Segura firme, Firmino

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Índice Firmino Menino: Primeira lembrança 6 Firmino Menino: Segunda Lembrança 15 Firmino Menino: Terceira lembrança 24 Firmino, Moço Virgem Sem Lembrança 38

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Augusto Juncal

Segura firme, Firmino

Edições ENFF

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Firmino Menino: Primeira lembrança

Vovó sopra mais uma vez as brasas dentro do ferro de passar. Fecha com esse barulho a tampa e com o braço esticado sobe e desce o ferro. O ferro deve tá muito quente agora. Brasa dentro do ferro, brasa nos olhos de vovó que com raiva passa e xinga. Eu tenho medo quando vovó começa a xingar. Um dia já tive uma costela quebrada de uma vassourada. Vovó varria o terreiro e xingava. Eu vi o pato e joguei nele uma pedrinha. Gosto de ver pato correndo. É bem engraçado. Errei o pato, mas vovó me acertou com força. Nem vi o pato

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correr, que correu mesmo sem eu ter acertado a pedrinha. Outro dia tive também um corte do facão no braço. Vovó descascava coco e xingava. Depois de descascar o coco vovó, com o facão tirava a carne e jogava na bacia. Peguei um pedaço de coco que nem cheguei a por na boca. Vovó me deu uma lapeada com o facão. A lâmina rasgou quase de leve meu braço. Passei areia no corte para estancar o sangue.

E também um dia assim com vovó passando ferro e xingando tive a língua queimada. Tinha chegado uma carta de mamãe. E mamãe não tinha mandado nenhum dinheiro. Vovó começou xingando mamãe. Depois começo me xingar. Vovó me xinga sempre. Eu não ligo. Mas não gosto quando vovó xinga a mamãe. Fico bravo. Zangado mesmo. E embora eu só tenha deixado sair só a

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ponta da língua, vovó viu. Eu nem dei por conta e ela já tava garrando no meu queixo, dizendo: abre a boca, pestinha. Mostre a língua agora. Eu não devia ter mostrado língua para ela. Vó é mãe duas vezes. E eu não sei da minha mãe. Só sei da minha Vó.

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Agora vovó passa essa camisa branca de vovô ir pra cidade. Vovó passa e xinga. Ela começa xingando a camisa do vovô ir pra cidade, depois xinga muito o vovô e acaba comigo. Eu gosto da vovó. Mas não gosto quando ela xinga. Um dia

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vou esconder essa camisa branca de vovô ir pra cidade. Vovó também vai para cidade. Vai pegar dinheiro da funrural. Eu nunca andei de funrural. Mas seu Emílio tem uma verde e branca. Vovó vem com o dinheiro e às vezes eu ganho uma roupa nova. Eu gosto da Vovó. Só não gosto quando ela xinga.

Vovó ta dizendo pra eu levar a camisa pro vovô. A camisa do vovô é grande. É do meu tamanho. Vovô ta no quarto. Quando a vovó começa a xingar ele fica no quarto. Eu vou pra debaixo do pé de mangueira. Mas vovó quando começa a xingar, a primeira coisa que faz é gritar: Firmino, vem aqui agora. E eu corro com toda velocidade para chegar antes que ela acabe o grito. Firmino também é meu pai. Ele é quem mais vovó xinga. Mas eu não ligo que ela xingue ele. Só não gosto que ela xingue mamãe.

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Eu penso que mamãe vem me buscar logo. Eu vou com ela pra cidade. Vou ver carro andando por cima e por baixo. Lá o chão é duro. Eu não vou ter como capinar. Então não vou ter que ir pra roça capinar. Vovô vai ir sozinho. E vovó vai ter que ir levar a comida dele que eu não vou estar aqui pra vir buscar. A vovó vai xingar muito, mas muito o vovô. Capaz dele não sair mais do quarto. Então eu vou morar na cidade. Numa casa bem alta. Vou andar de carro. Muito carro. E vou tá com a mamãe. Que ela volta pra me buscar. Quando mamãe foi embora ela usava um sapato alto. Vovó xingava muito o sapato alto. Mamãe bonita de sapato alto. Ia ver onde o papai tinha ido. Papai foi e não falou pra onde foi. Só foi. Quando eu chegar no quarto vovô vai me mandar eu vestir roupa. Mas eu prefiro andar nu que é pra não sujar

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roupa para vovó não se zangar comigo porque sujei roupa que é para vovó não começar xingar minha roupa suja. Vovó não xinga muito porque eu ando nu. Mas xinga na hora de me dar banho. Mas eu já estou tomando banho sozinho. Às vezes meu vô me ajuda. Eu gosto quando ele me ajuda. Ele não me afoga nem parece que vai arrancar minha pele. E o banho com o vovô é silencioso. Eu gosto muito do silêncio.

