Erilene Firmino - UFC

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Erilene Firmino Jornalista

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evistcen revista

Entrevista com Erilene Firmino, dia 23 de junho de 2016.

Kamylla - Para começar, a gente quer sa-ber um pouco sobre a sua infância: conte-nos qual o momento mais marcante da infân-cia. Sabemos que você vem de uma famíliahumilde ...

Erilene - Eu não tenho, especificamente,uma imagem forte da minha infância. Tenhocenas, situações, nada muito ... Eu consideroque a minha primeira infância, que eu mes-mo divido, vai desde quando eu me entendopor gente até mais ou menos os dez anos, 12anos, quando eu vivi na casa onde eu nas-ci. Então, aquela primeira casa, que era lá naVila Pery (bairro de Fortaleza, no Ceará), euacho que toda ela, toda aquela casa, tudoque a gente viveu ali, de certa maneira, mar-ca a minha infância. Era quando a gente achaque pode tudo, e lá tinha jardim ... O murode trás (da casa) dava para um sítio, o sítiodo doutor Pontes. Esse primeiro nome ... Eununca descobri que doutor Pontes era esse.Dessa primeira infância, tem a história dessesítio que era atrás da nossa casa e tinha es-sas brincadeiras de rua e de ficar no meio darua brincando. Não tenho nenhuma lembran-ça que diga que fui feliz ou fui infeliz. Eu seique hoje, muito do que eu sei, todas as vezesque eu volto na memória, é para aquele mo-mento, talvez por isso que não tem uma coi-sa específica. Nós éramos sete irmãos. Eraum casal, o pai (José Maciel) e mãe (MariaJosé, mais conhecida como $uzete) e setefilhos (Erilene, Lúcia, José Alberto, Erineide,conhecida como Lêda, José Maciel, Eliete,apelidada de Lia e Ana Cristina). Então, foiuma infância tranquila, de muita brincadeirae muita tranquilidade.

Meus pais vieram do interior; na época,era interior, hoje é Maranguape (cidade), queé Região Metropolitana (de Fortaleza), e Ba-turité (município localizado a mais de 90 kmde Fortaleza). Na época, tudo era longe e elesvieram para cá fugindo da seca. E, aqui, nóstínhamos essa vida de simplicidade, mas eunão me dava conta dela. Não me dava contade que eu era filha de pessoas que tinhamum menor poder aquisitivo. Foi uma infânciafeliz, tranquila, e as minhas memórias, tudoque eu tenho de sentimento, tanto imagens,situações gostosas, boas, de sensações, desaudades, eu sei lá... Todo sentimento deingenuidade, de entrega, de acreditar, é da-quele tempo. Então, eu acredito que era uma

coisa mais geral; por exemplo, o que tinha na-quela época e não tem hoje (era que), comonós erámos sete, os mais velhos iam cuidardos mais novos. A mãe cuidava da casa, opai passava o dia fora trabalhando e os filhosmais velhos cuidavam dos mais novos. Hoje,a minha irmã mais velha (Lúcia) tem oitoanos de diferença de mim, mas, depois que agente fica adulto, fica tudo igual, nivela tudopor cima. Hoje, eu estou mais velha igual atodos os mais velhos. Mas, naquela época,eu era mais nova mesmo. Tinham uns maisvelhos como essa de oito anos, aí vinha umacarreira: tinha meu irmão José Alberto, seteanos mais velho que eu. Tinha minha irmãEliete, de cinco ou seis anos. Eu conto assimos mais velhos. Eu era uma das mais novase eu me lembro de ser cuidada pelos meusirmãos. De eles me darem banho, de brincare de acreditar em mundos possíveis. Eu nãosentia qualquer diferença. Não tenho um dis-curso assim: "Quando eu era criança, meuspais (eram) muito pobrinhos e a gente ficavaali sofrendo". Se a gente sofreu, não me mar-cou; eles souberam dividir o que eram as di-ficuldades com amor, que eu descubro maisagora, que sou adulta, (depois) que já pen-sei e repensei. Um amor que veio mais deum cuidado, que você não diz "eu te amo",não beija, (não) abraça, mas no cuidar vocêdemonstra. Eu tive isso na minha infância e,talvez, por ter essa segurança toda, eu nãotenha (por exemplo): "ah, mas isso foi tãoruim! Ah, mas isso foi tão triste!"

Foi muito boa, aquela minha primeira in-fância, que é na primeira casa, onde eu nasci.Nasci de parteira. Da minha mãe, eu fui a úl-tima que nasceu de parteira; depois de mim,só tem uma mais nova, mas ela já nasceu emmaternidade. Então era aquela vida natural,aquela vida comum. Meus pais, apesar deterem vindo do interior. .. Minha mãe, depoisque veio pra cá, nunca mais voltou (para Ba-turité), mesmo meus tios e os pais dela tendocontinuado lá. Nunca! Eu vim conhecer Batu-rité depois que comecei a trabalhar, já comojornalista. Nunca fui para a cidade da minhamãe. Aquelas férias que a gente costuma terna casa dos avós, nunca tive. Talvez por essatranquilidade, porque minha casa, apesar deser na Capital e de eu ser filha de um traba-lhador, um operário, e de uma dona de casa,a gente vivia aqui em Fortaleza como se a

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o entrevistador Níco-Ias Paulino é estagiário daErilene Firmino, no jornalDiário do Nordeste. Eleatua no caderno de Cida-de, no qual ela ocupa afunção de Chefe de Pro-dução.

o participante daRevista Entrevista nº36 Nícolas Paulino, portrabalhar com a ErileneFirmino, atuou como in-formante da equipe deprodução. Ele sondavainformações com a entre-vistada e passava para aequipe.

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Na manhã do dia emque ocorreu a entrevista,Erilene se mostrava muitonervosa e chegou a ques-tionar se o Nícolas Paulinotambém estava com osânimos alterados.

A entrevista aconteceuno estúdio de TV da Uni-versidade Federal do Cea-rá. No dia, antes de a en-trevistada chegar, Nícolas,Diego, Carol e o professorRonaldo organizaram o lo-cal, que foi escolhido pelaprópria Erilene.

gente tivesse um pouco no interior, sabe?Era aquele processo natural da vida, entãonão tenho ... Não que eu me lembre assim dealgo marcante, a não ser que seja a própriainfância em si. Todo esse espaço de acon-chego, de naturalidade, dessa segurança, fazbem pra gente, né?!

Kamylla - Como era que a família se or-ganizava para ter o sustento da casa? Sabe-mos que o pai trabalhava e a mãe era donade casa...

Erilene - A mamãe e o papai (eram) filhosde famílias pobres, né?! A mamãe desdecedo ia para o roçado lá na terra dela, em Ba-turité. E o papai também sempre trabalhou.Eles sempre trabalharam muito cedo. Quan-do o papai, por exemplo, trabalhou ... Tinhaumas frentes de serviços aqui (em Fortaleza)em uma época de seca e tem uma estrada deMaranguape que tem como se fossem unsparalelepípedos - a estrada não é feita deasfalto - r ali tem a mão dele. Eu descobriisso depois que o papai parou de trabalhar eenvelheceu. Ele gostava muito de ir para Ma-ranguape e a gente ia e ficava lá sentado napraça. Um dia, ele disse: "Erilene, tá vendoali aquela estrada? Eu trabalhei ali". (Eu) jun-tava com as minhas informações: "O senhortrabalhou na estrada de Maranguape como?"E ele contava. Então, para eles, trabalhar eranatural.

Na minha infância, a mamãe era dona decasa, mas como, para ela, era comum o tra-balho lá (em Baturité), a gente também tra-balhava dentro da nossa ... Meus irmãos maisvelhos começaram a trabalhar no mercadode trabalho muito cedo, e os mais novos, amamãe arrumava uns trabalhos pra gente fa-zer em casa. Então, lá nessa primeira casa,de onde eu saí com dez anos, que era na VilaPery, era assim: vinham unstecidos-eu achoque era como se fosse uma confecção - e agente ficava tirando os fios. Quando você fazuma peça de roupa, qualquer peça de rou-pa, você tem de ir limpando. Antes dos dezanos, por exemplo, eu fiz isso. Eu digo antesdos dez anos porque eu me lembro que eufazia lá nessa casa, da Rua Frei Serafim (viapública do bairro Parangaba, em Fortaleza)Eu não sei o que é que a mamãe fazia comesse dinheiro (risos), porque, efetivamente,eu desconfio do que ela fazia. Mas quem sus-tentava mesmo a casa era o pai.

Quando a gente foi para a segunda casa,que é ali no bairro Demócrito Rocha, que agente chama Parangaba, a mamãe apareceucom uns benditos de uns sacos para a gen-te fazer, que a gente fazia e vendia. Quandoa gente chegou lá nessa casa da Rua Paraíba(no bairro Demócrito Rocha, em Fortaleza) ti-nha toda uma atividade econômica ali. Muitas

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"Foi o rádio que me despertou para anecessidade de fazer notícia. No sentido de

poder, através da minha profissão, interferir emuma realidade e modificá-Ia para melhor."

pessoas viviam disso, que era fazer esse sacoque era comercializado lá no São João Batis-ta (na verdade, ela se refere ao Mercado SãoSebastião). A nós cabia fazer e a gente fazia.Entregava para o homem e ele levava. A mi-nha adolescência praticamente toda foi nessacoisa. Eu fazia isso, eu e mais dois irmãos.

Quando eu cheguei à Rua Paraíba, eutinha 11 anos e tinha uma irmã mais nova,que é seis anos mais nova que eu, a Ana. Fi-cávamos eu, a Ana e o Maciel fazendo essetrabalho. Os outros irmãos, os mais velhos,que eram a Lúcia, o José e a Eliete, já foramcomeçando a se inserir no mercado de tra-balho. E a Leda, no primeiro ano que a genteviveu na Rua Paraíba, ela morreu. Então éra-mos três que fazíamos isso. Nós chegamosà Rua Paraíba em 1976 e a Leda morreu em1977. Esse negócio de trabalho infantil nãoera... Não sei nem se o conceito existia. Nãoera ruindade, mulher má, perversa, não, nãoera isso (fala da mãe). Era o natural dela queos filhos ajudassem em casa.

Como a gente não tinha roçado, o papaiainda plantou roçado lá... Na Vila Pery, aindatinha roçado, um pequenininho. Só pela ne-cessidade de eles manterem o contato coma cidade deles de alguma maneira. O natu-ral para ela era aquilo. Ainda assim, naquelaépoca, era o papai que mantinha a casa. Des-confio que a mamãe pegava aquele dinheiropara não depender, entendeu? Para ela tercomo resolver as questões dela sem estar otempo inteiro dizendo: "Zezinho me dá isso,Zezinho me dá aquilo". Porque o discurso daminha mãe sempre foi este: "Não dependa deninguém, não dependa". Ela dependia dele,mas ela dizia muito para nós filhas mulheres:"Minha filha, só faça uma coisa na sua vida:não dependa de homem". "Té certo, mãe".Eu acho que ter esse dinheiro era a forma deela se manter sabendo que tinha algo alémdo que ele podia. Então, a gente ficou nisso.A minha adolescência toda foi nessa históriade trabalho em casa.

