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Desde o início do século XX, inú-meras teorias desenvolvidasem diferentes áreas do conheci-

mento científico têmse apoiado, direta ouindiretamente, em pressupostos episte

mológicos, teóricos e mesmo empíricos pertinentes à perspectiva sistêmica. Aadoção do paradigma sistêmico, porém,

tem gerado um amplo debate e muita con-trovérsia entre pesquisadores.

Na moderna história da abordagemcientíficosistêmica, principalmente du-rante o século recémpassado, a noçãode sistema apresentou diferentes enfo-ques epistemológicos que, de certa forma,

foram desenvolvidos com o objetivo deacompanhar a complexidade crescente,identificada no mundo empírico atravésde descobertas científicas, tanto nas cha-madas ciências duras como nas ciênciassociais.

Nesta coletânea, os autores procuramapresentar as potencialidades analíticasatinentes ao novo pensamento sistêmico ea sua possibilidade de diálogo com a teoriado discurso. Ambas as perspectivas teóri-cas inscrevemse numa matriz complexapósfundacionista e têm em Niklas Luhmann e Ernesto Laclau seus dois principaisexpoentes nesta contemporaneidade.

Se tomadas as trajetórias intelectuaisde Laclau e Luhmann, num primeiro mo-mento, pode parecer difícil estabelecerestritas comparações entre ambos. Entre-tanto, verificase que, apesar das distintastrajetórias desses autores, é possível quea teoria do discurso e a teoria dos siste-mas sociais dialoguem entre si, uma vezque apresentam pontos de convergênciaextremamente profícuos que neste traba-lho serão revelados.

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ERNESTO LACLAUE

 NIKLAS LUHMANN

PÓS-FUNDACIONISMO, ABORDAGEM SISTÊMICA 

E ASORGANIZAÇÕES SOCIAIS

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Léo Peixoto Rodrigues

Daniel de Mendonça( o r g a n i z a d o r e s )

Emesto Laclaue

 Niklas LuhmannPÓS-FUNDACIONISMO, 

ABORDAGEM SISTÊMICA E AS

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS

BDIPUCRS

Porto Alegre, 2006

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© EDIPUCRS1“ edição: 2006

Capa: Samir Machado

Preparação de originais: Eurico Saldanha de Lcmos

 Revisão :  dos organizadores

 Revisão técnica: Liziane Zanotto Staevie

Editoração e c omposição:  Suliani Editografia

impressão e acabamento:  Gráfica EPECE

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

E71 Em esto Laclau e Nik las Luhmann : pós-fundacionismo,abordagem sistêmica e as organizações sociais / LéoPeixoto Rodrigues, Daniel de Mendonça(organizadores.) - Porto Alegre : EDIPUCRS, 2006.

172 p.

ISBN 85-7430-590-1

1. Luhmann, Niklas - Critica e Interpretação.2. Laclau, E mesto - Crítica e Interpretação.3. Organizações Sociais. 4. Ciências Sociais.I. Rodrigues, Léo Peixoto. II. Mendonça, Daniel de.

CDD 301.04

Ficha Catalográfica elaborada pelo

Setor de Processamento Técnico da BC-PUC RS

Proibida a reprodução total ou parcial desta obrasem autorização expressa da Editora.

EDIPUCRSAv. Ipiranga, 6681 - Prédio 33

Caixa Postal 142990619-900 - Porto Alegre - RS

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E-mail: [email protected] 

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SUMÁRIO

I n t r o d u ç ã o

 Léo Peixoto Rodrigues  e  Danie l de M endonça ............................................... 7

1 Olhar além do fundamento Eduardo L u ft............................................................................................................15

2 A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação 

dos sistemas: uma revisão epistemológica crítica Léo Peix oto R odrigues ..........................................................................................35

3 O construtivismo sistêmico nas ciências humanas e sociais M arcelo Arnold Cathalifaud  e  Fern ando Robles Salgado ........................ 68

4 Laclau e Luhmann: um diálogo possível Daniel de M endonça e  Léo Peixoto R odrigues.............................................87

5 Política e subjetividade no pensamento de Ernesto Laclau

 Mirta G ia caglia .....................................................................................................100

6 Sem objetivo? Movimentos sociais vistos como sistema social

 Emil A lb ert S obottka ...........................................................................................115

7 Estado e Direito como sistemas autopoiéticos:

uma abordagem da teoria de sistemas de Niklas Luhmann

 Rodrigo Ghiringhelli de A zevedo ....................................................................129

8 A condensação do imaginário popular oposicionista  

num significante vazio: as “diretas já ”

 Danie l de M endonça ........................................................................................... 146

Conheça os autores....................................................................................................... 170

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Introdução

Léo Peixoto Rodrigues e Daniel de Mendonça 

------------------------   -------------------------

Desde o início do século XX, inúmeras teorias desenvolvidas em diferen

tes áreas do conhecimento científico têm-se apoiado direta ou indiretamente 

em pressupostos - epistemológicos, teóricos e mesmo empíricos - pertinentes 

à perspectiva sistêmica. A adoção do paradigma sistêmico, porém, tem gerado 

um amplo debate e muita controvérsia entre os pesquisadores.

Na moderna história da abordagem científico-sistêmica, principalmente 

durante o século recém-passado, a noção de sistema apresentou diferentes en

foques epistemológicos que, de certa forma, foram desenvolvidos com o obje

tivo de acompanhar a complexidade crescente, identificada no mundo empí

rico através de descobertas científicas, tanto nas chamadas ciências “duras” 

como nas ciências sociais.

Uma outra dificuldade que chama a atenção quanto à adoção de um qua

dro de referência sistêmico para as pesquisas científicas, desta vez, mais vin

culado à teorização em ciências sociais, é o fato de que tanto a noção de sis

tema como a noção de estrutura - como conceito, método, e fundamentação 

epistemológica - foram utilizadas de forma equivalente em diferentes esfor

ços teóricos interdisciplinares. A (suposta?) comensurabilidade de tais conceitos não parece ter dependido desta ou daquela disciplina; fora aplicada de  

maneira transdisciplinar e, muitas vezes, equivocadamente. Fato é que a ca

pacidade de tais conceitos em dar came a esqueletos teóricos (ou vice-versa) 

fez com que as noções de sistema e de estrutura tenham sido utilizadas como  

sinônimos sem qualquer reflexão mais ampla.

A utilização sinônima de estrutura e sistema, de forma tão simplificada e 

direta, realizada por algumas disciplinas do conhecimento científico, dentre 

elas as ciências sociais, não persistiu além da década de 1970. A partir de então, a noção de sistema - que já vinha se tomando mais “refinada” desde o 

surgimento da cibernética e do concomitante aparecimento da noção de auto-  

organização - apresentou-se mais complexa, incorporando incrementos epis

temológicos, muitas vezes aparentemente paradoxais, como as noções de sis

tema aberto, de sistemas auto-referidos e de sistemas autopoiéticos, oriundas

Introdução 7

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tanto da Cibernética como da Biologia, além de várias outras disciplinas coadjuvantes, numa intrincada cooperação interdisciplinar.

O estruturalismo, após sua crise como movimento que se esforçava para  aglutinar determinados interesses teóricos, sobretudo nas ciências humanas, pulverizou-se em diferentes direções teóricas e epistemológicas, produzindo enfoques analíticos muito distintos uns dos outros. Aqueles que, mesmo  pertencendo a disciplinas de diferentes domínios, mas que adotaram elementos de uma mesma matriz estrutural tais como Barthes, Foucault, Lacan, De- 

leuze, Derrida - inclusive aqueles mais detidos à teoria social, com o Pierre Bourdieu, Anthony Giddens, Jeffrey Alexander e outros - migraram para dimensões teóricas de matizes tão distintas, que acabaram ficando acolhidos  

num grande “guarda-chuva” denominado, genericamente, de pós-estrutu- ralismo, embora muitos não se reconheçam nem como estruturalistas, nem  

como pós-estruturalistas.Em contraposição, a noção de sistema, principalmente se considerarmos  

o que passou a ser chamado de “Novo Pensamento Sistêmico”, tem demonstrado ter percorrido, transdisciplinarmente, um caminho inverso àquele percorrido pelo conceito de estrutura. A história do pensamento sistêmico, no 

decorrer do século XX, principalmente a partir da sua segunda metade - nos 

anos 60, com a Teoria Geral dos Sistemas, de Ludwig von Bertalanffy e, nos  anos 70, com a noção de autopo iésis de Maturana e Varela - tem atestado um deslocamento epistemológico e teórico em direção a uma crescente convergência. Essa convergência teórico-conceitual se traduz na admissão de que 

sistemas são entidades- auto-referidas e que se distinguem do entorno em que 

se encontram acopladas, possibilitando teorizar a diferença.O paradigma sistêmico, através da incorporação dos “giros epistemológi-  

cos” apresentados pelo desenvolvimento do conceito de sistema, no âmbito  

de diferentes disciplinas, possibilitou renovadas abordagens sistêmicas contemporâneas que passaram a ser paulatinamente adotadas por muitas disciplinas do conhecimento científico tais como Ciências Sociais, Psicologia, Pedagogia, Biologia, Química, Física, Economia, dentre outras.

Como avisa o próprio título deste livro, a maioria dos trabalhos busca dialogar com as teorias de Niklas Luhmann e de Ernesto Laclau. Estes dois autores, de renome internacional, de forma muito criativa, buscam não apenas 

apresentar teorias bem estruturadas para responder a inquietações contempo

râneas no campo das ciências sociais, mas também oferecem ricas ferramentas epistemológicas e metodológicas para o enfrentamento de uma complexidade sempre crescente nas sociedades contemporâneas.

Niklas Luhmann, considerado por alguns como um dos sociólogos alemães mais criativos desde Max Weber, em suas inúmeras obras, foça_a_noção  

de_sislexna_comp_unidade.disctÊla, isto é, circunscrita a seus limites e,_portan-  to, uma unidade auto-referida, como estratégia epistêmico-metodológica para

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reduzir a complexidade do sistema mundo. Luhmann adota como ponto de 

partida, principalmente em suas últimas obras, a necessidade de superação de enfoques epistemológicos tradicionais das ciências sociais (a linearidade do 

positivismo clássico, o marxismo e o neomarxismo), evocando a possibilida

de de que seja delineada uma teoria que dê conta de explicar a atual complexidade dos fenômenos sociais.

E neste sentido que a introdução de conceitos tais como os de auto-  referência, autopoiésis, acoplamento estrutural, circularidade operativa, etc. vinculados'ãTeoni^sistêmica interdisciplinar, são utilizados como poderosos instrumentos de análise dos sistemas sociais, gerando a possibilidade de um  

enfoque não-determinista - contraditando muitos de seus críticos - , mas apresentando possibilidades de se colocarem no âmbito de uma epistemologia  

construtivista dada à interação entre observador, sistema e entorno. Outro aspecto importante na obra de Luhmann, e freqüentemente mal interpretado, é o  de que embora a sua teoria tenha pretensões total izantes, generalizantes - à 

maneira das grandes teorias sociológicas, como as de Marx e Parsons, acerca  dos sistemas sociais - ela abre espaço para a construção de possibilidades ex perimentais; ela permite ao investigador ir para a empiria de forma que este 

tenha - diferentemente das teorias tradicionais - de assumir o seu papel de observador, principalmente na identificação (fenomênica) dos sistemas ou, ainda, na identificação da auto-referência de cada um deles. O pesquisador, na teoria sistêmica autopoiética, é parte integrante do conhecimento que daí  advém.

Ernesto Laclau, teórico argentino há décadas radicado no Reino Unido,  ingressou no círculo de debates pós-estruturalistas a partir da publicação, em  companhia de Chantal Mouffe, em 1985, da já clássica  Hegemony and Socia- 

list Strategy: towards a radical democratic politics.  A partir deste trabalho, Laclau rompe definitivamente com seu projeto anterior - presente em  Polí tica  

e Ideologia na Teoria Marxista -  de criar bases para um marxismo científico, inspirado, sobretudo, em Louis Althusser. Em Hegem ony,  Laclau elabora uma 

teoria política inovadora que articula categorias da tradição marxista com outras oriundas dos pensamentos de Foucault, Derrida, Lacan, dentre outros.

O prqjeto_te_óriço de Laclau parte da noção central de discurso, articulando esta categoria com um complexo arranjo de conceitos tais como; prática  

articulatória, momentos, elementos, exterior constitutivo,, antagonismo, he

gemonia e significantes vazios, para citarmos os mais importantes. Além disso, apresenta como características peculiares das formações discursivas, e conseqüentemente das organizações político-sociais, a contingência e a preca-  

riedade. A contingência, por um lado, refuta o potencial explicativo da realidade social que detém, no marxismo, a clássica noção do determinismo econômico em última instância. Por outro lado, a utilização do conceito de contingência pela Teoria do Discurso, por uma questão de opção epistemológica

Introdução 9

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de Laclau, infere também a negação de um outro estatuto do marxismo: aquele que afirma ser um privilégio da classe operária a liderança da sociedade em  

direção à sua própria emancipação. Assim, ambas as categorias marxistas são  fortemente abaladas pela noção de contingência, tendo em vista que só as 

condições políticas e sociais reais e contingentes podem apontar qual é o grupo político capaz de ser o ponto nodal mobilizador de outros grupos, formando-se, assim, uma situação de hegemonia. Já a noção de precariedade aponta  para a inexorável finitude de toda e qualquer constituição hegemônica, uma  vez que a hegemonia de determinado grupo político está sempre tendente a perder à suà força, tendo em vista que uma das essências da política reside  

 justamente êrri considerar que toda vitória política é sempre uma vitória parcial e finita.

Se considerarmos as trajetórias intelectuais de Ernesto Laclau e Niklas  Luhmann, num primeiro momento, até porque estes autores nunca dialogaram  

entre si, toma-se efetivamente muito difícil estabelecermos possíveis comparações entre ambos. O primeiro tem sua origem fundada no marxismo, principalmente althusseriano e gramsciniano, e que, num certo momento, mesmo empregando ainda muitas categorias de origem marxista, abandonou o ceme desta proposta teórica, filiando-se ao pós-estruturalismo, como o próprio au

tor em muitos momentos afirma, utilizando-se, a partir daí, um cabedal conceituai oriundo das ciências sociais, da lingüística, da psicanálise, etc. Luhmann, por outro lado, tem sua origem intelectual, pode-se dizer, numa corrente teórica muito distinta da de Laclau, seja do ponto de vista epistemológi- co, seja do ponto de vista político: o autor de Sistemas Sociais  construiu seu 

arcabouço teórico na lógica própria da Teoria Sistêmica, primeiramente com  Parsons, mas após, com o desenvolvimento do próprio conceito de Sistema,  filiou-se epistemologicamente às noções mais contemporâneas deste debate, 

mormente a partir das revolucionárias contribuições de Maturana e Varela.Entretanto, a partir de intensos debates travados entre os organizadores  

deste volume, verificou-se que, apesar de trajetórias teóricas tão distintas, a Teoria do Discurso e a Teoria dos Sistemas Sociais podem dialogar entre si, uma vez que apresentam pontos de convergência extremamente profícuos. No  capítulo “Laclau e Luhmann: um diálogo possível”, buscamos estabelecer alguns desses pontos de convergência entre tais projetos teóricos.

Assim, a presente obra tem por objetivo colocar à disposição do público  uma coletânea de contribuições de autores nacionais e estrangeiros, familiarizados com a trajetória do pensamento sistêmico e discursivo e com o trabalho de teóricos que utilizam concepções sistêmicas e discursivas para pensar a realidade. Neste sentido, este livro busca reunir as seguintes características: (a) discutir a utilização jlc . uma_matriz sistêm ico-complexa para a produção de 

conhecimento fílosófico-científico; (b) problematizar a questão da fundamen-i, dimensões estas, vinculadas a uma matriz

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epistemológica linear (não-complexa), pretendendo ressaltar as possibilidades  do paradigma sistêmico contemporâneo para dar conta da atual complexidade  do conhecimento e das manifestações sociais; (c) verificar as potencialidades  

teóricas da noção de Discurso, assim como o seu próprio potencial heurístico;

(d) estabelecer um diálogo"entre as perspectivas discursiva e sistêmica como pertencentes à tradição teórica pós-estnituralista; (e) partir, através da seleção  dos diferentes textos, de uma abordagem teórico-conceitual em direção à utilização das perspectivas teórico-sistêmicas e discursivas para a análise de diferentes organizações sociais tais como: Estado, sistema jurídico, campanha  das “diretas já”, política e sujeito, hegemonia, movimentos sociais, partidos políticos, etc.

Nesse sentido, num texto eminentemente filosófico que busca não apenas  problematizar questões sobre o fundamento, mas também encaminhar algumas possibilidades para o avanço dos debates desta (sempre atual) questão filosófica, Eduardo Luft, em Olhar Além do Fundamento, partindo dos modelos fundacionalistas em epistemologia propõe a universalização do criticismo  

(em oposição ao ceticismo) como alternativa aos modelos fundacionalistas. Sua proposta de universalização do criticismo, entretanto, vincula-se ao contexto da elaboração de uma epistemologia circular e autodeterminante. Luft utiliza-se de três modelos filosóficos como referência central para a universalização do criticismo: o falibilismo popperiano, a dialética hegeliana plenifi- cada na Ciência da Lógica  e a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gada-  mer. Para ele, um exame atento da dialética hegeliana convida à superação da 

abordagem linear ainda presente no falibilismo popperiano em direção a uma  epistemologia circular. Por sua vez, a hermenêutica gadameriana oferece uma 

alternativa eficaz ao impasse que termina por minar a proposta hegeliana e sua exigência de conciliar o inconciliável: a criticidade da dialética e a pre

tensão de um saber absoluto. Propondo a superação do idealismo hermenêutico, o artigo de Luft propõe seis notas para uma filosofia da natureza capaz de  reunificar a razão cindida entre a verdade (razão teórica) e o bem (razão prática).

Léo Peixoto Rodrigues, um dos organizadores deste livro, em seu artigo 

“A (Des)estruturação das Estruturas e a (Re)estruturação dos Sistemas: uma revisão epistemológica crítica” tem a preocupação central, a partir de uma 

consistente revisão bibliográfica, de diferenciar as noções de estrutura e de 

sistema, não raramente utilizados como sinônimos, para então, caracterizar no interior do debate sistêmico, principalmente durante o século XX, as diferentes acepções epistemológicas da noção de sistema. O texto também busca refletir sobre a utilização da noção de sistema, como princípio epistêmico- 

teórico que, nas últimas três décadas do século passado, convergiu para um  maior consenso (entre os pesquisadores) quanto a sua capacidade, como sistemas auto-referentes, de dar conta de problemas de ordem mais complexa,

Introdução 11

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advindos da realidade atual. Por fim, Rodrigues destaca as potencialidades do pensamento sistêmico, principalmente nos seus aspectos epistemológicos, desenvolvidos principalmente a partir dos estudos cibemeticistas e, posterior

mente, com a revolucionária noção de autopoiésis, como responsável pelo desenvolvimento de uma teoria geral dos sistemas sociais, por Niklas Luhmann, em que, diferentemente dos esforços pós-estruturalistas, tem por objetivo dar 

conta da complexidade dos fenômenos sociais.No instigante artigo de Marcelo Arnold Cathalifaud e Fernando Robles  

Salgado, os autores estão preocupados em abordar os principais problemas vinculados à atividade científica nas sociedades contemporâneas e como estes 

problemas renovaram o interesse pelas reflexões epistemológicas. Para isto, 

Arnold e Robles destacam as contribuições e conquistas do construtivismo, argumentando que o construtivismo, ao contrário de suas principais críticas, não abandona suas pretensões científicas no âmbito do que é relativo, frágil, apontando que sua tarefa consiste em registrar distinções, identificando os níveis emergentes, e sempre dinâmicos, da complexidade que se reduz através 

dos conhecimentos. Em “O Construtivismo Sistêmico nas Ciências Humanas e Sociais” seus autores vão além dos debates meramente construtivistas; eles  

se valem do paradigma sistêmico-autopoiético, mais particularmente, de sis

temas sociais autopoiéticos, para descreverem como o construtivismo proporciona respostas consistentes para indicar de onde emergem os conhecimentos da realidade social. Em verdade, Arnold e Robles, buscam colocar em destaque as principais características de um programa sistêmico-construtivista.

O artigo “Laclau e Luhmann: um diálogo possível”, dos autores Daniel de Mendonça e Léo Peixoto Rodrigues, organizadores desta obra, foi apresentado, primeiramente, no Seminário Internacional de Ciência Política - Po lítica desde el Sur, em 2001, em Porto Alegre. O artigo, bem como muito des

ta obra, foi fruto de uma intensa interlocução entre os dois autores que à época, como ainda o fazem, dedicavam suas pesquisas (respectivamente) sobre 

Ernesto Laclau e Niklas Luhmann. Nos debates que se travaram entre os dois autores, eram flagrantes as congruências teóricas percebidas a partir da perspectiva do então chamado “novo pensamento sistêmico”, sobretudo discutido  na Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann e muitos elementos da estrutura conceituai da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau. A partir de uma  sistematização mais pormenorizada de tais congruências, os autores procura

ram, através da demarcação do campo da discussão acerca do pensamento sistêmico contemporâneo, colocar os "giros" epistemológicos de uma tradição fundacionalista para o chamado pós-fundacionalismo. Assim, Mendonça e 

Rodrigues apontaram possíveis relações, e mesmo comensurabilidades conceituais, de alguns conceitos-chave no âmbito da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e da Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann.

12 Léo Peixoto Rodrigues e Daniel de Mendonça

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O capítulo “Política e subjetividade no pensamento de Ernesto Laclau”,. da professora Mirta Giacaglia, apresenta e discute as categorias-chave da Teoria do Discurso de Laclau. A autora articula, a partir da noção central de dis

curso, a constituição dos complexos, contingentes e precários arranjos hegemônicos, dando especial ênfase à discussão da impossibilidade de emancipação, visando desconstruí-la como esta é comumente pensada nos marcos de perspectivas teóricas fundacionalistas. “O futuro é certamente indeterminado”, afirma Laclau. Contudo, tal indeterminação, longe de ser ameaçadora, é 

a chave para a proposição de novos projetos políticos, permitindo-se, assim, a constituição de ações políticas inovadoras e criativas.

O professor Emil Albert Sobottka no capítulo “Sem objetivo? Movimen

tos sociais vistos como sistema social” apresenta uma instigante discussão a- cerca das potencialidades da Teoria dos Sistemas Sociais de Luhmann para a análise dos movimentos sociais. Analisa, ao longo do trabalho, o papel do Direito e dos movimentos sociais como antídotos à ameaça de desintegração do Sistema Social, buscando, sobretudo, municiar o leitor do material teórico  disponível, no contexto de uma proposta teórica que se pretende universal, para a análise dos movimentos sociais.

“Estado e Direito como sistemas autopoiéticos: uma abordagem da teoria 

de sistemas de Niklas Luhmann” é o tema abordado pelo professor Rodrigo  Ghiringhelli de Azevedo. O autor parte da apresentação das categorias mais  

gerais da Teoria dos Sistemas Sociais como autopoiésis, complexidade, contingência e evolução, para, então, discutir mais pormenorizadamente o funcionamento do Estado e do Sistema Jurídico de acordo com esta perspectiva  

teórica.Por fim, Daniel de Mendonça em “A condensação do imaginário popular 

oposicionista num significante vazio: as diretas já”, utiliza as categorias analí

ticas da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau para analisar um dos episódios finais do regime autoritário brasileiro: -a campanha popular das “diretas já” que teve palco entre janeiro e abril de 1985. Inicia seu trabalho apresentando  

a noção de significante vazio, passando por uma reconstituição histórica dos  principais fatos e movimentos que emergiram no final da década de 1970 no Brasil que constituíram o que o autor nomeou de “imaginário popular oposicionista”, sentimento anti-regime autoritário responsável pelo sucesso da 

campanha das “diretas já”. Ao final do trabalho, Mendonça caracteriza o mo

vimento das “diretas” como um significante vazio democrático.Aquilo que fundamenta a teoria, que propicia a sua construção, que serve  

de substrato para que ela seja armada, servindo de esqueleto no qual a teoria 

vai se fazer carne e se articular de forma harmoniosa com ele, é o que deve ser compreendido como objeto da Epistemologia. Em outros termos, a Epis- 

temologia preocupa-se com o bom (ou mau) uso da Heurística (conjunto de  normas, regras, métodos e modelos lógicos) que orienta a produção do co-

Introdução 13

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nhecimento científico. As diferentes teorias concorrentes no campo científico  para a representação abstrata de uma determinada “realidade”, portanto, poderiam ser comparadas a imagens, a desenhos que retratam, expressam essa 

realidade; imagens, essas, que se fossem modelos teóricos tridimensionais, poderiam ser estudadas pela Estética, como a ciência da arte e do belo. No  

seu sentido mais refinado, a Epistemologia confunde-se, metaforicamente, com a Estética.

A Epistemologia, compreendida numa perspectiva filosófica coerentista, pode ser vista como uma disciplina que se preocupa, como a harmonia do  conjunto de pressupostos, com a coerência interna da articulação lógico-  instrumental de termos e conceitos, em detrimento de um sólido e irrefutável 

fundamento. Sendo assim, a teoria toma-se o “desenho”, a expressão modelar  qualitativa de uma realidade coletiva, com o objetivo de compreendê-la e explicá-la (por vezes somente contemplá-la). A Epistemologia tem por finalidade falar sobre a “estética” desse desenho, dessa representação.

Esta obra, pois, está voltada para uma reflexão teórico-epistemológica  sistêmica, cuja preocupação, neste particular, está mais voltada para a coerência dos argumentos que propriamente para o fundamento de uma verdade to-  talizante-, no que se refere aos diferentes enfoques da sociedade e de suas or

ganizações sociais. A lente (ou a arquitetura) que, de certo modo, é proposta  pelo conjunto dos autores para o conhecimento das múltiplas formas de como  

se organiza a sociedade é aquela que não permite o reducionismo a um fundamento. Essa não-redução a uma fundamentação última, o pós-fundacionismo - título propositalmente provocativo - em verdade, busca chamar a atenção para a necessidade de que as organizações sociais sejam conhecidas a partir de uma perspectiva de maior complexidade. Acreditamos que a Sistêmica - em seus aspectos epistemológicos, teóricos, e metodológicos - possa 

contribuir efetivamente para isto.

Outono de 2006.

1 4 Léo Peixoto Rodrigues e Daniel de Mendo nça

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1

Olhar além do fundamento

Eduardo Luft 

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I n t r o d u ç ã o

O autor investiga posições filosóficas de destaque em epistemologia que poderiam ser agrupadas sob o título de  critic ismo,  em oposição ao  dogm a- 

 tismo  e ao  ceticism o.  Expõe os méritos e os limites do racionalismo cri

tico inaugurado por K. Popper: apesar de revolucionar o modo como concebemos o conhecimento, Popper não levou às últimas conseqüências pressupostos centrais de sua própria epistemologia; o privilégio dado às sentenças  

de base no contexto da justificação crítica do conhecimento mantém sua perspectiva refém de postulados positivistas. A constatação, aceita pelo próprio Popper, de que as sentenças de base (ou protocolares) estão sempre condicionadas por pressupostos teóricos conduz ao natural a uma compreensão da estrutura circular do sistema de nossas convicções teóricas. O que poderíamos  

denominar o caráter autárquico da linguagem teórica toma inevitável o diálogo com o idealismo (intersubjetivo). Hegel sabia disso, e propõe uma epistemologia circular assentada na tese da possibilidade de uma autofundamenta- ção absoluta do conhecimento. Todavia, os impasses na proposta hegeliana  exigirão um diálogo ainda mais franco com posições idealistas, particularmente com o idealismo intersubjetivo que caracteriza a hermenêutica filosófica. O presente trabalho termina com um breve esboço de uma possível superação do idealismo intersubjetivo no contexto de uma nova metafísica.

O p r o b l em a d a f u n d a m e n t aç ã o d o c o n h e c im e n t o

Segundo Platão, “conhecim ento é opinião verdadeira - acompanhada de razão” (Theai., 202c). Quem pretende possuir conhecimento de algo deve  

cumprir pçlo menos três exigências: (a) emitir uma opinião; (b) a opinião  emitida deve ser verdadeira; (c) a opinião verdadeira deve estar fundada em

Olhar além do fundamento 1 5

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razões. Por outro lado, quem vê questionada a sua pretensão de possuir um conhecimento legítimo sob a acusação de não cumprir com alguma das exigências elencadas tem todo direito de perguntar o que entendemos por “opi

nião”, “verdade” e “razão”.Platão compreende a opinião como a decisão de um indivíduo pró ou 

contra certo ponto de vista, após a realização de um diálogo interior contrapondo posições antagônicas. Opinar é eminentemente uma atividade discursiva (Theai., 190a). Podemos concluir que o lugar privilegiado onde se dá a verdade é o discurso. Mas o que vem a ser “verdade”? Definimos “verdade” 

como a propriedade de uma sentença decidida afirmativamente, ou seja, considerada instância do sistema geral de nossas convicções teóricas. Ao inverso,  

“falsidade” é a propriedade de uma sentença decidida negativamente e, portanto, excluida do mesmo sistema. Ora, nossas convicções teóricas são convicções acerca do que é ou existe. O problema da verdade conduz ao grande 

enigma da epistemologia: como se dá a relação entre sentença e fato, entre  linguagem e realidade?

Dando continuidade às exigências platônicas, afirmamos que a decisão positiva ou negativa de uma sentença precisa estar ancorada em razões, em 

argumentos, ou seja, ela não pode ser arbitrária, ao menos se e enquanto pre

tendemos obter conhecimento. Podemos determinar a verdade de uma sentença apelando a outras sentenças, fornecendo argumentos. Temos, então, os três elementos exigidos: a opinião, a verdade e as razões. Mas de fato possuímos  

conhecimento? Se a verdade de uma sentença (digamos,  p )  foi obtida, por exemplo, mediante uma dedução lógica supondo-se como verdadeiras dadas 

premissas (digamos, q  e  se q, en tão p),  um interlocutor descontente com a nossa estratégia poderia indagar se as premissas são verdadeiras. A possível falsidade das premissas determinaria a possível, embora não necessária, falsi

dade da conclusão. Ou seja, precisaríamos responder ao adversário mediante a oferta de novas razões. Mas novas perguntas conduziriam a novas razões,  em um  regressus ad infinitum.

No intuito de estancar o processo aparentemente infindo da busca de razões, podemos cair na tentação da fundamentação última: se a verdade de cada  

uma das sentenças mencionadas é sempre condicionada, buscamos a sentença  ou sentenças fundantes e incondicionadamente verdadeiras capazes de garantir a verdade de todas as demais sentenças de nosso sistema de convicções. A procura por um fundamento último norteou toda a epistemologia clássica (Albert: 1991, p. 24 segs.). Podemos buscar o fundamento último em sentenças particulares - as assim chamadas  Protokollsâ tze  no Círculo de Viena, as sentenças protocolares, sentenças observacionais que compõem os registros dos cientistas 

durante suas pesquisas empíricas. “O único fundamen to último de meu reconhecimento de uma sentença como verdadeira encontra-se naquelas experiências

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simples que podem ser consideradas como o passo definitivo para a comparação  entre sentença e fato disse M. Schlick (1986, p. 228).

Os empiristas dogmáticos procurarão encontrar nas sentenças protocola-  

res fundamentos seguros do conhecimento, tomando-se reféns de pelo menos 

duas dificuldades. Primeiramente, deve-se salientar que o passo definitivo para o encontro da verdade é, segundo Schlick, a “comparação entre sentença e  

fato”. O autor entende “verdade” como a propriedade de uma sentença enquanto corresponde a um fato.1Ao defender o realismo direto, a relação direta e não problematizável entre sujeito cognoscente e objeto conhecido, Schlick precisará indicar quais as condições epistêmicas para a aferição da relação entre sentença e fato. Tal aferição só pode ser realizada do exterior da linguagem, pois os eventos constatados do interior da linguagem são fenômenos, 

ocorrências lingüisticamente mediadas. Todavia, podemos transcender a linguagem? Como enfatiza O. Neurath, “sentenças somente podem ser comparadas com sentenças, e não com a ‘realidade’, com ‘coisas’” (1981, p. 618). O  sistema da linguagem é epistemicamente autárquico: não há um dentro ou fora da linguagem, um dentro ou fora da razão enquanto discurso, do ponto de 

vista teórico. Em segundo lugar, mesmo se supuséssemos possível a realização do píojeto de Schlick, determinando a verdade das sentenças protocolares 

mediante o apelo direto aos fatos, como poderíamos transferir a sua verdade pa

ra as sentenças universais pressupostas por todo e qualquer saber que se pretenda ciência, ou seja, como é possível a indução (Popper, 1994, p. 3 segs.)?

Diante do impasse, poderíamos propor o caminho inverso: se as sentenças protocolares não garantem um conhecimento seguro, procuramos o fundamento nas sentenças não-protocolares ou universais. Podemos encontrar um exemplo dessa abordagem racionalista na filosofia de Platão: o fundamento último não reside na identidade entre uma sentença protocolar e um fato 

empírico, mas é instaurado por um conhecimento direto de princípios eviden

tes por si mesmos.2 Mesmo postulando a evidência como critério de justificação, a epistemologia platônica não deixa de incorporar a noção de correspondência no contexto da definição de “verdade”. O discurso falso “[...] diz de ti como se fosse distinto o que é idêntico, e como não sendo o que de fato é [...]” (Soph ., 263d). O discurso falso está ancorado em uma confusão entre as formas supremas  mesmo  e  outro, ser  e  não-ser.   falamos do  ser  como se fosse

1 Temos aqui pressuposta a clássica noção de verdade como adaequniio rei et intellectus,  segundo a expressão de Tomás de Aquino (J. Mittelstrass, Enz., v . 4, p. 584).

2 Para D. Ross, Platão recorre a uma forma de “[...] apreensão direta: a apreensão do primeiro princíp io não hipotético, que não se pode deduzir de nenhum outro, pois é superior a todosos demais” (1993, p. 87). Do mesmo modo, Manfredo A. de Oliveira afirma que, “para osgregos, o pensamento é concebido como uma espécie de visão, ou seja, a visão intelectual, acontemplação do ser verdadeiro. O olho do espírito era capaz de captar a ordem objetiva,  averdadeira ordem das coisas, e essa ordem percebida era, por sua vez, a medida, a norma de retidão da linguagem"   (1996, p. 19).

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 nâo-ser,   e do  mesmo  como se fosse  outro.  Ao inverso, o discurso verdadeiro respeita a dialética das formas, a sua conexão lógica adequada. Desse modo, a 

relação de correspondência não se dá entre o discurso e a realidade empírica,  

como ocorria na abordagem empirista de Schlick, mas entre o discurso e a realidade não-empírica das formas.3 Portanto, também os defensores da perspectiva platônica terão o ônus de provar como podemos ter garantia da correlação precisa entre a dialética das formas e a dialética do discurso: como podemos extrapolar cognitivamente a esfera do discurso e tematizar as formas  nelas mesmas, e não apenas refletidas na linguagem.

O apelo à evidência como critério de justificação marcará época na História da Filosofia, sendo seguido por Aristóteles (Anal. Seg. 100b) e aprofun

dado na noção de “intuição intelectual” no Idealismo Alemão, cm Fichte (cf. WL-1797, p. 528) e Schelling (cf. FDSyst., p. 112). Tendo conhecimento  imediato dos princípios poderíamos, partindo deles, estabelecer dedutivamente e com segurança a verdade das demais sentenças do sistema teórico. Deve-  se enfatizar, contudo, que a perspectiva racionalista mencionada não oferece 

propriamente uma alternativa para a solução dos problemas detectados dentro 

dos marcos da definição platônica de conhecimento inicialmente sugerida. O que ocorre é uma verdadeira subversão da proposta inicial. Se conhecimento 

é “opinião verdadeira acompanhada de razões”, somente uma prova baseada em mediações ou argumentos poderia ter legitimidade. Apelar, ao fim, a um  tipo de acesso imediato a princípios é defender o não-conhecimento como  

fundamento último de todo conhecimento possível. Kierkegaard tem razão ao  encontrar na pura crença, na decisão arbitrária o fundamento último da perspectiva fundacionalista em Epistemologia. Como dirá o filó sofo dinamarquês, toda ciência deve ter um começo e, se e enquanto as demais sentenças do sistema teórico somente conquistam a sua verdade mediante relação com o começo lógico (com os princípios), então “o começo só pode ser realizado se a reflexão for interrompida, e a reflexão só pode ser interrompida por [...] uma decisão” (Nachschr., 13, p. 106). Destacada das devidas mediações, tal decisão só pode ser arbitrária. Não há conhecimento sem aferição intersubjetiva, e  

o que aferimos intersubjetivamente não é uma sentença isolada, nem entendida como começo nem como resultado da pesquisa racional. Aferimos intersubjetivamente um resultado ou um princípio apenas enquanto inserido como  instância do processo de mediações cognitivas: nem o começo nem o resultado podem ser compreendidos senão à luz do caminho; conhecer é conhecer o 

método. Abstrair do método em prol do encontro de um fundamento incondi-  cionado é substituir o conhecimento pela fé cega.

3 Como dizem W. Kneale e M. Kneale: “Platão parece manter que uma frase é verdadeira se oarranjo das suas partes reflete ou corresponde à relação entre as formas” (1991, p. 22).

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D i f ic u l d a d e s d o c r i t i c i s m o n o c o n t ex t o  d e u m a e p i s t e m o l o g i a l in e ar  

Por outro lado, Platão era também o filósofo do diálogo, o herdeiro de 

uma tradição capaz de abordar o problema do conhecimento não por meio de uma teoria da fundamentação última, cujas dificuldades acabaram de ser mencionadas, mas através de uma abordagem crítica. O conhecimento não deve estar ancorado em certezas inabaláveis, mas na atividade dubitativa capaz de evitar o erro: filósofo não é o sábio mas quem está em busca da sabedoria. A criticidade é o elemento norteador não apenas do método dialógico  de Platão mas de uma antiga tradição dialética, cujas origens remontam a Ze-  não de Eléia e suas tentativas de provar indiretamente, mediante redução ao 

absurdo, a tese parmenídea da existência exclusiva do Uno (cf.  Enz.,  v.3, p.516) e cujo ápice podemos encontrar no élenchos   socrático, a refutação de pontos de vista falsos mediante diagnóstico de incompatibilidade entre afirmações opostas (Soph ., 230 c-d). A postura de quem duvida é contrária ao  

comportamento dogmático, seja de origem empirista ou racionalista: justamente porque desconfiamos da capacidade humana de atingir verdades inabaláveis, não podemos permitir o estancamento do diálogo, permanecendo sempre dispostos a novos riscos. As afirmações mais sólidas podem perder a fir

meza. Começamos a mirar além do fundamento.Essa vigorosa tradição encontrou guarida na Filosofia da Ciência de Karl 

Popper. A perspectiva popperiana visa abalar as tentativas tradicionais de fundar o conhecimento em pressupostos certos e indubitáveis. A ciência diferencia-se da pseudociência não por fornecer certeza mas por sua abertura a possíveis refutações. Quanto maior o conteúdo empírico de uma teoria, quanto mais ela tem a dizer acerca da realidade empírica, tanto maior a sua vulnerabilidade à refutação, e tanto mais determinado o seu caráter científico: as 

“leis da natureza”, as sentenças científicas universalíssimas, dizem “[...] tanto  mais quanto mais elas proíbem” (Popper, 1994, p. 15). O falsificacionismo popperiano permite ainda explicar a relação entre as sentenças protocolares e as sentenças universalíssimas que sustentam a ciência. A indução não pode 

realizar a esperada ponte, pois não somos capazes de estabelecer com rigor  lógico a transferência da verdade das sentenças singulares às sentenças universais. Mas podemos estabelecer a falsidade de sentenças universais a partir 

da detecção da falsidade de alguma sentença singular que, embora deduzida 

daquelas, não foi corroborada empiricamente. A ciência está ligada à experiência negativamente, e não positivamente, como pensava a tradição empirista.

Todavia, a universalização do criticismo não é isenta de dificuldades. Crítica é atividade de julgar, de diferenciar o verdadeiro do falso. Quem critica deve partir de algum lugar, tem de carregar consigo alguns pressupostos, pois a crítica pela crítica, ancorada em um suposto vazio, é antes um tipo de  

ceticismo arbitrário, uma forma velada de dogmatismo (Luft, 2001, p. 23). Ao

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depender de uma justificacão de seus próprios pressupostos, a atividade crítica não terminaria refém, indiretamente, dos mesmos problemas apontados na perspectiva fundacionalista? Enfim, o criticismo pode aplicar-se a si mesmo sem cair refém do Trilema de Münchhausen, sem que a justificação de suas  

próprias pressuposições termine em circularidade, regresso ao infinito ou  dogmatismo (Albert, 1991, p. 13 segs.)?

Entre os pressupostos do falibilismo popperiano há um muito singelo mas de grandes conseqüências: a criticidade inerente à atividade científica está sustentada no apelo à base empírica: “Somente denominamos uma teoria de  

falsificada se podemos reconhecer as sentenças de base [sentenças protocolares, na terminologia positivista] que a contradizem” (Popper, 1994, p. 54). Sendo assim, qualquer teoria só assume a condição de  científica   se estiver ancorada em sentenças protocolares. De onde advém a seguinte questão: qual a 

razão do privilégio das sentenças protocolares? Entre o imenso rol de sentenças inerentes ao sistema teórico, há sentenças protocolares e não-protoco- lares; há sentenças universalíssimas cuja função é não apenas funcionar como premissas em argumentos dedutivos mas também orientar o estabelecimento e 

escolha de sentenças protocolares, como o próprio Popper admite: “[...] observação é sempre  obsen>açào à luz de teoria s  [...]” (1994, p. 31n). Se esse é o caso, então por que teríamos de confiar nas sentenças protocolares como  

instâncias de legitimação do caráter científico de certas teorias? Por que não  confiar em sentenças não-protocolares como elemento determinante para o 

estabelecimento da crítica? Por que não escolher o diálogo intersubjetivo ou o  apelo a modelos teóricos alternativos como o método mais adequado para a falsificação de certas idéias? O que motiva Popper a privilegiar as sentenças  observacionais?

Segundo Popper, o reconhecimento das sentenças de base como pressu

postos do criticismo depende de decisões que, observadas logicamente, são  “determinações arbitrárias”  [wiUkürliche Festsetzungen].  Mas o caráter arbitrário das decisões não toma justamente o criticismo refém do dogmatismo?  As sentenças de base não são, assim, decididas sem qualquer justificativa?  

Popper está consciente da dificuldade, e oferece pelo menos duas soluções. Primeiramente, Popper enfatiza que as sentenças de base estão ancoradas nas  

próprias sentenças universais (as nossas observações são orientadas por teorias) que, por sua vez, serão julgadas criticamente mediante o apelo às senten

ças de base: “A determinação  [F estsetzung]   das sentenças de base ocorre por ocasião de uma  aplicação   da teoria e é uma parte desta aplicação, através da qual nós  p rovam os   a teoria; assim como a aplicação em geral, também a 

[aquela] determinação é uma ação metodicamente guiada por considerações teóricas” (Popper, 1994, p. 70). Levando-se tal perspectiva às últimas conseqüências, seria inevitável a adoção de uma epistemologia circular: as sentenças de base estão ancoradas em sentenças universais, que, por sua vez, anco

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ram-se nas sentenças de base, ou seja, o sistema de nossas convicções suporta 

a si mesmo. Veremos que o maior dos problemas a ser enfrentado por uma perspectiva desse tipo é a má circularidade. E, mais decisivo para Popper, uma epistemologia circular aproximaria o falibilismo da posição idealista.

Um dos intuitos fundamentais do falibilismo popperiano é justamente  evitar tal conseqüência. Não devemos subestimar a importância do confronto com o convencionalismo para a construção da filosofia popperiana. Os con- vencionalistas consideram a ciência, dirá Popper, não “[...] uma imagem da natureza, mas uma pura construção conceituai; não são as propriedades do 

mundo que determinam a construção, mas esta determina as propriedades de um mundo conceituai produzido, artificial [...]” (1994, p. 48). Devemos destacar este ponto: o que diferencia o falibismo do convencionalismo é, segundo Popper, o interesse pelo encontro da verdade: “Podemos, seguindo o convencionalismo, dizer: o destaque dado à teoria desse modo privilegiada depende da ação prática. Mas tal ação prática é para nós  aplicação   da teoria e 

determinação  [F estsctzung]   das sentenças de base em conjunto com essa  aplicação (com o motivo do encontro da verdade), enquanto para o convencionalismo estão em jogo motivos estéticos [por exemplo: uma teoria é decidida como mais adequada do que outra por sua simplicidade]” (1994, p. 74). Popper mantém a teoria da verdade como correspondência, como suporte da 

tese de que uma teoria melhor corroborada estaria mais “próxima da verdade” do que sua rival. Se uma nova teoria  t l   é capaz de resolver os mesmos problemas já passíveis de resolução por uma teoria  tO  anteriormente aceita e, além disso, permite a realização de novas previsões e, portanto, fornece resposta a novos problemas cognitivos desconhecidos do ponto de vista de  tO, 

resistindo a novas provas empíricas, então  t l   está mais próxima à verdade do 

que  tO  (cf. 1994, p. 428 segs.).

Ora, a tese da aproximação da verdade, aliada ao privilégio das sentenças  de base, só faz sentido sob a pressuposição de alguma forma de realismo ingênuo (embora Popper pretenda o contrário), ou seja, a tese de que as sentenças de base - e não as sentenças universais - fornecem o acesso à realidade externa, correspondendo com fatos: “[...] uma teoria é verdadeira se ela concorda com os fatos; ela está mais próxima da verdade do que uma teoria concorrente quando concorda melhor com os fatos (ou concorda com mais fatos)” (1994, p. 433). Mas como se dá a relação entre sentenças e fatos, ou  

mesmo se ela é possível, permanece uma incógnita.4 O criticismo popperiano,

4 Já em  Logik der Forschung  Popper estabelece que a dualidade sentença/observação e o apelo a um sujeito observador (metafisicamente considerado) são a condição para o cumprimento da exigência material para o estabelecimento de uma sentença de base: “Além destas exigências formais que devem ser cumpridas por todas as sentenças singulares ‘Existe x, talque...’, precisamos expor as sentenças de base também a uma exigência material: os acontecimentos por elas afirmados como ocorrendo cm um lugar k   são acontecimentos ‘observáveis’; sentenças de base precisam ser passíveis de averiguação intersubjetiva mediante ‘ob

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ao ancorar-se em uma epistem ologia linear - as sentenças universais suportadas por sentenças protocolares, e estas ancoradas por uma concepção de realismo ingênuo toma-se refém do dogmatismo (entendido aqui não como  uma abordagem centrada na idéia de um conhecimento certo e indubitável, 

mas como uma filosofia ancorada em suposições arbitrariamente estabelecidas).

O p r o b l em a d o c o m e ç o tr an s m u d a d o n o en i g m a  do f im : a f a l ênc ia do c r i t i c i s m o em Hege l

Uma proposta de criticismo que conduziria ao extremo oposto dos resul

tados alcançados por Popper - se de todo modo passível de realização - po demos encontrar na Ciência da Lógica   de Hegel. O filósofo dialético concorda com Popper ao menos em um ponto: se a concepção centrada na tese de  que todo saber deve iniciar de um princípio inquestionável toma a ciência refém da fé cega, então devemos questionar justamente a exigência de dotar o 

conhecimento de princípios considerados por si mesmos evidentes, ou seja, considerados imediatamente  certos. "Womit muss der Anfang der IVissens- 

 chaft gem acht w erden ?”   intitula-se o capítulo sem número que inaugura a 

Doutrina do Ser, na Ciência da Lógica.  “Com o que deve ser feito o começo  da ciência”? Quem argumenta deve partir de alguma posição, deve carregar consigo algum pressuposto. O problema do começo é incontomável: se toda argumentação tem o seu ponto de partida, como justificá-lo?

Também a Ciência da Lógica  de Hegel tem um ponto de partida, a categoria “ser”. A função da  Lógica é  constituir um sistema das categorias, determinações universais do pensamento que são também determinações universais do ser. Seria “ser” o fundamento do sistema das categorias? Mas a cate

goria “ser” considerada assim, isoladamente, não pode ser fundamento, pois o  fundamento de um sistema de convicções deve possuir uma determinação, ou mesmo a mais nobre das determinações, e “ser” é, nela mesma, indeterminada. Uma categoria possui determinação semântica quando posso diferenciar o 

seu sentido do significado de outras categorias, inserindo-a em um dado campo semântico. Do mesmo modo, poderíamos dizer: uma sentença somente  

pode ser determinada inserindo-a em um sistema de convicções. Determina

servação’. Como elas são sentenças singulares, esta exigência naturalmente só pode referir-seàqueles ‘sujeitos que averíguam’, [sujeitos] que se encontram em uma correspondente proximidade espaço-temporal [...]” (Popper, 1994, p. 68). O caminho para a metafísica dos trêsmundos está aberto. Para o Popper de Objective Knowlecige, o mundo dos estados mentais éo elemento mediador entre o mundo das teorias e o mundo dos estados físicos. Dito de outromodo: a esfera dos atos observacionais realiza a mediação entre a esfera das sentenças e arealidade física extramental (1989, p. 154). Mas nessas alturas a filosofia popperiana já estádistante demais da abordagem falibilista inicial para ainda poder sequer ser considerada umaforma de criticismo.

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ção é uma propriedade relacionalmente instaurada. Se e enquanto consideramos “ser” de modo isolado, o seu sentido se desfaz: queremos dizer algo mas não dizemos nada.

O começo revelou-se problema e não solução. Realizamos a crítica da categoria “ser” enquanto concebida como começo absoluto. Para Hegel, a transição pela atividade crítica é a primeira condição para legitimar qualquer 

pressuposto. E certo que todo conhecimento parte de pressupostos. O próprio Hegel, por exemplo, pressupõe certas categorias descobertas pela tradição de pesquisa à qual ele pertence, como “ser”, “devir”, “substância”, “sujeito”. Mas, ao testá-las criticamente no decorrer da investigação, o filósofo não as deixa como estavam. Trata-se, na  Lógica , não da construção de categorias a partir de um postulado tomado como certo e evidente nele mesmo, mas da reconstrução crítica de seu sentido com o intuito de instaurar um sistema cate- 

gorial coerente, livre de contradições. Hegel pretende realizar “[...] a transformação daquilo que é encontrado ou tomado por certo como um fato ou  

como uma afirmação da ciência ou como filosofia ingênua, em uma reconstrução na forma de necessidade racional ou na forma  a prio ri"   (Hartmann, 1976, p. 103). A criticidade é a primeira característica da ciência. Evitá-la significa tomar a ciência refém de uma pressuposição cega, como bem viu  

Kierkegaard.Sendo assim, a ciência não pode estar orientada pela idéia de um começo  

evidente nele mesmo. Mas a ciência estaria orientada para onde? Para lugar algum? Se a evidência do começo não pode ser o fundamento que buscamos, como podemos legitimar as nossas convicções? A resposta de Hegel: o sistema de nossas convicções deve ser legitimado por ele mesmo, deve ser auto- 

 justificado criticamente. Tudo o que podemos realizar é constituir um sistema 

das categorias e investigar a sua coerência intema. As diversas mediações que 

realizamos no decorrer do processo de elaboração do sistema são mutuamente  consistentes? A resposta positiva à questão deve ser suficiente para apaziguar  as nossas dúvidas, ao menos de modo provisório. Retomando ao problema de  Popper: se a determinação de certas sentenças como verdadeiras (por exemplo, as sentenças de base) depende do apelo a outras sentenças (por exemplo,  as sentenças universais que compõem uma dada teoria), então não temos outro recurso senão admitir o caráter autofundante e circular do sistema de nossas convicções - convicções são suportadas por convicções.

