito prático, mas não são reais. Conforme a expressão: “o mal é a ausência de bem”.

4 Essa foi, na verdade, uma disputa séria entre católicos e protestantes durante o período da Idade Moderna, os primeiros tendendo a se posicionar contra e os segundos a favor. Porém, mesmo em uma disputa interna, dentro de uma mesma tradição, pode haver problemas que nada têm a ver com os valores, mas se referem a fatos ou a definições, a conceitos acerca do objeto de debate. No caso, é preciso uma definição clara de “empréstimo”, “juros”, “usura”. Por vezes, em uma disputa, a diferença não é real, existindo apenas porque as partes entendem coisas diferentes em relação a um mesmo termo. Por exemplo, o termo “usura” significava ganhos sobre capital, mas também passou a significar juros exorbitantes, indevidos; ambos os sentidos permanecem ainda hoje, embora o segundo seja predominante. Ser contra ou a favor da usura depende inicialmente de uma boa definição. Muitas outras disputas envolvendo questões morais sofrem desse defeito inicial: o problema é apresentado de tal modo que induz a uma resposta. Em casos assim, não há como haver uma discussão racional.5 Alguém poderia dizer que não há como observar o que uma pessoa crê, apenas seu comportamento. Mas isso não afeta o ponto aqui. Não se tratam de crenças enquanto eventos mentais privados, mas enquanto expressões públicas desses eventos.

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O sujeito e o objeto 101

Como contra-argumento ao relativismo, aponta-se para o desenvolvimento moral das culturas. As culturas ainda existentes têm hoje algumas crenças diferentes, sobre certo e errado, do que tinham antes. Durante algum tempo, aceitou-se a escravidão como correta, mas agora é tida, na cultura6, como errada. Assim também houve alteração nas ideias e crenças acerca do papel social das mulheres. Essas mudanças não ocorreram por acaso ou arbitrariamente, mas porque as pessoas foram convencidas por argumentos e por formas alternativas de conduzir melhor suas vidas. O que mostra ser possível o progresso moral, isto é, por vezes um indivíduo ou uma cultura muda suas crenças para melhor. Mas, se as crenças posteriores são melhores deve ser porque elas estão mais próximas daquilo que é objetivamente correto.

Outro argumento frequentemente apresentado por relativistas, e o mais fraco dos três que nesta aula estamos considerando, está relacionado com a defesa da tolerância. O argumento pode ser assim resumido: pessoas em diferentes culturas têm valores morais diferentes e, consequentemente, têm ideias diferentes sobre como devem agir. Se nós acreditarmos que há uma única moralidade objetiva (sobre o assunto, leia quadro Objetivismo e valores morais), então devemos crer que muitas destas culturas estão erradas. Porém, que pretensão é esta, de julgar culturas que têm se desenvolvido durante milhares de anos? Além disso, em um mundo globalizado, as culturas precisam conviver, e não há como fazer isso se não respeitarem mutuamente suas crenças morais diversas. Assim, se pretendemos viver pacificamente em um mundo no qual culturas diferentes coexistem, então não podemos crer que algumas culturas estão erradas acerca daquilo que é certo. A tolerância exige o relativismo.

Esse argumento é fraco por duas razões. Primeiro, porque o conceito de “tolerância” é ambíguo. Em um aspecto, formal, seu significado está relacionado à dimensão política, e tem a ver com a liberdade de opinião e expressão. Assim, ninguém deve ser punido, especialmente em seu corpo, em razão do que pensa e diz. Se “tolerância” significa isso, o argumento é inquestionável (supondo certos valores). Em outro aspec-to, tolerância tem um significado cognitivo, material, e se liga à ideia de incerteza, ou mera opinião. Sou to-lerante com a crença alheia quando julgo que o assunto é incerto, e nada além de mera opinião pode ser apresentado. No que se refere à moral, a maioria das pessoas não julga assim, e a própria estrutura de um sistema moral parece excluir uma postura tolerante. E isso não é exclusividade da moral. Suponha que uma pessoa sistematicamente, e não há instrução possível que a faça se corrigir, comete o mesmo erro matemá-tico: ao somar 7 + 6, invariavelmente ela obtém o resultado 14. Seria eu intolerante em não engajar em ne-gócios com ela? Certamente seria se, tendo o poder, mandasse jogá-la em uma cela. Crenças morais, pela sua própria natureza, não são compatíveis com tolerância em um sentido mais forte, referente ao conteúdo das próprias crenças. A segunda razão da fraqueza do argumento está em que “tolerância” é um valor. Ora, o relativismo propõe, e esse é um aspecto central, que não há valores objetivos; todos os valores são sub-jetivos, e diferentes culturas determinam diferentes valores e sistemas de crença moral. Como, então, argu-mentar em favor da tolerância, especialmente em seu segundo aspecto? Se o oponente já aceita tal valor, o argumento é desnecessário; se não aceita, o argumento é inútil, se o relativismo for verdadeiro. O argu-mento só faria sentido de uma perspectiva objetivista.

6 Alguns indivíduos continuam a não se constranger em submeter outras pessoas a regimes de escravidão, mas são socialmente condenados. Quando a escravidão era aceita na cultura, alguns indivíduos se opunham a ela. Da forma como muitos hoje pensam, estes estavam certos já naquela época.

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102 O sujeito e o objeto

Objetivismo e valores moraisObjetividade moral pressupõe unicidade. Não pode haver duas moralidades objetivas, pois se

os valores são reais, valores diferentes se excluem. Um valor que difere de outro não é simplesmente uma concepção diferente, mas também oposta. E, se um deles for real, o outro é fantasia. Assim, se dizer a verdade é moralmente objetivo, mentir é falso e fantasioso. Comparemos com coisas sensí-veis. Não se poderiam aceitar duas moralidades objetivas, assim como aceitamos que, apesar de di-ferentes, tanto homens quanto cachorros são reais? Não, porque a comparação não é adequada. A comparação teria de ser como aquela entre a afirmação de que há pigmeus e a afirmação de que não há pessoas com menos de 1,50cm de altura. Assim com os valores, se forem opostos. Por outro lado, não se deve confundir a tese objetivista com sua eventual concretização em uma cultura ou tradição específica. Assim, um objetivista pode aceitar, sobre duas culturas diferentes, que ambas contêm va-lores objetivos e valores falsos. Por exemplo, um objetivista poderia aceitar a possibilidade de que parte dos valores cristãos são verdadeiros (no sentido de corresponderem a algo objetivamente cor-reto), mas outra parte não; e que parte dos valores islâmicos são verdadeiros, mas outra parte não. E isto mesmo que ele não saiba precisar com clareza quais são uma coisa, quais são outra. Tal postura não implica rejeitar a percepção de que, enquanto totalidades ou sistemas gerais de crenças, cristia-nismo e islamismo são incompatíveis, e, se um for verdadeiro, o outro é falso. Além disso, o objetivista pode perfeitamente aceitar, em tese, que o sistema de valores que ele aceita pode conter erros, seja porque há valores incompatíveis seja porque há valores falsos. Contudo, no momento em que ele se torna consciente das discrepâncias, deve alterar o sistema de valores ou sua hierarquia, conforme o caso. Por exemplo, muitos cristãos julgavam compatível duas coisas que agora, para a maioria de-les, parecem excludentes: o mandamento do amor ao próximo e a escravidão. Ao se darem conta de que há incompatibilidade entre as duas coisas, e sendo o caso de que o mandamento do amor tem prioridade hierárquica sobre a maioria de outros valores, os cristãos começaram a se manifestar con-trários àquela estrutura social escravagista.