Eu trabalhava de manhã, de tarde ia paraa escola e, de noite, voltava e estudava. Àsvezes, eu voltava e ainda tinha saco para fa-zer, e fazia. Mas sempre esse trabalho que agente fazia eu não sabia como ele retornavano dinheiro, porque, efetivamente, quem ga-rantia o sustento da casa era meu pai. Mas

você pergunta: "Como era esse sustento, seele sempre recebeu um salário mínimo e ti-nha sete filhos, primeiro, depois seis?" Nósnunca passamos fome! O que a gente nãotinha naquela casa devia ser a abundância deprodutos, vamos dizer assim. A mamãe, umadona de casa, antes de tudo é uma adminis-tradora e ela soube administrar essa história.Seria pieguice de minha parte (se dissesse)que passei fome, que passei necessidade,que passei isso e aquilo. Nunca faltou comi-da na nossa mesa, e, se faltou, se teve mo-mentos de faltar, não foi relevante, porquenão foi isso que ficou daquela época paramim. Eu não lembro nem da minha infâncianem dessa adolescência com fome.

O que me incomodava mais no trabalhoera a ocupação, era estar ocupada, era nãoestar livre para ser adolescente, para vivertudo que é possível quando você tem o seutempo disponível, sabe? Então, o que memarcou daquela época foi isso, da falta dotempo, porque o saco tirava de mim, essetrabalho tirava de mim essa possibilidade defazer outra coisa.

Kamylla - Erilene, quero que você faleum pouquinho sobre o trabalho infantil, quevocê perdeu tempo de certa forma. Gostariade saber se esse fato gerou algum ressenti-mento na criança, na menina Erilene sobreisso. E a forma como você fala de isso hojese é uma forma de explicar a atitude da mãe.Quero que você fale um pouquinho sobreisso.

Erilene - Na época, eu tinha raiva de estartrabalhando. Nada que fizesse eu ter ódio ouressentimento da minha mãe; eu tinha raivaali, naquela hora.

Kamylla - Mas isso dificultava a relaçãode vocês duas?

Erilene - Não. Eu descobri muito ... Quan-do eu descobri que eu tinha problemas comminha mãe, eu já estava muito adulta; na-quela época, só tive problema com a mamãemesmo de enfrentá-Ia, nesses períodos deinfância e adolescência foi quando, de algu-ma maneira eu vi que sempre quis estudar. Amamãe sempre botou todo mundo na esco-la, ela fazia isso, mas por duas vezes eu en-trei em conflito com ela em questão de edu-cação. Na primeira vez, eu tinha oito anos.Eu já fui para a escola lendo; eu entrei no

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Filipe Pereira acom-panhou a entrevista comoauxiliar de fotografia. Elefoi a primeira pessoa forado Laboratório de Jorna-lismo Impresso que parti-cipou de todas entrevistasde uma edição da RevistaEntrevista.

Erilene é ex-aluna deRonaldo Salgado e pos-sui um grande apreço porele. Então ao chegar aoestúdio de TV, no dia daentrevista, solicitou queos dois tirassem uma fotojuntos.

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Erilene, ao sentar-sena cadeira, antes de a en-trevista começar a ser gra-vada, olhou para Nícolas ebrincou com ele. "Não sevingue de mim não, viu?"- disse no tom de ameaça.

A aluna Julia loneli, in-felizmente, não pôde parti-cipar da entrevista com Eri-Iene. Ela teve de faltar pormotivos pessoais, sendo aúnica integrante da RevistaEntrevista nº 36 a não estápresente em um encontro.

primeiro ano ...Kamylla - Conta para a gente desse pro-

cesso de aprendizagem, da leitura. Comovocê chegou a ler?

Erilene - Da leitura foi assim: tinha essahistória lá em casa de um ajudar outro, osmais velhos. A mamãe ensinava a gente a lersoletrando. Tinham umas cartilhas. De vezem quando, o pessoal posta aquelas coisasno Facebook: "Você se lembra disso? Vocêse lembra daquilo?" (mudando o tom da falapra algo mais debochado e engraçado) Eufaço de conta de que não é comigo (risos daturma). Mas tinham as tabuadazinhas e tinhauma cartilha do ABC, e a mamãe ensinava agente com aquele ABC, ia conhecendo as le-tras. Os mais velhos iam ensinando os maisnovos. Fazia um papelzinho, cortava e bota-va a letra: "Que letra é essa?" E depois sole-trava. E eu sempre achei muito interessanteesse universo de letra e de palavra. Quando(em casa) entrava qualquer papel que euvisse com letra, eu pedia alguém para meajudar. E tinha - que eu me lembro daquelaépoca =, aparecia pedaço de jornal que vinhaenrolando as comidas, as verduras. Entravaem casa. E eu pegava aquele papel e corriaatrás da minha irmã mais velha, a Lúcia, paraela me ensinar a ler. Eu tenho para mim, ví-vido assim, que, quando eu li mesmo, queeu juntei tudo e entendi o que estava ali, eranum bendito pedaço de jornal com a Lúcia,minha irmã, sabe?!

Caio - Erilene, no material de produção,você diz que tinha aprendido a ler só devidoàs coincidências da vida. Essas eram as coin-cidências?

Erilene - Não sei. Não sei se as coinci-dências da vida ... Coincidência eu vi depois,porque eu comentei, na pré-entrevista, comas meninas e tudo: eu não passei a minhavida pensando, né?! Na medida que você vaiavançando, é que você vai pensando. A pré-entrevista foi muito boa nesse sentido. En-tão, depois que eu já estava adulta, depoisque comecei a repensar, fazer terapia e tudomais, eu me lembrei e achei a coincidênciade ter aprendido a ler em papel, em jornal.E o meu jornal não foi um jornal que entroucomprado, foi um jornal que estava bolandopor ali. Então, eu achei interessante a coinci-dência e achei muito legal, porque, tudo issoque estou dizendo aqui pra vocês, em vezde causar em mim um sentimento negativo.Não, para mim é um orgulho muito grandeeu ter apreendido a ler em um papel jornalque estava bolando na minha casa e acabarsendo jornalista. Porque eu não quis ser jor-nalista por causa do jornal impresso, eu quisser jornalista por rádio. E, de repente, fazerda palavra, do impresso, a história da minha

vida é uma coincidência interessante. Mana época eu não tinha consciência nenhumadisso, só fui descobrindo com o tempo.

Tinha outra coisa ... Ela (refere-se à Ka-mylla) tinha perguntado se eu tinha ressen -mento da minha mãe. Não! Teve um mome -to que eu tive ressentimentos da minha mãemas já foram em outros momentos, nem tan-to por conta dessa história do trabalho infan-til. Essa história do trabalho infantil, inclusiveeu descobri ... Eu estava fazendo uma matériatrabalhando já como repórter, com o pessoa'do Programa de Educação Tutorial (PET).Organização Não Governamental (ONG) qUEtrabalhava no combate, no enfrentamentcdo problema, fez um vídeo com o pessoada UFC, eu esqueço qual é exatamente o nú-cleo. E, de repente, eu fui assistir ao vídeo evi as meninas que eu entrevistava pedindcfonte. "Ai, me dá uma fonte, me dá um per-sonagem que fazia trabalho infantil e tenhaconseguido sair" E as pessoas com as quaiseu falava diariamente pedindo fonte, umapessoas seguras, tranquilas, elas estavam ncvídeo chorando, porque elas tinham passadcpelo trabalho infantil, elas já compreendiarrde maneira diferente da minha. Elas estavarrchorando porque elas diziam que aqueletempo não voltava. Quando eu estava as-sistindo àquele vídeo, eu disse: "Valha, rnet,Deus, o que eu fiz também foi trabalho infan-til" (relembra rindo). O que eu fiz foi trabalhinfantil e eu não sabia que era. Para mim, erecomum dentro do meu universo, na minhacasa e na minha história. Então, os ressent-mentos e os problemas que eu tive com ele(mãe) não foram daí não.

Theyse - Você nos fala muito dos irmãoteve uma relação muito próxima. Como eraessa relação no dia a dia? Você se sentia dife-rente deles, principalmente por esse intere -se pela letra, por esse amor pelos estudos?

Erilene - Mulher, é assim: diferente dmeus irmãos sempre fui, mas não só dles, efetivamente. Eu sou muito diferente -maioria das pessoas até hoje. Essa inadequa-ção, sabe?! Lá em casa, eu passava mui -tempo ... A gente se dava superbem, mas epassava muito tempo dentro do quarto lendPrimeiro, lembre-se de que nós erámos cin-co mulheres, mas uma morreu. Essas cincomulheres eram todas dentro de um quarto:ou a gente se amava, ou a gente se amavané?! (risos da turma) Quando morreu uma (aLedal, ficaram quatro. Eu ficava muito tem-po lendo, ouvindo música; mesmo vivendonessa casa com tantas pessoas, eu semprearrumei uma maneira de ficar só. Minha irmãmais nova (Ana Cristina) dizia que eu entravaem transe, mas era assim, aquela muvuca,aquele negócio e eu deitada lendo ou ouvin-

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do música. Sempre teve essa diferença. Tematé hoje, o jeito que eu curto a vida, os meusprazeres são diferentes dos prazeres deles.

Diego - Mas, Erilene, com relação a essasolidão, existe algum motivo específico?

Erilene - Rapaz, eu não sei, Diego. Eu nãosei te dizer. Eu não sei se porque tinha essadiferença. (faz uma pausa e fica em silêncioum pouco) Tem um momento na minha vidaque eu preciso estar só, eu preciso de umtempo pra mim, sabe? Eu tenho muitos ami-gos e tenho família e vivo junto com as pes-soas. E meus amigos todos sabem, as pes-soas todas sabem: tem um momento que eupreciso ficar sozinha. Quando eu estou as-sim, é quando eu mais me aproximo de mim.Eu não sei se essa necessidade de estar sóé porque ... Quando você está sozinho, vocênão precisa ser nada além de você mesmonem interpretar nenhum papel. A gente nãointerpreta papel porque a gente quer. Nes-se momento, por exemplo, eu estou sendoentrevistada, o meu papel aqui é um, não é?Eu não estou interpretando. Você acaba as-sumindo, vamos dizer assim, assumindo pa-péis na relação com outro. Eu preciso estarsó porque, quando eu estou sozinha, é quan-do eu me encontro.

A vida é muito complicada, ela é muitointensa e eu tenho uma necessidade muitogrande de não me perder, de todo tempoestar sabendo quem eu sou para agir con-forme a pessoa. Eu detesto me perder; devez em quando eu me perco. Eu acho queessa minha solidão já vinha dessa minha for-ma de ser mesmo. Isso eu estou falando daadolescência, mas, quando eu era criança,tinha um momento em que eu me escondialá pelo quintal, ia lá para perto das plantas,minhas amigas eram as plantas. Criando mile quinhentas histórias na minha cabeça. Ai

de quem chegasse, porque me atrapalhava.Caio - Você disse que seus pais eram

pessoas de falar pouco e viver mais. Vocêacredita que essa relação de poucas palavrascom eles influenciou no seu jeito de ser?

Erilene - Capaz, né?! Capaz... Agora, temo seguinte: eu falo muito e digo mais: talveztenha sido na própria contradição, porqueeu acho que, no fim de tudo, a gente acabase tornando nossos pais. E talvez uma dasformas de eu me tornar os dois é falar tan-to e dizer tanto, porque eu tenho para mimque, se a mamãe ainda estivesse viva, ela iame perguntar: "Mas minha filha, como é quevocê sabe tanto de mim?" Porque eu prova-velmente saberia contar para ela quem elaera e ela só olhando para mim, porque elanão dizia. Talvez seja isso, não sei.