Mas a estrutura circular da epistemologia hegeliana não foi elaborada apenas para enfrentar o problema do começo. Ela deve responder a uma outra indagação crucial. Podemos supor que a resistência do sistema das categorias  

aos testes críticos sirva para apaziguar provisoriamente as nossas dúvidas. Mas justamente a constante reatualização crítica do sistema não possibilita a sua reconfiguração? A descoberta de novas categorias, de novas relações ca- tegoriais, não exigiria a reproblematização das nossas convicções, talvez for

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çando-nos a conceber de modo diverso o sistema das categorias? Não revelaríamos, desse modo, o caráter condicionado de todo e qualquer sistema de 

convicções? Hegel poderia ter concebido o processo de autojustificação como  processo de autoproblematização inacabado: nem o começo nem o fim deve

riam ser privilegiados, e sim o sistema como um todo no seu processo de au-  toconstituição e autoproblematização. Mas não o fez.

Ocorre que o processo de autoconstituição, se e enquanto permanece  

processo, só pode ser compreendido como o movimento de reestabilização contínua de nossas convicções, sempre de novo postas em risco e sempre novamente reintegradas, embora possivelmente não sem alterações. O fato de  que o sistema de convicções possa ser alterado toma o saber por definição saber  condic ionado,  mesmo que  auto condic io nado.  Hegel busca o saber absoluto ou incondicionado. A sua posição não envolve a perda do domínio pleno sobre o começo, não envolve a autonomia parcial e, portanto, a relativi-  zação do começo, mas a sua recuperação integral na imanência do sistema de 

categorias construído pela Ciência da Lógica.  O círculo da Idéia é, para Hegel, o movimento de reposição definitiva e imanente à  Lógica  de tudo o que ao início era pressuposto como externo ao sistema das categorias. Trata-se da 

lógica da pressuposição e da reposição, o movimento que parte da imediação  do início, transita pelas instâncias mediadoras, e termina em uma nova ime-  diaticidade, diferente da primeira porque mediada e plenificada.5

Analisemos mais a fundo a concepção hegeliana tematizando o seguinte exemplo. Se alguém me põe às mãos um livro desconhecido, com o intuito de que eu venha a conhecer o seu conteúdo, a minha relação primeira com o ob

 jeto não comporta problemas. Sei que se trata de um livro. Mas o esforço de compreensão do que me é estranho, o seu conteúdo informativo, traz consigo  

o início de um processo de dúvida. O que me era banal surge agora como 

problema. Mediação pressupõe, diz Hegel, o trabalho da negação, da dúvida. O processo será bem realizado se, ao final, eu puder de fato reconstruir internamente o conteúdo do livro, dominá-lo. As informações contidas no livro foram interiorizadas. Claro que poderíamos supor que esse processo não tem  fim, restando no livro um resíduo ainda não compreendido ou novas possibilidades de interpretação. Todavia, se e enquanto pretendemos a instauração  de um saber absoluto, resíduos não são bem-vistos: a posição hegeliana é de  que o começo aparece como problema, mas o fim, o resultado, pode plenifi-  

car o processo cognitivo de tal modo que não restem resíduos. O saber problemático do começo é elevado a saber incondicionado. O saber plenificado é  

a meta do modelo cognitivo hegeliano: o fim é o fundamento do sistema das  categorias e, em um movimento circular autofundante, libera o começo de sua problematicidade constituindo-o como o único começo possível: “O último, o

5 Sobre a lógica da pressuposição e da posição em Hegel, cf. D. Henrich,1975, p. 117 segs.Cf. tb. E. Luft, 2001, p. 171 segs.

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fundamento, é pois aquele a partir do qual o primeiro surge [...]” (WL, 5, p. 70). O começo problemático, meramente pressuposto, é agora posto e provado integralmente no interior da  Lógic a , absolutizando-se mediante a plenifí- cação do fim: “O essencial para a ciência não é tanto que o início seja imediato, mas que a sua totalidade seja um círculo voltado sobre si mesmo, no qual  o primeiro é também o último e o último o primeiro” (WL, 5, p.70). Desse modo, Hegel pretende ter resolvido ao mesmo tempo o problema da suposta  arbitrariedade do início - pois agora o início absoluto não surge como meramente imediato, mas como o resultado do próprio movimento lógico de constituição do sistema de categorias como totalidade acabada e as dificuldades em tomo da fundamentação última da ciência. Nesse sentido, Hegel toma o  

caminho exatamente inverso de Popper, terminando por privilegiar não as “sentenças de base” (ou protocolares, segundo os positivistas), mas as sentenças (ou categorias) universalíssimas que constituiriam  a priori o saber verdadeiro acerca das estruturas ontológicas últimas constituidoras de toda a realidade.6

Argumentamos em outra ocasião que a perspectiva hegeliana é autocon- 

traditória, pois supõe a eliminação de uma das dimensões da própria dialética, a sua face crítica (Luft, 2001). A crítica de um sistema de convicções somente  

é viável se é possível - embora não necessária - a sua modificação futura: o que se supõe como verdade e, portanto, se considera como instância do sistema atual pode ser compreendido como falso em nova circunstância, seja porque novas construções teóricas tenham sido propostas, seja porque novas sentenças protocolares estejam agora à nossa disposição. Em um sistema plenifi-  

cado todas as sentenças aparecem como (supostamente) verdadeiras, e a contraposição a ele não é mais possível. A Idéia Absoluta, o princípio último do  

sistema hegeliano, precisaria realizar ambos os momentos, contendo em si  

tanto o processo crítico quanto a exigência de uma plenificação do sistema  das categorias, o que é impossível. A realização da Idéia é sua autodissolu- ção. Isso não significa que Hegel tenha realizado efetivamente o que pretendia - pois um saber absoluto é, diante de tudo o que conh ecemos sobre o próprio conhecimento humano, inviável -, mas significa que,  se   o empreendimento pudesse ser realizado, ele teria de ser inconsistente.

Hegel, portanto, não realiza propriamente um modelo alternativo ao fún- dacionalismo. No sistema hegeliano o fundamento absoluto é o fim desde 

sempre predeterminado pelo processo, o que levará, na Ciência da Lógica,  ao impasse mencionado e, na Filosofia da História, a uma concepção de progres

6 Só podemos concordar com V. Hõste, quando afirma enfaticamente: “[...] que Hegel (comFichte c Schelling) é o mais radical apriorista da História da Filosofia, isto é, do ponto devista filológico, evidente [...]” (1988, p. 80, n. 50).

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so sem retrocessos possíveis na marcha do espírito pelo mundo.7 Em Hegel o problema do começo é transmudado no enigma do fim.

B o a c i r c u l a r i d a d e n a h e r m e n ê u t i c a f i lo s ó f i c a

Analisemos novamente o resultado da universalização do criticismo. Se  toda crítica inicia de pressupostos, então a auto-aplicação do criticismo pressupõe a possibilidade de revisão desses mesmos pressupostos. Logo, o conhecimento absoluto ou incondicionado e ao mesmo tempo crítico é impossível, o que vimos na abordagem do finalismo hegeliano. O que não significa a adesão ao ceticismo: a dúvida generalizada, aplicada de uma vez a toda e qual

quer sentença, inviabiliza qualquer apelo a pressupostos, o que desemboca em  uma posição dubitativa arbitrária ou dogmática. Mas pelo menos duas questões permanecem sem resposta. Se sentenças somente podem estar ancoradas  

em outras sentenças e o sistema de nossas convicções é autofundante, então  como evitar a má circularidade? E, por outro lado, sendo a linguagem um sistema autárquico, estamos inevitavelmente reféns do idealismo, seja idealismo  

subjetivo (tudo o que temos são apenas nossas próprias palavras (se isso for  de todo modo possível)) ou intersubjetivo (tudo o que temos são as palavras 

compartilhadas em uma comunidade de falantes)?Um debate com a hermenêutica filosófica de H.-G. Gadamer fornecerá  argumentos para responder à primeira das questões e deixará explícitos problemas só passíveis de resolução mediante a superação do idealismo inerente à própria hermenêutica. Para a hermenêutica filosófica conhecer é compreender. A compreensão se dá na linguagem. Nasce daí a primeira tese de Gadamer: a linguagem é autárquica. Não podemos buscar em qualquer fator alheio  à linguagem os elementos necessários para efetivar o conhecimento. Se a rea

lização da compreensão verdadeira dependesse da afirmação de uma relação  de correspondência entre linguagem e algum elemento a ela extemo, o encontro da verdade seria impossível. A compreensão correta não resulta da comparação entre sentença e fato, e sim do estabelecimento da coerência entre o  todo e as partes na imanência da linguagem: “O acordo de todas as singularidades com o todo é o critério para a correta compreensão. A ausência do  acordo significa o fracasso da compreensão” (1990, p. 296).

Como compreender, nesse contexto, a dialética do todo e das partes? Ca

da indivíduo que participa dos diálogos em uma comunidade é a  p arte   em  questão. Já o  todo  deve ser considerado a totalidade de sentido enraizada na história da própria comunidade (quando a história de mais de uma comunidade está em jogo pode ocorrer a fusão de horizontes,   o alargamento de hori

7 “Enquanto a Providência de Vico, mais falível, é obrigada de quando em quando a voltar aoinício para pôr-se à prova de novo, o espírito universal hegeliano procede infalivelmente porseu caminho, seguro de si, sem necessidade de olhar para trás” (Bobbio, 1991, p. 172).

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zontes restritos em uma totalidade mais abrangente). Temos uma situação  singular: a totalidade de sentido funda-se na fala dos indivíduos, pois resulta 

do diálogo concreto a própria constituição do sentido partilhado; mas também  

ao inverso, pois cada indivíduo entra em diálogo pressupondo uma totalidade  de sentido previamente dada. Dirá Gadamer: “A antecipação de sentido, na qual o todo é afirmado, vem a ser explicitamente compreendida na medida em  que as partes, que se determinam a partir do todo, determinam, por sua vez, o 

próprio todo” (WM, p. 296). A autarquia da linguagem conduz à circularidade da compreensão.

A dialética fundante/fundado solapa as premissas do fundacionalismo  

clássico, como aliás já havia ocorrido com Hegel. Todavia, Gadamer radica

liza o processo de superação do pensamento tradicional, recusando a noção  hegeliana do saber absoluto e inaugurando uma perspectiva só agora francamente antifundacionalista. Papel decisivo nesse contexto desempenha a tese da finitude imanente da compreensão. A compreensão resulta de um processo - a dialética entre o todo e as partes - banhado no tempo histórico. Nisso reside a novidade introduzida por Gadamer, seguindo as pegadas de M. Hei-  degger em Sein imd Zeit,  no m ovimento circular já aventado por Hege l.8

Devemos destacar sobretudo a concepção não-linear do tempo histórico 

introduzida por Gadamer. A compreensão não se dá orientada pela noção de  um fim último do diálogo, nem no sentido de um esgotamento (a impossibilidade de continuidade de qualquer diálogo) nem no sentido de um acabamento  

(o encontro de um acordo definitivo entre os que dialogam). Pressupor uma  tal noção de fim seria introduzir, na outra ponta da cadeia do discurso, a idéia  

de um início absoluto da compreensão. Desse modo, teríamos de pressupor,  ao início e ao fim, um momento onde não haveria mais nada a compreender. Introduziríamos a noção insustentável de um começo e um fim absolutos da 

atividade de compreensão, o que é, do ponto de vista de quem já desde sempre está inserido na atividade de compreensão, uma impossibilidade. Gadamer quer justamente superar o saber incondicionado proposto por Hegel, ou 

seja, o modelo segundo o qual a problematicidade do começo pode ser “resolvida” na plenificação do fim: “[...] a hermenêutica não pode conhecer  qualquer proble m a do começo,  como a lógica hegeliana conhece o problema 

do começo da ciência. O problema do começo, seja posto onde for, é na verdade um problema do fim. [...] Sob a pressuposição do saber infinito, a pres

suposição da dialética especulativa, isso pode conduzir ao seguinte problema, por princípio insolúvel: com o que devemos começar” (Gadamer, 1990, p. 476).

A finitude gadameriana está sustentada na própria estrutura do movimento circular da compreensão: nenhum acordo, estabelecido por esta ou aquela

Para a explicitação dos vinculos do pensamento gadamcriano com a tradição dialética platô-nico-hegeliana, cf. C.L.S. de Almeida (2000).

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comunidade neste ou naquele momento histórico, pode ser entendido como  

definitivo. Desse modo o círculo da compreensão abre-se a sempre novas possibilidades de realização da coerência, e o sabido põe-se novamente em  risco. Ser finito significa estar na imanência de um processo dialógico inacabado, inesgotável - significa estar orientado não para a idéia de um acabamento do diálogo, mas para o próprio movimento do compreender e para a 

sempre renovada tarefa da coerência. A hermenêutica deixa de estar orientada pela noção de um fim, e, solapando os fundamentos da dialética hegeliana,  pode mirar além do fundamento em geral.

Desse modo superamos a objeção de má circularidade. Comumente entendemos por circular o argumento que tem por conclusão uma sentença já contida entre as premissas. O argumento pressupõe de início o que deveria ser provado pelo próprio argumento. A má circularidade é causada pela iteração 

ou repetição do mesmo. Não se trata de uma falha lógica, pois um argumento  tautológico do tipo “Se p, então p; p; então, p” é, muito pelo contrário, uma  verdade lógica. O argumento iterativo é rejeitado por razões pragmáticas e não-lógicas: ele não é capaz de realizar o objetivo primordial de um diálogo  frutífero no contexto da busca do conhecimento, ou seja, ele não fomece novas informações. Mesmo no contexto da atividade crítica, o que esperamos de  

nosso adversário é a abertura a possíveis modificações de suas convicções e não a mera reiteração de sentenças que já sabemos por ele aceitas. Ao estabelecer o movimento circular da compreensão como um movimento aberto a 

possiveis modificações, porque condicionado por suposições não-  dogmatizadas, Gadamer transforma a má circularidade da iteração eterna do 

lógico  na dialética hegeliana em uma boa circularidade, embora o modelo co-  erencialista transmitido por Hegel permaneça vivo na hermenêutica filosófica.

Im p a s s e s d o i d e al is m o i n t er s u b j et iv o

Mas não oferecemos ainda a resposta à segunda questão anteriormente tematizada: tudo o que temos são palavras? Tendo em vista a tese geral da autarquia da linguagem e o célebre lema gadameriano - "Sein, das verstanden werden kann, ist Sprache"   (1990, p. 478) -, podemos afirmar que a hermenêutica filosófica somente reconhece a presença de um mundo mediado lin-  güisticamente. A ontologia gadameriana é ontologia subjetivista, como o é a 

teoria kantiana dos fenômenos. Mas, ao contrário desta, a hermenêutica pôde  superar de vez o idealismo subjetivo em um idealismo intersubjetivo: diferentemente dos fenômenos da consciência, núcleo especulativo das metafísicas modernas, o mundo da linguagem é desde sempre um ambiente compartilhado por uma comunidade de indivíduos. O problema do idealismo em suas variadas vertentes e, especificamente, da posição gadameriana, diz respeito ao  

não-esclarecimento de uma questão crucial: por que há em geral um mundo

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de objetos, ou, dito de outra forma, por que nos movemos no mundo fazendo  uso da linguagem teórica?

Traduzindo-a à linguagem do idealismo fichteano, poderíamos expressar 

a questão da seguinte forma: por que há em geral natureza? A natureza é compreendida por Fichte como um subsistema no todo da subjetividade, um dos modos de configuração do próprio eu universal. Mas por que a subjetividade se autodiferencia em um eu conhecido - o eu-objeto - e um eu conhecedor - o eu-sujeito? Qual a gênese em mim mesmo dessa sensação de estar diante de uma esfera de objetos que não fazem parte da minha própria subjetividade, mesmo se sustentarmos a idéia de que tal sensação seja, ao fim, ilusória? Ainda assim reside a sensação: qual a sua proveniência? Fichte poderia  

argüir que a gênese de todas as nossas representações é o princípio da auto- consciência. Todo o ato de conhecer é um movimento em direção ao autoco-  

nhecimento, e para que a autoconsciência possa se realizar é imprescindível a mediação de uma consciência de objetos. Logo, a consciência de objetos tem  de ser produzida - sendo com ela produzida toda sensação de uma esfera de 

objetos posta diante de nós - para a realização plena da autoconsciência (e, ao final, para Fichte, um movimento na direção da auto-realização do eu como sujeito livre). Como ela não pode ser pressuposta anteriormente à ativida

de do próprio eu, a consciência de objetos deve ser produzida pelo eu como condição para a realização da autoconsciência. Ocorre que a situação é exatamente inversa: por ser a autoconsciência impossível sem o acompanhamento da consciência de objetos, um idealismo centrado na noção de autoconsciência não pode responder à pergunta pela gênese da consciência de objetos,  antes a pressupõe como dada.

Não é hora para analisarmos a fundo o idealismo fichteano, mas um problema equivalente podemos encontrar na hermenêutica filosófica. Dois con

ceitos são decisivos para o estabelecimento da noção de “objetividade” em  Gadamer, Welt e Sache. O mundo gadameriano é mundo de sentido. Mesmo o que consideramos o mundo de objetos é apenas uma das dimensões de uma  

realidade constituída lingüisticamente. Podemos dizer que a linguagem assume em Gadamer o papel que o eu desempenhava no idealismo fichteano. O  

importante é que, por ser constituído lingüisticamente, o mundo não aparece ao homem como uma totalidade fixa e imutável, mas como o processo circular da dialética do todo e da parte, como vimos anteriormente, uma realida

de passível de assumir novas configurações, embora as mudanças não sejam   jamais arbitrárias. N isso o mundo humano (Welt)  se distingue do meio ambiente (Umwelt)  dos animais: “Animais podem abandonar o seu meio ambiente e vagar por toda a terra sem, desse modo, destacar-se de sua relação com o  

meio ambiente. Ao contrário, para os homens a elevação sobre o mundo é elevação pa ra o mundo e não significa um abandono do meio ambiente mas o

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estabelecimento de uma nova posição frente a ele, um comportamento livre, distanciado, cuja realização é sempre lingüística” (Gadamer, 1990, p. 448).

A abertura do mundo a novas configurações possíveis, núcleo da liberdade humana, possibilita o distanciamento que, por sua vez, permite a realização do discurso teórico, objetificante: “Da relação da linguagem ao mundo  segue a sua objetividade [Sachlichkeit: a sua propriedade de referir-se a coisas], O que vem à linguagem são estados de coisa. Uma coisa que se comporta desse ou daquele modo - nisso reside o reconhecimento da alteridade independente, que pressupõe a distância de quem fala com relação à coisa” (Gadamer, 1990, p. 449). Embora a configuração do mundo possa ser alterada, a nossa relação com o mundo não é arbitrária, pois o interesse pela coisa mesma limita o campo de interpretações possíveis: “[...] no interior dessa multiplicidade do ‘opinável’, ou seja, daquilo que o leitor considera com sentido e, portanto, pode esperar, nem tudo é possível [...]. A  tarefa herm enêutica p ro

 cede ela mesma de uma in dagação obje tiva [sachliche Frageste llung], e é desde sempre co-determinada por essa tomada de posição” (Gadamer, 1990, p. 273). O interesse pela coisa mesma revela-se, de um lado, como o reconhecimento de configurações de sentido já estabelecidas - o sentido de um texto 

que se deve interpretar -, de outro como a exigência do acordo (a coerência 

entre o todo e as partes) na interpretação.Todavia, uma ontologia centrada em uma filosofia da linguagem não pode dar conta da pergunta: por que temos ou devemos ter o interesse pela coisa  

mesma? Se a linguagem tem por característica decisiva a possibilidade de  inaugurar novas interpretações, o seu caráter criativo, imaginativo, por que 

precisaríamos restringir e limitar as pretensões da im aginação preocupando-se com a coisa ela mesma, com a tarefa da objetividade? Podemos diferenciar o discurso teórico por seu caráter heterônomo, o interesse pela coisa mesma 

(nas palavras de Gadamer): uma sentença não apenas mostra a si mesma mas revela algo outro; ou mais: a sentença mostra algo outro e se oculta. O interesse de quem propõe algo com o “Há um livro à sua frente”, não é chamar . atenção do ouvinte para a própria sentença, mas para o livro à sua frente. Mas  

nem todo o discurso se realiza desse modo. Há linguagens que podem perfeitamente se bastar na função de mera exposição ou auto-exposição: um poema  pode apenas mostrar-se a si mesmo, e mostrar-se de múltiplas formas dispensando certas exigências cruciais ao discurso teórico como a manutenção do 

caráter unívoco dos conceitos utilizados na argumentação, como o próprio Gadamer salienta: “A afirmação poética é especulativa não por figurar uma 

realidade já existente, não por reproduzir o aspecto da espécie na ordem da essência, mas por apresentar o novo aspecto de um novo mundo no meio  imaginário da invenção poética” (1990, p. 475).

Uma ontologia centrada na autarquia última da linguagem não pode responder a esta dúvida crucial, pois não podemos explicar a gênese da lingua

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gem teórica a partir de linguagens diversas, como a linguagem poética, e não podemos explicar a sua gênese a partir dela mesma, pois todo discurso teórico 

se realiza desde sempre sob a égide do interesse pela coisa mesma e, especificamente no contexto da filosofia gadameriana, sob a égide da pressuposição  

do mundo como totalidade de sentido. Como bem viu Gadamer, “não apenas  o mundo é mundo enquanto vem à linguagem - a linguagem tem sua existência própria apenas enquanto apresenta nela mesma o mundo” (1990, p. 447).  Há um déficit de refiexividade na hermenêutica filosófica porque, a partir do recurso único e exclusivo à própria linguagem como fundo ontológico de toda  concepção de mundo, é impossível explicar os pressupostos mais básicos da 

própria linguagem enquanto discurso teórico.

P e n s a m e n t o e s er  

O déficit de refiexividade detectado na hermenêutica filosófica chama a 

atenção a um outro problema crucial: as teorias da verdade centradas integralmente na idéia da coerência na imanência do sistema da linguagem (teórica) não são capazes de dar conta de elementos importantes da noção clássica  

de verdade como correspondência. Se não podemos falar de uma relação en

tre sentença e qualquer evento extralingüístico, não podemos tampouco abandonar a função de apresentação própria ao discurso teórico, e o modelo coe-  

rencial intralingüístico é incapaz de dar conta do problema. Tudo o que se exige no modelo coerencialista mencionado é avaliar a coerência entre as sentenças que compõem um sistema de convicções, mas nada se diz sobre a função do sistema de convicções como um todo enquanto  discurso teórico.  Podemos pensar em um sistema de afirmações baseado no mesmo modelo coerencialista, supondo-se cada uma das suas sentenças coerentes entre si, e, con

tudo, com função eminentemente estética: o seu intuito é somente expor-se a si mesmo.

Devemos, portanto, recuperar o diálogo com Popper no sentido de resguardar o elemento produtivo do modelo correspondencialista sem cair em  seus mencionados erros. Isso é possível se considerarmos o sistema da linguagem teórica não como sistema em última instância autárquico, mas como  

subsistema de sistemas mais abrangentes que, ao fim, devem ser tratados no contexto de uma teoria geral da inteligibilidade, uma teoria da razão objetiva 

que pervade e dota de sentido a totalidade do que é, e faz do universo um  cosmos, um mundo ordenado. É preciso superar o idealismo hermenêutico em  uma nova metafísica concebida como cosmologia crítica,9 uma abordagem  

apenas implícita no esboço a ser realizado nas notas que seguem.

9 Quer dizer, uma verdadeira cosmologia, uma teoria do universo como um todo e, portanto,uma teoria que envolva também a tcmatizaçüo do próprio sujeito cognoscente.

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1. A primeira questão que surge é: a construção de uma nova metafísica  não exigiria o impossível, ou seja, o acesso cognitivo do filósofo a uma posição exterior ao sistema da linguagem? A pergunta tem dois aspectos que precisam ser diferenciados. Ela pode se desdobrar na seguinte questão: se a linguagem é essencial ao conhecimento humano, poderíamos conhecer algo sem  

o uso da linguagem? Ou nesta outra: podemos falar de algo que não seja linguagem? A resposta negativa à primeira questão não implica uma resposta  igual à segunda. Não podemos explicar a gênese e a função da linguagem teórica sem a pressuposição da vigência ontológica de eventos não-lingüísticos, mas não precisamos o apelo a qualquer conhecimento não-lingüístico para explicitar tais pressupostos: a linguagem têm vigência epistêmica universalís- 

sima, sendo inteiramente autárquica do ponto de vista teórico, tendo contudo vigência ontológica restrita - é apenas um dos sistemas no sistema do universo.2. Tendo em vista o modelo coerencialista até aqui esboçado e a necessi

dade de preservação da função de apresentação das concepções tradicionais  

acerca do que vem a ser “verdade”, podemos rever a definição de conhecimento estabelecida por Platão, propondo a seguinte definição alternativa: “Conhecimento (teórico) é opinião coerente em um sistema de sentenças decidido afirmativamente após reatualização crítica”. As sentenças têm função  

de apresentação e a decisão do sistema significa seu fechamento provisório, a sua aceitação como convicção teórica norteadora das presentes e futuras ações práticas até o momento em que novas convicções venham a exigir a sua  alteração. A decisão do sistema de sentenças tem um impacto sobre as nossas 

ações no ambiente que, embora somente possa ser tematizado teoricamente na 

imanência da linguagem, extrapola os limites de nosso mundo lingüística e in-  tersubjetivamente mediado. O que está em jogo, daqui para frente, não é apenas a coerência ou não de nossa visão de mundo, mas a compatibilidade ou 

não entre nossas convicções teóricas e nossas condutas socialmente incorporadas e, por último, a estabilidade ou não de nossas condutas levando-se em  conta sua inserção no meio ambiente mais amplo. O discurso teórico só pode  ser adequadamente compreendido quando percebemos a necessidade de sua extensão em um discurso prático acompanhado por ações efetivas (um ponto  salientado sobretudo por Fichte, embora em outros termos, condizentes com  seu sistema de idealismo subjetivo).

3. A tematização teórica de todo o complexo movimento que se estabele

ce entre os três níveis de coerência - intrateórico, entre o sistema de sentenças e as condutas, e entre estas e o ambiente - é toda realizada na imanência do sistema da linguagem, pois, como já dissemos anteriormente, a linguagem é um sistema epistemicamente autárquico. Mas a sua realização efetiva se dá 

também em âmbitos mais abrangentes do meio ambiente, sendo o sistema da linguagem apenas um dos subsistemas no todo do universo (objetivo): o movimento para a coerência é um processo intrínseco não apenas ao sistema da

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linguagem, mas a todos os eventos no universo que se apresentam como sistemas ou instâncias de sistemas.10 “Coerência” vem do latim "cohaerentia ”, significando “união”, “ligação”, “proporção das partes com o todo”. Por sua 

vez, o conceito “sistema” tem a sua origem no grego:  systema   consta da junção do advérbio  syn  - “todos juntos”, “juntamente” - com o verbo  hístemí -  “colocar”. “Sistema” significa, portanto, “colocar junto”, “dar unidade”. Como vemos, os termos “coerência” e “sistema” têm, em sua origem etimológi-  ca, significados muito próximos. Um sistema cognitivo ou sistema teórico  (sistema de linguagem teórica) é o conjunto de relações que unifica sentenças em um todo. Um sistema prático (sistema ético) é o conjunto de relações que unifica as condutas de vários indivíduos em suas relações mútuas e com o 

ambiente, as normas por todos pressupostas e suas convicções teóricas.4. Estas relações unificadoras e estáveis são justamente a manifestação da coerência inerente ao sistema. Se e quando estas relações forem perturbadas, a unidade do sistema estará em risco. Tudo o que permanece, permanece  em um sistema, e a perturbação das relações que constituem um dado sistema  implica a sua instabilidade e tendência à dissolução. Poderíamos dizer que  

não  há  propriamente coerência mas a coerência está sendo  constantemente reatualizada no interior de cada sistema estável.

5. De tudo o que foi dito se segue que não podemos saber de fato se o  presente esboço, e mesmo a possível teoria abrangente que se possa dele derivar, é verdadeiro. Do ponto de vista epistêmico, nos movemos praticamente  

às cegas. E, ainda assim, nos movemos.

Referênc ias

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10 Para maior desenvolvimento deste tema, cf. E. Luft (2003).

Olhar além do fundamento 3 3

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2

A (des)estruturação das estruturase a (re)estruturação dos sistemas:uma revisão epistemológica crítica

Léo Peixoto Rodrigues 

------------ ♦-------------

I n t r o d u ç ã o

Mesmo a noção de sistema tendo despontado - e de certa forma se de

senvolvido - dentro das ciências em geral antes da noção de estrutura, foi o termo estrutura (e seus derivativos) que ganhou uma “coesa” adesão, nas Ciências Sociais, além da lingüística, como movimento, no final da primeira metade e início da segunda do século passado. As noções de estrutura e de  sistema têm sido utilizadas, muitas vezes, principalmente até o início dos anos 70 recém-passados, de forma sinônima. Não raramente, a noção de sistema é utilizada nos textos estruturalistas para reforçar, complementar e até mesmo explicar o próprio conceito de estrutura. Piaget, por exemplo, em O estrutura- 

lismo  (1979), no item das definições, argumenta: “Em uma primeira aproximação, uma estrutura é um sistema   de transformações que comporta leis en

quanto sistemas..."  (grifos nossos) (p. 8). Bastide (1971), em sua Introdução, que visa mostrar as diferentes acepções do termo estrutura diz: “A noção de estrutura poderia, então, ser assim definida: Sistema integrado,  de modo que a mudança produzida num elemento provoca uma mudança nos outros elementos [...] Mas esse sistema (o que distingue da organização) está ‘latente’ nos objetos” (grifos nossos) (p. 9). Do mesmo modo, o termo estrutura tam

bém tem sido, muitas vezes, utilizado para o entendimento da noção ou do conceito de sistema; isso vai depender da época, da disciplina e do tipo enfoque - estrutural ou sistêmico - adotado no texto. Capra (1990), ao se referir sobre as características de um sistema, assevera: “Um outro aspecto importante dos sistemas é a sua natureza intrinsecamente dinâmica. Suas formas não são estruturas  rígidas, mas manifestações flexíveis, embora estáveis de processos subjacentes” (grifos nossos) (p. 261).

 A (des)es tr utu ração das estr utur as e a (re)estr utu ração dos sistemas 3 5

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Se a definição de estrutura constitui numa tarefa complicada de ser executada, mesmo durante o período em que este termo esteve em franca evidência,  a definição de sistema oferece dificuldades ainda maiores. A utilização do termo, como uma noção-chave para as explicações científicas, parece ser tão antigo quanto a própria ciência: na Física, poder-se-ia falar em sistema solar, modelo de sistema atômico, sistema de forças; na Biologia, o termo representava uma  coleção, um conjunto articulado de componentes: sistema classificatório dos seres vivos (filogenia/taxiologia), sistema respiratório; o mesmo ocorreu na Sociologia, em que  sistem a  social passou a ser freqüentemente utilizado para denotar conjuntos articulados ou transformáveis, (mutáveis), tais como grupos sociais, instituições diversas, incluindo o próprio Estado, etc. Morin (1987) afirma que  “todos os objetos-chave da Física, da Biologia, da Sociologia, da Astronomia; átomos, moléculas, células, organismos, sociedades, astros e galáxias constituem sistemas” (p. 96). De fato, numa primeira análise, parece que a noção de sistema traduz qualquer coleção, cujas partes se articulam em um  todo nclo- estático. Sua trajetória, porém, e os revezes epistemológicos que sofreu em diferentes contextos, não se apresentam assim tão simples.

Estrutura e sistema, como conceitos, métodos, e fundamentações epistemológicas têm apresentado muitas semelhanças durante os seus usos e aplicações em diferentes esforços teóricos, de forma interdisciplinar. A comensura-  bilidade de tais conceitos não parece depender desta ou daquela disciplina: é transdisciplinar. As suas capacidades em dar carne a esqueletos teóricos (vice-versa) também não respeitam - pelo menos não têm respeitado - as fronteiras da divisão disciplinar do conhecimento científico. Sistema e estrutura  chegaram a ser utilizados, sem qualquer constrangimento ou crítica, como sinônimos. Saussure, por exemplo, embora nunca tivesse falado em estrutura,  mas, sim, em sistema, desencadeou um movimento denominado de estrutura- lismo, inclusive nas Ciências Sociais. Piaget (1979) utilizava o conceito de  sistema como complemento do conceito de estrutura e vice-versa; se o objetivo fosse o de dar mais mobilidade à estrutura, se falava em sistema, cujo conceito, por sua própria origem clássica, como veremos, parecia apresentar  maior sinergia entre os seus elementos, quando comparados às estruturas. De  forma análoga, quando se desejava dar maior estática a qualquer organização,  falava-se em estrutura, cujos componentes transmitiam a idéia de perenidade, constância, maior coagulação, coalescência.

Este estado de comensurabilidade conceituai, de forma tão simplificada e 

direta, realizada por algumas disciplinas do conhecimento científico, durou até a década de 70. A partir de então, a idéia de sistema —que já vinha se tornando mais refinada desde o surgimento da cibernética e do concomitante aparecimento da nação de auto-organização - apresentou-se mais complexa, incorporando incrementos epistemológicos, muitas vezes aparentemente paradoxais, como as noções de sistema aberto e de sistemas auto-referidos,

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oriundos tanto da Biologia como dos estudos cibemeticistas numa intrincada cooperação interdisciplinar.

Este artigo, portanto, está estruturado em dois momentos muito distintos.  

No primeiro, trata-se de um esforço revisional dos conceitos de estrutura. Nossa abordagem está estruturada sempre a partir de uma perspectiva episte-  mológica, sobre o termo estrutura e seus derivativos (estruturalismo e pós- estruturalismo). Advertimos, porém, que o tema é amplo, com muitas controvérsias e, assim sendo, não pretendemos ter, nem de longe, esgotado um estudo sobre estrutura, estruturalismo e pós-estruturalismo.

No segundo momento, buscamos igualmente realizar uma revisão crítica do conceito de sistema desenvolvido, principalmente, durante o século XX, 

no âmbito da Ciência. Buscamos apresentar as diferentes acepções do conceito, cujas características inovadoras desenvolvidas a partir dos estudos ciber-  neticistas e, posteriormente, com a revolucionária noção de autopoiésis, propiciaram o desenvolvimento de uma teoria sistêmica: a Sistemática.

O objetivo de tal revisão é o de oferecer ao leitor uma introdução aos  principais aspectos do debate que tem sido travado, durante o século XX, sobre o termo estrutura e, sobretudo, sobre o termo sistema (origens, congruências, discrepâncias, modificações sofridas ao longo do tempo, expectativas  

quanto à fertilidade explicativa e transformações de enfoques epistemológicos). Muitos teóricos contemporâneos, centralmente vinculados às ciências  humanas, não acompanharam a “evolução epistemológica” interdisciplinar da teoria sistêmica. É neste sentido que este artigo pretende contribuir, oferecen-  do-lhes um “mapa”, para posterior aprofundamento do conceito.

Concluímos o artigo, na forma de um terceiro momento, buscando caracterizar o pós-estruturalismo como uma corrente de pensamento polissêmica  que se caracteriza, por vezes, mais num “anti” estruturalismo que propriamen

te num “pós”. Sobretudo, destacamos a total fragmentação do conceito de estrutura no pós-estruturalismo, ressaltando que o termo “pós-estruturalismo” constitui-se num rótulo que abarca os mais diversos esforços contemporâneos de reflexão teórica. Em contraposição, buscamos demonstrar que o conceito  de sistema, diferentemente do conceito de estrutura, converge para um maior consenso no que se refere aos incrementos epistemológicos importantes tais  como a idéia de clausura operacional, auto-referência, auto-organização e autopoiésis, renovando o fôlego da reflexão teórica nas ciências e, em parti

cular, nas ciências sociais.

O t e rm o estrutura:   m é t o d o o u n o v a ab o r d a g e m  e p i s t e m o l ó g i c a n a s c i ê n c i a s s o c i a i s

O uso do termo estrutura,  pouco freqüente na segunda metade do séculoXIX, embora constante do prefácio à Crítica da economia política,  de Marx, publicado em 1859, foi de fato consagrado como formalização teórica, no

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âmbito da Sociologia, com Durkheim, em  As regras do método socio ló gic o, 

de 1895. Conforme Bastide1 (1971 ), num primeiro momento foi Spencer quem empregou o termo, abrindo o caminho que vai da Biologia à Sociologi- 

a, com a construção analógica entre um organismo biológico e um organismo  social. Mesmo salientando as diferenças existentes entre um e outro domínio,  Spencer não deixa de tomar da Biologia a expressão “Estrutura Social” mesmo estando ela comprometida com o pensamento organicista. Esta é a “trilha” 

que vai nos levar a Durkheim e, mais tarde, a Radcliffe-Brown quanto à utilização do termo. Para Lévi-Strauss (1971, p. 165), porém, “não há filiação direta desde Spencer e Morgan até as investigações estruturais contemporâneas. Desde 1830, até a época atual, a palavra ‘estrutura’ conhece uma difusão ex

traordinária, mas tem sido mais redescoberta que transmitida”; e acrescenta:

As pesquisas estruturais e a palavra estrutura aparecem quase ao mesmo tempo,

mas não nos m esmos autores. Sp encer (cerca d e '1860-1865) seria o pai esqueci

do do termo estrutura, afirma Gurvitch nos ‘Cahiers Intemationaux de Sociologi-

e’. Radcliffe-Brown também diz o mesmo; entre os precursores cita Montesqui-

eu, Spencer e Durkheim: remonta, portanto, mais atrás que Gurvitch (ao sistema

de Montesquieu). Mas se na distinção que Spencer faz entre a estrutura e a fun

ção no organismo social, distinção esta tirada da Biologia, encontramos a pala

vra, o objeto está ausente. Quase simultaneamente, existe o objeto, mas não a palavra em Lewis Morgan, nos seus estudos sobre os iroqueses [...] em que ele faz

uma análise estruturalista empregando ainda o termo sistema (Lévi-Strauss,

1971, p. 165).

O fato de o termo estrutura poder significar, ao mesmo tempo, um conjun

 to, as partes desse conjunto e as relações dessas partes entre si, explica o porquê  da fácil adoção do termo tanto por anatomistas (do grego  ana =  separação, corte 

e  tomo = parte) como pelos gramáticos. Na lingüística, o uso do termo estrutura, segundo Fages (1969), apareceu no primeiro congresso dos filólogos eslavos,  em Praga, em 1929, num manifesto anônimo, cujos três principais inspiradores  foram os lingüistas russos Jakobson, Karcevsky e Trubetzkoy.

Durante a breve história do estruturalismo, o termo estrutura desencadeou muitos debates, concordâncias e discordâncias em tomo de seu significado. Para Saint-Semin (1998), que recupera o significado latino do termo estrutura, é a partir da raiz struo, construir, que se forma a structura,  estrutura, e 

o  strues,   acúmulo.  Estructura,  em latim, tem o sentido primeiro de arquitetura, de construção arquitetônica; sendo esse significado estendido, posteriormente, à gramática e à retórica no sentido de construção de textos e de sentidos, através do uso da palavra.

1 Bastide (1971) foi o organizador da publicação Os Usos e Sentidos do Termo "Estrutura", fruto de um Colóquio realizado entre 10 e 12 de jane iro de 1959, em Paris, para tratar jus tamente, como se refere o Coordenador, “do esclarecimento, do enquadramento, e se possíveltambém de uma síntese do termo estrutura” (Bastide, 1971, p. 2).

3 8 Léo Peixoto Rodrigues

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Estrutura sempre tem sugerido a idéia contrária à de caos; tem remetido à percepção de referência, de organização, de ordem, de forma. A forma é um  “primeiro estado” de ordem geométrica e, neste sentido, toda a extensão de 

matéria (em termos da Física), seja ela de que substância for, se não se revelar  

totalmente amorfa, apresentará uma primeira estrutura arquitetônica. Pouillon  (1967, p. 3), em Uma tentativa de definição,  artigo esse publicado na revista 

 Les Temps M odenie s,'  numa edição dedicada “aos problemas do estrutura- lismo”, afirma:

Estrutura é, antes dc mais, a maneira como o edifício está construído, depois, por

extensão, o modo como as partes de um todo qualquer [...] são ‘dispostas’ entre

si. O dicionário de Lalande acrescenta a idéia da solidariedade dos elementos,

mas ela já está contida na definição precedente: o edifício desmoronar-se-ia, o

discurso não teria sentido se as partes de um todo não fossem solidárias. A estru

tura é, portanto, aquilo que nos revela a análise intema de uma totalidade: ele

mentos, relações entre elementos e o arranjo, o sistema dessas mesmas relações.

Merquior (1991) reconhece a primazia etimológica do sentido arquitetônico do termo estrutura, mas aponta, também, a importância do seu sentido  

orgânico, destacando que nessa acepção é importante a idéia de vinculação  entre componentes, como nos corpos e em outras formas vivas. Lembra, ain

da, o seu sentido matemático, em que o uso do termo estrutura “significa um  conjunto de relações abstratas definidas de modo formal e subentende um  

modelo válido para vários conteúdos diferentes, sendo estes ditos isomórficos exatamente porque compartilham da mesma estrutura” (Merquior, 1991, p. 19).

A partir dessas definições, o conceito, tem apresentado a noção de organização entre seus elementos e, decorrente disso, uma possibilidade hierárquica entre esses elementos; ou seja, aqueles elementos que podem se revelar como essenciais e aqueles que não comprometem o cerne estrutural. Isso 

também nos revela o caráter positivo da concepção estrutural; positivismo, esse, que está na própria origem do movimento estruturalista, como a antropologia de Lévi-Strauss. Ao mencionar essa positividade, Piaget (1979, p. 8) 

faz referência ao “ideal de inteligibilidade intrínseca fundada no postulado de que uma estrutura se basta a si própria e não requer, para ser apreendida, o 

recurso a todas as espécies de elementos estranhos à sua natureza”; Piaget (1979, p. 10) chega mesmo a falar em leis: “Uma estrutura é, por certo formada de elementos, mas estes estão subordinados às leis que caracterizam o  

sistema [estrutural] como tal.” Outro aspecto marcante que denota o fundamento positivo da concepção estrutural nas teses de Lévi-Strauss é a busca por características gerais em diferentes estruturas, visando à possibilidade de

2 Trata-se do número 246, publicado em novembro de 1966 (Paris), e foi integralmente traduzido para o português, pela Zahar (Rio de Janeiro) em 1968. Nossa citação, entretanto, refe-re-se ao mesmo artigo publicado em uma antologia de textos teóricos sobre o estruturalismo,ver Coelho, E. P. 1967.

 A (des)es tr utu ração das estr utur as e a (re)estr utu ração dos si stemas 3 9

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generalizações - mesmo que muitas vezes precárias - através da identificação de regularidades (leis) inerentes a diferentes estruturas; e isto ele irá buscar  realizar através da lingüística, como ciência positiva, aplicada às Ciências So

ciais. Em Antropolo gia estrutural  de 1970, ele diz: N o conju nto das C iê ncia s Socia is ao qual pcrtcncc in discutivelm ente , a lin güís ti

ca ocupa, entretanto, um lugar excepcional: ela não c uma ciência social como as

outras, mas a que, de há muito, realizou os maiores progressos: a única sem dú

vida, que pode reivindicar o nome de ciência e que chegou, ao mesmo tempo, a

formular um método positivo e a conhecer a natureza dos fatos submetidos à sua

análise (Lévi-Strauss, 1970, p. 47).

Da es t r u tu r a ao es t r u tu r a li s m o

Foi o lingüista dinamarquês Louis Hjelmslev quem reivindicou o emprego do termo estruturalismo,  derivando-o da já conhecida palavra estrutura, como fundamento epistemológico e método de abordagem científica. Segundo Dosse (1993), em  His tória do estru turalism o, Hjelmslev fundou, em 1939, a revista  Acta Lingüística, em que constava um primeiro artigo referindo-se à 

lingüística estrutural. A partir de então, o termo passou a ser utilizado, cada 

vez mais, na academia, lugar em que seus significados se proliferaram. Esse polissemantismo, não raramente, gerava a necessidade de a academia buscar  entre seus pares uma univocidade para o termo. Lefebvre (1967, p. 81, grifo 

do autor), ao se referir sobre o conceito diz: “Vários colóquios e numerosos  seminários não conseguiram conferir ao conceito estrutura  um sentido preciso. No entanto, a palavra tomou-se de uso corrente. Não há nenhum artigo,  nenhuma exposição, que tocando de perto ou de longe as Ciências Humanas,  não o contenha várias vezes.”

Como bem salienta Saint-Semin (1998, p. 89), “há um descompasso de  mais de dois milênios entre a palavra ‘estruturalismo’, surgida na década de  

20 e 30, e o vocábulo ‘estrutura’ que existe desde a Antigüidade”. Para ele, o termo estruturalismo passa a ser utilizado, como um neologismo, justamente  

quando nas décadas de 20 e 30, a noção de estrutura, existente como “séries  independentes” em outras áreas do conhecimento científico, entram em contato umas com as outras.3 Saint-Semin (1998, p. 89), menciona ainda que: 

“desses encontros muito contingentes, iria emergir a esperança, ou a ilusão,

3 Gostaríamos de advertir que o estudo das estruturas, denominado de estruturalismo a partirdo século XX, foi desenvolvido em diferentes disciplinas do conhecimento científico (Matemática, Física, Biologia, Psicologia Economia, Lingüística, Filosofia, etc), de certa formaseu amplo desenvolvimento tem a ver com a crise do mecanicismo newtoniano no final doséculo XIX e início do XX. Neste trabalho, entretanto, nos ocupamos de alguns aspectos referentes ao estruturalismo nas Ciências Sociais. Sobre uma abordagem estruturalista interdisciplinar ver principalmente: Bastide (1971); Bertalanffy (1975); Piaget (1979); Dosse(1993); Mari (1995); Saint-Semin (1998).

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de uma teoria geral da descrição, classificação e explicação das estruturas, à qual se daria o nome de ‘estruturalismo’.”

Com relação ao “estatuto do estruturalismo” no escopo de uma taxiono-  

rnia epistemológica parece, com exceção da lingüística moderna, em geral, 

que mesmo os seus apoiadores e defensores mais argutos não sabem bem como classificá-lo. Piaget (1979, p. 111) argumenta que: “[...] se a história do estruturalismo científico já é longa, a lição, a se tirar daí, é que ele não poderia se tratar de uma doutrina ou de uma filosofia [...] mas essencialmente de  um método, com tudo que este termo implica.” Giddens (1999, p. 282), na esteira de Piaget, lembra-nos de que: “Foucault, Lacan, Althusser e Derrida divergem radicalmente tanto entre si quanto das idéias capitais de Saussure e de Lévi-Strauss [não havendo, assim], a homogeneidade necessária para se falar 

de uma tradição filosófica [...]”. Já Merquior (1991, p. 13, grifo do autor),  neste mesmo sentido, comenta que “o estruturalismo, apesar da semelhança entre as teorias dos seus fundadores, não é na verdade um movimento unificado, muito menos uma escola. E, mais exatamente, um estilo de pensamento  no lado humanístico do conhecimento”. Barthes (1967, p. 19-20, grifo do autor), um dos mais importantes estruturalistas afirma que o: “[estruturalismo] não é uma escola nem mesmo um movimento [...] porque a maior parte dos autores [...] não se sentem ligados entre si por uma solidariedade de doutrina  

ou de combate. [...] o estruturalismo é essencialmente uma  ativid ade

O fato de o estruturalismo não ser considerado, como apontamos, nem filosofia, nem doutrina, nem escola, tampouco movimento, cabe questionar, então: qual a finalidade do sufixo “ismo” à raiz estrutura? Parece que a resposta  

está na própria origem do termo. E consenso o fato de que o termo estrutura

lismo  e outros conceitos, forjados pela teoria lingüística, foram, a partir de então, apropriados por diferentes disciplinas, dando ao termo estrutura um sufixo conotativo de escola. Neste sentido, Broekman (1979, p. 10) argumenta:

A atividade estruturalista se apóia na idéia de que os mencionados conceitos  [língua, palavra, significante, significado, código] e outros análogos que têm sido tomados da lingüística, não apenas servem aos problemas lingüísticos, mas também a questões filosóficas, literárias, sociais e epistemológicas [...]

Deleuze (1982, p. 271-272, grifo do autor), nesta mesma linha, argumen- tativa vê a legitimidade do emprego dessa sufixação dada a diversidade de  domínios e de teóricos que utilizam o termo; diz ele:

Cada um encontra problemas, métodos, soluções que têm relações de analogia, como que participando de um ar livre do tempo, de um espírito do tempo, mas que se mede com as descobertas e criações singulares de cada um desses domínios. As palavras em -ismos, neste sentido, são perfeitamente fundadas.

O movimento estruturalista ganhou adesão a partir da Segunda Grande Guerra, atingindo o seu apogeu entre as décadas de 50 e 60, do século recém-

 A (des)es tr utu ração das estrut ur as e a (re)estr utu ração dos s is temas 41

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passado. Foi Claude Lévi-Strauss quem, influenciado por Roman Jakobson, de maneira muito surpreendente, transpôs o fundamento epistemológico da 

perspectiva estrutural, desenvolvida no seio da lingüística modema, para o es

tudo da Antropologia. A necessidade de superar as explicações funcionalistas  dadas aos estudos sobre o incesto (Malinowski), por um lado, e, as metodologias excessivamente descritivas e empiristas (Radcliffe-Brown), por outro lado, fizeram com que Lévi-Strauss, em As estru turas elementares cio parentes

 co   (1982) e, em  Antropolo gia Estrutura l   (1970), afirmasse que a estrutura 

não era o “núcleo do objeto”, mas, sim, “o sistema de relações latentes no ob jeto”; ou seja, segundo as suas palavras:

 N o estu do dos proble m as de parente sco [...] o soció lo go sc vê num a situação

formalmente semelhante à do lingüista fonólogo: como os fonemas, os termos de

 parente sco sã o ele m ento s de sig nif icação; com o eles só adquirem esta sig nific a

ção sob condições de se integrarem em sistemas; os “sistemas de parentesco”

(Lévi-Strauss, 1970, p. 51).

Dessa forma, para Lévi-Strauss, o mesmo sistema de relações poderia ser 

transposto para o conhecimento de outros objetos distintos em outras áreas do conhecimento, possibilitando a unificação de disciplinas afins. Com isto, as 

Ciências Sociais, diferentemente do que tem sido afirmado a respeito do conceito de estrutura, têm adotado uma perspectiva - mais que m etodológica -  epistemológica para os seus estudos. Com a adoção do estruturalismo foi buscado, ao mesmo tempo, um maior estatuto de cientificidade para as ciências  humanas, no que diz respeito à possibilidade de generalização dos fenômenos 

sociais e escapar das explicações funcionalistas que ficavam circunscritas a 

fenômenos particulares.O nascimento e a incorporação do paradigma4 estruturalista, como possi

bilidade epistêmico-metodológica para investigação no âmbito das Ciências  Sociais, têm a mesma data do nascimento da antropologia estruturalista, com  

o trabalho de Lévi-Strauss,  As Estruturas elementares do parentesco   (1982). Mesmo tendo Lévi-Strauss filiado-se a uma orientação durkheimiana, sua derivação dá-se pelo fato de que a perspectiva estrutural em Durkheim privilegiava um escopo teórico historicista em detrimento de qualquer pesquisa etnográfica. A partir de sua interação intelectual com Roman Jakobson, em Nova York, Lévi-Strauss, entra em contato com os trabalhos fonológicos que 

buscavam conhecer além dos simples fenômenos lingüísticos conscientes; ou seja, pretendiam apreendê-los em suas relações intemas, estruturais. Com a 

utilização do estruturalismo lingüístico no âmbito dos fenômenos das Ciências Sociais, Lévi-Strauss, vê a possibilidade de uma revolução nesta disciplina; diz ele: “A Fonologia não pode deixar de desempenhar, perante as Ciên

4 Seria, no sentido kuhniano, exagerado o uso do termo para expressar o estruturalismo?

4 2 Léo Peixoto Rodrigues

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cias Sociais, o mesmo papel renovador que a física nuclear, por exemplo, desempenhou no conjunto das ciências exatas” (1970, p. 49). Acrescenta, ainda:

E o ilustre mestre da fonologia, N. Trubetzkoy5, quem nos fornecerá a resposta a

esta questão [...] a fonologia passa do estudo dos fenômenos lingüísticos conscientes ao estudo de sua infra-estrutura inconsciente; ela se recusa a tratar os ter

mos como entidades independentes, tomando ao contrário, como base de suas

análises as relações entre os termos; introduz a noção de sistema (Lévi-Strauss,

1970, p. 49-50).