Os valores e os estudos sociaisA relevância da questão dos valores para os estudos sociais fica clara quando conjugada com uma

tese que mencionamos no início da aula: a de que nenhum cientista social pode chegar a conclusões gerais sobre fenômenos sociais sem que estas sejam afetadas pelos valores (especialmente os morais) que ele aceita ou pressupõe previamente, e dos quais por vezes não tem plena consciência. De acordo com o relativismo, os valores são inevitavelmente arbitrários, e dependem, em última análise, de um ato de escolha não racional dos agentes sociais. Somando estas teses, a da relatividade dos valores e a da inevitabilidade de sua presença na pesquisa social7, alguém pode duvidar se vale a pena tentar realizar investigações cuidadosas acerca da natureza humana e da natureza da sociedade, se vale a pena tentar compreender

7 Na verdade, diferente do que pensam alguns filósofos sociais, não são duas teses completamente distintas, que podem ser argumentadas independentemente uma da outra. Pois, se há valores objetivos, conforme defende o racionalismo moral, a introdução destes na pesquisa não é problemática; o pesquisador social deve estar atento a seus preconceitos, isto é, aos falsos valores de sua cultura. Mas, nesse caso, a situação é similar a que ocorre na pesquisa da natureza. O cientista precisa estar atento em não se deixar levar por valores estranhos à própria inves-tigação, como, por exemplo, o interesse financeiro, que pode induzir a falsificar dados ou a prestar atenção somente a dados confirmatórios da conclusão à qual o financiador da pesquisa tem interesse. Por outro lado, a presença de um valor cognitivo como a crença no poder da discussão crítica é necessária para a pesquisa e elaboração de teorias científicas.

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O sujeito e o objeto 103

(e não apenas manipular) os fenômenos sociais. Pois, se os valores são arbitrários e inevitavelmente condicionam as conclusões dos cientistas sociais, não é o caso de termos que aceitar que tais conclusões (sociológicas, antropológicas, históricas etc.) são também arbitrárias? Mas, então, que interesse teriam elas, a não ser talvez para aqueles que compartilham os mesmos valores?

Já de uma perspectiva objetivista, o problema que se apresenta é outro. Para o objetivismo, os valores não são arbitrários, e precisamos, em razão da pluralidade de crenças morais, criar procedimen-tos reconhecidamente adequados para comparar e decidir objetivamente entre princípios e sistemas morais alternativos. Somando as duas teses, a da objetividade dos valores e a da inevitabilidade de sua presença na pesquisa social, parece, então, o problema assume outra configuração. Importa agora não que os valores do cientista social possam interferir em suas conclusões, mas que seus valores sejam os corretos. Esse é o caminho para evitar arbitrariedade, o que, no caso anterior do relativismo, não era possível. Mas, contrapõem os críticos, essa vantagem vem a um custo muito alto: para elaborar boas te-orias sociais será preciso que o cientista social mantenha aqueles valores que são objetivamente reais, e quais são eles? Parece difícil aceitar que uma investigação que se pretende científica dependa, em úl-tima análise, da moralidade. Este é, portanto, um dos dilemas a serem tratados e resolvidos, se possível, por uma filosofia das ciências sociais.

Texto complementar(NAGEL, 2001, p. 122-123)

Suponhamos que alguém diga, por exemplo: “Você só acredita em igualdade de oportunidades porque você é um produto de uma sociedade liberal ocidental. Se tivesse crescido numa sociedade de castas ou numa sociedade em que as possibilidades para homens e mulheres fossem radicalmen-te desiguais, você não adotaria as convicções morais que adota ou não aceitaria como persuasivos os argumentos morais que aceita”. A segunda declaração hipotética é provavelmente verdadeira, mas e quanto à primeira – especificamente o “só”? No geral, o fato de que eu não acreditaria em algo se não tivesse aprendido isso não prova nada quanto ao status da crença ou quanto a seus fundamen-tos. Talvez seja impossível explicar o aprendizado sem invocar o conteúdo da crença em si e as ra-zões da sua verdade; e talvez esteja claro que o que eu aprendi é de tal ordem que, mesmo que eu não o tivesse aprendido, ainda seria verdadeiro.

[...]

Mas eu creio que é impossível satisfazer-se com a observação de que a crença na igualdade de oportunidades, e o desejo de minimizar as desigualdades herdadas, sejam meramente expressões de nossa tradição cultural. Verdadeiras ou falsas, essas crenças são essencialmente objetivas em intenção. Talvez sejam erradas, mas isso também seria um julgamento não relativo. Confrontada com o fato de que tais valores ganharam circulação há pouco tempo, e não universalmente, a pessoa precisa tentar decidir se são valores aceitáveis – se é o caso de continuar a sustentá-los. Essa questão não é descartada pela informação da contingencialidade: ela se mantém, no nível do conteúdo moral, caso eu tenha estado em erro ao aceitar como naturais, e portanto como justificáveis, as desigualdades de uma sociedade de castas, ou um sistema de classes inteiramente rígido, ou a ortodoxa subordinação da mulher.

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104 O sujeito e o objeto

Atividades1. Leia o Texto complementar e aponte o que, em sua opinião, você concorda e o que você discorda.

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O sujeito e o objeto 105

2. Em sua opinião, cada um de nós tem direito a suas próprias convicções morais, dependentes da subjetividade de cada um, ou existem regras morais que todos nós devemos obedecer, indepen-dentes de nossa subjetividade? E, em qual dos casos seríamos mais tolerantes e compreensivos com os outros?

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106 O sujeito e o objeto

3. Suponha que alguém diga a você: “Moralidade é acerca das opiniões de meu guru. Isto o que eu entendo por moralidade. Então, para saber o que eu devo fazer, primeiro preciso descobrir o que meu guru pensa.” Existe alguma forma de mostrar que esta pessoa está errada? Discuta a questão com mais dois colegas e apresente a conclusão de vocês em um texto de no máximo 20 linhas.

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O comportamento significativo

Peter Winch e a ideia de uma ciência socialComo devemos proceder para explicar os fenômenos sociais? Peter Winch, em um interessante

texto intitulado A Ideia de uma Ciência Social1, considerado na literatura como um dos textos importantes para a epistemologia das ciências sociais, propõe que fenômenos sociais só podem ser compreendidos a partir do comportamento significativo das pessoas neles envolvidas. Não basta examinar, como ou-tros propuseram (Durkheim, por exemplo), o comportamento das pessoas de uma perspectiva externa, à semelhança do que fazemos com os fenômenos naturais, como se houvesse causas subjacentes, mais profundas, não percebidas pela consciência dos indivíduos que participam na sociedade, ou que os propósitos dos indivíduos em sociedade possam ser desconsiderados, ou tidos como irrelevantes. É preciso atentar para as ideias que têm as pessoas acerca de suas relações com o mundo e com as outras pessoas, pois suas relações sociais “são expressões de ideias sobre a realidade” (WINCH, 1970, p. 32).

E Winch pretende que tal perspectiva se estenda à compreensão das instituições sociais, mesmo que elas pareçam, à primeira vista, independentes dos indivíduos. Efetivamente o são, embora não de todo, se entendermos essa independência em relação a pessoas particulares, existentes em um deter-minado tempo definido; mas elas não têm existência própria sem alguns indivíduos. Todas as institui-ções sociais permanentes (como a família, o Estado, a Igreja, as organizações etc.) são, ao mesmo tempo, dependentes e independentes das pessoas. Mas, poderia alguém perguntar, no aspecto em que as ins-tituições sociais são independentes das pessoas, não são elas como as coisas naturais, e não se poderia explicá-las a partir de uma perspectiva naturalista? De acordo com Winch, isso não é possível, em razão da própria natureza dessas instituições, do que elas são.

1 O texto foi publicado pela primeira vez há cinco décadas, em 1958, mas representa uma perspectiva, se podemos chamar assim, “permanente” acerca de uma concepção básica de como se devem conduzir as ciências sociais. Na segunda edição, mais recente (1990), Winch reconhece algumas limitações e equívocos que cometeu no texto, mas que o argumento central permanece o mesmo (conforme prefácio da segunda edição, Peter Winch, 1990. Cap. IX a XVIII).

