Esboco Para Uma Historia Da Escola No Brasil

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Maria Oly Pey (Org.) Isabel Cristina Tavares Guilherme Carlos Corrêa Clóvis Nicanor Kassick lerecê Rego Beltrão ESBOÇO PARA UMA r mSTORIA DA ESCOLA NO BRASIL algumas reflexões . libertárias achiamé Rio de Janeiro

Transcript of Esboco Para Uma Historia Da Escola No Brasil

Maria Oly Pey (Org.)Isabel Cristina Tavares

Guilherme Carlos CorrêaClóvis Nicanor Kassicklerecê Rego Beltrão

ESBOÇO PARA UMAr

mSTORIA DA ESCOLANO BRASIL

algumas reflexões. libertárias

achiaméRio de Janeiro

SUMÁRIO

Apresentação - Maria Oly Pey / 7

As crianças brasileiras: um pouco de sua bistória- Isabel Cristina Tavares / 11A infância no Brasil/lIOs modelos de criança trazidos pelos jesuítas / 14A resistência dos índios com a chegada da puberdade / 20A infância da criança filha de escravos / 23A Roda dos Expostos /30A marginalidade da criança e a luta pela sobrevivência / 35A criança branca e a aprendizagem das primeiras letras / 47Bibliografia / 49

o que é a escola - Guilherme Calos Corrêa / 51Referências bibliográficas / 83

Raízes da organização escolar (heterogestionária)- Clóvis Nicanor Kassick/85A relação escola x fábrica: mudança de paradigma organizacional/ 85Um breve histórico: da fábrica à escola / 86A estruturação da escola burguesa / 90A escola e a reprodução social/ 94A escola e as alterações do processo produtivo / 95A instituição escolar e o fazer escolar num novo processo produtivo / 100Autogestão x heterogestão: as possibilidades autogestionárias / 106Características/fundamentos de autogestão / 112Bibliografia / 117

Escola e pedagogia - Ierecê Rego Beltrão / 123O cotidiano escolar / ]23Os saberes em tomo da educação: a pedagogia e a escoIa / 124Pensar o cotidiano escolar / 125

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APRESENTAÇÃO

o livro é constituído por esta apresentação e quatro artigosassim titulados e na seguinte ordem de apresentação: História dasCrianças no Brasil, História da Escola no Brasil/ O que é a Esco-la, Raizes da Organização Escolar e Escola e Pedagogia

História das Crianças no Brasil é um dos capítulos da Disser-tação de Mestrado (UFSC - Mestrado em Educação/1998), da Pro-fessora Isabel Cristina Tavares. Aí Isabel se utiliza de historiado-res como Philippe Al-ies.e Mary del Priore e comentaristas da so-ciedade brasileira como lua Von Binzer para nos descrever a traje-tória de crianças índias, negras, brancas e mestiças, suas condi-ções de sobrevivência e amadurecimento, nos permitindo inferir odiferenciado leque de oportunidades educativas que vão marcan-do suas vidas.

História da Escola no Brasil/ O que é a Escola é um dos capí-tulos da Dissertação de Mestrado (UFSC - Mestrado em Educa-çãoI1998), do Professor Guilherme Carlos Corrêa (UFSMlRS).Nesse capítulo Guilherme pretendeu percorrer os momentos queconsiderou mais significativos da história do processo deescolarização no Brasil; da produção de sujeitos obedientes à Igreja,a produção de sujeitos obedientes ao Estado, até a produção desujeitos obedientes ao mercado globalizado. Termina por definiras condições sob as quais foi e é possível fazer funcionar a insti-tuição Escola. Escreve na esteira da lógica de autores como Illich,Foucault e Julia Varela.

Raizes da Organização Escolar é um dos capítulos da Tese deDoutorado em Educação (UNICAMP - em andamento) do Pro-fessor Clóvis Nicanor Kassick (UFSC/SC). Neste capítulo Kassickse vale de historiadores como de Decca e André Petitat para bus-car a gênese da Escola enquanto instituição da Idade Moderna,revezando sua descrição com as Pedagogias que vão constituindoos objetivos manifestos do processo escolarizador e as conveniên-cias da Igreja, do Estado (e da fábrica), e da Empresa globalizadaque ao longo da Modernidade e da Contemporaneidade vão fazen-do funcionar a educação escolar. Finalmente abre e fundamenta aspossibilidades de uma educação que passa por uma escola concre-

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ta mas distanciada do processo escolarizador, se é possível dizer-se assim para as escolas populares de índole libertária. Para tantose vale das iniciativas educacionais anarquistas que ocorreram eainda ocorrem no mundo.

Escola e Pedagogia é uma síntese da Dissertação de Mestrado(UFSC - Mestrado em Educação/ 1992) da Professora lerecê RegoBeltrão onde, a partir da leitura de Foucault, comenta a Escolaenquanto máquina disciplinar - locos das relações de poder, e aPedagogia enquanto discurso -locos das relações de saber.

Com esses artigos pretende-se cobrir as informações mínimasque conviria uma pessoa possuir para iniciar uma reflexão sobresua própria educação e o processo escolarizador que viveu/vive.Além disso, obter notícias sobre a educação que vem se dando aolongo de 500 anos de processo civilizador branco no país.

A bibliografia sobre História da Educação no Brasil é reduzi-da, e praticamente inexistente dentro de uma lógica de pensamen-to que privilegie saber como as coisas chegaram a ser como são, eporque. É à vista desse ponto que assemelha a produção dos qua-tro textos, e isso não é por acaso.

Os autores o fizeram ao longo de vários anos de convivência,trocas de informação e discussões conjuntas, como fica explicitadoatravés das bibliografias constantes de cada artigo, as quais apre-sentam referências cruzadas. Todos nós participamos de gruposde estudos e convivência que denominamos grupos de autofor-mação, cuja gênese/ manutenção/ dissolução situa-se na afinidade.

Entre os temas de interesse nestes grupos, especialmente osreferenciados em Michel Foucault, surge a preocupação com umahistória não tradicional, que não confunda educação comescolarização, nem as finalidades da escola com as da pedagogia.Isso sempre tangenciou o eixo das nossas discussões, e tomoupossível o surgimento destes textos, onde por certo estão presen-tes contribuições de outros amigos cujos nomes aqui não apare-cem.

Efetivamente o leitor atento perceberá matizes de pensamentodiferentes de um texto para outro, o que caracteriza grupos/pesso-as que se auto determinam, como não poderia ser diferente em gru-posque se aproximam de um jeito libertário de ser.

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Eu venho participando destes grupos faz 15 anos em média,institucionalmente na qualidade de orientadora de dissertações demestrado na UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina, enesse momento, reunindo os textos que compõem este livro paradesenvolver um Curso de História da Educação no Programa dePós Graduação em Educação da FEBE - Fundação Universidadede Brusque/SC.

Quero agradecer aos colegas professores de primeiro e segun-do graus de ensino que participaram como estudantes do Curso noano 2000 pela generosa contribuição que deram para uma redaçãodefinitiva dos artigos, bem como à Professora Gicele Maria Cerve,que ao mesmo tempo que integra os grupos de autoformaçãoconosco, coordenou o Curso em Brusque.

Além dos textos, compõe esta publicação as listagens biblio-gráficas que ampararam a produção de cada autor, gravuras repre-sentativas da história das crianças no Brasil, extraídas da obra His-tória das Crianças no Brasil, organizada por Mary Dei Priore eeditada peIa Contexto, em São Paulo, em 1999, bem como foto-grafias das atividades desenvolvidas no Curso da FEBE.

No Curso, em 60 horas-aula, pretendeu-se que a leitura dostextos fosse enriquecida por uma série de atividades grupais deestudo tais como: discussões sobre o significado das informaçõese análises realizadas nos textos, representações de períodos de tem-po, sistematização de memórias individuais e coletivas dos parti-cipantes sobre a temática exposta, construção de maquetastridimensionais de escolas, fábricas, oficinas etc, além das con-vencionais exposições orais.

A iniciativa de publicar esse pequeno conjunto de textos desti-na-se a oferecer aos leitores um subsídio para analisar o processode escolarização, um início de reflexão histórica da escolarizaçãono Brasil em bases não tradicionais, que talvez auxilie a formaçãode educadores nas universidades e fora delas.

MARIA OLY PEY - OrganizadoraFlorianópolis, maio de2000

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AS CRIANÇAS BRASILEIRAS:Um pouco da sua história

Isabel Cristina Tavares

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o assunto que será abordado neste capítulo vem sendo estuda-do por vários pesquisadores relacionados a diversas áreas de ensi-no, tais como sociologia, antropologia, história, psicologia e edu-cação. Sendo assim, são diferentes enfoques que irão proporcio-nar uma visão bastante ampla sobre o tema. Por isso, para fazerum recorte daquilo que seria fundamental para o alcance dos obje-tivos desta pesquisa, considerei alguns aspectos sociais e históri-cos da infância, tomando como base as idéias de Alies, Gelis eDeI Priore, entre outros.

Partindo do significado da palavra infante e de um conceitouniversal de infância, caminho em busca de uma história específi-ca da criança brasileira, resgatada através de narrativas, cartas elivros de pessoas que aqui estiveram. Estes documentos retratamo dia-a-dia de crianças índias, negras, brancas e mestiças, cujaheterogeneidade de hábitos e costumes aguçou os olhares e dis-cursos de viajantes estrangeiros.

Pessoas que chegaram ao Brasil para ficar um mês, um ano,mas algumas delas permaneceram mais de 30 anos, possibilita-ram, através de suas palavras e expressões, que fosse confecciona-do um quadro histórico brasileiro dos meados do século X1X.Apesar do empirismo dos depoimentos de professores, médicos,pintores, jomalistas, pastores protestantes e tantos outros cujas ati-vidades funcionam como uma espécie de filtro para as observa-ções obtidas, parece que ao menos uma imagem da criança brasi-leira nesta época nos é permitido enxergar.

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A infância no Brasil

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Quando se fala sobre infância, o discurso daquele que a estudaorganiza-se em tomo de uma terceira pessoa, sobre a qual se pre-tende dizer algo que está fora, alheio a esse indivíduo. Provavel-

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mente, pelo fato de ela estar relacionada a um período já vividopor aquele que dela irá falar.

Tanto "infante?' como "infância", e demais palavras oriundas,estão relacionadas ao não falar. E esse silêncio temporário, peloqual passa todo ser humano ao nascer, que cristaliza sua posiçãono discurso, sujeitando-o à fala de outrem. Quando ele se tomaradulto e sua vontade se adequar aos padrões de determinada socie-dade, ele achará sua voz. Por isso é que existem Vá110Sdiscursosque fundamentaram as várias áreas de conhecimento que tiveramcomo objeto de estudo a criança, do nascimento à puberdade,particularizando-a, a fim de diferençar seu universo do mundoadulto.

Conseqüência de idéias construídas ao longo de séculos, a des-coberta da infância deu-se a partir do Renascimento Italiano noséculo XV Foi necessário, para isso, que ocorressem mudançasna forma de como o grupo familiar da Idade Média percebia onascimento de seus descendentes; havia um sentimento familiarvoltado para a linhagem, considerada um processo de ordem natu-ral Neste sentido, a criança era vista como um rebento provenien-te de um tronco comunitário, constituído por seus pais e demaispessoas consideradas parentes.

