EPISTEMOLOGIA RACIONALISTA E ENSINO DE CIÊNCIAS NO CONTEXTO CRÍTICO ATUAL VALMIR SBANO.pdf
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EPISTEMOLOGIA RACIONALISTA E ENSINO DE CINCIASNO CONTEXTO CRTICO ATUAL
RATIONALIST EPISTEMOLOGY AND SCIENCE EDUCATION
IN THE CURRENT CRITICAL CONTEXT
Valmir Sbano
UFF/ Departamento de Psicologia, [email protected]
RESUMO
No ensino das cincias que praticamos hoje um ensino coparticipativo, crtico e devalorizao dos diversos saberes sociais h lugar para o aspecto racionalista doempreendimento cientfico. O racionalismo cientfico herdeiro e continuador de uma
grande aventura racional iniciada na Grcia Antiga. Na cincia, a razo no se limita aum rigor fiscal exercido a posteriori da percepo e de postulados j dados. Asrefundaes inditas operadas pela cincia so aes de um plural racionalismo quesempre necessita ser, a um s tempo, educador e aprendiz, formador e formando quanto aos fatos e quanto aos falantes. Mesmo o ensino de cincia no podendo servirde modelo para toda forma de ensino, mesmo a cincia no sendo sua prpriaempreendedora, pois esta prerrogativa cabe antes aos interesses sociais, a epistemologiada racionalidade cientfica tem algo a oferecer ao ensino de cincias.
Palavras-chave: ensino de cincias, epistemologia, racionalismo.
ABSTRACT
In the science education practiced these days a collaborative and critical education,which recognizes different social knowledgethere is room for the rationalist aspect ofscientific project. The scientific rationalism is heir and successor of a great rationaladventure started at Ancient Greece. In science, the reason is not limited to a fiscalrigidity executed after the perception and the assumptions already established. Theoriginal refoundations performed by science are actions of a plural rationalism, whichmust always be, at the same time, educator and learner, instructor and student regarding both facts and speakers. Even though science education cannot be used as arole model for any type of education, even though science is not its own developer, assuch prerogative belongs to social interests, the epistemology of scientific rationalityhas something to offer to science education.
Key words: science education, epistemology, rationalism
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Qual o legado racionalista cabvel a um ensino crtico, social e participativo
das cincias, i.e., ao ensino de cincias que praticamos hoje? Como a epistemologia da
racionalidade cientfica pode nos socorrer na tarefa atual do ensino de cincias?
Foi chamada de milagre grego a emergncia da Razo na antiguidade grega
(VERNANT, 1973). Boa ou m designao para o fato, tal expresso tentou destacar o
ineditismode um discurso que, aparecendo na cidade grega antiga, na plis, distinguiu-
se dos demais discursos da sua poca, e de todas as pocas anteriores, por no se
amparar mais nas certezas dos mitos, e nem se sustentar como mais uma posio
opinativa, doxa, na disputa, polemos, da cidade (CHTELET, 1972). Aqueles que
assistiram pela primeira vez uma tentativa de busca de conhecimento, episteme, pelo
uso do raciocnio dedutivo, da razo, sustentada marcadamente por Scrates,perceberam estar diante de um discurso heterogneo, novo, com uma visada indita e
autoridade nova. Scrates nem recorria a autoridade dos mitos, dos deuses, nem emitia
novas opinies na cidade, mas demonstrava (!), com um indito dizer dedutivo (!), que
faltava sustentao racional s opinies correntes, indistintamente, tradicionais e novas.
Isto, demonstrar, deduzir, que no se sabe, quando se pensa que se sabe, era algo
inteiramente novo!
Sua condenao morte (GOTO, 2010), por, supostamente, 1. no reconhecer
os deuses, 2. adorar novas divindades (?) e 3. corromper a juventude, atestou
posteridade: 1. o reconhecimento do ineditismo desse novo dizer, e o que ele tinha de
chocante por isso; 2. que seus contemporneos perceberam, ao seu jeito, como a razo
socrtica se autorizava de um outro princpio; 3. que a razo de Scrates era um ensino
envolvente, um sucesso pedaggico, ainda que, talvez, resultando num fracasso pessoal
e poltico...