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108 O comportamento significativo

O senso comum reconhece que um entendimento adequado dos fenômenos sociais implica uma perspectiva interna, e, nesse ponto, o cientista social não deve desprezar o senso comum. Por exemplo, para compreender um fenômeno religioso, é preciso que o cientista social que o está estudando (seja um sociólogo, um historiador, um antropólogo) tenha algum sentimento religioso, caso contrário não conseguirá dar conta dos significados presentes nas ações daqueles que participam deste modo de vida. Isso não equivale a dizer que o cientista da religião precisa “crer” na realidade que as pessoas reli-giosas supõem em suas práticas; mas precisa estar atento ao que dizem as pessoas religiosas, sem partir do pressuposto de que, não havendo um referente2, o significado deve ser outro do que aquele interno ao próprio discurso que sustenta a prática. Winch está procurando chamar atenção para a insuficiência de uma perspectiva meramente externa, objetificante dos fenômenos e instituições sociais. O exemplo que ele apresenta é esclarecedor de sua concepção. Faz ele referência a uma conhecida parábola de Jesus Cristo, a do fariseu e do publicano.3 Externamente, os dois homens parecem estar executando a mesma ação, a saber, orando. Mas, pergunta Winch, esses dois atos pertencem à mesma espécie de ati-vidade? A resposta a essa pergunta, fundamental para entender as ações descritas na parábola (pois está em jogo um conceito central, o da oração), depende de critérios a serem tomados da própria reli-gião (no caso, a cristã), e não da sociologia. E, para conhecer tais critérios, é preciso atentar para a signi-ficação do comportamento religioso, o que inclui as razões e motivos que o agente alega para sua ação, mas também hábitos (no sentido de comportamento tradicional), desde que orientado por uma regra. Na medida em que o comportamento for governado por meio de regras (que não necessariamente pre-cisam estar presentes à consciência do indivíduo no exato momento em que age) é um comportamento significativo, e seguir uma regra, por sua vez, só é possível quando a ação que a ela se relaciona está in-serida em um contexto social.

A organização da sociedadePara esclarecer este ponto, podemos usar a explicação de Peter Berger4 (1985, p. 15-41) acerca da

relação entre indivíduo e sociedade. Segundo Berger, a sociedade é produzida pela ação de diversas pes-soas, pela maneira como interagem e constroem suas relações; sem as pessoas, não há realidade social, e sem a presença da atividade consciente desses indivíduos, a sociedade seria apenas uma fantasmago-ria. Por outro lado, ele corretamente aponta para o fato de que não há vida humana sem sociedade, fato

2 Isto é, se o sociólogo da religião não crê na existência de Deus, se pensa ele que tal hipótese é mera fantasia, ou produto imaginário de algum tipo de necessidade básica, não deve ele deixar que sua (des)crença pessoal intervenha de modo injustificado em sua investigação. Esse é um ponto fundamental para quem pretende se dedicar às ciências sociais. Se o sociólogo crente não deve permitir que sua crença interfira em seu trabalho como sociólogo, também o sociólogo descrente deve tomar a mesma precaução. Um e outro não devem confundir duas questões diferentes. A primeira: como se explica a religião?, ou, como é possível compreender o fenômeno social, ou melhor, o conjunto de fenômenos sociais, designado pelo termo religião? A segunda: supondo que seja falso aquilo que diz a religião, como se explica o fato de que muitas pessoas são crentes? A segunda questão só se coloca para aquele que julga falsa a religião ou uma religião específica. 3 “Propôs também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos, e desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo com o propósito de orar, um fariseu e o outro publicano. O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo, desta forma: “Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano; jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho”. O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” Digo-vos [Jesus falando] que este [o publicano] desceu justificado para sua casa, e não aquele [o fariseu].” (Evangelho de Lucas, cap. 18, v. 9-14).4 Especialmente o primeiro capítulo, intitulado “Religião e construção do mundo”. Nesse capítulo, Berger apresenta uma concepção geral sobre os fenômenos sociais, entre os quais dará destaque, posteriormente, à religião. Sua concepção é similar a de Winch em alguns aspectos, mas diferente em outros. O ponto aqui utilizado pode ser visto como “neutro” na questão.

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O comportamento significativo 109

esse que uma observação corriqueira nos mostra. Como já dizia o filósofo grego Aristóteles, somos seres gregários, vivemos agrupados e não sobrevivemos quando isolados ou dispersos. Mesmo que alguns ro-mancistas tentem imaginar a vida de algum indivíduo isolado, ou criado por animais, esse tipo de fantasia esconde sempre um elemento comum, social, na determinação do caráter do personagem. Além disso, há a questão da linguagem, fenômeno social por excelência. Para explicar o que poderia ser um homem só, usamos um instrumental produzido na comunidade de homens: não há linguagem privada.

Assim, o indivíduo e a sociedade estão intrinsecamente ligados. Dizer que a sociedade é um pro-duto da ação humana não equivale a afirmar sua irrealidade; o mundo social não é como um sonho. Dizer que as pessoas não vivem fora do vínculo social não equivale a afirmar sua inferioridade. Como diz Berger (1985, p. 15-16):

As duas asserções, a de que a sociedade é produto do homem e a de que o homem é produto da sociedade, não se con-tradizem. Refletem, pelo contrário, o caráter inerentemente dialético do fenômeno social. Só se compreenderá a socie-dade em termos adequados à sua realidade empírica se este seu caráter for devidamente reconhecido.

Para explicar essa interdependência, ele faz uso de três ideias básicas, relativas a três processos que ocorrem na interação indivíduo e sociedade: a exteriorização, a objetivação, e a interiorização. Embora Berger não explicite isso claramente, esses três processos pressupõem um mundo objetivo an-terior ao homem, o mundo da natureza.

Por exteriorização se entende a constante ação humana produtiva, seja física ou mentalmente. Berger chama a totalidade dessa produção (seguindo um esquema usual na sociologia americana) de “cultura”, incluindo aí tanto objetos materiais quanto instituições sociais. Por exemplo, a invenção de um instrumento para cortar objetos, como uma faca, bem como a invenção de uma história para distrair crianças, como a A Bela Adormecida, são, ambos, cultura nesse sentido, uma material, outra não material. Assim, a sociedade é parte da cultura não material, não sendo o inverso verdadeiro. Esse processo de ex-teriorização é constitutivo da natureza humana; não somos seres contemplativos, mas agentes. Mesmo quando contemplamos a natureza, criamos formas de compreendê-la. Quando se fala em ciência pura, não aplicada ou tecnológica, ainda aqui se trata de uma ação, de uma criação. Como a Ciência não é a mesma coisa que os objetos e as leis da qual ela trata, ao fazermos Ciência, criamos alguma coisa que antes não existia. E, uma vez existente, real em um sentido muito similar ao sentido em que um car-ro torna-se real depois de fabricado.

Este “tornar-se real” dos produtos da ação humana chama-se objetivação. Os produtos humanos se solidificam, passam a fazer parte do mundo, e passam a se confrontar com seus produtores originais como coisas distintas deles. Isso se aplica tanto aos produtos da cultura material como da cultura não material. Instituições sociais se tornam entidades, que parecem existir antes de o indivíduo vir a ser e continuam a existir depois que o indivíduo deixar de ser. Tanto objetos físicos (casas, carros, geladeiras, relógios, aviões, computadores etc.) como objetos mentais (a economia, o Estado, a Igreja, a família, as corporações, a Ciência) assumem realidade objetiva (isto é, não são mais apenas imaginação do sujeito, como um sonho). Esse processo não é estranho à natureza da atividade humana; pelo contrário, lhe é inerente, o que pode ser visto facilmente no caso de objetos físicos. Ao criar um instrumento qual-quer, mesmo simples, como um martelo5, este instrumento existe fora do sujeito, e, como tal, passa a ter, potencialmente, efeito sobre seu criador. Essa exterioridade também se verifica no caso dos objetos

5 Não se deve confundir a criação de um objeto artificial com o uso de um objeto natural para o mesmo propósito. Se eu uso uma pedra como martelo, embora eu me aproprie de um objeto para algum “propósito”, não estou criando um objeto novo, não existente na natureza. Mesmo assim, ao fazer isso, eu o incorporo em um mundo cultural, mas primitivo.

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110 O comportamento significativo

não materiais, ou mentais. Instituições sociais, como o Estado ou a Igreja, confrontam as pessoas como “coisas”, embora em sentido diferente dos objetos físicos.