Desde pequena, a criança já se expunha ao convívio públicojunto à parentela, preservando-se somente na ocasião do nasci-mento sua privacidade junto aos pais. Era considerada umserinacabado, vista como um corpo que precisa de outros COlpOS parasobreviver, a partir da própria satisfação de suas necessidades maiselementares, como alimentar-se. Os primeiros anos de vida, era,para ela, o tempo das aprendizagens do meio que a cercava. Brin-cava com outras crianças da mesma idade e até maiores do queela; arriscava-se em busca de saberes que lhe poderiam ser úteispara viver em comunidade. Inserida num grupo familiar em quepredominavam os rituais de ancestralidade e onde o uso do COlpO

para a procriação prevalecia sobre a vontade de cada um sobre si,a criança era símbolo de continuidade entre gerações que viriam ase suceder.

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1. A palavra "infante" é constituída pelo prefixo in, que significa negação, juntoao radical jante, proveniente do verbo latino fari: falar, dizer (Leite, 1997).

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Uma quebra desse ritmo peculiar da Idade Média só iria acon-tecer com o aparecimento das enfermidades fisicas que, ao causa-rem sofrimento às pessoas, fariam despertar nelas um novo desejode viver e preservar a vida daqueles a quem amavam. E o nasci-mento de outras formas de convívio familiar, buscadas em laçosafetivos, que irão preponderar sobre a consangilinidade anterior,Neste sentido, as crianças nascidas desses relacionamentos basea-dos na afetividade receberão uma atenção particular que irádiferenciá-Ias do grupo. Por apresentarem natureza própria, serãoamadas por elas mesmas, com suas especificidades e necessida-des individuais, saindo do anonimato. Alies (apud Piacentini, 1995,p. 2) foi quem identificou a presença de uma idéia de infância quemais se aproximava do sentimento modemo representado pelosanjos adolescentes, Jesus Menino e a criança nua.

No entanto, esse novo sentimento de infância não nasceu deuma hora para outra nem seguiu uma linearidade: foi resultado deum longo período de transformações culturais, quando a criança,ao se diferenciar do adulto, sinalizou para novos espaços no âmbi-to familiar e social. Isso irá resultar em outros tipos de relaciona-mentos entre pais e filhos, no que poderia ser chamado de"apaixonamento" entre ambos. Toda essa afetividade irá sugeriruma educação alegre e divertida para a criança, cuja singularidadee graça chamará cada vez mais a atenção do adulto.

No Brasil, esta graciosa imagem infantil se fará representar em. procissões religiosas da Quarta-Feira de Cinzas, ocasião em quealgumas crianças, vestidas de anjinhos, exibiam roupas de sedaenfeitadas com rendas e lantejoulas. Na cabeça elas usavam ador-nos em forma de tiaras que moldavam seu rosto e cabelos. A ma-neira como caminhavam durante as procissões parecia mostrar oquanto se sentiam admiradas pelos adultos (Leite, 1997, p. 39).

Uma admiração proveniente desse novo sentimento de infân-cia, que também se faz presente nas obras de arte do século XVZ,são todas imagens de como a sociedade as vê. Esta visão da crian-ça, de seus problemas e possibilidades, irá condicionar sua posi-ção centralizadora ou marginalizada nesta sociedade. No Brasil, o

... 2. Isto pode ser verificado no trabalho de Piacentini, Teima A. Fragmentos deI Imagens de Infância. São Paulo: FEUSP, 1995 (Tese de Doutorado).

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reconhecimento do espaço que a criança ocupa na sociedade, im-plica a realização de uma viagem no tempo em busca da recons-trução do passado de diferentes crianças que, ao serem observadase descritas, passam a fazer parte de livros e dos diversos trabalhosjá elaborados sobre a infância.

Os modelos de criança trazidos pelos jesuítas

A criança descrita pelos estrangeiros que chegaram ao Brasilno século XVI, escondeu sua identidade sob o corpo da mãe. Quemeram elas afinal?

Resgatar a sua história, segundo DeI Priore (1995, p.7-8),

" ... é dar de cara com um passado que se intui, mas que se prefere igno-rar, cheio de anônimas tragédias que atravessaram a vida de milhares demeninos e meninas [...] Situações que empurraram por mais de três sé-culos a história da infância no Brasil."

Quando se pretende falar sobre a história da infância no Brasil,é necessário buscar detalhes aparentemente isolados que fizeramparte do cotidiano de crianças índias, brancas, negras e mestiças.Muitas provenientes de famílias consangüíneas, outras não. Umaminoria sobreviveu ao abandono e ao infanticídio, confinadas nasvárias instituições de proteção à infância existentes na época. Sãoinstituições que ainda hoje se mantêm, e isso possibilita uma apro-ximação e conseqüente confronto entre passado e presente.

Neste contexto, é preciso ir buscar na história situações vivi-das por mais de três séculos, como "as rodas de expostos ", doséculo XVIII, supostamente usadas para evitar o abandono de cri-anças, mas que também provocaram suas mortes. Essa históriatem início no século XVI, com a chegada dos jesuítas à Terra deSanta Cruz, depois chamada Brasil. Estes recém-chegados, toma-dos por um certo encantamento, sentem-se transportados ao pa-raíso terrestre. Ou seja, a visão de árvores diversas, o canto decoloridos pássaros, a natureza selvagem do Brasil, compõem ocenário de um país tropical que, ao se expor a seus visitantes, ins-tiga-os a transformar o que vêem.

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Para estes missionários da Companhia de Jesus, que vinhamdas Indias então descobertas, esta paisagem natural, que incluíaseus habitantes, neste caso os indígenas, precisava de ordem, poisfaltava-lhe a marca da civilização. Uma civilização capaz de, se-gundo DeI Prime (1995, p.lO), "...adestrar aquelas almas para re-ceberem a palavra de Deus", referindo-se aqui às almas jovens,inocentes, infantis, dos pequenos índios brasileiros.

Segundo Aries (apud Piacentini, 1995, p. 2), já em tomo doséculo XIII atestou-se a presença dos diversos tipos de inf'anciamais próximos do sentimento moderno: "... são os anjos adoles-centes, Jesus Menino e a criança nua, como alegoria da morte e daalma". Para a autora, são estas descobertas que irão se ampliar noséculo XIV, desencadeando um sentimento de infância que nãoexistia nos séculos X e XI.

No Brasil, como já citado, os primeiros modelos sobre a crian-ça foram trazidos pelos jesuítas, diferenciando-se muito das crian-ças indígenas. Neste contexto brasileiro, propagam-se duas repre-sentações infantis: uma mística, repleta de fé, é o mito da criança-santa; a outra, de uma criança que é o modelo de Jesus. Inspiradospor estas imagens, pelas quais a criança é capaz de transcender ospecados terrenos, os jesuítas vêem nas crianças indígenas o "pa-pel en blanco'" onde desejam escrever, antes que os adultos, comseus maus costumes, as contaminem. Para eles, o pequeno corpoda criança, o caminhar infantil, as suas temas mãos, irradiavamuma meiguice absolutamente convincente para conversão das al-mas mais empedernidas. Nota-se aí todo o investimento que osjesuítas fizeram junto aos pequenos índios brasileiros, que futura-mente poderiam formar uma legião de pregadores da fécristã -uin dos principais objetivos da Companhia de Jesus.

Em 1554, Nóbrega funda em São Vicente o primeiro colégiode catecúmenos índios (aqueles que são preparados e instruídospara receber o batismo), juntando-llies alguns órfãos que vieramde Portugal e alguns mestiços da terra (DeI Priore, 1995). Paraesta autora, José de Anchieta, em seus sermões, dizia que os mi-mos e a fartura de riquezas eram maléficos aos índios e órfãos. O

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3. Expressão usada por Manuel da Nóbrega, 1549, em suas cartas e citada porDeI Priore. História da Criança /10 Brasil. São Paulo. Contexto, 1995, p. 10.

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amor paterno ou do educador deveria seguir o modelo divino, quecastiga para combater os vícios e os pecados mundanos.

A caminhada desse "amor correcional", baseada na medita-ção, na concentração, na disciplina do espírito e na subjugaçãodos sentidos, conduzirá a educação dos jovens cristãos. Trata-sede um submetimento da criança, pelos jesuítas, a um regime denormas sociais e morais rigidamente hierarquizadas, que irão aten-der às especificidades infantis. Esse psicologismo jesuítico iráalicerçar-se em seus objetivos, que visam usar a criança para pro-mover sua obra missionária benesse e, ainda, garantir sua conti-nuidade.

Segundo DelPriore (1995, p. 15),

"a infância é percebida comomomentooportuno para a catequese,por-que é tambémmomentode unção, iluminação e revelação (...) Momentovisceral de renúncia da cultura autóctone das crianças indígenas."

Assim, fazendo uso dessas concepções, vão-se desenvolvendopráticas pedagógicas de aculturação de tupis e tamoios à fé católi-ca. Para isso, inicialmente, eram realizados contatos que destaca- .vam as diferenças culturais branca e indígena. Depois, pouco apouco, a aproximação dos recém-chegados ia atraindo os índios,que acabavam por imitá-los. Os motivos que poderiam desenca-dear essa atitude não são bem claros. Possivelmente eles ficavamassombrados e fascinados pelas práticas religiosas que assistiamnas celebrações dos jesuítas.

O fato é que, após demonstrarem certa empatia com os jesuí-tas, os pais traziam seus filhos para serem ensinados. Estes, com oconsentimento do cacique indígena, iam viver nas "casas demuchachos'". Neste local, aprendiam a ler, escrever e também''bons costumes". Também eram instruídos em atividades varia-das, tais como canto, oratória e aprendizagem de flauta e costuma-vam confessar-se de oito em oito dias. A tarde saíam para caçar epescar, a fim de manterem sua subsistência, pois quem não traba-lhava também não comia. Sua alimentação, além do pescado e da

4. Estas casas reuniam crianças indígenas e mestiças, também chamadas de"órfãos da terra" (oriundos de uniões entre pai português e mãe brasileira).

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carne de animais selvagens, era acrescida de mandioca (transfor-mada em farinha), abóbora e alguma verdura.

As particularidades alimentares dessas crianças demonstramque os jesuítas não estavam alheios aos hábitos dos indígenas como,por exemplo, o fato de eles não guardarem alimentos. Mas, poroutro lado, a ênfase dada a uma alimentação de subsistência, pra-.ticamente basilar, reforça a imagem da criança-santa da época.

Conforme Del Priore (1995), para ilustrar melhor esta visão,há registro de uma carta de um jesuíta que narra os acontecimen-tos de uma casa dos meninos de Jesus, onde havia o que ele cha-mou de disciplina das muitas sextas-feiras do ano:

"Os indiozinhos não se flagelavam apenas nas procissões, mas de-pois de varrer as ruas ... a ponto de que ... foi necessário muito delescurarem-se em casa".

Este relato demonstra o quanto a pedagogia jesuítica queriatransformar essas crianças em exemplos de santidade, para assimformar uma cultura sincrética, ou seja, uma mescla entre crençasancestrais e visões celestiais.

Para as crianças, acontecimentos passados começavam a con-fundir-se com o que vivenciavam, num emaranhado de sofrimen-tos fisicos e psicológicos cruéis. Na compreensão dos jesuítas, istonão passava de tentações demoníacas, que deveriam ser sanadasatravés de um disciplinamento daqueles corpos frágeis e úteis.

Ao longo das narrativas toma-se possível perceber que a pala-vra "crianças" refere-se tão-somente ao gênero masculino. Asmeninas indígenas provavelmente não mereceram a atenção dosjesuítas, por estarem atreladas ao trabalho doméstico junto às suasmães na tribo. Diante de padrões culturais em que às mulheres éreservado um maior número de tarefas diárias, as meninas manti-nham-se escondidas até a puberdade, quando iníciavam suas trans-formações para fase adulta.