Scrates, que foi um personagem histrico, mas no um autor, tornou-se
clebre, principalmente, pelos dilogos de autoria de Plato. E se Scrates chamava esse
seu procedimento de maiutica, que tem o sentido de parturio, de obstetrcia da
verdade e do conhecimento, Plato designou este procedimento de dialtica, termo que
quer dizer algo como atravsdo que se diz. Os dois termos tentam chamar a ateno
para um trao distintivo desse novo procedimento do dizer, por oposio doxamtica
ou doxa polmica, orto ou heterodoxa. Na maiutica e na dialtica no se trata de
acrescentar ao interlocutor, vindo de fora, nenhum termo, nenhuma informao,
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nenhuma asseverao, nada acrescentar de fora ao seu dizer. Trata-se, sim, de extrair
dele, desdobrar, do prprio interlocutor, do dizer do prprio interlocutor, o
conhecimento, a episteme.
Ou seja, aquilo que depois ser chamado de razo j nasceu como uma forma
nova de ensino, um ensino que fazia o aprendiz falar, e falar sob uma referncia ao
mesmo tempo nova e internaao prprio aprendiz. Paradoxo tipicamente racional, como
repetiremos abaixo, entre o novo e o que j est a nas potncias internas do
pensamento.
Por exemplo, no dilogo platnico Mnon, Plato nos descreve como,
certa vez, Scrates teria feito um escravo, i.e., um homem no educado como os demais
cidados livres e senhores da cidade, realizar uma proeza. O escravo realiza a deduo
da incomensurabilidade da diagonal de um quadrado, relativamente aos seus lados
(FOWLER, 1987). Procedendo a perguntas que provocam a deduo, Scrates mostra
que o escravo inculto sabe a geometria que o melhor gemetra da Grcia sabia que
pode acompanhar tal demonstrao com a mesma experincia de certeza, a mesma
intuio pura que o gemetra. Ou seja, ele demonstra que a geometria e a razo se
sustentam de demonstrao racional, e no de mera adeso a uma crena, a uma
opinio, a um pertencimento de grupo, o grupo dos gemetras ou dos homens cultos. A
geometria pode ser deduzida, no um credo, no uma informao privilegiada, no
o resultado de uma experincia de vida, no uma senha de grupo. E ele demonstra que
a razo, ao encontrar algo, reencontra: j est com o escravo, de algum modo, o saber
da geometria. Se ele no o tem por uma educao de fato, ele o tem de direito, j em seu
esprito, i.e., na potncia intrnseca do seu pensamento. Este o ncleo reiterado ao
longo da histria da filosofia idealista e racionalista, como tambm da histria do
pensamento cientfico (KOYR, 1991): no uso da razo, o pensamento vem a saber
como quem j sabia; vem a descobrir como quem se redescobre em sua descoberta
quando aprende, v que j sabia; quando ensina, v-se aprendendo.
Nossas mentes e nossa cultura de sculo XXIpor sculos alimentadas
e habituadas com os produtos da razo, no Direito, na Matemtica, na Lgica, na
Cincia e na Tecnologia podem, adormecidas, deixar de se espantar e at mesmo de
perceber a emancipao originaloperada no passado histrico, e que se opera a cada
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coisas, partir da observao, do objeto, quem sabe, no mximo, partir das utilidades
das coisas? No deveramos, nesse caso, girar em torno do objeto (como expressou
Kant), ao contrrio de girarmos em torno de nosso intelecto? Em que a matemtica
poderia nos guiar, nos fazer conhecer, tratando-se de um tal conhecimento sobre coisasda experincia?
Ainda hoje, a epistemologia ingnua, aquela que a de todo falante antes do
estudo epistemolgico da histria das cincias, nos diz que a cincia, fsica ou qumica,
um conhecimento que parte da observao dos fenmenos, e que submete essa
observao a um rigor lgico-matemtico a posteriori.
Vejam o que diz uma obra universitria de ensino de jornalismo cientfico,
intitulada o que a cincia?. No se trata de um texto escrito para crianas, apesar de
nossa leitura parecer sugerir isso, nem obra que desconhea certas referncias eruditas
de histria das cincias e de epistemologia. O que aparentemente no fez diferena.