E um e outro tipo estão em frequente interação. A distinção dos produtos da atividade humana em “objetos físicos” e “objetos mentais”, e a correspondente distinção entre “cultura material” e “cultura não material” não deve ser exagerada, pois têm eles uma relação importante. A criação de um objeto físico é, em situação normal, precedida por um ato imaginativo (mesmo que nem sempre claramente definido; quando, como às vezes se diz, alguém cria algo por acaso). Alguns objetos físicos, em razão de sua imensa complexidade (como um avião, por exemplo), contêm em si grande carga de raciocínio e imaginação. Por outro lado, a maioria das instituições sociais tem seu aspecto material, elementos fí-sicos nos quais as ideias se concretizam. Essa materialidade dos fenômenos sociais auxilia na objetiva-ção, o que diferencia as instituições sociais de outros produtos da cultura não material. Pode-se falar em graus de realidade objetiva, o que não faz sentido no caso de objetos físicos. Tomemos como exemplo sistemas políticos, ou, para usar um único termo, o Estado. A objetividade do Estado se expressa no fato de as pessoas terem de reconhecê-lo como real, e não lhe puderem ser indiferentes. Por outro lado, a concepção de Platão de como deve ser o Estado ideal é também um produto cultural, na medida em que, saindo da mente de seu criador, tornou-se objeto para outros. No entanto, sua real objetividade é baixa, pois os ideais que propôs não se concretizaram em Estados historicamente concretos.

Assim, no caso de instituições sociais, o grau de objetivação deve ser mais forte para que elas pos-sam ser consideradas fenômenos sociais. E aqui entra o terceiro processo mencionado por Berger: a inte-riorização. Como sua realidade objetiva é uma questão de grau, pode ocorrer, como a história mostra, que a objetivação conduza à alienação, isto é, quando as estruturas sociais me parecem estranhas ou quando me sinto controlado por elas, e não mais um participante ativo. Então, para evitar que o processo de ob-jetivação degenere em alienação, é preciso interiorizar a realidade social, isto é, “transformando-a nova-mente de estruturas do mundo objetivo em estruturas da consciência subjetiva” (BERGER, 1985, p. 16). Em resumo, o indivíduo precisa tornar suas as estruturas da sociedade em que vive, mesmo que ele, enquanto indivíduo historicamente localizado, não tenha sido um partícipe ativo na criação dessas estruturas; mas, inevitavelmente, participará de sua recriação constante. Caso contrário, ou o indivíduo é destruído no pro-cesso, ou alteram-se as estruturas sociais. A questão relevante, portanto, é a da integração do indivíduo na sociedade que é produto de sua própria atividade intencional. Como se opera tal interiorização?

Michael Polanyi (1962, p. 212-214) sugere que há quatro coeficientes que conjuntamente com-põem qualquer tipo de sociedade organizada, a saber: (1) convicções comuns; (2) interesses comuns; (3) cooperação ou ação conjunta; (4) exercício de autoridade ou coerção. A forma e o grau em que es-ses quatro coeficientes atuam uns sobre os outros determinará o tipo de sociedade, se estática ou di-nâmica, se revolucionária ou reformista. Mas esses quatro aspectos estarão sempre presentes em uma sociedade qualquer. Polanyi sugere ainda que, nas sociedades modernas, com alto grau de comple-xificação e especialização, os quatro coeficientes se encontram corporificados predominantemente em certas instituições sociais. Assim, universidades, igrejas, teatros, museus constituem exemplos de formas sociais cujo fim está em estimular convicções comuns, fazendo com que as pessoas comparti-lhem ideais, concepções científicas, religiosas, morais, estéticas. Essas são instituições de persuasão6. Em segundo, há o que ele chama de instituições de convivência, como clubes, associações recreativas, em

6 Polanyi usa a expressão “instituições de cultura”. Como estamos usando essa expressão em um sentido mais abrangente, que inclui outros tipos de instituição social na classificação daquele autor, alteramos o nome, para não gerar confusão com o que vinha sendo exposto. O termo “cultura” pode ser entendido em um sentido mais restrito, fazendo referência somente às produções não físicas. No entanto, o uso mais abrangente, como feito por Berger e como utilizado no texto, é mais adequado, especialmente tendo em vista a explicação dos fenômenos e instituições sociais por meio do conceito de comportamento significativo.

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O comportamento significativo 111

que se estimulam o convívio social, rituais de grupo, estabelecimento de relações estáveis; essas insti-tuições demandam e alimentam a lealdade grupal, a qual só se mantém havendo interesses comuns. Em terceiro, aquelas instituições cuja meta consiste em cooperação para vantagem material mútua, que formam um sistema econômico, como fábricas, laboratórios, comércio, e assim por diante. Por fim, au-toridade e coerção sustentam o poder público, que se concretiza em instituições como parlamentos, tri-bunais, força policial, exército.

Motivos, razões e propósitosSe o comportamento significativo consiste em seguir uma regra, isto é, se a ação especificamente

humana tem sempre um caráter normativo, uma noção essencial é a de propósito. Mas até onde é possível estender essa noção, até onde aplicá-la? Como determinar se um agente exibe propósito? Parece óbvio que não se pode atribuir propósito a todo e qualquer agente ou evento, por mais regular que seja seu “comportamento”, e mesmo que pareça direcionado a uma determinada finalidade. Qual seria o propósito de um eclipse lunar? Qual a finalidade da Lua em se colocar numa posição em que um resultado como esse ocorre? A própria pergunta parece absurda, e relembra o mito antigo de que os corpos celestes pos-suíam, à semelhança nossa, almas internas que explicavam seu comportamento observável.

E se perguntarmos: uma sociedade tem um propósito ou um objetivo? A resposta a essa questão já não é tão óbvia, mas algumas pessoas pensam que deva ser tão negativa quanto à resposta ao exemplo anterior. A justificação para negar propósito a sociedades reside no pressuposto de que necessariamen-te propósito ou finalidade é algo concebido por uma mente. Dessa forma, se for atribuído um propósito a alguma coisa, há duas alternativas: ou ela mesma possui uma mente, sendo, então, um agente cons-ciente; ou ela foi criada por um agente consciente, que nela embutiu um determinado propósito. Agora, se aplicarmos isso a sociedades, em qual das duas categorias deve ser classificada? Sem dúvida, uma sociedade (diferente de um relógio, por exemplo) é composta de agentes conscientes, pessoas. E pes-soas são capazes de ter propósitos e de dotar suas criações de propósito. Contudo, a sociedade à qual essas pessoas pertencem não é, ela mesma, um agente consciente. É, então, algo criado por um agente consciente visando um determinado propósito? Há alguns indícios positivos nessa direção, assim como contra-argumentos.

Há que se considerar que a restrição do conceito de propósito a seres conscientes não encontra justificativa diante da prática do senso comum e da Ciência. Biólogos, por exemplo, não consideram problemático atribuir finalidade a animais e plantas, ou a partes menores de um ou outro, assim como o fazem em relação às atividades de partes internas do corpo humano. Assim, é função, ou objetivo, de algumas artérias conduzirem oxigênio ao cérebro, e isso serve a um propósito maior, a saber, a sobre-vivência do organismo em questão. Segundo essa interpretação, devemos estender a noção de ter um propósito para incluir todos aqueles agentes cujas atividades se direcionam a uma finalidade persis-tente, em diversas e variadas situações, e não restringi-la ao exemplo de um ser consciente, que pensa em obter algo (uma finalidade, um objetivo) ao agir de determinada maneira. Usemos a expressão “comportamento finalista” para nos referirmos aos agentes que exibem propósito nesse sentido amplo. Dessa perspectiva, certas máquinas exibem um comportamento finalista. Pense em um condicionador de ar com termostato. Estabelecido, digamos, a temperatura desejada em 20ºC, o aparelho irá funcionar de modo a manter internamente essa temperatura, independente do fato de as temperaturas externas