Às vezes, as pessoas perguntam paramim se eu... Porque eu sou muito receptiva,eu tenho muitos amigos e os amigos sempreme procuram, a gente troca muito. As pes-soas acham assim: "Erilene, só as pessoaste dizem ou tu diz também de ti?' Ah, eu meconto toda, não tenho problema nenhum.Não tenho nada efetivamente na minha vida,nem no meu jeito de ser, nem no que eu pen-so que eu queira guardar só para mim, a nãoser esses momentos que eu preciso parar eficar quieta.

Aline - Erilene, seus pais vieram para For-taleza fugidos da seca. Como é que isso in-fluenciou você?

Erilene - Influenciou assim: eu sou umasobrevivente da seca sem ter estado no ser-tão. Essa história de as pessoas terem de sairdas suas casas, do Ceará, do Nordeste parair para o Sudeste, para ir para Brasília, para irpara não sei aonde para sobre iver, me doea alma. É como se fosse oedaço deé como se osse e E ::> si - ag e

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Para montar o ma e-rial de produção, a du-pla de produção, Carol eKamylla Karen, entrevis-tou as amigas de Erile eNaiana Ribeiro e aBruno, o ex-professo "'o-naIdo Salgado, a aNayana Meio e aa ex-colega de facuFrancis Guedes.

A relação do radiocom Erilene é claramenteuma ligação muito forte,tanto é que em seu de-cimo quinto aniversárioela pediu um aparelho deradiodifusão só pra elaao pai e Seu José Macielcedeu ao humilde pedidoda a e rea izou o que-

a eo ta e.

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Erilene gosta muitode ouvir MPB e listou osartistas preferidos durantea pré-entrevista. São eles:Chico Buarque, Elis Re-gina, Milton Nascimentoe, principalmente, PedroMariano.

A parxao de Erilenepelo cantor Pedro Maria-no é muito grande. Ele é oartista favorito dela. Ela jáfoi a inúmeros shows delee até mesmo o entrevis-tou para o Cardeno 3, dojornal Diário do Nordeste.

IIEssa (. .. ) Erileneque existe hoje, feliz.com suas COisas,

que se sensibilizacom essas questões,

aparentemente,pequenas (sem aeducação) ela não

existi ria."

doída, eu tenho pena, sabe?! Talvez porquemeus pais nunca tenham se sentido de For-taleza, eu tenha ficado com essa saudade deuma casa que não existiu para mim. Entãoessa questão de seca, ela é uma questão mi-nha. Ela me irrita quando eu vejo a inércia dopoder público, quando eu vejo as coisas ca-minhando, caminhando, caminhando, serrque efetivamente se faça nada.

Todas as pessoas sabem que a seca é CI-

clica, todas as pessoas sabem efetivamente oque tem de ser feito e não se faz. Isso daí meagride. E, quando eu vejo as pessoas saindodo meu Ceará para ir para o Sudeste ... Nãosão as pessoas ... Hoje, a gente tem uma dife-rença (em relação à) década de 90, década de2000. Tem as pessoas que decidiram ir paraSão Paulo para fazer pós-graduação. Essaspessoas não saíram daqui por conta da seca,elas foram atrás de outras questões. Eu falo édaquela pessoa que sai do interior do Ceará,ou sai daqui de Fortaleza porque não tem em-prego, está passando fome e vai lá para o Su-deste. Ser chamado lá em São Paulo de "pa-raíba" ou "baiano" ... Perdeu o nome, perdeua identidade. Eu vou para São Paulo, chego láe a maioria dos taxistas são cearenses. Quan-do eu falo, que ele vê meu sotaque, aí pronto,começa história e vai até o aeroporto. Essapessoa é minha; eu não sei o nome dela, eunão sei o que ela faz da vida dela. Nada. Masessa pessoa é minha. A seca chega para mimassim: como uma dor, como uma questão aser resolvida, uma tristeza, uma melancolia.Eu não suporto saber que a pessoa precisarsair da sua cidade, perder suas raízes, suaidentidade por conta disso.

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Aline - Erilene, você fala muito da mãe,mas e o pai? Como era e é a relação com ele?

Erilene - Mulher, o papai é assim: ele tra-balhava (risos) ... A gente só via o pai à noi-te. Nos finais de semana, era muito legal,porque ele ouvia música. Todo domingo euacordava com as músicas do rádio do papai.Eu acho assim: a mamãe ... Sabe aquela his-tória do feijão e o sonho? (refere-se ao ro-mance do escritor brasileiro Orígenes Lessa,publicado em 1938 e adaptado para novelapela Rede Globo). A mamãe é o feijão e opapai, o sonho. Eu acho que quem me deuessa abertura, essa cabeça para sonhar, foi opapai. O jeito dele de ser. .. Ele tinha um jei-to mais tranquilo de viver, os olhos dele. Osolhos dos meus pais são da cor dos meus,ou os meus são da cor dos deles. O papai ea mamãe tinham os olhos castanhos assim(aponta para os próprios olhos). Mas o cas-tanho do papai, o jeito que ele olhava paraa vida era diferente. Quando ele estava defolga, ele ficava dentro de uma rede se ba-lançando e ouvindo música, sabe? E aquiloali, eu ficava pensando: "O que é que essehomem está pensando aí?" Hoje - minhamãe faleceu vai fazer três anos em dezembroe meu pai tem Alzheimer.

Carol - Erilene, você acha que a origemhumilde e, também, o fato de você trabalhardesde cedo influenciam na sua personalida-de, na forma como você lida com a vida e namulher que você é hoje?

Erilene - Mulher, tudo, tudo, tudo que euvivi, essas dificuldades para estudar. .. Parapassar na Federal (Universidade Federal doCeará), eu fiz três vestibulares. Três (diz ilus-trando com dedos). Eu já estava para desistir,porque eu estudei em escola pública e hojetem um bocado de faculdade de jornalismo,mas na minha época só tinha a Federal. En-tão, se eu não fosse persistente, se eu nãotivesse visto a adversidade e como você vaicaminhando, eu não teria ... Hoje, quando euestou diante de algum problema sério, que-rendo desistir ou achando que não sou capaz- aquela hora que a gente acha "eu sou umadroga mesmo" -, eu me lembro das coisasque eu mesma fiz pra chegar até aqui, semque efetivamente nunca tivesse tido nenhumtipo de favorecimento ou alguma ajuda.

Eu até aqui, meus queridos, não é que

eu esteja no ápice de qualquer situação, o'até aqui' é em uma vida que eu queria, naprofissão que eu escolhi, trabalhando com oque eu gosto, que é escrever. Ou tambémde investigar, de jornalismo. Com amigos,com uma casa. Do meu jeito. Esse 'aqui' éisso. É essa vida que eu queria ter. Falta sóa praia lá na Maraponga, que é mais difícil(risos da turma) Eu vou ter de sair de lá prair atrás da praia, né?! Do que eu imaginei,do que eu quis para minha vida, eu tenho. Émuito difícil a pessoa dizer que conseguiu tero que queria. Nunca fui de querer muito. Eunão sou ambiciosa de coisas, de grandezas.Não, eu quero uma coisa. Eu tendo essa coi-sa aqui, tá bom. Então eu tenho o amor, nãopreciso de todos os amores do mundo. Euconheço o amor.

Caio - Foi o rádio que levou você para ojornalismo. De que forma essa paixão pelorádio despertou a paixão pela música? Ecomo eles influenciaram na sua sensibilida-de e no seu jeito de escrever?

Erilene - A música entrou na minha vida

IISOU uma adolescente retardatária. (li') Porqueeu não deixo essa coisa, que é meio ingênua,

que é meio lúdica, morrer dentro dessa mulherde 50"

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A pré-entrevista comErilene e a equipe de pro-dução aconteceu no dia15 de junho, no Laborató-rio B, localizado no prédiodo curso de Comunicaçãoda Universidade Federaldo Ceará. A conversa du-rou três horas.

Erilene tem a famade ser pontual e se au-tointitula ser uma pes-soa certinha. Porém, napré-entrevista, acabou seatrasando, mas ligou paraa produtora Carol paraavisar que havia passadopor um imprevisto no tra-balho.

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A entrevista durou aotodo 2h39min, se configu-rando a mais longa destaedição. Em segundo lugarestá a entrevista da fotó-grafa Karine Garcêz, com2h25min.

No dia da entrevista,foram compradas seisgarrafas de águas da mar-ca Acácia, da qual a amigada fotógrafa Karine Garcêzé dona. As garrafas foramadquiridas no estabele-cimento da dona Cleide,que foi entrevistada naRevista Entrevista nº 35.

com o papai e com a mamãe. Sempre tevemúsica lá em casa. Desde eu criança, a ma-mãe embalava a gente cantando, mas nãoera aquele: "lá-ra-lá-lá-lá", "0 boi-boi-boi"(cantarolando sons semelhantes a cantigasde ninar). Era música (mesmo) que ela canta-va. E sempre tinha rádio ligado lá em casa.

Ana Rute - Que tipo de música era essaque ela cantava?

Erilene - Mulher, eu só me lembro deduas músicas que a mamãe cantava. Umamúsica que tinha ... Eu vou ter de cantar?! Eunão acredito não (rindo). Era índia (cançãoescrita por José Assuncion Flores e M. Or-tiz Guerrero), assim: "índia teus cabelos nosombros caídos" (cantando trecho da música).Porque a mamãe tinha os cabelos parecidoscom os teus, lisos, pretos (apontando para aAna Rute). E essa história da índia, eu acho,que remetia muito para ela, por isso ela can-tava muito essa música. Porque eles (o pai ea mãe) se conheceram em uma quermesse,aqui em Fortaleza. (A outra música era "DezAnos", cantada por Emilinha Borba e GalCosta, entre outros intérpretes).

O papai era aquelas músicas do VicenteCelestino (cantor de M.P.B. que fez suces-so entre os anos 1915 e 1950 e escreveu einterpretou músicas como Porta Aberta), oSílvio Caldas (compositor e intérprete brasi-leiro que fez sucesso entre os anos 1927 e1998, conhecido por cantar Chão de Estre-las), o Teixeirinha (cantor, compositor e atordos anos 1950 a 1980, famoso pela músicaQuerêncio Amada).

Caio - (interrompendo) ... Só retomando ...Essarelação que você tem com música influen-cia no seu jeito de escrever no jornalismo?

Erilene - Na verdade, eu sempre escrevi.Sempre, sempre, sempre, sempre, sempre.Eu tenho diários desde os 13 anos de ida-de. Então, a música tem muita relação coma minha sensibilidade, para vida, para tudo.A música e a literatura. Eu sempre li muitotambém.

Jornalisticamente, ela influencia nessahora que eu estou produzindo as crônicasque saem às sextas-feiras no Diário do Nor-deste. Quando eu estou pautando as maté-rias de cidade, não tem música nenhuma.Porque esse jornalismo cotidiano, esse jor-nalismo diário, ele é objetivo, ele é uma outraparte minha.