Vejam (os negritos, i tlicose sublinhados de destaque so nossos):
A cincia moderna surgiu no sculo XVII durante o perodo doIluminismo e baseada em fatos observveis. A cincia compara osfatos com a realidadepor meio de experimentos. Por isso, a cincia precisade laboratrios e ferramentas para estudar tudo, da mais minscula partcula
ao universo inteiro. A cincia estabelece metodologias rigorosas cominstrumentos confiveis para acumular evidncias com as quais podecomprovar ou refutar uma hiptese. A cincia avalia suas prpriasmetodologias e reexamina suas prprias provas. Em condies ideais, acincia experimental independente da pessoa que faz a observao ou oexperimento. Ela objetiva e est em concordncia com a realidadeobservada e outros conhecimentos comprovados. A cincia ideal forneceresultados claros, lgicose isentos de ambiguidade. Sua validade pode serverificada ou refutada usando argumentos e razo . Resultados cientficosdevem sobreviver a testes duros e meticulosos. Isso racionalidade cientfica.A cincia moderna deduz a verdade a partir de fatos verificados pelaexperimentaometdica. Experimentos medemas coisas e os fenmenos,dizem quanto pesam, quanto tempo duram, em que direo esto indo etc.
Experimentos fornecem informaes matemticas
Certamente, uma beleza de texto comunicativo: desce como gua. Nele, a
racionalidade cientfica e a prpria matemtica s vm depois dos fatos observados. A
racionalidade, o rigor, a lgica e a matemtica vm depois; vm somente fiscalizar o
bem observado, fiscalizar o registro dos fatos, zelar pelo bom tratamento desses dados,
fornecidos pela observao e pelos experimentos, compatibilizar esses resultados com
os conhecimentos j comprovados; vm dar rigor e registro depois de eles, os fatos, os
dados, emergirem j de uma atenta e meticulosa observao. Racionalidade de escrivo,de contador, de fiscal, de jornalista srio e isento. Racionalidade bedel, correndo atrs
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dos fatos. Nem se desconfia neste texto, que uma racionalidade faa constituir os
prprios fatos; nem se desconfia que ela conceba, por conceitos, os fatos a serem
conhecidos; que ela d aos fatos sua prpria facticidade, sua prpria realidade tcnica.
Nem se desconfia que a razo possa realizar um recorte inteiramente original esubversivo nas premissas anteriores a ela (e no somente em fatos), fazendo assim
emergir fatos que nunca antes tinham se apresentado aos nossos olhosde carne para
serem observadosou fatos que nunca antes tinham sido discriminados como tais.
Vemos o papel dado aos instrumentos e tecnologia. So eles que ligaro os
fatos racionalidade. Eles que permitiro faz-lo, dando exatido s mensuraes,
pesagens, delineamento das direes, etce tais operaes de mensurao e registro, ao
lado das meticulosas, zelosas fiscalizaes metodolgicas, so tomadas como asprincipais operaes cognitivas cientficas. Vemos o papel dos experimentos, realizados
com tais instrumentos e tecnologia: so eles que daro informaes matemticas.
O liame entre cincia e matemtica, no texto lido, s aparece a ao final: os
experimentos daro informaes matemticas. As matemticas aparecem como
informaes colhidas, dadas pelos experimentos e seus instrumentos. A razo
matemtica (do cientista e do aprendiz de cincia) assiste ao aparecimento do resultado
matemtico (numrico, algbrico ou geomtrico) ao fim dos experimentos ela
passiva como uma expectadora de televiso, de programas de TV realizados pela
observao e pela tecnologia dos experimentos.
Nesta concepo, que sempre a nossa quando repousamos sobre o empirismo
e o aspecto externo da cincia, a matemtica no mximo (se que chega a tanto) uma
linguagem de coleta de resultados experimentais; enquanto a epistemologia e a histria
das cincias convidaro nossa apreciao a v-la (a matemtica) como a mestra ginasta
da cincia, suapersonal trainer.