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112 O comportamento significativo

flutuarem durante o dia. O filósofo americano Daniel Dennett sugere mesmo que se possa atribuir a um termostato a posse de crenças. Isso justificaria considerá-lo como exemplo de um sistema intencio-nal (isto é, algo que age de acordo com uma finalidade estabelecida por ele ou para ele), porque um termostato teria um desejo rudimentar, com base no qual ele age quando “crê, graças a algum tipo de sensor, que seu desejo não está sendo realizado” (DENNETT, 1998, p. 327). Dennett e outros julgam que outras máquinas contemporâneas, como certos computadores, puseram por terra o critério cartesiano para diferenciar seres humanos (ou melhor, seres pensantes) de máquinas, os primeiros agindo inten-cionalmente e os segundos mecanicamente.7

Contra isso, pode-se ainda argumentar que tal abordagem, de ampliar o alcance do conceito de propósito ou finalidade, continua supondo que uma sociedade seja capaz de, conscientemente, esta-belecer propósitos, o que, dizem os críticos, é absurdo. Somente organismos individuais, com uma es-trutura específica, organizada de uma forma precisa de modo a gerar o fenômeno da consciência, são capazes de atos propositais, de agir teleologicamente, tendo em vista um fim concebido antes da ação. Somente esses organismos constituiriam exemplos de sistemas intencionais. Por exemplo, se alguém come certos alimentos, vegetais preferencialmente, tendo em vista melhorar esteticamente seu visual, essa pessoa age intencionalmente; mas não se pode dizer algo semelhante de uma vaca no campo, a não ser por analogia, figurativamente. Assim também não se pode dizer que esta ou aquela instituição social tem este ou aquele propósito.

Outra objeção é a de que, embora a suposição de que se possa atribuir propósito a instituições sociais pareça razoável em relação a algumas delas, outras não exibem tal característica. Por exemplo, quando um clube é criado, faz sentido dizer que foi criado tendo em vista um propósito específico. Mas se quero dizer que a sociedade tem um propósito, isso deveria ser verdadeiro também de todas as suas partes, isto é, de todas as instituições sociais. Mas algumas instituições sociais são naturais, como a fa-mília e o Estado. Faz mais sentido dizer que elas evoluem ou mudam, do que dizer que são produto da atividade consciente das pessoas. Mesmo a forma histórica em que se encontram num determinado momento não parece ser fruto de escolha deliberada. Por exemplo, as estruturas familiares têm mudado na história, e parte dessa mudança é intencionalmente provocada por aqueles que as integram; mas pode-se realmente supor que uma estrutura familiar seja artificialmente criada, e então as pessoas de-cidem viver daquela forma imaginada? Pouco provável. Se tomarmos um exemplo histórico, a estrutura familiar proposta por Platão, isto é, propriedade comum de mulheres, filhos e bens móveis, essa jamais se realizou, pois se opõe a sentimentos naturais.

Segundo a perspectiva proposta por Winch, de que entender a sociedade e as instituições sociais depende do comportamento significativo dos agentes individuais, as considerações acima estão equivocadas. Dizer que a sociedade é produto das intenções dos sujeitos que a compõem, os quais ob-servam regras de comportamento, não significa que as instituições sociais são criações artificiais, cons-cientemente planejadas. Há aqui uma diferença importante entre objetos físicos criados pelo homem e

7 Conforme a interessante explicação de Descartes (1983, p. 60) em seu Discurso do Método: “Se houvesse máquinas que apresentassem seme-lhança com os nossos corpos e imitassem tanto nossas ações quanto fosse possível, teríamos sempre dois meios muito seguros para reconhecer que nem por isso seriam verdadeiros homens. Desses, o primeiro é que nunca poderiam usar palavras, nem outros sinais, compondo-os, como fazemos para declarar aos outros nossos pensamentos. Pois pode-se muito bem conceber que uma máquina seja feita de tal modo que profira palavras, e até que profira algumas a propósito das ações corporais que causem qualquer mudança em seus órgãos: por exemplo, se a tocam num ponto, que pergunte o que se lhe quer dizer; se em outro, que grite que lhe fazem mal, e coisas semelhantes; mas não que ela as arranje diversa-mente, para responder ao sentido de tudo quanto se disser na sua presença, assim como podem fazer os homens mais embrutecidos”. Lembremos que isto foi escrito em 1637, quando ainda não havia máquinas capazes de fazer o que ele aqui supõe, como as temos hoje. O ponto que Descartes enfatiza está em uma diferença radical entre seres humanos, por um lado, e animais e máquinas, por outro.

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O comportamento significativo 113

a sociedade. Os objetos físicos, como certas máquinas, podem ser criados de acordo com um plano pre-concebido, do zero, por assim dizer. Já a cultura não material, usando novamente a expressão tomada de Peter Berger, é evolutiva, mas isso não impede que seja tão somente produto da ação intencional dos agentes humanos. Essa ação intencional, por outro lado, não é sempre consciente, deliberada; as razões e motivos que presidem a elaboração de instituições sociais não estão a todo momento claros para os próprios agentes. Contudo, podem vir a ser objeto de consciência, e é nessas ocasiões que mudanças mais significativas ocorrem. Em resumo, para Winch, explicar fenômenos sociais não é possível por meio de categorias causais ao estilo das ciências naturais. É preciso compreender as razões, os motivos que sustentam a existência de fenômenos sociais, e esses motivos ou razões se encontram nos sentimentos, desejos, crenças e propósitos das pessoas que constituem uma sociedade. Estes, por sua vez, encontra-ram expressão nos papéis sociais, que são cumpridos de acordo com regras definidas e aceitas pelos participantes. Assim também se explica a possibilidade de previsões nas ciências sociais: na medida em que nos comprometemos, pela nossa ação presente, a agir de maneira similar no futuro, ou como apro-priadamente diz Winch (1970, p. 55): “Só posso ficar comprometido no futuro pelo que estou fazendo agora se o meu ato presente é a aplicação de uma regra”.

Texto complementar(HOLLIS, 2002, p. 372)

Um “papel” é usualmente definido como um conjunto de expectativas normativas vinculadas a determinada posição social. Assim, o cargo de professor universitário é uma posição social e espera-se que os docentes pesquisem e deem aulas, entre outras coisas. Essas expectativas são normativas pelo fato de que aqueles que lidam com professores têm justificativa para supor que o papel será desempenhado tal como exigido e queixar-se se não o for. Contudo, as exigências do papel não po-dem ser expressas em uma lista completa de regras explícitas de modo a cobrir todas as situações possíveis. Uma lista de tal modo completa não poderia ser elaborada e deve ser deixada aos que de-sempenham papéis uma margem para interpretar o papel em certo espírito geral. Exige-se que os docentes sejam escrupulosos na atribuição de créditos a ideias tomadas de empréstimo de outros e conscienciosos e justos ao avaliar os trabalhos dos estudantes; porém, o que é considerado como es-crupuloso, consciencioso e justo não pode ser especificado em detalhes. Isso depende em demasia das circunstâncias exatas de cada novo caso que requer um julgamento por parte dos atores. Desse modo, os papéis tomam forma à medida que são desempenhados e, individual e coletivamente, es-colhemos boa parte dessa forma.

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114 O comportamento significativo

Atividades1. O Texto complementar trata dos papéis sociais que as pessoas desempenham, usando como

exemplo o de um professor universitário. Leia atentamente o texto e procure aplicar os conceitos ao papel que você desempenha enquanto estudante universitário. Com um colega, elaborem um texto sobre o assunto, com no máximo 10 linhas.

2. Ao mencionarmos Peter Berger acerca dos processos de interação entre indivíduo e sociedade, um deles é o de interiorização, ou, como também se diz, processo de socialização. Em sua opinião, qual o papel da educação formal na socialização dos indivíduos?

3. Leia novamente o texto de Descartes na nota número 7, e opine: apesar de toda mudança tecno-lógica, está ele ainda certo, ou têm razão filósofos como Dennett?