O caráter epistêmico-metodológico estrutural decalcado da teoria lingüística para o estudo da Antropologia teve como princípio a própria inovação  

teórica naquela disciplina realizada por Ferdinand de Saussure e apresentada, 

inicialmente, em seus cursos de lingüística geral, ministrados na Universidade de Genebra, entre 1906 e 1911. Saussure colocava em relevo a inovadora e fundamental distinção entre langue  (língua) e  parole   (fala). Para ele, a língua poderia ser entendida como uma “instituição social”, ao passo que a fala  

constituía-se em um ato de cada indivíduo, cujos arranjos (atos de fala) não poderiam fugir dessa “estruturação social”. A língua constituía-se, assim, em  um sistema6 organizado por sinais e à lingüística, como ciência, caberia encarregar-se do estudo da lógica “interna” desses signos. Na perspectiva antro

pológica estruturalista, o significado poderia desempenhar o papel de estrutura e o significante o de sentido produzido por essa (ou nessa) estrutura.

O estruturalismo, porém, não floresce nas Ciências Sociais somente como uma possibilidade epistêmico-metodológica capaz de satisfazer, pelo menos em parte, o “desejo de cientificidade” das ciências humanas. Esse movimento, quase que genuinamente francês, emerge também como uma feroz crítica ao existencialismo, tanto de cunho humanista como historicista. Em verdade, o estruturalismo é um movimento de contraposição ao  cogito   cartesia- 

no, numa versão contemporânea, como salientou José Guilherme Merquior (1991); ou seja, em sua derivação fenomenológica de Edmund Husserl, o  

existencialismo partiu de uma doutrina da consciência em que a primazia da existência -   em termos de Ciências Sociais, a primazia do  su je ito   - deveria triunfar sobre qualquer outra perspectiva filosófica e epistemológica.7 Merquior (1991, p. 15), nesta mesma linha, comenta:

5 Lévi-Strauss está se referindo ao artigo de Trubetzkoy La phonologie actualle  publicado emPsychologie du langage em Paris, 1933.

6 Segundo Fages (1969, p. 20, grifo do autor) “[...] Ferdinand de Saussure nunca falou em ‘estrutura’. Contentou-se com o termo sistema para designar as regras internas segundo as quaisuma língua se organiza”.

7 É neste sentido que argumentamos que o estruturalismo vai além de uma mera perspectivametodológica. Quando contraposto ao existencialismo - e Lévi-Strauss é um grande criticode Sartre; ver “O pensamento selvagem”, Cap. 9: História e Dialética (1989) - o estruturalismo parece reivindicar mais um estatuto epistemológico que propriamente metodológico.

 A (des)es tr utu ração das estrut ur as e a (re)estr utu ração dos sis temas 4 3

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Ora, os dois principais objetivos do estruturalismo, ou de uma crítica da ideolo

gia existencialista, seriam justam ente os temas conjuntos do hum anismo c histo-

ricismo; o estruturalismo firmou-se no meio intelectual como um anti-

hum anismo e um anti-historicismo.

E s t ru t u r a li s m o : p r ec i s an d o u m p o u c o m a is o c o n c e it o

É dessa forma que, buscando situar a gênese daquilo que optamos chamar por movimento estruturalista, destacando, de um lado, o sentido etimoló-  gico do vocábulo estrutura e, de outro, a incorporação teórica deste vocábulo  

pela Lingüística e posteriormente pela Antropologia de Lévi-Strauss e, logo  

em seguida, em outras áreas, por outros destacados estruturalistas tais como:  Barthes, Lacan, Althusser, Foucault (em seus primeiros escritos), etc., cabe  

perguntar: afinal, o que é o estruturalismo?O estruturalismo, em sua perspectiva epistemológica, rejeita ao mesmo  

tempo o atomismo, ou seja uma compreensão dos fenômenos a partir de uma 

perspectiva puramente analítica stricto sensu, e uma teoria da ação (uma filosofia existencialista). O estruturalismo privilegia uma visão de unidade, uma perspectiva de um todo integrado, interdependente, com as características 

acrescidas por Piaget (1979) de auto-regulação e transformação. Na perspectiva lingüística, alguma “coisa” seria o significante, algo perceptível, visível,  audível; o significado seria parte desta “coisa” escondida, imperceptível (pelo 

menos à primeira vista) e o signo, o todo formado pelo significante e pelo  

significado. Portanto, o estruturalismo percebe a realidade como composta  por estruturas (todo interconectado) que se apresentam “no mundo” em forma 

de signos ou, ainda, símbolos.8 Para os estruturalistas (a maioria deles) conhecer a realidade seria conhecer os signos, as estruturas; ou seja, as suas in- 

ter-relações e articulações entre significado (leis estruturais) e significante (as manifestações “perceptíveis” e possivelmente aparentes) da estrutura.9

Deleuze (1982), num artigo de 1967, buscando responder à pergunta: o que 

é o estruturalismo, argumenta que a pergunta deveria ser outra; qual seja: em 

que se pode reconhecer o estruturalismo(?).  Nesse artigo, ele parece ir mais além na explicação estruturalista, argumentando que é com razão que o estruturalismo tenha nascido na lingüística não apenas saussuriana, mas também nas  escolas de Moscou e de Praga e que o estruturalismo adentra outras disciplinas  

do conhecimento científico porque estrutura é linguagem-, nas suas palavras:

Conforme Fages (1969, p. 189-190) Símbolo é “o signo no qual as relações entre significan-tes e significados encerram uma certa analogia. Signo no qual o significado ultrapassa o significante, donde o uso freqüente do termo para caracterizar a atividade literária” .

9 Para Lacan - estruturalista porque concebia o inconsciente como uma linguagem estruturada-, o significado constituía-se em algo hermeticamente fechado, impossível de ser acessadode forma denotativa, ou seja, pela linguagem objetiva.

4 4 Léo Peixoto Rodrigues

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 Na verdade só há estrutu ra naquilo que é linguagem , nem que seja uma lingua

gem esotérica ou mesmo não-verbal. Só há estrutura no inconsciente na medida

em que o inconsciente fala e é linguagem. Só há estrutura nos corpos na medida

em que se julga que os corpos falam com uma linguagem que é a dos sintomas.

As próprias coisas só tem estrutura na medida em que m antem um discurso si lencioso, que é a lingua gem d os signos. E ntão a que stão ‘Que é estrutura lismo ?’

transforma-se cm: cm que se reconhecem aqueles que chamamos de estruturalis-tas? (Delcuzc, 1982, p. 272).

Deleuze determina alguns critérios para o reconhecimento do estruturalismo. Em seu primeiro critério,  o sim bólico,  ele argumenta que todos nós estamos acostumados com duas categorias de percepção e de entendimento: o 

 real   e o imaginário   e que todo o nosso pensamento movimenta-se, dialetica-  

mente, nessas duas dimensões. O real, de certa maneira, contrapõe-se ao imaginário, mas que, em certos movimentos criadores, tais como o romantismo, simbolismo, surrealismo, etc., transcendentemente, o real e o imaginário se  interpenetram, se mesclam, se unem. Mesmo assim, continua existindo a oposição e a complementaridade entre o real e o imaginário. Para ele, portanto, o  

primeiro critério do estruturalismo é justamente a descoberta e o reconhecimento de uma  te rceira ordem,  de uma terceira possibilidade diferente tanto 

do  real  como do imaginário', o reino do simbólico.

O simbólico, na perspectiva de Deleuze (1982), não seria nem o real nem  o imaginário. Ele argumenta que o lingüista descobre um elemento que se coloca além da palavra em realidade e em suas partes sonoras; além das imagens e dos conceitos associados às palavras; argumenta que o lingüista estruturalista identificou um componente de natureza completamente diferente: o objeto estrutural. Em suas palavras:

[...] em Lacan, e também em outros estruturalistas, o simbólico como elemento da

estrutura está no princípio de uma gênese: a estrutura se encarna nas realidades enas imagens segundo séries determináveis; mais ainda, ela se constitui encarnando-

se, mas não deriva delas, sendo mais profundas que elas, subsolo para todos os so

los do real com o para todos os céus da imaginação (Deleuze, 1982, p. 274).

Acrescenta:

Ora o estruturalismo é agressivo: quando denuncia o desconhecimento geral des

ta última categoria simbólica, para além do imaginário e do real. Ora ele é inter-

 pre ta tivo: quando renova nossa in te rpreta ção das obras a parti r desta cate goria , e

 prete nde descobrir um ponto origin al onde se faz a linguagem , ela boram -se asobras, unem -se as idéias e as ações. R om antismo, simbolism o, mas també m freu-

dismo, marxismo, tomam-se, assim, o objeto de reinterpretações profundas (De

leuze, 1982, p. 275).

Para esse autor é mais fácil apontar aquilo que o simbólico não é do que 

propriamente no que vem a se constituir. O simbólico não é redutível à ordem

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do real ou à ordem do imaginário; não apresenta forma sensível, ou pode ser  

reduzido a uma figura da imaginação; tampouco corresponde a uma essência,  uma vez que em si mesmo, como produto de uma combinação de elementos 

contingentes, não apresenta forma, significação, representação, conteúdo, realidade empírica ou um modelo funcional hipotético.

 A s d i fe ren tes ac ep ç õ es d o c o n c e i to d e s is tem a e r es p e c t iv o s e n f o q u e s e p i s te m o l ó g i c o s n o s c o n t ex t o s  d e s eu s d e s en v o l v im e n t o s

Se o conceito de sistema apresenta uma história repleta de meandros e 

afluentes durante o desenvolvimento da ciência moderna, não menos sinuoso tem sido ele na história da filosofia moderna. Inegavelmente, falar em ciência  moderna e em filosofia moderna é falar em lados distintos de uma mesma 

moeda, sobretudo quando nos aproximamos do campo epistemológico. Descartes desenvolveu, embora não completamente, uma idéia de sistema. O sistema cartesiano fundamentou-se na própria certeza do sujeito que conhece a si mesmo e que se expressa no  surn cogitans.  Uma vez que o princípio que não admite nenhum outro fundamento anterior é o “sou pensante”: a idéia de  

sistema está posta na radicalização máxima da idéia de fundamento.Em Kant, na  D ia lé tica transcendenta l   a idéia de sistema constituía-se 

em “um todo de conhecimento ordenado segundo princípios e cuja arquitetura 

era definida como a arte de construir sistemas” (Ferrater, 1967, p. 687). Em  Kant, a própria razão humana, como dimensão arquitetônica, pode ser vista 

como um sistema  a priori  que encerra em si a idéia de ordem. A idéia de ordem está contida em Kant, para quem o conceito determina  a priori  não só o 

conteúdo, mas também as posições recíprocas das partes, de modo que se po

de obter uma unidade organizada (articulatio)  e não um mero agregado ( coa-  cervatio),  é possível, inclusive, obter-se uma ordem que se desenvolve de dentro para fora (per intus susceptionem) e não somente mediantes sucessivas agregações (per oppositionem).  Assim, da mesma forma que em Descartes, a autoconsciência se apresenta como um ponto axial do sistema, uma vez que 

se trata sempre de se pôr  o sis tema de saber   ante o  saber como sistema.  Em Hegel, temos uma distinção radical da idéia de sistema; uma vez que para esse pensador somente o total (totalidade) é verdadeiro, sendo o parcial o “mo

mento falso da verdade”, a verdade passa a se constituir apenas na articulação de cada momento com o todo; e é o todo mesmo quem expressaria o sistema  

dessas articulações. E por isso que, a partir de Hegel, foi possível falar, com  pleno sentido, em “sistema de filosofia” (Ferrater, 1967; Krings, 1979).

Segundo Krings (1979) a palavra grega aúoir||ia deriva da palavra 

(TuvioxT](ii que significa a composição, o estar composto. Em sua primeira 

significação, são possíveis duas interpretações, quais sejam: (a) qualquer

4 6 Léo Peixoto Rodrigues

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combinação de quaisquer elementos, desde um simples amontoado até a conexão entre as partes; e, (b) a ação de incluir cada elemento particular em  

uma determinada ordem de um todo qualquer, cujo local dessa inclusão já esteja predeterminado. Não raramente defrontamo-nos com a ausência da defi

nição do conceito de sistema utilizado em diferentes disciplinas. Também os  múltiplos usos do termo não se referem à mesma idéia, à mesma significação,  

ao mesmo conceito. Krings (1979) acusa que:

[...] não reina qua lquer unidade na teoria da ciênc ia que reflete sobre e les [os siste

mas], em conseqüência pode-se duvidar se em geral, além dessas diferenças, é pos

sível indicar-se algo comum que justifique o nome de ‘sistema’ em todos os casos

[...] Ch am a a atenção , porém, que, apesar da mu ltiplicidade das diferenças estabele

cidas no conceito de sistema, apesar do esboço e análise de sistemas e do trabalho

com eles, o próprio conceito que está como base não é submetido à reflexão.

Observação semelhante, em momento distinto, fez Morin (1987) ao afirmar que o termo sistema é uma espécie de “palavra-envelope” uma vez que  

parece aderir totalmente à matéria que o constitui. Aponta a Sociologia como a ciência que “usa e abusa” do termo, mas que nunca o elucida adequadamente: “explica a sociedade como sistema sem saber explicar o que é um sistema” (Morin, 1987, p. 98). Argumenta, ainda, que von Bertalanffy, durante os anos  

50, elaborou uma Teoria Geral dos Sistemas, mas que embora essa teoria - da qual falaremos mais adiante - tenha apresentado aspectos “radicalmente inovadores omitiu aprofundar o seu próprio fundamento e refletir sobre o conceito de sistema. Assim o trabalho preliminar está ainda por ser feito: interrogar  

a idéia de sistema” (Morin, 1987, p. 98).A idéia de movimento, de  processo   associada à noção de sistema é uma 

acepção contemporânea do termo. Foi o biólogo Bertalanffy (1975, 1987, 1992) quem, na década de 30, enfatizou o caráter  processual   do pensamento 

sistêmico. No entanto, a noção sistêmica como movimento ordenado, ritmado, processual,  parece sempre ter estado latente na intenção do uso deste termo. Não foi por acaso que a perspectiva sistemática ou o(s) “pensamento(s) 

sistêmico(s)”, nas ciências, iniciou pelas Ciências Naturais - sistemática (classificação) vegetal e animal, sistema newtoniano, sistema orgânico, etc. O termo, em sua origem grega, traz em si a idéia de ordem, de colocar em ordem, de classificar: à natureza subjaz uma ordem, já afirmavam os positivistas. Neste caso, a noção de sistema parece comportar uma conotação idêntica 

à do termo grego physis ,  não apenas em seu sentido simplificado de  natureza , mas na plenitude e importância com que os pré-socráticos o utilizavam; ou se

 ja, como “fonte originária das coisas”; ou ainda, “aquilo a partir do qual se 

desenvolve e pelo qual se renova constantemente o seu desenvolvimento”. Sobre o termo physis,  Bomheim (1989, p. 12, grifo nosso) acrescenta: “A palavra physis indica aquilo que por si brota, se abre, emerge, o desabrochar 

que  surge de si próprio   neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Trata-

 A (des)es tr utu ração das estr utur as e a (re)estr utu ração dos sistemas 4 7

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se, pois, de um conceito que nada tem de çstático, que se caracteriza por uma 

dinamicidade profunda, genética”.Também não foi por acaso que a noção de movimento, de processo, sali

entada no termo sistema, por Bertalanffy, tenha sido, posteriormente, incorporada e mais amplamente desenvolvida pelos cibemeticistas, a partir da década  de 40. Foi com von Bertalanffy que o termo sistema passou a ser objeto de  maior reflexão e a apresentar diferentes classificações (aberto, fechado, auto- 

organizado, autopoiético, etc.). Podemos mesmo falar em uma teoria sistêmica, a partir da década de 30. Foi a antevisão de uma Epistemologia Complexa  proposta por von Bertalanffy, que, nas primeiras décadas do século XX, são 

constatadas e apresentadas as “lacunas mecanicistas da Biologia vigente”. 

Posteriormente, os cibemeticistas, incorporando essa perspectiva de complexidade, conseguiram construir os fundamentos de uma teoria da informação e da mensagem. Poderíamos afirmar que o chamado “Novo pensamento sistêmico”, desenvolvido a partir dos anos 70, com o conceito de  autopoiósis, construído por Maturana e Varela (1979), teve as suas raízes primárias no 

conceito de sistema aberto e na Teoria geral dos sistemas,  cujo idealizador principal fora von Bertalanffy (1975).

D es d o b r a m e n t o s e p i s te m o l ó g i c o s d o c o n c e it o  de s i s t ema : d a f ís i c a à b io l o g ia o r g an ís m ic a

Um dos pontos de partida para a discussão do conceito de sistema, a partir de uma perspectiva científica, pode ser a noção implícita no conceito de entropia,  formulada pela Física, em meados do século XIX. Para tanto, é importante que compreendamos o significado da Segunda Lei da Termodinâmica clássica, esboçada pelo matemático francês Sadi Camot, em 1824 e, poste

riormente, aprimorada pelo físico e matemático alemão, Rudolf Clausius, em  1850, formulador do conceito de entropia. Para não entrarmos numa definição matemática desse conceito, da forma como foi proposta por seus ideali- zadores, por não ser necessária para o nosso propósito, apresentamos o comentário realizado por Capra (1996, p. 153):

Clausius definiu a entropia gerada num processo térmico com o a energia dissipa

da dividida pela temperatura na qual o processo ocorre. De acordo com a segun

da lei , essa entropia se mantém aumentando à medida que o processo térmico

continua; a energia dissipada nu nca pode ser recuperada; e esse sentido em d ire

ção a uma en tropia sempre crescente define a flecha do tempo.

Isso significa dizer que todo  sistema físico isola do ou “fechado ” (má

quinas térmicas, como denominou Carnot)  tenderá espontaneamente a dissipar calor de forma sempre crescente. Esta dissipação de energia (calor) do  sistema  passou a ser associa da com desordem do sis tema.  A quantidade  de

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desordem; ou seja, da dissipação de energia foi denominada entropia.  Portanto, a entropia (desordem)  de um sistema físico, teoricamente fechado,  sempre seria progressiva e, com esta progressão, haveria uma relação de proporcionalidade 

com o grau de  desordem do sistema.  Esta desordem, inexorável a qualquer sis

tema (por isto, lei), definiria também uma chamada flecha (imaginária) de tempo apontada sempre para um mesmo sentido. Isto significaria dizer que o sistema aumentaria a sua desordem em função de um tempo que “passa”.

A noção temporal descrita em termos de “flecha do tempo”; indicaria a irreversibilidade de todo o processo entrópico sistêmico.  Em termos macroscópicos o conceito de entropia poderia ser estendido ao universo que, concebido como um sistema, tenderia a um irreversível processo de  desordem con

 tínua  ou, como mencionou Capra (1997, p. 54), “toda a máquina do mundo  

está deixando de funcionar, e finalmente acabará parando”. Entretanto, a idéia de desordem de um sistema, central para o entendimento do significado de 

entropia,  colocava-se na contramão da teoria evolucionista clássic a e com   seus ulteriores desdobramentos.  A questão se colocava da seguinte forma: como poderia um mundo tender a uma contínua desorganização de forma irreversível, enquanto os seres vivos (sistemas vivos) tendiam a uma evolução, ou seja, a um aumento de  complexidade lógica e, conseqüentemente, de ordem?

Von Bertalanffy (1975) comenta que mesmo antes da década de 20 já  

reivindicava por uma Biologia organísmica10 em detrimento da concepção  mecanicista vigente. Percebia os organismos como totalidades ou sistemas e  advogava que o principal objetivo das Ciências Biológicas deveria ser a descoberta dos princípios da organização dos seres vivos em seus diversos níveis, não apenas na dimensão físico-química dos fenômenos vitais. A percepção de organismo como sistema," entretanto, colidia com a visão de sistema  

proposta pela termodinâmica; a fórmula encontrada por Bertalanffy, para a 

resolução deste paradoxo teórico, foi a de propor que os organismos vivos  

fossem considerados  sis temas abertos12  e, portanto, que não poderiam ser 

descritos nos termos da termodinâmica clássica. Nas suas palavras:

Compreendemos imediatamente porém que pode haver sistemas em equilíbrio no

organismo, mas que o organismo enquanto tal não pode ser considerado um sis

tema em equilíbrio. O organismo não é um sistema fecha do, m as aberto   [grifos

10 No sentido empregado por Bertalanffy (1975), constitui-se num neologismo, inclusive man

tido no português. O termo constante em dicionários de Biologia e de Filosofia é “organi-cismo”, cujo sentido em que está sendo utilizado tanto por Bertalanffy, como por nós, é o dadoutrina biológica que rejeita a explicação dos fenômenos biológicos meramente mecanicista. Entretanto não adere ao vitalismo; ou seja, a admissão de um “principio vital”; uma forçaque não pode ser reduzida aos processos fisico-químicos dos organismos.

11 A formalização matemática da concepção sistêmica, em Bertalanffy, pode ser vista em: Bertalanffy (1975, p. 82-122).

12 A formalização físico-química dos processos sistêmicos abertos, em Bertalanffy, pode servista em: Bertalanffy (1975, p. 166-189).

 A (des)es tr utu ração das estr ut ur as e a (re)estr utu ração do s sis temas 4 9

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nossos]. Dizemos que um sistema é “fechado” se nenhum material entra nele ou

sai dele. E chamado de ‘aberto’ se há importação e exportação de matéria (Berta

lanffy. 1975, p. 167).

A noção de  aber tura do sistem a  resolveria, teoricamente, a contradição entre a visão sistêmica da Termodinâmica, aceita como lei e provada matematicamente, e a visão dos organismos vivos como sistemas. Porém, na visão de Bertalanffy, tais organismos manter-se-iam, sistematicamente, trocando matéria e 

energia com o meio ambiente, mantendo-se como um sistema “quase em equilíbrio”, o que não causaria problemas com a idéia de evolução. A intuição de Bertalanffy, quanto à percepção sistêmica dos organismos vivos foi muito valiosa. Porém, a noção de organismos vivos como sistemas  aberto s, trouxe (e tem 

trazido) muita confusão para importantes avanços epistemológicos, no âmbito  do pensamento sistêmico que estavam sendo gerados no interior de outras ciências. Ludwig von Bertalanffy, publicou a sua obra mais conhecida, a Teoria ge

 ral dos sistemas,  em 1968. Ela era composta, segundo o seu próprio prefácio, por diferentes capítulos escritos e publicados em momentos distintos que compreendem as décadas de 40 a 60. Em 1943, data “oficial” do nascimento da Cibernética, como veremos, o problema do “fechamento” ou da “abertura” do sistema ficou  reso lvido com o importante conceito de retroalimentação.  Em se

guida retomaremos a esse conceito, para explicar, de forma pormenorizada, porque a idéia de um sistema aberto é imprópria.

A teoria Geral dos Sistemas, proposta por Bertalanffy, constitui-se, no nosso entender, de uma visão precoce da necessidade de uma epistemologia da 

complexidade atualmente tão propalada por Morin (1984, 1987, 1999, 2000). Entretanto, apresenta um fio condutor que parte da contestação do mecanicismo  

e do vitalismo biológico em defesa da abordagem organísmica, em que advoga  em favor de uma perspectiva sistêmica para a análise dos organismos vivos. O 

próprio Bertalanffy (1987, p. 33) reconhece que os seus textos escritos, na década de 20, constituem-se no “gérmen do que mais tarde seria conhecido como teoria geral dos sistemas”. Se a concepção de uma teoria geral dos sistemas tem  

início nos primeiros estudos organísmicos, a teoria dos sistemas abertos de Bertalanffy não prosperou. O caminho na análise sistêmica parece ter tomado um  outro rumo com a Cibernética, que incorporou elementos da Fisiologia. Bertalanffy, como ele mesmo menciona, passou a se preocupar, de fato, com uma teoria geral dos sistemas, que envolvesse todos os sistemas, pertencentes a diferentes disciplinas (teoria dos conjuntos, teoria das redes, cibernética, teoria dos autômatos, teoria dos jogos, etc.). Nas suas palavras:

Um passo nessa direção foi a cham ada teoria dos sistemas abertos e dos estados es

táveis, que é essencialmente uma extensão da físico-química, da cinética e da ter

modinâmica convencionais. Aconteceu, porém que não pude deter-me no caminho

que havia tomado e assim fui conduzido a uma generalização ainda mais ampla, a

que dei o nom e de ‘Teo ria Geral dos S istem as.’ Esta idéia remonta há muito tempo

5 0 Léo Peixoto Rodrigues

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atrás. Apresentci-a pela primeira vez em 1937 no Seminário de Filosofia de Charles

Morris na Universidade de Chicago (Bertalanffy, 1975, p. 127).

Bertalanffy (1975) afirma que a teoria dos sistemas, num sentido amplo, deve ter um caráter de ciência e que os motivos que postulam a necessidade de  

uma teoria geral dos sistemas podem ser resumidos nos seguintes itens: (a) construir uma direção contrária ao reducionismo, e generalizar os conceitos científicos; (b) superar a noção clássica de sistema e introduzir, dada a necessidade do aumento de complexidade do conhecimento, novas categorias analíticas não  contempladas, tais como organização, autoconservação, direção e teleologia; (c) superar a perspectiva linear da ciência clássica e introduzir uma perspectiva  complexa; nesse caso, considerando sempre um número crescente de variáveis  implicadas no fenômeno; (d) possibilitar a construção de novos modelos conceituais nas ciências biológicas, sociológicas e psicológicas, e preterir, assim, os  

modelos hegemônicos (principalmente o mecanicismo) propostos pela Física;(e) contemplar modelos isomórficos em diferentes ciências, e ampliar o campo  interdisciplinar da pesquisa e do conhecimento científico.

A perspectiva sistêmica, na teoria dos sistemas de Bertalanffy, sem que tivesse incorporado a visão desenvolvida pela Cibernética, ficou, então, assim  

colocada: se por um lado a termodinâmica concebia os sistemas fisico- químicos, como sistemas que não podiam permanecer fechados, pois tendiam  

à dissipação contínua, por outro lado, Bertalanffy (1975) trouxe o conceito de  

 sistem as aberto s, para enfocar os organismos vivos (sistemas vivos), uma vez  que estes “trocavam” matéria/energia com o meio e tendiam a manter, por algum tempo, um determinado estado de ordem; como ele mesmo denominou, constituíam-se em sistemas “quase-estáveis”.

 A c ib er n ét i c a e a n ec es s ár ia n o ç ão d e s is tem a  p a ra o s e u d e s e n v o l v i m e n t o

A partir do final da Segunda Guerra Mundial, Norbert Wiener desenvolvia suas pesquisas ligadas à Teoria da Mensagem. Dentro do campo teórico  

do estudo da mensagem encontravam-se temas tais como: a transmissão da  mensagem, o estudo da linguagem e imbricações teóricas entre mensagem e transmissão da mensagem como forma de controle para o desenvolvim ento de 

máquinas e diferentes tipos de autômatos. Tais reflexões estavam intimamente 

ligadas aos estudos do sistema nervoso e da Psicologia, e consideravam os recentes desenvolvimentos no campo da probabilística, com os trabalhos de Willard Gibbs (Wiener, 1984). Era necessário, pois, a criação de um nome  para essa nova ciência, que, não obstante ao seu caráter interdisciplinar, tinha  

como preocupação comum o desafio de descobrir os mecanismos neurais sub jacentes aos fenômenos mentais e expressá-los em linguagem matemática explícita, para a compreensão de como se estabelecia o controle comunicacio-

 A (des)es tr utu ração das estrutur as e a (re)estr utu ração dos sis temas 51

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nal. A palavra cibernética tem sua origem no grego:  kubernetes,   que significa timoneiro; ou seja, aquele que tem o timão; aquele que pilota, que controla. Norbert Wiener, filósofo e matemático, formulador do termo, definiu a Ci

bernética como a ciência do “controle e da comunicação no animal e na máquina”; nas suas palavras:

Até recentemente, não havia palavra específica para designar este complexo de

idéias, e, para abarcar todo o campo com um único termo, vi-me forçado a criar

uma. Daí ‘Ciberné tica, que derivei da palavra grega K ube rnetes' ou ‘pilo to’ a

mesma palavra que eventualmente derivamos nossa palavra ‘governador’. Des

cobri casualmente, m ais tarde, que a palavra já havia sido u sada por A mpère com

referência à ciência política, e que fora inserida cm outro contexto, por um cien

tista polonês; ambos os usos datavam dos primórdios do século XIX (Wciner,1984, p. 1 5) .13

Em outras palavras, e, para utilizar o sentido etimológico do termo criado por Weiner, poderíamos dizer que quando uma embarcação é naturalmente tirada do seu curso, pelo movimento das águas, o timoneiro o  corrige, realimen- 

 tando a embarcação com a informação  da rota correta. A neurofisiologia, com o auxílio da matemática, buscava compreender os movimentos humanos nestes 

termos; isto é, num movimento com o braço, o cérebro e o sistema nervoso trocam informação (realimentadas) quanto à trajetória que segue o braço. O sistema nervoso tem de informar o cérebro, para esse corrigir, (re)informando o sistema nervoso, sobre as distorções da rota, considerando aquela mais racional, apresentada pelo movimento do braço para alcançar um objeto qualquer. A Cibernética tem sob seus pés o solo “fértil” da Guerra, problema semelhante foi  enfrentado para encontrar solução na defesa antiaérea, necessitando o desenvolvimento de uma teoria probabilística da predição. Por isso, o objetivo da Ciber

nética era o de conhecer, através de uma generalização de modelo matemático,  como os sistemas (animais e máquinas) conseguiam estabelecer certo nível de 

informação e retroalimentação dessa informação (auto-informação), de forma a obterem a manutenção de sua homeostase (equilíbrio) - meta do sistema - , co- locando-se fora do processo entrópico “natural” de dissipação, conforme defendia a Termodinâmica. Ao se referir às pretensões da Cibernética, Dupuy (1996, p. 44) afirma que o seu “projeto teórico, ideológico e técnico moldou a nossa 

época com o nenhum outro”; acrescenta:

Ela, sem ordem e sem preocup ação de exaustividade, introduz a con ceituação e o

formalismo lógico-matemático nas ciências do cérebro e do sistema nervoso;

concebeu a organização das máquinas de processamento de informação e lançou os

13 Silva (1974), resgatando o uso clássico do termo, afirma que: “[...] Norbert Wiener exumoue lançou em circulação [o termo cibernética] com roupagem nova. A palavra cibernética[foi] usada por Platão, cerca de 26 séculos antes, e, mais tarde, em 1843, por André Ampère,o famoso físico francês [...] Platão empregou-a no sentido de ‘a ciência utilizada pelo timoneiro para pilotar o navio’.”

5 2 Léo Peixoto Rodrigues

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fundamentos da inteligência artificial; produziu a ‘metaciência’ dos sistemas a qual

deixou sua marca no conjunto das ciências humanas e sociais, da terapia familiar, à

antropologia cultural; inspirou fortemente inovações conceituais na economia, na

 pesquisa operacio nal, na teoria da decisão da escolha ra cional, na te oria dos jogos,

na Sociologia, nas ciências do político c cm m uitas outras disciplinas.

Embora, von Bertalanffy (1975) aponte que a idéia de uma teoria geral dos 

sistemas tenha sido, pela primeira vez, introduzida por ele antes mesmo do surgimento da Cibernética e da Engenharia dos sistemas, incluindo campos afins, foi a Cibernética que de fato deu uma  re sposta definitiva  para o problema da 

“abertura” e do “fechamento” do sistema, levantado anteriormente. A Cibernética teve sua data de nascimento em 1943, conforme nos relata Latil (1959, p. 8), “sua certidão de nascimento foi um artigo publicado em 1943, sem que a pala

vra Cibernética nele figurasse, em Phylosophy o f Science,  por Rosenbluetli, Wiener e Bigelow, sob o título:  Behaviour, purpose and teleology.  Jean-Pierre Du- puy (1996), um dos principais pesquisadores da história da Cibernética, ao se  referir sobre o nascimento dessa disciplina, aponta o  surgimento de dois artigos 

no ano de 1943, como os precursores da nova ciência; diz ele: “Estabelecer uma  origem é sempre arbitrário, mas neste caso, menos do que em outros. Neste ano 

[de 1943] fasto para a ciência da mente, eram publicados, independentemente,  dois artigos cujos autores, três no caso do primeiro, dois no outro caso, constitu

irão o núcleo duro do movimento cibernético.” O segundo artigo, a que se refere Dupuy, intitulava-se  A logical calculus o f the ideas immanent in nervous acti- 

vity, publicado em 1943, por Warren McCulloch e Walter Pitts, neurocientista e 

matemático respectivamente.A primeira Conferência de Macy14 aconteceu em março de 1946 e o seu 

título era  Feedback mechanisms and circula r causai systems in biolo gical  

 and social syste m s; a segunda, aconteceu em outubro do mesmo ano, com o título Teleological mechanisms and circu lar causai systems.   Foi a partir des

tas reuniões que o termo feedback, também proposto por Norbert Wiener, consolidou-se na ciência Cibernética. Esta concepção de retroalimentação, que eqüivale ao próprio termo cibernética, ambos propostos por Norbert Wiener, trouxe à luz a noção de “circularidade alimentativa”; ou seja, “um mecanismo que faz retroagir um efeito sobre uma de suas causas e permite, assim, a esse efeito, atingir um fim determinado” (Latil, 1959, p. 6); ou, mais  detalhadamente, como define Capra: “um laço de realimentação é um arranjo 

circular de elementos ligados por vínculos causais, no qual uma causa inicial  se propaga ao redor das articulações do laço, de modo que cada elemento te

14 Constituíram-se em dez reuniões organizadas pela fundação filantrópica Josiah Macy Jr., de1946 a 1953, em Nova York (nove delas) e a última em New Jersey, cuja pretensão de seusidealizadores - matemáticos, lógicos, engenheiros, neurofisiólogos psicólogos, antropólogos,economistas - era a de fundar a ciência geral do funcionamento da mente. Este grupo fechado foi chamado de Cibernética.

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nha um efeito sobre o seguinte, até que o último ‘realimenta’ o efeito sobre o 

primeiro elemento do ciclo” (Capra, 1996, p. 59).Os revolucionários conceitos de  f e e d b a c k   e a u t o - o r g a n i z a ç ã o ,   confun- 

dem-se com o próprio nascimento da Cibernética, pois foi no artigo publicado  por Rosenblueth, Wiener e Bigelow,  B e h a v io u r , p u r p o s e a n d te le o lo g y ,  de 1943, mencionado anteriormente, que está presente uma das primeiras abordagens acerca de sistemas-feedback (realimentação ou retroalimentação).15Esse artigo não trazia apenas a noção de causalidade circular, mas também apresentava a realimentação como um mecanismo essencial para os processos  

de homeostase16 e auto-regulação. Dupuy (1996), revela que Wiener e Bigelow apresentaram a Rosenblueth a possibilidade da construção de uma analo

gia, entre os processos de retroalimentação existentes nos movimentos voluntários de um sujeito, e o conceito de defesa antiaérea e que “as reflexões dos 

três amigos levaram ao artigo de 1943” (Dupuy, 1996, p. 4 6 ).17A noção de f e e d b a c k c o n tr o l   contém em si a idéia de estabilidade, equi

líbrio; de circularidade operacional e de manutenção sistêmica. Essa idéia de estabilidade de um sistema conduz à fundamental noção de  p a d r ã o ;   padrão 

de comportamento ou de um tipo de organização de um determinado sistema.  O fato de um padrão qualquer ser mantido numa unidade sistêmica nos leva, 

conseqüentemente, à idéia de (auto)manutenção. Não é por acaso que tanto a noção de feedback e de auto-organização vieram à tona no mesmo momento, no mesmo ano e oriundas do mesmo caldo intelectual.

Feedback, retroalimentação ou servomecanismo, termos utilizados na literatura Cibernética, podem ser descritos, genericamente, como um s i s t e m a  

qualquer (uma máquina mecânica, eletrônica, ou um organismo vivo) em que  

a alimentação do sistema, um input, constitua-se em parte da resposta do sis

15 Esta noção, segundo Idatte (1972, p. 11-12), “fora posta em evidência na Biologia, desde1867, por dois fisiologistas franceses de origem russa, os irmãos Scyon, numa comunicaçãoà Academia de Ciências apresentada por Claude Bemard. No ano seguinte, agora no planoda mecânica, o célebre físico Maxwell publicava uma nota sobre os sistemas de retomo [...]Já antes disso, em 1810, Watt munira a máquina a vapor com o seu famoso regulador”.

16 Embora o termo homeostase tivesse sido desenvolvido por Cannon (1939) uma década antes,em seu livro The wisdom o f the body,  a noção de retroalimentação não estava presente nadescrição de seus diversos processos bioquímicos. Homeostase, nos termos definidos porCannon, traz a idéia de uma adaptação tendo em vista a sua finalidade (uma dimensão teleo-

lógica). Posteriormente, é redefinido de diferentes formas, mas sempre apresentando as noções de adaptação, equilíbrio, reequilíbrio. Weiner (1984, p. 94) elabora e amplia a definição, afirmando que “o processo pelo qual nós, seres vivos, resistimos ao fluxo geral de corrupção e desintegração [...] em que a vida é uma ilha, aqui e agora, num mundo agonizante”.Para um exame mais profundo sobre o conceito ver Ashby (1960, p. 58-70), que amplia ediscute o conceito proposto por Cannon.

17 Dupuy (1996, p. 46-47) adverte, entretanto, que o exame detalhado do artigo mencionado,surpreende “pelo acanhamento da terminologia, que resulta do fato de que as categorias deinformação, de comunicação e de organização ainda não haviam sido esclarecidas. O feed

 back é descrito como um retomo de energia do output sobre o input

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tema. Em outras palavras, um output ou uma resposta, será convertido pelo próprio sistema numa nova alimentação, ou um novo input18. Posteriormente o conceito de feedback foi melhor precisado por Norbert Wiener, em seu livro T he h w n a n u s e o f h u m a n b e in g s   de 1948.19 Nesse trabalho, após apresen

tar alguns exemplos de mecanismos (máquinas como elevador e apontador de  artilharia), Wiener (1984, p. 24, grifo do autor)20 define a retroalimentação  como sendo:

[...] o controle dc máquinas com base no seu desempenho efetivo   em vez de no

seu desempenho esperado   c conhecido como realimentação (feedback)  e envol

ve membros sensórios que são acionados por membros motores e desempenham

a função de detectores  ou monitores;   isto é, de elementos que indicam um de

sempenho. A função desses mecanismos é o de controlar a tendência mecânica

 para a desorganiz ação; em outr as palavra s, de produzir um a in versão te m poráriae local da direção normal da entropia.

O outro artigo considerado também precursor da Cibernética,  A lo g ic a l  

c a lc u lu s o f t h e i d e a s i m m a n e n t in n e r v o u s a c ti v it y ,  publicado em 1943, por Warren McCulloch e Walter Pitts, pode ser considerado o responsável direto pelo surgimento, posterior, da noção de a u t o - o r g a n i z a ç ã o .  A concepção de 

auto-organização delineada nesse artigo busca construir modelos matemáticos que conseguissem traduzir a lógica matemática existente nas redes neurais. O 

mencionado artigo demonstra que a lógica de qualquer processo fisiológico,  por mais complexo que possa ser, incluindo a visão e o comportamento como  processo fisiológico, pode ser demonstrada através de uma rede neural formal. Tal fato colidia com uma conhecida lei da fisiologia que afirmava que a complexidade do sistema nervoso humano não poderia ser descrita em termos  

Mecânicos. Singh (1972, p. 168) afirma que “a teoria de McCulloch-Pitts  

termina com isto, e prova que tudo que pode ser escrito ou dito com palavras  

de modo exaustivo e sem ambigüidade é ipso facto realizável numa rede neural infinita”. Ainda sobre o artigo de Warren McCulloch e Walter Pitts, Capra 

(1997, p. 78) explica que:

Os autores m ostravam que a lógica de qua lquer processo fisiológico, de qualqu er

comportamento, pode ser transformada em regras para a construção de uma rede

[.. .] os autores introduziram n eurônios idealizados, representando -os por elem en

tos comutadores binários [l igado e desligado] e modelaram o sistema nervoso

como redes com plexas desses elem entos comutadores binários.

Sobre esse mesmo artigo e a subjacente noção de auto-organização à que remete, Dupuy (1996, p. 59), ressalta a existência de uma equivalência entre uma máquina lógica “que pode ser considerada em sua estrutura e em seu

18 Para um modelo teórico-matemático simplificado ver Epstein (1986, p. 34-38);19 Utilizamos a ediçào brasileira (1984), que foi reeditada em 1954.20 Recomendamos, também a leitura do Capítulo 111, “Os milagres do 'feedback"',  Latil, 1959.

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comportamento uma idealização da anatomia e da fisiologia do cérebro” e a de uma máquina de Turing.21 É daí que decorre a nascente cognitivista que 

busca dar uma efetiva resposta para a questão do cérebro (estrutura) e mente 

função. Dupuy (1996, p. 59) argumenta que “é assim que o cibernético julga  resolver o velho problema da alma e do corpo, ou em seus próprios termos, do e m b o d im e n t o f m i nd .  O cérebro e a mente são um e outro uma máquina, e a mesma máquina, portanto um só”. Evidentemente que essa concepção de auto-organização teve posteriores desdobramentos - mencionaremos alguns 

deles - interdisciplinares, em diferentes décadas da segunda metade do séculoXX. Estes dois conceitos, feedback e auto-organização, todavia, irão revolucionar os estudos teóricos que darão origem não apenas à Cibernética, mas à 

Teoria da Mensagem (negentropia22) e à Teoria da Informação.Tais noções ou conceitos n ã o p o d e r ã o s e r c o m p r e e n d id o s d e f o r m a d is

t a n c i a d a d o c o n c e i t o d e s i s t e m a ;   em outras palavras, as concepções de feedback e de auto-organização trazem sempre de forma implícita, a idéia de sistema. Ao considerarmos assim, e levando em consideração os principais aspectos epistemológicos da discussão sobre as noções de sistemas realizadas  até então, temos que: essa nova forma de conceber um sistema (feedback ou  

auto-organizado) admite a t r o c a d e m a t é r i a e d e e n e r g i a   apontada por Berta

lanffy, porém, c o n c e b e o s i st em a d e f o r m a f e c h a d a e m te r m o s d e o p e r a c i o n a -  l i dade .   O avanço teórico, em termos sistêmicos, desenvolvido pela Cibernética, com os conceitos de feedback e auto-organização é que o  fe c h a m e n to do  

s i s t e m a , não se trata do e s t a n c a m e n t o d e q u a l q u e r t i p o d e t r o c a c o m o m e i o  

(incorporação de matéria/energia), mas um  f e c h a m e n to o p e r a c io n a l   (infor- macional) em t e rm o s d a d in â m i c a d e s e u s c o m p o n e n t e s .

A noção de auto-organização fez com que a própria compreensão do 

conceito de sistema avançasse. Se antes, sistemas podiam representar qual

quer combinação entre elementos, desde um simples amontoamento até a conexão entre as partes, indicando uma ordem, a idéia de auto-organização pas

21 Em termos simplificados, constitui-se numa máquina que a partir dc informações lógicassimples, pode devolver informações lógicas complexas. Como diz Singh (1972, p. 203) “aidéia básica nas máquinas de Turing c a negação daquilo que parece, à primeira vista, plausível. [...] se um autômato possui a habilidade de construir outro, deve haver uma diminuição da complexidade [...], porém a complexidade no caso de Turing, pode ser aumentada e produzir outro autômato mais complexo que o progenitor". Para um estudo mais detalhado

ver Singh (1972, cap. 13) e Dupuy (1996, p. 28-38).22 Negentropia é um termo cunhado pela Teoria da Mensagem e se opõe ao termo entropia. Se

a entropia é uma medida de desordem do sistema, a negentropia é uma medida de ordem dosistema. Nas palavras de Weiner (1984, p. 21): “as mensagens são, por si mesmas, uma forma de configuração e organização. E possível, realmente, encarar conjuntos de mensagenscomo se fossem dotados de entropia, à semelhança de conjuntos de estados do mundo exterior. Assim como a entropia é uma medida de desorganização, a informação conduzida porgrupos de mensagens é uma medida de organização. Na verdade, é possível interpretar a informação conduzida por uma mensagem como sendo, essencialmente, o negativo de sua entropia e o logaritmo negativo de sua probabilidade” .

5 6 Léo Peixoto Rodrigues

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sou a implicar, obrigatoriamente na idéia de uma u n i d a d e s i s t ê m i c a .   A auto- organização pressupõe uma unidade definida em termos de suas fronteiras com o ambiente em que está inserida e também faz com que esta unidade não possa ser vista em termos não-sistêmicos. Em outras palavras, ao se pensar  

em auto-organização somos levados a pensar em termos de u n i d a d e d i s c r e t a ;quem se auto-organiza não pode ser um amontoado - ou mesmo uma estrutura - que agrega elementos e x t e r n o s ;   o prefixo au to ,  mesmo indicando  p o r s i  

só ,  remete a uma percepção de interioridade, i n fe r i o r id a d e d e a lg u m p r o c e s s o  

e x is te n te e p r o v e n i e n t e d e c o m p o n e n t e s se m p r e p r e - e x is t e n te s .   Ora, se temos a idéia de unidade, agregada a ela a idéia de movimento e de organização 

como processo interno, temos a idéia de sistema. Nas palavras de Flickinger e  

Neuser (1994, p. 21, grifo do autor):

A teoria de Auto-Organização exige, portanto, uma concepção alterada de seus

métodos devido à concepção alterada de seu objeto de conhecimento: o objeto,

dinâmico, constitui-se apenas por seu ser organizado e corre o risco de ser per

turbado; o que, de fato, acontece. Sendo assim, o objeto [sistema] tem que ser

considerado na sua totalidade, não sendo suficiente a mera análise dos compo

nentes; muito pelo contrário, a organização do objeto toma-se elemento perma

nente de investigação científica. As exigências referentes ao método ultrapassam,

 pois , aquela s do Ilum in ism o que possib il itam , por sua vez, o procedim ento analí

tico. Transformações no objeto e na natureza deveriam ser contempladas comosendo transições dinâm icas de sistemas dinâmicos.

Da au to -o r g an i z aç ão e au to -r e fer ênc ia à noç ão  d e s is t e m a au t o p o i ét i c o

Da noção de auto-organização à idéia de auto-referência chegou-se ao 

conceito de “autopoiésis”.23 Ele foi desenvolvido no início da década de 70, pelos biólogos chilenos Maturana e Varela (1995a, 1997). Maturana doutorou-se na Universidade de Harvard, nos anos de 1958 e 1959 e, posteriormente, tendo trabalhado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), esse biólogo teve contato direto com os estudos da Cibernética e com os principais 

pesquisadores da época. Conta Maturana e Varela (1995a, 1997), seu ex-  aluno e posteriormente colega, que o antecedente direto da gestação do conceito de autopoiésis foi um texto escrito por Maturana, em meados de 1969,  

originalmente intitulado  N e u r o p h y s io lo g y o f c o g n it io n .   Neste trabalho e, pos-

23 A palavra “autopoiésis” tem sua origem do grego: auto (por si só) + po iesis  (produção). Estetermo foi proposto por Humberto Maturana e Francisco Varela. A história de sua concepção,como conceito e como neologismo, encontra-se contada pelos próprios autores em Maturanae Varela (1979, 1995, 1997). Os autores conservaram, em espanhol, os dois termos gregos:autopoiésis;  em inglês, da mesma forma: autopoiésis ; em português, encontramos grafadasde duas formas: autopoiese e autopoiésis, optamos pela segunda.

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tenormente, quando participou de uma reunião internacional, da Wenner Green Foundation, a convite de Heins von Foerster - ocasião em que, segundo Varela, pela primeira vez, Maturana expressa claramente suas idéias - Ma- turana referia-se à concepção autopoiética, palavra ainda não existente, utili

zando-se do termo  auto-referido, auto-referente   para designar não apenas os seres vivos, mas, também, para se referir ao sistema nervoso, como um  siste

 ma fechado auto-referenciado.

Ao relatar a história de como chegaram ao conceito de autopoiésis, Maturana, em um prefácio individual, faz referência a Von Bertalanffy e a sua  noção de organismos vivos como sistemas abertos. Diz ele: “eu, no entanto, pensava que o principal ou central para compreender os seres vivos era levar  em conta sua condição de entes separados,  autônomos, que existiam como  

unidades independentes” (Maturana, 1997, p. 11). Por outro lado, quando se reportava ao período em que esteve no MIT, acrescentou: “[...] o discurso biológico dessa época era um discurso funcional, propositivo, e se falava dos  

fenômenos biológicos como se eles ficassem de fato revelados ao se falar da função que se lhes atribuía” (Maturana e Varela, 1995a, p. 13). Esses argumentos são especialmente importantes porque o conceito de autopoiésis, desenvolvido mais tarde, constituir-se-á paradigmático não apenas na Biologia, mas para todo um  novo enfoque sistêmico, com uma renovada dimensão epis- 

temológica em sua abordagem; qual seja: Maturana e Varela passaram a afirmar que os sistemas vivos são sistemas  operacio nalm ente fechados   e entidades  auto-referidas.  Vejamos porque os sistemas voltaram a ser vistos como 

sistemas fechados embora, dessa vez, de forma muito diferente da concepção  

de fechamento, implícita nos sistemas apresentados pela Termodinâmica.A tentativa de superação da perspectiva positivista-funcionalista na Bio

logia levou Maturana e Varela a buscarem a dinâmica  operacio nal,   não- funcional, que leva o ser vivo a ser um ente auto-referido. Na tentativa de 

buscar compreender como o ADN24 participava da síntese de proteínas, uma  vez que, curiosamente, as proteínas também participavam da síntese de ADN  (naquela época ainda não eram conhecidos os retrovírus), constataram que: “[os organismos vivos] eram unidades discretas que existiam como tais na contínua realização e na conservação dessa dinâmica produtiva, que os definia e os constituía em sua autonomia” (Maturana e Varela, 1979, p. 14). A  

partir desta constatação acrescentam, na passagem a seguir - um tanto longa, mas indispensável - um dos trechos de sua obra que melhor define a auto- 

referência, conceito este, antecessor direto do conceito de autopoiésis:

Neste momento também me dei conta de que não é o fluxo de energia como fluxo de matéria ou energia, tampouco qualquer componente particular como com

24 ADN: Ácido Desoxirribonucléico, macromoléculas orgânicas que fazem parte fundamentalda estrutura de um gene, mas que também se encontram presentes em determinados organói-des celulares que se auto-reproduzem, como as mitocôndrias.

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ponente com propriedades especiais que de fato fazem e definem os seres vivos  como tal. Um ser vivo ocorre e consiste na dinâmica de realização de uma rede 

de transformaçõ es e de produ çõe s moleculares, tal que todas as m oléculas p ro

duzidas e transformadas no operar desta rede form am parte da rede , de modo 

que, com as suas interações: a) geram a rede de produções e de transformações que as produziu ou as transformou; b) dão origem às fron teiras   (bordersj e à ex

tensão da rede com o parte de seu operar como rede, de modo que esta f ic a di

namicamente fech ad a sobre si mesma, form and o um ente m olecular discreto que  

surge separado do m eio molecular que o contém por seu próp rio o perar molecu

lar;  c) configuram um fluxo de moléculas que, ao incorporar-se na dinâmica da rede, são partes ou componentes dela, c ao deixar de participar da dinâmica da rede deixam de ser componentes e passam a ser parte do meio (Maturana e Varela, 1995a, p. 14-15, grifo nosso).

