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5910187 – Biofísica II – Antônio Roque – Equilíbrio e potencial de Nernst
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Equilíbrio e o Potencial de Nernst
Nesta aula, vamos utilizar a equação para o modelo de eletrodifusão no equilíbrio
obtida na aula passada para estudar o transporte iônico através de uma membrana
celular numa situação de equilíbrio.
Vamos supor que a membrana separa os lados interno e externo da célula e que
esses dois lados contêm soluções iônicas com concentrações do íon n iguais a,
respectivamente, inc e e
nc . A densidade de corrente associada a esta espécie iônica
é Jn. O modelo está ilustrado na figura abaixo.
O potencial de membrana será definido como
)()0( dVVVm −= , (1)
isto é, como a diferença entre o potencial do lado de dentro e o potencial do lado
de fora da célula.
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Como visto na aula passada (eq. 34), no equilíbrio eletrodifusivo para os íons da
n-ésima espécia iônica, Jn = 0, a equação de Nernst-Planck torna-se:
ln cn (x)cn (x0 )!
"#
$
%&= −
znFRT
V (x)−V (x0 )( ) . (2)
Podemos reescrever a equação acima como:
ln cn (x)cn (x0 )!
"#
$
%&=
znFRT
V (x0 )−V (x)( ). (3)
Identificando x0 = 0 e x = d nesta equação, temos:
( ))()0()0()(ln dVV
RTFz
cdc n
n
n −=⎟⎟⎠
⎞⎜⎜⎝
⎛. (4)
Como esta equação vale apenas para o equilíbrio, vamos chamar a diferença de
potencial entre o interior e o exterior da célula neste caso de Vmeq:
Vmeq =V (0)−V (d). (5)
Portanto, a equação (4) nos diz que, no equilíbrio, o potencial de membrana da
célula é dado por:
Vmeq ≡
RTznF
ln cn (d)cn (0)"
#$
%
&'. (6)
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Vamos assumir que nas interfaces da membrana com as soluções interna e
externa temos a seguinte relação,
en
nin
nn c
dccc
k)()0(
== , (7)
onde kn é o coeficiente de partição do íon n na interface entre a membrana e a
solução. Usando esta relação, temos que )())0()(( in
ennn cccdc = , de maneira que a
equação (6) pode ser reescrita como:
Vmeq ≡
RTznF
ln cne
cni
"
#$
%
&'. (8)
Definindo o potencial de Nernst do íon n como
En ≡RTznF
ln cne
cni
"
#$
%
&', (9)
temos que a equação (8) nos dá,
En =Vmeq. (10)
Portanto, quando há equilíbrio no fluxo da n-ésima espécie iônica, o potencial de
membrana deve ser igual ao potencial de Nernst do íon n. Por isso o potencial de
Nernst do íon n é também chamado de potencial de equilíbrio para a n-ésima
espécie iônica. Ele determina o valor do potencial de membrana para o qual o
fluxo líquido dos íons da espécie n através da membrana é nulo.
Para entendermos como o potencial de equilíbrio de Nernst pode ser gerado,
vamos considerar uma situação como a mostrada na figura a seguir.
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Imaginemos uma cuba contendo uma solução eletrolítica separada em dois
compartimentos por uma membrana permeável apenas ao íon n. Por simplicidade,
vamos assumir que o íon n tem valência positiva. Vamos supor que a
concentração deste íon é maior do lado 2 do que do lado 1.
Em t < 0, a membrana está envolvida por uma partição impermeável que não
deixa passar o íon n. Em t = 0, retira-se essa partição e a solução dos dois lados
fica em contato com a membrana. Porém, apenas os íons n podem fluir pela
membrana (existem outras espécies iônicas, que não podem passar pela
membrana, mas que fazem com que a carga líquida dos dois lados da membrana
seja nula).
Como existem mais íons do tipo n do lado 2 da membrana, inicialmente haverá
um fluxo iônico difusivo do lado 2 para o lado 1. Já que os íons passando pela
membrana têm carga positiva e, em t = 0 , as duas soluções estão neutras, este
fluxo inicial irá levar a um acúmulo de cargas positivas do lado 1 e deixará um
excesso equivalente de cargas negativas do lado 2.
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Como, supostamente, as soluções dos dois lados da membrana são boas
condutoras elétricas, esses excessos de carga irão rapidamente se distribuir ao
longo dos dois lados da membrana, gerando uma configuração como a mostrada
na figura para t > 0.