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Estudo de caso: a Teoria da Ciência

de Lakatos

Nesta aula, apresentaremos um modelo de Teoria da Ciência, que pretende explicar o que faz uma Ciência, como se estrutura e sua relação com a realidade empírica que pretende compreender. A teo-ria examinada, em termos gerais, é a do filósofo húngaro Imre Lakatos (1922-1974), uma das mais inte-ressantes contribuições à filosofia das ciências no século XX. Essa concepção procura superar a disputa entre abordagens naturalísticas e antinaturalísticas das ciências sociais, não por tomar uma posição a favor de qualquer uma das abordagens, mas por propor uma concepção de ciência em que essa dico-tomia se torna anacrônica. Lakatos não elabora sua teoria geral sobre a Ciência tendo em vista a parti-cularidade dos estudos sociais, mas se aplica adequadamente a eles. Como ele próprio reconhece, sua concepção deve muito às propostas de Karl Popper, constituindo um desenvolvimento de sua filoso-fia da Ciência. Popper também argumentou insistentemente que a dicotomia entre ciências naturais e ciências sociais, e o debate acerca do uso da metodologia das ciências naturais ou da constituição de uma metodologia própria das ciências sociais (em razão de suas peculiaridades), refletia uma concep-ção inadequada, de uma parte e outra, do método científico em geral.

Ao propor, no escrito Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes (LAKATOS, 1972a), sua teoria da Ciência, por ele chamada de metodologia dos programas de pesquisa científica (ou também de falsificacionismo sofisticado), Lakatos procede de modo indireto, isto é, apresenta pri-meiro teorias divergentes. Entretanto, reconhece haver tomado daquelas importantes elementos; só, então, passa a expor sua própria compreensão da Ciência. Estas teorias divergentes são duas: o falsifi-cacionismo dogmático e o falsificacionismo metodológico de Popper. Tendo em vista que se pretende aqui considerar as ideias de Lakatos, é conveniente seguir o mesmo esquema.

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116 Estudo de caso: a Teoria da Ciência de Lakatos

Falsificacionismo dogmáticoSegundo Lakatos, essa teoria consiste basicamente em se aceitar a falibilidade de todas as teorias

científicas sem qualificação, retendo, contudo, uma espécie de base empírica infalível. O falsificacionismo dogmático reconhece que não é possível provar qualquer teoria, mas sustenta que seja possível desaprovar teorias, e isso por meio de uma contraevidência empírica. Entretanto, não se favorece com isso uma forma de prova indireta, que estabelecesse a veracidade de uma teoria científica demonstrando a falsidade das restantes. Define-se falseabilidade como característica essencial de uma teoria científica, isto é, considere-se a mesma como científica caso haja técnicas experimentais e matemáticas, disponí-veis na época, que designem certos enunciados como “falsificadores em potencial” (LAKATOS, 1972a, p. 96). Dito de outro modo, uma teoria científica deve proibir certos fatos possíveis.

O falsificacionismo dogmático traça uma rígida distinção ou demarcação entre o teórico e o experimentador: aquele propõe, este dispõe. O homem inventa um sistema científico, e a Natureza de-termina se tal é falso ou se acorda com os fatos até o momento ocorridos. Desse modo, conclui Lakatos, segundo o ponto de vista acima a Ciência progride por rejeição de hipóteses, isto é, fazem-se especu-lações ousadas, as quais não são nunca provadas ou tidas como prováveis, mas que, vez por outra, são conclusivamente refutadas, e repostas por especulações ainda mais ousadas, e, por um momento ao menos, não refutadas (embora em princípio refutáveis).

A crítica de Lakatos resume-se em mostrar que o falsificacionismo dogmático repousa em dois pressupostos falsos e em um critério muito restrito de demarcação entre científico e não científico. O primeiro pressuposto é o de que haja uma divisão natural, psicológica entre proposições teoréticas ou especulativas por um lado e, por outro, proposições observacionais ou fatuais. Um clássico exemplo que contradiz tal assunção encontra-se nas “observações telescópicas” de Galileu. Além do que, é pre-ciso construir uma teoria anterior para estabelecer o que constitui uma observação natural. O segundo pressuposto tem relação com o valor de verdade de uma proposição singular, e assume que se uma pro-posição satisfaz o critério psicológico de ser fatual ou observacional, então é verdadeira, pode-se dizer que foi provada por fatos. Lakatos chama tal concepção de “doutrina da prova observacional”. Segundo ele, a lógica anula tal assunção, pois o valor de verdade de proposições “observacionais” não pode ser indubitavelmente decidido: nenhuma proposição fatual pode ser provada por um experimento. Proposições são derivadas de outras proposições, não de fatos.

Se proposições fatuais são não provadas, então são falíveis. Se falíveis, embates entre teorias e proposições fatuais não são falsificações mas inconsistências, de modo que nós não podemos provar nem desaprovar teorias. A demarcação [...] inexiste: todas as proposições da ciência são teoréticas e incuravelmente falíveis. (LAKATOS, 1972a, p. 99-100)

Por fim, o falsificacionismo dogmático propõe um critério de demarcação demasiadamente res-trito, o qual, se rigorosamente aplicado, excluiria do campo da Ciência teorias consagradas e geral-mente reconhecidas como científicas. O critério delimita como científicas somente aquelas teorias que proíbem certos estados de coisas passíveis de observação e, portanto, que podem ser fatualmente desaprovadas. Ora, segundo Lakatos, tal critério mostra-se historicamente incorreto, pois justamente as teorias científicas mais admiradas falham em proibir qualquer estado de coisas observável. Normalmente, diz ele, uma teoria não proíbe a ocorrência de um fato, considerado isoladamente, mas proíbe um fato se outro fator qualquer não estiver influindo sobre o mesmo (a ideia de “outro fator” é, aliás, impor-tante para produção de hipóteses auxiliares corroboradoras). Tais teorias, pois, nunca contradizem um enunciado básico; contradizem quando muito uma conjunção entre um enunciado básico descreven-do um evento espaço-temporal singular e um enunciado universal de não existência dizendo não haver nenhuma outra causa relevante operando em alguma parte do universo. Desse modo, Lakatos retira

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Estudo de caso: a Teoria da Ciência de Lakatos 117

dois pontos de apoio fundamentais para o falsificacionismo dogmático: primeiro, de que haja propo-sições fatuais verdadeiras independentes de qualquer teoria; segundo, que teorias científicas só o são se contêm proposições fatuais possíveis que servem de falsificadores em potencial (esse Lakatos critica por ser historicamente inexato; entretanto, poderia fazê-lo mostrando que essa exigência depende de uma teoria da possibilidade, implicitamente aceita mas não argumentada).

Falsificacionismo metodológicoConforme Lakatos, essa filosofia da Ciência é um tipo de convencionalismo1. Explica o que entende

pelo conceito recorrendo a uma demarcação entre teorias do conhecimento “passivistas” e “ativistas”. “Passivistas” assumem que o conhecimento verdadeiro é impresso na mente pelos objetos, permane-cendo aquela perfeitamente inerte. Qualquer atividade mental resulta em distorção, e dá lugar ao sub-jetivismo. “Ativistas” consideram que não podemos ter conhecimento dos fenômenos e suas causas sem atividade mental, sem interpretá-los à luz de nossas expectativas e teorias. Ativistas conservadores sustentam que nascemos com expectativas básicas, que determinam nossos esquemas conceituais e concepções científicas. Ativistas revolucionários acreditam que estruturas conceituais podem ser desen-volvidas e repostas por outras melhores. Essa distinção corresponde a que Lakatos fornece, no texto History of Science and its Rational Reconstructions, ao tratar do convencionalismo, consistindo a diferen-ça basicamente em que, nos ramos revolucionários do convencionalismo, admite-se que também as proposições fatuais são aceitas por convenção, o que altera significativamente a noção de falsificação, já que, por assim dizer, não haveria falsificadores “fixos”.

Justamente no convencionalismo conservador surge a noção de decisão metodológica, a qual desempenha na metodologia de Lakatos papel preponderante. Naquele contexto, entretanto, significa uma decisão tomada, depois de considerável sucesso empírico de uma teoria, de não permitir que seja a mesma refutada, fazendo uso de hipóteses auxiliares para resolver ou dissolver anomalias aparentes. Para Lakatos, a dificuldade com essa compreensão do conceito está em que implica não haver possibilidade de recusar, uma vez feita a decisão, a teoria em favor de alguma outra; o que pode ser refutado por um exame da história das teorias científicas. A crítica ao convencionalismo conservador deu origem a duas escolas rivais de convencionalismo revolucionário: simplicismo de Duhem e falsificacionismo metodológico de Popper. Interessa a Lakatos especialmente o segundo, pois deste toma elementos para construção de sua proposta. Assim como o conservador, o convencionalismo popperiano faz uso da noção de decisão metodológica, havendo, entretanto, uma diferença fundamental, a saber, que admite pluralidade de decisões. Segundo Lakatos, o falsificacionismo metodológico admite cinco tipos de decisão.