O rádio me trouxe para o jornalismo. Nãoforam as músicas. Foi o rádio serviço. Por-que eu estava lá, no trabalho matinal, e fica-va com o rádio ligado, ouvindo rádio serviço.Tinha o programa do Nacélio Limaverde (ra-diojornalista cearense), onde tinha um repór-ter que ia às ruas conversar com as pessoase perguntava o problema delas. (Depois), a

rádio falava com o poder público e ele diziaque ia resolver. E eu disse (bate as mãos prareforçar a afirmativa): "Eu quero fazer isso!Eu quero fazer jornalismo, porque eu queroescrever". Não sabia que tinha essa diferen-ça - só descobri depois - do jornalismo, dorádiojornalismo. "Eu quero fazer isso daí".

Foi o rádio que me despertou para a ne-cessidade de fazer notícia. No sentido depoder, através da minha profissão, interferirem uma realidade e modificá-Ia para melhor.Onde é que a música entra, quando eu es-tava fazendo esse jornalismo hard - que é anotícia cotidiana -, porque a redação é muitobarulhenta e quando eu era repórter ... Quan-do eu era repórter não (corrigindo-se), porquerepórter eu serei até morrer, quando estavaatuando como repórter, para me concentrarbotava o fone de ouvido com qualquer mú-sica e ficava escrevendo. Porque a redação,como é muito barulhenta, tirava minha con-centração e eu me concentrava ouvindo mú-sica

Aline - Você fala muito que tomou essadecisão de ser jornalista, que teve de bata-lhar para conseguir entrar no Liceu (o ColégioEstadual Liceu do Ceará é uma escola públicado Estado do Ceará em Fortaleza). Mas comoera a relação com a família? O fato de a suamãe querer que você e seus irmãos fossemtrabalhar e você querendo estudar?

Erilene - Mulher, a mamãe ... A gente tra-balhava, mas ela queria que a gente estudas-se também. Eu não sei o porquê. Quem foique disse pra mamãe: "Dona Suzete, seusfilhos têm de estudar"? Mas, na verdade, to-dos nós estudávamos e trabalhávamos nooutro horário (livre).

Eu entrei em conflito com a mamãe emduas vezes por conta da educação, mas foiassim: quando eu tinha o bendito dos oitoanos, quando fui para escola, a minha irmãmais nova (Ana Cristina) se ressentiu, porqueperdeu a companhia. E a mamãe quis me ti-rar da escola porque ainda não era a hora dea mais nova ir, (que era) para eu ficar espe-rando por ela. Mas eu disse: "Não" - foi aprimeira vez que eu disse não. E comecei achorar. Deus sabe lá o que foi que eu fiz queeu não saí da escola. (rindo)

A segunda vez foi quando eu terminei oginásio - aquilo que a gente vai até a oitavasérie, que agora é nono ano - e fui estudar noCastelo Branco (Colégio Estadual PresidenteHumberto Castello Branco, localizado no bair-ro Montese, em Fortaleza). Quando eu che-guei lá, no segundo semestre, houve aque-las aulas de vocação e perguntaram: "Quemda turma quer fazer Administração? Quemquer fazer Contabilidade?" Porque o segun-do e o terceiro ano eram profissionalizantes

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na época). Mas eu não queria nenhum de-les, queria era o Científico. Aí perguntei: "Eo Científico? Eu não quero fazer isso, eu que-ro fazer o Científico. Onde é que tem?" "Nãotem aqui, só tem nas escolas particulares"."Não tem?". Rapaz, ali eu acho que da mi-nha infância e adolescência foi o pior dia daminha vida, porque decidi ser jornalista com13 anos, disse: "Eu vou ser isso daí". Quan-do aquela pessoa falou que só era Contabili-dade e Administração, fiquei passada (risosdos alunos). Continuei: "Mas como? Não temuma escola pública? Eu não tenho onde fa-zer? Eu quero fazer vestibular!" Ele disse quenão tinha e não sei o que, só sei que teveum momento que me revoltei e ele acaboudizendo que tinha no Liceu do Ceará.

Eu fui para casa e disse para a mamãe quetinha de arrumar uma vaga no Liceu, masmamãe não queria que eu fosse. (Essa) foisegunda vez que entrei em conflito com ela.O Castelo Branco era perto da minha casa etambém porque já tinha (comprado a) farda,né?! Não pagava ônibus .... Se eu fosse parao Liceu, que era no Centro (da cidade de For-taleza), tinha de pagar ônibus, comprar farda.E ela não queria. Ali eu entrei em confronto,porque eu não podia não tentar.

Descobri o dia que tinha o bendito da coi-sa lá no Liceu ... O período de matrícula, umacoisa assim. Eu nunca tinha ido oa Centro so-zinha. Eu tinha 17 anos, 16 anos ... Eu não melembro, não. Quando eu ao naquele Liceu, es-ava toda me tremendo. Quando eu chegueià antessala do diretor, só tinha um bocadode mulheres. Mulheres-mãe, daquelas mãesque ... Aquelas mulheres gordas, que pare-cem aquelas mães italianas, que você olhae diz: "Essa criatura ali é uma mãe" (risos daturma). Então, perguntei para secretária: "Éporque eu queria ... Eu vim atrás de vaga". Euão me lembro como eu falei com o diretor,

mas tenho para mim que eu chorei, porqueeu tenho sensibilidade assim ... (a voz embar-gando e as lágrimas escorrendo pelo rosto).Tem umas coisas que não dá, devo ter cho-ado. Disse para ele, matuta: "Não, é porque

eu tenho de fazer o vestibular e estudo emum colégio que não tem o Científico e tenhode fazer Comunicação e queria uma vaga ...

inha mãe não pôde vir comigo" (tentandoenxugar os olhos com as mãos), alguma coisaassim... Acho que o homem deve ter sentidooena, alguma coisa, e me deu.

Foi outra guerra lá em casa, quando che-guei. Porque ia ter de comprar farda e nãoei o quê ... A minha irmã (Eliete) disse que

assumia a farda e a mamãe, já que eu traba-ava, me desse o dinheiro para eu pagar o

. nibus para ir para o colégio. E foi assim queu entrei no Liceu.

Claryce - A Erilene que existe hoje, existi-ria sem os estudos?

Erilene - Umas das coisas que mais meemocionam, na minha vida, é a educação.Porque, se eu não tivesse ... Eu não imagi-no quem eu... Que tipo de Erilene pudesseexistir. Certamente, ela não seria tão felizcomo eu sou, porque isso que disse há pou-co - "olha eu tenho uma vida que eu quis"- certamente não seria ... Sabe por quê? Quedizer, podia ser que eu não tivesse desperta-do para o jornalismo, né? Podia ser que nãotivesse despertado para a palavra, para ojornalismo. Então, eu podia estar feliz de ou-tra maneira. Mas essa é a Erilene que existehoje, feliz com suas coisas, que se sensibilizacom essas questões, aparentemente, peque-nas (sem a educação) ela não existiria.

A maioria das pessoas quando falam daminha profissão, elas acham que o momen-to ápice do meu processo jornalístico foi osequestro do dom Aloísio Lorscheider (sa-cerdote frade franciscano e cardeal brasileiro,além de ex-presidente da Conferência Nacionaldos Bispos do Brasil, a CNBB e ex-arcebispode Fortaleza, falecido), que eu fiquei refém láum tempinho, mas só depois de muito tem-po que entendi a grandeza daquele (ato). Omomento forte para mim, como jornalista,foi um dia que estava fazendo uma matéria ...Porque tinha morrido um menino de fome ea gente foi na casa dele - da família dele - eeu encontrei o irmão dele. O menino olhoupra mim, me puxou assim e eu olhei e eledisse: "Eu queria estudar". Os olhos dele ...Ele era negro, sabe? E os olhos dele (eram)brancos, cheios de lágrimas olhando paramim e dizendo que queria estudar. Cara, euquis morrer tantas vezes ali (voz embargan-do), porque eu não podia, naquele momento,fazer nada porque eu sabia o que era que eleestava me pedindo. Ele estava me pedindo achance que eu tive (chorando). A educação éisso pra mim, (ela) é desse tamanho (abrindoos braços indicando a grandeza).

Nícolas - Do que você falou até agora, eunão vi uma criança, uma adolescente, eu viuma mulher em miniatura. Algum dia a Erile-ne foi uma criança?

Erilene - Viche, Maria! Agora eu assimcinquentenária, que tu está dizendo? Se eufui criança? Nícolas, eu tenho para mim queeu fui criança até aqueles dez anos, quandoa gente saiu lá da primeira casa.

Caio - (interrompendo) ... Tinha tempo prabrincar, Erilene?

Erilene - Tinha, menino. Oxe! (Batendopalma) A gente ficava brincando no meio darua, tinha boneca, tinha ... Quando eu ficavaperto dessas plantas (rindo), que eu disse,era criando uma história. Criar histórias pra

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Erilene Firmino estu-dou no Colégio EstadualLiceu do Ceará nos anos1980, coincidentementena mesma época em quea outra entrevistada destaedição Lena Oxa.

Durante a pré-entre-vista, Erilene Firmino su-geriu que as alunas Carole Kamylla escutassem amúsica 20 Anos B/ues,do cantor Pedro Mariano.Dias depois, Carol comen-tou que havia ouvido amúsica deixando a entre-vistada muito contente.

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Quando Erilene cursa-va as faculdades de Letrase Comunicação, simulta-neamente, chegou a sematricular em 14 discipli-nas no mesmo semestre.Ela conseguiu passar comêxito em todas.

Quando foi se matri-cular no Colégio EstadualLiceu do Ceará, Erileneandou de casa, no bairroDemócrito Rocha, até ainstituição. Foram aproxi-madamente 6 quilômetrosa pé.

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mim era brincar. E ficava brincando de ca-sinha, de fazer comidinha. Aquelas coisinhasde mulher ... Aquela coisinha que você temcozinha, o fogãozinho, as panelinhas. Faziaaquele boizinho que caía das mangueiras, agente brincava de fazendinha. Brinquei!

Agora, criança eu fui até, efetivamente, osdez anos, acho. E, do resto, eu guardei paraagora. Por quê? Porque eu tenho para mimque - de vez em quando eu digo isso - eusou uma adolescente retardatária.

A alegria. Essa alegria que eu tenho, o hu-mor, esse jeito brincalhão de ser. Eu acho queele tá o tempo inteiro na minha vida. Talvez,em vez de eu ter sido a vida inteira adulta, euseja a vida inteira esse fifty-fifty - cinquentapor cento, cinquenta por cento. Porque eunão deixo essa coisa, que é meio ingênua,que é meio lúdica, morrer dentro dessa mu-lher de 50 (anos), entende?! Esse tempo bomque eu vivi até os dez anos foi guardado e seexpandiu.

Theyse - Erilene, você fala de educaçãoe literalmente enche seus olhos ao falar dis-so. E foi uma luta grande para você entrarna universidade, como você falou, na UFC -você fez Letras (com especificação na línguaportuguesa) na UECE. Como é que o ambien-te acadêmico a construiu, como jornalista emesclou toda essa visão, que veio desde ainfância - que veio de buscar o outro olhar-,como foi que houve a conciliação entre essaErilene que já existia e aquela que foi forma-da no ambiente acadêmico?

Erilene - O ambiente acadêmico, princi-palmente meu curso de Comunicação, só fuidescobrir a grandeza dele depois que eu ter-minei. Porque eu fazia duas faculdades juntas(Jornalismo e Letras Português). Simultâneas- na época podia.