O cientista, nesta concepo, um funcionrio de alfndega, na fronteira entre
os fatos que chegam do pas da realidade pelo porto da observao, carimbando sua
entrada no pas dos registros claros, lgicos e matemticos. quase um contador de
ovelhas factuais que passam pela cancela dos instrumentos experimentais, sendo ento
registradas.
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At as hipteses, que so propriamente formulaes posteriores e geradas de
conceitos, somente so mencionadas aps a observao dos fatos e dos experimentos.
Em 2001, pde-se listar pelo menos 120 artigos, dos 30 anos anteriores,
escritos por professores universitrios de ensino de cincias, em que esta viso
meramente escriturria da racionalidade cientfica, e de comando empiricista da
observao, prevalece na apresentao do que seja fazer cincia (PREZ, 2001).
Koyr (1986) nos explicou porque foi to difcil a aposta socrtica e platnica
ser feita no terreno da fsica: nossa percepo, tal como a fsica de Aristteles, v nas
coisas e nos fatos fsicos uma alteridade para o pensamento. Uma realidade estranha
nossa racionalidade. E uma realidade que se comunica diretamente conosco pelos
sentidos, ou no se comunica. Enquanto a aposta da cincia moderna a mais ousada
aposta da razo desde a Grcia. a aposta de que o real ceder conhecimento na medida
em que seja abordadonos termos da razo.
Galileu, logo seguido por Newton, props olhar o fenmeno do movimento
fsico a partir de uma verso ou subverso da realidade que no est dada na realidade
que vemos com nossos olhos de carne, ou seja, o espao geomtrico. A aposta racional
a de que um corpo no para seu movimento, parado pelo atrito, pela resistncia doar, por algo, mas no para... por princpiono para. Ele se comporta realmente, diz a
aposta racional, como se estivesse num espao geomtrico, no importa o que meus
olhos de carne me digam. E depois de dois compactos sculos de escolarizao
cientfica, achamos que vemos o corpo sendo parado pelo atrito, pela resistncia do ar
mas no o vamos antes dessa matematizao da fsica s o vemos hoje por
influncia desta matematizao difundida pela escola e pela cultura, ainda que essa
difuso tenha a marca da precariedade formal.
Demorou, custou muito fazer ver as coisas numa perspectiva ou enquadre
concebidos em pensamento, e no recebidos pelos olhos. Um enquadre forado,
portanto, historicamente forado, forado para que se pudesse expandir a razo, a
deduo e a previso, para o mundo das coisas, mundo dos objetos, e no das meras
ideias. Custou muito convencer o homem que ele podia ser o autor e o ator, digamos
assim, do seu conhecimento fsico, sobre as coisas, sobre os fatos, que ele no teria que
permanentemente padecer, meramente receber esse conhecimento, ou simplesmenteatuar como um escrivo meticuloso do que primeiramente recebe perceptivamente,
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como os monges da Idade Mdia. Na verdade, psicologicamente, nunca estamos
plenamente convencidos disso. A epistemologia racional sempre esquecida pela
psicologia realista do dia a dia. E at a cultura e a escola, do dia a dia, passam a
esquecer a operao racional que realiza o trabalho cientfico.
Bachelard (1996), recorrendo histria das cincias, mostrou-nos que,
psicolgica e historicamente, vemos as coisas guiando nosso olhar sobre elas. Parece
que vemos o que vemos porque as coisas esto a para ser vistas. Parece que nossas
ideias so boas porque so verdadeiras e que so verdadeiras porque puderam, desde seu
nascimento perceptivo, refletir as coisas, como fazem os espelhos. A iniciativa primeira
a da realidade. Vejo e conheo porque h tal coisa para ver e para conhecer.
Chegamos at a acreditar que pela imaginao libertamo-nos dos objetos j vistos,libertamo-nos da percepo. Mas, pensamos a numa imaginao que sempre parte da
percepo, na medida em que foi precedida por ela. Enquanto a cincia propor que
nossa imaginao, que tem um belo papel nas cincias, seja guiada e alce voo a partir da
plataforma do pensamento racional formal.