Popper mantém uma base empírica, do seguinte modo: torna não falsificáveis por decisão alguns enunciados espaço-temporais particulares que se distinguem pelo fato de existir naquele momento uma técnica relevante a qual permite, a todo aquele que a dominar, decidir que o enunciado é “acei-tável” (ou “básico” etc.). A essa primeira decisão, segue-se uma segunda referente à separação do con-junto de sentenças básicas aceitas do restante. Essas decisões correspondem, segundo Lakatos, apenas superficialmente às duas assunções do falsificacionismo dogmático. No falsificacionismo metodológi-co não há base empírica natural, mas a “base empírica” é ela mesma uma teoria, eleita para servir de

1 Em filosofia da ciência, convencionalismo designa a concepção segundo a qual não haveria enunciados empíricos independentes de uma maneira de ver o mundo. Mesmo enunciados simples, como “Aquela árvore é alta”, supõem um modo específico de olhar para as coisas.

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118 Estudo de caso: a Teoria da Ciência de Lakatos

“falsificador”. Comparando ambos, diz Lakatos que, no dogmático, se uma teoria é falsificada, prova-se que é falsa; no metodológico, se é “falsificada”, pode ainda ser verdadeira (a comparação, contudo, está viciada, pois a noção de verdade não pode ser entendida do mesmo modo em ambas). Assim, “falsifica-ção” consiste em critérios para eliminar teorias. Essa eliminação deve ser metodologicamente conclu-siva, e a possibilidade teórica de que o sistema científico em questão possa afinal ser verdadeiro, não deve fazer vacilar o cientista. Há nisso, obviamente, riscos; para reduzi-los, o falsificacionista metodo-lógico prescreve alguns controles de segurança, por exemplo, fortificar o falsificador em potencial por meio de uma hipótese falsificadora bem corroborada.

O critério metodológico de demarcação é mais liberal que o dogmático e nos permite reconhecer como científicas teorias historicamente admitidas como tais, mas que, a crer-se no falsificacionismo dog-mático, deveriam ser classificadas como pseudociência. Por exemplo, teorias probabilísticas podem ser consideradas como científicas; embora não falsificáveis, na concepção dogmática, podem facilmente ser “falsificáveis” por uma terceira decisão tomada pelo cientista ao especificar certas regras de rejeição que permitem tornar evidências interpretadas estatisticamente “inconsistentes” com a teoria probabilística.

Como fazer para tornar falsificável uma teoria como a teoria dinâmica de Newton? Semelhante te-oria parece nunca ser “falsificável”, por qualquer número de “observações”, já que se serve de cláusulas auxiliares (Lakatos usa o recurso das aspas em certos termos para indicar não terem, no metodológico, exatamente a mesma significação que têm no falsificacionismo dogmático). Segundo Lakatos, o falsifi-cacionista metodológico torna uma tal teoria “científica” por um quarto tipo de decisão, a saber, quando testa uma teoria junto com uma cláusula auxiliar, o cientista deve decidir se toma a refutação como uma refutação da teoria específica. O que se faria do seguinte modo: supondo que a conjunção de três elementos, a saber, a teoria específica, certas condições dadas, e a cláusula adicional, seja incompatí-vel com um evento X, o qual se comporta diferentemente do previsto pela conjunção, e que tal evento é aceito como “observacional”. Assim, a conjunção é falsa. Para falsificar a teoria específica, procede-se então a dois passos: primeiro, testa-se severamente as condições iniciais, mostrando que podem ser re-legadas ao “conhecimento não problemático”; segundo, procede-se do mesmo modo com a cláusula adicional; se tais operações resultam verdadeiras, conclui-se que a teoria específica está “falsificada”.

Lakatos menciona ainda um quinto tipo de decisão, para eliminar teorias sintaticamente metafí-sicas, isto é, teorias que, como sentenças do tipo “todos alguns” ou sentenças puramente existenciais, em virtude de sua forma lógica não podem ter falsificadores em potencial espaço-temporais singulares. A decisão consistiria em rejeitar a teoria caso se choque diretamente com uma teoria científica aceita como conhecimento não problemático.

Falsificacionismo sofisticadoLakatos entende sua proposta de uma filosofia da Ciência como uma versão do falsificacionismo

metodológico de Popper, mais adequada entretanto, pois supera certas dificuldades que esse enfrenta quando comparado à historiografia da Ciência. Lakatos passa a designar o primeiro como falsificacionismo ingênuo, e sua própria alternativa como falsificacionismo sofisticado. O sofisticado difere do ingênuo, conforme ele, tanto no que diz respeito às regras de aceitação (ou “critério de demarcação”) como quan-to às regras de falsificação ou eliminação.

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Estudo de caso: a Teoria da Ciência de Lakatos 119

No que se refere às regras de aceitação, para o falsificacionismo ingênuo uma teoria qualquer só é considerada científica caso seja possível entendê-la como experimentalmente falsificável. Na versão sofisticada, uma teoria é “científica” somente se possui conteúdo empírico corroborado excedente ao de sua predecessora (ou rival), isto é, somente se conduz à descoberta de novos fatos. Acrescente-se a isto duas cláusulas: a nova teoria tem conteúdo empírico em excesso (o que Lakatos chama de aceita-bilidade1) e algo desse excesso é verificado (aceitabilidade2). Percebe-se como a ênfase difere de uma concepção para outra: na versão ingênua, interessa um elemento negativo, em forma de, por exemplo, uma anomalia, enquanto na versão sofisticada o que tem valor é a heurística positiva da teoria científica em questão, relegando as anomalias a um plano secundário.

No que se refere às regras de falsificação, para a versão ingênua uma teoria científica está falsificada se entra em conflito com uma sentença “observacional” (ou que o falsificacionista ingênuo decide inter-pretar como conflitante). Na versão sofisticada, uma teoria T é falsificada se e somente se outra teoria T” tem sido proposta e que contém as seguintes características: (1) T” tem conteúdo empírico excedente sobre T: isto é, prediz fatos novos, isto é, fatos improváveis ou mesmo proibidos por T; (2) T” explica o su-cesso prévio de T, ou seja, todo o conteúdo não refutado de T é incluído (dentro dos limites de erro ob-servacional) no conteúdo de T”; (3) algo de excedente é corroborado.

Segundo Lakatos, melhor se compreende a especificidade da versão sofisticada referindo a mesma à questão crucial de como pode uma teoria ser eliminada. Já os convencionalistas mostraram que não há experimento que seja capaz de eliminar uma teoria, tendo em vista que fica sempre aberta a possibilidade de se criar hipóteses auxiliares para salvar a teoria. Para o falsificacionista sofisticado, tais hipóteses são admissíveis, mas introduz ele uma diferença entre “progresso” e “degeneração” de uma teoria (ou “programa de pesquisa”, como Lakatos prefere nomear um sistema científico). Essa dis-tinção especifica que salvar uma teoria usando hipóteses auxiliares que satisfazem certas condições bem-definidas representa progresso científico; todavia, fazê-lo usando hipóteses auxiliares que não satisfazem às mesmas representa degeneração.