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Eu acordo cedo e vou pra debaixo do pé de mangueira antes que a vovó acorde que é prá ouvir o silêncio. Não cidade não tem silêncio com tanto carro. Mas eu gosto da cidade. Não tive lá ainda, mas eu gosto. Mesmo sem

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silêncio. Quando eu chegar lá eu já vou saber tomar banho sozinho e ficar bem limpo. Mamãe vai gostar. Não vou querer que ela se zangue porque eu não me lavei direito. Acho também que lá não vai faltar pasta de dente. E eu não vou usar mais carvão. Vovó diz que carvão deixa os dentes mais brancos. Mas o gosto é ruim. Ah não! O Suvenir ta bem embaixo da mesa. Ele não pode me ver. Agora não. Só na volta. Vovó também xinga muito o Suvenir. É só ele começar a latir. Eu gosto da vovó, mas o Suvenir não gosta. Ele outro dia rosnou feio pra ela. Isso eu gostei. Ele até podia ter mordido ela um pouquinho. Um pouquinho só. Eu gosto da vovó e não quero que ela seja muito mordida. Mas o Suvenir tem o direito de se defender. E tem dentes para isso. Até eu, que ele gosta muito, já avançou pra mim. Eu queimei a orelha

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dele com um fósforo. Ele avançou, quase me mordeu, mas não mordeu. Eu nunca mais fiz nenhuma maldade com ele. Ah! Ele uma vez me defendeu da vovó. Ela veio com a tomada do ferro e acertou nas minhas pernas. Ele avançou nela. O Suvenir me salvou naquele dia. Desde esse dia fiquei muito mais amigo dele.

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Mas ele acabou de olhar pra trás e me viu. E ta vindo muito rápido em minha direção. Não, Suvenir, fique lá! Não venha. Não, Suvenir. Pare! Tarde demais. Suvenir fica sempre muito alegre quando me vê. E vem logo para cima de mim pra eu brincar com ele. Mas ele não ligou pra camisa branca de vovô ir pra cidade. Camisa branca, limpa e passada. Agora preciso levar a camisa pro meu vô. Ela está cheia das marcas das patas do Suvenir. E agora, Suvenir? Foi o vovô quem colocou o nome Suvenir.

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Firmino Menino: Segunda Lembrança

Vovó já tá com raiva. Nem acordo vovó já tá danada da vida. Já tá maldizendo tudo. Daqui a pouco ela começa a xingar a mamãe. E vai vir descontar em mim. Ela sempre começa reclamando de alguma coisa. Qualquer coisa que não deu errado. Daí ela vai xingando, e vai falando de outras coisas que já deram errado antes, coisas que já passaram, e vai aumento o xingamento, aí ela chega na mamãe, neu e por último sobra por Suvenir, que nem mãe tem. Não que ele é filho de chocadeira. Mas eu não sei quem é a mãe dele para dizer

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pra ele. Vovô trouxe ele pequeno pra cá. Ganhou de alguém e deu pra mim. Também não sei quem é o pai de Suvenir. Também não sei quem é o meu. Sei que vovó chama ele de preto e fedido. Que me fez na minha mãe e largou a bucha pra ela cuidar. Eu não sei o que é a bucha para ela cuidar. Mas deve ser algo de muito ruim pra vovó ficra assim desse jeito quando fala dele e da mamãe. Eu não gosto quando a vovó fala essas coisas da mamãe. Fico bravo. Zangado mesmo. Quando eu for grande eu não vou deixar ela falar assim da minha mãe. Mas minha mãe vem me buscar antes disso. E eu vou levar o Suvenir comigo pra cidade. Ele também vai conhecer os viadutos tudo. Mas porque que vovó já tá tão zangada hoje assim de manhã? O Vovô não deve tá em casa. Nem tô ouvindo ele dizer: Calma, muié. Prá que tanta confusão por