Eu passei na UECE (Universidade Estadu-al do Ceará) primeiro. Quando eu passei praFederal, já tinha dois semestres e eu nãoconsegui largar Letras. E fiquei em Letras e

"( ...) eu não quis serjornalista por causa dojornal impresso, eu quisser jornalista por rádio.E, de repente, fazer dapalavra, do impresso, ahistória da minha vida é

(...) interessante"

Comunicação. Eu passava a manhã na UECE,à tarde na UFC e, às vezes, à noite eu voltavapra UECE. Fiz Letras nos quatro anos e Co-municação em quatro anos e meio.

Eu fui percebendo a grandeza dele (doambiente acadêmico) à medida que eu esta-va na rua como repórter e eu me lembrava"isso aqui ó, isso daqui" (as mãos gesticulamdenotando algo que está sendo ensinado). Eu,por exemplo, sempre adorei as cadeiras téc-nicas porque eu queria ser repórter, queriaser repórter, queria ser repórter. Eu queriaa técnica, o lead (é a primeira parte de umanotícia, geralmente o primeiro parágrafo postoem destaque, que fornece ao leitor informaçãobásica sobre o conteúdo que lhe segue), e issoeles me davam. E hoje, que eu já sou umapessoa que tenho de pensar comunicação,as matérias, a estrutura, eu tenho de pen-sar ... Eu me lembro das aulas de ética, en-tende? Então, o curso, a Universidade aindarepercute. É coisa pra sempre assim ...

Nícolas - E esse fazer jornalismo mudoudessa época para hoje?

Erilene - Como é esse fazer? O modo?Nícolas - O dia-a-dia.Erilene - (Pausa tentando organizar as

ideias) Rapaz, a operacionalização mudou;a forma de fazer o jornalismo tem de ser amesma. A operacionalização eu digo porquê: porque hoje nós fazemos jornalismoimpresso e o online e a forma de fazer o on-line é diferente de fazer o impresso, a ope-racionalização. Agora, a essência não podemudar, eu já falei isso em outras vezes queeu fui convidada ... Você hoje está fazendo ojornalismo do instante (faz referência ao Web-jornalismo), mas você não é um internauta,você é jornalista, eu quero um instante comqualidade, e o meu instante com qualidadevai ter de ter um lead, vai ter de ter um "outrolado", vai ter de ter português direito, vai terde ter informação, entende? Você vai ter defazer mais ligeiro (risos). Mudou essa ques-tão, sabe Nícolas? Eu não sei se estou me fa-zendo compreender. Mudou a forma de fazernesse sentido de urgência, mas a essência ...A urgência pode até fazer querer se impor àessência, mas a minha luta, o meu jeito defazer hoje - eu que faço impresso e online- é resistência, e eu quero esse minuto dequalidade. Então, pode ter mudado, mudounesse sentido de mais urgência ainda, mas,enquanto eu estiver no jornalismo, enquan-to eu estiver em uma redação, vai ter bri-ga e vai ter briga boa porque eu vou ficarbrigando para que o que a gente publiqueseja assim e a pessoa que está fazendo sai-ba que é jornalista, que não é um internauta,que não é uma pessoa que vai passando nomeio da rua que faz uma imagem e manda,

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Dias após a entrevis-ta, Erilene confidenciouà produtora Carol e tam-bém ao Nícolas que sesentiu remexida. "Pare-cia que estava em umasessão de terapia. Eu mesenti nua", afirmou.

Quando foi convidadapara participar desta edi-ção da Revista Entrevista,ainda em abril, Erilene semostrou bastante surpre-sa por ter sido escolhidacomo personagem.

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o fotógrafo MateusFalcão é a pessoa maisjovem a fazer parte da Re-vista Entrevista. Ela possuiapenas 16 anos e aindaestá no segundo ano doEnsino Médio.

Mateus Falcão, fotó-grafo desta entrevista, foia primeira fonte da pro-dutora Carol, quando elatrabalhava para o cadernoZoeira, do Diário do Nor-deste. Na época, Carol es-creveu uma matéria sobrejovens fotógrafos.

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não é (fala e gesticula com ênfase), quem éjornalista é jornalista, internauta é internau-ta, é diferente.

Carol - Antes de a gente chegar nessaparte do jornalismo mesmo, na nossa pau-ta, a gente vai falar também do magistério.Você passou um tempo como professoraprincipalmente por causa da Letras. A gentegostaria de saber como foi essa época, o quevocê tirou dessa experiência e se você sentefalta de ser docente hoje em dia.

Erilene - Toda a minha vida, tudo o queeu vivi na minha vida, todas as fases, as ex-periências que eu estou dizendo aqui paravocês, esses momentos bons e ruins, elesrefletem na pessoa que eu sou. O magisté-rio para mim foi uma experiência muito boa,o de estar em sala de aula. Eu ensinei por-tuguês, literatura e redação, principalmentelá no colégio Piamarta (Centro Educacionalda Juventude Padre João Piamarta, localizadono bairro Montese, em Fortaleza) aquele daAguanambi (Avenida), e pra mim foi muitobom, foi muito legal!

Eu acho que eu continuo trazendo o ma-gistério, acho que de certa maneira essaquestão da educadora permanece porque nomeu trabalho jornalístico eu sou muito didá-tica na hora de pautar, de conduzir, na horade levar as questões para o repórter, para oestagiário, eu tenho um didatismo que euherdei da professora. Eu adorei ser (profes-sora). E saí chorando, chorei tanto (as mãoscobrem o rosto). Eu pedi para sair do colégioPiamarta porque eu arrumei um emprego dedois turnos, era fuI/-time (termo usado paraidentificar um trabalho que funciona em tempointegran na VSM Comunicação (agência quehá 27 anos oferece soluções em comunicaçãocorporativa) na assessoria de imprensa, e aíeu tive que sair da escola. Quando a mulherme disse que tinha arrumado a professora,eu comecei a chorar e a mulher disse (risos):"Mas foi você quem pediu, foi você quempediu". "Mas será que ela vai fazer o que eufaço?" Eu dizia assim porque eu cheguei láao colégio e tinha meninos no sexto ano, nosétimo ano que não sabia ler e eu fui ensinar.E eu (os via) crescendo.

Eu acho que do magistério eu trago isso,sabe? Eu vejo (a relação com) o jornalismoquando eu vejo o estagiário crescendo, euvou gostando daquele processo dele, vou mesentindo feliz com aquele desenvolvimento ...De uma maneira ou de outra, eu tambémcontribuo na formação dele (do estagiário)como profissional. De voltar a ensinar, eunão sei ... Já teve momento que eu pensei seeu voltasse a ensinar só era português, litera-tura e redação porque eu não queria ensinarjornalismo de jeito nenhum.

Caio - Erilene, (certa vez) quando questio-nada sobre ensinar comunicação, você disseque "não conseguiria ensinar algo que vocênão acredita mais". Permanece desacredita-da do jornalismo?

Erilene - (interrompendo) ... Não, mas foiassim ... Essa pergunta foi em três tempos.Eu disse assim: teve um momento na minhavida que, quando começou a pipocar cursode comunicação, muita gente correu pra en-sinar, mas as pessoas correram para ensinar(porque), além do mercado que estava emer-gente, tinha muita gente insatisfeita com aredação. As pessoas começaram a me per-guntar: "Erilene tu não quer ensinar jornalis-mo?" E eu dizia assim: "Eu não vou ensinaruma coisa ... " Porque teve um momento ...Eu estou no Diário do Nordeste há 22 anos,já teve umas três ou quatro vezes nesses 22anos que eu quis parar, que eu quis sair, queeu quis ... Teve momento que eu queria de-sistir ...

Rute - Mas você queria desistir daquelainstituição ou do jornalismo?

Erilene - Teve momento que era da institui-ção e teve momento que era do jornalismo.

(retomando a resposta da pergunta feitapelo Caio) Era o seguinte: as pessoas diziamassim: "Erilene por que é que tu não sai daredação e vai ensinar?" "Por que eu não voudesistir e vou ganhar dinheiro na universida-de ensinando uma coisa que eu estou desis-tindo, porque é mentira". Passou um tempo,depois teve um momento que eu entendique o meu cansaço, por exemplo, era daredação e não do jornalismo, porque o pro-cesso da redação é muito exaustivo. Quan-do eu entendi que a questão eram as horasexaustivas de trabalho, trabalhar domingoe feriado, chegar atrasada nos eventos dacasa, da família; quando eu percebi que aquestão não era o abandono do jornalismomas o abandono da redação ... Entende? Nãoera a redação do Diário do Nordeste, mastrabalhar (em uma) redação de jornal que éhard, que é duro; que tem hora, mas não tem

IIEu acho que, no fimde tudo, a gente acaba

se tornando nossospais. E talvez uma das

formas de eu me tornaros dois é falar tanto e

dizer tanto."

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ora. Então, quando eu disse que não queriaensinar o que eu não acreditava, é porqueeu achava que estava desacreditando do jor-

alismo. Depois eu compreendi que eu esta-a era cansando, ficando velha e querendoazer outras coisas. Daí, nesse sentido, nãoem problema nenhum. Nesse momento nós

estamos vivendo uma mudança absurda nomercado, o nosso mercado jornalístico dosimpressos é demissão, demissão, demissão,nós estamos vendo, estão se construindoveículos novos, outras formas de fazer, e eunão sei se eu tenho competência para essemundo novo.

Diego - Erilene, desde 1994 você está lá noDiário do Nordeste, né? Como é que foi che-gar até lá? Foi a primeira instituição que vocêparticipou efetivamente como jornalista?

Erilene - Eu entrei no Diário como esta-giária no último semestre do curso - últimoou penúltimo =, e, depois, quando terminou,eu ainda passei seis meses lá. Eu entrei pela(editoria de) cidade, né? Depois, eu passeium tempo na (editoria) internacional, contra-tada, prestando serviço. Depois eu saí de lá,fui para o Tribuna do Ceará, que é um jornal-não é o site - o site pegou o nome, comprouo nome, fez não sei o quê com o nome, masera um jornal que tinha ali no cruzamentoda (Avenida) Desembargador Moreira com aPontes Vieira, que hoje é um Bradesco bemgrandão, ali tinha a Tribuna do Ceará, eu tra-balhei ali como repórter. Depois da Tribuna,eu saí, e em 1994 fui contratada pelo Diário.Eu fiz muito teste no Diário (risos), eu entreina terceira vez, na terceira vez (fala dandoênfase à persistência), aí eu já entro matandoassim ... (faz referência a episódio do IPPS queserá comentando mais à frente). Eu fiz um tes-te, eu fiz dois testes lá (corrigindo-se), e o úl-timo foi assim: a pessoa me disse, um amigomeu: "Erilene vai ter uma seleção no Diário,mas quem vai entrar é fulano, mas se tu qui-ser tu vai pro pessoal se lembrar de novo de

ti". Eu disse: "Pois eu vou" (risos). Fui e dessavez de fato ficou a pessoa e depois eles mechamaram para eu ser contratada e foi a ter-ceira vez. "Espera aí que vocês me pagam,agora eu vou ficar uns 22 anos por aqui".

Aline - Você sempre lembra das palavrasdo professor Agostinho Gósson (jornalista eex-professor do curso de jornalismo da Univer-sidade Federal do Ceará, falecido em 11 de de-zembro de 2015) e o jornalismo humanizado,do jornalista ser uma resistência dentro dagrande mídia. Como você leva essas ideiasdele para o seu fazer jornalístico?