A separação de cargas entre os dois lados da membrana gerará um potencial
elétrico através dela, com o lado 1 estando a um potencial positivo em relação ao
lado 2.
Uma vez gerado, esse potencial elétrico irá dificultar o fluxo dos íons positivos do
lado 2 para o lado 1. Porém, ainda assim continuará a haver fluxo líquido de íons
do tipo n do lado 2 para o 1. Este fluxo só será zero quando o acúmulo da cargas
positivas do lado 1 (e o acúmulo equivalente de cargas negativas do lado 2) for tal
que o valor do potencial gerado impeça um deslocamento líquido de partículas.
Este valor particular do potencial através da membrana é o potencial de Nernst En
para o íon n.
Este exemplo nos diz que, para íons de valência positiva, como é o caso do
exemplo, o potencial de Nernst gerado é tal que o lado com menor concentração
do íon fica a um potencial mais elevado do que o lado com maior concentração do
íon.
Por outro lado, para íons de valência negativa, o lado com maior concentração do
íon deve ficar a um potencial mais elevado.
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Podemos verificar isto olhando para a tabela abaixo, que dá os valores das
concentrações de alguns íons e dos seus respectivos potenciais de Nernst para o
axônio gigante da lula, a 20°C. Considerando que o valor do potencial é tomado
como o valor no interior da célula menos o valor no exterior, os dados da tabela
(os sinais dos potenciais) estão consistentes com a análise feita acima.
Dentro
(mM)
Fora
(mM)
Potencial de Equilíbrio
(Nernst)
K+ 400 20 −75 mV
Na+ 50 440 +55 mV
Cl- 40-150 560 −66 a −33 mV
Ca2+ 0,4x10-4 10 +145 mV
No processo de geração do potencial de equilíbrio para o íon n dado no exemplo
acima, uma quantidade líquida de íons do tipo n foi transferida do lado 2 para o
lado 1 da membrana. Podemos estimar o número de íons por unidade de área que
teve que ser transferido para gerar um potencial de equilíbrio da ordem do medido
para uma célula típica.
Note que o acúmulo de carga de um sinal de um lado da membrana e de carga do
sinal oposto do outro lado faz com que a membrana se comporte como um
capacitor.
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Se a capacitância por unidade de área da membrana for Cm e o potencial elétrico
de equilíbrio for En, o excesso de carga acumulada na membrana por unidade de
área da membrana é
Qm =CmEn. (11)
Um valor típico medido experimentalmente para a capacitância por unidade de
área de membranas de células é Cm ≈ 1µF/cm2.
Usando En ≈ 100 mV, a equação (11) nos dá que Qm ≈ 0,1 µC/cm2.
Com este valor, podemos estimar o número de moles do íon n por unidade de área
que se deslocou através da membrana para gerar o potencial En.
Lembrando que znF é a carga de um mol de íons da espécie n, o número
deslocado de moles do íon n por unidade de área é (supondo que o íon n tem
valência unitária, zn = 1, e usando F ≈ 105 C/mol):
Nn =Qm
znF≈1 pmol/cm2.
Este é um número de moles bem pequeno.
Um valor típico para a concentração de uma espécie iônica n em solução
biológica é cn ≈ 10−4 mol/cm3.
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Considere um volume cilíndrico de solução com área da base igual a 1 cm2 e
comprimento l. Supondo que cada seção reta desse cilindro tenha densidade de
moles do íon n por unidade de área igual a 1 pmol/cm2, o valor do comprimento l
do cilindro para que a concentração molar da espécie iônica n no seu interior seja
cn = 10−4 mol/cm3 pode ser calculado como:
lcn = Nn ⇒ l = Nn
cn=10−8 cm = 1 Å.
Portanto, basta que uma pequena pastilha cilíndrica de solução, com área de 1
cm2 e espessura de 1 Å, contendo íons da espécie n seja transferida de um lado
para o outro da membrana para carregá-la de modo a provocar uma diferença de
potencial de 100 mV.