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tão pouca coisa? O vovô é meu pai. Ele sempre traz coisa da cidade pra mim. Um dia ele trouxe o Suvenir. Foi o dia mais alegre da minha vida. Nossa, agora caiu as panela tudo. Nossa vovó tá virada no diabo. O que aconteceu? Eu é que não vou sair agora da cama. Vou ficar aqui, quietinho no meu canto, aqui na cama, encolhidinho debaixo do meu lençol. Vô fingir que nem existo. Quando eu ouvir a voz do vovô eu saio. Ai meu Deus! É com o Suvenir que ela tá brava. O que será que ele fez? Tá xingando muito a vovó. Tomara que o vovô chegue logo.

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Se a vovó não fosse tão apegada ás suas panela eu ia dizer que ela tava até quebrando elas. Mas é que quando a vovó tá de pá virada ela via xingando e nem vê o que vai fazendo. Depois ela amassa uma das panela aí fica com mais raiva porque amassou a panela e aí vai querer descontar no Suvenir e n'eu. Diz que a gente é que deixa ela assim. E que foi nossa culpa dela ter amassado a

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panela que ela gosta tanto. Vovó gosta muito das panela dela. Parece gente as panela. “Desgraçado de cachorro. Peste. Um dia eu mato essa desgraça. Quem mandou trazer este traste prá cá? Mais um traste pra ter que dar comida. Que inferno. Que inferno”.É hoje que com diz o vovô, a juripoca vai piar. Já tá piando. A vó é que nem a juripoca, que solta aqueles pio nojento que ninguém aguenta. Parece inté agouro. Mas num sou nem doido de dizer isso pra vó. Ela ranca minhas duas oreia fora.

Outro dia o vô chamou ela de matraca. Eu gostei. Quase inté ri. Mas fingi que não queria rir. Pra essa palavra do vô ela disse dez pra ele. O vô não disse mais nada. Saiu. Foi andar na rua. Acho que foi lá pra venda do Seo Eliseu jogar conversa fora. Também quando eu crescer, e a vó começar essa gritaria pior

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que a da juripoca, eu também vou pra venda do Seo Eliseu, jogar conversa fora. Jogar conversa fora! Que coisa mais engraçada. Jogar conversa fora. Deve ser falar da vida.

Mas a mamãe vem me buscar eu eu vô jogar conversa fora, lá na cidade grande, em cima e embaixo dos viaduto tudo que tem lá. Acho que a vovó parou de xingar! Será? É parou. Vou levantar. Tá tudo calmo agora. Acho que a vovó saiu. Suvenir! Suvenir! Deve tá debaixo de alguma árvore. Ele não é besta não. Quando a vovó começa a xingar ele corre por quinta e fica lá escondidinho e quietinho. Os bicho também entende. E

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não são besta nem nada. Vô escovar meus dente logo. Lavar o rosto. Tomar meu café. Quando a vovó chegar eu já vô tá no mundo com o Suvenir. Vou catar cajú. É bom quando a vovó não tá em casa. Fica silencio na casa toda. Tomara que o vovô chegue antes dela. Cadê o Sunevir? Suvenir! Suvenir. Ele nunca demorou tanto para atender quando eu chamo ele. Onde ele se meteu? Vem Suvenir a vovó saiu. Pode vir agora. Suvenir! Suvenir! Vamo lá pro pé de cajueiro. Suva! Suvinha! Vem cá nego! Sou eu! Firmino! Suvenir! Cansei. Deixe eu sentar aqui no batente. Se ele estivesse por perto já teria vindo. Onde será que a vovó foi? Ela nem demora tanto assim quando sai. Diz que não coisa de ficar de conversa mole na rua. Conversa mole. Essa também é engraçada. Conversa mole, conversa

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dura. Conversa mole, conversa dura. Muito engraçado. Mole, dura. Mole, dura. SUVENIR! Suveniiiiiiiiiiiir! Suvenri não é de sair para longe sem eu. Ele sempre me espera eu acordar! Onde será que ele se meteu? Já faz tempo que tô aqui gritando e ele nem dá sinal. A vovó também tá demorando muito. Ah! Já sei. Dona Rosentina, Dona Rosentina! A senhora viu a vovó? “Saiu faz um tempo”.E a senhora viu o Suvenir? “Ela tava levando ele”

Firmino estremeceu.