Para DeI Priore (1999, p.60), os meninos ensinados na doutri-na católica, com bons costumes, sabendo falar, ler e escrever emportuguês, garantiriam a continuidade para outras gerações de "umpovo agradável a Cristo".

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Por isso, em 1564, foi solicitada à ordem geral uma gramáticado tupi para atender ao ensino de perguntas, que já havia iniciado.Porém, gradativamente, os instrutores jesuítas começaram a de-monstrar aversão à cultura aborígine, cumprindo seu propósito desubmetimento dessas crianças a um processo de aculturação. Es-ses pequenos índios convertidos, mandados a Lisboa, seriam astestemunhas vivas de uma tentativa de aproximar regras e culturasdiferentes. Essa seria, também, uma maneira de serem coroadosos esforços de Anchieta, Nóbrega e tantos outros que aqui chega-ram.

Para ajudá-los na concretização desses objetivos, havia meni-nos provenientes das "casas de muchachos", que poderiam servirde intérprete para ajudar os jesuítas na sua missão de converter osindígenas. Estes eram chamados de "meninos-língua", função dadaàqueles que, depois de permanecerem por algum tempo nas "ca-sas de muchachos", demonstrassem maior número de aptidões equalidades em relação aos demais. Assim, devidamente instruí-dos, eles poderiam deslocar-se da Bahia para São Vicente, porexemplo, ou até mesmo para um colégio de Coimbra. A garantiadesse livre trânsito baseava-se no seu total disciplinamento às re-gras impostas pelos jesuítas, que eram alheias a costumes indíge-nas tais como andar despido e até mesmo suas formas de diversão.Quanto a este último aspecto, muitas cartas dos jesuítas faziammenção à forma como as crianças indígenas nadavam no rio, brin-cavam, cantavam e extraíam sons de cascas de frutas. Nestes rela-tos, a sensibilidade musical deles chama muito a atenção dos jesu-ítas, a ponto de eles acreditarem que, fazendo uso dessa habilida-de, poderiam cativá-los ainda mais.

Segundo Leite (1997, pAO), é numa escola de marinheirosque será encontrada uma centena de meninos indígenas, princi-palmente aqueles domesticados nos estabelecimentos jesuíticos.Eles eram recolhidos pelas autoridades e mandados para essas esco-las navais.

O contato da população indígena com os jesuítas conseguiuafastá-Ia de seus costumes, crenças e valores, transformando-a empessoas dóceis e apáticas. O entusiasmo inicia] desses silvícolasfrente aos hábitos e costumes dos missionários fez com que setomasse mais fácil a sua catequização. Foi um processo iniciado.

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através dos filhos, "... meninos mui bons e mui bonitos?', submeti-dos a rituais cristãos místicos permeados por castigos e por ameaçasdivinas de um Deus que se faz representar pela majestade dos pa-dres jesuítas em suas celebrações. Uma inesperada mistura de pa-jés com demônios, procissões de fé com o sangue do autoflagelo eanjinhos tropicais, confundidos com Jesus menino. Um espetácu-lo que iria despertar os indígenas para sentimentos aparentemente.inexplicáveis, conduzindo-os a atitudes contemplativas e de lou-vor frente a tudo que vissem. Foi assim que passaram a entregarseus filhos aos jesuítas, para que estes lhes ensinassem as práticasreligiosas que futuramente iriam guiá-los para o encontro comCristo.

Os índios estavam confusos frente à mistura de rituais indíge-nas e cristãos. Pergunta-se: qual dessas práticas sociais lhes eramais significativa? Nesse embate cultural, causado pelo intercâm-bio cultural entre esses dois grupos, irá revelar-se o submetimentodo primeiro pelo segundo, a não aceitação de uma cultura autócto-ne, sufocada por regras alheias às suas vivências.

A resistência dos índioscom a chegada da puberdade

À medida que o tempo ia passando, os meninos índios cresciame o cenário começava a modificar-se. Com a chegada da puberda-de, considerada "idade perigosa" para os jesuítas, sua origem, suaancestralidade, começariam a manifestar-se. Eles querem seguirseus pais, e já não são mais dóceis e obedientes como antes.

Ao saírem das "casas de muchachos", voltam para as suas, emvez de se submeterem às aulas de gramática ou outras disciplinas.Não querem mais conviver com as normas e obrigações que, atéentão, lhes eram impostas. Querem, sim, romper com o estabele-cido pela pedagogia dos jesuítas, voltando às suas origens. Sãoestes índios, mestiços e mamelucos, agora adolescentes, que saemem busca da vida que irão escolher para si.

5. Trecho de uma das cartas do Padre Anchieta, citado na obra de DeI Priore(1995, p. 13).

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Uma vida que foi submetida durante tanto tempo a umdisciplinamento que conseguiu inicialmente afastá-los do conví-vio familiar e cultural. Ao experimentarem, novamente, a liberda-de de ir para onde quisessem, não poderiam voltar àquele lugar tãodiferente de onde nasceram.

A idéia dos jesuítas de que a criança indígena era um "papel enblanco", onde poderia ser escrita uma outra realidade alheia a eles,se modifica, devido à mudança de comportamento do indígenaadolescente. A adolescência parece ser, então, um despertador quefaz com que seja revisto aquilo que estava adormecido em suasmemórias, tais como o nadar no 110, pescar, cantar, pintar o corpoe dançar ao som de taquaras e maracas". Acontece, desta forma,um rompimento entre sua origem e os padrões de uma cultura oci-dental. O jovem índio agora quer estar junto a seus pais que, ape-sar de distantes, não foram esquecidos.

Esta volta às origens mostra que no "papel en blanco" já haviamarcas peculiares que não foram percebidas pelos jesuítas duran-te suas tentativas de consolidar seu projeto missionário. Toda ex-pectativa, trazida das grandes cidades européias e transformadasem instrução para as tribos indígenas, se esmorece, enfraquecen-do, também, o domínio dos jesuítas sobre as colônias da entãoTerra de Santa Cruz.

As fugas desses jovens índios das "casas de muchachos" parao convívio parental, sinaliza a forma que irá se impor na uniãodesses jovens com outros mestiços e mamelucos, numa luta pelasobrevivência no interior da colônia.

Não foram poucos os jovens que, fazendo uso de armas desuas tribos, voltam para as cidades a fim de combater osbrancos.Sua resistência a padrões impostos por uma pedagogia disciplina-dora, que os submeteu a horários, regras e obrigações, impede de-finitivamente que se cumpram os ideais de uma cultura européiacristã. Neste sentido, as fugas dos horários da catequese e a voltaaos rituais de fé em tupi-guarani, marcam o início de um sincretismoreligioso que irá se desenvolver durante o período colonial.

6. Maracas eram instrumentos musicais confeccionados com cascas de frutas,geralmente as de coco, onde se colocavam pedrinhas em seu interior (extraídada obra de DeI Priore, 1995, p.20).

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Porém, apesar dessas mudanças de comportamento dos indí-genas, a pedagogia dos jesuítas não esmoreceu, pois iniciaram umamudança em suas estratégias de ação. Para isso, abandonaram oshabituais castigos fisicos, tomando como ideal o modelo de JoãoBatista de La Salle, o responsável pelo ensino básico oferecidopelas futuras escolas dominicais brasileiras.

A infância da criança filha de escravos

É início do século XVII. O cultivo da cana-de-açúcar no Paísnecessita de uma mão-de-obra da qual não se dispunha. A popula-ção indígena que pennanece nas colônias, além de ser mínima,não se adapta ao tipo de tarefa que é exigida nos canaviais, ouseja, um trabalho braçal rotineiro, muito diferente daquele ao qualestavam acostumados em suas tribos. Por isso, os senhores de en-genho recorrem ao comércio de escravos, provenientes do conti-nente africano. E eles chegam ao Brasil para uma longa estada.

Falar sobre filhos dos escravos não é tarefa fácil. Essa popula-ção que permaneceu no anonimato para a sociedade opressora daépoca, manteve-se duramente silenciada. Possivelmente suas fu-gas e rebeliões eram usadas como forma de expressar o que senti-am: uma mistura de desespero e coragem.

Arrancados de sua terra de origem e impossibilitados de secomunicar com parentes e amigos, que sentido poderia ter suasvidas depois desses trágicos acontecimentos? Provavehnente, ne-nhum. Mesmo assim, encontravam forças para sobreviver numambiente tão hostil e desumano.

Era, talvez, no trabalho para seu senhor e dono, junto a outrosde sua raça, que poderiam encontrar um pouco de solidariedade.Ajovem lua Von Binzer (apudMattoso, 1995) fala em suas cartaspara uma amiga do trabalho escravo, dizendo que, no Brasil, ospretos representam o papel principal, pois todo trabalho é realiza-do por eles, toda a riqueza é produzida por mãos negras.

São estes relatos de viajantes estrangeiros", testamentos, in-ventários post mortem e outros documentos, que nos possibilitam

7. Outros relatos semelhantes podem ser encontrados na obra de Marcos Cezarde Freitas. História Social da Infância no Brasil. São Paulo: Ed. Cortez, 1997.

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imaginar um pouco da rotina diária dos negros no Brasil. SegundoMattoso (1995, p. 77), são

"histórias que falam sobre crioulinhos e pardinhos, nascidos no Brasil,de suas mães negras ou mestiças".

Elas os carregavam para o trabalho amparados em suas costas,com o auxilio de panos coloridos. Só desta maneira poderiammanter as mãos livres para suas tarefas diárias, como a venda defrutas no mercado, por exemplo, ou até mesmo no canavial.

O pai quase nunca era visto junto à mãe e seu filho, pois muitopouco ou quase nada se sabia dele". Andavam somente a mãe e sua"cabrinha", como eram chamadas as crianças com menos de doisanos de idade, por não representar força de trabalho para seus do-nos.

As crianças cujas mães desempenhavam somente tarefas do-mésticas, viviam com elas em senzalas ora próximas à moradia deseus donos, ora não muito longe, por isso, desde cedo, envolviam-se com esse trabalho. Esse foi o caso de Gastão, citado por DeIPriore (1999, p.184), que com apenas quatro anosjá realizava pe-quenas tarefas na fazenda de José de Araújo Rangel, o que contri-buía para uma maior valia de seu preço futuro, caso fosse subme-tido ao comércio de escravos.

Segundo o mesmo autor (1995), por meio de documentos, foipossível estabelecer duas idades de infância para a criança escra-va: de zero aos sete/oito anos, quando não desempenhavam ativi-dades de tipo econômico; dos sete/oito até os 12, quando deixa-vam de ser crianças para entrar no mundo dos adultos, como apren-dizes. Por isso, ao se falar sobre as crianças escravas é necessárioesclarecer quem eram essas crianças, afinal? Como se relaciona-vam com o meio onde viviam?

8. Segundo as análises feitas em inventários entre 1870 e 1874, em Salvador,sobre o estado civil dos escravos recenseados, todas as mulheres dessaamostragem são solteiras. Os batismos realizados no mesmo período denunciamuma totalidade de crianças escravas ilegítimas, apesar de esse fato também atingirum percentual de 62% na população livre. Só que, no caso de crianças escravas,este fato é uma evidência de que seus pais foram vendidos, alforriados oumorreram. (Mattoso, 1995, p. 83)

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--Penso identificá-Ias nesta faixa etária de zero aos sete/oito anos

de idade, já que os jovens escravos eram considerados adultos. Con-forme DeI Priore (1995, p. 80) não se pode desconsiderar que oCódigo Filipino, usado durante todo o século XIX, estabelecia, nasua parte de direito civil, a maioridade para as meninas aos 12 epara os meninos aos 14 anos. E ainda que a Igreja Católica consi-derava a idade da razão para seus jovens cristãos aos sete anos deidade.