Erilene - Olha, é assim ... (momento desilêncio tentando resgatar as memórias) todaa história da minha vida que eu contei aquipara vocês, sou eu. Então, quando eu estouna redação do Diário do Nordeste que apa-rece uma matéria sobre as questões sociais,

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A Revista Entrevista éo primeiro trabalho pro-fissional de Mateus Fal-cão como fotógrafo. Eleacabou se empolgandodurante o encontro e re-gistrou mais de 500 ima-gens no dia.

Filipe Perera auxiliouMateus Falcão na seleçãoe edição das imagens. Osdois passaram uma tardese dedicando a esse tra-balho na casa do Mateus.No fim eles reduziram onúmero de 500 para 170fotos.

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A característica maismarcante de Erilene Fir-mino relatada por pessoasentrevistadas pela pro-dução é que ela é "muitomãe" devido à preocupa-ção em querer resolver osproblemas dos outros.

Em entrevista com aamiga Franscristina, Fra-eis relata que durante operíodo da UECE ErileneFirmino datilografava ostrabalhos das amigas afim de conseguir dinheiropara se manter na univer-sidade.

eu faço tudo para que aquela pauta entre napauta e seja publicada. A minha resistência énesse sentido de colocar essas questões so-ciais, que acabam de alguma maneira resul-tando para o bem comum da população, alidentro. É uma resistência cotidiana, de vocêficar lutando o tempo inteiro pelo bom jorna-lismo. Não é que fique um monte de urubudizendo: "Vamos destruir o mundo, vamosfazer merda (fala cochichando)", não é assim,é o processo que se constrói rapidamente;e a resistência minha é de não desistir. É deestar ali dentro lutando pela qualidade, lutan-do por essas questões que pra mim ... Quan-do eu digo "pra mim" não são as questõesda Erilene Firmino, mas são as questões damaioria da população. Um exemplo claro:essa história que nós estamos vivendo hojedo racionamento de água. Cara, é uma lutaconseguir arrancar do governo e a minharesistência é não desistir, é ir infernizar, en-tende?

Kamylla - A forma humanizada de vocêescrever, mesmo dentro (da editorial Cidade,é uma forma de resistência?

Erilene - Eu acho que o jornalismo tem deser humanizado, eu não entendo o jornalis-mo sem ser assim. Eu digo mais resistênciade você não ir pelo caminho mais fácil, devocê está em um feriado dentro de uma re-dação e entender que tem de estar ali porqueas pessoas precisam de notícia. Então, é a re-sistência nesse sentido de você não desistirde colocar essas... É como se eu estivesse o

tempo inteiro que estar dando continuidadeà responsabilidade social do jornalista, que étrabalhar para o bem comum para trazer paraa população as notícias, a minha resistênciaé essa.

Eu trabalho dentro de uma empresa enor-me de um grupo nacional e eu estou ali den-tro tentando me equilibrar nesses interessesde todo o veículo de comunicação - todos osveículos de comunicação têm interesses -, ecumprir a minha função social como jorna-lista de trazer as questões da sociedade paradentro desse jornal que eu trabalho. A minhanão resistência era eu, por exemplo, ficar sófalando de música (risos) e de literatura, né?Aí seria não resistência, porque é uma coisaeminentemente muito prazerosa na minhavida. A minha resistência se dá desta manei-ra: conseguir trazer para dentro do veículode comunicação onde eu trabalho as ques-tões que eu acho que são importantes paraalguém comum.

Rute - Erilene, e quais foram as principaisdificuldades que você encontrou durantetoda essa trajetória para fazer essa resistên-cia, para exercer isso?

Erilene - Menina, todo dia tem uma dife-rente.

Rute - Teve alguma coisa que te marcoumuito, que te fez querer desistir?

Erilene - Mulher, eu adoro jornalismo!Eu acho que desistir ... Eu não consigo abrirmão do jornalismo (só) porque as coisas nãosão exatamente como eu quero. Quando eu

REVISTA ENTREVISTA I 122

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IJSou uma sobrevivente da seca (...) Talvezporque meus pais nunca tenham se sentindo deFortaleza, eu tenha ficado com essa saudade"

terminar o meu tempo, quando eu deixar ojornalismo, vai ser mais por uma necessida-de de qualidade de vida do que efetivamentepor dificuldades. Porque as dificuldades elassão cotidianas, elas vêm do chefe até a difi-culdade de um veículo. Tu viste na hora queeu disse que as donas de casas são meioadministradoras e eu acho que herdei muitacoisa de minha mãe - eu sou administrado-ra - e eu consigo resolver essas questões eir avançando. Por mais dificuldades que porventura eu tenha tido de a gente querer quesaísse a matéria e não sair, da gente não que-rer que saísse e sair, não sei o quê, nenhumadessas questões fazem parte do processojornalístico e cabe ao jornalista - que se en-tende jornalista - saber que vai pra ali é parabrigar mesmo, é para batalhar, é para resistir,resolver, então eu resolvo.

Tem horas que se eu precisar engolir umsapo, eu engulo e tem uma hora que se tivercomo eu vomito o diabo deste sapo e depoiseu dou outro jeito de fazer ... Você está nessauta permanente para dar solução às ques-tões o tempo inteiro, é isso. Não teve até

oje uma coisa tão absurda que fizesse comue eu (pensasse): "Eu vou embora desse lu-ar porque eu não quero mais saber de jor-alismo nem quero mais saber de redação".

:: mais um processo humano, um processoa mulher, um processo da Erilene que pas-

sou essa vida inteira ocupada, né? Eu achoe quando chegar esse momento de eu ir

'= ."ais dessa pessoa, como ele disse (apon-

tando para o Nícolas), que nunca foi criança,de viver outras coisas, mas não ... Porque ojornalismo ou você se entrega, ou você nãose entrega.

Caio - Erilene, o seu início no Diário doNordeste é digno de filmes como "Todos oshomens do presidente". Qual foi a sensaçãode chegar à redação após o ocorrido no IPPS(Instituto Penal Paulo Sarasate) e ter de sentare escrever, ter de fazer jornalismo?

Carol - (interrompendo) Antes de vocêresponder diretamente à pergunta do Caio,só faz uma retrospectiva de como aconte-ceu, de como foi o episódio ...

Erilene - Vocês têm de entender antesde qualquer coisa o seguinte: esse episódiodo Dom Aloísio, eu era foca (expressão quefaz alusão a um jornalista novato, inexperien-te), estava há dez dias no Diário do Nordes-te, certo? Então, meu chefe me pautou pra irpra essa visita pastoral lá no presídio e eu fuitranquilamente. Eu não tinha ideia do tama-nho da encrenca em que eu estava envolvi-da, eu não tinha ideia, entende? Eu fui, che-guei lá, a gente fez a visita, quando começoua confusão que eu corri e voltei pra minhapauta - porque era uma pauta de cidade quese transformou em (uma de) polícia -, eu nãotinha ideia do tamanho ... Fui tranquilamen-te; sempre chegava cedo, o outro repórteratrasou e ele (o chefe) me mandou (cumprir apauta), e eu fui. E cheguei lá... Acompanhan-do o Dom Aloísio, acompanhando o DomAloísio. Quando começou a confusão, eu fiz

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o encontro com ofotógrafo Mateus Falcãoaconteceu no espaço CaféVitrola, localizado no bairroBenfica, em Fortaleza. Lá ofotógrafo recebeu mais in-formações acerca do pro-jeto da Revista Entrevista.

Após a reunião sobreo proje o da Re ista Entre-vista, a p odutora Carolina

elo, o apoiador do projetoFilipe Pereira e o fotógrafoMateus Falcão se dirigiramao Shopping Benfica a fimde lancharem.

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No episódio do IPPSrelatado por Erilene, ofotógrafo Luciano Carnei-ro, também do Diário doNordeste, registrou o mo-mento em que o deten-do "Carioca" imobilizavaDom Aloísio com umaarma artesanal, conferin-do para si o Prêmio Essode Fotografia.

o contato com a ex-chefe de reportagem doDiário do Nordeste, IsabelPinheiro, que ainda man-tém laços de afinidadecom a entrevistada, nãofoi possível devido elanão dispor de tempo paraatender às ligações.

"Nunca fui de querermuito. (...) Tenho o

amor, não preciso detodos os amores do

mundo. Eu conheço oamor"

como qualquer outra pessoa - jornalista - fazna hora da confusão, a gente tenta se prote-ger como pode.

O diferente na minha história é que eu fuipara o corredor, eu corri, e me lembrei do(professor) Agostinho dizendo que a minhapauta não tinha acabado: "Qual é a minhapauta, qual a é a minha pauta?" É tanto queeu era tão foca, tão foca, tão foca, tão come-cinho, tão comecinho (dá ênfase à inexperiên-cia tentando justificar a atitude) que eu preciseicorrer pra me lembrar que a minha pauta erao Dom Aloísio. Se eu fosse mais experiente- eu tenho pra mim - e comprometida, nãosei, eu não teria corrido, eu corri porque euestava começando e eu não me toquei que apauta era o Dom Aloísio, eu precisei ir até ametade do corredor e me lembrar do Agos-tinho (risos) dizendo: "A pauta só terminaquando acaba" - "valha meu Deus" e corri ..."Peraí" e voltei porque eu não sabia o quefazer, eu não conhecia as pessoas, eu estavacomeçando. Então eu corri e pensei: "O queé a minha pauta? Mas eu tô fugindo da minhapauta. O que é a minha pauta? É o Dom Aloí-sio e ele está lá dentro. Eu tenho que voltar",pronto, eu não tinha ideia ... E vivi aquilo ali.

Não foi difícil pra mim chegar à redaçãoe escrever, o difícil pra mim, rapaz (o sem-blante se torna pensativo levando a mão aoqueixo) ... Foi horrível! Sabe por quê? Horrí-vel porque o material que eu escrevi foi com-pletamente localizado, a parte que me coubeera narrar a história de dentro da coxia (tam-bém chamada de bastidores. É o lugar situadodentro da caixa teatral, mas fora de cena) deonde a gente tava, de dentro do espaço dosreféns, eu passei lá (aproximadamente) duashoras, eu tinha de contar aquilo ali. Então,pra mim foi horrível no sentido de ... Não éque o processo fosse doloroso, é porque eunão sabia o que era que eu tinha de dizer,era de desconhecimento mesmo. Por quê?Eu volto a dizer: o momento mais difícil pramim naquela história toda não foi a jornalis-ta, sabe por que Caio? Caio, né, o teu nome?É porque eu acho que - eu posso ser meiodoida, mas cara, a nossa profissão é assim,

entendeu? A profissão é assim rapaz; a gen-te enfrenta muita coisa. Eu já entrei no Diáriodo Nordeste sete horas da manhã e já sai dezhoras da noite sem ninguém me pedir "fica aErilene" - ninguém disse. Nossa profissão eassim. Foi ruim pra mim ver os caras (presi-diários) batendo lá nos padres e, quando elesmandaram eu sair e um apontou a arma paraas minhas costas e eu caminhei para o poli-cial que apontava a arma para minha frente(faz gesto com as mãos que remetem à formaque as armas estavam apontadas para ela),esse momento foi difícil como pessoa, eununca tinha vivido aquilo, e eu ergui as mãose disse que era jornalista: "Não atire que eusou jornalista". Eu tava dizendo "não atire"pra quem? Que os bandidos estavam aqui ea polícia estava acolá e eu aqui no meio. Equando eu cheguei na polícia, que eu disseque tinha de voltar (a voz embargando), por-que eles tinham dito que eu fosse buscar asarmas se não eles matavam as pessoas; e eudisse para o policial: "Eu tenho de voltar". E opolicial: "Corra"; "eu tenho de voltar". E ele:"corra". E eu saí correndo desesperada (falaemocionada com as lágrimas escorrendo naface) porque eu achava que eles iam mataras pessoas e a culpa era minha. Foi a pessoa(como se dissesse: não foi a jornalista).