Esta passagem representa um importante avanço na concepção de sistema. Repercutiu diretamente em diferentes áreas e disciplinas do conhecimento científico; nas ciências humanas, por exemplo, sustentou e consolidou tendências teóricas acerca dos estudos cognitivos tanto na Psicologia como na Pedagogia; na Sociologia tomou-se um conceito-chave para o entendimento 

da teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann.A partir da percepção de organismo vivo como sistema aberto, proposta  

por Bertalanffy - fato, este, que se constituiu num avanço teórico com relação aos sistemas fechados, propostos pela Termodinâmica a auto-referência de um organismo vivo dava-se a partir de sua própria circularidade informacio-  

nal (ou fechamento operacional) independentemente do fato desse organismo  

(ou sistema) trocar matéria/energia com o meio. A troca de matéria/energia a 

qual se referia Bertalanffy na sua noção de sistema aberto, na perspectiva sistêmica de Maturana e Varela, alimentava o sistema em termos meramente  

energéticos. Isto não significa uma  alimentação in formacional   e qualquer 

mudança na circularidade (portanto fechamento) operativa no agir, na rotina dos componentes internos do sistema. Caso não houvesse esta circularidade referenciada em si mesma, o fluxo de matéria e energia advinda do meio ambiente, portanto externo ao sistema, transformaria o sistema em ambiente; corromperia suas estruturas operacionais que o caracterizam como unidade discreta. Contrariamente, a matéria/energia oriunda do ambiente externo ao 

sistema vai adequar-se à operacionalidade informacional do mesmo, tendo 

tão-somente a função de supri-lo energeticamente.

Maturana e Varela (1979), explicam que sistemas autopoiéticos são sistemas fechados que se auto-referenciam. Tal fechamento, como já mencionamos, não significa um total isolamento com o meio ambiente, mas sim, um fechamento operacional recursivo. A auto-referência, neste caso, no inovador conceito de autopoiésis, não significa simplesmente a noção de feedback - esta foi a grande contribuição do conceito trazido pela Teoria de Santiago. Na  idéia de feedback existe uma informação circular que “nasce” e “morre” num

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mesmo ponto sempre do mesmo modo, ou seja, ao considerarmos o conhecido exemplo do termostato, como um feedback sistem,  temos que: um dado ambiente aquece, a cápsula do termostato dilata com o calor, controlando o 

fluxo de gás, o gás diminui, diminuindo a chama, a cápsula esfria e se contrai, 

ativando, assim, o aumento de fluxo de gás. Neste caso, o termostato é um f eedback sistem, mas não um sistema autopoiético. A autopoiésis requer produção, transformação, adaptação  do sis tema em relação às transformações do 

 seu meio (entorno).  Mesmo sendo a sua operacionalidade fechada como uma 

rede (ou anéis) de interação sobre si própria, ela é plástica no sentido de que  as suas interações se auto-produzem recursivamente caso haja modificações  no ambiente em que o sistema está acoplado,25 como forma de manutenção do  

próprio sistema (adaptação). A autopoiésis requer sempre uma interpretação  

 semântica do sistema em relação às alterações do meio ambiente,  no sentido de o sistema auto-organizar-se semanticamente - e isto bem caracteriza a autopoiésis. Esta é a diferença de uma mera circularidade informacional repetitiva.

A noção de autopoiésis consiste, assim, que um dado sistema só pode de- terminar-se (constituir-se e modificar-se) lançando mão apenas de suas pró

 prias   estruturas. Porém, ao mesmo tempo, não se pode negar que esta espécie  de  autonomia operativa pressupõe uma cooperação,  uma acomodação ao entorno, ao ambiente em que está acoplado. A vida não pode existir em qual

quer contexto fisico-químico; assim, de acordo com Maturana e Varela, o meio mantém uma relação com a autopoiésis do sistema. Não podemos pensar, porém, que é o meio ambiente ou entorno que tem a capacidade de reproduzir o sistema; na concepção de autopoiésis o sistema só pode ser produzido 

a partir de suas próprias estruturas (ou pré-estruturas, sempre recursivas). O 

entorno, porém  suscita irritações  no sistema, perturbando-o de maneira tal que pode  disparar significativas alterações - semânticas com relação à qualidade da irritação externa - nas características do sistema. Essa perspectiva as- 

semelha-se muito aos conceitos piagetianos de assimilação/acomodação.Conceitualmente, podemos dizer então que um sistema autopoiético: (a) 

é um sistema porque seus componentes manifestam-se de modo processual;  (b) é um sistema fechado porque existe uma circularidade necessária e suficiente de seus componentes, para que toda e qualquer operacionalização com  vistas à manutenção do próprio sistema se realize; além disso que, (c) seu limite, (a sua fronteira), ou ainda, as suas “bordas” diferenciam-se do meio  

ambiente (entorno) em que está acoplado, “anichado”; e que, (d) é um sistema  autopoiético porque produz e reproduz a si próprio de forma semântica, ou 

seja, mesmo sendo um sistema operacionalmente fechado, responde às trans

25 Este conceito foi introduzido por Humberto Maturana e tem a missão de indicar como é possível que sistemas autopoiéticos, operativamente fechados, possam manter-se dentro de umentorno (meio ambiente) que, por um lado é precondição da autopoiésis do sistema e, poroutro lado, não intervém nesta autopoiésis.

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formações do meio ambiente em que está acoplado, a partir de seus próprios componentes operacionais, com vistas a sua permanência como sistema.

Quando consideradas as características do sistema autopoiético coloca- 

se, de imediato, uma importante questão de cunho epistemológico com rela

ção não apenas ao pensamento sistêmico tradicional, mas também com relação às perspectivas funcionalistas, estruturalistas e estrutural-funcionalistas; 

qual seja: o fim do dogma teleológico. A idéia de função, por exemplo, traz implícita a noção de um  telos.  Na epistemologia positivista-funcionalista alguma coisa sempre está em função de outra coisa; isto é, o termo função sempre traz consigo a idéia de finalidade. Mesmo estudos da Cibernética e, inclusive antes, com o desenvolvimento do conceito de homeostase, por trás da idéia de realimentação estava implícita a idéia de finalidade. Essa finalidade 

entretanto não era vista como uma autofinalidade ou uma não-finalidade. Nesta perspectiva, a dimensão teleológica toma-se uma dimensão da cognição do  observador; ou seja, quem percebe nexos lógicos finalistas é aquele que observa o sistema. Uma finalidade (telos)  não está explícita ou é intrínseca aos 

processos sistêmicos auto-referenciados. Isto significa que a auto-referência é também uma auto-referência teleológica; o sistema “justifica” a sua razão de  

ser na própria razão de sê-lo. O desdobramento ou “giro” dessa perspectiva epistemológica coloca em relevo a discussão de uma fundamentação ontológica do conhecimento (pós-fiindacionalismo). Para Maturana e Varela (1979, 1995, 1997), ao contrário do que pensavam alguns dos cibemeticistas, a “vida’, o ser vivo, não apresenta qualquer sentido fora de si mesmo. Ser não implica, de um ponto de vista biológico autopoiético, “ser” para  ou ter a função  de  como a Biologia mecanicista-funcionalista costumava descrever. Nas palavras de seus formuladores:

[...] finalidade ou objetivo não são aspectos da organização de qualquer máqui

na26 (alo ou autopoiética). Tais noções ficam no âmbito do comentário de nossas  ações, quer dizer, pertence ao domínio das descrições [do observador] e, quando são aplicadas a uma máquina ou qualquer sistema exterior a nós, expressa que estamos considerando-as dentro de um contexto mais amplo. Em geral, o observador dá algum uso à máquina [...] (Maturana e Varela, 1997, p. 78).

O conceito de autopoiésis, do mesmo modo que o de auto-organização só 

é aplicável, tendo-se por base a noção de sistema. Não faz sentido o uso do  termo autopoiésis de forma isolada, uma vez que a autopoiésis só pode ser  

manifesta numa unidade sistêmica discreta. Um sistema autopoiético, portanto, é um sistema cujos elementos que o compõem formam laços que se retroa- limentam, produzindo a si próprios e só p o r si sendo produ zidos; isso carac

26 Ao se referir a sistemas, tanto artificiais como vivos, os Cibemeticistas utilizavam a expressão “máquinas”. É abundante na literatura cibernética, sistêmica e biológica dos anos 40-60o uso da palavra máquina para designar também os seres vivos, como máquinas orgânicas.

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teriza o que primeiramente Maturana e Varela chamaram de  sis temas auto-  referidos.  É ilustrativo salientarmos, ainda, essa importante passagem de Maturana e Varela (1995a, p. 15; 1997, p. 15) sobre o seu inovador conceito: “é  

a esta rede de produção de componentes, que resulta fechada sobre si mesma,  

porque os componentes que produz a constituem ao gerar as próprias dinâmicas de produções que a produziu e ao determinar a sua extensão como um ente circunscrito

O “Novo Pensamento Sistêmico”, como passou a ser chamado a partir de  então, por algumas correntes sistêmicas em diferentes disciplinas explica a 

dimensão processual, interativa, dinâmica e fluída de todos os sistemas vivos.  A autopoiésis, além de ser um conceito jovem dentro da própria teoria biológica, encerra em seu significado uma perspectiva epistemológica muito singu

lar quando comparado com a tradição do pensamento sistêmico, gerando, assim, algumas dificuldades de compreensão. Não raramente esse avanço epis- temológico, para o entendimento de uma teoria sistêmica, devido a sua própria origem - as ciências naturais - , é refutado  a priori por diferentes cientistas principalmente das “humanidades” que, de certa forma, ainda não se libertaram da luta contra as “amarras positivistas” conceptivas das Ciências Sociais.

C o n s i d e r a ç õ e s f i n a isConceitos tais como função, estrutura, sistema, em verdade são concei-  

tos-teoria, uma vez que carregam consigo mais que a mera denotação de um  

objeto. Tais conceitos possibilitam, de imediato, um grande número de analogias, em que o conhecimento de um determinado domínio passa a fazer sentido ao explicar um outro domínio até então desconhecido; isto é, existe um transporte de sentido de um domínio a outro, concomitantemente ao transporte do conceito. Tais conceitos foram utilizados ao longo dos tempos, de forma interdisciplinar, para a explicação de diversos fenômenos e isso fez com que 

se tomassem repletos de conteúdo, polissêmicos. Ao longo dos usos, estes  conceitos, tomaram-se verdadeiros repositórios de significados, acúmulo esse, que tem lhes conferido essa fantástica plasticidade. Se lhes quisermos dar um fundamento, estrutura e sistema podem bem fundamentar uma determinada teoria; se lhes quisermos dar um neofundamento ou mesmo um pós-  fundamento a plasticidade de tais conceitos parece bem desempenhar esse  

papel, pois tanto as estruturas como os sistemas podem aderir a um deslocamento teórico-conceitual para além da idéia de fundamentação.A partir de uma perspectiva epistemológica, o movimento estruturalista  

também pode ser visto como a tentativa de uma “nova fundamentação” no 

momento de sua adoção por disciplinas e teóricos distintos. Se o fundamento, por um lado, estava constituído no  su je ito   dos diferentes existencialismos, cujo axioma fundador passaria pelo  cogitans  cartesiano, por outro lado, esse

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sujeito espraiava-se, na primeira metade do século XX, num humanismo em  

que o fundamento estava em toda parte e em parte alguma. A noção de estrutura, desenvolvida na lingüística, ofereceu às Ciências Sociais a possibilidade  de uma superação epistemológica em relação à fragmentada fundamentação 

proposta pelo humanismo. É neste sentido que tanto o conceito de estrutura  como o de sistema têm-se colocado como uma tentativa de superação das explicações atomistas para a sociedade, demonstrando que o fenômeno social  não é constituído de coleções de objetos ou sujeitos que se aglomeram ao  acaso. Em verdade, tanto a noção de estrutura como a de sistema, como já  

vimos, são conceitos que em sua origem etimológica comportam a idéia de  um todo agregado, articulado ou não.

As perspectivas mais tradicionais tanto do conceito de estrutura como de  

sistema foram abaladas não pela sua incapacidade de fundamentação científica, mas pelo abalo que a própria noção de fundamento (no sentido de verdade  

única) sofreu (mais declaradamente) desde o início do século XX. A história epistemológica das Ciências Sociais, em particular da Sociologia, desde sua fundação iluminista com a filosofia positiva e a “física social” de Augusto  

Comte, tem sido uma história cravejada de esforços teóricos para a determinação do seu objeto, por um lado, e, para a emancipação desse objeto da tutela das Ciências Naturais (Física e a Biologia), por outro lado. O cerne do ar

gumento apresentado por diferentes correntes sociológicas era o de que o ob jeto da Socio lo gia não se constituía em um objeto estático, mas em sociedades humanas, cujo agir de homens concretos dava fluidez, dinâmica, imper-  

manência e subjetividade às realidades sociais. Isso sempre se constituiu num  dilema à Sociologia: como pretender ser uma Ciência sem ter verdades perenes, universalizantes e cujo objeto não se transfigure no tempo e no espaço. Os paradigmas científicos da Física (as leis da mecânica clássica) e da Biologia evolucionista (sistemática filogênica) foram tão marcante na história  “conceptiva” da Sociologia que deflagraram uma contundente relação de 

amor e ódio com as “Ciências Naturais”. Talvez o mais bizarro em tal relação  seja o fato de que mesmo quando as Ciências Naturais já não mais acreditavam piamente na noção de verdade, de determinação e de leis imutáveis, a 

Sociologia continuava o seu diálogo - monólogo (?) - com um progenitor que  já não era o mesmo, uma vez que a noção de complexidade e de indetermina- 

ção já havia sido adotada tanto pela Física como pela Biologia. O irônico, en

tretanto, é constatar que a Sociologia, do pondo de vista epistemológico, mesmo antes de Weber, mas principalmente com ele, já tinha bem fundamentado a noção de complexidade científica sociológica, tão em moda, não apenas nas Ciências Sociais, mas principalmente nas  hard sc iences,  nesta con- temporaneidade.

Foi somente a partir da segunda metade do século XX, após a década de 60, com a reorientação de uma epistemologia de tendência analítica para uma

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tendência histórico-social, que a Sociologia parece ter conseguido finalmente 

psicanalisar o seu desejo (frustrado) de fundamentação. A história do emprego de conceitos tais como estrutura e sistema se confundem com a própria história das Ciências Sociais e de toda essa relação de afirmação e negação na 

busca de um fundamento que, se não último, pelo menos distinto daquele empregado pelas Ciências Naturais. Merquior (1991) comenta: “enquanto os  ‘paleoestruturalismos’ (com a teoria antropológica de Radcliffe-Brown e a teoria sociológica de Parsons) fizeram uso constante das analogias biológicas, o 

estruturalismo francês optou por uma abordagem totalmente diversa: esforçou-se muito para adaptar o estruturalismo lingüístico às Ciências Sociais” (p. 226). A crise do estruturalismo como um movimento francês que buscava  

uma nova fundamentação para o entendimento dos fenômenos sociais não 

significou, porém, no abandono do termo estrutura. Assim como o termo sistema, que ao longo de sua história vem sofrendo mutações e vem se resignifi- 

cando, o conceito estruturalismo sobrevive - talvez infértil do ponto de vista de um fundamento - no pós-estruturalismo.

Se o fundamento deslizou, com ele o sistema e a estrutura também deslizaram. O estruturalismo passou a assumir uma roupagem “pós-estruturalista” e o sistema, ao contrário, preferiu manter-se um pouco mais “conservador”; não adotou prefixos gregos ou latinos tais como  neo   ou  pós.  Para diferenciar- 

se do sistema fechado da Termodinâmica, e do sistema aberto, de Bertalanffy; preferiu ser chamado simplesmente de “novo”: o “Novo Pensamento Sistêmico”. Como o estruturalismo teve a sua origem na lingüística, o novo “paradigma” estrutural francês do século XX tinha, finalmente, conseguido livrar a 

teoria socio lógica - isso fica muito claro em Lévi-Strauss - das  marcas epis- 

 têmicas  das Ciências Naturais. Mesmo o estruturalismo tendo entrado em falência, com direito a data de concordata, maio de 1968, o que viria depois, embora pudesse ser melhor encarado como um  antiestruturalismo,  principalmente considerando o pensamento de Foucault, Deleuze, Derrida e Lyotard, posto que a  desconstrução  pode ser vista mais como uma  desestrutu ração,  o 

pós-estruturalismo também estaria liberto das marcas cientificistas naturais iluministas. Contrariamente, a idéia de sistema continuou “contaminada” quando não pela Física, pela Biologia: o conceito de sistema aberto é proveniente da Biologia e o conceito de sistema autopoiético também, ambos desenvolvidos pelos biólogos von Bertalanffy, e Maturana e Varela, respectivamente. Chamar as teorias desenvolvidas a partir da crise estruturalista de  «eo-sistêmicas ou pós-sis tê mic as,  o que em muitos casos seria mais coerente,  significaria perpetuar a figura positiva (opressora?) paterna (castradora?) na Sociologia, ciência esta, que parece, por vezes, envergonhar-se da sua origem

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6 6 Léo Peixoto Rodrigues

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3

O construtivismo sistêmiconas ciências humanas e sociais*

Marcelo A mold Cathalifaud 

Fernando Robles Salgado 

------------ ♦------------

Tudo surge no observador como conseqüências que se desprendem ao haver colocado uma distinção (Luhmann, 1999, p. 28).

I n t r oduç ão

Esta apresentação explora os aspectos epistemológicos subjacentes às comunicações especializadas das ciências humanas e sociais. Descreveremos  

como o construtivismo proporciona respostas consistentes para indicar de onde emergem nossos conhecimentos da realidade social, concentrando-nos nos 

princípios construtivistas de uma teoria da sociedade atribuída ao paradigma  dos sistemas sociais autopoiéticos (Luhmann, 1991; 1998).Como capítulo das teorias do conhecimento, a epistemologia inclui tanto 

aqueles mecanismos poderosos como os quotidianos que são construtores de 

realidade. Suas discussões envolvem contribuições da antropologia cultural, da sociologia do conhecimento, da neurofisiologia, da filosofia analítica e da 

psicologia cognitiva. Recentemente, devido à centralidade de sua matéria, em  tomo dela reuniram-se novas (re)organizações do pensamento científico: as 

ciências cognitivas, as teorias de sistemas, as filosofias da linguagem, as tecnologias baseadas na inteligência artificial e os princípios do novo  management.

Os debates sobre a epistemologia ocorrem em todas as áreas nas quais a produção e circulação do conhecimento são centrais. Mas, embora a episte-

Por suas inestimáveis críticas, comentários e sugestões, agradecemos sinceramente a AdriánScribano. A responsabilidade por erros e imperfeições é exclusiva dos autores.

6 8 Marcelo Arnold Cathalifaud e Fernando Robles Salgado

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mologia seja um tema que está na moda, além de assinalar que sua matéria  

consiste em estudar os fundamentos e métodos do conhecimento da realidade, sua definição não é unívoca.

Segundo as convenções sociais, a epistemologia consiste em uma ativi

dade especializada na compreensão e explicação dos processos de observação envolvidos na produção de conhecimentos acerca da realidade - e essa é uma 

das garantias para o estabelecimento de sua legitimidade. Sua qualidade consiste em concentrar-se em “como se conhece ”   e em temas diretamente relacionados, com o verdade e a objetividade - como podemos distinguir o co nhecimento verdadeiro (ou adequado) do falso (ou inadequado)?

Em suma, os processos do conhecer, que competem à epistemologia, entram em jogo quando se aplicam distinções, independentemente de sua desig

nação em números, crenças, valores, normas ou preços. O que antecede é válido para todo observador, seja uma pessoa ou um determinado sistema social. Dentro dessa ampla caracterização, como afirmou o antropólogo Bateson  

(1993), aqueles que pretendem não ter relação alguma com a epistemologia  devem superar seu otimismo, pois todos os conhecimentos, sejam científicos  ou comuns, encontram-se amarrados a observações e dependem delas para  

produzir-se.1Admitindo, como idéia fundamental, que a realidade emerge a partir de  

operações de observação, as explicações epistemológicas fazem uma nova  proposta sobre a atividade cognoscitiva e convidam a uma reflexão crítica sobre seus fundamentos. Suas pressuposições também incluem aspectos éticos, pois responsabilizam os observadores das realidades que modelam, reproduzem ou nas quais intervém. Certamente, quando a epistemologia se associa às 

premissas construtivistas, e estas ao paradigma sistêmico, surgem riscos, pois 

sem poder retomar a sua ignorância, a referência à realidade já não será 

igual.2

Em q u e c o n s i s t e a e p i s t e m o l o g i a c o n s t r u t i v is t a ?

O ponto de partida do construtivismo consiste em determinar as estruturas e operações que permitem produzir conhecimentos e seus questionamentos centrais são:  o que é observar?   e qual é a matéria do conh ecimento? Deslocando suas preocupações da natureza dos objetos para as possibilidades de

1 Neste sentido todas as epistemologias são equivalentes.2 Poderíamos lembrar do filme The Matrix, onde Neo - o protagonista - optou por viver numa

das realidades e teve sucesso, mas, no caso do nunca bem ponderado Quixote - que viveulouco e morreu certo -, sua excentricidade não lhe trouxe rendimento algum, a não ser sua

 posteridade. Talvez Mr. Truman (The Truman Show),  quem por acaso descobre ter vividonum mundo "falso ", tampouco tenha tido melhor sorte.

0 construtivismo sistêmico nas ciências hum anas e sociais 6 9

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seus observadores, o construtivismo aborda a auto-implicação dos conhecimentos da realidade com as distinções que os tomam visíveis.

As afirmações e declarações construtivistas colocam em questão a noção  clássica de objetividade quando sustentam que todo conhecimento surge de 

experiências de observação e que, portanto, seus registros não podem ser concebidos como reproduções da realidade e sim como resultados de tais experiências. Como teria afirmado Kant: somente conhecemos das coisas aquilo  

que nós mesmos colocamos nelas.A postura construtivista assume a auto-referência inerente a todas as in

dicações, descrições e explicações da realidade que são trazidas para a comunicação, inclusive a própria. Isso implica que o construtivismo se auto-inclui  

como tema de observação -  constru tivism o do constru tivismo.  Com base na 

sua visão, nenhum conhecimento pode sustentar-se tendo como comprovação correspondências com  algo externo , visto que todo conhecimento é resultado 

das operações de um sistema que observa. Desta forma, o construtivismo destaca que, em toda ação cognoscitiva, a observação estabelece o  obje to ,  pois este último passa a ser uma conseqüência das operações que o distinguem.  Assim, todos os conhecimentos são relativos a aplicações de distinções que  não têm correla ções externas.  Especificamente: os espaços, as imagens, as texturas e os odores são configurados de acordo com as disponibilidades dos  

sistemas nervosos dos seres vivos; do mesmo modo que os critérios que delimitam a verdade, a beleza, a legalidade, as ideologias sociais ou os preços se organizam por distinções processadas comunicativamente a partir das determinações dos sistemas soc iais dos quais fazem parte - neste caso: a ciência, a arte, a justiça, a política e a economia.

Para os construtivistas, as observações, as distinções que as orientam e, em geral, os componentes com os quais se constrói o conhecimento da realidade, são determinados na estrutura de um observador. Em conseqüência, toda observação refere-se a si mesma em cada uma de suas operações e em todas as descrições que origina.

As descrições comprometem-se com suas seleções - como na narrativa de sonhos - e expressam mais os processos aplicados para levar a cabo sua 

missão do que propriamente aquele que foi descrito. Nenhum sistema pode  conhecer além de suas disponibilidades, assim como não se pode observar e 

comunicar sobre o social desde fora do social, ou seja, desde fora da comunicação. No âmbito social, a matéria do real trata das conseqüências de sucessões recursivas e auto-sustentadas de observações comunicadas através da 

linguagem, ou seja, das cadeias de aplicações de distinções e seus resultados.A auto-referência não é impedimento para a produção de conhecimentos,  

pelo contrário. Para Luhmann (1991), é paradoxal que a clausura do observador condicione a que sua abertura em relação ao entorno somente possa fixar-  se a partir de seus esquemas diferenciadores internos. Para isso, formas como

7 0 Marcelo Amo ld Cathalifaud e Fernand o Robles Salgado

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sujeito/objeto ou sistema/entorno são recursos que um mesmo observador delimita - seleciona e o faz de acordo com as suas possibilidades estruturais.

Como os observadores somente podem constituir a unidade do observado  mediante distinções que remetem a suas próprias determinações, estes não  

dispõem de mecanismos que lhes permitam distinguir algo alheio àquilo que  permitem seus mecanismos de observação. Portanto, o contexto e os limites  da realidade do conhecimento encontram-se no observador. Estas afirmações não são alheias a reflexões pré-sistêmicas das ciências sociais e humanas, devemos lembrar que noções como marcos sociais do conhecimento ou cosmo- visões são bastante difundidas, embora pouco compreendidas!

Mas os conhecimentos não indicam somente, também operam como distinções, como marcas para diferenças que tomam a se aplicar. Assim, o co

nhecimento da realidade vai sendo constituído pelas pegadas   que vão ficando das distinções que os observadores aplicam. A cultura é depositária das mesmas.

A realidade é tão inesgotável como as distinções que lhe são estendidas, assim as construções do conhecimento - seus artefatos - são contingentes, pois é possível experimentar tudo de outro modo.3 Mas, embora todo conhecimento seja resultado de observações, uma vez realizadas suas indicações, estas se reforçam num invólucro lingüístico que permite que sejam experi

mentadas como propriedades do ambiente. Este deslocamento tem suas funções. As descrições do mundo, da realidade, quando fixadas na comunicação, permitem falar de  co isas,  embora estas somente sejam geradas no ato da fala (Maturana, 1990).

Quem percebe, somente percebe os produtos de suas operações, não os  

meios através dos quais o faz - não vemos nossos olhos nem os condicionamentos ideológicos que nos guiam,  mas os dos outros\  As condicionalidades do conhecimento são invisíveis para observadores pré-reflexivos. Somente  

um observador no plano de segunda ordem pode indicar como os conhecimentos são artefatos que dependem dos m eios - estruturas e operações - utilizados em sua configuração.

Como paradigma pós-nominalista e pós-realista, o construtivismo tira proveito de sua própria auto-observação, encontra-se em crescente expansão  

e suas explicações dirigem-se tanto a construções pessoais como sociais da realidade. Especificamente, para as ciências humanas e sociais, o construti-

3 De certa maneira, o Metálogo de Bateson (1993) que trata da questão: "Por que as coisas se desorganizam? "   serve para experimentar estas idéias: as “arrumações” não são possibilidades naturais, não refletem nenhuma organização antes de sua observação como tal. Um escritório pode parecer caótico para qualquer pessoa que não seja aquela que habitualmente o o-cupa. Ainda mais, qualquer tentativa de organizá-lo, que parta de alguém que não o usuário,significará a introdução de um fator desconhecido, ou seja, desorganização. Visto de outromodo, existem "infinitas bagunças "  c, somente uma "arrumação  Então: sobre que basesopera a ordem que surge do conhecimento?

0 construtivismo sistêmico nas ciências hum anas e sociais 71

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vismo é tratado como outro ponto de partida para as teorias sociais que tentam explicar o surgimento da cultura e das ordens sociais (Corcuff, 1998; Berger e Luckmann, 1968), faz parte das estratégias para uma mudança pessoal precipitada terapeuticamente (Neimeyer, 1996),4 é um dos aspectos que 

acompanham as reformas pedagógicas (Piaget, 1970)5 ou é aplicado como um  instrumento para o desenvolvimento de organizações. Mas suas posturas, embora ofereçam caminhos atraentes, provocam muitas dúvidas e oferecem poucas certezas. Em sintese, suas idéias são altamente improváveis de serem acei-

0 q u e f av o r e c eu o s u r g i m e n t o d a e p is t em o l o g i a  

c o n s t r u t i v i s t a ?O perspectivismo facilitou a entrada às propostas construtivistas (Amold  

e Rodríguez, 1990a). Enfatizando as limitações para abordar questões simples e complexas, pelas vias do procedimento cientifico tradicional, a postura  perspectivista destacou as dificuldades para falar do todo a partir das partes 

ou destas sobre si mesmas. Seus argumentos, ao destacar posições para observadores inquestionáveis aceleraram as perdas dos privilégios da ciência na comunicação da sociedade - pois, se os acontecimentos são recebidos através de experiências:  o que tem de diferente as experiências dos cien tistas?   Neste caminho, como destaca Giddens (1994), que já não se aceita universalmente a idéia de que todo conhecimento deva fazer alusão a uma realidade apreensí-  

vel pelos sentidos e que a aplicação da metodologia e a estrutura da mecânica  clássica seja o caminho para todas as disciplinas.6

Em sua avalanche, os construtivistas têm prazer em afirmar que, embora atraído inicialmente pelos postulados neopositivistas, Popper (1902-1996),  

indicou a impossibilidade de provar empiricamente as teorias cientificas, declarando que as únicas proposições verdadeiras são as que não nos permitem  verificá-las - critério de falseabilidade. Com essa demarcação, a procura da verdade objetiva - que está além da ciência - permanece com o critério regulador da atividade científica mas, como meta, inatingível.

4 Em programas terapêuticos nos quais as mudanças pessoais pressupõem mudanças nas estruturas de conhecimento, ou seja, nos processos que dão origem aos construtos pessoais.Seus seguidores afirmam que os pacientes procuram as terapias porque sua realidade, da

maneira como eles próprios a construíram, toma-se inviável e sua tarefa como terapeutas,nesta modalidade, consiste em agir como facilitadores para a reconstrução ou recomposiçãode tais realidades.

5 Onde se assume que os processos de aprendizagem não se explicam com a metáfora datransmissão de conhecimentos, mas com processos ativos de construção de conhecimentos.

6 Da periferia, juntam ente com Dano Rodríguez, há mais de dez anos afirmamos a mesmacoisa (1990b). Por isso, aqueles que parecem estar falando de novidades são os que sustentam que nada aconteceu nas ciências sociais depois dos alicerces lançados por Durkheim,Marx e Weber.

7 2 Marcelo Amold Cathal ifaud e Fernando Robles Salgado

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Os construtivistas tampouco deixam de mencionar os estudos de Kuhn 

(1971). Este, observando os condicionamentos históricos e comunitários da ciência, demonstrou que nem a razão (racionalidade) nem as sensações (empi- rismo), sustentam os artefatos da ciência. Conforme suas evidências, os co

nhecimentos científicos baseiam-se em considerações formadas com a fé das  comunidades científicas que acreditam nelas - e na confiança que essa f é  inspira na sociedade!  Se suas provas forem aceitas, o desenvolvimento do conhecimento científico já não poderia mais ser considerado como uma abordagem sustentada e disciplinada para desvendar a realidade.

Nas disciplinas humanas e sociais as formas construtivistas têm-se nutrido, sob amparo da hermenêutica, da fenomenologia, da etnometodologia (Robles, 1999), da psicologia piagetiana e, em geral, das metodologias quali

tativas. Todas estas abordagens e procedimentos fazem uma reflexão intensa  acerca dos processos de observação, até o ponto que suas aplicações ficam  

fora da normalidade científica do universo mecânico e causai predominante no paradigma positivista.

Mas os argumentos epistemológicos construtivistas mais fortes, aqueles que nos interessam, têm como apoio a  cibernética de segunda ordem,  as teorias  neurocognitivas  e, muito especialmente, a lógica  desenvolvida por Spen- cer-Brown (1979).7 Entre as contribuições mais relevantes encontram-se as 

pesquisas dos biólogos chilenos  Maturana e Varela,  que constataram que o sistema nervoso observa somente os estados mutantes do organismo do qual faz parte e para cuja explicação contribuiu a teoria da autopoiésis  

(1984; 1995) e as de von Foerster  (1985), que, redescobrindo Johannes Mül- ler (séc. X IX) - um dos pioneiros da neurofisiologia - , retoma o princípio da 

codificação indiferenciada, explicando que as células nervosas codificam somente a intensidade dos estímulos e que, por isso, todas as diferenças que um  

organismo cognoscente obtém, ou seja, seu mundo perceptivo, provêm exclusivamente de suas operações internas.8

Para o relativismo cultural, as formulações que hoje denominamos construtivistas, são as normais para outras tradições. Sem ir mais longe, o budismo afirma que os seres humanos, por sua própria condição, estão obrigados a viver em um mundo cuja realidade não podem confirmar sem sua ativa presen

7 Foi o cibernético Heinz von Foerster que introduziu este lógico britânico no foco dos teóri

cos de sistemas. Com o reconhecimento de Bertrand Russel, George Spencer-Brown desenvolveu em breves demonstrações os princípios que assumem a tautologia e o paradoxo comoseus componentes explicativos (vide Rodriguez e Amold, 1991).

8 De fato, são processos de codificação de sinais eletroquímicos que originam nossos mundos perceptivos. Isto significa que as percepções estão muito além da estimulação sensorial (ouvimos que estão nos chamando e não sons!). Por isso, entre outras funções, as organizações perceptivas apresentam constâncias, ainda que os estímulos estejam sempre variando. Emoutro sentido, não é possível prever percepções, conhecendo somente as características doestímulo.

0 construtivismo sistêmico nas ciências humanas e sociais 7 3

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ça, do que deduzem que, talvez por isso, o real não seja nada além de uma  

mera ilusão. Daí a afirmação: esperem tudo de vocês mesmos  (Carriere, 1995, p. 26).

Entender a novidade e os alcances do construtivismo leva também a ex

plorar suas interações com o sistema da sociedade e o da ciência. Embora von  Glaserfeld (1995), cite Protágoras como precursor do construtivismo - lembrando que esse sábio grego afirmava que o homem é a medida de todas as  

coisas - e outros propagadores procurem seus antecedentes entre as correntes filosóficas idealistas, o construtivismo somente pôde estruturar-se plenamente  como uma nova corrente quando suas premissas ressoaram diante de mudanças na complexidade da sociedade. Talvez, da combinação entre mudanças sociais e científicas tome-se plausível que uma autodescrição da sociedade  

contemporânea - que destaca a perda de razões vinculantes ou o difuso estilo social e cultural rotulado por Lyotard como pós-modemidade (19 86) - tenha cumprido a função de favorecer a divulgação das opções epistemológicas  construtivistas.9

Vinculadas às mudanças na ciência, desde a modernidade registram-se  incrementos na complexidade da sociedade que se acumulam como perdas de 

confiança nas explicações gerais que levam consigo suas autoridades: a ciência, a política e a Igreja. Neste sentido, o caso é que a autodescrição da socie

dade contemporânea não se deixa reduzir por monólogos baseados em teorias  totalizadoras.

Como documenta Manuel Castells (2000), ondas e cabos transportando  

zeros, alguns servindo de base para as comunicações que transcendem países  

e territórios com uma velocidade nunca antes imaginada, aceleram a globalização enquanto produzem profundas alterações em nossas disposições sobre  

o tempo e o espaço. A acentuação das diferenças culturais não é um fenômeno alheio à globalização, fenômeno mais relacionai que hegemônico - contra 

tudo o que se pensa! Como o singular dá passagem para o plural, inclusive  como opção valorativa, por isso, respeitemos ou não as diferenças, aceitamos  cada vez mais a responsabilidade de decidir em que acreditar.10 Assim, as novas experiências contemporâneas estimulam uma melhor compreensão da diversidade.

9 Embora errem suas interpretações mais comuns, pois o que para alguns é simplesmente a perda de toda razão, somente é efeito de processos de diferenciação social. A única coisa queacontece é uma fragmentação de razões e, portanto, de epistemologias. Antes bastava-nosum par delas, agora temos dúzias!

10 Tudo isto projeta a individualidade a um status social onde a noção de pessoa surge comouma de suas conseqüências mais evidentes e com todas as complicações que isso acarreta,

 por exemplo, sua “dessubjetivação” e transformação em “ente” ju rídico , ou político, ou econômico, dependendo do caso.

7 4 Marcelo Arnold Cathalifaud e Fernando Robles Salgado

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O c o n s t r u t i v i s m o é u m a ep i s t e m o l o g i a an t i c ie n t íf ic a ?

A divulgação do construtivismo não está isenta das tergiversações e simplificações que degradam seus rendimentos. Este risco é inevitável quando se  

discutem seus argumentos vinculando-os com os estilos culturais da  new age ou integrando-os em debates em tomo da oposição entre idealismo e materia- lismo; subjetivismo e objetivismo ou solipsismo e empirismo. Assim, embora o construtivismo mostre uma radical oposição aos postulados clássicos da 

pesquisa naturalista que propõe um mundo cuja existência e efeitos podem  calcular-se como independentes a sua observação, distancia-se claramente das  tendências céticas ou niilistas, como já observara Feyerabend (1974).

Schmidt (1987) esclareceu que o construtivismo não propõe um solip

sismo ontológico, simplesmente não afirma os conhecimentos na “realidade"  mas sim em “experiências de realidade".  Por essa mesma razão, as preocupações mais difundidas de seus expoentes consistem em propor critérios para  a aceitabilidade e validação das explicações científicas sob um novo formato (Luhmann, Maturana, Bateson, von Foerster e Piaget, entre outros).

A única coisa irrenunciável para os construtivistas é afirmar que nenhum  

observador pode realizar operações fora dos limites traçados pelos condicionamentos estruturais que demarcam suas operações de observação, e que  

quando se relaciona conhecimento com realidade somente se pode argumentar que todo o observável é um ganho específico de um observador, incluindo  

o seu observar o observar - refletir. Portanto, embora se pressuponha uma complexidade - ou realidade - externa disponível, esta seria incognosc ível. Luhmann (1991) esclarece este argumento afirmando que embora não existam  constituições absolutamente endógenas e o entorno - mesmo que construído -  

faz-se notar por seus ruídos, este não pode informar aos seus observadores. Segue-se a isso a demonstração de Maturana e Varela (1984) sobre a ausência 

de mecanismos para distinguir entre o que ele denomina ilusões e percepções.Os construtivistas assumem a cientificidade e permanecem como pesqui

sadores empíricos. Seus pesquisadores procuram gerar conhecimentos empíricos aceitáveis para as comunidades científicas e tentam explicar os mecanismos mediante os quais as experiências da realidade são construídas e compartilhadas.

Os argumentos construtivistas não são pós-científicos, são sustentados por pesquisas, comunicados em congressos, em revistas especializadas e em  

livros com inúmeros experimentos. Na verdade, o que mais poderia surgir de  estudos sobre as coordenações neuronais incluídas na percepção visual de rãs, pombas e salamandras, da coleta de dados com galvanômetros ou de estudos  acerca das operações de sistemas sociais parciais, organizações formais, movimentos sociais, grupos e interações. Para os construtivistas, a ciência conserva sua primazia funcional na produção de conhecimentos e apóiam seu ca

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ráter de observatório privilegiado - embora não encontre pontos externos que lhe permitam confirmar suas observações.

As afirmações construtivistas que surgem da pesquisa empírica projetam- se a partir das seguintes condições: em primeiro lugar, reconhecem a natureza 

ativa e dinâmica do conhecer - cujos artefatos (descr ições/percepções/explicações) emergem a partir das diferenças aplicadas por seus observadores; e, em segundo lugar, assumem que esses artefatos - que operam no domínio 

da descrição - não são idênticos às operações que buscam dar conta, estão em um plano incomensuravelmente diferente.

E m qu e c o ns i s t e a r eal i dade par a os c on s t r u t i v i s t as ?

O construtivismo entende a observação, no espaço da sociedade, como uma meta observação, e suas matérias - artefatos - consistem em notícias de diferenças e não-territórios. Diferentemente das pressuposições sobre o conhecimento que considera possível uma observação não mediada da realidade, o construtivismo assume a construção da realidade como uma produção problemática que emerge de operações internas da ciência ou de seus equivalentes funcionais.

Para o construtivismo, os conhecimentos da realidade são descrições que resultam de operações de observação. Isto quer dizer, como afirmamos anteriormente, que nunca vão coincidir com as operações que buscam dar conta.  Assim, o conhecimento do mundo como resultado de experiências de observação depende das distinções que são aplicadas."

Como nas estruturas de um observador especifica-se sua experiência, não  

podem estranhar as convergências entre sistemas que compartilham suas determinações. Conectando com as mesmas pautas (paralelismos cognitivos) 

são obtidos os (mesmos) resultados previstos. Do mesmo modo, são determinações das operações de observação as que tomam provável a estabilidade  sobre a mudança no conhecimento da realidade, por isso a objetividade fica relativizada ao contexto de sua (pré)determinação, ou seja, às operações que a tomam visível.

O efeito conservador das observações explica-se porque seus artefatos constituem-se a partir de indicações geradas por distinções que, justamente,  ao comunicar-se constituem premissas para sua reemergência. Embora so

mente algumas observações sejam confirmatórias e a maioria seja desviadora -  a mudança é a única coisa provável -   a estabilidade fica presa na descri

11 Mas, quais seriam as características distintivas das diferenças? Não são materiais, não podem ser localizadas, não podem ser situadas no tempo, não são quantidades, carecem de dimensão, não é   energia, pois a energia está ali antes da chegada da informação ou que umaresposta seja ativada, e para os órgãos sensoriais uma diferença é um sinal digital. Em conclusão: uma diferença é uma idéia nas mãos de um observador (Bateson, 1993).

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ção. Assim, os registros atuam como construções que existem sem motivo.  Tudo indica que existe algo - mesmo que seja o destino do incognoscível. Isto se explica porque toda indicação acarreta efeitos ontológicos. Somente um  observador especializado, e a partir de uma posição epistemológica de segun

da ordem, perguntar-se-á:  o que há p o r trás dessa conformação(?),  devolvendo-lhes sua contingência.

Das operações de observação do sistema científico emerge um domínio  distintivo de realidade: a realidade do conhecimento científico na sociedade.  Isso não pode nos surpreender, não há nada de novo sob o sol. Lembremos  

que a atividade científica, embora orientada para o desconhecido, o faz sob o  marco de um sistema fechado de alternativas. Os conhecimentos da ciência  

são construídos sobre a base de suas distinções teóricas e hipóteses, as quais, 

por sua vez, estruturam-se em seus paradigmas. Assim, tipos e estilos de pesquisa ficam, de uma ou outra maneira, auto-refletidos em suas próprias descobertas.12

Então, o que faz a pesquisa científica? Como diria Bateson, às vezes melhora suas hipóteses e outras vezes refuta essas mesmas hipóteses, mas prová- 

las é outra questão (1993, p. 371). Por isso, suas descrições e explicações entram na comunicação social numa arena dinâmica e nunca podem ser garantidas como observações “verda deiras "  ou “fin ais   ”, somente sua reiteração, através da recursividade, marcará sua viabilidade.

A viabilidade do conhecimento da realidade tem relação com o sucesso  

de operações que prosseguem diante de uma complexidade estruturada e parcialmente não controlada, mesmo quando autoconstruída.

Como afirma von Glaserfeld (1995), as construções de realidade sempre  

estão medindo sua potência segundo sua utilidade para a sobrevivência de seus sustentadores e, por isso, uma vez constituídas não se bastam a si mesmas.13 Por isso é a viabilidade, mais do que a certeza, que (auto)confirma os 

resultados de operações de observação, ela deixa junto o que pode permanecer junto e estabelece o que pode ser estabelecido. Tudo é uma questão de  

congruências entre ações e conhecimentos - afirmada a partir de uma observação externa.

Para os construtivistas, somente no domínio descritivo podem ser feitos  cálculos sobre os conhecimentos e somente ali são colocadas à prova suas 

consistências ou se autocorrigem. Pensemos nos preconceitos, fobias, suspei

tas ou fantasias que podem chegar a colapsar a variável crítica de seu observador: sua organização.

12 Não se pode esperar de quem se perguntar sobre o ambiente e a participação cidadã, que preste informações sobre outros eventos em suas respostas.

13 Isto pode implicar que um observador desapareça sem se dar conta de seu erro epistemológi-co. Por outro lado, premissas erradas podem funcionar bem, assim nossos "erros "  epistemológicos podem reforçar-se e autovalidar-se (lembre-se Mr. Gardiner de Kosinski, notavelmente interpretada no cinema por Peter Sellers).

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No plano das interações entre diferentes observadores, seus acoplamentos não podem ser atribuídos a conteúdos comuns ou a realidades ônticas e sim à presença de formas e meios que, por um lado, facilitam suas conectividades e, por outro, os mantêm adaptados. Para tomar prováveis estes encon

tros e suas funções, ao longo da evolução desenvolveu-se uma cultura que, segundo Luhmann (1992), é um tipo de pré-seleção que, através de distinções do tipo pertinente-impertinente, correto-incorreto, apropriado-inapropriado, sustenta estruturas de expectativas que facilitam algumas comunicações em detrimento de outras. A sistematicidade da cultura verifica-se diante das perturbações que atentam contra os construtos comuns, como aquele que marca o 

viés que denominamos loucura, nossos erros ao preencher formulários ou ao 

captar as intenções de uma pergunta.14

O conhecimento obtém sua viabilidade das observações que os observadores fazem de seus artefatos e não da verdade que estas contêm. O que antecede tem outras conseqüências: que ao avaliar os conhecimentos, sejam eles 

descrições ou explicações, inevitavelmente, deve-se colocar a atenção na sua legitimação. No campo da ciência, os propósitos de toda pesquisa ficam circunscritos a encontrar explicações melhores ou mais úteis, as que se definirão 

em relação com outros observadores: em primeiro lugar, a comunidade científica, logo seus próprios observados, os agentes de decisão ou os meios de 

comunicação. Por isso, como todas as atribuições que se estendem aos conhecimentos ficam delimitadas por observadores e não por critérios externos aos 

mesmos, sua racionalidade sempre será performativa ou instrumental.15

C o m o o c o n s t r u t i v i s m o e n t en d e a s i p r ó p r i o ?

Do ponto de vista de seu auto-reconhecimento, a epistemologia constru- 

tivista pode ser descrita como uma espécie de processador cognoscitivo integrado à sociedade, ao sistema social da ciência, às operações de conhecer e aos conhecimentos e diferenças que estes geram.

As explicações construtivistas harmonizam-se com a complexidade alcançada pelas sociedades contemporâneas e se acoplam aos mecanismos gerais da diferenciação funcional (tal como estes são descritos por outros observadores especializados com base em outras seleções e com outras intenções).

As comunicações construtivistas refletem um tipo estrutural de sociedade  

onde se admite, como experiências cotidianas, a coexistência de tipos e níveis  variados de objetividades/racionalidade, cada uma com suas respectivas clausuras - domínios institucionalizados - as quais, em seu conjunto, constituem o sistema da sociedade. Assim, nos sistemas sociais complexos, junto com o

14 Como já foi dito: que alguém tente preencher um formulário de apresentação de projetos sem prestar atenção nas suas instruções!

15 Por isso as considerações ao destinatário da pesquisa social (Amold, 1999b).

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domínio dos conhecimentos garantidos pelas comunidades de cientistas sociais, o poder, a fé, o dinheiro, o prestígio e as emoções desempenham importantes papéis nos processos constitutivos do conhecimento cotidiano .16

O primeiro exercício para conhecer o construtivismo consiste em “despa-  

radoxar”17 sua auto-referência; isso é alcançado traçando limites para delimitar-se o fluxo contínuo e interconectado ao qual pertence. De saída, pressupõe  tanto a diferenciação das ciências como as que suas comunidades incorporem, sistemática ou intuitivamente, as hipóteses acerca da autopoiésis, sobre o funcionamento do sistema nervoso e os processos de auto-organização. Estas 

idéias são dispostas junto ao relativismo histórico, às disciplinas da comunicação, às teorias de sistemas e aos enfoques culturais e psicocognitivos.

O debate que gira em tomo das idéias construtivistas não produz apenas novas alternativas para a tarefa científica,18 permite também o desenvolvimento de suas diferentes abordagens e ênfases. Para reconhecer esse estado 

de situação, tipificaremos as variedades com as quais o programa construti- vista se oferece entre dois eixos. O primeiro diferencia posturas “sociais” e “biológicas”; o segundo, suas pressuposições com respeito à realidade, entre 

formas “duras” e “brandas”. As variedades resultantes são indicadas no quadro seguinte:

Duras Brandas

Sociais

C o n s t r u t i v i s m o

OPERATIVO

Teoria de sistemas sociais (Luhmann)

FENOMENÓLOGOS/PEDAGOGOS

Socioconstmtivismo  

(Schütz, Berger e Luckmann) Construtivismo pedagógico (Ausubel et al.)

Biológicas

CONSTRUTIVISMO RADICAL

Teoria dos sistemas 

autopoiéticos (Maturana). Construtivismo radical (von Foerster; Bateson)

PSICOCONSTRUTIVISMO

Epistemologia genética (Piaget) Enação (Varela)

Como o construtivismo não oferece uma apresentação monolítica, sob o 

seu rótulo podem ser reconhecidas variações que integram tradições de diferentes disciplinas, inclusive com diferenças radicais, por exemplo, as teorias

16 Seus conflitos, às vezes, estão mais relacionados, como destacam os estudos foucaultianos,com as estruturas de dominação onde circulam, mas também, num nível mais básico, com osestados de ânimo.

17 Conceito de Luhmann, em alemão "Entparadoxienmg" 18 ...E muitos, muitos céticos diante dos resultados dessa forma de operar!

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interacionistas simbólicas parecem concepções neo-positivistas do lado das idéias de Bateson.

A partir das posições “brandas”, a realidade é representada como um estado extrínseco ao observador, do qual é possível tirar conclusões e a partir 

dali são explicadas as convergências cognitivas de diferentes observadores. Um tipo de princípio das possibilidades limitadas une os construtivistas com  os fenomenólogos - do estilo Shütz - que apostam nos entendimentos inter- subjetivos. Da mesma forma, mas a partir da biologia, Francisco Varela (1990; 1993), aplicando o conceito de enação (enacción),  explica como a operatividade dos sistemas observadores surge em processos subjetivos e ob

 jetivos de co-determinação circular, onde sua perduração é conseqüência de auto-regulações entre ação e conhecimento disponibilizado a partir do entor

no. A epistemologia genética de corte piagetiano (1970), na perspectiva da aprendizagem, também foi aplicada na mesma direção, empregando os conceitos de assimilação e de acom odação.19 Os pedagogos, por sua vez , acreditam que a experiência toma o conhecimento convergente. De certa forma, estas variações têm com o atrativo não romper com as ontologias - embora as questionem.

Tanto o construtivismo radical com o o operativo - “duros” - não se 

aproximam de explicações ou argumentos realistas, embora tampouco os ne

guem, pois isso já seria uma declaração de realidade: não existe a realidade!. Para estes construtivistas não há observações (dados, leis da natureza, objetos  externos) que possam ser postulados independentemente dos observadores. Para eles, mesmo quando um observador somente tem conhecimento através de suas operações de observação e, portanto, não pode ter um contato em  

termos informativos com o mundo extemo, tampouco pode afirmar que este  não seja como é.20 Os conceitos centrais destas posturas depreendem-se do 

conceito de autopoiésis e constituem-se, conseqüentemente, em clausura ope

racional, auto-informação e determinismo estrutural.As diferenças entre elas centram-se na composição basal da autopoiésis:  

para Maturana esta reside no metabolismo celular e sua extensão para o sistema nervoso e, para Luhmann, a autopoiésis é própria das operações comunicativas da sociedade.

Na comunicação da sociedade, os argumentos do construtivismo são tratados como artefatos que explicam a produção de uma realidade que nesse  sentido:  sempre é socia ll   Por isso, embora a epistemologia construtivista se 

projete a partir da neurobiologia ou a partir de processos da consciência, seu

19 A assimilação confere significados aos fatos e é transformadora destes através desta incorporação, mas, por sua vez, o objeto exigirá modificações no esquema assimilador (ver noção derealidade objetiva em Piaget)Este fenômeno tem relação com o fato de que todo observador comporta-se como um sistema fechado e determinado estruturalmente e, como tal, somente pode observar o que pode, esomente issol

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efeito somente ocorre na sociedade. Além do mais, as mesmas hipóteses construtivistas, sustentadas por estudos da bioquímica da vida, são sociais  pois  

 somente assim tomamos conhecimento dela s\ .