Dessa maneira, tanto a população de crianças livres, como aescrava, estavam submetidas ao cumprimento de normas seme-lhantes. A diferença entre ambas residia no fato de que a criançabranca poderia ter seu prazo de ingresso na vida adulta prorroga-. do, enquanto que a negra ou mestiça era imediatamente usada comoforça de trabalho para seus donos.

Porém, antes que a maioridade ou a idade da razão mudassemsuas vidas, uma e outra conviviam alegres entre brincadeiras epasseios pelas grandes propriedades de engenho de açúcar. Nesteambiente, tão divertido e familiar, as diferenças entre elas passamdespercebidas para qualquer observador. Mas, ao chegarem aossete/oito anos, uns deveriam dar ordens e outros teriam que obe-decê-Ias.

A possibilidade de uma exceção a esta regra foi encontrada nafazenda São Francisco, citada por DeI Priore (1999, p.138) ondetrabalhava a jovem lua, professora de alemão das crianças da casa.Ela conta estupefata, diante da balbúrdia local, sobre certo dia detrabalho, quando, em meio a gritarias por causa de camundongose o som das aulas de piano, o aparecimento de uma mulatinha,provavelmente escrava, a soletrar o ba-be-bi-bo-bu, veio mistu-rar-se ao cenário. Era uma criança a quem D. Gabriela resolveraensinar a ler, por isso seu inesperado surgimento naquela depen-dência da casa. Já numa fazenda em Guaxindiba (p.184), Manoel,com oito anos de idade, cuidava do gado, enquanto Rosa, comapenas 11 anos, costurava, sendo considerada tão habilitada paratal função que, aos 14 anos, já exercia o trabalho de um adulto.

Talvez somente depois de expostas a um dia de trabalho árduoessas crianças comecem a apagar da memória os folguedos infan-tis, sentindo a sua condição de inferioridade em relação às crian-

l

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ças brancas. Tal condição, apesar da Lei do Ventre Livre, de 18719,

não sofrerá as mudanças tão propagadas, já que essa lei concedia amaioridade aos jovens escravos só aos 21 anos e obrigava o se-nhor a oferecer-lhes o aprendizado de um oficio. Antes disso, per-maneciam servindo ao seu senhor de maneira obediente e efi-caz, como já vinha ocorrendo. A diferença é que, depois da Lei,um novo espaço de tempo é estabelecido na vida dessa criança:além das idades de oito e 12 anos, são mais 13 anos de exercíciode uma força de trabalho de grande valia para seu usuário.

Para DeI Priore (1999, p.184) o adestramento de meninos e'meninas por volta da idade de 12 anos contribui para sua precoceprofissionalização, independentemente de qualquer legislação.Desde cedo suas vidas iam sendoconduzidas nessa intenção, tan-to que, mais tarde, era comum trazerem por sobrenome a profis-são que desempenhavam, como Manuel Pastor, Rosa Costureira,Chico Roça, Ana Mucama e tantas outras.

A aprendizagem de um oficio, oferecida pelo senhor, poderiaproporcionar ao escravo uma suposta melhoria de sua condição pes-soal e, conseqüentemente, um aumento de seu valor e do seu tem-po de serviço, isto é, sua idade de libertação mudava de 21 para 25anos. Esse tempo de acréscimo justificava-se pelo investimentoque seu senhor fizera, ao lhe oferecer a aprendizagem de um oficio.Porém, quanto a esse aspecto, uma análise realizada no período de1860-1879 e citada por Mattoso (1995, p. 90-1), explica que,

" ... das 29 crianças do sexo masculino, com idade de sete a 12 anos, so-mente sete tinham trabalho qualificado; quanto às do sexo feminino, das29 crianças, cinco eram domésticas e duas aprendizes de costureiras".

9. Aqui faz-se necessário esclarecer que esta lei; em seu artigo 1°, declarava queos filhos de mulheres escravas deveriam permanecer junto a suas mães até aidade de oito anos completos, tendo para isto de serem criados e mantidos porseu respectivo senhor. Ao chegarem à citada idade, ele poderia optar entre usarseus serviços até que completasse 21 anos ou entregá-Ia ao Estado, recebendouma indenização no valor de 600$ 000. Esta quantia seria paga sob a forma detítulos de renda com juro anual de 6%, dentro de um prazo de validade de 30anos. A lei também garantia o direito do escravo menor de idade de isentar-sedessa prestação de serviços, usando uma indenização em dinheiro anteriormenteacertada com o seu senhor. No caso de não ocorrer o acordo, a quantia seriaextinta (DeI Piore, 1995).

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'-

E as demais crianças? Qual era o motivo de não terem um ofí-~ cio como era previsto na lei? Partindo do princípio de que este

preparo para a vida adulta lhes estava faltando, é possível suporque seus donos, apesar de explorarem ao máximo sua força detrabalho, não cumpriam na íntegra o que fora estabelecido. Só umaminoria era beneficiada com a aprendizagem de um oficio.

Mas também a lei, ao liberar o jovem escravo, sem libertá-Iado jugo de seu senhor, propiciava sua mais-valia como mercadorianegociável num mercado que começava a surgir: o de uma mão-de-obra escravizada, sob a aparente proteção de seu senhor _. umaproteção cujo preço é a sua liberdade.

O que lhe restaria fazer nesta situação? Provavelmente esperarque seu tempo de escravidão acabasse, sendo continuamente ex-posto à negociação de seus donos. Sobre isso já denunciava o his-toriador Roberto Conrad (apudLima e Venâncio, 1997, p. 66), emseus estudos sobre os últimos anos de escravidão que, até 1884,comercializava "ingênuos'?":

1o. A palavra "ingênuo" serviu para designar as crianças escravas com idadesaté oito anos.

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" ... Em 1885 haviam sido confiados ao governo, dos 400 mil ou maisingênuos registrados, apenas 118, o que representava menos de 0,1 %."

Foi necessário que se passassem 18 anos para que, finalmente,a lei de 13 de maio de 1888 viesse libertar a jovem populaçãoescrava, fazendo cumprir o que havia sido estabelecido desde 1870.Essa dupla função da lei vem denunciar o que foi o sistemaescravagista brasileiro: uma série de fraudes e boicotes políticos.Isto é, desde a aprovação do projeto até a sua promulgação, a Leido Ventre Livre foi "alvo constante de burlas" (Lima e Venâncio,1997, p. 64). As conseqüências desses atos irão acarretar um sig-nificativo abandono de crianças, em sua maioria negras. São cri-anças largadas nas ruas ou em terrenos baldios, que irão breve-mente sobrecarregar o orçamento público. Com o objetivo de me-lhorar a assistência a essas crianças, é instalada no Brasil uma ins-tituição de origem medieval, chamada ''Roda dos Expostos".

A Roda dos Expostos

A Roda dos Expostos era uma espécie de dispositivo onde eramcolocados, por quem desejasse fazê-lo, os bebês abandonados.Apresentava uma forma cilíndrica, dividida ao meio, sendo fixadano muro ou na janela da instituição.

O bebê era colocado na parte externa desse mecanismo, quetinha uma abertura. Depois, a roda era girada para o outro lado domuro ou da janela, possibilitando a entrada da criança no interiorda instituição". Prosseguindo o ritual, a pessoa que trouxera a cri-

11. Na chegada à instituição, esta criança era imediatamente identificada,fazendo-se o registro de suas características físicas, data de entrada no local,algum bilhete de seus familiares e enxoval, caso houvesse. A seguir, era batizadae recebia um nome. Ali permanecia de um a dois meses. Depois desse período,era enviada a mulheres chamadas de criadeiras, devendo permanecer em suacompanhia até a idade de sete anos, quando era encaminhada à adoção, junto afamílias da sociedade local, ou ainda ao Arsenal da Marinha, no caso dosmeninos, e ao Recolhimento de Orfãs, no caso das meninas. Durante este tempo,deveriam trabalhar em troca de "casa e comida". Só depois de completarem 14anos, poderiam ter um emprego assalariado (F reitas, Marcos Cezar de. HistóriaSocial da Infancia no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997).

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ança puxava uma cordinha com uma sineta, a fim de avisar o vigi-lante ou a rodeira, e imediatamente ela se retirava do local. Estesistema de Roda de Expostos teve origem na Europa Medieval,particularmente no sul da França, entre 1160 e 1170.

No Brasil esta instituição teve início na época da Colônia, pros-seguindo durante o Império e chegando à República. Destinava-se, fundamentahnente, ao amparo de crianças abandonadas. Esteabandono devia-se a fatores diversos, tais como a falta de recursosfinanceiros de pessoas que não podiam criar seus filhos, o grandenúmero de filhos nascidos fora do casamento, por isso consideradosilegítimos, e os senhores de escravos que, ao venderem suas escravascomo amas-de-leite, não sabiam o que fazer com seus filhos.

Antes da existência dessa instituição, as crianças moniam defome, frio ou até mesmo eram comidas por animais. Embora mui-tas não tenham chegado à idade adulta, devido à alta mortalidaderegistrada, em tomo de 50 a 70%, a Roda dos Expostos era ainda amelhor opção encontrada para sanar este problema (Lima &Venâncio, 1997,p. 67).

As famílias européias trouxeram consigo costumes como, porexemplo, o uso de amas-de-leite. Era usual mulheres mais elitizadasentregarem seus filhos a mães de aluguel, para que elas os ama-mentassem e deles cuidassem durante a primeira inf'ancia. Estaprática, no Brasil, irá encontrar no comércio de aluguel e comprade escravas a maneira mais adequada para difundir-se.

Conforme Magalhães e Giacomini (apud Lima & Venâncio,1995, p. 67-8), os jornais da época faziam anúncios sobre o as-sunto de diversas formas. Alguns exemplos:

"Na rua do Espírito Santo há uma ama-de-leite para alugar, paridade oito dias, sem pensão do filho" (Jornal do Commercio, 24 de feverei-ro de 1850); "Aluga-se uma preta, para ama com muito bom leite, de 40dias e do primeiro parto, é muito carinhosa para crianças, não tem vícioalgum e é muito sadia e também se vende a cria" (Jornal do Commercio,3 de agosto de 1850); "Vende-se uma preta da nação, com bastante leitee da primeira barriga, sem cria, mui vistosa e rapariga" (Diário do Riode Janeiro, 4 de julho de 1850).

Esta difusão irá desencadear uma campanha veemente dosmédicos e sanitaristas da metade do século XIX, que viam nestes

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procedimentos uma forma inescrupulosa de exploração do traba-lho escravo, denunciando a proliferação de doenças, como a sífi-lis, nestes contatos entre crianças brancas e a ama-de-leite negra.

Apesar disso, a situação não se modifica. Ao contrário, se agravaainda mais, com o aumento do abandono de crianças pardas e ne-gras no Rio de Janeiro, após 187l. Esse fato parece relacionar-seintimamente à promulgação da Lei do Ventre Livre, já que eramuito mais lucrativa a venda de escravas do que a criação de seusfilhos. Conforme Lima & Venâncio (1995, p. 69.;70), abandoná-los na Roda dos Expostos, poderia representar " ... uma renda de500$000rs a 600$000rs por ano em relação aos 36$000rs" corres-pondentes à indenização do governo, durante o período de oitoanos, ocasião em que as crianças filhas de escravos recebiam osustento de seus senhores.

Nota-se aqui uma preferência desses senhores pela obtençãode lucros mais imediatos, proporcionados pela venda de suas es-cravas "recém-paridas", muito mais vantajoso que esperar o retor-no em trabalho dos filhos das escravas, os quais deveriam susten-tar; sem considerar ainda a alta taxa de mortalidade infantil exis-tente na época.