Os fisiologistas costumam escrever o potencial de Nernst para o íon n, equação
(9), em termos do logaritmo da razão das concentrações na base 10. Adotando
este costume aqui, temos que:
⎟⎟⎠
⎞⎜⎜⎝
⎛=⎟⎟⎠
⎞⎜⎜⎝
⎛= i
n
en
nin
en
nn c
ceFz
RTcc
FzRTV 10
10
loglog
ln . (12)
Substituindo os valores R = 8,31 J.K-1.mol-1, F = 9,65 x 104 C/mol e T = 273,15 +
tc, onde tc é a temperatura em graus centígrados, temos que, a uma temperatura de
20 ºC, RT/F ≈ 0,0252 J/C. Lembrando que 1 V = 1 J/C, RT/F = 0,0252 V = 25,2
mV. Como 43429,0log10 =e , RT/(F log10e) ≈ 58 mV.
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Portanto, podemos escrever
Vn =58 mVzn
log10cne
cni
!
"#
$
%&. (13)
Se a razão entre as concentrações do íon n dentro e fora da célula for 10, o
potencial de equilíbrio de Nernst vale (58/zn) mV.
Já se a razão for igual a 100, o potencial de equilíbrio vale (116/zn) mV.
E se a razão entre as concentrações for igual a 0,01, o potencial de equilíbrio vale
(−116/zn) mV.
Em geral, as razões entre as concentrações iônicas dentro e fora das células estão
na faixa entre 0,01 e 100. Portanto, os cálculos feitos acima explicam porque, em
geral, os valores do potencial de Nernst estão em torno de ±100 mV.
Quando a temperatura for 37 ºC (a temperatura do corpo humano), o mesmo
raciocínio acima nos dá que:
Vn =62 mVzn
log10cne
cni
!
"#
$
%&. (14)
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Usando (13) e (14) pode-se calcular o potencial de Nernst para os íons e as
células dadas na aula passada (veja a tabela a seguir):
Íon Dentro (mM)
Fora (mM)
Potencial de Nernst
dentro
foraN c
czFRTV ln=
Músculo de sapo T = 20°C K+ 124 2,25 mV101
12425,2log58 −=
Na+ 10,4 109 mV594,10
109log58 +=
Cl- 1,5 77,5 mV995,15,77log58 −=−
Ca2+ 4,9 2,1 29 log 2,14, 9
= −10, 7mV
Axônio de lula T = 20°C K+ 400 20 mV75
40020log58 −=
Na+ 50 440 mV5550440log58 +=
Cl- 40-150 560 mV33 a 6615040
560log58 −−=−
−
Ca2+ 10-4 10 mV1451010log29 4 +=−
Eritrócito humano T = 37°C K+ 150 5,35 62 log 5,35
150= −89, 7mV
Na+ 12-20 144 62 log 14412− 20
= +53 a + 67mV
Cl- 73,5 111 −62 log 11173,5
= −11mV
Ca2+ 10-4 6,4 31log 6, 410−4
= +149mV
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Nesta aula vimos que o potencial de equilíbrio através da membrana de uma
célula quando apenas um tipo de íon pode passar por ela é dado pelo potencial de
Nernst, Vmeq = En. O potencial de Nernst é o potencial de membrana para o qual a
corrente líquida desse íon através da membrana é zero.
Uma coisa importante a ser notada é que a expressão para o potencial de Nernst
(equação 9) não depende de como os íons da espécie iônica n se movem através
da membrana, mas apenas das concentrações desse íon dos dois lados da
membrana. Em outras palavras, o potencial de Nernst não depende da forma
como a corrente iônica In da espécie iônica n varia com o potencial de membrana
Vm.
Quando mais de um tipo de íon pode passar através da membrana a situação é
bem mais complicada e o potencial de membrana de equilíbrio, aquele que gera
corrente total através da membrana igual a zero, não é mais associado a correntes
líquidas nulas para íons individuais.
Por exemplo, pode ser que a corrente líquida dos íons da espécie n seja diferente
de zero e o equilíbrio exista porque a corrente líquida dos íons da espécie n’,
também diferente de zero, cancele exatamente a corrente líquida dos íons da
espécie n. No caso geral, quando há correntes de íons de várias espécies
diferentes (n, n’, n’’, etc), a corrente total torna-se nula por uma combinação
particular de correntes não-nulas de todas as espécies iônicas e não existe uma
expressão geral que permita determinar o potencial de equilíbrio para este caso.
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O que se costuma fazer neste caso é adotar algum modelo para como as correntes
iônicas In dependem do potencial de membrana Vm e usar esse modelo para obter
uma expressão para o potencial de equilíbrio. Portanto, a expressão para o
potencial de equilíbrio será dependente do modelo de corrente iônica adotado.