Os fatos cientficos, como tais, no existem antes da cincia, e os objetos
cientficos no so colhidos ou recebidos por nossas percepes ou por ideias
imediatamente homogneas com elas; os fatos cientficos e os objetos da cincia no
esto presentes nos pensamentos anteriores formulao conceitual cientfica, que ,
pelo menos relativamente a esses enquadres j dados, uma atividade intelectual original
original porquepropriamente racional.
Lembremos de alguns exemplos de fatos que deixaram de exigir nossa
observaoaps a consolidao das descobertas cientficas.
Hoje, depois de dois sculos de compacta escolarizao cientfica, feita bem oumal, depois da instalao de uma cultura de massa atravessada por referncias
cientficas, quando somos convidados a pensar em eletricidade na natureza,
mencionamos usual e primeiramente os raios, as descargas eltricas atmosfricas.
No sculo XVIII (BACHELARD, 1996, ps. 29-56), porm, at mesmo 100
anos aps a obra de Newton se tornar pblicao que nos faria ingenuamente supor que
este esprito matemtico tomasse conta das publicaes e investigaes com pretenses
cientficas , ainda era possvel ler obras, algumas com a chancela de Academias de
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Cincias, tratando os fenmenos eltricos a partir depercepes muito tradicionais, que
hoje, entretanto, podem nos soar bizarras. Um homem culto do sculo XVIII ainda via a
eletricidade como 1) um fenmeno propriamente animista, ligada vida, 2) uma
potncia exclusiva de algumas substncias, 3) inseparvel de seu efeito subjetivo emhomens e mulheres dificilmente uma obra falava de eletricidade sem gastar longos
captulos sobre o medo provocado por eles, particularmente em mulheres e, mesmo,
4) a fora por trs dos terremotos. Isso mesmo, para a percepo anterior difuso da
cincia do sculo XIX, um terremoto era um fenmeno to ligado eletricidade quanto
um raio, pois ambos causam tremor! Em alguns experimentos cientficos relatados em
tais obras, comprovava-se essa ligao fenomenolgica, fazendo uma corrente eltrica
passar por baixo de uma superfcie, sobre a qual uma pequena cidade em maquete sealojava. A passagem da eletricidade produzia a queda das casas e edifcios, e via-se
nisso uma evidncia ou indcio de confirmao do que j se percebia.
Como se praticavam, neste cenrio, guiado pela percepo, os experimentos
sobre eletricidade? Dando choque eltrico em filas de pessoas. Nada mais natural, j
que eletricidade era concebida, porque percebida, como vivacidade, o tremor da vida!
Este termo, vivacidade, em algumas obras era proposto como seu sinnimo. Como o
choque eltrico seria transmitido em uma cadeia de homens e mulheres? Experimentos.E... em uma cadeia de eunucos? Experimento!
No so obras e experimentos produzidos por lunticos, por primitivos, por
excludos da escola e localizados nas periferias do mundo desinformado. No. So
obras e experimentos produzidos no corao da Europa, por homens cultos, que se
creem cientistas porque fazem experimentos conformes ao saber homogneo s
percepes. E que j tinham lido Newton e o Iluminismo, alm, claro, de Aristteles,
So Toms, etc.
So obras da percepo. E de ideias j guardadas, por hbito e amor a ideias
cotidianas.
Nossa percepo nos sugere, com aquela irresistvel fora indutiva que ela e as
fceis ideias compartilhadas tm sobre ns, que: A) o sistema decimal existe porque
temos dez dedosenquanto a fundamentao da matemtica nos ensina que contamos
sucessivamente a partir do zero, o que faria do 9 o dcimo nmero natural(ALVARADO, 2006); B) a vida, uma espcie de fora ou energia, responsvel
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pelas organizaes biolgicas; algo que anima por dentro a carcaa de cada
organismo; o que h em comum entre uma minhoca e uma guia enquanto a
biologia darwiniana nos diz que elas compartilham sim uma histria evolutiva,
desdobrada pelo jogo de mutaes ao acaso e da seleo natural, nicos fatores ltimosresponsveis pelas organizaes biolgicas; C) alguma substncia flogstica
combustvel de uma pea est por trs da queima desta pea (os de Qumica sabem o
que estou mencionando aqui), enquanto Lavoisier introduziu o oxignio e o conceito de
sistema fechado; D) Etc.