Com o aumento do número de crianças expostas ao abandonopelas ruas e nas portas das casas das famílias, as Câmaras Munici-pais não conseguem mais arcar com as despesas de manutenção desuas Rodas. Assim é que, em 1738, na Santa Casa de Misericórdiado Rio de Janeiro, é instalada uma Roda de Expostos. Este fato fazcom que os gastos das Câmaras sejam minimizados, graças a umauxilio financeiro anual proveniente do Senado, segundo ordemdada por D. Maria I, rainha na época. Também podiam contar com oauxilio de doações provenientes de várias pessoas abastadas da época,dispostas a viabilizar esta obra, que é a segunda do gênero no Brasil.

A primeira Roda dos Expostos foi aberta na Santa Casa deMisericórdia do Salvador, em 1726. Ainda no período colonial,uma terceira Roda é estabelecida em Recife. Mesmo após a Inde-pendência do Brasil, estas três rodas continuavam a funcionar. Em1825, uma outra roda é instalada na Santa Casa de Misericórdia deSão Paulo. Nesta cidade, o número de crianças expostas se elevamuito, a ponto de ser um dos níveis mais altos do Brasil. SegundoMarcílio (apudFreitas, 1997, p.58), são registrados, no período de

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1741 a 1845,3.468 batizados de expostos em São Paulo, uma re-alidade que não passa despercebida do govemador da época, masque intimida a Câmara Municipal quanto ao cumprimento de seudever em contribuir com as despesas na nova casa e ela cumpre oseu acordo durante três anos apenas.

Em 1828, uma Lei dos Municípios é sancionada, eximindo asCâmaras Municipais desse acordo, para colocar a cargo do Estadoeste auxilio-despesa. Caberia agora à Assembléia Legislativa decada província enviar o subsídio necessário para auxiliar as Casasde Misericórdia.

Depois dessa lei, outras Rodas de Expostos são criadas: a pri-meira em POl10 Alegre, no ano de 1837. Seguindo o modelo dacapital, a Assembléia Provincial impõe a abertura de outras Rodasde Expostos nas cidades do Rio Grande (1838) e Pelotas (1849).Na Bahia (década de 1840), é instalada uma segunda Roda na ci-dade de Cachoeira. Segue-se, também, uma outra em Pernambuco,na cidade de Olinda. No Rio de Janeiro, na cidade de Campos,uma segunda Roda é criada.

Em Santa Catarina, na capital Desterro (atual Florianópolis),no ano de 1828, a Irmandade do Senhor do Bom Jesus dos Passoscuidou dos expostos, na falta de uma Casa de Misericórdia.

Surge na cidade de Vitória em 1862, uma pequena Roda,mantida pela Misericórdia local. Omesmo acontece em Mato Gros-so, na cidade de Cuiabá, em 1833 (apudFreitas,1997, p. 62-4).

De todas essas rodas de expostos, apenas as cinco maiores so-breviveram (Salvador, Rio de Janeiro, Recife, São Paulo e P0110Alegre); as demais deixam de funcionar na década de 1870.

O século XIX irá iluminar de outra maneira as manifestaçõesde solidariedade para com os mais pobres. Calcadas no utilitarismo,irão exercer outras formas de filantropia, menos caritativas. Coma propagação de uma medicina higienista, o tratamento dispensa-do aos expostos nas Casas de Misericórdia será duramente critica-do. Para a melhoria de suas condições, a Igreja irá intervir, assu-mindo a administração das Casas e Rodas de Expostos de Salva-dor, Rio de Janeiro e outras mais. São trazidas para o Brasil diver-sas ordens religiosas femininas para cuidar dos abandonados, taiscomo as irmãs Vicentinas, as de São José de Chanberry, as Dorotéias,dentre outras. Com isso, essa assistência começa a sair das muni-

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cipalidades para se tomar uma contratação dos serviços prestadospelas ordens religiosas femininas.

No século XIX, inicia-se um movimento para extinção dasRodas de Expostos, o que já estava acontecendo na Europa. Apartir daí, essa instituição passa a ser considerada contrária aosinteresses do Estado, recebendo criticas de médicos higienistas,que viam esta forma de assistencialismo como responsável pelasmortes prematuras de crianças,

Muitos aderiram a esse movimento, como os juristas empe-nhados na elaboração de novas leis para a proteção da criança de-samparada e o futuro adolescente infrator. A pretensão da épocaera uma melhoria da vida humana baseada em teorias evolucionistasdos então chamados eugenistas".

Como no Brasil este movimento foi fraco, o sistema de Rodasde Expostos sobreviveu até o século Xx. No Rio de Janeiro, aRoda foi fechada em 1938, em Porto Alegre, em 1946, São Pauloe Salvador, em 1950.

A marginalidade da criançae a luta pela sobrevivência

A explosão demográfica do século XIX nas cidades médias egrandes ocasionou uma forte luta pela sobrevivência, provocandoa marginalidade social e a morte prematura de crianças. Eram pro-blemas já existentes em séculos anteriores, que irão se agravandoà medida que essa população denominada infante passa a ser per-cebida. A criança pequena, carregada pela mãe, por um irmão oupor uma escrava, sai de sua casa a fim de que lhe possa ser garan-tido o sustento. Observada por visitantes estrangeiros que estive-ram no Brasil naquela ocasião, suas idas e vindas cotidianas juntoàs mães recebem a seguinte descrição:

. 12. Eugenistas eram pessoas dedicadas ao estudo das causas e condições que. poderiam melhorar a raça das gerações, favorecendo, com isso, o seuaperfeiçoamento e reprodução (Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, 1994,p.464).

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... veêm-se [no mercado] altas negras minas, toucadas com um pano demusselina em forma de turbante, com o rosto cheio de entalhos, [... ],acocoradas sobre esteiras junto de seus frutos e legumes; a seu ladoestão os moleques, inteiramente nus. Aquelas cujos filhos ainda ma-mam, trazem-nos atados às costas por meio de um largo pedaço de fa-zenda riscada [...10 filho sobre os rins, com os braços e as pernas aber-tos [...], conserva-se assim todo o dia abalado pelos movimentos da mãe,com o nariz pregado nas costas desta [... ] alguns molequinhos de três aquatro anos voltavam com a sua ração de feijão que os frágeis estôma-gos mal podiam ingerir: por isso quase todos tinham grandes barrigas,cabeças enormes, pernas e braços delgados, todos os indícios enfim doraquitismo (Kidder & Fletcher apud Leite, 1997, p. 32-3),

Este era, provavelmente, o dia-a-dia da maioria das criançasbrasileiras, filhas de mães escravas, órfãs de pai, que brevementeirão transformar-se em força de trabalho produtiva. Na época, re-gidos pelo Código Filipino, que vigorou até o fim do século XIX,e por normas da igreja católica, vêem-se precocemente desempe-nhando algumas tarefas adequadas à sua idade, que tendem a seintensificara partir dos sete anos. Na idade dos oito aos 12 anos,as crianças já eram consideradas adultos-aprendizes.

Expostos a preconceitos raciais e de classe, passam a ser vis-tos, devido ao abandono precoce, como menores transformandoantigas traquinagens em violência. São esses "moleques" que, naspalavras de um viajante - ao presenciar o que ele chamou de Re-volta de São Cristóvão, em 1828, na cidade do Rio de Janeiro-

cc •.. perseguiram e mutilaram os comerciantes locais até a morte. Tama-nha ferocidade deixou várias vítimas. A maioria de artesãos irlandeses"(WalshapudLeite, 1997, p. 30-1).

Nota-se aqui como pode ocorrer mudança de sentido de umamesma palavra ou expressão sob o olhar de uma pessoa fora dedeterminado contexto, como neste exemplo, onde "moleque", quesignifica um menino de pouca idade ou ainda um escravo jovemrecém-chegado daAfrica, adquire uma conotação mais grave. Nestesentido, nuanças narrativas podem muitas vezes causar diversasinterpretações, mas nem por isso invalidam a análise do que é pre-ciso nessas leituras: a possibilidade de uma reinterpretação dessesacontecimentos.

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Na narrativa anterior, que envolve mães escravas com seus fi-lhos carregados às costas, é possível perceber um rápido julga-mento sobre a atitude dessas mães frente à maneira de carregarseus filhos. A posição das pemas e dos braços, abertos sobre ascostas da mãe, provavelmente seria prejudicial para essas crian-ças. Porém, de que outra forma elas poderiam carregá-Ias? Junto àbarriga? Prejudicaria a sua mobilidade, já que precisariam carre-gar, além dos filhos, suas mercadorias. Fazia-se necessário, ta111-

bém, que mantivessem as mãos livres para o trabalho. Assim, aoescolherem as costas, para transporte dos pequenos, apesar dedesconfortável, não os privava de ficarem junto ao COlpO delas. Ebem provável que a posição dessas crianças causasse menos pre-juízo fisico que o uso de faixas para modelar o corpo infantil, uti-lizado em épocas passadas. .

De qualquer maneira, não se pretende jJtstificar o tratamentodispensado a essas crianças por suas mães, ou um provável deslei-xo para com elas; mas analisar esses faJos numa época em quepredominava um sistema escravagista de trabalho. Um períodoem que a vida dessas pessoas foi marcsda pela fome e por váriasdoenças infantis de causas desconhecidas. Por isso a existência deum alto índice de mortalidade infantil na época.

Neste cotidiano marcado por uma dificilsobrevivência das mãescom seus filhos, a ausência do pai parece constante. Muito embo-ra existam as advertências quanto a esse aspecto, devido à ambi-güidade da palavra ausência, surgem várias interpretações quepoderão ser atribuídas às crianças, como "órfãos", '':filhos ilegíti-mos" ou "expostos".

Anarrativaque faço a seguir émais urnamemória tentando forne-cer dados que possam elucidar os problemas da infância no Brasil:

"Uma pessoa, ao fazer uma visita a um bairro do Rio de Janeiro nacompanhia de um antigo, observa uma "venda" na estrada, onde algu-mas crianças negras brincam no quintal. Porém sua atenção focalizaapenas uma delas, bastante diferente das demais. Trata-se de um meninode raça branca, cabelos claros encaracolados e olhos azuis. Imediata-mente o viajante dirige-se ao dono da venda e pergunta-lhe se é seufilho. Este diz que não, explica que a criança é sua escrava. A revelaçãosurpreende ainda mais o visitante que, chocado e incrédulo, supõe que o

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pai dessa criança desconheça o fato. Mas é informado de que o mesmonão só tem conhecimento da situação, como o hábito de. vender seusfilhos juntamente com suas mães escravas. Estarrecido, esse europeunão consegue entender como é possível um pai vender seu próprio fi-lho" (Walsh apud Leite, 1997),

Justifica-se, assim, através deste relato, as dificuldades quepoderão envolver a interpretação dessas informações, se o objeti-vo é abordar aconcretude histórica de determinada época. Essacriança de "pai ausente" poderá tomar-se futuramente um filhoilegítimo, provocando alterações em dados quantitativos que seapresentem nos trabalhos estatísticos. Por isso a necessidade deuma relativização de dados, que ora se assemelham e ora se dife-renciam.