Concordamos com Luhmann (1999b) que nas ciências humanas e sociais  

estas distinções são imprescindíveis para desembaraçar as discussões pois, por exemplo, quando se faz a distinção entre os conhecimentos comuns e os  científicos ninguém argumentaria a partir das diferenças entre tipos de consciência ou qualidade de neurônios. Pelo contrário, faz-se alusão a diferenciações validadas na evolução do sistema social da ciência na sociedade.

Q u al o t i p o d e o b s e r v a ç ã o p r o p õ e m o s c o n s t r u t i v is t a s  

às c i ê n c i a s h u m a n a s e s o c i a is ?

O construtivismo não abandona suas pretensões científicas no mar do relativo, frágil ou dissipativo. Pelo contrário, sua tarefa consiste em registrar distinções identificando os níveis emergentes, e sempre dinâmicos, da complexidade que se reduz através dos conhecimentos.

As pesquisas construtivistas informam sobre os mecanismos que geram 

os conhecimentos que circulam na sociedade. Seus  obje to s de pesquisa não se 

reduzem ao registro de lascas, tamanhos de prédios, taxas de criminalidade, quantidade de abortos, hábitos de consumo, preferências eleitorais ou programações de televisão, tratam das distinções que dão origem a essas realidades.21 Reconhecem as complicações do social, onde tanto os observados co mo os observadores têm algo a dizer com respeito a suas distinções. Suas o-  

perações de observação são observações de observações e seu método denomina-se observação de segunda ordem (Amold, 1997).

A proposta construtivista diante da observação de observações - distin

guir distinções - eqüivale a uma observação especializada das ciências humanas e sociais. A distinção da observação de segunda ordem é a de não tratar  com objetos, mas com observadores que aplicam distinções e seguem seu  

percurso. Por exemplo, distinguir seus inícios para depois descrever como, através de processos recursivos, as realidades são consolidadas - com o ocorre 

quando se acompanham as tramas das novelas.As observações de segunda ordem indicam e descrevem os mecanismos  

construtores e reprodutores de realidade, com os quais os observadores confi

21 Neste ponto, reencontramos os problemas inerentes a observações de sistemas observadoresque auto-observam suas operações, como pode ser amplamente exemplificado com a temati-zação dos lalibãs ou com as disputas com respeito aos atentados de setembro em Nova York.Todas estas observações incrementam a complexidade da sociedade. Fazendo referência aeste tema, von Foerster (1985), argumentou que nossas ciências brandas devem encarregar-se dos problemas, enquanto que as ciências duras  baseiam seu sucesso em dedicar-se aos problemas brandos, n3o sujeitos a contingências e triviais.

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guram seus conhecimentos22. Seus procedimentos permitem pesquisar as diversas formas através das quais pessoas, grupos, comunidades, organizações e outras formas de sistemas sociais organizam, validam experiências, tomando-  as conteúdos de suas comunicações e de que posição o fazem.23

Os construtivistas consideram que a realidade compartilhada, no que se refere ao que está estabelecido, surge da capacidade que todo observador tem para observar os esquemas de diferenças aplicados por outros observadores. Em outras palavras: "aprend er " de outros. Também destacam como os novos 

conhecimentos - ou visões de mundo - surgem quando se experimentam diferenças com novas diferenças.

Em parte, estas idéias não são muito novas. Há muito tempo, os antropólogos culturais percebiam que as complementaridades cognoscitivas produ

zem e reproduzem as ordens sociais (Amold, 1987).24 Hoje compreendemos melhor essas idéias, trata-se de processos cibernéticos que operam como reformulações e encaixes entre experiências e operações cognitivas, cuja expansão recursiva - sempre é possíve l fazer diferenças entre diferenças - tem 

limites pragmáticos. A estabilização das distinções tem a ver com sua reiteração em outro momento do tempo."3 Uma conseqüência do que antecede é o 

fenômeno do autocumprimento das distinções e dos mundos de conhecimento  que revelam.

Na observação de primeira ordem o observador vive em um nicho, seu 

mundo fenomênico e experiências tomam formas de ontologias, onde aquilo  que percebe somente pode ser o que é, já que não reflete sobre a distinção 

que o toma possível; a segunda ordem abre o conhecimento à contingência estabelecendo-se assim uma alteração no fechamento recursivo de toda observação. Seu aporte reside na possibilidade de ver o que outros não vêem e a

22 Nada foge desta abordagem desde indicar as “formas de ver o desenvolvimento e a modernização” até discutir acerca das “bases de confiança que operam em nossa sociedade” (números e não quantidades).

23 Esse olhar estimula nosso interesse em conhecer as diversas formas através das quais pessoas(projetos de vida), grupos (cultura mineira; visão dos jovens) , comvnidades (autopercepção das classes médias),  organizações (critérios de focalização dos serviços públicos)  e outrasformas de sistemas sociais produzem seus conhecimentos (como são vistos hoje os mecanismos de articulação politica).

24 Essa perspectiva teórica, inaugurada pelos antropólogos Ward Goodenough e Floyd Louns- bury (1962, Universidade de Yale), enfatiza a identificação e descrição dos meios - culturalmente disponíveis - que estão à disposição dos membros de um sistema social para categorizar suas experiências, enquanto que a Antropologia simbólica coloca sua atenção na significação de tais categorias (Amold, 1987).

25 E sugestivo como através da produção e reprodução de leis, crenças, conhecimentos, documentos, declarações, receitas, conselhos, comentários e estereótipos, a cultura, montadaem seu veículo lingüístico, modela determinadas formas de reconhecimento. Estas, em suaaplicação são reintroduzidas na sociedade e ao fazê-lo, dão início a um plano operativo deobjetividade que, em alguns casos, num franco hiperetnocentrismo, é concebido como o único possível.

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novidade consiste em que o observador de primeira ordem, enquanto discrimina seus objetos não pode observar como pode observar, ou seja, não reconhece que seu conhecimento é provocado por sua própria participação.

O surpreendente na abordagem de segunda ordem é que ao indicar as dis

tinções usadas por um observador, registra-se o que para ele é inobservável (Luhmann, 1999a). Na linguagem sociológica diríamos que a matéria informativa da observação construtivista são as funções latentes, aquelas não reconhecidas por aqueles que as sustentam e executam e que, portanto,  não podem   comunicá-las.  Estas referências não são desconhecidas por outras tradições teóricas. Por exemplo, a teoria crítica, a psicanálise ou a sociologia do conhecimento discutiram bastante sobre o latente - embora sintam-se tentados a trabalhar com avaliações do tipo verdade/erro, subjetivo/objetivo ou funcio-  

nal/disfuncional. Mas a perspectiva construtivista, que não tem como tarefa  descobrir erros, afasta-se das hipóteses que interpretam os condicionamentos 

inobserváveis do observador como deformações do conhecimento -  fa lsa   consciência. Pelo contrário, os construtivistas destacam que a impossibilidade de distinguir uma distinção, durante sua aplicação, é o fundamento básico do  

conhecimento e se este for classificado como latência será somente a partir de uma construção em outro nível de observação (Luhmann, 1999b) para o qual valem outras distinções - de segunda ou de terceira ordem - e para os quais rege a mesma condição de inobservância.

Para Luhmann (1999b), o construtivismo é uma oportunidade para recuperar epistemologicamente as distinções latentes demonstrando a utilidade de 

observar as formas usadas por um observador quando aplica algo que, no momento de sua utilização, não é observável e como, desta maneira, gera seu  conhecimento. Isto permite observar o que está por trás disso, distinguir a dis

tinção.

Certamente, o observador de segunda ordem, concentrado em observar aquilo que para outro é inobservável, carece de outra possibilidade que não  

seja a de usar suas próprias distinções. Ele dispõe também de seu ponto cego,  sua própria observação continua ligada a um instrumento que, no momento de  

sua utilização, é aplicada sem questionamentos.Se um observador distingue sua distinção e a aplica autologicamente, 

suas operações tomam-se paradoxais - vejo o que vejo com o que vejo   para desparadoxar-se obriga-se a introduzir assimetrias do tipo antes/depois, de 

replicar distinções como a de sistema e ambiente (dentro/fora) ou, como ocorre nos sistemas sociais parciais, mediante as codificações binárias. Por exemplo, a ciência distingue naquilo que observa o que é verdadeiro do que não é verdadeiro, a justiça distingue o que é legal do que é ilegal, e a religião, o que 

é farsa do que é milagre.Como podemos ver, a observação de segunda ordem insere-se muito bem  

na diferenciação de uma sociedade onde existem múltiplas posições de obser

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vação que levam a dispor de muitas observações sem poder indicar nenhuma como a melhor ou a mais completa (Luhmann, 1995). Esta indicação tem o seguinte sentido: a possibilidade de que um obsen>ador po ssa observar outro 

 sis tema obser\’ador,   ou seja, a possibilidade de fazer observação de segunda ordem está na própria sociedade. Somente nela são encontradas as distinções  

que possibilitam as observações do que é latente, como por exemplo: sistema/ambiente, sujeito/objeto, consciente/inconsciente, ou até a própria manifesto/latente.26

O construtivismo reforça a idéia de que no ponto de partida de toda observação, inclusive na observação de uma observação, encontra-se uma diferença: aquela que faz a diferença. Desde as distinções que diferenciam e conferem valor de conhecimento até as configurações que os observadores fazem  ao construir seus mundos. Neste campo, as observações de segunda ordem  constituem-se em focos estratégicos para a pesquisa social. Suas sínteses, ou seja, a teoria da sociedade que provier delas caberá a uma de suas autodescri- ções, esperamos sejam as melhores.

Luhmann (1993) sugere que uma teoria que assumir as considerações expostas, poderá chegar a ser uma teoria da sociedade ancorada no sistema parcial da ciência, mas deverá satisfazer-se com proporcionar apenas uma teoria  

da sociedade. Encontrará a si própria em um mundo constituído de maneira  policontextu al   e quanto mais suas comunidades assumirem sua própria con- textualização, terão a sensação de um doloroso sacrifício diante da sua certeza de que existem outros pontos de partida para a observação do social.27

Para concluir, lembremos que nossa intenção foi a de indicar as características do programa epistemológico sistêmico e construtivista, pois uma vez  conhecido o seu conteúdo, cabe, agora, agir conseqüentemente. Não é tarefa 

fácil, mas ali se encontram alguns dos desafios que esperam encontrar solução 

neste novo século. Já observamos avanços, por exemplo, na pesquisa-ação, na avaliação iluminadora, nos estudos qualitativos da opinião pública, nas estratégias derivadas do etnodesenvolvimento, na educação popular, na comunicação alternativa e no planejamento estratégico organizacional. Em todos estes casos o olhar auto-referencial é aplicado, inclusive sem ser reconhecido como  tal. Essa é outra prova da potência e “naturalidade” prática contemporânea da 

anunciada renovação a qual fizemos referência.

26 Faz-se referência à noção de autopoiésis.27 Nesse sentido pode-se compreender melhor a anunciada morte da sociologia  indicada pelo

sociólogo chileno J. J. Brunner.

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Laclau e Luhmann: um diálogo possível

Daniel de Mendonça Léo Peixoto Rodrigues 

------- ♦-------

I n t r o d u ç ã o

Assim como o termo “estrutura”, que no início da segunda metade do século passado suscitou uma multiplicidade de significados em diferentes áreas 

do conhecimento científico, ocasionando inclusive um Colóquio interdiscipli

nar em Paris1 para discutir o seu sentido, o termo sistema tem apresentado uma vasta possibilidade de significados e entendimentos entre os seus interlocutores.

Em outro trabalho, realizamos o resgate de alguns aspectos teórico- 

históricos do pensamento sistêmico,2 que sofreu diferentes e radicais acepções, desde seu marco referencial iluminista, com o desenvolvimento da Segunda Lei da Termodinâmica. O chamado “novo pensamento sistêmico” teve origem, pois, na abordagem desenvolvida pelos cibemeticistas, na década de 

40, que desenvolveram, num primeiro momento, o importante conceito de re-  troalimentação ou  feedback,  que revolucionaria mais tarde a informática. Num segundo momento, outro importante conceito, também desenvolvido pela Cibernética, foi o de auto-organização, posteriormente incorporado pela  

Biologia da Cognição, com a Teoria de Santiago, proposta por Humberto Maturana e Francisco Varela, na década de 70, com o desenvolvimento do conceito de “autopoiésis”.

1 O colóquio “Colóquio sobre o Termo Estrutura” foi patrocinado pela UNESCO, de 10 a 12 janeiro de 1959. Sobre as discussões ver Bastide (1971).

2 Em Rodrigues (2000) discutimos as concepções sistêmicas tradicionais, abordando algunsaspectos históricos sistêmicos da Física, Biologia e Cibernética (Warren McCulloch, VonBertalanffy, Maturana e Varela), bem como na Sociologia (Talcott Parsons, Karl Deutsch,David Easton), buscando ressaltar a diferença entre essa tradição e o Novo Pensamento Sistêmico.

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Um olhar analítico-comparativo entre a Teoria do Discurso e a Teoria dos Sistemas Sociais já vem sendo realizado. Urs Staheli (1996) apontou algumas congruências e discrepâncias entre as propostas teóricas de Ernesto Laclau e Niklas Luhmann quando comparou a “função da unidade”, no dis

curso (Laclau) e no sistema (Luhmann), representada respectivamente pelo “significante vazio” e pelo “código”.5

A exemplo das comparações que já têm sido realizadas, neste trabalho, estabeleceremos algumas relações entre alguns conceitos teóricos de Ernesto Laclau e Niklas Luhmann. Compararemos as categorias sistema/entorno, de  Luhmann, com discurso/campo discursivo, de Laclau. Enfocaremos, ainda, pontos convergentes em relação às noções de teleologia, contingência e sentido, tratadas por ambas abordagens teóricas.

S is tem a e au to -r e fer ênc ia

A teoria sistêmica de Luhmann propõe-se a romper com a “tradição epistemológica fundacionalista”6 em que as teorias sociológicas têm-se fundamentado desde o seu nascimento, no seio da “Filosofia Positiva”, e cujos desenvolvimentos posteriores, com poucas exceções, passaram a oscilar entre 

perspectivas epistemológicas acionistas e estruturalistas. Para Luhmann, as teorias, incluindo a sistêmica, que se utilizam dessa “tradição epistemológica”, não conseguem dar conta de uma complexidade teórico-científica sempre  

crescente. E neste sentido que “novo pensamento sistêmico”, voltado para possibilitar a análise do social, propõe-se a delinear uma teoria geral para os  

sistemas sociais, cujo enfoque primordial é o enfrentamento da complexidade  

epistêmica, característica do “real”. A teoria social dos sistemas auto- 

referenciados tem por objetivo romper com o pensamento sistêmico, com o 

funcionalismo e com o estrutural-funcionalimo clássicos. Luhmann, ao se referir à nova abordagem sistêmica, tem defendido a perspectiva de que toda a teoria sistêmica deva constituir-se na observação da diferença entre sistema/teoria sistêmica e entorno. Para ele, a noção de sistema obriga-nos a percebê-los, como estando estruturalmente orientados sempre em relação ao que lhes circunda, ou seja, em relação ao seu meio ambiente (entorno). Neste sentido, os sistemas irão se constituir, estruturalmente, sempre em relação ao seu entorno; sem o qual, não poderiam existir. Segundo esse autor, sistemas sem

pre são constituídos e mantidos “mediante a criação e a conservação da diferença com o entorno, e utilizam seus limites para regular tais diferenças. Sem

5 Sobre tais conceitos, específicos das teorias de Laclau e de Luhmann, ver: Laclau (1996) eLuhmann (1991 e 1985).

6 Referimo-nos a uma epistemologia de cunho analítico, inscrita em uma tradição fundaciona-lista, cujo conceito de verdade é sustentado por uma perspectiva ‘linear’ dos fenômenos, emcontraposição a uma abordagem complexa.

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de um sistema discursivo é auto-referente, uma vez que ela se realiza no interior de seus próprios limites e a partir de suas próprias estruturas; a segunda 

conclusão é que a pressuposição da existência de limites num sistema discursivo significa a própria impossibilidade que o exterior tem de produzir senti

do nesse sistema discursivo auto-referente. Conforme Stãheli, “sistemas/discursos não dispõem de nenhum nível extra-sistêmico como fundamento último [...] e, dessa forma, podem fundamentar-se apenas a si próprios” 

(1996, p. 261).Dessa forma, se em Luhmann, o exterior do sistema é o entorno (meio am

biente), para Laclau, o exterior do sistema discursivo está formado, tanto por outros discursos como pelos significantes flutuantes (elementos9) — todos esses 

extra-sistêmicos (extradiscursivos). Se, para Luhmann, a relação entre sistema e 

entorno ocorre no âmbito de um sistema-mundo, na terminologia de Ernesto Laclau, a relação entre sistema discursivo e o que está além dele ocorre num espaço o qual podem os denominar de “campo da discursividade”.10

T e l eo l o g i a e c o n t i n g ê n c i a

Como havíamos mencionado, na abordagem sistêmico-auto-referenciada  

proposta por Luhmann (1998b), o sistema obrigatoriamente diferencia-se do  meio em que está acoplado. Essa diferenciação leva em conta exclusivamente  os processos “internos” do sistema que se retroalimentam, se auto-organizam  

e se autoproduzem (autopoiésis )11 configurando, assim, o chamado fechamento operacional que independe de uma relação de input  e  output  (trocas) ou 

mesmo de qualquer tipo de nexos funcionais com o meio ambiente. Quando 

consideradas as características desse tipo de sistema, é colocada, de imediato, uma importante questão de cunho epistemológico com relação não apenas ao  

pensamento sistêmico tradicional, mas também em relação às perspectivas

9 Na terminologia de Laclau (1985), “elemento” é qualquer diferença que não está discursi-vamente articulada.

10 Conforme Maingueneau, o campo discursivo “não é uma estrutura estratégica, mas um jogode equilíbrios instáveis entre diversas forças [...]. Um campo não é homogêneo: há sempredominantes e dominados, posicionamentos centrais e periféricos” (2000, p. 19).

11 Do grego, auto =  por si só,  poesis =  produção. Maturana e Varela (1979), criadores desteconceito, explicam que sistemas autopoiéticos são sistemas fechados que se auto-referenciam. A auto-referência, neste caso, não significa simplesmente feedback. Na idéia defeedback existe uma informação circular que “nasce” e “morre” num mesmo ponto, sempredo mesmo modo; ou seja, ao considerarmos o conhecido exemplo do termostato (Ashby,1970) como um feedback system,   temos que: um dado ambiente aquece, a cápsula do termostato expande, controla o fluxo de gás, o gás diminui, a cápsula esfria e contrai, ativandotambém com a contração o fluxo de gás para mais. Neste caso, o termostato é um feedback  system,  mas não um sistema autopoiético. A autopoiésis requer produção, transformação,adaptação do sistema em relação às transformações do seu meio (entorno). A autopoiésis requer sempre uma interpretação semântica do sistema em relação ao meio ambiente. Isto difere de uma mera circularidade informacional repetitiva.

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funcionalistas, estruturalistas e estrutural-funcionalistas; qual seja: o fim do “dogma” teleológico. A idéia de função, por exemplo, traz implícita a noção  de um  telos.  Na epistemologia positivista-funcionalista alguma coisa sempre 

está em função de outra coisa; isto é, o termo função sempre traz consigo a 

idéia de finalidade. Luhmann argumenta que: “o conceito de auto-referência  designa a unidade constitutiva do sistema consigo mesmo: unidade de elementos, de processos, de sistema. ‘Consigo mesmo’ quer dizer independente de ângulo de observação de outros...” (Luhmann, 1998, p. 55). Nesta perspectiva, a dimensão teleológica toma-se uma dimensão da cognição do observador; ou seja, quem percebe nexos lógicos finalistas é aquele que observa o sistema. Uma finalidade (telos)  não está explícita ou é intrínseca aos processos sistêmicos auto-referenciados. Isto significa que a auto-referência é tam

bém uma auto-referência teleológica; o sistema “justifica” a sua razão de ser na própria razão de sê-lo.12 O desdobramento ou “giro” dessa perspectiva e-  pistemológica coloca em relevo a discussão de uma fundamentação ontológica do conhecimento (pós-fundacionalismo).

A noção de sistema discursivo de Laclau é igualmente incompatível com  

qualquer teleologia ou escatologia, tendo em vista seu caráter sempre precário 

e contingente. Precário, pois toda a produção de sentido, construída por um sistema discursivo, está sempre tendente a ser alterada na relação com outros  

sistemas discursivos. Contingente, uma vez que não há (necessariamente) a necessidade ou previsibilidade da produção de sentidos por um sistema discursivo. A contingência - algo não necessário obrigatoriamente, mas tampouco im possíve l - é uma propriedade dos sistemas autopoiéticos e está relacionada com a multiplicidade de possibilidades de produção de sentidos por um sistema discursivo. Em termos políticos, não há possibilidade de se precisar 

qual o projeto político que pode tomar-se um discurso hegemônico  a priori,  

ao contrário da previsibilidade teleológica da tradição marxista que via no 

proletariado o inexorável papel de liderança na superação do capitalismo. Para Laclau, a noção de contingência impede inclusive a previsão de qualquer tipo de projeto emancipatório. Dessa maneira, um sistema discursivo resulta de uma prática articulatória que não possui um plano de constituição  a p riori, como podem os perceber nesta passagem:

Poderia argumentar-se que [...] a unidade discursiva é a unidade teleológica deum projeto, mas isto não é assim. O mundo objetivo está estruturado em seqüên-

12 É pertinente salientarmos que Maturana, et al. começaram seus estudos, que deram origemao conceito de autopoiésis, com os processos cognitivos da cor. Tais estudos fizeram-nosconceber a autopoiésis no próprio sistema nervoso, em que a “imagem” e a percepção da cordependiam de um processo auto-organizativo do sistema nervoso. Para Maturana, et. al. o

 processo de cognição é dado exclusivamente no sistema nervoso, que é um sistema fechadoautopoiético. Para um maior aprofundamento ver:  Biology and cognition  (1970);  De máquinas y seres vivos  (1995)  A árvore do conhecimento (1995); Ontologia da realidade (1997); Da biologia à psico logia (1998).

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cias relacionais as quais não necessariamente possuem um sentido finalístico e que, em muitos casos, na realidade, não requerem qualquer sentido. E suficiente que certas regularidades estabeleçam posições diferenciais para estarmos aptos a falar numa formação discursiva (Laclau e Mouffe, 1985, p. 109).

Como vimos acima, Laclau argumenta que são suficientes “certas regularidades” para que possamos falar de uma formação discursiva. Isso porque, apesar da busca que um sistema discursivo incessantemente faz em direção a uma fixação última de seus sentidos, tal busca sempre será em vão tendo em  

vista às constantes suturas que esta formação discursiva sofrerá na sua relação com o campo da discursividade. Contudo, como estamos diante de uma teoria 

das diferenças, esta fixação, mesmo de forma parcial é requerida, uma vez  que se esta não existisse, não haveria o porquê de se falar mesmo na idéia de  

sistema, a qual pressupõe, a partir do estabelecimento de seus limites, aquilo  que é interno e, portanto, constituinte deste, e aquilo que lhe é externo e, portanto, estranho a este.

Nesse sentido, os limites do sistema discursivo se dão a partir do estabelecimento de seus sentidos que, como afirmamos, são sempre parciais. Esta 

fixação parcial é dada por um ponto discursivo privilegiado chamado de ponto nodal13, o qual articula os diferentes momentos constituintes de uma formação discursiva e, por conseqüência, acaba por os diferenciar, bem o discur

so como um todo, de outras formações discursivas, de elementos e de discursos antagônicos dispersos no campo da discursividade.

S en t i do

Para Luhmann, tanto a sociedade como o indivíduo devem ser vistos como sistemas. A sociedade constitui-se num sistema social e o(s) indivíduo(s) 

em sistema(s) ps íquico (s) .14 Os sistemas, em Luhmann, são incom unicáveis  diretamente. Para um sistema auto-referenciado, tudo o que não for ele mesmo é meio ambiente, inclusive os demais sistemas, imaginando-se um siste- ma-mundo. Tudo o que o meio ambiente faz é irritar o sistema que pode responder auto-organizando-se e, neste caso, estaríamos frente a uma comunicação indireta, ou uma autocomunicação. E neste sentido que Luhmann (1988)  se refere à improbabilidade da comunicação e também é aí que se dá o espaço, não-determinista como afirmam alguns, mas justamente construtivista da

13 Laclau e Mouffe (1985) atribuem à psicanálise de Lacan a origem da categoria “ponto nodal” na teoria do discurso, quando incorporam do psicanalista francês a noção de  po ints de capiton que são significantes privilegiados que fixam sentidos numa cadeia significante.

14 Maturana (1970), ao estudar o sistema nervoso, constatou que a cognição, o processo de percepção, o conhecimento davam-se de maneira sistêmica e operativamente fechada. Para ele,o sistema nervoso é um sistema autopoiético. Não entraremos nessa questão —freqüente nosatuais debates epistemológicos - sobre este assunto ver: Maturana e Varela (1970), (1979);Maturana (1997).

Laclau e Luhmann: um diálogo possível 9 3

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sociologia luhmanniana. Num sistema psíquico, isto é, em cada indivíduo, essa comunicação indireta caracterizar-se-ia pelo que chamamos de entendimento, pela construção de entendimento, uma vez que todo entendimento  sempre é um auto-entendimento, uma autocognição. Sendo assim, se a cons

ciência ou sistema psíquico, como denomina Luhmann, constitui-se numa u- nidade discreta (uma unidade singular), ou seja, numa unidade sistêmica auto- referente, então entre diferentes sistemas de consciência constroem diferentes  

sentidos acerca do entorno, acerca do mundo. Tais sentidos podem coincidir,  se aproximar, serem inclusive percebidos como idênticos, mas foram construídos sempre a partir das estruturas internas de cada sistema auto-referente, ou seja, de cada sistema psíquico que elabora, filtra, utiliza ou refuta as comunicações (irritações) que provêm a partir do entorno. Para Luhmann (1998, p. 

79), todo o entorno (ambiente de um sistema) se faz na perspectiva de sentido, sendo que os “limites do entorno são limites de sentido; por conseguinte,  

remetem-se ao mesmo tempo para fora e para dentro. O sentido em geral, e os  limites de sentido em particular organizam o nexo insuperável entre sistema e entorno mediante a forma especial de sentido”. A partir dessa perspectiva, tanto Niklas Luhmann como Ernesto Laclau estabelecem importantes argumentos para uma teoria da diferença.

Decorre, então, que para Luhmann, “a socialização sempre é uma auto- 

 socia lização",  uma vez que é impossível, na perspectiva sistêmico-auto-  referente, a transferência de sentido de um sistema a outro. Como todo sistema autopoiético não contempla uma teleologia, a consciência realiza e vive a 

socialização em si mesma. A conseqüência disso é que os sistemas, assim como as consciências individuais, não dependem de qualquer tipo de consenso moral (bem, mal, certo, errado). A auto-socialização seria um produto da reflexividade do sistema/entorno, através da  seletivid ade   contingente de sentido, próprio da auto-referência. Em outras palavras, as consciências individuais e a(s) sociedade(s) são sistemas auto-referentes, o que implica que todo e qualquer entendimento acerca do mundo é um produto dessa auto-  

referência. Logo, o(s) entendimento(s) será(ão) a(s) construção(ões) possí- vel(is) que um sistema psíquico ou social pode(m) realizar. Evidentemente que essa auto-organização, ou essa autoconstrução de sentido irá refletir, de 

alguma maneira, o tipo, a qualidade do conteúdo (dos elementos) que se fazem presente nesse entorno e que, portanto, vão delimitar o gradiente possível  de sentido.Luhmann afirma:

O sentido comporta sempre focalizar a atenção sobre uma possibilidade entre outras muitas [...] O sentido, portanto mantém-se rodeado por possibilidades. Sua estrutura será [a estrutura] da diferença entre atualidade e potencialidade. O sentido, em definitivo, é a conexão entre o atual e o possível; não é nem um nem outro (Luhmann, 1998b, p. 28).

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O sentido, para Luhmann, pressupõe sistemas auto-referentes, dinâmicos, que utilizam a consciência (no caso dos sistemas psíquicos) e a comunicação  

(no caso de sistemas sociais) como meio para as suas operações. Portanto,  não são unidades estáveis. Estes sistemas, em suas dinâmicas auto- 

referenciadas, “relacionam-se” com eventos que surgem e desaparecem com a mesma velocidade no “sistema-mundo”. Dessa forma, o sentido está baseado  na instabilidade dos elementos, na dinâmica - de difícil apreensão - desses  

sistemas; ou como observou Luhmann (1998b, p. 29) na instabilidade da atualidade, ou seja, na impossibilidade de termos acesso a certezas estáveis. Para  

Luhmann, porém, o que se pode fazer é relacionar “os problemas inversos da certeza instável e da incerteza estável. Esta relação pode mostrar-se como  sentido e evoluir com a variação e seleção cultural dos sentidos exitosos”.

Os processos sistêmicos auto-referenciados só podem operar mediante o sentido, ou seja, o sentido é parte intrínseca deste tipo de unidade sistêmica,  uma vez que a negação do sentido (o não-sentido) também é sentido. Isto faz com que a “relação” entre sistema e entorno seja uma relação operante mediante sentido(s). E desta forma que o sentido constitui o  sis tema socia l,  não havendo, assim, a possibilidade de inexistência de sentido. Para Luhmann, “o 

sentido se constitui na forma do mundo com o qual se transcende a diferença  entre sistema e entorno” (1998, p. 79); ou seja, a desparadoxação; em outro  

lugar Luhmann ainda acrescenta:

[...] o mundo do sentido representa a seletividade imposta e se caracteriza por uma “determinabilidade” indeterminada [possibilidade], Como não podemos transcender o sentido, posto que não podemos abandonar o mundo do sentido de uma forma provida de sentido, e dado que toda a negação de sentido pressupõe sentido, não nos resta outra opção se não aceitar e processar continuamente uma seletividade [atualidade] que é inevitável. Minha conclusão, portanto, pode ser expressa dizendo que o sentido é uma representação da complexidade.

Tomando a “realidade” do mundo como expressão de complexidade, em  contraposição a uma epistemologia regular, linear, positiva, como acreditava a 

ciência do século XIX, Luhmann percebe a(s) produção(ões) de sentido(s) não apenas com uma imagem ou um modelo usado pelos sistemas psíquicos ou sociais, mas como uma vigorosa forma de afrontar a complexidade epistêmica do  

sistema-mundo. Em outras palavras, é a partir da inevitabilidade sistêmica auto-  poiética de produzir sentido (sempre na relação sistema/entorno) que os siste

mas, sob condição inevitável de uma seletividade forçosa (Luhmann, 1998b),  produzem a possibilidade de redução da complexidade do sistema-mundo gerando uma possibilidade heurística para a sua compreensão.

A produção de sentido para Ernesto Laclau, analogicamente à perspectiva de Luhmann, ocorre no interior do sistema discursivo, a qual defendemos  aqui ser, a totalidade estrutural-relacional e auto-referenciada, resultado das  

práticas articulatórias. A prática articulatória entre momentos diferentes, por

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sua vez, é constituída por pontos nodais, que são, no interior da articulação, como já vimos, pontos discursivos privilegiados, uma vez que são capazes de realizar o próprio sentido do sistema discursivo, evitando assim o infinito deslizamento de significantes, no sentido de Lacan (1966). A prática articulatória  

que constitui e organiza relações sociais consiste, nas palavras de Laclau: N a constr ução de pontos nodais que fixam parcia lm ente sentidos; o caráte r par

cial dessa fixação procede da abertura do social, resultante, por sua vez, de um

constante transbordamento de todo discurso pela infinitude do campo da discur-

sividade (Laclau e Mouffe, 1985, 113).

Para Laclau e Mouffe (1985), portanto, toda e qualquer produção de sentido ocorre obrigatoriamente a partir da articulação de momentos no interior 

de um sistema discursivo. Isso quer dizer que a prática articulatória é uma prática auto-referenciada, porque todos os momentos da construção discursiva são internos ao próprio discurso. O que está além dos limites do sistema  discursivo, por óbvio, não pode produzir qualquer sentido nesse sistema. O 

que está além dos limites do discurso, na designação de Laclau e Mouffe, como já vimos, é elemento, ou seja, uma diferença que não está discursiva- 

mente articulada, ou os demais discursos que estão em relação de antagonismo. A auto-organização da prática da articulação e o seu resultado - o discur

so - envo lve o seguinte movimento como demonstra Laclau: N o conte xto dessa d iscussão, nós cham arem os articula ção qualq uer prática que

estabeleça uma relação entre elementos tal que suas identidades sejam modifica

das como um resultado da prática articulatória. A totalidade estruturada resultan

te da prática articulatória nós chamaremos discurso. As posições diferenciais, na

medida em que elas apareçam articuladas num discurso, nós chamaremos mo

mentos. Por contraste, chamaremos elemento qualquer diferença que não está

discursiva m ente articulada (Laclau e M ouffe, 1985, p. 105).

Conseqüentemente, a articulação é uma prática que se estabelece entre elementos que, num primeiro momento, não estão articulados entre si. Podemos dizer, portanto, que no momento anterior à articulação, esses elementos estão imersos numa lógica complexa, ou seja, estão dispersos de forma aleatória no campo da discursividade. A prática articulatória agrega esses elementos transformando-os em momentos diferenciais. Portanto, um elemento ao ingressar na articulação, em relação a essa, deixa seu status de elemento e as

sume a condição de momento diferencial: passa, portanto, a fazer parte da au- to-referência sistêmica. A articulação entre esses momentos diferenciais resulta inexoravelmente na modificação de suas identidades: numa alteração semântica de seus conteúdos particulares anteriores ao ingresso na prática articulatória (autopoiésis). O resultado dessa prática articulatória auto-referente é 

o discurso. Insistimos na auto-referencialidade de um sistema discursivo nos mesmos termos expressos pelo Sistema Social de Luhmann. Auto-referência

9 6 Daniel de Mendon ça e Léo Peixoto Rodrigues

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deve ser aqui entendida exatamente como autopoiésis, cujo conceito, de sutil entendimento, é abaixo demonstrado por Luhmann:

O conceito dc autopoiésis traz consigo, necessariamente o dificultoso e freqüen

temente mal interpretado conceito dc sistema operativamente fechado [...] é evi

dente que não pode significar isolamento causai, nem autarquia, nem solipsismo

cognitivo, como os seus contraditores freqüentemente tem suposto. Este conceito

c, antes, uma conseqüência forçosa do fato trivial (conceitualmente tautológico) de

que ne nhu m sistema pode op erar fora dos seus limites (Lu hm ann, 1998, p. 55).

Considerando o conceito de autopoiésis, resta-nos claro que o tipo de sistema expresso pela perspectiva teórica de Laclau é, como na perspectiva de Luhmann, autopoiético, ou auto-referente, uma vez que toda produção de sen

tido ocorre necessariamente no interior do sistema discursivo. Dizer isso, numa perspectiva luhmanniana, significa afirmar que o sistema discursivo de Ernesto Laclau é operativamente fechado. A sutileza do entendimento da noção de autopoiésis, ou auto-referência está em compreender que um sistema, quando conceituado como fechado, refere-se tão-somente a sua operacionali-  dade na produção de sentido. Com demonstrou Luhmann, não se está aqui falando de um sistema não-relacional, completamente isolado de um contexto. Pelo contrário, o sistema está sempre acoplado a um entorno, com o qual  

mantém relação a partir da categoria de irritação , capaz, portanto, de ser constantemente ressignificado.

Para Laclau, a impossibilidade de uma literalidade última, ou da produção de um sentido finalístico por um sistema discursivo se dá justamente porque o sistema encontra-se em relação de antagonism o15 com os demais discursos dispersos no campo da discursividade. Nesse particular, a relação antagônica deve ser aqui entendida em seu sentido mais estrito. Antagonismo é 

a impossibilidade, segundo Laclau (1993), da constituição da objetividade. 

Isso quer dizer que, em função do sistema discursivo estar disposto numa lógica relacionai e antagônica com outros discursos, seus conteúdos particulares  

estão sempre alterando seus sentidos. Esse constante “alterar de sentido” provocado pela relação antagônica, impede a objetividade sistêmico-discursiva, ou seja, seu sentido finalístico ou objetivo é impossível.

E importante termos presente de que não se trata de uma incoerência,  apesar de ser certamente um paradoxo - mesmo considerando as categorias 

de irritação, em Luhmann, e antagonismo, em Laclau - dizer que a produção 

de sentido num sistema opera-se internamente em seus limites. A auto-

15 Neste particular, desenvolvemos em outro momento a categoria da “dupla impossibilidadeda constituição discursiva última” no interior da Teoria do Discurso, a qual coloca o antagonismo como uma das possibilidades da impossibilidade da constituição de sentidos finalísti-cas de uma formação discursiva. A outra impossibilidade reside justamente na incessante incorporação e/ou perda de sentidos que um discurso pode articular no momento do funcionamento auto-referente dc suas estruturas (Mendonça, 2003).

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referência é, como mesmo apontou Luhmann, óbvia, tendo em vista que, se 

assim não fosse, não poderíamos em absoluto conceber a idéia de sistema,  pois, sem a auto-referência, o sistema não constituiria sua identidade - e sua conseqüente diferença - em relação aos outros sistemas.

C o n s i d e r a ç õ e s f in a i s

As Ciências Sociais, talvez pela sua própria história para constituir-se 

como ciência no seio das chamadas “Ciências naturais” iluministas, têm sido a área do conhecimento que mais busca, discute e experimenta metodologias  

na construção do conhecimento científico. Ao contrário do que o douto imaginário do mundo científico muitas vezes crê, o cientista social tem por oficio  uma contínua reflexão sobre os fundamentos epistemológicos e metodológicos de sua prática científica, dada à instabilidade e a ética que tem de enfrentar e lidar, respectivamente, no seu cotidiano com o “seu” objeto.

Da mesma forma que o mecanicismo, o funcionalismo, o estruturalismo, o historicismo têm posto luzes em muitas reflexões, na busca de construções  

de modelos científicos explicativos da realidade como dimensão fenomênica,  o pensamento sistêmico auto-referente, tem-se apresentado, no âmbito inter

disciplinar — transpondo os preconceitos da clássica partilha metodológica  iluminista entre ciências “exatas e naturais” e “ciências das humanidades” —  como uma possibilidade epistêmico-metodológica profícua para a chamada “redução da complexidade” do mundo contemporâneo.

O capítulo que ora concluímos, mesmo tendo sido fruto de uma longa in-  terlocução entre os seus autores, não tem qualquer outra pretensão senão a de 

abrir o debate, na nossa esfera acadêmica, não apenas no que se refere à fertilidade da Teoria Geral do Discurso de Emesto Laclau e da Teoria Geral dos 

Sistemas Sociais de Niklas Luhmann, mas principalmente sobre as possibilidades de suas aplicações nas diferentes esferas organizacionais.Buscamos, ao longo deste trabalho, estabelecer algumas similaridades 

possíveis entre pressupostos das Teorias do Discurso e dos Sistemas Sociais, tendo sempre presente o fato de que estamos lidando com duas perspectivas  

teóricas diferentes, mas que, como observadores de segunda ordem, como diria Luhmann, percebemos a existência da possibilidade de comensurabilidade 

conceituai entre ambas. Portanto, as correlações conceituais que realizamos  

entre as duas teorias sociais, expostas neste trabalho, se constituem num pequeno exercício teórico frente à riqueza da totalidade da obra de Laclau e de Luhmann. Muitos outros esforços, neste sentido, podem, e devem ocorrer, principalmente se levarmos em conta a necessidade que tem uma sociedade com o a nossa - referimo-nos à América Latina - de pensar a sua heterogenei- dade e, por conseguinte, uma epistemologia de maior complexidade.

9 8 Daniel de Mendon ça e Léo Peixoto Rodrigues

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Política e subjetividade no pensamentode Ernesto Laclau

Mirta A. Giacaglia 

------------ ♦------------

Atravessamos uma época histórica na qual as concepções politicas dominantes nos últimos séculos encontram-se saturadas e não aparecem alternativas claras diante das imposições do assim chamado pensamento único.  Diante 

desta nebulosidade do politico, a reflexão sobre a política e o sujeito torna-se 

um tema crucial para fugir da inquietação que sentimos diante do fato de que os Estados, e isto toma-se mais dramático em países vulneráveis como os 

nossos, limitam-se a administrar inadequadamente fluxos de capitais transna-  cionais, com as terríveis conseqüências sociais a isso associadas. Se como  

afirma Slavoj Zizek, a grande novidade da atual era pós-política é a despoliti- zação radical da esfera econômica, surge como tarefa inevitável a necessidade  de uma repolitização da economia.1Mas cabe então perguntar: é possível esquecer a política? A retirada ou eclipse da política não é também o efeito de 

uma decisão que é em si mesma política? O que nos obriga, ao mesmo tempo,  a questionar-nos acerca de como pensar a política e se existem hoje condições  para a constituição de um sujeito político capaz de articular um novo horizonte emancipatório. Estas perguntas tomam-se questões-chave para recuperar o momento de instituição do político e projetar o futuro.

No campo do pensamento pós-marxista, Emesto Laclau é o principal representante da corrente de idéias denominada Teoria do Discurso2 que envol

ve diversas disciplinas (política, filosofia, lingüística e psicanálise) e tradições teóricas. A mesma constitui uma configuração conceituai crítica da racionalidade ocidental e sua metafísica da presença, que se estrutura em tomo  

da crítica de todo essencialismo, o caráter incompleto e contingente do social,

1 Slavoj Zizek, The iicklish subject,  It’s the Political Economy, Stupid, Verso, London, 1999, p. 353.

2 Também designada Análise política de discurso.

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a elaboração de uma concepção de discurso na qual se acentua o caráter flutuante do signo, a idéia de sobredeterminação e o caráter constitutivo da argumentação e a proposta de uma democracia radical. Retomando diferentes  tradições do marxismo e articulando-as com a hermenêutica pós-heideg-  

geriana, o pós-estruturalismo, a psicanálise lacaniana e a filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein, esta corrente fornece-nos pistas para imaginar  possíveis trilhas que permitam encontrar algumas respostas para os questionamentos que formulamos acerca de por que existe acontecimento e não mera repetição, a relação entre situação e acontecimento, estrutura e inexplicabili-  

dade. Em seu projeto de repensar o socialismo e reformular um programa político para a esquerda, dentro das novas condições surgidas a partir do final do século XX, Laclau pensa a pós-modemidade como um processo de “ero

são e desintegração de categorias tais como ‘fundamento’, ‘novo’, ‘identidade’, ‘vanguarda’, etc. não pode ser, portanto, a simples rejeição da modernidade, e sim uma nova modulação de seus temas e categorias, uma maior proliferação dos jogos de linguagem em que é possível embarcar a partir dela”/  que traça um novo horizonte possível do conjunto de nossa experiência cultural, filosófica e política.

D i s c u r s o

Para refletir sobre os temas que nos preocupam, a partir da proposta de 

Emesto Laclau, analisaremos, em primeiro lugar, seu conceito de discurso,4 cuja compreensão consideramos chave, já que seu pensamento articula-se em  

tomo dessa noção.A concepção do espaço social como discurso parte da idéia de que toda  

configuração social é uma configuração significativa. Tomando um exemplo 

inspirado em Wittgenstein, Laclau desenvolve sua concepção de discurso. Na construção de um muro, diz ele, o ato de pedir um tijolo é lingüístico, o ato de colocá-lo na parede é extralingüístico. Mas esta distinção não esgota a realidade de ambos atos. As duas ações compartilham uma operação total que é a 

construção da parede.Como caracterizamos essa totalidade que inclui, como momentos par

ciais, elementos lingüísticos e não-lingüísticos? Esta totalidade é o que chamamos de discurso. Por discurso não entendemos, então, uma combinação de 

fala e escrita, mas, pelo contrário, a fala e a escrita são apenas componentes internos das totalidades discursivas. Por exemplo, se dou um pontapé num ob

 jeto esférico na rua ou se dou um pontapé numa bola durante um jogo de fu

3 Emesto Laclau, “Política y los limites de la modemidad” en VVAA, Debates Políticos Contemporâneos, Plaza y Valdés, México, 1998, p. 56-57.

4 Emesto Laclau,  Nuevas rejlexiones sobre In revolución de nuestro tiempo,  Nueva Vision,Bs. As., 1993, p. 114.

Política e subjetividade no pensamento de Ernesto Laclau 10 1

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tebol, a ação física é a mesma, mas sua significação é diferente. O objeto é uma bola de futebol somente na medida em que se estabelece um sistema de 

relações com outros objetos, e estas relações não estão dadas pela mera referência material dos objetos, mas são, pelo contrário, socialmente construídas. 

É este conjunto sistemático de relações que chamamos de discurso.O caráter discursivo de um objeto não pressupõe colocar em questão sua 

existência. Um objeto somente é tal na medida em que está integrado a um 

sistema de regras socialmente construídas, e isto não significa que ele deixa  de existir como objeto físico. A existência dos objetos é independente de sua  

articulação discursiva. Devemos, então, diferenciar o existente (o objeto aqui e agora) da realidade (o que se fala desse objeto). Ou seja, uma pedra existe  independentemente de todo sistema de relações sociais, mas será um projétil  

ou um objeto de contemplação estética, etc. somente dentro de uma configuração discursiva específica. Um diamante no mercado ou no fundo de uma mina é o mesmo objeto físico, mas somente é uma mercadoria dentro de um  

sistema determinado de relações sociais. Do que antecede podemos concluir, então, que a realidade é uma construção social enquanto é construída ao sig- nificá-la. Por esta mesma razão, é na discursividade que se constitui a posição  

do sujeito como agente e não é o agente social quem é a origem do discurso.A partir de Wittgenstein a separação entre significado e uso (semântica e 

pragmática) toma-se nebulosa. O significado de uma palavra é totalmente dependente de seu contexto. Toda identidade ou objeto discursivo constitui-se  

no contexto de uma ação. Toda ação não-lingüística também tem um significado. A distinção entre elementos lingüísticos e não-lingüísticos não se sobrepõe à distinção entre significativo e não-significativo, mas a primeira é uma distinção secundária que ocorre no interior das totalidades significativas.

Os fatos naturais são também fatos discursivos devido a que a própria natureza é o resultado de uma construção histórico-social. Não há nenhum fato  

cujo sentido possa ser lido de maneira transparente, do mesmo modo que não há nenhum fato que possa provar de modo definitivo uma teoria, já que não existe garantia de que esse fato não possa ser explicado de um modo mais adequado (ou seja, determinado em seu sentido) por uma teoria posterior e 

mais abrangente.A idéia de que o ser dos objetos é construído discursivamente no devir,  

pressupõe afirmar uma ontologia historicista, antiessencialista e pós- 

fundacionalista.

H e g e m o n i a

Outro conceito central para Laclau é a categoria de hegemonia, já que a expansão da lógica implícita no conceito de hegemonia oferece novas ferramentas teóricas para pensar as atuais lutas sociais na sua especificidade e es

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boçar um projeto político que articule socialismo e democracia no campo do  pós-marxismo. Diante do racionalismo do marxismo clássico e sua concepção  de desenvolvimento necessário da história de acordo com leis, a categoria de  

hegemonia propõe o tema da contingência dentro da história, constituindo 

desta maneira uma contribuição fundamental para refletir sobre nossa complexa  realidade.

Ao longo da história do pensamento político do século XX, o conceito de  

hegemonia surge como resposta para uma crise que questiona as categorias  tradicionais do marxismo para explicar a contingência. A reformulação do marxismo em tomo de uma teoria da hegemonia requer, por um lado, determinar quais são os posicionamentos de cuja articulação depende uma transformação histórica ou a constituição de uma nova hegemonia e, por outro, entender tais articulações como formas históricas concretas e sobredetermina- 

das, e não como etapas predeterminadas ou relações necessárias resultado do desdobramento de leis da história. A análise da sociedade em tomo da idéia de hegemonia exige a articulação contingente dos elementos e a produção de 

subjetividades a partir dessas relações articulatórias, superando assim a idéia  

essencialista de sujeitos pré-constituídos.A noção de hegemonia vem ocupar o espaço teórico aberto pela crise  

profunda que sofre o pensamento marxista a partir da Primeira Guerra Mundial, diante da impossibilidade que enfrenta de construir um projeto político 

em termos de lutas e alianças de classe, como conseqüência da abertura de 

uma etapa histórica na qual a proliferação de novas contradições exige outra 

concepção de sujeito e a necessidade de entender as lutas sociais como práticas articulatórias. Neste contexto de crise, marcado pela experiência da fragmentação e da indeterminação das relações entre diferentes lutas e posições  

de sujeito, a noção de hegemonia constitui a tentativa de proporcionar uma 

resposta diante da quebra da categoria de “necessidade” propondo o tema da  contingência dentro da história.Antonio Gramsci (1891-1937), dirigente comunista prisioneiro nos cár

ceres do fascismo, reflete sobre a derrota de uma revolução e os caminhos  que possam conduzir à vitória de outra. Sua obra, enquanto pensamento sobre 

o Estado e a sociedade civil, visando sua transformação radical é, dentro do 

campo do marxismo, essencialmente política. Na categoria de “bloco histórico”, Gramsci tentou encontrar uma explicação teórica que permitisse sair do 

beco sem saída no qual se encontrava o marxismo ocidental nas primeiras décadas do século XX. A teoria gramsciana sustenta-se na participação pessoal  

de seu autor nos conflitos políticos da época, e em um estudo minucioso da 

história européia.Gramsci transforma a categoria de hegemonia em um conceito totalmente  

novo dentro do discurso marxista (já que vai além da mera aliança de classes)  

visando teorizar sobre as estruturas políticas do poder capitalista que não ha

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viam existido na Rússia czarista. A partir das análises de Maquiavel sobre o 

príncipe, a violência e a traição, Gramsci reformulou o conceito de hegemonia para refletir sobre a complexidade e a especificidade da dominação da burguesia na Europa ocidental, que tomavam inviável a repetição da Revolu

ção de Outubro nos países capitalistas mais desenvolvidos do resto do continente. Como afirma Perry Anderson,5 este sistema hegemônico de poder defi- 

nia-se pelo grau de consenso que obtinha das massas populares que dominava e pela conseguinte redução na quantidade de coerção necessária para reprimi- las. Seus mecanismos de controle para garantir esse consenso residiam em 

uma rede ramificada de instituições culturais (escolas, Igreja, partidos, associações, etc.), que manipulavam as massas exploradas através de um conjunto de ideologias transmitidas pelos intelectuais, gerando uma subordinação pas

siva. A dominação burguesa fortalecia-se também pela adesão de classes secundárias aliadas, formando um compacto bloco social sob a direção política  da classe dominante: “a flexível e dinâmica hegemonia exercida pelo capital sobre o trabalho no ocidente, mediante esta estrutura consensual estratificada foi, para o movimento socialista, uma barreira muito mais difícil de transpor que aquela encontrada na Rússia” (Anderson, 1987, p. 100). Esta ordem política podia conter e suportar as crises econômicas do tipo que os marxistas anteriores haviam considerado como a alavanca fundamental da revolução sob o 

capitalismo. Não permitia um ataque frontal do proletariado, de acordo com o modelo russo. Para enfrentá-lo, seria necessária uma longa e difícil “guerra de 

posições”.6Gramsci define a hegemonia como “direção política, intelectual e moral”. 

Nesta definição cabe distinguir dois aspectos: (1) o mais propriamente político, que consiste na capacidade que uma classe dominante tem de articular os  interesses de outros grupos com os seus, tomando-se assim o elemento central de uma vontade coletiva, e (2) o de direção intelectual e moral, que indica as 

condições ideológicas que devem ser cumpridas para que a constituição dessa vontade coletiva seja possível. A novidade na concepção gramsciana de hegemonia é o papel que ele outorga à ideologia. Esta não é para ele um sistema 

de idéias nem se identifica com a falsa consciência dos atores sociais, mas  constitui um todo orgânico e relacionai encarnado em aparatos e instituições,  um cimento orgânico que unifica, em tomo de certos princípios articulatórios 

básicos, um “bloco histórico” e práticas produtoras de subjetividades no processo de transformação social. Para Gramsci, os homens tomam consciência de si e de suas tarefas no contexto de uma determinada concepção do mundo,

5 Este pensador inglês tem estudado o surgimento e desenvolvimento desta categoria em suasobras Consideraciones sobre el marxismo Occidental,  Siglo XXI, México, 1987 e  Las anti

 nom ias d e Gramsci,  México, Era, 1979.6 Perry Anderson, Con sideraciones sobre el marxismo Occidental,  Siglo XXI, México, 1987,

 p. 100.