No , repetimos esta nuance, somente nossa percepo que faz obstculo a
essa aposta de racionalidade realizada pela operao intelectual cientfica. Todo saber j
sabido, tambm o faz. E inclusive o saber cientfico depositado em memria, em obra jfeita. De modo que a inquietude racionalista da cincia vale como uma nova inquietude
socrtica:por quais interrogaes racionais podemos questionar o bem fundado saber
que j sabemos, inclusive do saber cientfico que j sabemos?Se no se tratava de pr
Newton por terra, poderia se tratar de relativiz-lo? Se no se tratava de pr Euclides
por terra, poderia se tratar de abrir espaos no-euclidianos variando um dos seus
axiomas?
A histria recente da cincia, de Newton aos nossos dias, mostrou que a razo
ela prpria pode e deve se reinventar; pode se recriar e no tem nunca de si mesma uma
orquestrao central e total (ao contrrio do que pensava Kant BLANCH, 1967).
Mas a aposta da cincia, da modernidade contemporaneidade, continua a ser que,
abordado racionalmente, tomado pelo pensamento formal, o real cede conhecimento. E
o vetor inverso, se que existe, no produz o mesmo.
A aposta racional da(s) cincia(s) , ento, tripla:
1.Se h razo aqui, haver l e alhures; se h razo, haver
fenmeno (Mendeleev, guiado pelo formalismo grego da tabela peridica,
prev elementos qumicos que ainda no tinham sido descobertos
empiricamente (CARUSO & OGURI, 2006); Einstein sendo confirmado por
experimentos posteriores a sua morte; etc);
2.O real nos ceder conhecimento, se interrogado, manejado,
abordado, demarcado, reperspectivado pela razo;
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3.Para a razo, aposentadoria no um direito; descansar morrer;
as prprias conquistas cientficas transformam-se em obstculos
epistemolgicos; sua inteligibilidade precisa se metamorfosear para
continuar fecunda;
E, epistemologicamente falando, o vnculo da racionalidade cientfica com o
ensino de cincias ntimo. A cincia, podemos diz-lo aps tudo o que foi dito, ensina
formalismo e estrutura aos fenmenos. Galileu ensinou aos corpos a relatividade do
movimento. J dizia Scrates que no sabe quem no sabe ensinar o que sabe (e,
obviamente, estava falando assim do saber racional, pois h saberes outros que podemos
perfeitamente saber sem saber ensin-los).
A racionalidade cientfica tem uma relao ntima inclusive com o ensino
coparticipativo. Pois, ensinando aos fenmenos como eles devem se constituir, aprende
em seguida com eles ao se apresentaremeis o empirismo douto da cincia, como bem
o diria Bachelard. Aprendendo com seus fenmenos, a cincia aprende ao formar, e
com seus formandos.
A racionalidade da cincia ensina, socraticamente, ao cientista e ao aprendiz de
cincia que estesprecisam desaprender sua segurana de j cientes;que estes, quandoensinam de memria (repetindo o que guardam na memria) a si mesmos ou a outrem,
so professores preguiosos e autoritrios; que, ao contrrio, quando reanimam a
atividade intelectual racional, nica que realmente senhora do que diz, porque no o
diz por mero capricho do querer e do acreditar (seja o querer e o acreditar individual ou
o de grupo), protagonizam eles um ensino que convida a novos protagonismos de
ensino.
O ensino das cincias, luz do racionalismo cientfico, inspira-se no ensino dasmatemticas, assim como a cincia tomou a matemtica como sua inspirao. Um
ensino (o de matemtica) em que o aluno no recebe informaes, no convidado a
guardar coisinhas na cabea, mas realiza junto com o professor as operaes; junto ou
at adiante do professor, antecipando-as. A razo no tem dono, no a vitria de
ningum, na mesma medida em que pode ser a de qualquer um. Inclusive do escravo.