Por outro lado, também se revelam preconceitos sociais e polí-ticos daqueles que tiveram a oportunidade de tomar públicas suasexperiências pessoais. Experiências essas cujo conteúdo, ora maisora menos aprofundado, acabou por fomecer detalhes importantessobre a vida de outras pessoas. E o que irá se perceber nesta des-crição do cotidiano de famílias ricas fluminenses, com seus filhosmisturados aos filhos da ama-de-leite, provavelmente alfoniada,

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correndo pela casa, divertindo-se ao ver visitantes e até mesmo jan-tando com seus donos ou "pai", se assim fosse de hábito chamá-lo:

"Nas famílias que têm alguma tintura de costumes europeus, essesdesagradáveis pequeninos bípedes são conservados no quintal, criançasde cabeça lanosa, a maioria despida de qualquer roupa [...] em casa deum velho general da alta sociedade na hora do jantar, dois pequeninospretos de azeviche'? quase se penduravam no "pai", até receberem seubocado de cornida das mãos dele. [...] Aonde quer que as senhoras dacasa se dirijam, esses animaizinhos de estimação são colocados nas car-ruagens, e considerar-se-iam muito ofendidos em serem esquecidos comoqualquer filho espoliado" (Walsh apud Leite, 1997, p. 33).

Na maior parte dos trechos transcritos, o uso de palavras comduplo sentido se faz notar, o que nem sempre é percebido por umleitor mais afoito. Por esse motivo, a segunda e talvez a terceiraleitura são necessárias, a fim de que se consiga perceber o que oautor quis transmitir. Porém, no trecho acima, parece-me evidentea manifestação de preconceitos raciais, tradicionais e de classepor parte desses autores. Percebe-se que se sentem incomodadoscom a presença de crianças negras circulando nesses ambientesfamiliares. "Criaturinhas", na opinião deles, tão diferentes fisica-mente, indisciplinadas, sem hábitos e atitudes, estariam mais as-semelhadas aos animais do que à espécie humana. Causava-lhessurpresa e uma ponta de indignação, ao observarem esse tipo deconvívio mútuo.

É necessário que se observe, neste contexto, o quanto eramdiferentes os hábitos europeus dos brasileiros. Desde as condiçõesclimáticas, que estabeleciam outras formas de vestir e alimentar,até a própria condição da maioria das pessoas que viviam no Bra-sil, ou seja, os escravos. Possivelmente, avisão de alguns caracteressemelhantes aos europeus, como roupas, habitação, móveis, lou-ças dessas famílias de maiores recursos econômicos, equivocaramesses viajantes quanto à realidade econômica brasileira, calcadana mão-de-obra escrava. E provável que esses "pretos de azevi-

13.O azeviche relacionava-se a coisas negras, provenientes da linhita, que eraum tipo de carvão fóssil da era terciária ou secundária, com vestígios deorganizaçãovegetal (Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, 1994, p. 158).

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che" já estivessem libertos na ocasião, mas ainda sob a responsa-bilidade de seus donos.

Estes homens, que supostamente eram chamados de "pai",chamam a atenção novamente,através desse disfarce, para a con-dição dessas crianças que poderiam ser denominadas órfãos. Nes-te sentido, o relato de Binzer (1980), poderáelucidar melhor suasituação. Conta a autora que era prática comum entre os escravoslibertos, na falta de um sobrenome, adotarem o da família dos seusantigos senhores. Ela critica o uso de nomes próprios pouco sim-ples, tais como César, Felício, Messias, Elias, Angélica, MariaSalomé, Marcela e Ruth.

Estas crianças, apesar de serem entregues a outras pessoas paraserem criadas desde o seu nascimento, recebiam um tratamentomuito diferenciado, dispensado a essa parcela da população infan-til carente de condições de sobrevivência. Seu processo de prepa-ração para a vida adulta incluía desde os carinhos de suas amas-de-leite, à chegada de uma pessoa estrangeira denominadapreceptor(a), responsável por sua educação, ou ainda a ida parauma escola na capital.

Segundo Leite (1997, p. 23-4),

" ....essas crianças brancas e algumas negras tinham suas mães comomestras naturais, ensinando às meninas escravas e filhas a costurar, re-zar e fazer renda; as primas a tocar piano e cantar; os tios mostrando-lhes livros diversos ou se dispondo a ministrar aulas de geografia e físi-ca; os oficiais ensinando a ferrar animais, a fazer sapatos, a construircercas. As doceiras a fazer doces e flores artificiais, a dissecar animais eplantas, a fazer e enfeitar pratos".

São esses aspectos que irão elucidar o cotidiano dessas famíli-as brasileiras, muito semelhante ao das famílias européias, excetopor alguns detalhes percebidos por um outro dos estrangeiros queesteve no Brasil. Ele fala sobre a elegância de contrastes entre osjardins das casas e as selvas que os circundavam. Porém, a brevevisão de "negrinhos" brincando com as crianças filhas dos donosdas casas, faz com que ele se lembre de que não está na Europa".

Este comentário queixoso quanto à presença de negros e bran-cos habitando um espaço físico comum era constante por parte

14. Príncipe Adalberto da Prússia (1842) citado por Leite (1997, p. 32).

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das pessoas que visitaram ou moraram por algum tempo neste país.A inevitável presença desses "moleques e negrinhos" andando pelacozinha ou no pátio, completamente nus, demonstrava o quantoos moldes brasileiros destoavam dos europeus.

Para uma jovem preceptora alemã que aqui esteve, as casasbrasileiras eram barulhentas, suas crianças travessas, o que exigiadaqueles que nelas moravam "nervos de aço". Por isso acredita-vam na necessidade de um disciplinamento que se amoldasse ahábitos tão singulares como, por exemplo, as crianças e os escra-vos serem tratados por você, os pais por senhor, senhora, raramen-te ''papai e mamãe" (Binzer, 1980, p. 46).

Diante desse cenário, alguém que viesse morar com famíliasbrasileiras teria que se adaptar a essas agruras, a fim de que fossecumprida a sua missão de educar os filhos. Crianças vistas comorebeldes e malcriadas de um ponto de vista equivocado, pois basea-va-se numa imagem da criança européia para avaliar as brasilei-ras. Por outro lado, a presença da escravidão, com suas peculia-ridades de etnias e costumes, também deixavam perplexos essesvisitantes estrangeiros, despreparados para esse convívio.

Neste contexto aparece a presença de tantas expressões precon-~ ceituosas em suas narrativas. Sintomas de uma desambientação

inicial do contato com uma cultura bem diferente da sua. A exis-tência de palavras e expressões com duplo significado permite quese estabeleça uma espécie de jogo que, ao fazer uso do diminutivode palavras, como "negrinho?", oferece ao leitor várias interpre-tações na busca de aspectos que possam retratar os acontecimen-tos dessa época. Fatos como a Lei do Ventre Livre que, ao serdecretada, provocará mudanças na vida dessa população negra. Alei determinará que os filhos sejam libertos, sem se avaliarem ásconseqüências sociais desse ato:

"Os pretinhos nascidos agora não têm nenhum valor para seus do-nos, senão o de comilões inúteis. Por isso não se faz nada por eles, nemlhes ensinam como antigamente qualquer habilidade manual, porque,mais tarde, nada renderão" (Binzer, 1980, p. 34).

15. A palavra "negrinho" poderá referir-se ao tamanho, àpouca idade e tambémà cor de determinada criança. A expressão "meu negrinho", segundo Leite (1997p.22), "... é simplesmente uma forma afetiva de tratamento. "

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Porém, futuramente, a força desse trabalho que agora dava aimpressão de não rentável, irá transformar-se numa mão-de-obravaliosa para seus donos. Em troca desse trabalho, eles terão asse-gurada sua liberdade no tempo estabelecido pela lei, ou seja, 25anos. Mas, mesmo assim, a grande maioria, como denunciaria aautora, não terá garantida a aprendizagem de um oficio, pois nãoexistem escolas para eles. Todavia alguns, nas palavras de outroviajante citado por Leite (1997, p.44), aprenderam oficios comoconfecção de trajes, sapatos, obras de tapeçaria, bordados. Havianegras bem vestidas trabalhando "... em toilettes para as mulheresmais elegantes". E admirável todo seu esforço na busca de umaprofissão, conseguindo desempenhá-Ia com vontade, sem esque-cer que prevalecia o modelo da população branca sobre suas atitu-des, infantilizando-a a fim de perpetuar seu dominio, já que é umapopulação, no caso da negra, quatro vezes maior do que a branca.

Quanto a esse aspecto, Leite (1997, p. 30) cita em sua obra aseguinte narrativa:

"A família está mais resumida. Consta só da que vive no ninho con-jugal, pai, mãe e filhos, [...], à exceção das vovós, sempre bem-vindasem todas as casas, boas velhotas para quem os pequenos correm conten-tes enlambuzados de doces, gritando por mais. Infelizmente os carinhosdos pais perdem os filhos, que chegam à idade da razão ao colo dasmucarnas, sempre obedecidos, sempre satisfeitos em todos os caprichos".

Esta outra forma de constituição dos grupos familiares compoder aquisitivo, mais distanciada de seus parentes, irá influir nocomportamento de pais e filhos. Agora não tão envolvidos com asexigências relacionadas à perpetuação da linhagem, desejam vi-ver seu dia-a-dia mais independentes dos laços de ancestralidadeque os incapacitavam de agir. Vínculos de uma dependência queiniciava na infância e parecia prevalecer sobre a idade adulta, ondecada membro da família estava subordinado aos demais e sem es-tes "não era nada?".

16. Ariés (1981). Este tipo de relacionamento é característico de uma famíliadenominada tronco, onde a criança é vista como um rebento, incapaz de satisfazersuas necessidades elementares. Esta condição de ser dependente irá tercontinuidade mesmo na idade adulta, como uma "sombra da parentela".

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Mas, apesar do surgimento de novos relacionamentos, os fi-lhos dessas famílias ainda eram entregues a uma ama-de-leite. Estadeveria cuidar deles até o momento em que fossem levados parauma escola ou educados por um(a) preceptor(a), geralmente estran-geiro(a). Antes disso, qualquer procedimento com a intenção dediscipliná-los era frustrante. Apesar da preguiça e incapacidade dese concentrarem no que faziam, demonstravam inteligência naaquisição de conhecimentos, como nas línguas francesa e italiana.Apresentavam, também, aptidões para a música, canto e dança,sendo que o piano era o instrumento mais executado na época.

A familiaridade entre os escravos e seus donos parece ter sidoa causa de uma má formação de hábitos e atitudes das crianças aeles confiadas. Atribui-se a essa longa convivência, o dificil con-dicionamento dessas a regras de comportamento aceitas por umasociedade dita brasileira mas, dirigida por padrões de conduta eu-ropeus. Envolvidas por um simulacro cultural, as famílias da épo-ca transformavam o cotidiano de seus filhos num paradoxo deensinamentos alheios às peculiaridades do povo brasileiro.

Apesar da existência de professores nas fazendas brasileiras apartir da metade do século XIX, alguns pais começam a optar poruma instrução mais formal para seus filhos nos colégios das cida-des próximas. Aqui, fundamentalmente, começaram a se definiralgumas diferenças quanto à educação ministrada para meninos emeninas da época.

Já no convívio familiar, conforme DeI Priore (1999, p.152-4)irão se delineando aspectos dessa educação, com a valorizaçãodos atributos manuais para as meninas e dos intelectuais para osmeninos, mas é na chegada de ambos à instituição escolar que issose toma mais evidente .

. Os meninos da aristocracia cafeicultora imperial e da elite ur-bana iam para a escola aos sete anos de idade, devendo terminarsua instrução com um diploma de doutor, geralmente optando pelocurso de Direito. Também poderiam decidir por outro tipo de for-mação diferente daquela ministrada pelas escolas particulares,como a militar, neste caso oferecida pelo Colégio Naval.

Quanto às meninas, apesar da ênfase atribuída a habilidades ma-nuais como desenho, bordado e tricô, também eram consideradosdotes sociais o que se referia à fluência nas linguas fi..ancesa e inglesa.