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e toda possibilidade de transformar a sociedade passa necessariamente pela modificação desta concepção do mundo.

A partir do conceito de bloco histórico e de ideologia como cimento orgânico que o unifica, introduz uma nova categoria totalizadora que supera a 

distinção base/superestrutura. Produz assim um deslocamento (ao romper com a concepção reducionista da ideologia e superando, ao mesmo tempo, o reducionismo da classe que identifica o sujeito revolucionário com a classe  

operária) já que os sujeitos políticos não são “classes”, no sentido estrito do  termo, e sim “vontades coletivas” complexas que são o resultado da articulação político-ideológica de forças históricas dispersas e fragmentadas. Fica clara aqui a importância do aspecto cultural. Todo ato histórico é levado a 

cabo pelo “homem coletivo”, o que pressupõe alcançar uma unidade “cultu- 

ral-social” através da qual uma multiplicidade de vontades dispersas, com ob jetivos heterogêneos, se unem em tomo de um fim que tem por base a mesma concepção do mundo. A hegemonia, entendida no sentido gramsciano como  

articulação, amplia o campo da contingência histórica no âmbito das relações  sociais, já que os diferentes “elementos” ou “tarefas” sociais perdem a conexão essencial que os caracterizava na concepção etapista, e seu sentido vai  depender agora de articulações desprovidas da garantia outorgada pelas leis 

da história, carecendo assim de toda identidade à margem de sua relação com  

a força que os hegemoniza.Ernesto Laclau, juntamente com Chantal Mouffe, retoma criticamente a 

construção gramsciana em seu livro  Hegemonia e estratégia socialista   indicando os limites da mesma, pois “baseia-se numa concepção que não consegue superar plenamente o dualismo do marxismo clássico. Porque, para Gramsci, inclusive se os diversos elementos sociais têm uma identidade apenas relacionai, obtida através da ação de práticas articulatórias, tem que haver sempre “um princípio unificador em toda formação hegemônica, e este deve  

ser referido a uma classe fundamental. Com isso vemos que existem dois princípios da ordem social (a unicidade do princípio unificador e seu caráter  necessário de classe) que não são o resultado contingente da luta hegemônica, mas sim o marco estrutural necessário dentro do qual acontece toda luta hegemônica. Ou seja, que a hegemonia da classe não é inteiramente prática e resultante da luta, mas tem, em sua última instância, um fundamento ontológico . A infraestrutura não confere à classe operária sua vitória, mas esta depende 

de sua capacidade de liderança hegemônica; mas a uma falha na hegemonia operária somente pode responder uma reconstituição da hegemonia burguesa. A luta política continua sendo, finalmente, um jogo sem valor algum entre as  classes. É este o último núcleo essencialista que continua presente no pensamento de Gramsci”.7 Mas, como também afirmam Laclau e Mouffe, a partir

7 Ernesto Laclau y Chantal Mouffe,  Hegemonia y estralegia socialista. Hacia una radicaliza- cián de la democracia, Siglo XXI, Madrid, 1987, p. 80.

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da teoria gramsciana da hegemonia, a política é concebida como articulação e 

aceita-se a complexidade social como condição da luta política, compatível com uma pluralidade de sujeitos históricos. E embora a lógica da hegemonia  não desdobre todos seus efeitos desconstrutivos no espaço teórico do mar

xismo clássico, cai o reducionismo de classe na medida em que a unidade e a própria homogeneidade dos sujeitos de classe desagrega-se em um conjunto  

de posições precariamente integradas.Como dissemos, hegemonia define-se como a conquista de uma liderança 

moral, intelectual e política, através da expansão de um discurso que fixa um significado parcial em tomo de pontos nodais. Envolve mais do que um consenso passivo de ações legítimas: envolve a expansão de um determinado discurso de normas, valores, pontos de vista e percepções através de redescri- 

ções persuasivas do mundo. A lógica da hegemonia constitui uma lógica da articulação e da contingência.

A articulação deve ser entendida como uma prática que estabelece um tipo de relações entre elementos que faz com que a identidade dos mesmos se modifique como resultado da prática articulatória. A articulação de elementos 

dentro de um discurso hegemônico ocorre na conflituosa área do poder e da contingência, e incluirá sempre momentos de força e de repressão. Deve-se a 

isto que a não-fixação seja a condição de toda identidade social. Na medida 

em que não existe um vínculo necessário entre a tarefa e a classe que a hege-  moniza, a identidade dos agentes sociais tem um caráter puramente relacionai enquanto construída a partir de sua articulação no interior de uma formação  

hegemônica. E como todo sistema de relações é instável e não-fixo, toda 

identidade toma-se precária, provisória e parcial. Em conseqüência, não há relação necessária entre socialismo e as posições dos agentes sociais nas relações de produção. Desta perspectiva, a introdução do conceito de sobrede- terminação é chave para entender a lógica específica das relações sociais.8

A sociedade não deve ser entendida, então, como um espaço suturado.9Toda estrutura discursiva é o resultado de uma prática articulatória que orga

O conceito de sobredeterminação foi introduzido no âmbito das ciências sociais e da filosofia por Althusser que toma da psicanálise a idéia de multiplicidade de determinações. Para ofilósofo francês, este conceito faz alusão à multiplicidade de determinações, determinaçãorecíproca, fusão de contradições e determinação em última instância. Laclau e Mouffe retomam o conceito, mas criticam o essencialismo althusseriano e radicalizam a categoria de so

 bredeterminação a partir do estabelecimento de novas articulações entre psicanálise e hegemonia, reformulando-a a partir da critica da noção de identidade plena.

9 A categoria de sutura é proveniente da psicanálise lacaniana, a qual designa a relação do su jeito com a cadeia de seu discurso, que denomina não apenas uma estrutura de falta, mastambém a disponibilidade do sujeito a certo fechamento. Laclau c Mouffe estendem o conceito de sutura para o campo da política, destacando este duplo movimento. As práticas hegemônicas são suturadoras na medida em que seu campo de ação está determinado pelaabertura do social, pelo caráter finalmente não-fixo de todo significante. Esta falta origináriaé justamente o que as práticas hegemônicas tentam preencher.

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niza e constitui as relações sociais. Os antagonismos sociais e o deslocamento impedem o fechamento de toda estrutura. As práticas articulatórias hegemônicas definem sua identidade por oposição a práticas articulatórias antagônicas. O antagonismo descobre os limites de toda objetividade, pois que nunca 

está plenamente constituída. A sociedade não se apresenta, em conseqüência, como uma ordem objetiva e harmoniosa, mas como um conjunto de forças divergentes em conflito, impedindo a formação de identidades plenas. A constituição e a manutenção de uma identidade dependem, então, do resultado de uma luta que não é garantida por nenhuma lei  a prior i nem necessária da história. Partindo desta perspectiva, a categoria de hegemonia constitui um 

valioso e fundamental ponto de partida dentro do discurso contemporâneo para pensar o político, já que significa a articulação contingente de elementos  

em tomo das lutas dos agentes sociais concretos dentro de configurações sociais específicas.

Neste contexto, o poder não deve ser concebido como uma relação externa que acontece entre duas identidades pré-constituídas, mas como constitui-  dor das próprias identidades. Enquanto toda ordem é expressão de uma hegemonia, de um modelo específico de relação de poder, a prática política não  pode ser considerada como uma simples representação de interesses de identidades fixas e sim como constituinte destas mesmas identidades num terreno 

precário e sempre vulnerável. Se aceitarmos que as relações de poder são  constitutivas do social, a questão principal para uma política democrática não  

seria a eliminação do poder, mas a maneira de constituir formas de poder  

mais compatíveis com os valores democráticos.O importante na teoria da hegemonia é ver que toda universalidade nunca 

é uma universalidade com um conteúdo próprio; ela tem sempre um conteúdo  

particular que se universaliza e começa a representar a totalidade das demandas particulares equivalentes. Trata-se de pensar uma forma de produção do 

universal a partir do particular e não um universal que tenha um conteúdo  a  priori.   Partindo dessa concepção, tudo o que é universal não é mais que uma  particularidade que a partir de uma operação hegemônica ocupa o lugar de  

universal.A preocupação de Laclau concentra-se em repensar o político para avan

çar na instituição de uma democracia radical e plural. Nesta direção, a problemática gramsciana da hegemonia, acarreta uma transformação profunda da 

teoria marxista ao privilegiar o momento político na estratégia emancipadora e permitir, assim, sair do reducionismo economicista. A concepção de hegemonia pressupõe, por outro lado, “a superação da concepção estreita da política como atividade localizada somente na sociedade política e que sempre  pode ser mais ou menos assimilada com uma atividade de dominação [...] a política não é simplesmente luta pelo poder no interior de instituições deter

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minadas ou luta para destruir essas instituições, ela é também “luta pela transformação da relação da sociedade com suas instituições”.10

A categoria de hegemonia constitui uma ferramenta-chave para pensar a política, já que permite ir além da definição da política como relação  am igo- 

inimigo   e instaurar a distinção  amigo-adversário .  Isto significa que dentro da comunidade política é possível significar o opositor não como um inimigo 

que é preciso desarticular, mas sim como um  adversário   cuja existência é legítima e com quem é possível argumentar, pois embora suas idéias sejam  

combatidas não lhe é negado o direito a defendê-las. A categoria de inimigo não desaparece, mas deve ser aplicada àqueles que não se inscrevem dentro  da ordem dem ocrática .11 A tarefa de instituir uma nova ordem social pressupõe propor o tema da democracia em termos novos e mais complexos e assu

mir a urgência de construir novas hegemonias.A partir da teoria gramsciana da hegemonia, Laclau concebe a politica 

como articulação dentro do complexo tecido social compatível com uma pluralidade de sujeitos. A sociedade deve ser entendida como uma estrutura discursiva deslocada, atravessada por antagonismos que descobrem os limites de 

toda objetividade. Enquanto o vazio ou falha estrutural é condição da ação política, a hegemonia, conceituada como prática articulatória contingente de 

elementos em tomo das lutas dos agentes sociais concretos dentro de configu

rações sociais específicas, define o campo onde se constituem as relações políticas.

P o l ít i c a, s u je it o e em anc ip aç ão

As relações sociais, caracterizadas por sua contingência e historicidade, são sempre relações de poder. Enquanto o poder é condição de possibilidade  

e impossibilidade do social, transformar a sociedade, inclusive a partir do projeto de uma democracia radical, não significa a eliminação do poder, mas sim a construção de um novo poder. Em relação a estas questões, as noções de sedimentação e reativação trabalhadas por Laclau, constituem uma contribuição interessante para refletir acerca da primazia do político em relação ao social, e estabelecer diferenças entre o político e a política.

Para este autor, a distinção entre o político e o social ocorre em tomo do caráter sedimentado das relações sociais e do momento institucional constitu

tivo das mesmas. Usa, para isso, a distinção proposta por Husserl entre os conceitos de sedimentação e reativação, mas desenvolvendo-os seguindo uma

10 Chantal Mouffe,  Hegemonia, política e ideologia,  em Julio Labastida (coordenador), Laclau, E., Arico, J., de Ipola, E., Mouffe, Ch., Paramio, L., e outros, Hegemonia e alternativas 

 políticas na América Latina (Seminário de Morelia 1980),  Siglo XXI, México, 1985. p.137.

11 Chantal Mouffe, El retorno de lo político, Paidós, Barcelona, 1999, p. 16.

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direção diferente. Há, para Laclau, uma primazia do político com respeito ao 

social que decorre do fato de que as relações sociais são relações de poder. O momento de instituição originária do social coloca de manifesto sua contingência radical, pois que tal instituição é possível a partir da repressão de ou

tras alternativas antagônicas que foram descartadas como resultado de um ato de poder. Tomando a idéia de Husserl de que na medida em que um ato de instituição foi bem-sucedido, tende a haver um esquecimento de suas origens, Laclau sustenta que “o sistema de possibilidades alternativas tende a esvair-se e as pegadas da contingência originária tendem a apagarem-se. Deste modo, o instituído tende a assumir a forma de uma mera presença objetiva”.12 O momento da reativação não consiste no retomo à função originária mas somente no reconhecimento, através do surgimento de novos antagonismos, do caráter 

contingente de toda “objetividade”. Este processo de dessedimentação coloca  a descoberto os atos originários de instituição e a historicidade de suas origens, enquanto as formas naturalizadas revelam-se como contingentes. Para 

Laclau, as formas objetivas sedimentadas constituem o campo do social, enquanto que o momento antagônico no qual se toma visível a inefabilidade das  alternativas e seu fechamento através de relações de poder é o que configura  

o campo do político.A distinção entre o social e o político é constitutiva das relações sociais.  

Seria impossível existir uma sociedade na qual o político tivesse sido eliminado, pois ela ficaria reduzida a um âmbito fechado de práticas repetitivas.  Um ato de instituição pura, total e permanente, também é impossível, já que,  por um lado, toda instituição política ocorre no marco de um conjunto de práticas sedimentadas e, por outro, somente poderia ser o resultado de uma vontade onipotente, com o que apagaria a natureza contingente do instituído e,  portanto, seu caráter político. A política institui uma certa ordem e põe fim ao 

conflito que ameaça o social, mas toda ordem não é mais do que o resultado  de uma articulação hegemônica e, portanto, sempre provisória e parcial. A  sociedade como positividade plena é impossível e a permanência do político  

como força instituidora mostra os limites de toda instituição. Nenhuma ordem  pode fechar o jogo irredutível entre o movimento instituidor e o cenário instituído.

A partir desta análise, podemos estabelecer diferenças entre a política e o 

político, expondo a necessidade do  re torno do polí tico.  A política, entendida 

como espaço de atividades, práticas e procedimentos que se desenvolvem no  tecido institucional do sistema político, eqüivale ao caráter sedimentado das  relações sociais. O político, ao contrário, designa o momento institucional  constitutivo das mesmas. A política e o político constituem dois registros que  

se interpenetram e contaminam mutuamente, enquanto que a ordem da políti

12 Ernesto Laclau,  Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo  .Nueva Vision,Bs. As., 1993, p. 51.

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ca não põe fim ao conflito; somente regula seu modo de existência dentro do espaço institucional do Estado. O político é um movimento instável que não 

se define por marcos institucionais, ele ultrapassa o espaço institucional da política. O conflito é a condição do político e a política nada mais é do que a 

tencativa de domesticar esse conflito. O caráter instituidor do político permite  dessedimentar o estabelecido, desnaturalizar as instituições, reativando o momento constitutivo que suturou o conflito, permitindo o surgimento de no

vas hegemonias.Para Laclau, há acontecimento na medida em que uma diferença do inte

rior do sistema abandona seu caráter particular e assume a representação desse objeto impossível que é a sociedade. Se, por um lado, toda situação aparece socavada por uma falta radical; essa falta será compensada por certo signi

ficante que se constitui no significante da plenitude. Hegemonia, enquanto define a verdadeira área na qual se constituem as relações políticas, não significa a articulação de identidades preexistentes fixas: significa que as identidades se constituem no mesmo processo de articulação entre particularidade e universalidade.

Se a sociedade configura-se como um espaço ético-político, e isto pressupõe a contingência das articulações, como pensar o sujeito nesta luta para alcançar a hegemonia? Laclau coloca em questão tanto a idéia de subjetividade como efeito passivo das estruturas, como a de autodeterminação da subjetividade. O vazio estrutural é condição do surgimento do sujeito e da ação política, que produz o fechamento provisório da estrutura, uma vez que o fechamento sempre é impossível, já que aquela é constituída a partir da existência de uma exterioridade que, ao mesmo tempo em que a ameaça é a condição  que a toma possível. O sujeito define-se, então, como subversão da objetividade pela contingência. Neste sentido, todo sujeito (falta no interior da estrutura) é, por definição, político e somente se constitui nas bordas deslocadas daquela, já que sua identidade toma forma como parte do efeito de transformação produzido pelo processo de articulação hegemônica.

Enquanto o político restitui o lugar do acontecimento no devir histórico, permite-nos reproblematizar a questão do laço social e da representação. Para 

Laclau, estamos diante da desintegração dessa dimensão de globalidade que era inerente aos discursos emancipatórios modernos. Não foram conteúdos 

específicos desses projetos os que entraram em crise, mas a idéia de que o 

conjunto dessas reivindicações constituísse um todo unificado que alcançaria seu triunfo em um único ato fundacional levado a cabo por um agente privilegiado da mudança histórica.

O que está em questão não é este ou aquele ator universal, mas a própria categoria de ator universal, de revolução global e as pretensões fundacionalistas dos discursos emancipatórios. Já não temos de justificar nossas lutas diante do tribunal da história. A contingência e a parcialidade de nossas demandas

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permite o avanço, a expansão e a diversificação das lutas emancipatórias concretas, nas quais o próprio significado das reivindicações é construído discur-  

sivamente através dessa luta e a partir de práticas democráticas plurais: “é  justamente este declínio dos grandes mitos da em ancipação, da universalidade e da racionalidade, o que está tomando as sociedades mais livres: sociedades nas quais os seres humanos vêem a si mesmos como construtores e agentes da  mudança de seu próprio mundo e percebem, portanto, que não estão ligados a 

nenhuma instituição ou forma de vida pela necessidade objetiva da história”.13

Diante das exposições que inserem todo evento histórico numa continuidade essencial, Laclau afirma a noção de acontecimento como parte de uma história descontínua que produz uma exceção no social sedimentado e faz supor que existam cortes radicais. Entre situação e acontecimento ocorre uma relação de contaminação, ou seja, a situação aparece cruzada por lógicas que  prenunciam o acontecimento. Para este pensador, a universalidade do acontecimento é a universalidade de um significante vazio. O sujeito é consubstanciai com um ato contingente de decisão, o processo de subjetivação deve ser  entendido como o gesto de identificar a universalidade vazia com algum conteúdo particular que a hegemoniza.

Entre os temas cruciais de hoje, em relação ao problema da política, destaca-se o problema da representação. Uma das diferenças básicas entre as 

democracias modernas e as antigas, reside no fato de que nas complexas sociedades contemporâneas as formas diretas já não são possíveis, por isso as democracias modernas são necessariamente representativas. Em conseqüência, a ressignificação do conceito de democracia hoje, requer uma reflexão  

também sobre a idéia de representação. Nesta direção, as propostas de Ernesto Laclau permitem abrir novas perspectivas de análise em relação a essa ca

tegoria.14 Este pensador sustenta que a representação é o processo pelo qual o  representante “substitui” e, ao mesmo tempo, “encarna” o representado. Para que se apresentem as condições de uma perfeita representação, a vontade do representado deve estar plenamente constituída, e o papel do representante 

deve esgotar-se nessa função de intermediação. Mas nem do lado do representante nem do lado do representado ocorrem as condições de uma perfeita 

representação, como conseqüência da própria lógica inerente a esse processo,  já que pertence à essência da representação o fato de que o representante te

nha de contribuir para a identidade do representado e não é possível, por outro lado, uma transmissão completa e transparente da vontade do representado. Há uma opacidade no processo de representação, que é ao mesmo tempo

13 Emesto Laclau,  Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo,  Nueva Visión,Bs. As., 1993, p. 226.

14 Emesto Laclau, “Poder y representación”, em Emancipación y diferencia.  Ariel, Argentina,1996.

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sua condição de possibilidade e de impossibilidade. Para Laclau, o fato de 

não poder haver uma relação de representação pura ou perfeita, não faz supor que o conceito de representação deva ser abandonado. O problema consiste,  então, em que a “representação” é o nome com que se designa um jogo inefá

vel a partir do deslocamento entre relações de equivalência e diferença, cujas  operações não constituem um mecanismo racionalmente unívoco, já que existe uma impossibilidade estrutural de representar a totalidade do espaço social como sistema sem exclusões; e é por isso que toda relação social se constitui como relação hegemônica. Enquanto a representação é constitutiva do social,  a democracia radical constitui-se nessa tensão, já que em sociedades complexas ninguém pode instituir-se como representante do interesse geral. Essa invocação é, então, o resultado de uma construção hegemônica a partir da qual 

um particular encarna um universal, mas sempre haverá uma defasagem, uma distorção entre o particular e a articulação hegemônica. Em conseqüência, se não podemos fugir do processo de representação, deve-se tender à construção  

de alternativas democráticas que multipliquem os pontos a partir e em torno dos quais opera a representação. Por esta razão, o argumento de Claude Le- fort, que expressa que com a chegada da democracia, o lugar do poder toma-  

se vazio, deveria ser suplementado, afirma Laclau, com a afirmação de que a democracia requer a constante e ativa produção desse vazio. Se a representa

ção é constitutiva de toda relação hegemônica, a eliminação da representação é a ilusão que acompanha a noção de emancipação total.

Para Laclau, longe de experimentarmos hoje um processo de despolitiza- 

ção e de uniformização, assistimos a uma politização das relações sociais muito mais profunda do que em qualquer momento anterior. “Repensar uma alternativa radical democrática para o século XXI requer inúmeras intervenções discursivas, que vão da política (no sentido corrente do termo) à economia, e da estética à filosofia [...]. E este princípio de democratização é, desde  logo, compatível com uma ampla variedade de acordos sociais concretos que 

dependem de circunstâncias, problemas e tradições. É na multiplicação de espaços públicos, e de seus grupos de referência, além daqueles aceitos pelo liberalismo clássico, que se encontra a base para a construção de uma alternativa democrática radicalizada. E não há nada de utópico na proposição desta alternativa, tendo em vista a crescente fragmentação dos setores sociais e a proliferação de novas identidades e antagonismos nas sociedades em que vive

mos.”15 A natureza plural e fragmentada das sociedades contemporâneas abre um terreno de inefabilidade que permite estabelecer uma pluralidade de lógicas equivalenciais que tomam possível a construção de novas esferas a partir de uma política democrática hegemônica.

15 Emesto Laclau,  Nuevas rejlexiones sobre la revolución de nuestro tiempo.  Nueva Vision,Bs. AS., 1993, p. 15.

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A crise de representação que as sociedades atuais vivenciam dá lugar a 

novas subjetividades e ao surgimento de novos movimentos sociais provenientes daqueles que não se sentem representados pelas instituições existentes, o que permite expandir as lutas democráticas numa pluralidade de direções e 

estabelecer uma multiplicidade de lógicas equivalenciais que tomam possível a construção de novas esferas a partir de uma política democrática hegemônica. Neste contexto, devemos reconhecer, também, o impacto deslocador e libertador da politização pós-moderna de novos espaços, e a proliferação de 

demandas democráticas que ampliam o campo das lutas emancipatórias: feminismo, homossexualismo, ecologia, minorias étnicas, religiosas, etc. e o surgimento dos movimentos antiglobalização, dos Sem-Terra, do EZLN, dos  piqueteiros, etc. Nas condições do mundo globalizado contemporâneo, o sur

gimento e a proliferação de antagonismos produzem uma série de explosões  sociais que vão convergindo para a constituição de agentes cuja identidade  

passa pela interiorização crescente de uma multiplicação de deslocamentos  que permitem recuperar o impulso instituidor do político. Para Laclau, trata- 

se de refletir acerca da impossibilidade do esquecimento do político e de sustentar a necessidade de um retomo, reativação ou reinvenção que permita o  

surgimento de uma multiplicidade de lutas emancipatórias pelo reconhecimento.

Cabe, então, questionar-se sobre a possibilidade da construção de uma  verdadeira democracia radical e plural. Nesta direção, consideramos que a 

proposta de Chiapas ilumina o debate ao inaugurar uma nova forma de pensar  

e de fazer política, um esforço para reinventar a política de emancipação, a 

partir da idéia de que seu objetivo não é a tomada do poder do Estado, nem  

de ser vanguarda nem partido politico, mas reconhecer-se como uma vontade anônima e coletiva que não representa ninguém.

Acreditamos que a pergunta central que hoje nos comove é como podemos constituir-nos em sujeitos capazes de reformular projetos políticos emancipatórios que rompam com o consenso estabelecido na era do capitalismo  global. A partir deste horizonte não é possível esquecer a política porque seu  

esquecimento seria a negação do sujeito, o fim da história. Como afirma Ernesto Laclau: “o futuro é certamente indeterminado e não está garantido; mas  

por isso mesmo tampouco está perdido. A atual expansão das lutas democráticas na arena internacional dá lugar para um otimismo cauteloso”.16

16 Emesto Laclau, op.cit. p 98.

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Comum é-lhes o recurso a uma legitimação externa para seus objetivos e a transferência desta para a existência e ação do movimento.

Aí reside uma segunda questão para a análise de movimentos sociais no marco da teoria dos sistemas. Movimentos sociais via de regra agem em tomo 

do limite da legalidade - inclusive freqüentemente além dela, como forma de romper situações limitantes dadas. Tal transposição de limites não é adereço  ocasional, mas parte central da estratégia de atuação de movimentos sociais  

que os diferencia de outras formas coletivas de pressão como os lóbis. A  deficiência de legalidade aí inerente aos movimentos buscam compensar com  uma oferta de sentido que os coloque como representantes legítimos da causa  por eles defendida. Mas a teoria dos sistemas de Luhmann rejeita categoricamente legitimaçoes externas. Como, então, analisar os movimentos  

sociais na ótica desta teoria sem violentá-los nesta característica e, ao mesmo  tempo, sem precisar aceitar seu modo operacional enquanto tal?

Embora ainda pouco difundido entre nós, há entre os impulsionadores da 

teoria dos sistemas proposições para estas duas questões. Delas nos ocuparemos abaixo, logo após uma leitura da teoria dos sistemas orientada 

pelo objeto do presente estudo.

T e o r i a s i s t ê m i c a p ó s - f u n d a c i o n a l d e L u h m a n n

A teoria dos sistemas de Luhmann atingiu um grau elevado de  complexidade e maturidade e de maneira alguma seria possível sintetizá-la  

aqui. Não obstante, para os propósitos da discussão sobre os movimentos  sociais convém destacar alguns de seus aspectos centrais relevantes para o  

caso.Luhmann distingue claramente entre os sistemas vivos em geral, sistemas  

psíquicos e sistemas sociais. Ao primeiro tipo são associados os seres vivos  como plantas e animais; ao segundo as pessoas; ao terceiro, as relações  sociais. Em sua teoria este autor se ocupa basicamente de sistemas sociais.  Surpreendente para quem está acostumado a pensar em categorias de tradições humanistas é a separação categórica entre sistemas psíquicos e sociais: os primeiros não são parte, mas tão-somente ambiente para os 

segundos.Em sua concepção geral, a teoria dos sistemas de Luhmann se insere na 

tradição evolucionista que caracterizou a Sociologia desde seus inícios. Os sistemas sociais são vistos como estando em permanente mudança; o constante aumento de complexidade e seu correlato, a diferenciação2 seriam a

2 Sobre as teorias sociológicas da diferenciação, cf. Schimank (1996); o cap. 4 trataespecificamente de Luhmann. Willke (cf. Willke et al., 2000) defende que na concepção desociedade de Luhmann decisivo não é a diferenciação, mas a diferença (observação doobservador). Esta leitura parece questionável, porquanto o surgimento de novos sistemas,

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expressão desta mudança. NoJongo prazo, a diferenciação pode ser descrita como evolução, e depende da conjugação de mecanismos de variação, seleção e estabilização. No interior deste processo, a diferenciação resulta em  

novos sistemas especializados.

Os sistemas sociais formam-se, assim, no contexto de aumento de com plexidade e sua rèduçãõ ^via^ clifefenciação a partir das estratégias de 

solução de problemas do sistema original; eles contribuem pára estabilizar expectativas ou então para superar de forma especializada problemas que se 

tomam agudos.Com sua perspectiva evolucionista, a teoria dos sistemas coloca em  

xeque dois postulados que perpassam, em graus variados, a imensa maioria das teorias sociológicas clássicas e contemporâneas, apegadas ao humanismo. 

Ela n e g a a  pnssihilidade de postularem-se objetivos de mudança social (utopias, planejamento) e de fundamentação de teoria sociológica sobre o 

binomio sujeito-objeto. A evolução não é programável nem previsível, nem tem a pessoa humana como impulsionadora ou como referência;3 ela depende 

da contingência presente em cada operação do sistema observado pelo 

próprio sistema.Um postulado básico é o da auto-referência, segundo o qual os sistemas  

constituem seus elementos constituintes e processam suas operações 

elementares unicamente a partir de si próprios, voltados para si mesmos e em clara distinção face ao..seu ambiente. Essa distinção permite a unidade? dos 

sistemas que, aa_constituírem seus próprios elementos, suas estruturas, são 

também autopoiéticos.Os sistemas são definidos como sendo fechados e constituídos 

basicamente da distinção sistema-ambiente. Não há possibilidade de 

interferência deles no ambiente nem do ambiente neles. Sua relação com o 

ambiente ocorre através daquilo que Luhmann, seguindo Maturana, denomina  

acoplamento estrutural; embora determinados sistemas só sejam possíveis em determinados ambientes, a comunicação sistema-ambiente se dá tão-somente através de “irritações” ou estímulos, cuja recepção e eventual processamento  

dependem exclusivamente do sistema.Característico do ambientç dos sistemas é -sua complexidade; tanto na 

origem como na continuidade dos sistemas coloca-se a necessidade de reduzir esta complexidade. O sistema seleciona permanentemente os elementos entre 

os quais estabelece relações e aqueles que ignora. Nem tudo o que acontece  no ambiente encontra ressonância nas estruturas processuais do sistema.

central para a garantia de possibilidade da própria reprodução funcional, está visceralmenteligado à redução de complexidade via diferenciação.

3 Luhmann raramente faz referência ao ser humano (Mensch),  preferindo justam ente referir-sea pessoa (Person), que remete ao desempenho em ato ao invés da ontologia.

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Por outro lado, na teoria sistêmica os sistemas e suas estruturas diferem  muito daquilo que classicamente se tem visto como “estruturas” na Sociologia: as estruturas são efêmeras e necessitam ser permanentemente reproduzidas, adaptadas, renovadas. O sistema precisa reproduzi-las 

constantemente sob pena de deixar ele mesmo de existir. E esta necessidade  intrínseca e vital do sistema que o toma extremamente sensível ao seu  ambiente e às possibilidades de conectividade com ele, levando-o a 

desenvolver mecanismos de observação altamente sensíveis.Dois destes mecanismos de observação - o direito e os movimentos 

sociais - são alocados funcionalmente por Luhmann no contexto do conflito em sistemas sociais. .

M o v i m e n t o s s o c i ai s e d i r ei to  c o m o s i s te m a i m u n o l ó g ic o

Em seu clássico Sistemas sociais: esboço de uma teoria geral,  publicado originalmente em 1984, Luhmann (1994) dedica o nono capítulo à questão 

das contradições e conflitos, para colocar, de forma algo surpreendente, o 

direito e os movimentos sociais como antídotos da desintegração do sistema  

social, fazendo as vezes de sistema imunológico. Sua argumentação é que contradições podem se tomar conflitos que podem/deveriam ser  

“encauçados” pelo direito ou por movimentos sociais.Luhmann vê o surgimento de contradições como algo extremamente 

corriqueiro em e mesmo inerente aos sistemas sociais e a sua observação. Por 

fazerem parte de um sistema, determinadas operações intra-sistêmicas 

ganham em determinação; quando esta determinação se toma indeterminada,  quando o sistema retira destas operações o ganho em determinação adquirido  

com a participação no sistema, então surge uma contradição.A participação no sistema social implica em comunicação de sentido, e  

todo sentido pode apontar em inúmeras direções, inclusive em sentido contrário ou inconsistente, fazendo com que toda experiência de sentido tenha  

 já em si o contraditório. Todo sentido experimentado traz em si de maneira latente contradições; ele é passível de ser retirado do horizonte aberto de  

sentidos e sintetizado em uma contradição; todo sentido pode ser constituído  em contradição. A questão, para Luhmann, é como e por que isto acontece  

(cf. 1994, p. 494-95).Os sistemas sociais, na definição de Luhmann, existem como sistemas de  

comunicação. Neles as contradições estão ligadas à lógica de seleção  controlada de sentido e sua comunicação. Não qualquer sentido, mas sim a 

negação. “O sistema social constitui as contradições válidas para ele com  recurso a esta unidade da comunicação. Sua síntese toma visível a 

impossibilidade de convivência [...]. A contradição surge mediante sua

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comunicação” (id., p. 498). Por conseguinte, as contradições não são externas  nem agressão vinda do exterior; elas são um momento da auto-referência dos  

sistemas sociais que articulam as contingências em direção à impossibilidade  de convivência, que trazem em seu bojo a necessidade da adaptação ou da 

diferenciação. Contradições rompem estruturas e impulsionam com isso a reprodução autopoiética, mas deixam em aberto qual das muitas 

possibilidades será efetivamente atualizada. E isto que possibilita ver as contradições como promotoras da mobilidade dos sistemas; com a 

impossibilidade de determinação  a priori  do resultado preserva-se a auto- reprodução.4

Para Luhmann, reside aí o potencial das contradições como sinais de 

alarme, para fomentar o desenvolvimento de um sistema imunológico. De um 

sistema imunológico não se exige que corrija desvios ou restabeleça uma suposta normalidade anterior; ele deve cumprir suas funções seletivamente de 

forma compativel com condições variáveis, pois o sistema social não é imunizado contra mudanças e sim através delas, inclusive incorporando aprendizagem. A aprendizagem do sistema social não é cognitiva mas 

discriminadora: importa saber se algo pertence ou não ao sistema e como 

reagir face a isto, sem necessidade de analisar o contradito.Contradições surgem a toda hora nos sistemas sociais. Como os sistemas  

sociais são constituídos de comunicação, as contradições se tomam processáveis apenas como comunicação; quando comunicadas, tomam-se  conflitos. Nas palavras de Luhmann: “um conflito é a autonomizaçào  

operativa de uma contradição mediante a comunicação. Logo, um conflito está dado somente quando expectativas são comunicadas e a não-aceitação da 

comunicação é retrocomunicada” (1994, p. 530).Embora contradições e mesmo conflitos surjam corriqueiramente,5 sua 

relevância eles adquirem apenas na medida em que demonstrem  

conectividade para relações sociais fora da interação em que se originaram.Uma vez instalados, conflitos tomam-se sistemas parasitários: eles não se 

diferenciam formando um novo sistema fechado, mas seguem existindo dentro do hospedeiro. Com um agravante: eles não tendem a uma simbiose, mas à absorção do sistema hospedeiro a ponto de sugar-lhe todos os recursos.

Movimentos sociais e direito atuam precisamente aqui como partes constituintes do sistema imunológico, selecionando os conflitos significativos, de alta conectividade.

4 Sem dúvida esta reflexão de Luhmann quando levada imediatamente às possíveisconseqüências, escancara possibilidades para ver a contradição como mecanismo porexcelência para a conservação do sistema. Movimentos sociais e direito, definidos nestecapítulo como constituintes do sistema imunológico, seriam então os principais responsáveis pela preservação do status quo.

5 “Conflitos são formações quotidianas, surgem em todo lugar e geralmente são bagatelasrapidamente superadas” (Luhmann, 1994, p. 534).

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O direito, nesta perspectiva, é constituído como antecipação de possíveis  conflitos. Da grande quantidade de possibilidades quotidianas de contradição  

em tomo de expectativas são selecionadas aquelas que deverão provar sua eficácia; a elas é associada a normatividade das expectativas submetendo-as  

às excludentes alternativas de direito e não-direito, legal e ilegal. Assim  forma-se no sistema social todo um conjunto de antecipações de conflito que via de regra atenderão às situações mais inusitadas que possam surgir. Só 

muito excepcionalmente o conflito surgirá no nível da interação. Em suma: “o direito não se destina a evitar conflitos; comparado com a repressão de  

conflitos em sociedades em que predomina a interação ele até leva a um  aumento das chances de conflito. Ele somente busca evitar a resolução 

violenta de conflitos disponibilizando formas adequadas de comunicação para 

cada conflito” (1994, p. 511).Diferente do direito, que opera mediante estruturas oficiais, os 

movimentos sociais são uma forma de selecionar conflitos relevantes que é mais independente das estruturas, mais  ad hoc  e mais difícil de reconhecer. Luhmann introduz a possibilidade do surgimento dos movimentos remetendo 

a uma seqüência corriqueira de três passos dentro dos sistemas sociais: (a) afrouxamento dos laços sociais, tomando-se menos tipificados  a p riori e mais 

decorrentes de escolhas; (b) as contribuições individuais são mais  

especificadas uma vez que o  sta tu s  é adquirido e os feitos pressupõem  

qualidades individuais; e (c) por parte da sociedade complexa há crescente produção de e reação a efeitos para os quais não há disponíveis estruturas que  

os “encaucem”, e que agregados podem tomar-se autocumulativos. Então o  movimento começa movimentar-se a si próprio - e desenvolve  

autopoieticamente “sistemas auto-referentes de um tipo  sui generis   que, com  grande predisposição para a contradição e o conflito, podem assumir funções 

no sistema im unológico da sociedade” (Luhmann, 1994, p. 548).De certa maneira Luhmann, à época em que formulou esta parte de sua 

teoria dos sistemas, não estava de todo satisfeito com a conceituação dos  movimentos sociais. Mas via neles a solução para a necessidade inerente ao  

sistema social, de extrair e consolidar em unidade autônoma aquilo que o sistema imunológico selecionou como conflito relevante. Uma vez  

consolidada a unidade, a ela agregam-se outras ações e o movimento pode se  desenvolver.

O acionamento de qualquer um destes componentes do sistema imunológico levará o sistema social a mudanças em sua auto-reprodução. O sentido destas mudanças - se será uma melhor adaptação ao seu ambiente ou 

não - é um resultado contingente; ele não está dado de antemão. Luhmann insiste que no caso dos movimentos sociais nem mesmo o objetivo original pode indicar o rumo da mudança.

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O lugar dado por Luhmann aos movimentos sociais no esboço de sua teoria geral num primeiro olhar surpreende em dois sentidos: pela 

naturalidade com que vê seu surgimento e pela função predominantemente  reativa que conota a associação com o sistema imunológico. Movimentos  

sociais têm predominantemente sido vistos nas Ciências Sociais como  expressão de vontade de atores face ao desafio da mudança social, reunindo,  por conseguinte, vontade para a ação com objetivos de transformação.6

Por outro lado, não se pode menosprezar que neste ponto Luhmann não estava tratando dos movimentos sociais e sim das contradições e dos conflitos  

e seu lugar nos sistemas sociais. Assim, faz sentido insistir na pergunta: como Luhmann viu os movimentos sociais?

P ro t es t o : c o m o a te o r i a d o s s i s t em a s v ê o s m o v i m e n t o s s o c ia is

Luhmann, não sem alguma razão, é conhecido e admirado nas ciências 

 jurídicas mais do que em qualquer outro campo do conhecimento, inclusive na sociologia. Desde o início de sua atuação acadêmica, coincidente com a 

publicação de  Legit im ação pelo procedim ento   em 1968, até praticamente o 

final dela, com a publicação de O direito da sociedade   em 1993, ele tem 

escrito obras abrangentes enfocando o Direito. Embora a economia, a ciência  e até mesmo a arte, a religião e o amor na sociedade modema tivessem  

recebido dele atenção específica expressa na forma de livros, a repercussão  nas áreas respectivas foi bem menor que entre os juristas.

Em vão, porém, procurar-se-á em sua obra uma crítica abrangente e 

sistemática da sociedade modema ou um tratamento sistemático dos movimentos que radicalmente a criticam - permitindo a impressão de serem 

estes temas negligenciados. Tal pergunta reveste-se de importância crucial quando confrontada com a aspiração explícita do autor de apresentar com sua teoria dos sistemas uma teoria sociológica universal, isto é, uma teoria que tem a pretensão de poder abarcar todas as temáticas e todas as esferas desta  disciplina.

Uma atenuante desta impressão foi a publicação do livro  Protest: Systemtheorie und soziale Bewegungen  (Protesto: teoria dos sistemas e movimentos sociais), organizado por Kai-Uwe Hellmann (cf. Luhmann, 

1997). Nele são reunidos mais de uma dezena de textos - artigos e entrevistas - de Luhmann sobre aquilo que ele usualmente denominou protesto, publicados entre 1985 e 1995.

6 Mesmo que, como enfatiza a definição clássica de Raschke, o objetivo pode ser evitar oureverter mudança social (cf. Raschke, 1988, p. 77).

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Já no agitado ano de 1968 Luhmann havia concedido aos movimentos  estudantis que eles estariam com razão ao chocarem-se com o  sta tus quo. Porque se voltam para problemas prementes no sistema social, atesta a estes movimentos a função de romper periodicamente com o dogmatismo e a 

rigidez estruturada para abrir caminho para a adaptação do sistema,  mantendo-o em movimento.7 Mas esta função é tida como um efeito  

secundário de movimentos em si considerados como errantes.Quando uma década e meia depois Luhmann publica Sistemas sociais, 

obra com que inicia sua fase madura ao passar a trabalhar com o conceito de 

sistemas operativamente fechados, auto-referentes e autopoiéticos, ele volta à 

questão dos movimentos sociais, dando-lhes um lugar de destaque na  arquitetura da teoria.

Ao lado do Direito, os movimentos sociais têm seu locus  no contexto do tratamento das contradições e dos conflitos, e são vistos como constituintes 

do sistema imunológico da sociedade (cf. Luhmann, 1994, cap. 9). O próprio  sistema social, em sua auto-referência, é quem os identifica como movimentos sociais, reforçando com isso sua própria identificação e auto- referência. Quando a esta auto-referência é associado um objetivo ou programa, isto amplia o potencial e o espectro de seletividade do sistema;  

pela orientação ao objetivo inerente ao programa será determinado o que se  

conecta ou não ao sistema.Mas os movimentos sociais, diferentemente do Direito, são considerados  

um procedimento moderno para selecionar e tratar as contradições e os  

conflitos relevantes da sociedade (ibid., p. 549) e tidos como os principais  

impulsionadores das mudanças nas estruturas operativas dos sistemas. Isto se  deve ao fato de que neste tipo de sistema a atribuição de valores ao código  

binário tem seus critérios estabelecidos por um programa voltado  

especificamente ao cumprimento daquilo que é considerado função do  sistema, independentemente das atuais estruturas - o programa dos movimentos sociais.8 Com isso compensa-se nos sistemas a operação

7 Uma questão a ser ainda melhor pesquisada é em que medida a concepção luhmanniana dadinâmica interna do sistema que leva a mudanças em sua estrutura operacional tem parentesco com o estruturalismo genético.

8 En un sistema autopoiético diferenciado con base en un código binário, el código dirige lasoperaciones que reproducen la unidad dei sistema: regula la producción de diferencias y con

ello la elaboración de información por parte dei sistema. Las operaciones proceden siempreciegamente y en su nivel no existe ninguna forma de control dei sistema sobre su proceder: elcódigo, en efecto, no aporta directivas para la acción, sino que se limita a orientar lasoperaciones asegurando que se relacionen con las subsecuentes. La autorregulación y elautocontrol dei sistema se desarrollan en cambio en el âmbito de los programas, que dirige laobservación de las operaciones por parte dei sistema mismo, con base en distincionesdistintas de aquella a la que tales operaciones se orienta. Los programas fijan las condicionesque deben darse para que una determinada operación pueda acontecer: por ejemplo,establecen que la atribución dei valor positivo dei código es correcta solo en circunstanciasespecificas. [...] Los programas son los que dan cabida al excluido tercer elemento, al que es

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rigidamente baseada em um código binário, permitindo a inserção de objetivos externos ao sistema e pela via comunicativa que o sistema está apto 

a processar.A esta valorização teórica dos movimentos sociais seguiram-se os já  

referidos textos ocasionais de Luhmann. Neles o autor aprofunda a questão da auto-observação da sociedade e sua observação pelos movimentos sociais. Segundo ele, toda autodescrição é contingente, aberta a alternativas; mas a sociedade modema diferenciada não tem a possibilidade de valer-se de 

observação a partir de um ponto de vista externo nem consegue, a partir de  um ponto de vista privilegiado de observação, representar a unidade da sociedade na sociedade. Precisamente aí os movimentos sociais lhe oferecem  

a observação que é  como se fosse   externa: assume um olhar distanciado sem  

distanciar-se e, a despeito de toda diversidade, têm na crítica à diferenciação  funcional sua intenção radical. Com isso os movimentos adquirem  status teórico de equivalente dos observadores externos sem serem externos, sem  

atropelar a auto-referência.Em um de seus últimos escritos (Luhmann, 1998, v. 2), Luhmann coloca  

ao lado dos movimentos sociais ainda outros observadores, como os meios de comunicação social e, em certa medida, a própria opinião pública. Ao 

fazerem a auto-observação e descrição da sociedade, eles exercem a autologia 

do sistema social.Não obstante este lugar de destaque no aspecto funcional, Luhmann não 

parece ter nutrido maiores simpatias pelos movimentos sociais.  Ocasionalmente volta a referir-se a eles com uma qualificação que ficou  

patente a partir de uma publicação de 1986, onde afirma que os movimentos  

alternativos não apresentam alternativas (Alternaíive ohne Alternative,  cf. 1997, p. 75 seg.) - repetindo o niilismo de 1968, onde os estudantes teriam 

toda razão para voltarem-se contra o  sta tu s quo,   mas continuavam sendo considerados errantes (cf. Hellmann, 1997).

A impressão que se tem é que Luhmann tinha as categorias teóricas para um enquadramento muito mais profícuo dos movimentos sociais em sua teoria, chegando inclusive a tangenciá-lo, mas falhou ao não levar as possibilidades às conseqüências. Uma razão fundamental para esta falha foi sem dúvida seu limitado horizonte de referência no conhecimento do espectro dos movimentos sociais: pelo menos nos últimos anos, paradigma para 

movimentos sociais para ele foi sobretudo o movimento ecológico e, em grau bem menor, os movimentos pacifistas, contra o uso da energia atômica, e

extraflo a la composición entre los valores dei código, al interior dei sistema que se orientahacia éste, y de esta manera mitiga la unilateralidad dei código. Aun orientándoseunicamente con su código, el sistema considera en el âmbito de los programas algunoscritérios que rigen en otros âmbitos sociales. (Corsi et al., 1996, p. 132).

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feminista - todos v istos com o reativos. Luhmann praticamente não se refere 

aos movimentos sociais propositivos ou de pano de fundo cultural.Seguidores da proposta teórica de Luhmann deram continuidade à 

questão dos movimentos sociais; de uma destas propostas nos ocuparemos a 

seguir.9

M o v i m e n t o s s o c i ai s : s i s t em a s o c i al b a s e ad o  na mob i l i z aç ão

As deficiências teóricas da teoria dos sistemas com relação aos  

movimentos sociais foram tomadas por Heinrich Ahlemeyer (1995) como  desafio para sua tese de livre-docência. A questão que ele colocou como  

central e se propôs a aprofundar foi se os movimentos sociais apresentam o  

necessário fechamento auto-referente e, em sendo o caso, como ele se dá operacionalmente.

Movimentos sociais via de regra são vistos como muito fluidos, fortemente dependentes de fatores conjunturais e explicitamente voltados  para influências sobre ocorrências fora deles próprios; parecem, portanto, muito distantes de sistemas sociais fechados nos termos da teoria de  

Luhmann.Por outro lado, é possível inferir da introdução a seu livro que  Ahlemeyer, um militante de longa data em movimentos, não se sente 

confortável com o estatuto teórico conferido aos movimentos sociais por 

Luhmann. Para recolocá-los em termos bem novos e demonstrar a 

possibilidade de analisar movimentos sociais nos termos da teoria dos  sistemas sem renunciar ao que é característico de ambos, este autor redeclina 

as categorias centrais da teoria.

Auto-referência e autopoiése são centrais para a concepção de sistemas sociais como operativamente fechados. Auto-referência implica que uma diferenciação só pode ocorrer a partir de dentro, que na constituição de seus  

elementos o sistema só pode recorrer a si próprio. Por isso será necessário  mostrar como nos movimentos sociais efetivamente acontece este fechamento  

operativo, que é correlato da auto-referência.De forma similar acontece com a autopoiese: será necessário mostrar  

como o sistema dispõe de formas autônomas para sua produção e reprodução. 

Isto não implica na necessidade de repetir determinada ação, mas em  “produção a partir do produzido” (Luhmann, 1994, p. 233) e a continuidade

5 Uma proposta digna de nota por sua consistência e abrangência, apresentada como tese dedoutorado e que obteve parecer favorável do próprio Luhmann, foi feita por Hellmann(1996). Ela aprofunda a função dos movimentos sociais como sinalizadores precoces derisco no sistema social. O autor, no entanto, não inova muito no aspecto teórico, preferindoater-se e, freqüentemente, expandir teses e indicações já feitas por Luhmann.

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da operação do sistema - assegurando que o sistema não se extingue com a 

presente operação.A tese de Ahlemeyer é que os movimentos sociais são um tipo de sistema 

social em que o fechamento operacional se dá mediante “comunicações  

voltadas para a mobilização” ou simplesmente pela “mobilização” (ibid., p.

73) e que eles cumprem, como sistema social, todos os requisitos teóricos. Por isso ele redefine mobilização como sendo uma forma específica de 

comunicação, diferindo radicalmente da definição mais usual da mobilização presente nas teorias sobre movimentos sociais que enfatizam a mobilização  

com ativação de recursos.Luhmann havia definido a comunicação nos sistemas sociais em geral 

como uma síntese de três seleções, como a unidade entre informação, 

comunicado e compreensão. A estas Ahlemeyer acrescenta uma quarta seleção, que não é mais parte da comunicação, mas conexa a ela: o aceite ou a 

recusa da oferta de redução de sentido. Para ele, é esta quarta seleção que  pode provocar a continuidade da comunicação e assegurar a conectividade.

A especificidade da mobilização como forma de comunicação é que a sugestão de sentido vem acompanhada de uma nova sugestão de seleção: a 

expectativa de ego de que alter atue de maneira determinada face ao sentido  sugerido. A sugestão de ação, segundo Ahlemeyer, não só dá continuidade, 

mas qualifica a comunicação. Segundo o autor, pouco importa se esta  sugestão é explícita ou implícita, nem deixa de ser mobilização se a seleção 

de alter for a recusa da sugestão de ação (ibid., p. 93).Assim, este autor pode defender como tese central que “a sugestão de 

ação que acompanha a sugestão de sentido é tão central para a operação de 

mobilização, que ela simultaneamente amplia e coordena as seleções  comunicativas” (Ahlemeyer, 1995, p. 89). Há uma presunção na sugestão de 

ação sobre a conectividade que ultrapassa em muito a sugestão de sentido comunicada, sem negar a autonomia da seleção.

Na teoria de Luhmann está muito claro que sistemas sociais não são estruturas perenes; eles duram enquanto durarem suas operações. Pode-se então perguntar: se uma sugestão de ação de uma mobilização for recusada por alter, não cessa aí a comunicação e, portanto, o sistema movimento 

social? Segundo Ahlemeyer não, pois a sugestão de ação da mobilização, diferente da sugestão contida em relações assimétricas como o poder, vem  

acompanhada de um autocomprometimento. A sugestão é: “vem, junte-se a mim/nós e faça tal coisa”. Por conseguinte, mobilização por definição é uma comunicação de sentido e de sugestão de ação simétrica, autocomprometida; 

sem autocomprometimento com a sugestão de ação, independentemente de 

sua aceitação ou não, ela deixa de ser mobilização.

1 2 6 Emil Albert Sobottka

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negativo do autor sobre os movimentos como sendo errantes. Quer parecer, no entanto, que a mais instigante das possibilidades para analisar este  

fenômeno <*m Luhmann deu-se em sua concepção de programa e na função a 

ele atribuído: com ela seria possível analisar os movimentos sociais numa 

pt.spectiva relativamente imanente sem recorrer a legitimação/fundamentação externa. Mas ela permaneceu inconseqüente.