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Onde será que a vovó levou o Suvenir? Porque o vovô não chega logo? Ai! Lá vem a vovó. Mas o Suvenir não vem com ela. Vou perguntar a ela onde está o Suvenir. Elá tá com a cara muito brava. Melhor esperar o vovô. Bença Vó. “Deus te abençoe!Já tomou café?” Já sim vovó. Vovó! “Que foi?” A senhora viu o Suvenir? “Num vi peste de cachorro

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nenhum”. Melhor não perguntar mais. O Vovô já vem vindo. Deixe eu corre até ele. Eu num vou chorar. “O que foi meu fio, que você tá chorando? Vô, a vó saiu com o Suvenir de manhã cedo, e voltou sem ele. “Vou saber o que aconteceu”.

É noite, Firmino está deitado na cama. Tem febre. Seu avô ao lado dele. Afagando sua cabeça. Voz calma e tranqüila: “Não fique tão triste assim meu filho. Afinal, o nome dele quer dizer lembrança. Em outra língua dum outro país, Suvenir que dizer lembrança. Depois a gente dá um jeito e arranja outro cachorrinho pra você. Agora tome esse chá que você tá com febre. Amanhã você vai tá mió. Se sentir alguma coisa de noite, me chame”. Beija o neto e sai, deixando a janela do quarto aberta pra

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noite. Firmino fixa o olhar no pé de fruta-pão, alçado no céu escuro. A árvor é uma sombra quase fantasmagórica realçada pela luz da lua. Firmino olha no alto do pé. Na última folha, que se desenha destacada, sozinha, na ponta de um galho. Olha fixo para conter o choro. O avô desliga a última lampada. A casa escurece totalmente. Breu. Os dois velhos dormem. Firmino chora. Chora muito. Chora de cansar. E cansado adormece. E mesmo sonha: Suvenir-Suvenir. Suvenir-Lembrança. Lembrança-Lembrança...

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Firmino Menino: Terceira lembrança

Quando mamãe veio para me buscar, ela nem precisava perguntar se eu queria ir com ela. Eu vou mamãe, com você! Eu brincava sozinho no quintal. Tava cavando um túnel assim que nem tem na cidade. Onde carro passa por cima e por baixo. Viaduto é como chama. Tem muito viaduto na cidade. Quando mamãe veio me buscar eu pensei logo nos viaduto da cidade. E no carro de mamãe.

Quando mamãe chegou eu tava no fundo do quintal. Alguma coisa chamou

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minha atenção lá na frente da casa. Parei de cavar e olhei. Passando o quintal, passando a porta dos fundo da casa, passando a cozinha, olhando bem na porta da rua que ficava dentro da porta da cozinha para sala, vi uma moça dentro da porta da rua. Parecia que tava dentro do porta retrato. Que nem a vovó tá em um lá no quarto dela. Vovó vestida de noiva com o vovô. Atrás deles a imagem do Sagrado Coração. Eu acho muito bonito o Sagrado Coração. Eu rezo todo dia pro Sagrado Coração. Sempre pedi para um dia mamãe vir me buscar. E ele me atendeu. Eu sou devoto do Sagrado Coração. Quando eu for com mamãe, eu vou levar o da vovó escondido. Ele vai ajudar muito a gente: eu e a mamãe.

Mamãe era uma foto de bonita. Tava com um pé na calçada e outro fora. Vestia um vestido-mini-saia vermelho.

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Bem curto. Bem decotado. Pernas bonitas. Bem brancas. Cor de leite sem ferver. “Um par de coxa sustentando uma bunda saliente e prominente”. Bem assim disse Seo Gentil da farmácia quando falou de mamãe tempos depois. Eu não sei o que quer dizer prominente. Saliente eu sei. Vovó adora falar essa palavra comigo. Quando chega alguém em casa eu eu vou conversar com ela, eu gosto de falar com as pessoas,a vovó diz logo: fique quieto, moloque saliente. Então agora eu gosto de ser saliente se as pernas da mamãe também é.