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Dificilmente saíam de casa e, ao fazê-lo, a companhia da mãeé garantia de que esse rigor será mantido:

" ...A educação de uma brasileira está completa desde que saiba ler eescrever corretamente, manejar o chicote, fazer doces e cantar, acompa-nhando-se ao piano (. ..). As moças ricas são mandadas para uma escolada moda, dirigida por estrangeiros" (Leite, 1997, p. 40-1).

Neste local permanecem alguns anos e, ao completarem "trezeou catorze anos, são daí retiradas, acreditando seu pai que a edu-cação está completa". Pouco depois disso, ele apresenta-lhes al-gum dos seus amigos como futuro marido.

Assim, essa jovem brasileira irá formar outro grupo familiar,tomando-se mãe e entregando seu filho a uma escrava, para seramamentado e cuidado. Aos poucos irá perdendo sua aparênciajuvenil, transformando-se naquela senhora que vai à missa aosdomingos, borda e faz doces, conversa com as escravas da casa eocasionalmente, aquelas que moram nas fazendas, recebem algu-ma visita com quem trocam notícias, receitas de alimentos e remé-dios ou simplesmente proseia.

O que se poderia falar dessas mulheres sujeitadas desde a in-fància ao poder paternal e, posteriormente, ao poder conjugal?

"Dizer de sua ignorância? Nada, senão que elas pouco têm a invejarde seus maridos" (Leite, 1997, p. 40).

Um outro relato citado por este autor irá referir-se à falta deuniversidades regulares no Brasil, por isso

--.." ... algumas famílias mais ricas enviavam seus filhos às universidadesda Alemanha, França e Inglaterra."

Lá, estes jovens brasileiros apresentavam um bom desempe-nho intelectual, capaz de alcançar a mais elevada perfeição (Leite,1997, p. 43-5).

Na época o País dispunha apenas de escolas médicas e jurídi-cas. Havia também duas escolas lancasterianas (Leite, 1997, p.38)mantidas pelo governo na cidade do Rio de Janeiro. Freqüentadas

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pelos filhos de lojistas e pessoas do ramo, estavam abertas aoscidadãos respeitáveis pertencentes a todas as raças, exceto pobrese escravos, embora fossem gratuitas. Nelas as crianças aprendiama ler, escrever e contar, sendo que, ao finalizarem dois anos, eramsubmetidas a uma seleção a :fimde passarem a freqüentar as aca-demias.

Assim como aqueles jovens que saíam do Brasil para estudar,as crianças que aqui ficavam também se expunham a pedagogiasalheias à sua cultura. Binzer (1997, p.65) salienta:

" ...reconheço ser indispensável adotar-se uma pedagogia aqui, mas eladeve ser brasileira e não alemã, calçada sobre moldes brasileiros e adap-tada ao caráter do povo e às condições de sua vida doméstica".

Binzer (1997, p. 37) fala ainda sobre como é inadequada estamaneira de educar as crianças com hábitos culturais tão diferentesdas alemãs. Chama a atenção para as peculiaridades da criançabrasileira, que brinca com fi1hosdos escravos, convive grande paliede sua infância com uma ama-de-leite, corre, pula e fala alto atépara um viajante estrangeiro. Para ela, todo esse disciplinamentoimposto, muitas vezes através do que pareceria um castigo, pode-rá transformar-se numa divertida brincadeira, como ficar em pé esentar várias vezes, por exemplo. Para uma turma de crianças ale-mãs daquela época, isto seria considerado ''vergonhoso''. Mas ascrianças brasileiras eram diferentes. Mesmo tendo nomes como:Caius Gracus, Plinius e Tiberius, não costumavam brincar de sol-dado.

Uma vez ao ano se envolviam em batalhas aquáticas nos inter-valos das aulas com o que chamavam de ''laranjinhas''. Algumasmeninas consideradas "completamente indisciplinadas" preferiamos banhos mútuos com água de jarros e bacias. Tudo isso os deixa-va cheios de alegria e completamente fora de si (Binzer, 1997, p.70).

Este ritual camavalesco era motivo de espanto para alguns cujarealidade não conseguia encontrar uma explicação para aquilo,como no caso dessa jovem professora alemã. Embriagados pelaágua proveniente das "batalhas", adultos e crianças pareciam com-partilhar de um mesmo jogo, cujas regras possibilitavam burlar o

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proibido: o brincar; o divertir-se. Uma brincadeira de breve dura-ção, mas com a garantia de repetir-se anua1mente. Repetição estaque evidenciava a cultura de crianças pobres e ricas, negras e bran-

~ cas, ignorantes e educadas, simplesmente brasileiras.

A criança branca e a aprendizagemdas primeiras letras

A familiaridade entre os escravos e seus donos parece ter sidoa causa de uma má formação de hábitos e atitudes das crianças aeles confiadas. Atribuiu-se a essa longa convivência o dificil con-dicionamento dessas a regras de comportamento aceitas por umasociedade dita brasileira, mas dirigida por padrões de conduta eu-ropeus. Envolvidas por uma imagem cultural alheia às peculiari-dades do povo brasileiro, as famílias brancas da época transfor-Ç1aramo cotidiano de seus filhos num paradoxo de ensinamentos.Eneste sentido que o uso de uma pedagogia brasileira, e não outra,deveria ser usada para ensinar essas crianças. Uma pedagogia deacordo com o modelo brasileiro, segundo Binzer (1980, p. 65),"... adaptada ao caráter do povo e às condições de sua vida domés-tica".

Nas fazendas, crianças brancas brincavam com as negras. Mis-turadas à paisagem local, coniam alegremente pela casa, falavamalto e divertiam-se ao som das conversas entre os adultos. Viviammuito à-vontade, sob os cuidados de uma ama-de-Ieite", sem per-ceberem suas diferenças étnicas e sociais. Permaneciam envolvi-das neste clima prazeroso até o momento em que chegassem àidade de ir para a escola ou serem entregues a um (a) preceptor (a).No entanto as crianças negras deveriam ir para o trabalho junto aseus pais, nas lavouras. Neste desencontro causado por estas mu-danças em suas rotinas, passam a ser submetidas a horários para

17. Segundo Binzer (1980, p. 22), as crianças brancas se apegavam muito àssuas amas-de-leite, dedicando-lhes especial atenção. Para ilustrar esse fato, citao caso de uma menina de cinco anos que conheceu e que costumava guardaruma porção de sua sobremesa para sua jovem ama-de-leite, sem esquecer deguardar também alguma coisa para seu irmão de leite.

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início e término de suas atividades, deixando de dispor daqueletempo livre anterior.

Umas serão expostas às mais variadas aprendizagens, que en-volverão desde as primeiras letras até as aulas de alemão; outras,como no caso das crianças negras, depois de afastadas das casasde seus senhores e dos companheiros de divertimento, vão para otrabalho, a fim de manterem sua subsistência. Para elas, o trabalhoacontece precocemente. O trabalho estará relacionado ao que existede árduo e rotineiro em suas vidas, e o lazer, ao aspecto prazeroso.Esta associação é uma decorrência da imposição de horários paraatividades das crianças negras que, mesmo diferentes das anterio-res, rotinizam seus comportamentos. Algo semelhante aconteciacom as crianças brancas, como o que ocorreu em uma sala de aulacom os filhos menores de um fazendeiro no interior paulista, des-crita por uma professora (apud Binzer, 1980, p. 22) que com elesesteve na ocasião. Ela relata sobre a chegada das crianças às oitohoras, a maneira como aprendiam o que lhes era ensinado e comotoda essa situação moldava suas atitudes, de forma que essas ati-tudes não pareciam lhesser pertinentes, exceto por suas habituaismalcriações de criança, decorrentes de uma falta de disciplina fa-miliar. Por isso há ocasiões em qu~ o tempo dedicado no sentidode discipliná-Ios, toma-se inútil. A medida que assimilavam osconhecimentos das várias disciplinas ensinadas por seus precep-tores, envolviam-se de tal forma que havia um certoesquecimentodo seu tempo livre, em beneficio de uma aprendizagem considera-da necessária para suas vidas.

Para Binzer (1980, p. 28) "... eles queriam engolir cultura àscolheradas", uma idéia que, mais adiante, fará com que as famíliasmais ricas enviem seus filhos para universidades européias, a fimde aperfeiçoarem seu desempenho intelectual. Os filhos de co-merciantes e outras pessoas do ramo freqüentariam as escolas gra-tuitas na cidade do Rio de Janeiro, para mais tarde, caso fossemselecionados, ingressarem nas academias brasileiras. Uma reali-dade que dificilmente atingiria os filhos dos pobres e de escravos,pois não havia escolas para eles e todo disciplinamento de rotinase horários aos quais foram submetidos desde cedo, tiveram a in-tenção de prepará-los para o mundo do trabalho. Um mundo, sej:no campo ou na cidade, onde terão que encontrar meios capaze:

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de minimizar suas carências econômicas e sociais. Uma situaçãoque futuramente irá se agravando, em conseqüência da desagrega-ção de suas famílias. Diariamente expostas à violência, ao aban-dono e à pobreza, buscam no espaço oferecido pelas instituiçõesresgatar uma sociabilidade perdida na luta pela sobrevivência.

Bibliografia

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BINZER, Ina Von. Os Meus Romanos: alegrias e tristezas de umaeducadora alemã no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

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PIACENTINI, Telma Anita. Fragmentos de Imagens de Infância.São Paulo: FEUSP, 1995 (Tese de Doutorado).

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--"

andarem nus, fornicadores, comedores de carne humana, des-conhecedores das leis e da moral católica, aceitavam o batismo

"por simples sentimento de civilidade para com seu hóspede [o padrejesuíta] ou por um pequeno presente'".

o fracasso do empreendimento catequético, sentido já nos pri-meiros anos das missões, deu lugar a outras tentativas mais bemsucedidas de tomada de controle das populações nativas.A associa-ção dos jesuítas ao governo português na Colônia, exercido por Memde Sá, deu origem aos aldeamentos': um terreno doado pelo gover-nador, afastado da vila, no qual fixavam-se os índios já batizadosem torno de uma capela e da autoridade de um missionário. É opróprio padre Manuel da Nóbrega que poucos anos mais tardemostra a mudança de estratégia no trabalho com os índios:

"A lei que lhes hão-de dar é defender-lhes comer carne humana eguerrear sem licença do governador; fazer-Ihes ter uma só mulher, ves-tirem-se pois têm muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirar-lhesos feiticeiros, mantê-Ias em justiça entre si e para com os cristãos; fazê-10s viver quietos sem se mudarem para outra parte se não for para entrecristãos, tendo terras partidas que lhes bastem, e com estes padres daCompanhia para os doutrinarern'".

o controle das aldeias e sua estabilidade dava-se, principal-mente, por meio da proibição do nomadismo, da organização doespaço -lugar de plantar, de rezar, de estudar, da família, dos ho-mens, das mulheres, do convívio social, da intimidade - e dasegmentação do tempo marcada pelas badaladas do sino e pelaexecução contínua de tarefas - hora de plantar, de rezar, de estu-dar, e também hora de lazer programado com festividades, cantose outras atividades minuciosamente determinadas segundo a suaadequação moral e ao seu teor instrutivo.

2. Maestri, M. op. cit. p.127.3. Sobre os aldeamentos como criação estratégica dosjesuítas para a submissãodos índios cf.: Maestri, 1995: 133-137 e Neves, 1978: 109-153.4. Nobrega citado por Maestri, M. op. cit. p. 131.