Por outro lado, a proposta de Ahlemeyer permite ver a relação  movimentos sociais-teoria dos sistemas num novo patamar. Lástima que consistência e abrangência desta proposta ainda não tenham sido suficientes  

para motivar pesquisas em maior número, com o que a teoria poderia  verific ir-se enquanto explicativa. Há, pois, ainda trechos de caminho a percorrer.

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1 2 8 Emil Albert Sobottka

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Estado e Direito como sistemasautopoiéticos: uma abordagem da Teoria

de Sistemas de Niklas Luhmann

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo  

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I n t r o d u ç ã o

Desde o final dos anos 60, com a publicação da obra  Legitim ation durch 

Verfahren,1 até sua morte, em 1998, Niklas Luhmann (1927-1998) foi responsável por uma construção teórica original, que acabou por influenciar de  

maneira decisiva os estudos sociojurídicos neste final de século. Formulando 

sua proposta teórica no curso de quase quarenta anos de vida acadêmica dedicada à teoria sociológica, desde os seminários de Talcott Parsons no início  

dos anos 60 (onde foi colega daquele que viria a ser seu maior opositor, na  

defesa da tradição emancipatória da Teoria Crítica, Jürgen Habermas) Luhmann acabou por formular uma ampla, generalizante e singular teoria da sociedade, no interior da qual pretendeu dar conta da complexidade e da contingência com que nos deparamos na época contemporânea.

Incorporando a herança das correntes funcionalistas e evolucionistas da sociologia moderna, reinterpretadas em um quadro conceituai interdisciplinar 

(cibernética, biologia) e voltado para a construção de um novo paradigma científico, a perspectiva teórica de Luhmann, a par do sucesso obtido pelo alto  

potencial descritivo do funcionamento do sistema jurídico, bem como de outros subsistemas sociais, foi também alvo de pesadas críticas, chegando a ser caracterizada como  neoconservadora.'  Tendo em conta a advertência haber-

1 No Brasil, Legitimação pelo procedimento,  UnB, 1980.2 Cf. Habermas, J. (1998). Para Habermas, “o faeto de Luhmann esgotar o conteúdo reflexivo

destas duas tradições opostas [filosofia do sujeito e funcionalismo sistêmico] e conjugar mo

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masiana de que o ganho obtido por Luhmann em termos de conceitualização,  imaginação teórica e capacidade de elaboração paga um preço excessivamente alto, ao eliminar o mundo da vida como resíduo indigesto, através da dissociação entre sistemas pessoais e sistemas e subsistemas sociais que formam 

mundos circundantes uns para os outros, a nossa pretensão no presente trabalho não é a de explorar as limitações metateóricas da perspectiva luhmannia- na, e sim a de apresentar, de forma sistemática, os principais conceitos e categorias com as quais procura descrever o funcionamento do Estado e do sistema jurídico.

Pretendemos, com isso, apreender a lógica interna da construção conceituai da nova teoria de sistemas sociais, especificamente no que diz respeito à 

caracterização dos subsistemas político e jurídico nas sociedades contempo

râneas. Para tanto, partimos de uma análise dos conceitos mais abrangentes da teoria sistêmica, como a noção de sistemas sociais autopoiéticos, operacionalmente fechados e auto-referenciados. Em seguida, são analisados os subsistemas político e jurídico, tomando como referência as obras do Luhmann  

“maduro”, posteriores a 1984, em que se vislumbram os pontos de contato entre a teoria de Luhmann e a chamada corrente pós-modema do pensamento  

sociojurídico, particularmente em relação à autonomia do Direito frente a outras dimensões da prática social, à capacidade autonormativa do quotidiano, 

ao pluralismo jurídico e ao caráter local do saber jurídico.

O s i s te m a s o c i al a u t o p o i ét ic o - c o m p l ex i d a d e, c o n t in g ê n c i a  e ev o luç ão

Tendo na obra de Parsons o seu ponto de referência inicial, Luhmann propõe a inversão da ordem lógica dos conceitos de estrutura e função. Para 

Luhmann, o problema fundamental para a análise sociológica não deve ser, como em Parsons, o de determinar as condições necessárias para a existência  

e permanência de determinadas estruturas, e sim determinar as condições  através das quais podem ser realizadas algumas das funções essenciais para a estruturação de um sistema social (Treves, 1988, p. 214). Essa diferença na 

abordagem da relação entre estrutura e função vai implicar em deixar de lado

tivos mentais de Kant e Nietzsche num jogo de linguagem cibernético caracteriza o nível em

que ele instala a teoria sistêmica da sociedade. Luhmann transfere as mesmas propriedades,que Foucault tinha atribuído com a ajuda de um conceito de poder histórico-transcendentalàs formações discursivas, para sistemas que operam de modo auto-referencial e que elaboram o sentido. Uma vez que, ao mesmo tempo que abandona o conceito de razão, tambémabandona a intenção da crítica à razão, ele pode orientar para o descritivo todas as afirmações que Foucault ainda formulava de modo denunciador. Neste sentido, Luhmann conduzao extremo a afirmação neoconservadora da modernidade social, por conseguinte também aum nível da reflexão onde tudo o que os defensores da pós-modemidade poderiam alegar, jáfoi ponderado anteriormente sem acusação e de modo mais diferenciado” (p. 324-325).

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a preocupação parsoniana com a obtenção do consenso normativo como fundamento da legitimidade de uma ordem social, passando a referir-se ao problema da governabilidade, reduzindo a legitimidade a um mero problema  funcional:

o aperfeiçoamento dos mecanismos de procedimento insti tucionalizados do sub-

sistema administrativo, que assim liberta o sistema social geral (o processo de

decisão) dos constrangimentos do “mercado polí t ico” (o subsistema dos partidos

e das suas leis dc concorrência), conferindo-lhe maior autonomia e capacidade

seletiva (Pissarra in Luhmann, 1992, p. 17).

A partir da obra Social System   (1995), Luhmann vai consolidar o seu distanciamento da concepção de sistemas de Parsons, especificamente na forma 

como compreende a relação entre sistema e entorno. Conforme Pissarra, a versão parsoniana da Teoria dos Sistemas, aplicada à realidade social, concebeu a sociedade como uma espécie de sistema soberano, com capacidade ilimitada de modelação do seu meio ambiente. Em Luhmann, na relação siste-  ma-meio, o meio ambiente do sistema (Umwelt) não se limita à função de  

apoio ou base do sistema, definindo também os seus limites de racionalidade.

Daqui resulta, po r conseqü ência, a redefinição d a própria racionalidade sistêmica

(systcmrationali tât): já não uma racionalidade hegemônica (como Weber enten

dia a racionalidade formal), mas antes “defensiva”, uma racionalidade que pretende apenas acolher e neutralizar, tanto quanto possível, as ameaças provenien

tes do meio (sem nunca chegar a dominá-lo). Nesta medida, ela perde também o

seu carácter normativo e ideal-t ípico; toma-se contingente e opera como uma es

 pécie de rede p lu ridim ensio nal e polim órfic a (P is sarra in L uhm ann, 1992, p. 14).

O sistema social é visto como uma conexão de sentido de ações que se  

referem umas às outras e estão delimitadas frente a um meio ambiente (entorno). Não se trata de um conjunto de seres humanos, mas sim de um conjunto  

de ações comunicantes - comunicações. O ser humano constitui-se, enquanto 

indivíduo, em parte do meio ambiente do sistema social, fonte geradora de complexidade.3

O excesso de expectativas geradas pelas infinitas possibilidades oferecidas pelo meio ambiente colide com a limitada possibilidade de apreendê-las e 

realizá-las concretamente, derivando daí a complexidade do mundo, isto é, o  seu excesso de possibilidades frente aos limites cognitivos do sistema. O aumento da complexidade apresenta-se para Luhmann como uma constante evo lutiva absoluta, que o leva a identificar três estágios na linha evolutiva das sociedades: sociedades segmentárias, em que não há diferenciação em subsis-  

temas; sociedades estratificadas, caracterizadas pela relação hierárquica entre

3 Para uma ampla apresentação de seu conceito de sociedade, vide Luhmann, “O Conceito deSociedade”, in: Baeta Neves e Samios (org.),  Niklas Luhmann: a nova Teoria dos Sistemas(1997).

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os subsistemas como garantia da ordem social; e sociedades de diferenciação  funcional, pelo desenvolvimento de subsistemas operativamente autônomos, com critérios e códigos próprios (Herrera, 1998, p. 92). A evolução é uma 

conseqüência da necessária adaptabilidade dos sistemas sociais, que os leva à 

permanente tentativa de redução da complexidade do entomo, selecionando e traduzindo as potencialidades indefinidas em expectativas previsíveis (Tre- ves, 1988, p. 214). A auto-referência é a tomada de consciência subjetiva da 

diferença do sistema em relação ao seu entomo, que garante a superioridade evolutiva dos sistemas diferenciados funcionalmente.4

Além da complexidade, o mundo social está também caracterizado pela contingência, derivada tanto do fato de que as possibilidades selecionadas pelo sistema podem realizar-se de um modo distinto do previsto, como da pos

sibilidade sempre existente de alternativas funcionalmente equivalentes para lidar com uma realidade complexa. Frente à complexidade e à contingência, somente se poderia neutralizar os perigos que derivam das expectativas frustradas mediante duas estratégias, incompatíveis entre si: corrigir a expectativa  frustrada de modo a que se conforme com a nova realidade (estratégia cognitiva), ou negar-se a aprender e manter a mesma expectativa, embora frustrada (estratégia normativa).

A formulação mais acabada da teoria de Luhmann passa a adotar como 

central a noção de  sis temas auto poié ticos,  inspirada pelos trabalhos dos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela,5 desenvolvendo-a para os domínios das ciências sociais e do Direito. A teoria dos sistemas autopoiéticos tenta descrever o modo de funcionamento de todos os sistemas que reproduzem a si mesmos, ou seja,

definem a sua identidade po r oposição ao exterior (ambiente) e definem as regras

das transações entre sistema e ambiente; constroem os seus próprios elementos;

constroem a gramática do seu próprio ciclo de funcionamento; constroem a (meta) gramática que comanda as transformações da primeira, de ciclo para ciclo

(Hespanha, 1998, p. 260).

O que permite a utilização da teoria dos sistemas autopoiéticos, originária da biologia, para a análise dos sistemas sociais, é uma mudança do ângulo 

a partir do qual é vista a relação entre o sistema e os seus elementos (Guerra Filho, 1997, p. 60). Em Maturana e Varela, a unidade entre o sistema e seus  

elementos é vista “de baixo para cima”, isto é, a autopoiésis se dá ao nível  

dos elementos, que se autoproduzem, enquanto que em Luhmann, a unidade  entre elementos do sistema não emerge “de baixo”, e sim ao nível do sistema, que autoproduz seus elementos, que portanto são elementos apenas para o sis

4 Para uma critica da noção de evolução em Luhmann, vide Habermas (1990), História e Evolução  (p. 163/218).

5 Sobre a caracterização feita por esses autores dos sistemas vivos como produtores de simesmos, vide Maturana e Varela, “De maquinas y seres vivos” (1973).

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tema, que os emprega como unidades. Assim, enquanto os sistemas vivos têm  como elementos células e moléculas, que produzem outras células e moléculas, em um ambiente onde há outros sistemas que fazem o mesmo, e os sistemas conscientes têm como elementos significações e pensamentos, que pro

duzem outras significações e pensamentos, em um ambiente onde há outros sistemas que fazem o mesmo, os sistemas sociais se caracterizam por ter como elementos comunicações, que produzem outras comunicações, que, porém, não existem no seu entorno, mas apenas na sociedade vista como um sistema comunicativo global, onde sistemas parciais, ou subsistemas funcionais, aparecem como ambiente uns para os outros. Nas palavras de Luhmann, “a 

sociedade é o sistema abrangente de todas as comunicações, que se reproduz autopoieticamente, na medida em que produz, na rede de conexão recursiva  

de comunicações, sempre novas (e sempre outras) comunicações” (Luhmann in N eves e Samios, 1997, p. 83).

Segundo Hespanha (1998), a novidade apresentada pelo modelo autopoi- 

ético, em relação à teoria de sistemas parsoniana, pode ser melhor compreendida a partir da noção de fechamento sistêmico, no sentido de que tudo aquilo 

que o sistema recebe do exterior, ao ser integrado no sistema, é redefinido, transformado, recriado em função da gramática do sistema.

Assim, embora haja uma abertura no sistema (que permite que receba elementos“em bruto” do exterior), a própria existência de um sistema dotado de uma gra

mática própria implica o seu fechamento. Pode dizer-se, por tanto, que a uma

abertura infra-sistêm ica correspon de um fechamen to sistêmico (Hespanha, 1998,

 p. 261).

Somente permanecem no interior do sistema social as operações de auto- observação e autodescrição, e tudo o mais é o seu entorno. Em sociedades  

que alcançaram o estágio de diferenciação funcional, cada subsistema social 

estrutura sua comunicação, visando a redução da complexidade do entorno, através de um código binário, que permite que toda apreensão da realidade  ambiente possa ser processada. Assim, o sistema econômico teria como elo  entre as diversas ações comunicantes que se realizam no mercado o código  

dinheiro (posse ou ausência de); o sistema da ciência teria como código verdadeiro/falso; o sistema jurídico o código legal/ilegal; o sistema político o código governo/oposição, etc. A criação de sempre novos subsistemas seria 

uma decorrência evolutiva do modo de funcionamento dos sistemas autopoié- 

ticos, que se alteram na medida em que surgem estruturas completamente novas de maneira imprevisível (Brunkhorst, 1996, p. 692).

Cada subsistema lida com as irritações  provenientes do meio ambiente a 

partir do seu código binário de referência, isto é, respondendo à complexidade do entorno pela sua tradução em informações e o seu processamento. Além  disso, os diferentes subsistemas estão acoplados estruturalmente, isto é, embora sejam sistemas fechados, mantêm interdependências regulares entre eles

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e com o meio ambiente. Cada subsistema pode operar com diferentes acoplamentos estruturais, como no caso do sistema jurídico, acoplado ao sistema  

político através das normas constitucionais e ao sistema econômico pelas  normas relativas à propriedade e ao contrato (Luhmann, 1990, p. 154). As  

formas altamente seletivas de acoplamento estrutural, na medida em que não abrangem o ambiente total do sistema, dão conta da canalização das situações de irritação   do sistema pelo entomo, influenciando o processo histórico evolutivo de auto-estruturação dos sistemas autopoiéticos (Luhmann in Neves e Samios, 1997, p. 67-68).

A partir dessa base conceituai, Luhmann vai sustentar que a diferenciação dos sistemas funcionais na sociedade moderna criou condições que se manifestam na sua própria ordem interna, formando subsistemas funcionais 

autopoiéticos, complexos e dinâmicos, operativamente fechados, que são o entomo uns para os outros e estabelecem relações de forte dependência recíproca. A unidade do sistema social global é vista como reprodução autopoié- tica, no interior da qual todas as distinções através das quais essa unidade pode ser observada e descrita se apresentam ao observador por meio de um código binário (sistema/entomo, centro/periferia) (Luhmann, 1990, p. 168).

E s t ad o e d e m o c r a c ia em s o c i e d a d e s d i f e r en c i a d a s  f u n c i o n a l m e n t e

Em sociedades modernas com elevado grau de diferenciação funcional, o 

sistema político codifica e generaliza simbolicamente o poder, na forma de um meio específico de comunicação. O poder passa a ser um meio de comunicação social, um código de símbolos generalizado que toma possível e disciplina a transmissão de prestações seletivas de um sujeito a outro. Cada vez é menos identificado com a coerção violenta, consistindo na possibilidade de que dispõe um ou vários sujeitos de eleger mediante uma decisão própria uma alternativa para outros sujeitos.6

6 Para o desenvolvimento do conceito de poder em Luhmann, vide Luhmann, Poder   (1992).Sobre o processo de constituição do poder político, Luhmann salienta que não é relevantesomente para o subsistema político, modificando a sociedade como um todo: “com a formação de sistemas políticos particulares na sociedade, que podem basear-se na violência físicasuperior, alcança-se uma certa sistematização de fins e, com estas , também uma dependên

cia maior da decisão com respeito ao emprego do poder. Não se alcança, todavia, uma mo-nopolização integral do poder na mão do ‘Estado’. Isto não significa apenas que se deve prever o exercício do poder contra as instâncias decisórias politicamente legítimas, postas sob pressão social ou até ameaçadas com violência, porque se queria influenciar suas decisõessobre o poder. Um outro problema, talvez maior, é apresentado pelo volume do poder socialque suija e permaneça fora de qualquer relação com o sistema político - primeiramente so

 bretudo o poder na família (‘despotismo’ no sentido próprio) e o poder dos sacerdotes; ulte-riormente, o poder da economia, em especial o do proprietário, muito discutido modernamente e, hoje em dia, o poder exercido no sistema educacional que se serve do recurso à de

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No interior do sistema político diferenciam-se dois subsistemas: o dos  partidos (ou sistema político em sentido estrito) e o da administração pública 

(legislativo, executivo e judiciário). A função do sistema político em sentido estrito (periferia do subsistema) é a produção de legitimidade, isto é, a legiti

mação do exercício do poder pela administração pública (centro do subsistema). Tal função não é exercida mediante a obtenção de um consenso dos cidadãos, impossível e ilusório, e sim através da sistematização da difusa disponibilidade social a aceitar as decisões da administração pública sem motivações particularistas. Dessa forma, é através da efetiva participação dos indivíduos em procedimentos do sistema político (eleições), e não com base em  valores ou interesses, que o sistema político obtém para si a obediência disciplinada dos cidadãos nas sociedades complexas (Treves, 1988, p. 216).

Na opinião de Luhmann, estaríamos hoje expostos, como nunca antes, a problemas que derivam do aumento da complexidade do entorno, tanto na relação do sistema social com seu ambiente natural, como do sistema político  

com seu entorno social (Luhmann, 1997, p. 147). Diante do crescente aumento de complexidade, há um déficit de direção das transformações a que estão  

sujeitas as sociedades contemporâneas, que afetam as formas de organização  da vida, o Estado, a economia, o Direito, a educação, o meio ambiente natural  

e as motivações individuais. A mudança social que surge da relação entre sistema e entorno escapa a uma direção e a um controle precisos. Diante dessa  

situação, específica da nossa época, Luhmann propõe repensar as possibilidades da política, que não pode mais garantir uma regulação global da sociedade, como era a pretensão dos modernos Estados de Bem-Estar. Esta discrepância entre as pretensões de regulação e a realidade complexa, imprevisível e contingente, coloca em xeque as ideologias políticas, pulverizando a confiança política. Para a teoria política, essa situação é representada pelos concei

tos de “ingovemabilidade”, “crise do Estado”, “fracasso do Estado” (Luh- mann, 1997, p. 148-149).A lógica da formação da opinião pública, isto é, a escolha política entre 

posições conservadoras/direita (manutenção do  sta tus quó)  e progressistas/esquerda (a favor da mudança) não estaria a altura dessa nova situação histórica. A questão que permanece irrespondida por essa lógica ultrapassada  

é: até que ponto devemos aceitar e adaptar-nos às transformações, e até que ponto existe a possibilidade de intervenções corretivas, já que não se pode  

pretender controlar a totalidade da mudança. Buscar nos princípios constitucionais uma resposta a esta questão, como tem sido a tendência da Comunidade Européia, seria uma empresa fadada ao fracasso, por tomar a política  

nada mais que uma prática de adaptação tardia às conseqüências do desenvolvimento econômico e social. Valores fundamentais como a dignidade hu

cisão sobre atribuições de status. Todos estes fenômenos levam à questão dos limites da poli-tização do poder” (Luhmann, 1992, p. 76).

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mana, a liberdade, a igualdade, a solidariedade e a justiça não ofereceriam  uma orientação suficiente e efetiva para a ação política.

Na teoria de Luhmann, toda ação política é vista como comunicação. A  

questão é: se o entorno do sistema político, quer seja a economia, a motivação  

da população, o desenvolvimento científico ou o limite dos recursos materiais, adquire uma complexidade crescente, como se pode aumentar a capacidade de comunicação do sistema político para dar conta desse aumento de complexidade? A resposta a esta questão envolve a  diferenciação interna do 

 sistema político  e as form as de decisão vinculante apropriadas para que a política possa atuar sobre a vida social.

A diferenciação interna leva o sistema político-partidário (periferia) a privilegiar determinadas formas de orientação para o exterior, filtradas pela 

opinião pública,7 pelas possibilidades de consenso, pelo incremento da carreira política das personalidades políticas e pelo direito. As informações que não podem satisfazer nenhuma destas condições de recepção, isto é, que não passam por nenhum destes filtros, não têm possibilidade de encontrar atenção 

política.A questão das decisões vinculantes diz respeito ao centro do sistema po

lítico (administração pública), e tem como limitação o fato de que para a decisão política eficaz no Estado moderno somente se dispõe de dois meios de 

ação/comunicação: o Direito e o dinheiro. Na situação atual, ambos os meios  (Direito e dinheiro) mostram sinais claros de uma utilização excessiva (sobrecarga), que aparecem como hiperjuridificação e crise fiscal do Estado. O 

quadro que se apresenta, portanto, é de uma sobrecarga do sistema político  sobre si mesmo, provocada por motivos socioestruturais que são praticamente

7 Sobre o conceito de opinião pública cm Luhmann, vide Luhmann, “Complexidade societal eopinião pública”, in:  A improbabilidade da comunicação  (1992). Segundo Luhmann, “oconceito de opinião pública refere-se ao sistema social da sociedade. Não se refere ao querealmente acontece na(s) consciência(s) das pessoas individuais, ou de muitas pessoas, ou detodas, num momento particular no tempo. Portanto, não remete para o que as pessoas reaisrealmente pensam, o que elas compreendem , o que atrai a sua atenção ou o que conseguemlembrar. Se é este o seu significado, eqüivaleria a um caos indescritível de diferença simultânea, e à impossibilidade de qualquer coordenação, devido exclusivamente à simultaneida-de de experiências. [...] a opinião pública pode ser entendida como um meio no qual são criadas formas e logo dissolvidas através da comunicação continua. [...] os meios assentamnuma união fraca de elementos que estão presentes em sobreabundância, enquanto as formasassentam numa selecção de tais elementos para uma união forte. [...] a idéia de ‘opinião pú

 blica’ pressupõe que os estados conscientes são o meio que pode ser ligado a formas específicas de sentido. [...] Assim, só no caso do sistema social da sociedade há uma opinião pú

 blica que existe como o meio de estabelecer uniões fortes. Neste caso não há nada que garanta a possibilidade de atingir acordos reais. Mas há uma comunicação pública que se apoianesta ficção e assegura a sua continuidade. Por outras palavras, este tipo particular de comunicação vê a oportunidade de dar á opinião pública sempre novas formas. E encontra nestaoportunidade a lei da sua própria autopoiésis” (Luhmann, 1992, p. 71-73).

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irreversíveis, levando à perda de confiança na atividade política por parte de intelectuais, jovens e amplos setores da população.

No lugar de definir conservadores e progressistas pela posição no espectro político (direita e esquerda), Luhmann propõe a utilização dos conceitos 

de política expansiva e política restritiva para classificar as orientações políticas da administração pública nas modernas democracias (Luhmann, 1997, p.  156). A concepção expansiva da política seria na verdade a atual expressão  do conservadorismo, vinculada às tradições da “velha Europa”, que conferem  à política um papel de orientadora da sociedade, responsável pela institucionalização da vida social ajustada à “dignidade humana”, como destinatária última de todos os problemas. Ao contrário, uma concepção política restritiva  romperia com esta tradição, ao vislumbar os limites de suas possibilidades e  

aceitar estes limites, reconhecendo a medida exata em que economia, educação, ciência, vida familiar, dependem da política. No lugar das prédicas morais de boa vontade, se colocaria a necessidade de uma pedagogia da causalidade, a fim de não sobrecarregar continuamente as possibilidades do sistema, e realizar efetivamente aquilo que se propõe à opinião pública através do sistema dos partidos. Se trata, portanto, de um método de reflexão sobre o sentido, as possibilidades e os limites da política sob condições atuais e futuras, 

orientado pelos problemas estruturais, pela capacidade de aprendizagem, pela capacidade de receber estímulos e pela capacidade para autocrítica, no sentido de criar uma relação reflexiva do Estado sobre si mesmo, como sistema  

auto-referente e autopoiético.A conseqüência direta dessa proposta é a exclusão das impossibilidades 

ou improbabilidades extremas do conceito de democracia. Nesse sentido, democracia não é o governo do povo pelo povo, já que o pressuposto de que o  povo possa governar a si mesmo é teoricamente inútil, por inviável e falacio

so. Também não é um princípio segundo o qual todas as decisões devem ser  tomadas de modo participativo, pois isto eqüivaleria a dissolver todas as decisões em decisões sobre as decisões, com uma acumulação ilimitada de cargas 

de decisão, uma imensa teleburocratização e uma falta de transparência das relações de poder em benefício dos insiders,  indivíduos capazes de nadar nesta água turva  (Luhmann, 1997, p. 162).

A proposta é conceber a democracia como uma divisão diacrônica do 

centro do sistema político - o aparato administrativo - , mediante a distinção 

entre governo e oposição. Este é o código binário do sistema político, assim  como o sistema científico se orienta pelo código verdadeiro/falso, o sistema 

 jurídico pelo código legal/ilegal, o sistema religioso pelo códig o imanen- te/transcendente. Enquanto a sociedade esteve organizada hierarquicamente, esta divisão do poder político era impensável, ou era associada a experiências como a guerra civil, a desordem e a calamidade. Somente quando uma sociedade se estrutura de tal maneira é que passa a não requerer mais um poder hi

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erarquicamente superior, articulando-se horizontalmente em sistemas funcionais, e o sistema político passa a operar com esta lógica binária autônoma.

Com isso, a política perde a possibilidade de representação do todo, mas  alcança o seu próprio código de funcionamento auto-referenciado. Precisa

mente porque não governam ambos, não há nenhuma imposição de consenso, fato que produz continuamente informações internas ao sistema, que regula o que se atribui ao governo e à oposição, graças a uma pequena diferença temporal: a possibilidade de que os partidos no governo e na oposição troquem 

seus postos nas eleições seguintes. Este código binário é reconhecido por Luhmann como um ganho evolucionário altamente improvável, e a sua falta 

de ambigüidade constitui o motor e a meta de um sistema político autônomo.  Para Luhmann,

Esta diferenciación significa que el sistema político no debe operar sobre un sis

tema social altamente complejo, en constante mutación a través de la dinâmica

autônoma de los sistemas funcionales, sino dentro de él. La economia fluetúa; la

ciência inventa bombas atômicas, píldoras anticonceptivas, transformaciones

químicas de todo tipo; las familias y las escuelas no producen ya los jóvenes que

desearía el ejército. En suma: son tiempos revueltos para la política, y precisa

mente por ello sólo puede operar como un sistema cerrado o, como a mí me gus-

ta decir, autopoiético: que debe codificarse y programarse hacia la contingência.

La invención estructural resultante de ello ha recibido, por motivos históricos ac-cidentales, el nombre de democracia (Luhmann, 1997, p. 164-165).

Diante deste diagnóstico do funcionamento do sistema político e dessa conceitualização restritiva da democracia, a questão que estaria colocada para uma ciência social prospectiva não seria a de como formular uma nova utopia, e sim a de como reconhecer na realidade presente de nossos dias os problemas e fontes de perigo (déficits funcionais) para esta peculiar e improvável  

estrutura, tendo portanto a forma política democrática como um fim em si mesmo.Para Luhmann, um dos principais déficits funcionais contemporâneos é 

decorrente do fato de que esta lógica binária acaba gerando uma auto-  

eliminação da espontaneidade do sistema político (selbstdespontaneifikation).  Nem sequer os grupos alternativos e os partidos verdes podem escapar a esta 

ordem preestabelecida, a imperativos de adaptação, a este processo de perda  da espontaneidade. Por causa do código binário, o sistema político reage  

sempre, em primeiro lugar, sobre si mesmo, e somente em segundo lugar sobre aquilo que pode compreender do entorno através da informação que auto-  produz. Fica, portanto, prisioneiro do ritmo e das formas voláteis da opinião  pública.

A fluidez do código binário somente é alcançada através de uma sólida  estrutura de partidos, que permita que as organizações políticas possam sobreviver à mudança do governo para a oposição e da oposição para o gover

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no. A questão é como se valer da lógica do código binário para decidir sobre questões políticas relevantes para a manutenção do sistema social, se a lógica  

binária diz respeito apenas à manutenção do subsistema político. Isto leva  Luhmann a propor a existência de uma diferenciação programática de partidos oposta entre si, de tipo binário (conservador/progressista ou, como esta já  não funciona, entre políticas de Bem-Estar restritivas/expansivas, ou entre preferências ecológicas e preferências econômicas). No entanto, os partidos 

temem os riscos que isto implica, preferindo não dizer de forma explícita, programaticamente, aquilo que não agrada a parcelas do eleitorado, sendo este o segundo déficit funcional apontado.

O resultado é que, ao invés de controvérsias programáticas, assiste-se a 

uma redução da disputa política a controvérsias morais, gerando a impressão pública de que as posições sobre questões práticas são adotadas a partir de  

uma confrontação moral entre os disputantes do poder político-adminis-  trativo. Luhmann vai propor a superação desse grave déficit funcional da ação política na democracia pelo desenvolvimento de uma maior amoralidade por 

parte do sistema político-partidário, no sentido de uma renúncia à moralização do oponente político, pois ao se pretender que somente um dos lados é bom e digno de respeito e a outra parte deve ser repudiada, se acabaria por  

colocar em questão as próprias regras do jogo democrático. Em uma democracia, não se pode tratar o oponente político como inelegível, que é o que 

ocorre quando o esquema político se coloca em correspondência com um esquema moral.

Tan razonable como irresponsable es erigir ideales, que no pueden ser satisfe-

chos por las condiciones actuales, y lamentarse después de las promiesas irreali-

zadas de la revolución bu rguesa. En esta actitud no veo ning una teoria, y mucho

m enos aún u na teoria crít ica (Luhm ann, 1997, p. 168-169).

 A au to p o iés is d o s is tem a ju r íd ic o

Partindo da noção de que os sistemas e subsistemas sociais são sistemas  diferenciados de produção de sentido que visam a redução da complexidade, Luhmann vê o Direito como aquela estrutura de um sistema social (subsistema) que tem a função de generalizar as expectativas normativas de comportamento, e com isto garantir a coesão social. E um subsistema que coordena a 

um nível altamente generalizado e abstrato todos os mecanismos de integração e de controle social. A partir dessa definição, Luhmann vai desenvolver  

suas investigações sobre as relações entre Direito e sociedade a partir de três problemas distintos: “o do condicionamento que a sociedade exerce sobre o Direito; o do condicionamento que o Direito exerce sobre a sociedade; e o reflexivo, da relação entre o estudo do Direito e o estudo da sociedade” (Tre-  

ves, 1988, p. 215).

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dade auto-referencial do sistema jurídico, como fonte última das decisões judiciais. A única coação legal realmente efetiva para o centro do sistema jurídico é a obrigatoriedade da prestação jurisdicional.

O sistema funciona como sistema operativo fechado, à medida em que ele somente precisa reproduzir suas próprias operações; mas ele é, exatamente nessa

 base, um sis te m a aberto ao m undo circundante , à m edid a em que ele deve esta r

disposto a reagir a proposições (Anregungen)  de qualquer espécie, contanto que

elas assum am um a forma jurídica. A ssim, a p roibição da recusa da Justiça garan

te a abertura por intermédio do “fechamento” (Luhmann, 1990, p. 161).

No modelo teórico de Luhmann, a legislação deixa de ser compreendida 

como instância hierarquicamente superior à administração da Justiça, passan

do a ser reconhecida como um órgão periférico, que garante o acoplamento estrutural entre o sistema jurídico e o sistema político. Sua função é acomodar a irritação constante do sistema jurídico pelo sistema político, através de regras genericamente válidas, servindo na prática da administração da Justiça  

apenas para excluir excessos nas decisões de casos individuais. Somente o próprio centro do sistema pode ser concebido hierarquicamente, através das 

várias instâncias que ligam os juizes singulares aos tribunais.Quanto ao problema da reflexividade do Direito e da sociedade, Luh

mann considera que cabe à chamada dogmática jurídica, imersa no sistema jurídico, receber e elaborar as informações que entram no sistema (input - legislação nova, demandas judiciais), com uma orientação no passado, para as 

normas e decisões já estabelecidas. A sociologia do Direito teria como objeto  

o  output  dos sistemas normativos, isto é, os efeitos que estes sistemas produzem no meio, com uma orientação para o futuro, aos problemas de engenharia 

social.Para Hespanha, a teoria de sistema autopoiéticos de Luhmann, também  

chamada de  construtivism o auto -referencia l   (Hespanha, 1998, p. 262), aplicada ao Direito, coincide ponto por ponto com o chamado pós-modemismo  

 jurídico, ao reconhecer a autonomia do Direito em relação a outras dim ensões  

e contextos da prática social, a capacidade autonormativa do quotidiano, o pluralismo jurídico e o caráter local do saber jurídico .9

9 Embora aqui se sustente a vinculação da Teoria Social Sistêmica a uma perspectiva pós-modema do direito, o próprio Luhmann não aceita essa vinculação, ao criticar o que denomina vale-tudo pós-moderno  (Neves e Samios, 1997, p. 73). No entanto, no mesmo sentidode Hespanha é a opinião de Pissarra (in Luhmann, 1992), quando afirma: “Mantém, assim,também algum significado a inclusão desta teoria no quadro do que se convencionou chamar‘pós-modemidade’ (Bednarz, 1991, 423-32) - a expressão, no entanto, não pertence ao vocabulário do autor e é mesmo objeto da sua ironia corrosiva (Luhmann, 1987, 231). A conotação surge em virtude do interesse prestado à tendência deslegitimizante presente nas sociedades mais desenvolvidas, com a crise das ‘metanarrativas’ (do ‘Espírito’ ou da ‘Humanidade’), que formavam o quadro teleológico de referência da politica modema, e a emergênciade um critério puramente performativo (autolegitimante), de optimização da relação input-

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Quanto à autonomia do Direito, a teoria luhmanniana justifica a resistência que o sistema jurídico apresenta frente às intenções ou projetos oriundos de outros universos comunicacionais (subsistemas), adotando a noção de sistema autopoiético como uma alternativa frente às perspectivas que dissolvem  

o Direito em uma lógica do social, como nos determinismos economicistas, que consideram o Direito apenas na sua dimensão de instrumento de engenharia social.

Por outro lado, a noção de autopoiésis apresenta um interessante viés explicativo para as resistências dos sistemas comunicacionais do quotidiano em 

relação ao Direito oficial, na medida em que a causalidade inter-sistêmica nunca é direta, e sim mediada. Um sistema apenas pode “irritar” o outro, provocando nele reações internas que respondem a essa irritação de acordo com  

a sua própria gramática interna. Portanto, uma política jurídico-legislativa deve ser duplamente reflexiva, no sentido de avaliar as conseqüências de uma  inovação jurídica sobre o seu entorno, e o resultado dessa inovação em face  da estrutura e gramática interna do sistema jurídico.

Quanto à idéia de pluralismo jurídico, a teoria dos sistemas autopoiéticos permite compreender porque não basta ao sistema de Direito oficial declarar  

que o Direito se aplica igualmente a todos os cidadãos, já que na prática tendem a formar-se diversos sistemas de comunicação jurídica (direito oficial,  direitos populares, direitos das profissões, direitos das comunidades culturalmente diferenciadas) fechados entre si. Frente a essa pluralidade de sistemas  

 jurídicos, que constitui a descrição fenomenológica do Direito em sociedades  complexas, são evidentes as dificuldades de “tradução” das normas, institutos e conceitos de um sistema jurídico para outro. De fato, a comunicação jurídica intra e inter-sistêmica é feita através de suportes infrajurídicos (como a 

linguagem do senso comum), e se estes são culturalmente muito diferentes, a 

comunicação é atravessada por ambigüidades e mal-entendidos com repercussão no plano normativo.

C o n s i d e r a ç õ e s f i n a is

A nova teoria social sistêmica de Luhmann, por sua riqueza conceituai e 

pela capacidade explicativa do funcionamento dos sistemas e subsistemas sociais, tem se colocado no centro dos debates da teoria social contemporânea, 

atraindo adeptos e adversários em todos os quadrantes. Sem pretensão de realizar um julgamento, acreditamos ser possível identificar algumas de suas virtudes e os seus principais déficits, inerentes a qualquer tentativa de teorização  tão ampla e generalizante.

output, que em política eqüivale ao esvaziamento do processo de decisão e sua arregimenta-ção sob controle formalizado” (p. 19).

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A grande atração exercida pela teoria de Luhmann está relacionada com  

sua capacidade de lidar com alguns dos temas-chave do debate epistemológi- 

co contemporâneo, como as noções de complexidade e contingência, sem  aderir às tendências fragmentárias e microssociológicas do pós-modemismo  

francês (Lyotard, Baudrillard, Mafesolli). Nesse sentido, é possível conectar o pensamento de Luhmann à obra weberiana, da qual é possível sustentar que se coloca como uma continuidade direta em termos de filosofia da história,  tendo como diferencial a incorporação do funcionalismo parsoniano. E em  Weber que podemos encontrar uma filosofia da história pautada pela contingência e pela indeterminação, que não o impede de identificar o processo de 

crescente racionalização e burocratização das sociedades modernas.A preocupação de Weber com a jaula de ferro da modernidade, supri

mindo o espaço para a ação individual e a possibilidade de emancipação humana, é retomada por Luhmann como uma constatação auto-evidente, já que 

os seres humanos não fazem parte dos sistemas e subsistemas que eles mesmos estabeleceram a partir de seus fluxos de comunicação, que passaram a funcionar com a sua própria lógica binária, levando ao extremo o processo de 

racionalização do mundo identificado por Weber.Também chama a atenção na obra de Luhmann a capacidade de identifi

cação de alguns dos déficits funcionais das sociedades contemporâneas, que  permanecem irresolvidos pela lógica binária do subsistema político. E o caso 

daquilo que identifica como uma sobrecarga do subsistema jurídico-político, com a hipeijuridificação da vida social e a crise fiscal do Estado. Confrontado com essa realidade complexa, o sistema político-administrativo vem reagindo tardiamente, ao sabor do funcionamento auto-referenciado do subsistema dos partidos, através do qual são ocupados os cargos de poder administrativo.

Neste ponto, no entanto, o próprio Luhmann acaba por denunciar os limites da sua própria teorização, quando acredita ser possível lidar com essa situação de aumento da complexidade pela amoralização da política. Ora, se a lógica binária de governo e oposição tende ao esvaziamento das diferenças  programáticas e a redução do Estado a um mero gestor de conflitualidades sociais e complexidades sistêmicas, é somente através de escolhas morais que 

se pode distinguir não apenas as diferentes propostas para o exercício do poder, mas principalmente a prática política das diferentes facções. Por outro  

lado, a obrigatoriedade de decidir sempre entre governo e oposição impede  que se visualize toda a riqueza da dinâmica política parlamentar, em que se  

realiza a interlocução entre diferentes setores da sociedade, numa multiplicidade de interesses e opiniões que é inerente à forma democrática das modernas sociedades contemporâneas.

A mesma limitação pode ser apontada na análise do sistema jurídico,  quando Luhmann propõe ancorar a sua legitimidade na adesão a procedimen

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tos, sem considerar o conteúdo das decisões adotadas. É impossível pensar no 

sistema jurídico das modernas democracias ocidentais, sem levar em conta a delegação conferida aos tribunais para dirimir todo um conjunto de questões  

de profunda relevância moral para o conjunto da sociedade, traduzidas em 

decisões judiciais universalizantes, orientadas pela legislação e pela jurisprudência. Questões como o direito ao aborto, os níveis de poluição ambiental, a responsabilidade por danos ao patrimônio e violência contra a pessoa, a função social da propriedade, a relação de reciprocidade nos contratos formais e informais que fazem parte do quotidiano das sociedades contemporâneas, o 

alcance dos direitos e garantias individuais, têm sempre uma relevância do ponto de vista ético e moral que não pode ser reduzida ao código legal/ilegal,  como seria a pretensão de uma teoria pura do direito de origem kelseniana. 

Como coloca Boaventura de Sousa Santos (2000), a teoria da autopoiése do direito levanta importantes questões a respeito de problemas operacionais  particulares, como a demora e os custos da justiça, a brutalidade policial, o  

congestionamento dos tribunais e das prisões, a discrepância entre Direito legislado e Direito aplicado, etc. “N o entanto, para além do limitado - mas importante - nível ‘operacional’, esses problemas não são jurídico-técnicos: são 

problemas políticos (Santos, 2000, p. 161).Como conclusão, e sem esgotar de forma alguma as questões suscitadas 

pela riqueza da obra luhmaniana, cumpre apenas destacar a contribuição por ela aportada em um momento de transição paradigmática. Com a exaustão do 

paradigma moderno, pelo colapso e transformação das energias emancipató-  

rias em energias regulatórias, ingressamos em um período de transição paradigmática, no qual surgem novos riscos e inseguranças, mas também oportunidades para a inovação, a criatividade e as escolhas morais. Se a teoria de 

Luhmann não reconhece a importância destas últimas, não deixa de contribuir para que as mesmas sejam tomadas, colocando a nu a lógica sistêmica que regula e coloniza o mundo da vida de 6 bilhões de seres humanos. Ela nos alerta, no mínimo, para o seguinte dilema: quanto maior for a correspondência  

entre a descrição luhmanniana dos sistemas sociais, cegos e surdos aos valores humanos, maior a tragédia para a emancipação humana. Não há como negar a centralidade desse debate no delineamento de possíveis configurações  societais futuras.

Refe r ênc ias

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1 4 4 Rodrigo Ghir inghell i de Azevedo

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A condensação do “imaginário popularoposicionista” num significante vazio:

as “diretas já”

Daniel de Mendonça 

------------------------   -------------------------

Os capítulos constantes nesta obra, no âmbito mais geral da tradição pós- 

fundacionalista, apresentam importantes discussões de cunho teórico- 

epistemológico acerca da Teoria do Discurso de Emesto Laclau e da Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann. Sem dúvida nenhuma que o exercí

cio proposto neste livro, ou seja, o de estabelecer uma aproximação entre as 

teorias de Laclau e Luhmann constitui-se numa tarefa ao mesmo tempo ousa

da e importante. De nossa parte, em companhia de Rodrigues, já realizamos 

neste volume tal exercício aproximativo entre tais perspectivas teóricas.

O que nos cabe agora é tomar uma destas propostas teóricas e testar sua 

aplicabilidade em análises políticas. Nesse sentido, o presente trabalho pre

tende utilizar algumas noções da teoria laclauniana - primordialmente a noção de significante vazio - para analisar um acontecimento relevante da histó

ria política brasileira. Buscaremos, assim, sob o olhar da Teoria do Discurso,  

explicar a emergência e o sucesso popular que representou a Campanha das 

“diretas já”, ocorrida em 1984. Nossa hipótese geral de trabalho caracteriza 

as “diretas” com o um significante vazio - categoria analítica incorporada da 

tradição psicanalítica de Lacan pela teoria laclauniana - uma vez que esse 

movimento tomou-se um ponto nodal de condensação de múltiplas demandas 

sociais democratizantes do período.

Para a consecução dos objetivos apresentados, o presente capítulo está 

dividido em quatro seções principais. Na primeira seção, apontaremos alguns 

elementos explicativos da noção de significante vazio. No segundo momento, 

apresentaremos sucintamente as condições de emergência de um discurso 

democrático no Brasil autoritário, mais precisamente entre 1974 e 1984, pe

ríodo que se caracteriza como o momento de constituição do que denomina-

1 4 6 Oaniel de Mendonça

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mos de “imaginário popular oposicionista”. Nas terceira e quarta seções, estabeleceremos a relação entre o mencionado “imaginário popular oposicionista” e a campanha política das “diretas já”, aplicando aí a noção de significan-  

te vazio desenvolvida por Ernesto Laclau.

 A n o ç ão d e s ig n i f i c an te v azio

No âmbito da Teoria do Discurso, um significante vazio é um significan-  te sem significado. Contudo, um significante vazio é um significante sem significado, conforme aponta Laclau (1996), não por não fazer parte de um sistema de significações - o que conseqüentemente o impediria de produzir qualquer sentido - mas justamente pelo fato do significante vazio representar 

um sistema de significações que, devido ao seu caráter polissêmico, acaba por perder qualquer possibilidade de produzir sentidos específicos.

Tomemos um exemplo da constituição de uma prática articulatória discursiva para buscar esclarecer o ponto. “A”, “B” e “C” são elementos diferentes que num primeiro momento (M l) não estão relacionados entre si. Num  

momento seguinte (M2), surge o elemento “D”, que passa a estabelecer relações com “A”, “B” e “C”. Portanto, em M2, “D” consegue ser o ponto nodal'  

entre os elementos “A”, “B” e “C”, criando uma “ordem”, ou uma articulação, entre os três elementos. O resultado desta articulação é o discurso, cujo 

sentido principal, mas não o único, é o produzido pelo ponto nodal “D”. “D”, portanto, passa a representar um sentido comum em relação aos elementos  

unificados, alterando suas especificidades e ampliando seus próprios limites de significação. “D” constitui uma cadeia de equivalências, na qual as diferenças entre “A”, “B” e “C”, perante “D”, desaparecem. “D” suporta os três  elementos em questão, ou seja, “D” significa mais do que a singularidade de  

cada um dos elementos articulados.De forma simplificada, apresentamos acima a noção de prática articulatória, cujo resultado é o discurso.2 “D ” pode, ainda, articular mais elem entos do 

que os dessa limitada cadeia de equivalências formada por “A”, “B”, “C” e  “D”. “D” pode ser um elemento de convergência de tantas identidades a pon

1 A noção de ponto nodal é oriunda da psicanálise lacaniana, a partir do conceito de “points decapiton”, traduzido para o português como “pontos-de-estofo”. Joêl Dor (1989), explicandoessa noção afirma que, “para Lacan, o ponto-de-estofo é, antes de qualquer coisa, a operação pela qual o ‘significante detém o deslizamento, de outra forma indeterminado e infinito , dasignificação’. Em outras palavras, é aquilo por meio do qual o significante se associa ao significado na cadeia discursiva” (1989, p. 39).

2 No clássico  Hegemony and socialisl strategy,  Laclau e Mouffe enunciam com precisão asnoções de prática articulatória e de discurso: “chamaremos articulação qualquer prática queestabeleça uma relação entre elementos tal que suas identidades sejam modificadas como umresultado da prática articulatória. A totalidade estruturada resultante da prática articulatóriachamaremos discurso” (Laclau e Mouffe, 1985, p. 105).

 A condensação do “ im aginár io popular o posic ioni sta” num significant e v azio: as “d ir etas já" 1 4 7

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to de perder qualquer possibilidade de significação específica e se tomar um  significante sem significado, um significante vazio. Essa perda de significação específica é o resultado do esvaziamento dos sentidos identitários de “D” 

e essa é a razão desse elemento conseguir suportar (no sentido de representação, ou de  supplêment  em Derrida) a presença dos demais elementos inseridos na estrutura articulatória. Conforme Laclau (1996), a função do significante vazio reside justamente em renunciar sua identidade diferencial para representar o espaço comunitário, ou seja, o sistema de diferenças.

Céli Pinto (1999), num importante artigo que tem por objetivo apresentar 

as principais categorias da Teoria do Discurso de Emesto Laclau e Chantal  Mouffe, destaca o sentido de significante vazio quando apresenta, no terreno 

do político, o exemplo do esvaziamento dos conteúdos da democracia liberal:A democracia liberal se constitui em uma cadeia de equivalência com: liberdade

de expressão; igualdade perante a lei; eleições dos governantes e representantes,

na qual a democracia liberal é o termo que permite equivalência. Ora, a partir das

lutas da década de 60, este termo vai ganhando cada vez mais equivalências c

 perdendo cada vez m ais conte údos part ic ula res. Com põem esta cadeia de direitos

impensáveis antes da II Guerra, tais como: voto universal (homens/mulhe

res/analfabetos), direito das minorias, experiência de democracia participativa,

direitos sociais, etc. A democracia paulatinamente se torna um significante vazio(Pinto, 1999, p. 85).

Na situação apresentada por Pinto, temos, num primeiro momento, a 

“democracia liberal” como um termo que permite equivalências entre “liberdade de expressão”, “igualdade perante a lei” e “eleições dos governantes e 

representantes”. Nessa situação 1, portanto, a “democracia liberal” possui  sentidos bem delimitados e definidos. O exemplo avança e apresenta a situação 2. A partir da década de 1960, a “democracia liberal” passa a incorporar 

mais termos em sua cadeia de equivalências a tal ponto de ela não poder mais  

ser significada com um mínimo de exatidão. Isso ocorre porque o termo “democracia liberal” perde seu conteúdo específico, uma vez que passa a ser o 

ponto nodal de articulação de múltiplos elementos. A “democracia liberal” é, assim, um significante vazio, um universal, um lugar vazio .3

Apesar de um significante vazio ser um significante sem significado em  função da sua polissemia que este articula, é possível percebermos seus limites.4 Estes são, paradoxalmente, condição de possibilidade e de impossibili

3 A expressão “lugar vazio” é utilizada por Laclau (1996), para caracterizar a noção de Universal e de significante vazio.

4 Laclau, em  A morte e a ressurreição da Teoria da Ideologia (2000) demonstra com precisãoos limites de qualquer formação discursiva: “uma cadeia de equivalências pode, em princi pio expandir-se indefinidamente, mas, uma vez que um conjunto de relações centrais está estabelecido, essa expansão é limitada. Certas novas relações seriam simplesmente incompatíveis com as particularidades integrantes da cadeia” (Laclau, 2000, p. 140-141).

1 4 8 Daniel de Mendonça

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dade à constituição de um sistema discursivo.5 Dito de outra forma, ao mesmo  tempo em que os limites de um discurso articulado por um significante vazio  impedem sua expansão significativa e ameaçam sua existência (condição de 

impossibilidade), estes servem também para afirmar a própria existência dessa cadeia discursiva e para unir as diferenças por ela articuladas (condição de possibilidade), tendo em vista que o limite antagônico6 é idêntico a todas as identidades constituidoras do discurso, gerando, pois, a união dessas diferenças em tomo de uma luta comum: contra algo que, de uma forma ou de outra,  impede a constituição de todos os elementos dessa cadeia de equivalências. Pinto, tomando a democracia como um significante vazio, exemplifica os  

limites desse regime político:

A noção de democracia como um processo sempre em construção, que, por sua

natureza, tem potencialidades muito alargadas de incorporação e inclusão, ape

nas com um limite fundamental e constituidor: [...] a democracia, para não perder

a razão de existir, não pode incorporar a sua negação, isto é, discursos que pre

tendam legitimar a exclusão (Pinto, 1999, p. 97).

Vistos, portanto, a noção de significante vazio, bem como sua condição  

de possibilidade e seu limite de expansão significativo dado pelo corte anta

gônico, buscaremos, a partir da próxima seção, estabelecer as condições de emergência sócio-históricas que apoiam nossa hipótese de que o sucesso da  

campanha popular das “Diretas já” no Brasil em 1984 pode ser explicado a 

partir da lógica da constituição de um significante vazio.

 A c o n s t i t u iç ão d o “ im ag in ár io p o p u la r o p o s ic io n is ta ”

Nesta seção, apresentaremos as condições de emergência explicativas do 

significante vazio que se constituiu a campanha da “diretas já” nos momentos finais da transição política brasileira do autoritarismo para a democracia. Para tanto, revisitaremos, de forma sucinta, o tortuoso caminho da história da transição política brasileira entre 1974 e 1984, momento ao qual defendemos ser  

o da constituição do “imaginário popular oposicionista” ao regime autoritário 

que passaremos, a partir de agora, a enfocar.