Porm, grande porm,talvez, por isso mesmo, jamais haver cincia para tudo;
pois... a histria parece nos dizer que h e haver, irremediavelmente, o querer e o
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acreditar de indivduos e grupos, que h e haver vencidos e vencedores. E, por isso,
talvez, ao menos, devamos considerar que o ensino de cincias no pode servir de
modelo para os demais ensinos. E que, reciprocamente, talvez haja peculiaridades
prprias ao ensino de cincias que o distinguem dos demais ensinos.
O ensino de lnguas, de literaturas, de msica, de histria, de filosofia, entre
outros, no so ensinos menos importantes do que o ensino de cincias tal afirmao
dispensa demonstrao. E, certamente, no tm as mesmas relaes com a
epistemologia cientfica. Por exemplo, levar a noo de ruptura epistemolgica com o j
sabido para o seio de outros ensinos, por exemplo, o ensino gramatical da lngua, no
nos pode nortear em nada, nem em relao ao que romper, nem em favor do que romper
(a gramtica no e nem pretende ser uma cincia), resultando nesse caso muito maisem uma desqualificao do falante espontneo (e do aluno, ento) em nome de uma
suposta ruptura epistemolgica(inadequadamente importada a contexto que no lhe
prpria); absurdo educativo e at lingustico, pois o falante espontneo, qualquer
falante, , quanto a sua lngua, o juiz de ltima instncia, o STF da lngua (MARTINET,
1975).
E tais ensinos no so menos importantes tambm porque o prprio trabalho da
cincia no se faz em um platnico Mundo de Ideias, mas no mundo de disputas,
polemos, histricas e sociais. Essas disputas e decises e interesses polmicos, nesse
sentido etimolgico da palavra, ou simplesmente interesses sociais, podem se utilizar da
cincia e dar uma direo ao trabalho cientfico. E devemos dizer bem mais do que
apenas que tais interesses se utilizam da cincia: so os interesses sociais que,
concretamente, empreendema cincia. A cincia, justamente por ser uma obra racional,
cada vez mais feita atravs do dilogo ou trocas no interior de uma imensa
comunidade cientfica, que, como qualquer comunidade, requer infraestruturas
socioeconmicas para se organizar, que a poltica dispe para ela ou no dispe, dispe
para certas pesquisas e no para outras.
Embora no seja difcil entender este papel precedente dos interesses sociais no
empreendimentoda cincia (muito menos difcil do que entender o papel da razo na
realizao da cincia), certamente pode ser bem difcil tolerar, aceitar e sustentar as
consequncias ticas de seu descortinamento. Enfim, sem abrir outra discusso, cabe
aqui simplesmente assinalar que o aspecto racional da cincia no o nico que
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Ensino, Sade e Ambiente V9 (1), pp. 108-121, Abril, 2016.
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comanda o trmite efetivo da cincia. E, em se tratando de trmite efetivo, talvez nem
seja o primeiro... (GERMANO, 2011).
Julgamos apenas que ele, o aspecto racional da cincia, interessa a quem vai
ensinar cincias, fornecendo nuances, perspectivas, horizontes, recursos, saboresneste
trabalho to difcil que o trabalho do ensino.
Por fim, cabe indicar sumariamente o que no cabe na discusso atual em
epistemologia:
- no cabe trabalhar com a noo nica de cincia, tipo A cincia; pois o
trabalho cientfico reinventando sua prpria racionalidade, diversificou-a; no interior da
prpria Fsica h Fsicas, etc... Mais vale, neste ponto, sermos vagos, dizendo acincia(como equivalente de a/as), do que totalizantes (A cincia).
- no cabe, assim, epistemologia tentar, como porm j tentou, criar um selo
de garantia e autorizao, do que e do que no cincia, entre as diversas tentativas de
constituir cincias; h vrias razes, tanto intelectuais, como polticas (polmicas),
como poltico-intelectuais que o contraindicam... alm de recairmos num enquadre que
a cincia, em seu movimento intelectual de se reinventar, pode/deve precisamente fazer
explodir...
- no cabe excluir de uma discusso epistemolgica mais ampla todo o leque
de relaes entre cincia e seus efeitos na cultura, cincia e condies histricas ou
polticas de produo de cincia, cincia e tica, cincia e limites ticos para a cincia,
cincia e cientificismo, cincia e poder, cincia e feminismo, etc...
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