Mamãe era uma foto de cabelos lisos e loiros. Eu ouvi quando a vovó chamou a mamãe de loura apuço. Com eu já conheço a vovó, sei que não deve ser uma coisa muito boa. Eu achei o o cabelo dela lindo. Eu achei ela linda.

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Agora que a mamãe chegou eu quero ver a vovó falar aquelas coisas toda que ela fala da mamãe sem ela aqui. Quero ver. Mamãe chegou e veio me buscar. Vou com ela pra cidade passar nos viadutos. A cidade grande tem muitos viadutos. Muitos mesmo.

Quando vi mamãe parada dentro da porta com um pé na calçada e outro na rua vestindo vermelho, eu corri para o lado da casa. De lá foi de mansinho me arrastando pela parede até chegar no muro para ouvir a voz da mamãe. Ela falava com a vovó. Acho que vovó não tava muito contente.

“A refém de que você voltou?”

“É assim que a senhora me recebe, mãe?”

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“Se veio buscar o menino seja bem vinda. Se não veio, pode voltar por cima do rastro”

Ouvi o banquinho da vovó arrastar na calçada. Ouvi a vovó escarrar. Não vi mas vi a vovó tirar o cigarro de fumo da boca, escarrar no chão, passar cuspe nas ponta dos dedo, apagar o cigarro e colocar ele no bolso. Acho que a vovó entrou em casa e deixou a mamãe lá fora. Não vi mas vi a saia da vovó grudada na bunda dela. A bunda da vovó é magra e velha. Eu dou risada quando vejo abunda da vovó. Um dia ela me jogou a cuia com

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água quando tomava banho. A saia da vovó também já é bem velha. Pensei se saia na rua ou se esperava a mamãe me encontrar. Tava pensando nisso quando ouvi a voz de um homem.

“Melhor a gente ir embora. Sua mãe é uma grossa”

“Calma, ela é assim mesmo. Vamos entrar”

“Você não tem vergonha na cara”

“Não se preocupe com a mamãe. E depois, o papai é muito diferente dela. Vai ficar feliz de nos ver. Pegue as crianças e vamos entrar”

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Entraram em casa mamãe, um homem e duas crianças. Uma menina bem pequena, e um menino do meu tamanho. Ernesto. Ouvi quando ela disse.

“Venha Ernesto. Venha com a mamãe”

Eu voltei me arrastando pela parede até chegar perto da porta do fundo. Ouvi que ela falava outra vez com a vovó.

“Em que quarto podemos dormir, mãe?”

“No do meio. Tem uma cama de casal lá. Dá pra vocês tudo”

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“Esse é o homem da minha vida, mãe. É o meu homem. Sou a mãe dos filhos dele. Sou uma mulher feliz”.

Vovó pouco ligava praquela conversa da mamãe. Vovô chegou na porta da rua. Olhei bem escondindinho. Vi a mamãe abraçar o vovô.

“Pai!”

“Oi, fia, cê tá boa?”

“Tô levando pai”

“Tá feliz?”

“Tô pai, tô”

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Olhei demais. Fui descoberto. Mamãe me viu. Eu queria que isso acontecesse logo. Só não tinha coragem de aparecer assim na frente dela. Quando ela me viu, me apontou.

“É o Firmino, pai?

“Sou eu mamãe. Sou o Firmino” pensei.

“Ele mesmo, fia. O Firmino, teu fio”.

Mamãe toda muito vermelha se aproximou de mim. “Oi, Firmino. Olha o que eu trouxe para você”. Desembrulhou, lentamente um carro que eu não via. Só

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via ela, vermelha e bonita, muito bonita. Você é bonita, mamãe. Peguei presente que ela me dá. Olho muito pra mostrar que gostei. Gostei mesmo. Mesmo que fosse um carro feio, eu ia gostar igual. Mas era um carro bonito. Mamãe me pôs no colo. Me fez carinho. Perguntou se eu já sabia ler. Eu ia repsonder. Mas as vovó respondeu antes.

“É burro feito uma porta. Não aprende nada. E é teimoso feito cão. Te, bem a quem puxar”

Fiquei com vergonha. Por causa disso a mamãe podia não gostar de mim. Fiquei com raiva da vovó. Mas o vovô me defendeu.

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“Nada, fia. Esse Firmino é um menino de ouro. Né, Firmino?”