5 Em outro momento desenvolvemos de forma mais aprofundada a discussão acerca dos limites de um sistema discursivo. Na verdade, introduzimos ao debate da Teoria do Discurso oque denominamos de a “dupla impossibilidade de objetivação discursiva”, dada, por um lado, pelo corte antagônico e, por outro, pelas próprias características de funcionamento da prática articulatória (Mendonça, 2003).

6 Em “Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo”, Laclau enfatiza o sentidoque deve ser entendido a categoria de antagonismo: “o ponto fundamental é que o antagonismo é o limite de toda a objetividade. Isto deve ser entendido em seu sentido mais literal:como afirmação de que o antagonismo não tem um sentido objetivo, de sorte que é aquiloque impede a constituição da objetividade como tal” (1993, p. 34).

 A condensação do “ im aginár io po pular oposi ci on is ta” num signi ficante vazio: as “d ir etas já" 1 4 9

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Em nossa análise, o “imaginário popular oposicionista” constituiu-se 

numa série de demonstrações de insatisfação política oriundas da população 

em relação ao governo autoritário, dispersas durante o período de transição. Este sentimento oposicionista manifestou-se, sobretudo, de duas formas: I) 

pela via eleitoral e; II) a partir da emergência dos “novos movimentos sociais” no final da década de 1970. Vejamos cada uma dessas formas de sentimento oposicionista, iniciando pela insatisfação popular manifestada nos resultados das eleições de 1974, 1976, 1978 e 1982.

 A in s at is faç ão e le i to ra l

Pela via eleitoral, o “imaginário popular oposicionista” ao regime autoritário pode ser observado a partir da vitória do MDB nas eleições legislativas 

de 1974. Para o governo militar e para os líderes da ARENA, vencer as eleições de 1974, de maneira lisa e contundente, representava um importante passo à institucionalização do regime autoritário e a segurança necessária de um avanço mais seguro em direção à abertura política. Nesse sentido, além da campanha publicitária realizada pelo governo ressaltando a importância da 

população em votar, foi liberada a utilização do rádio e da televisão para a 

campanha eleitoral, bem como foram realizados debates entre candidatos ao Senado com veiculação midiática. Tudo foi realizado para que a vitória da 

ARENA fosse incontestável, ou seja, para que a legitimidade política do autoritarismo, ainda incerta,7 fosse assegurada pelo povo. Nesse sentido, Maria  Helena Moreira Alves expressa a importância dessa eleição para os próceres 

do regime:

A conjuntura política e econômica indicava que tal política obteria êxito. Por um

lado, a insistência na busca de legit imação baseada no crescimento econômico

apresentava dificuldades cada vez maiores, com o estrangulamento do modeloeconômico. Por outro, a pesada derrota polí t ica do MDB nas eleições de 1970

 para o C ongresso sugeria aos planeja dores polí ti cos que a A REN A poderia efeti

vamente obter importantes vitórias nas eleições de 1974. Na realidade, poucos

observadores duvidavam de que a ARENA conseguiria esmagadora vitória sobre

a oposição em 1974. Na opinião dos estrategistas governamentais, eleições mais

livres, com acesso à televisão e ao rádio e claro recuo da coerção, aumentariam a

legitimidade do sucesso eleitoral do governo (Alves, 1984, p. 187).

Contrariamente às previsões de analistas politicos, de membros do governo, da ARENA e do próprio MDB, os resultados das eleições de 1974 re

7 Acerca da busca de legitimidade pelo regime autoritário no pleito de 1974, veja-se a posiçãode Lamounier: “[...] no Brasil, começando em 1974, o processo eleitoral foi de fato um testede forças e de legitimidade, e não o símbolo e o coroamento de um pacto de transição jáacertado noutras bases entre os atores relevantes” (Lamounier, 1985, p. 127).

1 5 0 Daniel de Mendonça

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presentaram o primeiro grande plebiscito8 contrário ao regime autoritário. O 

MDB, além de vencer as eleições para o Senado,9 aumentou substancialmente sua representação, tanto na Câmara dos Deputados, como nas assembléias legislativas estaduais.

O MDB teve significativamente aumentada sua representação no Congresso Na

cional. Em 1970, o partido obtivera 87 cadeiras na Câmara dos Deputados, con

tra 233 da ARENA. Em 1974, conquistou 161 cadeiras, e a maioria da ARENA

desceu para 203 cadeiras. Nas assembléias estaduais, a oposição ganhou 45 das

70 cadeiras no Estado de São Paulo, 65 das 94 no Rio de Janeiro e completo

controle das importantíssimas assembléias do Paraná e do Rio Grande do Sul.

Para muitos observadores polí t icos, como para membros do próprio MDB, a vi

tória da oposição surpreendia como uma inversão das tendências eleitorais. As

eleições foram em geral consideradas equivalentes a um plebisci to em que oseleitores votaram antes contra o governo do que na oposição (Alves, 1984, p.

189).

O resultado negativo para a ARENA das eleições parlamentares de 

197410 suscita duas constatações. A primeira é a de que o regime autoritário  

não detinha a legitimidade política que seus próceres esperavam, apesar do  crescimento econômico - ocorrido principalmente durante o período do go

verno Médici que ficou conhecido por “milagre econôm ico” - que, em 1974,  já demonstrava sinais ev identes de desgaste." Uma das possív eis causas dessa carência de legitimidade política foram os altos níveis de repressão empreendidos contra a oposição durante o período Médici. E importante lembrar  

que essa repressão se deu em boa parte contra estudantes, profissionais liberais, líderes políticos democráticos, intelectuais e artistas, que são classica-  

mente tidos como agentes importantes na formação da “opinião pública”. Por 

mais sucesso econômico que pudesse obter o autoritarismo brasileiro, era 

muito difícil esconder da população - principalmente das grandes cidades e dos estados mais desenvolvidos economicamente, onde a oposição obteve,  durante toda a transição, seus melhores resultados eleitorais - os momentos mais difíceis da repressão contra os movimentos oposicionistas. As vitórias

Segundo Lamounier, “o significado imediatamente intuitivo de voto plebiscitário é o de votação polarizada em termos da simples aprovação ou rejeição de uma proposição, ou da confiança ou desconfiança que os detentores do poder inspiram no povo” (Lamounier, 1988, p.

111). Na disputa no Senado, o MDB fez 14.579.372 votos contra 10.068.810 da ARENA (Alves,1984, p. 189).

10 Para uma análise mais detalhada da vitória política do MDB nas eleições de 1974 em três estados brasileiros (São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul), são importantes os resultados dos surveys analisados respectivamente nos artigos de Bolívar Lamounier, Fábio Wan-derley Reis e Hélgio Trindade (Cardoso e Lamounier, 1978).

" Acerca das causas das dificuldades econômicas enfrentadas pelo regime autoritário a partirde 1973, ver a análise de Luiz Carlos Bresser Pereira (1978), principalmente os capítulos VI-II, IX, X, XII, XIV e XVI.

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da ARENA em 1966 e 1970 não poderiam também justificar previamente uma vitória govemista em 1974, haja vista que, além dessas eleições terem 

sido inegavelmente viciadas em legitim idade,12 não foi realizado nenhum pleito legislativo em níveis estadual e federal no Brasil entre 1970 e 1974, pe

ríodo marcado pelo alto grau de repressão política. A realidade que parecia óbvia, mas que em 1974 ninguém percebeu, era a de que não havia meios de  

se precisar qual era o grau de legitimidade do regime autoritário, tendo em vista que o termômetro social mais eficaz, o processo eleitoral, não fora sido  realizado no ápice do período de repressão.13 Mesmo considerando os resultados de 1970, amplamente favoráveis à ARENA, não se pode, ainda assim, ter segurança do grau de legitimidade autoritária, tendo em vista que as circunstâncias eleitorais de 1970 não podem ser minimamente comparadas com 

as do pleito de 1974, cujo grau de liberalismo político-eleitoral foram muito maiores.

A segunda constatação decorrente da derrota da ARENA em 1974 é a de 

que, uma vez instaurado o “projeto de abertura”, pelo presidente Geisel, e o 

conseqüente “processo de abertura”,14 esses fugiram ao controle, tanto do governo, como da oposição. O “processo de abertura” adquiriu uma dinâmica  própria que foi muito além de uma estratégia inicial concebida pelo governo.  

Esse argumento está em conformidade com o de Lamounier, uma vez que, segundo este autor, “eleições competitivas podem exercer efeitos liberalizantes mesmo dentro de sistemas políticos não-competitivos” (Lamounier, 1988, p. 96). Lamounier explica ainda a importância das eleições de 1974 para a dinâmica da abertura: “o mínimo que se pode dizer dessa eleição [...] é, pois, que ela deu início à autonomização da abertura como processo político, trans- formando-a em algo bem menos reversível do que o inicialmente antevisto na estratégia governamental” (Lamounier, 1988, p. 111). A reversibilidade do 

processo representaria um novo fechamento do regime, o que comprometeria em boa medida a legitimidade política que buscava o governo autoritário.

12 Apesar da notável diferença em relação à transparência e a lisura do pleito de 1974 em suarelação com os de 1966 e 1970, não estamos afirmando aqui que ele transcorreu dentro dos padrões de uma ordem democrática. A análise de Carlos Estevam Martins, O balanço da campanha  discute a falta de representatividade, liberdade, igualdade, o baixo grau de participação política e o péssimo nível ideológico que marcou o pleito e os dois partidos envolvi

dos (Martins, 1978, p. 77-126).13 Nesse ponto, desconsideramos as eleições de 1972, uma vez que essas ocorreram meramenteno âmbito dos municípios, excluindo-se, contudo, as capitais.

14 Luiz Wemeck Vianna diferencia “projeto de abertura” de “processo de abertura” da seguintemaneira: “toma-se claro que o projeto aberturista, trama destinada a autopreservar o regime,não se confunde com o processo de abertura, cujo sentido está subordinado à ação e orientação das forças sociais e políticas. Esse processo ganhará novas energias principalmente sefor consolidado um sistema de alianças em tomo da democracia, amplo o suficiente paraabarcar movimentos convergentes anti-regime, mesmo de setores sociais que não têm a democracia como centro de sua mobilização” (Vianna, 1983, p. 166).

1 5 2 Daniel de Mendonça

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Absorvido o impacto da derrota de 1974, a preocupação imediata do governo em relação à arena eleitoral passou a ser com as eleições municipais de 

1976. Conforme Alves (1984), tendo por base estudos realizados pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), constatou-se que o acesso ao rádio e à te

levisão obtido pelos partidos no período eleitoral, contribuiu muito para a vitória oposicionista em 1974. Era necessário, portanto, para uma vitória eleitoral da ARENA, que o governo autoritário impedisse novamente tal acesso,  tendo em vista as eleições municipais de 1976 e o pleito para o Congresso 

Nacional e às assembléias legislativas em 1978. A medida limitativa do acesso ao rádio e à televisão foi o Decreto-Lei n° 6.639/76, que ficou conhecido  como a “Lei Falcão”. O referido Decreto-Lei limitava que a aparição dos  

candidatos durante a campanha eleitoral no rádio e na televisão ficasse restrita à divulgação do nome, do número e de um breve currículo, além de uma  

foto, no caso da campanha de televisão. O objetivo dessa limitação era, sobretudo, impedir a apresentação de propostas e críticas ao regime oriundas dos  candidatos do MDB.

Mesmo com o auxílio casuístico da Lei Falcão, o resultado das eleições  de 1976 ficou aquém do esperado pelo governo. A ARENA obteve mais ou 

menos 35% do total dos votos contra cerca de 30% do MDB (Alves, 1984, p. 191). Se, por um lado, o partido govemista venceu facilmente nas cidades situadas nas regiões mais pobres e menos desenvolvidas do país, por outro lado, a vitória do MDB ocorreu principalmente em locais com os maiores índices de desenvolvimento econômico. A oposição, portanto, conquistou a maioria das câmaras municipais de Porto Alegre, de São Paulo, do Rio de Janeiro,  de Belo Horizonte, de Salvador, de Santos e de Campinas.

Como a Lei Falcão não conseguiu conter o crescimento eleitoral do 

MDB, principalmente nos grandes centros urbanos e, tendo em vista que a le

gislação eleitoral previa para 1978 - além da escolha de novos parlamentares ao Congresso Nacional e às assembléias legislativas —a eleição direta dos governadores dos estados, o governo autoritário estava na iminência de mais  uma vez ser derrotado eleitoralmente. Eram necessárias, portanto, novas medidas restritivas ao avanço do MDB. Entretanto, os dispositivos legais a serem alterados eram constitucionais e, portanto, requeriam dois terços dos votos do Congresso Nacional, ou seja, uma maioria qualificada que o governo  

não dispunha, como vimos, desde os resultados das eleições de 1974.

Assim, utilizando-se o Ato Institucional n2 5, Geisel fechou o Congresso  em le de abril de 1977, e decretou uma “reforma constitucional”, que ficou  conhecida por “pacote de abril”. Tal “reforma” visava principalmente a promover alterações na legislação eleitoral em razão das eleições de 1978 que se  avizinhavam. A partir do “pacote de abril” a aprovação de emendas constitucionais dependeria tão-somente da votação de maioria simples no Congresso  Nacional; os governadores dos estados e um terço dos senadores seriam elei

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tos indiretamente por colégios eleitorais estaduais, bem como os efeitos da Lei Falcão permaneceriam vigentes. O “pacote de abril” representou claramente a admissão de que o regime autoritário carecia de legitimidade politica,  tendo em vista que, para manter maioria no Senado e o controle dos poderes 

executivos estaduais, era necessário recorrer às eleições indiretas que, na prática, representava a escolha de membros do regime para a ocupação dessas  

cadeiras.Apesar dessas medidas casuisticas visando à vitória da ARENA, o MDB  

obteve ainda um excelente desempenho eleitoral. Na disputa pelo Senado, por 

exemplo, o partido oposicionista conquistou 4,3 milhões de votos a mais do que a ARENA. Contudo, apesar desta importante diferença pró-oposição, o MDB conquistou apenas nove cadeiras no Senado contra 36 da ARENA. Dessas 36 cadeiras conquistadas pela ARENA, “21 foram ganhas nas eleições  indiretas dos colégios eleitorais aumentados nos estados” (Alves, 1984, p. 200). Na Câmara dos Deputados, a ARENA elegeu 231 deputados contra 189 

do MDB. O “pacote de abril” conseguiu, assim, conter o avanço da oposição  emedebista e garantir a maioria da ARENA no Congresso Nacional.

Já o processo eleitoral de 1982 - o primeiro desde a volta do pluriparti- darismo em 1979 - representou um passo dec isivo no processo de redemocra- tização. O governo, prevendo mais uma derrota, editou, em novembro de 

1981, outro subterfiigio eleitoral que ficou conhecido por “pacote de novembro”. Esse conjunto de medidas restringia a participação dos partidos de oposiç ã o ,15 que excluind o o PM DB , ainda eram organ izações d ébeis e sem 

abrangência nacional.A resposta imediata da oposição a mais uma medida legal restritiva foi a 

incorporação do Partido Popular ao PMDB. Com isso, o PMDB ganhou importante reforço eleitoral para enfrentar o pleito de novembro de 1982. A in

corporação do PP pelo PMDB reinstituiu, na prática, em quase todas as disputas estaduais, o bipartidarismo presente durante praticamente todo o regime autoritário. Assim, a campanha eleitoral foi extremamente competitiva, com a 

realização de intensos debates entre partidos e candidatos, principalmente às vagas ao Senado Federal e aos governos dos estados. A campanha foi marcante também pelo grande envolvimento da sociedade civil.

O resultado eleitoral foi novamente positivo para a oposição. Entretanto, o PDS, justamente em função das medidas restritivas do “pacote de novem

bro”, conseguiu ainda manter sua maioria no Congresso Nacional: 235 deputados federais e 46 senadores, contra 200 deputados e 21 senadores do

15 Algumas medidas da reforma eleitoral anunciada pelo presidente Figueiredo em 25 de novembro de 1981 foram: 1. proibição de coalizões para escolha de candidatos aos governosdos estados; 2. obrigatoriedade de votação num mesmo partido em todos os níveis em disputa (de vereador a governador); 3. impedimento da renúncia de candidaturas, salvo se o partido desistisse de concorrer na eleição.

1 5 4 Daniel de Mendonça

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PMDB.16 Para os executivos estaduais, o PDS elegeu 12 governadores, contra9 do PMD B e 1 do PDT.

As eleições de 1982 representaram o último grande plebiscito contrário ao autoritarismo antes do movimento das “diretas já”. No sentido da reorde- 

nação institucional do poder político esse pleito representou, na análise de Lamounier, “um marco verdadeiramente significativo”:

A eleição de 10 governadores oposicionistas e a perda pelo governo da maioria

absoluta da Câmara dos Deputados deu ao sistema polít ico um caráter diárquico

(como sugere Juan Linz), e elevou substancialmente o nível do confronto no que

diz respeito à própria sucessão presidencial (Lamounier, 1985, p. 134).

O tipo de transição operada no Brasil, pela via eleitoral, gerou, apesar  

dos muitos constrangimentos à oposição partidária aqui relatados, uma “distribuição de votos francamente competitiva” (Lamounier, 1985, p. 128) entre governo e oposição, a ponto de, nas eleições de 1982, o partido govemista nitidamente ter perdido o controle do processo de transição e a situação política  tomar-se instável, permitindo a emergência de um movimento popular da dimensão das “diretas já”, como veremos a seguir. Em relação à constituição do 

“imaginário popular oposicionista” ao regime militar, entendemos ser a via 

eleitoral um m eio eficaz de medição de legitimidade (ou sua da falta) por par

te de um grupo político no exercício de um govemo. Se não fossem as medidas eleitorais restritivas e casuísticas, não seria demais afirmar que o regime autoritário colecionaria derrotas eleitorais em escala muito mais significativa.

 A c o n tes taç ão d o reg im e au to r i tár io p elo s m o v im en to s s o c iais

O sentimento oposicionista demonstrado eleitoralmente pela população 

não foi o único do período autoritário brasileiro. No final da década de 1970,  emergiram no país movimentos sociais que evidenciaram ainda mais o paulatino decréscimo de legitimidade política da situação autoritária.

E importante registrarmos que a emergência dos movimentos sociais foi possível a partir da estratégia da distensão, empreendida inicialmente pelo 

govemo Emesto Geisel. Como mencionamos acima, a disposição do regime de se legitimar politicamente perante a população fez com que, a partir de suas próprias estruturas, iniciasse o projeto de liberalização política, o que, 

em grande medida, encorajou a emergência de movimentos sociais que buscavam a observância de suas demandas específicas por parte do Estado. Nas  palavras de Przeworski: “uma vez que a repressão diminui, por quaisquer razões, a primeira reação é a explosão de organizações autônomas da sociedade

16 Os demais partidos obtiveram os seguintes resultados: PDT, 24 deputados e 1 senador; PTB,13 deputados e 1 senador e; PT, 8 deputados e não obteve vaga no Senado (Alves, 1984, p.286).

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civil. Organizações estudantis, sindicatos e protopartidos se formam do dia 

para a noite” (Przeworski, 1989, p. 27).É importante ainda salientarmos que se, por um lado, a emergência des

ses movimentos se deu em conseqüência de uma maior liberalização politica, 

por outro, restou claro que o acolhimento de suas demandas específicas por parte do Estado era extremamente limitado em função da estrutura estatal autoritária que impedia a participação popular.17

Desta forma, entendemos que não é necessário que um movimento social  

reivindique diretamente o fim do regime autoritário para que este ameace a existência do autoritarismo. Isso porque o que era comum a todos os movimentos sociais do final da década de 1970 era que suas demandas específicas  entravam em constante choque com um regime que, conforme de Forget,18 via 

“todos os brasileiros” da mesma forma, ou seja, como membros de uma idêntica nação, não reconhecendo, portanto, movimentos que reivindicassem demandas específicas. O não-atendimento das demandas desses movimentos sociais favoreceu em muito o desenvolvimento do “imaginário popular oposicionista” em relação ao regime autoritário. Inúmeros movimentos sociais  

emergiram nesse período. Mencionaremos, contudo, somente três deles, partindo das greves operárias do ABC paulista, entre os anos de 1978 e 1980, passando pelos movimentos populares e pelo movimento feminista.

As greves operárias da região do ABC paulista foram lideradas por uma 

corrente do movimento sindical brasileiro que ficou conhecida por “sindicalismo autêntico” ou “novo sindicalismo”. Os “autênticos” formavam um grupo de novos sindicalistas oriundos principalmente de indústrias de setores pesados e de ponta da economia brasileira, como metalúrgicas, siderúrgicas, refinarias de petróleo e petroquímicas. Esse grupo de sindicalistas representou 

uma nova visão na relação existente entre capital e trabalho em contraposição 

ao sindicalismo tradicional brasileiro instituído no período populista.19 Os

17 Acerca da problemática entre Estado autoritário e movimentos sociais concordamos com ainterpretação de Przeworski: “Assim, por um lado, as organizações autônomas emergem dasociedade civil enquanto, do outro, não existem instituições às quais possam apresentar suas posições e com as quais possam negociar seus interesses. Por causa desse hiato entre a organização autônoma da sociedade civil e o caráter fechado das instituições estatais, o único lugar onde os grupos recém-organizados podem eventualmente lutar por seus valores e interesses são as ruas” (1989, p. 27-28).

18 Nesse ponto, concordamos com a análise de Forget acerca da idéia-força que caracteriza amaioria dos discursos autoritários: “A grande maioria dos discursos autoritários se baseia emtemas de colorações drásticas, e os proferidos no Brasil durante o regime militar não esca

 pam à regra. [...] A defesa da nação, ou ainda da pátria ou do país, representa o ideal máximo: nesse sentido não se luta por interesses individuais ou de classe, mas por uma causa comum, cujo caráter ufanista e abstrato dispensa maiores definições” (1994, p. 35-36).

19 Não trataremos aqui das divergências no interior do movimento sindical brasileiro no finalda década de 1970. Para um balanço crítico das contradições do sindicalismo no período autoritário, ver o artigo “O Sindicalismo Brasileiro entre a Conservação e a Mudança”, de Maria Hermínia Tavares de Almeida (Almeida, 1983).

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colas, etc. Subjacentes a essas demandas pontuais e à difícil resposta do Estado a todas elas, estão questões políticas mais gerais, como a própria oposição  desses movimentos populares ao regime autoritário.

E interessante ressaltarmos que, na maioria das vezes, a constituição dos 

movimentos populares tem origem externa às próprias comunidades. Igreja  Católica, médicos, professores, advogados, arquitetos, militantes de partidos 

de esquerda, foram atores de extrema importância na mobilização e na formatação técnica das demandas dos movimentos populares, conforme aponta Ru-  

th Cardoso:

Além da Igreja, grupos de profissionais oferecem assessorias técnicas valiosas. O

movimento de loteamentos clandestinos, por exemplo, não existir ia sem o apoio

voluntário dc alguns advogados. Arquitetos, professores e médicos também cola

 borara m com grupos popula res, desejo sos de dar sentido polít ic o ao seu saber

 profis sio nal (C ardoso, 1983, p. 231).

O papel da Igreja Católica merece, nesse contexto, destaque especial. Ralph Delia Cava (1988) enfoca como o quarto momento21 da relação entre  

Igreja Católica e sociedade brasileira no período autoritário, entre 1978 e 1985, o período em que as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) trabalharam efetivamente na organização das populações carentes para que estas exi

gissem do Estado autoritário medidas objetivas à melhoria de suas realidades locais. Não obstante, a atuação das CEBs foi além: tendo por base a reivindicação das demandas locais, o trabalho desenvolvido visava também à formação de uma consciência popular socialista e diametralmente oposta ao regime  

autoritário (Cava, 1988).Dessa forma, o “processo de abertura”, além das disputas entre membros 

da elite política, perpassou também pelas reivindicações dos mais pobres. Assim, os movimentos populares urbanos surgiram e desafiaram o autoritarismo. 

Suas demandas poderiam não ser diretamente o “fim da ditadura”, ou o “restabelecimento da democracia”. Contudo, seguramente pode-se dizer que essas questões mais gerais eram o pano de fundo para uma população que reivindicava o que tem de vir antes de tudo: água tratada, esgoto pluvial, asfalto, moradia, escolas. Exigiram com veemência e radicalismo ações do Estado autoritário para que lhes fossem garantidas condições humanas dignas. Como  opositores do autoritarismo foram os mais ferozes, os menos tolerantes e os  

mais desesperados.

21 Os três primeiros momentos históricos das relações entre a Igreja Católica e o Estado autoritário são: o primeiro, entre 1964 e 1968-69, marcado por divisões ideológicas e políticas noclero entre “conservadores” e “progressistas”, com maior influência dos “conservadores”. Osegundo momento, iniciado em 1968-69, teve duração até o final de 1973 e ficou marcado por um crescente movimento de oposição do clero ao regime autoritário que estava no augeda repressão política. O terceiro momento, entre 1973/74 a 1978, ficou conhecido pelas posições e ações da Igreja profundamente criticas ao autoritarismo.

 A condensação do “ im aginár io popular opos ic ioni sta” num signif icante vazio: as ‘ di retas já" 1 5 9

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Assim como os movimentos populares, nesse mesmo período, surgiram também vários movimentos de mulheres por todo o país. Em meados da década de 1970, portanto, tanto mulheres de classe média e nível superior, como  mulheres pobres e com pouca instrução formal, organizaram movimentos pa

ra pressionar o governo autoritário com reivindicações políticas específicas  de gênero. A luta das mulheres foi difundida em vários setores da sociedade, como na formação de inúmeras entidades civis feministas, no engajamento nos partidos políticos de oposição e na participação ativa no movimento sindical também nascente no período.22

O surgimento dos movimentos de mulheres desafiava o regime autoritário, pois restava claro, pelo menos aos grupos feministas mais intelectualizados, que a luta política em direção à redcmocratização era o primeiro caminho que deveria ser percorrido para após, numa sociedade mais democratizada, reivindicarem políticas específicas de gênero.

Com isso não estamos afirmando que as feministas, durante o período autoritário, anularam suas demandas de gênero para apenas se incorporarem na 

luta mais geral pela redemocratização. Creches, planejamento familiar, métodos de controle de natalidade, igualdade em relação ao homem no contrato  matrimonial, luta contra a violência em casa, salários iguais e redistribuição  

do trabalho doméstico (Alvarez, 1988), eram algumas demandas que o movimento feminista no Brasil reivindicava ao Estado brasileiro. Ocorre que o regime autoritário não reconhecia tais demandas de gênero como legítimas.  Ademais, quaisquer demandas específicas não tinham o mínimo reconhecimento institucional, como demonstra Céli Pinto:

O projeto autoritário tratou de anular diferenças e construir sujeitos-políticos únicos, ao mesmo tempo em que, por sua natureza conservadora, reforçou a construção de sujeitos historicamente retrógrados. Esses sujeitos eram construí

dos a partir de interpelações conservadoras que pretendiam reforçar as condições de emergência onde tomavam lugar (Pinto, 1987, p. 169).

Buscamos demonstrar até aqui que, tanto pela via eleitoral, como a partir da emergência dos novos movimentos sociais, o governo militar assistiu o crescimento do “imaginário popular oposicionista” e o conseqüente decréscimo de sua legitimidade política. Eleições de 1974, 1976, 1978, movimentos 

sociais no final da década de 1970, restabelecimento do pluripartidarismo, eleições de 1982. O caldeirão oposicionista estava esquentando. Contudo, a 

grande explosão de participação e ânimo popular contra o regime ainda estava por vir. A Campanha das “diretas já” representou o coroamento e o ponto 

nodal de múltiplas demandas, constituindo-se num significante vazio como  demonstraremos na próxima seção.

22 Para uma análise das relações de gênero no seio do movimento sindical brasileiro no períododo surgimento do “novo sindicalismo”, ver Brito (1986).

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 A c o n d en s aç ão d o im ag in ár io p o p u la r o p o s ic io n is ta  n a s “ d i r e ta s j á ”

A origem da Campanha das “diretas já” remonta março de 1983. Nos  

primeiros dias da legislatura, o deputado federal Dante de Oliveira  (PMDB/MT) protocolou na Câmara dos Deputados um projeto de emenda  

constitucional que previa alterações importantes nas regras da eleição para presidente da República. Essa eleição, que constitucionalmente estava prevista para ser indireta passaria, se aprovado o projeto, a ser realizada a partir de  

sufrágio universal.Tão logo foi protocolada, a emenda conquistou a simpatia e o apoio de  

entidades importantes da sociedade civil, conforme constatou Forget:

A Igreja assume um papel importante após endossar a emenda em abril de 83; o mesmo ocorre com os sindicatos, que, encabeçados por Lula, realizam uma verdadeira campanha de manifestações públicas ao lado de alguns membros do patronato. Os advogados, sempre atentos aos debates jurídicos dos últimos anos, exercem pressões sobre os grupos juntando-se a profissionais liberais, intelectuais e mesmo artistas (Forget, 1994, p. 164).

É importante destacarmos que o apoio dado por diversas entidades da so

ciedade civil à emenda Dante de Oliveira retirou do âmbito meramente legislativo o monopólio dessa discussão política, tomando a disputa pró ou contra eleições diretas para Presidência da República um tema debatido pelos mais  

amplos setores da sociedade brasileira. Este é um elemento extremamente importante, tendo em vista que os atos legislativos concernentes à emenda  

passaram a ter relevância, não meramente aos profissionais da política, mas  

também aos grupos e indivíduos que, geralmente, estão fora da disputa política e que, nesse momento pontual, buscaram influir no processo político, na  

direção do que afirma Gaxie:Negócio de profissionais, a política interessa (em todos os seus sentidos) primeiramente, aos profissionais e seus partidários [...]. Não que os outros sejam desprovidos de meios de influenciar os processos políticos. Através da ação dentro das organizações profissionais, as greves, as manifestações, as petições, levantes populares, as rebeliões, as insurreições ou as revoluções, os agentes habitualmente excluídos da luta pelo poder podem ser levados a influenciá-los (Gaxie, 1993, p. 41).

Conforme Gaxie, ordinariamente a prática política interessa primeiramente aos seus profissionais, conhecedores de sua lógica de funcionamento e de seus limites. Nesse sentido, independente do regime, a dimensão da política é comumente administrada por esses profissionais. Entretanto, existem  mom entos em que outros grupos sociais - ordinariamente estranhos à disputa 

política quotidiana - conseguem influenciar a arena política. Isso porque, o  espaço político, principalmente o parlamentar, mostra-se comumente sensível

 A conden saç ão do “ im agin ár io pop ular opos ic ioni sta” num signi ficante vazio : as “d ir etas já” 161

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às pressões externas. Dessa forma, é interessante notar que o apoio ao projeto  das diretas por parte de entidades da sociedade civil organizada como a Igreja Católica, os sindicatos e as entidades de profissionais liberais passou objeti

vamente a pressionar os parlamentares a aprovarem tal emenda em pleno autoritarismo, ou seja, durante um regime político que, apesar de claros sinais 

de liberalização, representava inequivocamente uma ideologia política que vedava a participação popular nas decisões públicas.

Assim, como afirmamos acima, as primeiras pressões populares pró- diretas remontam a abril de 1983, através das manifestações de entidades da sociedade civil organizada. O início oficial da Campanha ocorreu, contudo,  somente em janeiro de 1984. Nesse período - entre o protocolo do projeto de 

emenda constitucional e o com ício realizado em Curitiba23 - registrou-se o recebimento de várias adesões da sociedade civil ao movimento que ainda estava por acontecer.24

Em novembro de 1983, por exemplo, a revista “Veja” registrou que o projeto do deputado Dante de Oliveira havia recebido o apoio de todos os dez 

governadores oposicionistas. Positivamente sintomático à campanha foi o 

anúncio da revista do apoio à emenda de nove dos 13 governadores do então  partido govemista, o PDS (Veja n2 794, 23/11/83, “Uma Direta no PDS”, p. 

37). Na mesma matéria, a revista destaca ainda que Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, reuniu sindicalistas “para levar a campanha pela direta para a porta das fábricas” (p. 37). Outras manifestações pró-diretas ocorreram no mês de novembro, como o ato público e o abaixo-assinado de artistas, realizado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo (Veja n- 795, 30/11/83, “Diretas já ou em 1986”, p. 36).

Tanto a revista “Veja”, como a “Isto É”, divulgaram dados de pesquisas  

de opinião favoráveis à realização de eleições diretas. A “Veja” divulgou a enquete realizada pelo Instituto Gallup que apontou, em junho de 1983, que 79% dos paulistas e cariocas preferiam a realização de eleição direta à Presidência da República (Veja ns 796, 07/12/83, “A direta pára no PDS”, p. 42).

23 O comício realizado em 12 de janeiro de 1984 na cidade de Curitiba/PR é tido pelos organizadores do movimento, os partidos políticos de oposição, como o evento oficial de aberturada campanha das “diretas já ”.

24 Algumas dessas adesões são registradas pela revista “Veja” : “Existem poucos sinais visíveisda evidente simpatia popular pela eleição direta, como os adesivos plásticos colados às janelas dos veículos que circulam no Rio de Janeiro. “Brasil Urgente - Diretas para Presidente”,

 pregam esses adesivos, encomendados por um grupo de arquitetos cariocas que decidiu levara campanha às ruas. Cerca de 6.000 já foram vendidos no mês passado, boa parte dos quais por um Comitê do Rio de Janeiro por Eleições Livres e Diretas, que reúne cerca de oitentasindicatos e associações de bairro. O comitê pretende lançar um manifesto no próximo dia21 e prepara um abaixo-assinado, a ser enviado ao Congresso, solicitando mudanças naConstituição que permitam o povo escolher o presidente” ( Veja, n. 792, 09/11/83, “As diretas no páreo”, p. 40).

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Essa mesma pesquisa foi também publicada pela “Isto É”, que adicionou ainda os dados relativos às enquetes realizadas anteriormente. Portanto, além dos  79% registrados em junho de 1983, as enquetes do Instituto Gallup, realizadas em 1981, 1982 e em fevereiro de 1983, respectivamente, registraram o 

crescimento da preferência do eleitorado paulista e carioca em relação à eleição direta para presidente na ordem de 63%, 68% e 74% (Isto E ne 361,  23/11/83, “Foi dada a partida”).

As manifestações de apoio à emenda Dante de Oliveira cresceram ainda  mais entre janeiro e abril de 1984. Vários são os exemplos que podem ser 

apontados. Na edição de “Veja” nu 805, de 08 de fevereiro, a Confederação Nacional dos Professores do Brasil, em apoio à emenda, distribuiu material as  

suas entidades filiadas, “orientando os professores sobre como abordar o tema  da direta com os alunos” (p. 28). Nessa mesma matéria, noticiou a revista que  “em Belo Horizonte, os funcionários de sindicatos dos trabalhadores já atendem telefonemas substituindo o tradicional  alô  pela frase “sindicato pela direta” (p. 28). Faixas, cartazes e outros materiais com inscrições como legalização dos partidos comunistas, “democracia nas universidades” (Veja n2 808, 29/02/84, “O grito dos mineiros”, p. 20), “direitos da mulher, diretas já” (Ve

 ja ne 814, 11/04/84, “Bola de N eve”, p.24), dentre outros, podiam facilmente  

ser vistos nas dezenas de comícios da Campanha. A própria organização do comício realizado em São Paulo, em 25 de janeiro de 1984, contou com uma 

heterogênea organização:

Preocup ante, para B rasíl ia, era o fato de q ue, duran te mais de um m ês, a prep ara

ção do comício juntou em uma inédita maratona de reuniões, em dias e dias de

trabalho minucioso e interminável, representantes de todos os partidos de oposi

ção, das variadas entidades representativas da sociedade civil , dirigentes sindi

cais f i liados à CU T e à CO NC LAT , católicos e protestantes - subi tamente unidos

em tomo de uma palavra de ordem que outra vez, como nos tempos mais difíceis,reuniu todos sob o mesmo teto amplo (Isto É,  n. 371, 02/02/84, “O gigante que

desperta”, p. 17-18).

O grande número de entidades da sociedade civil que participaram da 

campanha das “diretas já” - sindicatos, organizações de estudantes, grupos feministas, entidades religiosas, associações de moradores - demonstram a 

importância dessa campanha na luta contra o regime autoritário, o único elo  que insistia na manutenção de eleições indiretas para presidente. Não se tra

tava somente de reivindicar “diretas já”. A idéia inicial da emenda Dante de  Oliveira, que gerou a campanha popular, esvaziou seu conteúdo específico.  Quanto mais avançavam os dias - entre janeiro e abril - mais pessoas se engajavam nesse movimento, mais demandas específicas eram incorporadas:  mais elementos ingressavam nessa cadeia de equivalências discursiva que tinha como ponto nodal a campanha pela volta do direito de votar no presidente.

 A condensação do “ im aginár io popular o posic ionis ta” num significante vazio: as “d ir etas já ” 1 6 3

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N esse sentido, para muitos grupos - e esta é a questão fundamental - lutar por eleições diretas para presidente da República, um expediente que muitos países democráticos dispensam e nem por isso deixam de ser considerados democráticos, representava muitas vezes um pretexto para demandarem suas 

questões pontuais, as quais não vinham tendo espaço de emergência naquela  situação autoritária. Como vimos acima, havia manifestantes que, além das diretas, reivindicavam, dentre muitas outras questões específicas, a democratização nas universidades, mais direitos civis às mulheres, ou seja, questões  que não possuíam nenhuma ligação direta com a regra formal de votar para presidente.

O que deve ser percebido nestas manifestações para além das “diretas já” 

é que somente derrotando o regime autoritário - o corte antagônico e ameaçador das identidades constituidoras do sistema discursivo “diretas já ” - e re- instituindo a democracia, esses movimentos viam a possibilidade de demandar suas políticas específicas que só poderiam ser reconhecidas por um regime político que admitisse a existência de diferenças, contrariamente a um regime autoritário que, por definição, tende a igualar todos os “cidadãos” do  Estado sob os preceitos e bases de sua “revolução”.

O grupo político contrário às “diretas já” restringia-se ao govemo federal 

e à maioria do PDS. O interesse imediato desse grupo era o de eleger o sucessor do presidente João Figueiredo. Acreditavam que, para isso, era necessário  

que a eleição presidencial se mantivesse indireta.Já o grupo pró-diretas não pode ser dimensionado com clareza, nem no 

que tange o número de identidades envolvidas, nem em relação aos seus múltiplos objetivos condensados em tomo da idéia que a todos abrigava: o direito  de votar para presidente. Podemos exemplificar, mais uma vez o sentido hegemônico da campanha das diretas através da seguinte constatação registrada  

num editorial da revista “Veja”:Hoje o desejo de escolher o próximo presidente da República é a maior unanimidade popular já registrada na História do Brasil, algo que se afere não apenas pelo tamanho dos comícios, mas por toda e qualquer investigação de opinião pública que se possa fazer. Nunca tantos quiseram a mesma coisa no mesmo tempo {Veja, n. 815, 18/04/1984, Carta ao Leitor, p. 21).

É importante, nesse ponto, estabelecermos uma diferenciação necessária 

entre a “emenda Dante de Oliveira” e a “campanha das diretas já”. A primeira propunha algo com sentido direto e restrito, ou seja, o restabelecimento da eleição direta para presidente. A segunda, tendo por origem o sentido estrito  

da primeira, refletiu-se, na verdade, numa verdadeira polissemia de sentidos absolutamente impossíveis de serem precisados: a campanha popular pelas 

eleições diretas transformou-se num significante vazio, um discurso hegemônico na sociedade brasileira daquele período. Desenvolveremos melhor esse ponto que é crucial em nosso argumento.

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Em sentido estrito, ou seja, o mesmo da emenda Dante de Oliveira, a campanha pelas “diretas já ”, significou um m ovimento popular - liderado pelos partidos de oposição ao regime autoritário (PMDB, PDT, PTB e PT) -  pelo restabelecimento de eleições diretas à Presidência da República. Entretanto, esse objetivo primeiro é insuficiente para explicar o movimento como  

um todo.A campanha condensou muito mais sentidos do que simplesmente a de

manda de votar para presidente. As “diretas já” foi o maior movimento político de oposição ao regime autoritário.25 Foi um discurso capaz de ampliar  ad  

infinitum  seus conteúdos e significar o estabelecimento de um sentido hegemônico, um significante vazio, que, no limite, deixava absolutamente claro  

que não era mais possível o Brasil viver sob a égide autoritária.A campanha das “diretas já” teve ainda o incontestável mérito de reunir 

em praça pública,26 sob o eco de apenas um grito, milhões de manifestantes  que, quando gritavam “diretas já”, bradavam também em prol de suas demandas identitárias: “direitos das mulheres já”, “direitos dos trabalhadores já”, “liberdade irrestrita de expressão e associação já”, “legalização dos partidos  comunistas já”, “mais verbas para a educação já”, “reforma agrária já ” enfim, múltiplas demandas e grupos sociais que, sob um grito possível de ser brada

do, o grito das diretas, queriam, na verdade, muito mais do que simplesmente votar num presidente. “Diretas já ” era uma “senha” para reivindicar a lgo muito mais profundo e, talvez por isso, imperceptível para muitos manifestantes: significava lutar por democracia e romper, de uma vez por todas com um regime, que apesar de dez anos de abertura política, insistia ainda em manter o  

povo completamente marginalizado do processo político.

C o n s i d e r aç õ e s f in a isComo vimos, a noção de significante vazio consiste na confluência de  

múltiplos elementos em um discurso, a ponto de esse discurso perder seu sentido específico justamente pelo excesso de sentidos articulados.

25 Na análise de Brasilio Sallum Jr.: “Antes de mais nada, a Campanha das Diretas, ligando a palavra à ação, consolidou e ampliou a posição da grande maioria da população, contrária ao

regime militar e a seus mecanismos de dominação. Nesse sentido, cumpriu de forma mais intensa função similar à desempenhada pelos processos eleitorais no processo político” (1996, p. 99).

26 Das mais de cinco dezenas de comícios pelas diretas realizados em todo Brasil, o número demanifestantes de três deles merece especial destaque. Em 25 de janeiro de 1984, em SãoPaulo, reuniram-se mais de 200 mil pessoas para reivindicarem eleições diretas. Em BeloHorizonte, em 24 de fevereiro, 250 mil manifestantes aglomeram-se para defender a aprovação da emenda Dante de Oliveira. Impressionante mesmo, contudo, foi a monstruosa cifra demais de um milhão de pessoas reunidas na Praça da Sé, no Rio de Janeiro em 10 de abril de1984, momento que se constituiu na maior manifestação pública da história do Brasil.

 A condensação do “ im ag in ár io popular oposi ci on is ta’’ num signi ficante v azi o: as “d ir etas já’ 1 6 5

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Um significante vazio é, ainda, um discurso capaz de se impor no campo 

da discursividade a ponto de poder representar uma idéia hegemônica. A força de um significante vazio está na própria possibilidade que essa categoria tem de explicar um determinado imaginário social, como o imaginário das “diretas já”. Nas palavras de Emesto Laclau:

Se as cadeias equivalenciais estendem uma larga variedade de demandas concre

tas, então a base das eq uivalências não pode ser encontrada na espe cificidade de

qualquer uma dessas demandas, pois está claro que o resultado do desejo coleti

vo encontrará seu ponto ancorador no nível do imaginário social e o centro do

imaginário social é o que nós chamamos de significantes vazios (Laclau, 2000, p.

210).

Nesse sentido de “imaginário social”, a campanha das “diretas já” constituiu-se num discurso com características de significante vazio. Criou inúmeras expectativas para os brasileiros que, segundo as dimensões dos maiores 

comícios realizados em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, conseguiu modificar completamente o cenário político do país, no sentido de que, pela primeira vez durante os vinte anos de regime militar, os próceres do autoritarismo viram seu poder político se esvaziar frente a uma até então inimaginável força oposicionista realmente de caráter popular. Se antes a oposição  

ao regime autoritário partia da institucionalidade dos partidos de oposição e dos movimentos identitários isolados, com a campanha das “diretas já”, demandas por democracia substantiva ecoaram das vozes de milhões de brasileiros que organizados em movimentos, identitários ou não, queriam definitivamente dar um basta a um regime político excludente. Demandar eleições  

diretas foi dizer não ao regime militar em geral e não ao governo Figueiredo 

em particular. Demandar eleições diretas também foi dizer sim à democracia,  um significante vazio por excelência.

Enfatizamos, portanto, que o grande mérito da Campanha das “diretas já” foi o de ter conseguido condensar o “imaginário popular oposicionista” ao regime autoritário que até então estava disperso. Desta forma, pela primeira vez  em vinte anos de ditadura, os brasileiros tiveram a oportunidade de se manifestar como cidadãos desejosos de cidadania. Cidadania entendida de múltiplas formas - direitos sociais, equilíbrio econôm ico, emprego, respeito às diferenças, dentre outras significações - que somente encontram espaços de emergência num regime democrático.

Como se sabe, a campanha popular por eleições diretas não conseguiu  

forçar suficientemente o Congresso Nacional a aprovar a emenda Dante de Oliveira. Por apenas 22 votos, os deputados oposicionistas não conseguiram  

aprovar o projeto de emenda constitucional. Entretanto, o que os próceres do regime autoritário não esperavam é que nem com eleições indiretas eles conseguiriam se manter mais tempo no poder político do Estado. Mas esse é um  outro capítulo desta mesma história.

1 6 6 Daniel de Mendonça

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 A condensação do “ im agin ár io pop ular opos ic ionis ta” num signi fi cante vazio : as “d ir etas já” 1 6 7

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 A conden saç ão do ‘ im agin ário popular oposic ionista'' num sign if ic ant e vazio: as ‘ di retas já* 1 6 9

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CONHEÇA OS AUTORES

Eduardo Luft, brasileiro, Doutor cm Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica

do Rio Grande do Sul (PUC RS - Brasil), com estágio na Un iversidade de Heidelberg

(Alemanha). Au tor de Sobre a coerência do mu ndo   (2005),  A s sem entes da dúvid a  

(2001) c Para uma crít ica interna ao sis tema de H egel (1995), além de vários a rtigos

em revistas científicas. Foi coo rdenad or dos cursos de G raduação e Pós-G raduação

em Filosofia da PU CR S, e atualmente é professor nos níveis de Graduaçãoe Pós-Graduação na mesma Universidade.

Emil A. Sobottka, brasileiro, Doutor em Sociologia pela Universidade de Münster,

Alem anha, pesquisado r do CN Pq, professor na PUC RS e professor visitante

na Un iversidade de Kassel (2000-2003). D urante o dou torado freqüentou sem inários

de Luhm ann em B ielefeld; em 2004-2005 fez pós-doutorado com Claus Offe

na U niversidade H um boldt, em Berlim. Á reas de pesquisa: m ovimen tos sociais,

ONGs e políticas sociais públicas.

F ern an do R obles Salgad o, chileno, Doutor em Filosofia, com menção

em Sociologia, pela U niversidade de M unich (Alemanha); P rofessor titular

do Departamento de Sociologia da Universidade de Concepción (Chile);

Professor no C olégio de México; Professor Conv idado da Universidade Central

da Ven ezuela; Professor Visitante da Facu ldade de Ciências Sociais do Chile.

Áreas temáticas: teoria sociológica, teoria dos sistemas, etnometodologia,

análise de discurso; biotecnologia e genom a humano.

M arcelo A rnold C atha l i faud , ch ileno , Doutor em Sociologia pela Univers idade

de B ielefeld (Alemanha), sob a orientação de Niklas Luhm ann (1983-1987 );

Antropólogo Social e M estre em Ciências Sociais com ênfase em M odernização

Social na Universidade do Chile; Professor e C oorden ador do M estrado

em Antropologia e Desenvolvimento no Departamento de Antropologia da Faculdade

de C iências Sociais da U niversidade do C hile e como con sultor de instituições

 públic as, privadas no terceiro se to r. Professor C onvidado nas U niversidades

da Argentina, Uruguai, Peru, Paraguai, México, A lemanha e Espanha.

Areas temáticas: teoria dos sistemas, E pistemologia construtivista, O rganizações

sociais (cultura, com portamento e desenvolvim ento organ izacional); impactos

da biociência na sociedade contemporânea, modernização e mudança social.

Conheça os autores 171

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M irta A. G iacag lia , argentina, l icenciada em Filosofia pela U niversidade Nacional

de R osário (A rgentina). Professo ra ti tular de H istória das Idéias e de Filosofia

da Educação da Universidade de Entre Rios; Diretora do Departamento de Educação

e Sociedade da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade Nacional

de Entre Rios; Professora da Faculdade de Ciências da Educação (UNER);D iretora do P rojeto de Investigação “El retom o de la polít ica: la utopia dem ocrática”

(UN ER ). Á reas temáticas: teoria do d iscurso, pós-estruturalismo.

R od rigo G hiring he l l i de Azevedo, brasi le iro, advogado, D outor em Sociologia

 pela UFR G S; P rofessor nos Program as de Pós-G raduação em C iê ncia s Crim in ais

e em C iências So ciais da PU CR S. Áreas de interesse: So ciologia Jurídica, Sociologia

da A dm inistração d a Justiça Penal, Sociologia da V iolência e da Co nflitualidade,

Políticas Pú blicas de S egurança e C ontrole Social.

1 7 2 Conheça os autores

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Léo Peixoto Rodrigues é Licencia-do em Ciências Fisicas e Biológicaspela Faculdade PortoAlegrense

de Ciências e Letras (FAPA); Licenciado

e Bacharel em Ciências Sociais pela Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS); Mestre e Doutor em Sociologia(UFRGS). Atualmente, é Professor do Pro-grama de PósGraduação em Ciências So-ciais da Pontifícia Universidade Católica doRio Grande do Sul (PUCRS). Sua área deinteresse e pesquisa vinculase á Sociolo-gia do Conhecimento e das OrganizaçõesSociais, à Sociologia da Ciência e do Co-nhecimento Cientifico, à Teoria Sistêmicae Epistemologia das Ciências Sociais. Éautor da obra Introdução à Sociologia do Conhecimento, da Ciência e do Conheci-

mento Científico,  publicada pela EdUPF,

em 2005.

Daniel de Mendonça é Bacharelem Ciências Jurídicas e Sociaispela Pontifícia Universidade Ca-

tólica do Rio Grande do Sul (PUCRS):Mestre e Doutor em Ciência Política pelaUniversidade Federal do Rio Grande doSul (UFRGS). Atualmente, é Professor Ad-

 junto do Instituto de Sociologia e Políticada Universidade Federal de Pelotas (ISP/UFPEL). Tem direcionado seus estudosprincipalmente às potencialidades analí-ticas da teoria do discurso desenvolvida;sobretudo, por Ernesto Laclau e Chantal

Mouffe, aplicando suas principais catego-rias à compreensão da história política braísileira. É autor da obra Tancredo Neves: da distensão á nova república, publicada pelaEdUNISC, em 2004.

S  o b r e   o s o r g a n i z a d o r e s

í 

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N

iklas Luhmann, sociólogo alemão, é um dos mais proeminentes e polêmicos pensa-dores da contemporaneidade, A leitura da obra de Luhmann é um convite à reflexão,

à crítica, à dúvida e à perplexidade. A sua obra representa um esforço em formularuma teoria geral da sociedade, com o auxílio da teoria de sistemas, considerando seu desen-volvimento científico mais elaborado. Luhmann buscou um aporte universal, que superasse aestreiteza da conexão entre micro e macro e alcançasse maior precisão conceituai, incorporandoelementos da cibernética, teoria da comunicação e da biologia, para superar o que chama de"velho pensamento europeu". Na sua teoria, a sociedade é vista como um sistema autoreferente de comunicações, analisada através de diferentes âmbitos como política, economia, direito,religião, educação, ciência entre outros. Com essa proposta, constrói um aparato teórico quepermite realizar observações da profunda complexidade contemporânea, com possibilidades de

proporcionar novas estratégias de atuação sobre ela.C l a r is sa  E c k e r t  B ae t a N e v e s

Otrabalho de Ernesto Laclau nos últimos 30 anos tem representado um dos maisprofícuos e originais desenvolvimentos no campo da teoria e da filosofia política.Com raízes no marxismo, Laclau parte para sua crítica, sem desprezar a vertente

gramsciana marcadamente em suas primeiras produções na década de 80. Desde então tem