Essas condições bem-definidas são os dois tipos de aceitabilidade antes mencionados. Admitindo-se, pois, a validade do uso de hipóteses auxiliares, e a distinção entre progresso e degeneração, o que se examina, portanto, não é uma teoria isolada, mas uma série de teorias (o que explicaria por que aparentemente al-guns programas de pesquisa obtiveram sucesso embora dependessem de leis e hipóteses incompatíveis). Considera-se esta série teoreticamente progressiva se cada nova teoria tem conteúdo empírico excedente em relação à anterior. Considera-se que uma série teoreticamente progressiva é também empiricamente progressiva se cada nova teoria nos conduziu efetivamente à descoberta de um fato novo. Conforme diz Lakatos: “Finalmente, chamemos uma mudança paradigmática de progressiva se é tanto teorética quanto empiricamente progressiva, e degenerativa se não o for. Nós “aceitamos” mudanças paradigmáticas como sendo “científicas” somente quando elas são ao menos teoreticamente progressivas; caso não o sejam, nós as “rejeitamos” como sendo “pseudocientíficas”. Progresso é medido pelo grau em que uma mudança para-digmática é progressiva, pelo grau em que as séries de teorias nos conduzem à descoberta de novos fatos. Consideramos uma teoria na série “falsificada” quando ela é suplantada por uma teoria com maior conteúdo corroborativo” (LAKATOS, 1972a, p. 118).

Lakatos menciona ainda algumas outras características diferenciadoras da versão sofisticada em relação à ingênua, das quais as mais relevantes me parecem ser: (1) não há falsificação antes da emer-gência de uma teoria melhor. Uma contraevidência só o é se ao mesmo tempo evidencia uma teoria rival. Não se trata, portanto, (a falsificação) de uma relação simples entre a teoria e a base empírica, mas

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120 Estudo de caso: a Teoria da Ciência de Lakatos

uma relação múltipla entre teorias rivais, a “base empírica” original, e o crescimento empírico resultante da disputa. Diz Lakatos, significativamente: “falsificação tem caráter histórico” (LAKATOS, 1972 a, p. 120); (2) utilidade da proliferação de teorias. Não é preciso haver falsificação, no sentido ingênuo, para que uma teoria substitua a outra. Isto é consequência da ideia de progresso (conforme acima definida), que aventa a possibilidade de uma teoria ser reposta por outra sem que a antiga sofra de um número signifi-cativo de anomalias (contraevidências que não consegue explicar), mas pelo fato de a nova teoria portar um grau de poder heurístico mais elevado; (3) o elemento crucial na falsificação passa a ser que a nova teoria oferece informação excedente e algo desta informação é corroborado.

Quanto permanece de convencionalismo no falsificacionismo sofisticado? Menos que no ingê-nuo, argumenta Lakatos, já que precisamos de menor número de decisões metodológicas. Não é preciso, por exemplo, o quarto tipo de decisão. Não temos de decidir quais ingredientes da teoria considerar como problemáticos e procuramos ver se algum deles pode ser reposto de um modo “progressivo”. Também não é necessário o quinto tipo. No falsificacionismo sofisticado, não eliminamos uma teoria (sintaticamente) metafísica caso não acorde com uma teoria científica bem corroborada, como sugere a versão ingênua. Nós a eliminamos se produz um desvio degenerador e se há uma metafísica rival, melhor, para substituí-la. Esse ponto revela certa fragilidade na construção de Lakatos; sua metodologia inten-ta, mesmo aceitando a instabilidade de todo o conhecimento e a dependência deste em um número de decisões por parte do cientista, evitar as conclusões de pensadores como Kuhn e Feyerabend, e manter a racionalidade do procedimento científico, assumindo também que há uma distinção fundamental en-tre ciência e outras formas de atividade intelectual. Contudo, tanto quanto se pode perceber, Lakatos, mesmo não sendo antimetafísico ao estilo dos neopositivistas, não pretende admitir que haja um com-ponente metafísico (obviamente, isso não é tão simples, já que se precisaria explicar o que é metafísica) em qualquer programa de pesquisa proposto; as assunções básicas não são assunções metafísicas. Para evitar efetivamente esse elemento, deveria ele tomar uma nova decisão – a de não examinar seus próprios pressupostos e não reconhecer a presença de elementos não especificáveis, informais, na ciência –, o que conduziria a uma circularidade. Talvez lhe estivesse aberta uma posição semelhante a de Polanyi, conforme seu Personal Knowledge, que se pretende autojustificadora, assumindo a partici-pação pessoal do teórico na veracidade da teoria científica, sem renunciar, entretanto, à ideia de um contato com a realidade. Mas esse posicionamento, entre outras consequências, anularia a distinção tão desejada entre Ciência e outras atividades intelectuais, como arte, religião etc. Lakatos a considera “mís-tica” (LAKATOS, 1972a, p. 163, nota 1).

Quanto ao primeiro e segundo tipos, não podem ser evitados, mas minimizados. De acordo com o falsificacionismo ingênuo, como foi indicado, uma teoria está falsificada quando entra em choque com fatos considerados indubitáveis; a versão sofisticada permite que se faça um apelo. Aquele que propõe a teoria falsificada pode questionar a validade da hipótese falsificadora e da sentença básica por ela sustentada. Isto é, ele pode questionar a teoria interpretativa à luz da qual o valor verdade da sentença básica foi estabelecido. Em suma, na versão sofisticada o problema muda da velha questão de recolocar uma teoria refutada por “fatos” ao novo problema de como resolver inconsistências entre teorias intimamente associadas. Qual das teorias mutuamente inconsistentes deve ser eliminada? Não há resposta fixa. Procede-se por tentativas, procura-se primeiro repor uma, depois outra, ou ambas, ob-servando qual dessas reposições providencia o maior aumento de conteúdo corroborado. Isso, segun-do Lakatos, o que caracteriza a Ciência como um jogo, embora sui generis.

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Estudo de caso: a Teoria da Ciência de Lakatos 121

Texto complementar(POPPER, 1980, p. 102-104)

Proporei uma doutrina da unidade de método, ou seja, a doutrina de que todas as ciências teoréticas ou generalizadoras se valem de um só método [...] Não pretendo afirmar que inexistam di-ferenças entre os métodos das ciências teoréticas relativas à natureza e à sociedade; estas diferenças são claras e se manifestam até mesmo entre as diferentes ciências naturais, bem como entre as di-ferentes ciências Sociais [...] Porém, os métodos usados nos dois campos são fundamentalmente os mesmos. A isso tem-se dado, por vezes, o nome de método hipotético-dedutivo ou, mais frequente-mente, o nome de método da hipótese, porque não nos dá certeza absoluta quanto a qualquer dos enunciados científicos que submete a teste [...] Relevante é compreender que, em ciência, estamos continuamente preocupados com explicações, previsões e testes, e que o método de submeter hi-póteses a testes é sempre o mesmo. Das hipóteses a serem submetidas a teste – por exemplo, uma lei universal – associadas a enunciados outros que, para o propósito agora em causa, não são havi-dos como problemáticos – por exemplo, algumas condições iniciais –, deduzimos uma prognose. Em seguida, e sempre que possível, confrontamos esta prognose com os resultados de observações experimentais ou outras. A concordância é havida como corroboração da hipótese, embora não como comprovação definitiva dessa hipótese; clara discordância é considerada como refutação, ou como falseamento da hipótese [...] O resultado dos testes é a seleção das hipóteses que resistiram a esses testes, ou a eliminação das hipóteses que a eles não resistiram e que serão, consequentemen-te, rejeitadas.

Atividades1. Leia o Texto complementar e aponte o que, em sua opinião, você concorda e o que você discorda.

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2. Examine as quatro crenças a seguir. Considere-as como teorias, e procure classificá-las de acordo com os seguintes critérios: a) se é falsificável ou não, isto é, se haveria evidência sugerindo forte-mente que são falsas; b) se é científica ou não, isto é, se você acha que a crença pode fazer parte do sistema de crenças dos cientistas. Compare depois com a de outros dois colegas.

a) O Universo foi criado por Deus.

b) Muitas doenças são causadas por bactérias e vírus, de forma que, se formos capazes de eli-miná-los, eliminaremos essas doenças.

c) Todas as pessoas têm direitos iguais, independente de gênero, raça ou credo.

d) Uma explicação adequada para o fenômeno do suicídio encontra-se antes no ambiente social do que na psique do indivíduo.

3. Na mesma linha da atividade 2, procure, junto com um colega, relacionar 5 crenças de tipo geral que vocês acham que podem ser falsificadas, explicando a razão de sua opinião.

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