É sim vô, eu pensei. Eu ri por vô. O homem saiu do quarto com o Ernesto e a menina. A mamãe levantou deixando eu sentado na cadeira com meu carro. Abraçou o homem e falou pro vô:“Pai, meu marido. Meus filhos”. Vô cumprimentou o homem, e disse pro Ernesto: “Dá benção pro vô”. Mas o Ernesto não deu a benção pro vô. Eu é que não levanto sem dizer: Bença vó, bença vô”. Quem faz isso é hereje. Um dia esqueci e avó disse logo: não via pedir bença, herege?” Nunca mais esqueci de pedir a bença. Não quero ser herege.

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Eu tava perdendo as contas dos dias que mamãe estava com a gente. Mas eu já tava com a minha malinha arrumada. Arrumei escondido pra vó e por vô não ver. Na hora de ir embora eu já vou tá pronto, pensei. Esse Ernesto é muito chorão. Será que ele chora tanto assim lá na cidade? Toda hora a mamãe para de conversar comigo pra ver o que ele tem. O homem é muito sério. Vovô tenta conversar com ele, mas ele parece não gostar muito. Responde qualquer

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coisa e sai. Meu avô não liga. Ele só quer ser educado com o homem.

Ontem eu tava na cama. Não dormia só pensando na hora de ir embora. Era bem tarde. A lua já tinha passado pela minha janela e já não tava mais no alto do pé de fruta-pão.

Ouvi um sussurro que aumentou e virou um bate-boca. O homem falava zangado. Minha mãe, tentava calmar ele. Ele falava coisas pra minha mãe. Xingava minha mãe. Meu coração ficou cheio de ódio.

Se eu fosse grande eu defendia minha mãe. A briga ficou feia. Ouvi um tapa. Logo depois silencio. Ouvi um barulho de porta batida. Outro barulho de porta batida. Um carro indo embora. Silêncio. Ouvi os soluços baixinhos da mamãe.

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Fiquei triste. De tão triste o sono me pegou que nem vi. Hoje de manha a casa estava silenciosa. Abri os olhos e vi que já era dia.

Fiquei quieto na cama. Queria ouvi a voz da mamãe. Esperei. Tudo quieto. Levantei. Escovei dentes. Tomei meu café co m pão. Via vovó varrendo o terreiro. Vi o vovô sentado debaixo do pé de fruta-pão. Fui até lá.

“Vô, o sinhô sabe se a mamãe já acordou?”

“Já fio. Acordou cedo. Pegou o ônibus e voltou pra cidade com os menino. Foi atrás do marido”

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Fiquei ali do lado do vô olhando o chão. Aí lembrei da minha malinha. Corri por quarto e desarrumei ela antes que o vô ou a vó visse. Guardei lá dentro o carro que a mamãe me deu.

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Firmino, Moço Virgem Sem Lembrança

Firmino tinha doze anos quando seu avô morreu. A primeira vez que ele viu a casa longamente imersa em silêncio foi quando voltou do enterro. Sua vó entrou em casa sem dizer palavra. Deitou-se na cama e não saiu mais do quarto. Firmino não entrou em casa. Sentou-se num banquinho que se encontrava na calçada, na porta da casa. Ficou toda a tarde olhando. Ora na direção do céu, de onde seu olhar vinha caindo, caindo, caindo, até topar com o teto da casa do outro lado da rua. Ora na direção da rua, para onde seu olhar ia

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compridando, compridando, compridando até dar com a venda de Seo Eliseo, onde as pessoas entravam e saim, pequenininhas na sua lonjura. Dia quente. O vapor que saia do chão borrava as pessoas que entravam e saiam da venda. Distantes e borradas as pessoas. Firmino ficou a tarde toda olhando. De vez em quando atentava para um canto de um assanhaço. Outra vez de um bem-te-vi. Um arrulho da rolinha fogo-pagou.

Seu avô adoeceu. Queixava-se de dores. Levantava-se com dificuldade. Firmino estava sempre ao seu lado. Ajudava-o. Trazia-lhe o penico. Limpava-o. O velho agradecia. A vó dizia que era manha do velho: “Eu também tenho dores e não me queixo. Continuo de pé, trabalhando”.