Quando eu cheguei ao jornal depois praescrever, eu não gostei do meu trabalho por-que no outro dia eu quis ... Quando eu vi ojornal, eu disse: "Meu Deus, eu errei, eu er-rei, eu errei" (fala em tom de indignação) por-que o Diário do Nordeste trazia a manchetecom não sei quanto e eu tinha (colocado namatéria) só nove - "eu errei a conta, eu er-rei a conta". Mas não era não, graças a Deus(fala em tom de alívio), tinham nove (reféns)lá dentro (contando) comigo, mas envolvidosno processo todo tinham uns 11, 13 (deten-tos), ou sei lá quantos eram ... No outro dia,quando eu saí, não tive problema nenhumcomo jornalista de voltar para a redação eescrever, eu não tenho essa...

Caio - (interrompendo) Teve euforia nesseprocesso para escrever já que você tinha aca-bado de viver uma experiência tão forte ...

Erilene - (interrompendo) Não, não, não!Acabado de viver ... Tu sabes que horas eucheguei no jornal? Eu vivi isso por volta demeio dia, eu cheguei ao jornal eram cincohoras da tarde porque eu fiquei esperandoser rendida (fala em tom descontraído) por-que tinha que ficar uma equipe lá. Eu saí efiquei lá do lado de fora, (em um) portãozinhoque tem, aí o sangue foi baixando. Quandoeu voltei pra redação cinco horas da tarde,eu estava era morrendo de fome e... Sei lá,eu liguei pra casa pra dizer que estava tudobem, aliás, eu liguei pra casa não, ligarampro jornal: "Cadê a Erilene" - porque estava

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passando na televisão; pra mim foi ok.Theyse - Em meio a essa correria que eu

magino que tenha sido esse episódio, comoelata, você estava sempre preocupada com oabalho, embora naquele momento a pessoa

ambém tenha sofrido. Mas no meio de tudoosso teve tempo, digamos assim, para sedi-mentar alguma trauma, alguma coisa que ...ógico, a experiência toda foi negativa, mas,

deixando o jornalismo de lado, a Erilene?Erilene - Durante muito tempo, quando

ouvia um "click", eu me assustava e eu nemme tocava o que era. Até que uma vez euvi, quando você vai atirar e fica entupido? Narua eu ia andando, estava dentro do ônibus eouvia um "click" eu me assustava. Do episó-dio do Dom Aloísio, naquele começo, ficouesse "click" que é um sonzinho que antecedeo puxar do gatilho - tu puxa o gatilho e faz"click".

Diego - Mas naquele momento teve ummomento que você talvez olhou para o espe-lho e ficou pensando "poxa, eu sobrevivi"?

Erilene - (ela ri) Eu rio não é da tua per-gunta não (risos da turma), é porque eu achoque eu sou doida mesmo sabe, rapaz? Por-que o Ceará só veio ter ideia do problema dosistema penal depois daquilo ali (do episódiono IPPS). Então eu - que estava começando- não tinha essa ideia de que eu tinha sobre-vivido a questões ... Pra mim aquilo ali nãoera um fato extraordinário, único e ímpar, eutive ciência de que era extraordinário depoisque eu participei, que eu vivi. O próprio sis-tema penal também assume isso, que eu jáfiz outras matérias voltando a esse tema. Eunão tive nenhum momento que eu dissesseassim: "Valha meu Deus, eu sou jornalista eestou vivendo isso daqui". Não. E, durantemuito tempo, eu não gostava nem de falardisso porque eu não queria trazer pra mim,me tornar protagonista, porque o jornalistanão é pra ser protagonista, ele conta a histó-ria. Foi preciso passar esses mais de 20 anospra eu poder aceitar como processo da his-tória, depois resgatar ...

Kamylla - Então, como foi para a Erilenepessoa e jornalista, após esses 20 anos, vol-tar àquele local?

Erilene - Quando se passaram 20 anos,disseram que iam implodir o presídio, aí agente conseguiu entrar (para produzir uma

liA urgência pode até fazer querer se impor àessência, mas a minha luta, o meu jeito de fazer

hoje (. ..) é resistência"

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o sequestro do DomAloísio aconteceu emmarço de 1994 e durouem torno de 20 horas. Ospresos fugiram em umfurgão com 26 pessoas(incluindo reféns), a per-seguição durou dez dias,12 fugitivos foram cap-turados, dois detentosmorreram e um policialse feriu.

Durante a pré-entre-vista, as produtoras Ka-mylla e Carolina e a en-trevistada Erilene Firminoforam abordadas pelocoordenador do curso dejornalismo da UFC, RafaelRodrigues, que tirou fotosda entrevistada para finsde divulgação na páginada UFC.

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Desde o dia que ocoordenador do curso deJornalismo da UFC RafaelRodrigues ficou sabendoda entrevista com a jor-nalista Erilene Firmino,começou a colocar pres-são na dupla de produçãorequerendo um ótimo de-sempenho na entrevista.

Após a pré-entrevis-ta, os coordenadores docurso de jornalismo daUniversidade Federal doCeará Naiana Rodrigues eRafael Costa saíram coma jornalista Erilene Firmi-no a fim de "colocar ospapos em dia".

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reportagem especial sobre os 20 anos do epi-sódio). E eu já era chefe de reportagem. Eunão queria ir, achava besteira (fala cochichan-do), besteira não a pauta (risos), a pauta erainteressante. Mas cabia a mim decidir se iaou não porque eu já era chefe de reporta-gem, não era mais repórter. Eu não tava mui-to a fim de ir não porque escrever é muitotrabalhoso, escrever dá muito trabalho (rei-tera) e era uma série e eu não estava muitoafim (de escrever). Mas acabou que a gentelevou tanto tempo para conseguir entrar queeu entendi que jornalisticamente para o jor-nal (seria) interessante que eu fosse, porqueos jornalistas da época não tinham nenhumefetivamente que pudesse entrar e contar ahistória como eu podia entrar e contar. Euachei que seria um diferencial para a minhaeditoria, que é a Cidade, e para o Diário doNordeste.

Eu fui como jornalista. Rapaz, foi uma dasmaiores lições que eu tive na minha vida,porque como pessoa, como cidadã, foi mui-to difícil ... Jornalisticamente, foi muito bomporque eu descobri coisas que eu não sabiafazer. Quando eu tinha dez anos de Diário,que fez dez anos e o meu editor pediu pragente fazer a matéria minha dos dez anos ...Ela tem uma coisa boa que é uma entrevis-ta que eu consegui com o Dom Aloísio pore-mail, mas eu escrevi em terceira pessoa,e em primeira pessoa assim num canto. Eufiz a matéria assim: "Dentre os reféns, esta-va a jornalista Erilene Firmino" - e assinavaa matéria "EriIene Firmino". E falava "ErileneFirmino" na terceira pessoa. Quando dá fé

está aqui Erilene Firmino em primeira pessoacontando a história, diabo é isso? Por quê?Porque eu Erilene, jornalista, repórter, nãosabia escrever em primeira pessoa uma notí-cia, uma reportagem ... Eu não sabia, porquea gente não escreve em primeira pessoa, agente escreve em terceira, eu nem sabia quenão sabia, eu fiz aquele negócio acolá.

Quando foram os 20 anos, foi uma putade uma lição porque os últimos 20 anos daminha vida foram bem intensos, bem mar-cantes. Foi quando eu acho que eu endureci,eu adulteci, eu perdi ... A vida adulta é com-plicada, a vida nunca foi muito fácil pra mim,mas nunca me incomodou tanto quanto meincomodou nos últimos anos. Então, quandoeu voltei que eu comecei a construir de novo(a história do episódio no IPPS) acabaramvoltando os 20 anos. Eu já fazia crônica e euconsegui fazer o texto principal em primeirapessoa, eu peguei esse "click" que eu digo ecomecei o texto falando que todas as vezesque eu ouvia esse som, eu me remetia prodia lá - aí dava a data do (episódio no) presí-dio e começava a falar em primeira pessoa.Eu não sabia que eu sabia fazer isso - eu es-tou há 22 anos no jornal, descobri que sabiafazer isso faz dois anos. E eu fiz esse negócioda primeira pessoa com informações contun-dentes do jornalismo, fiquei besta quando videpois: "Valha meu Deus, como foi que eu fizisso?" Porque as pessoas ficaram admiradaspelo processo de construção do texto e eufui ver que eu tinha construído aquilo ali. Masa última página eu escrevi chorando porqueeu não queria admitir no começo que aquela

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historia também era a minha, para mim sóera a história do Dom Aloísio e do sistemapenal. Eu saí de lá (da redação) acabada, pa-recia que tinha feito sessão de terapia ...

Aline - Erilene, esse episódio marcou asua vida pessoalmente e profissionalmentetambém. Mas não era você que ia ser man-dada para essa pauta, era outro jornalista ecomo ele chegou atrasado, foi você. O quevocê pensa dessa estranha coincidência?

Erilene - Mulher, na vida tem muitas des-sas estranhas coincidências. Por ser estranhaa coincidência a gente já não explica, né? Eunão tenho como cientificamente explicar ascoincidências, é você acreditar ... Se tu tá meperguntando se eu acredito que (foI) o desti-no ou se eu estava predestinada pra isso, oualgum coisa assim, eu não sei lhe dizer ... Essaminha capacidade de resolver, de solucionaressas coisas que eu acredito do jornalismo,elas (as coisas) fazem com que, aparecendouma coincidência, dê certo.

Claryce - Como perspectiva de análise dasua trajetória dentro do Diário do Nordestepassando de repórter para chefe de reporta-gem, o que você acha que mudou na Erilenejornalista nesses 22 anos de empresa?

Erilene - Repórter, redatora e chefe dereportagem ... Da Erilene jornalista o que mu-dou? Mulher, eu estou muito mais sabida(risos da turma), muito mais sabida não sócomo jornalista, sabe? Mas como pessoa,né? Como pessoa. Você vai acumulando oconhecimento. Eu avancei muito em conhe-cimento como profissional nesses 22 anos,de repórter para chefe de reportagem, de

você ver pautas, dar a pauta, você vai ven-do coisas além, o que pode ser. Eu fui avan-çando em conhecimento não só porque es-tava dentro do Diário, mas porque tambémfui amadurecendo como pessoa e os meusconhecimentos foram se ampliando. Então,em termos de conhecimento, eu tenho mui-to mais norral (do inglês Know-how que signi-fica "saber como') de fazer, eu tenho muitomais sensibilidade; eu aprendi também a li-dar com o outro, a saber o perfil das pessoasque estão trabalhando comigo. É impossívelvocê viver dentro de uma redação como jor-nalista e aquilo também não mexer contigo,eu sou outra pessoa completamente diferen-te e muito da Erilene Firmino da Silva, queé o meu nome, vem desse período que eupassei no Diário, por exemplo. Essa questãode gerenciamento, decisão rápida, de vocêter de decidir rapidamente, isso aqui eu nãotinha, eu adquiri no Diário, na história da che-fia, de você ficar calmo quando todos estãodesesperados. E trouxe pra minha vida alémjornalista, então, foi muito crescimento pro-fissional e como pessoa.