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Um dia de manhã, Firmino acordou, escovou seus dentes, tomou seu café perto e comeu seu pão co manteiga e foi para junto do avô esperar que ele acordasse para ajudá-lo. A manhã passou e seu avô não acordou. Firmino foi até a vó que ariava suas panelas: “Vó, acho que o vô morreu”. A velha parou por alguns segundos. Secou as mãos no avental e foi ver. Firmino não a seguiu. Logo ela retornou: “Vista seu avô. Vou providenciar o enterro dele”. Disse e saiu. Firmino dirigiu-se ao quarto. Era a primeira vez que via um morto. A morte não lhe pareceu feia. Mas calma e silenciosa. Vestiu seu avô em seu terno de ir no banco receber dinheiro. Que era o mesmo de algum casamento, ou de alguma festa. Festa que raramente o avô ia. Mas sempre que havia um pronunciamento do prefeito da cidade,

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seu avô ia. E ele ia junto. Também vestido na sua melhor roupa. Para fazer par com avô. Mas não era sempre que o prefeito falava. Firmino só ficou na dúvida dos sapatos: morto usa ou não usa sapatos? Apostou que sim. E se usava sapatos, também usava meias. E assim foi. E veio toda aquela gente. Uma noite de rezas e conversas. Firmino dormiu sentado na cadeira. De manhã o enterro.

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A tarde caia, caia. Firmino olhava, olhava. Ora nuvens no céu que o vento deslocava. Ora poeira no chão que o vento levantava.

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Um dia antes de morrer seu avô falou: “Firmino meu filho, seja homem. Não traga nenhuma dor de cabeça pra sua vó. Por favor, meu filho, seja um homem de bem”.

Um cardeal posou com sua cabeça e pescoço vermelhos, na cerca. Bem em frente. Firmino assoviou: pai-filho-espirito-santo-amém. O cardeal respondeu. Assoviou outra vez: pai-filho-espirito-santo-amém. Respondeu de novo. Da cerca o cardeal voou para uma árvore próxima. Cantou. Cantou belissimamente. Firmino olhava, olhava. A tarde já ia muito de caída. Firmino avistou um carro vindo das bandas da rua, de lá da lonjura da venda de Seo Eliseo. Veio vindo, veio vindo. Parou. Firmino olhou o motorista. Não conhecia aquele homem. Viu uma mulhar ao lado dele. Também estranha. A porta traseira

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se abriu e ele viu sair D. Rosentina. Toda vez que firmino tinha dor de dente, ele corria pra casa de D. Rosentina. Ela rezava com um galho de planta que pegava do quintal e a dor passava.

“Firmino, meu fio,” ela disse. “Esse casal aqui, que é gente de confiança, tá precisando de uma pessoa para cuidar do jardim da casa deles lá na cidade. Eu disse que você era uma boa pessoa. Um menino de juízo. E eles quer saber se você quer ir com eles. Morar lá com eles.”

Firmino se levantou e entrou no carro. A mulher olhou para ele já sentado no banco de trás:

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“Você não vai pegar suas roupas?”

“É essa que eu tô vestido”

O homem que dirigia deu partida no carro. Foram. Ao saírem da cidade e entrarem na estrada, o homem que dirigia, sorridente, perguntou:

“Conhece a cidade Firmino?”

“Conheço não sinhô”

“Você vai gostar”

“Vô sim sinhô”

“Tem algum parente por lá?”

“Sei não sinhô”

“Sabe cuidar de plantas?”

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“Sei plantar”.

A tarde caiu completamente. A noite chegou e avançou com sua lua desenhada a compasso no céu. Com a cabeça recostada no banco do carro, Firmino olhava pelo vidro de trás a lua imensa que ia acompanhando o carro. Na verdade, e isso Firmino não sabia, ela o acompanhava. Era a mesma lua que ele via da janela do quarto detrás da folhagem alta do pé de fruta pão. Era a mesma lua e já era uma lua diferente, pois era uma lua em mutação. Firmino pensava: A lua! Firmino estava indo para a cidade. Mas não pensava nisso. Só pensava: A lua! Firmino tinha 12 anos quando seu avô morreu.

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Índice

Firmino Menino: Primeira lembrança.....6

Firmino Menino: Segunda Lembrança..15

Firmino Menino: Terceira lembrança.. .24

Firmino, Moço Virgem Sem Lembrança...............................................................38

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