Aline - Erilene, você observa alguma im-portância de haver duas mulheres, você e aMarta, em uma chefia de reportagem?

Erilene - É legal, né? É legal! Eu acho re-levante. Hoje eu e a Marta, o nosso trabalhoestá limitado a uma área geral, que é (as edi-torias de) cidade, polícia e regional. Teve ummomento em que nós duas éramos chefe dereportagem, hoje eu sou chefe de produçãoda geral e a Marta editora de área. Houve ummomento que era diferente, nós éramos che-

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A saída pós-entrevistada Naiana Rodrigues, Ra-fael Costa e Erilene Firmi-no ainda rendeu uma fotoque foi publicada no per-fil do Facebook da Naianacom a legenda "O grandeencontro!! !"

A amiga de ErileneFirmino, Francis, em en-trevista por telefone coma produtora Kamylla Ve-ras descreve a amizadedas duas através da ex-pressão "somos alma gê-mea" e para ilustrar essarelação conta que "quan-do uma está mal a outrasente".

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Em entrevista Erilenerelata a insistência da vi-ce-coordenadora do cur-so de jornalismo da UFC,Naiana Rodrigues, emconvencê-Ia a dar iníciona carreira de magistériodentro da universidade.

Na Pré-entrevista Eri-Iene relatou ter planejadoe escolhido as músicasdo enterro junto à irmãmais chegada Eliete en-quanto ela ainda estavano hospital.

fe de reportagem do Diário, ela de manhã e eude tarde, e você, de uma maneira ou de outra,tinha a responsabilidade por toda a redação.Eu acho importante a gente como mulher teresse espaço. Eu vejo também essa históriade você ter muitas mulheres no jornalismoe tem uma hora que ou você bota mulherpra chefiar, ou então você não tem chefe. Nonosso caso, a gente foi crescendo, os nossoschefes de reportagem anteriores nós fomosavançando dentro desse processo e, quandoeles se aposentaram, nós fomos promovidaspra isso. Então, eu acho legal ter esse espaçocomo mulher ali pra chefiar a área e achei im-portante também quando chefiava a redaçãocomo um todo ... Acho legal a gente ter esseespaço,né?

Theyse - Erilene, você relata e dá paracaptar nos seus olhos que existe certa difi-culdade de se colocar no que você escreve,tanto que o episódio do IPPS você escreveua última página chorando. Mas, na Erilenecronista, qual a quantidade de você que cabeno seu texto?

Erilene - A última página eu escrevi cho-rando não era porque eu tivesse com difi-culdade de me posicionar. Na verdade, eu

descobri que sabia me posicionar, escreverem primeira pessoa, escrevendo aquela re-portagem. Eu escrevi chorando porque eutinha passado quase 20 anos sofrendo, esses20 anos que eu passei, eu perdi a minha mãe(fala com a voz embargada), a minha irmã (Elie-te), eu aprendi, eu sofri. Então, quem chorouali não foi a jornalista, foi a Erilene, porque eufiz o retrospecto, 20 anos, ali eu me lembreicomo foi que eu cheguei em casa, eu tinhaperdido, eu tinha sofrido grandes perdas, eescrever sobre o dia me lembrou do dia há20 anos atrás de tudo o que eu tinha passa-do. Eu sofri pelos sofrimentos que eu tinhapassado nesses 20 anos, a Erilene, as perdasque eu tive e o que eu não tenho mais.

Os textos das crônicas já eram diferentesporque para mim é difícil ser o foco, ser alvo,eu efetivamente não faço nada com esse in-tuito, pra aparecer. Os meus textos são eu enão são, eu estou ali e não estou, em cadaum, é impossível eu não estar, porque cadaum deles fala de mim, de como eu vejo avida, de como eu penso. Não tem como eu,Erilene, não estar ali. Ao mesmo tempo, nemtudo que eu escrevo é meu. Eu vivi. Em cadatexto meu eu estou, a minha sensibilidadeestá lá, o meu jeito de ver a vida, as minhascrenças e todas essas formas.

Eu escrevo em primeira pessoa porquesempre escrevi diários e o convite pra escre-ver crônicas (no Diário do Nordeste) veio apartir de um blog que eu tenho - que tá para-do, bichinho - que é o Diário da Eri. Comeceia escrever o Diário da Eri quando eu parei deescrever pro jornal, virei chefe de reporta-gem e não escrevia. Começou aquela agoniade não escrever, aí eu criei o blog Diário daEri, aí eu escrevi em primeira pessoa.

Nem sempre o que eu estou dizendo euvivi. São coisas que eu sinto a partir de "nquestões": uma música, a literatura, uma fra-se, um olhar, uma pessoa ... Em todos eleseu estou e não estou. Então, dificuldade deme expor, de me despir, de ficar assim: "Eis-me aqui". Eu tenho absoluta porque pra mimé difícil, não é objetivo meu, nunca foi, serfoco. Isso aqui é mais ... Sei lá, resultado, sãocoisas que eu não consigo deixar de fazer;eu posso amanhã não escrever mais para oCaderno 3, eles desistirem, o Diário desistirdessa coluna, mas eu nunca vou conseguir

"Toda a minha vida, (... ) as experiências que euestou dizendo aqui para vocês, (...) refletem na

pessoa que eu sou"

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Page 26: Erilene Firmino - UFC

eixar de escrever.Não sei quanto tempo faz que as minhas

crônicas vêm sendo publicadas, mas eu seiuanto tempo faz que eu escrevo, desde que

eu me entendo por gente eu escrevo. Eusempre escrevia, eu não sei fazer outra coisa,eu só sei escrever. É como eu sou. Então, eutenho dificuldade, sim, de me expor porqueeu não sou uma pessoa pública.

Carol- Ejá que você falou que tem dificul-dade de se expor, como você lida com a re-cepção dessas crônicas, de pessoas ligarempara você ou até mesmo pessoas do jornalvirem falar com você após uma publicaçãode uma crônica que é algo tão íntimo seu?

Erilene - Eu acho muito legal! Para mimainda é estranho; eu acho estranho mas é le-gal como cada pessoa vê de uma maneira di-erente. Depois que eu termino o meu texto e

mando para o jornal, é incrível como ele nãoé mais meu. Terminei, mando para o jornal e"acabou-se". E as pessoas já começam a lere ver, eu acho interessante.

Na pré-entrevista eu disse para as meni-nas que o meu processo é um pouco lentoe eu só descubro as coisas depois que pas-saram, né? Eu disse: "Olha eu só descubroas coisas depois que passou". Depois quepassa eu "Valha e foi assim, valha foi assim?"E as pessoas ligando e gostando. Assim quecomeçou foi uma grata surpresa, eu achei le-gal saber escrever (risos). Saber escrever as-sim ... Porque eu escrevo desde sempre, masescrever de maneira que as pessoas compre-endam e o texto as toque e fale delas, né?Pra mim é ainda muito estranho. Eu fico felizque as pessoas gostem e entendam e se sin-tam próximas, mas se isso um dia acabar euvou continuar escrevendo porque é a formaque eu sou.

Diego - Erilene, para finalizar, permita-meque eu leia um trecho de uma crônica sua en-titulada a "Insaciável fome de mundo" (Erilenese assusta: "valha meu Deus'). Ela foi publica-da dia 2 de outubro no Caderno 3, diz assim:

"Comigo anda uma vontade de singrarmares, de explorar estradas, de ficar nesseindo e vindo sem pouso certo. Ver o mundo,observar as pessoas, escolher espaços dife-rentes para habitar, outros aconchegos. Teruma nova forma de olhar a vida. Meu tempoagora é de desapego a explicações e alge-mas. Tenho desatado os nós de tudo que dealguma forma aprisiona, inclusive o menosóbvio - carinho, segurança, o conhecido -,esvaziando a mala para tornar leve o cami-nho. Nasci passarinho, não suporto grilhõessejam eles quaisquer."

Agora eu te pergunto: por onde é quevai andar esse passarinho daqui para frente,quais são os seus planos para o futuro?

Erilene - Cara, (faz silêncio tentando orga-nizar as ideias) ... Eu acho que o meu tempo ...Eu tenho sentido uma necessidade muitogrande de ter uma vida mais leve. Eu gostode dizer as mortes das minhas mães porquea minha irmã que morreu. (fala emocionada)É como se eu tivesse uma mãe biológica euma mãe adotiva. A Eliete, que foi a minhamãe que morreu, foi aquela que brigou, quelutou para que eu fosse pro Liceu, facilitou, agente se aproximou muito - a gente era mui-to próxima - e o processo de luto é muito de-morado. Essas mortes, que foram duas emseis meses de diferença, de duas mães, mederam uma urgência de viver. Eu não queromais ficar esperando que um dia ... Eu nãoquero mais ficar. .. Entende? Eu tenho urgên-cia de ser feliz mais plenamente. Sabe aque-les desejos que a gente tem, sabe as históriasde levar o mar pra Maraponga? As questõesque você pretende, o que é importante pravocê, eu quero viver, eu não quero terminarsem ter vivido isso. Elas duas, quando morre-ram, morreram plenas, porque a minha mãemorreu tinha 85/86 anos, mas ela tinha tidoa vida que ela tinha se proposto, ela estavacom os filhos dela; a minha irmã morreu deuma maneira bem mais serena, inclusive, doque a minha mãe, e ela também tinha realiza-do o que se propôs. E essas mulheres lá decasa sempre foram mulheres muito fortes eeu sou uma herdeira fiel delas, eu não queroterminar diferente, eu quero ser plena.

Hoje eu tenho a vida que eu quis paramim e o que eu quero mais ainda é ter umavida mais leve, continuar escrevendo, poderusufruir mais, porque a minha vida toda foisempre muito ocupada. Ai, "Erilene, o que éque tu vai fazer? Tem algum projeto?" Eu nãotenho efetivamente nenhum projeto concreto.Eu sei o que eu quero: ter uma vida mais leve.Um dia eu quis ser jornalista, sou, levou umtempo, e hoje o meu projeto é ter uma vidamais leve e eu estou efetivamente começan-do a construir isso.

Quando eu fiz isso (a crônica "Insaciávelfome de mundo) em outubro, eu estava co-meçando a sair desse processo de luto, essaurgência, esse passarinho - essas históriasde passarinho têm muito a ver com o meupai - tem essa necessidade de ver tudo eesse tudo é dentro dessa ideia, desse projetoque eu tenho, essa vontade hoje de ter umavida mais leve e ser mais tranquila, sabe? Épor aí que esse passarinho vai voar.

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A cor preferida de Eri-Iene é o vermelho. A in-formação foi confidencia-da pela amiga e tambémjornalista Marta Bruno,durante a entrevista com adupla de produção, Carole Kamylla Karen.

Ao falar de Erilene Fir-mino e, consequentemen-te, relembrar as históriase as situações que passa-ram juntas, Marta Brunonão resistiu e se emocio-nou na entrevista da pré-produção.