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'''"

Ao centro de cada aldeia era erigido, de acordo com a orienta-ção da administração de Mem de Sá, um pelourinho destinado àcorreção das faltas dos índios. A aplicação dos castigos nunca es-teve a cargo dos padres que jamais encostavam a mão para infligirpenas físicas a quem quer que fosse -- rígido princípio pedagógicoda Companhia de Jesus -, entretanto toleravam bem práticas comoaprisionamento, açoites, mutilações

"de certos dedos das mãos, de maneira que pudesse ainda trabalhar'"

e outros castigos físicos. Tais coerções físicas ficavam a cargo dosmeirinhos, funcionários da coroa responsáveis pela estabilidadesocial das "aldeias de índios".

É a partir da concentração estratégica dos índios em aldeiasque a catequese enquanto

"esforço racionalmente feito para conquistar homens; ( ...) para acentuara semelhança e apagar as diferenças'"

começa a apresentar seus primeiros resultados animadores.Aos brasis não aldeados restava embrenharem-se no interior,

sujeitos a topar com grupos fortemente armados de mamelucos eportugueses - entradas e bandeiras _. e daí serem escravizados nasfazendas. À grande maioria, porém, os que resistiam ou excediamao número possível de ser transportado, restava a morte.

Um outro aspecto do trabalho pedagógico dos jesuítas no Bra-sil, e curiosamente o aspecto que se tomou o emblema dos feitos daCompanhia de Jesus por estas terras, foi a fundação dos colégios.

Os alunos dessas escolas - apenas meninos eram admitidos --entravam ainda pequenos e eram submetidos a um rígido controleque não se limitava às aulas, mas se estendia a toda e qualqueratividade, mesmo a mais simples e cotidiana.

Alguns índios eram aceitos porém sem muita ênfase pois aexperiência junto aos aldeamentos já havia mostrado a dificulda-

5. Leite citado por Maestri. Op. cit. p.136.6. Neves, Luiz Felipe Baêta. O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dosPapagaios: colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense-Univer-sitária, 1978:45.

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de de correção destes. Em 1556, o padre José de Anchieta já ob-servava desapontado:

" ...não somente os grandes, homens e mulheres, não dão fruto, não sequerendo aplicar à fé e à doutrina cristã, mas ainda os mesmos muchachosque quase criamos nos nossos peitos com o leite da doutrina cristã, de-pois de serem já bem instruídos, seguem os seus pais primeiro em habi-tação e depois nos costumes'".

o professor é a figura central do colégio jesuíta. Ele rege asdistribuições e as funções e age em perfeita consonância com osdispositivos ·arquitetônicos, com as ordenações de tempo, com aseleções de saberes, enfim, com a aplicação dos princípios moraisnecessários para a formação dos homens distintos que iriam atuardefinitivamente na formação do cenário político, social e religiosodo Brasil.

O aparecimento da figura do professor-padre, do "formadorde almas"; deveu-se a uma importação. Chegaram aqui assim as-cetas, morais, incompreensíveis em sua ânsia de perdoar pecados,matemais, caridosos, piedosos, donos da palavra, administrado-res. Para transformar-se ou ser transformado em professor jesuíta,o sujeito passava, após ter cursado as primeiras letras, por U111 pe-ríodo inicial de dois anos, para a formação da própria alma quan-do eram exercitadas a caridade, a piedade, a paciência e a renúnciade si mesmo; dois anos de formação intelectual com estudos dasletras clássicas, latim, grego e hebreu; três anos de filosofia (esta-ria concluído o magistério); quatro anos de teologia; dois anos deespecialização na disciplina que viria a constituir o objeto do seuensino universitário (estada concluído o ensino superior). Só en-tão fada sua iniciação pedagógica sob a supervisão de um profes-sor mais antigos.

A renúncia de si abria nesses seres espaço para a instalação daOrdem, abria um canal para que através deles se manifestasse não

7. Anchieta, José citado por Luna, Luiz. Resistência do lndio à Dominação doi. Brasil. Coimbra; Fora do Texto, 1993: 125.

8. Cf. Franca, Leonel. O Método Pedagógico dos Jesuítas. 1951 (sem maisreferências) .

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eles mesmos, nem um outro, mas a própria Igreja e acima dela, epor meio deles, Deus. E eram estes híbridos de homem e de Deus,de Jesus e de Maria, de pai e de mãe - mãe de cujas tetas vertia o"leite da doutrina cristã" - que deveriam aparecer frente aos seusalunos e também fi-ente a qualquer outra criatura de Deus.

Esses professores-padres eram pouco numerosos, mas nem porisso eram pouco grandiosos os efeitos das suas ações: para cadacolégio, nos quinhentos, "havia cerca de três professores - quenão 'castigavam' - um Corretor, um reitor, inspetores 'brasileiros'e metropolitanos, etc'".

Da obra civilizatória dos jesuítas assume destaque na História apedagogia que fizeram funcional"nos seus colégios.

"Durante 259 anos, de 1500 a 175910, os jesuítas montaram, quaseque clandestinamente, uma 'rede escolar' ('rede' à falta de outro ter-mo), de caráter estritamente profissional (preparação de clérigos eamanuenses para a colônia das Companhias de Comércio e Navegação),'rede', contudo, que provavelmente nunca deve ter alcançado, mesmoem seu auge, número superior a 3.000 (três mil) alunos -- a única oportu-nidade escolar da Colônia em quase três séculos (um território de extra-ção de matérias-primas precisa, evidentemente, apenas, de clérigos e defeitores )"11.

o verdadeiro trabalho pedagógico dos jesuítas, portanto, nãose deu no interior dos 17 colégios que fundaram durante os maisde 200 anos (1549-1759) em que aqui ficaram, antes de seremexpulsos pelo Marquês de Pombal. "As formas não institucionaisdo saber" - os aldeamentos, a tolerância aos castigos, a catequese,etc. - "foram muito mais eficazes, onipresentes, radicais em suaenganadora e múltipla pequenez ..."12.

Neves, ainda em seu excelente estudo sobre o papel dos jesuítasno Brasil colonial no século XVI, esclarece, referindo-se aos contro-les de saber e poder que os soldados da Companhia exerciam:

9. Neves, L. F. B. op. cit. p. 148.10. O autor talvez esteja referindo-se à ação da Igreja nas terras recém-desco-bertas, pois a Companhia de Jesus foi criada na Europa em 1534e instalou-seno Brasil em 1549.1l. Oliveira Lima, Lauro de. Estórias da Educação no Brasil: de Pombal a

. Passarinho; Rio de Janeiro: Ed. Brasília. 1974:23.12.Neves, L. F. B. op. cit. p.148.

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"O profundo, o verdadeiramente difícil de ser percebido é o con-trole cotidiano, tentacular, intersticial de tudo que se faz na vida pro-fana. Nas formas de escanção do tempo, nos modos de saudação, nasregras alimentares, nas maneiras de vestir, nas imputações morais, nasarquiteturas das casas e dos castelos, na iconografia de naus e natemática das artes. Mas também no manto com que recobre e acolhesaberes que dele [do controle] se distinguirem como os da ciência e doocultismo; e que, quando quis, soube recalcá-los e eliminá-los"!'.

Este controle cotidiano da vida profana é onde se concentra aforça da pedagogia jesuítica. É com ele que se engendra, pelosaldeamentos e todas as suas conseqüências, a formação, a partirda condenação das práticas dos brasis, de pecadores que poderi-am, então, ser perdoados, de ignorantes para serem esclarecidos,de miseráveis para serem alvos da caridade e da filantropia, sem-terras, doentes, feios, degenerados, preguiçosos ...

A aplicação incessante dessas microcoerções, o estabelecimen-to de regras, normas, diretrizes incidindo sobre cada gesto, cadalugar em que se deveria estar, sobre a postura, a vestimenta, ofalar, o calar, etc. mostrou-se o modo mais apropriado de produzircomportamentos com vistas à implantação, nos corpos tão huma-nos daqueles animais, do gérmen da humanidade; do que lhes fa-ria homens úteis e dóceis segundo as expectativas da Igreja e daCoroa.

Sem esta marginália não haveria como reproduzir aqui, a so-ciedade européia da época. Pura nostalgia daqueles homens ins-truídos.

Todavia, se a pedagogia dos colégios jesuítas só pode assumiro destaque que assumiu pelo ocultamento da pedagogia não-institucional que praticaram, ambas, juntas, não teriam nenhumsentido, seriam apenas mais uma entre, talvez, algumas centenasde outras práticas culturais, se o "restante" dos povos brasis nãohouvesse sido escravizado e, principalmente, eliminado.

A ação das entradas e bandeiras - somente as expedições deRaposo Tavares conseguiram eliminar e escravizar cerca de 300

13. Idem p. 158.

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mil índios" - pode ser tomada como a mais importante investidacivilizatória ocorrida no Brasil". O massacre generalizado dosbrasis no interior, iniciou no período colonial e avançou durante oimpério e a república; ainda hoje, os poucos grupos indígenas exis-tentes vêem-se, como sempre, à mercê de fazendeiros, gruposempresariais e decisões políticas que seguem a nossa tradição de''limpeza do terreno" para exploração das "riquezas?". Segue-seainda, em importância, ao extermínio pelas almas, as epidemiasde doenças trazidas pelos brancos que chegavam a eliminar, empoucos dias, tribos inteiras.

É sobre o território limpo, sobre a terra arrasada, livre das lín-guas dos bugres, do modo como eram educadas as suas crianças,livre das danças, da comilança que rendiam os inimigos captura-dos, enfim, é sobre a falta dos índios e das suas culturas que sur-gem as condições para a formação e delimitação do Brasil enquantoterritório dotado de um povo, de uma língua e de um governo. E éaí, que se erige, altaneira, a pedagogia dos colégios jesuítas e a suahistória gloriosa.

Assim, optando por educar os meninos em espaços fechados,por selecionar saberes tidos como universais, por reunir estes sa-beres em programas com dificuldades crescentes adequados àscapacidades infantis e submetidos a censuras morais, a escolajesuítica lançou as bases sobre as quais sustenta-se, até hoje, onosso sistema de educação escolar.

* * *Quando estudava na escola primária, nos anos 70, as turmas,

do curso normal ao "prezinho", faziam a fila no pátio às sete equinze da manhã. Cantávamos o hino nacional ("...de um povoherói cubrado retumbante ... e diga o verde louro dessa formu-

14. Cf. Lugon, Clovis. A República "Comunista" Cristã dos Guaranis (1610-1768). Rio de Janeiro: paz e Terra, 1968,15. Sobre a escravização dos índios cf. Monteiro, John Manuel. Negros da Ter-ra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, São Paulo: Companhia dasLetras, 1994.16. Sobre a resistência dos índios aos colonizadores cf. Luna, Luiz. op. cit.

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· .

ta...") e depois seguíamos silenciosamente em fila dupla, os meni-nos numa e as meninas na outra, para a sala de aula; a professora àfrente. Na sala rezávamos, e começavam as aulas do dia: matemá-tica, português, ciências, estudos sociais, moral e cívica, educaçãoartística, religião, educação física.

Os estagiários do curso normal, o único curso secundário dacidade, empregavam em suas aulas as técnicas educacionais maisinovadoras: álbuns seriados, quadros de pregas, flanelógrafos, car-tazes, frases escritas em cartolinas que iam sendo coladas no qua-dro à medida que o tema da aula ia se desenvolvendo, o toca-discos com historinhas da Bíblia, historinhas, cantinhos, jograis ...

Ali parados, tendo que levantar o dedo antes de fazer qualquerpergunta, assistíamos à ginástica que faziam para nos motivar epara mostrar à supervisora de estágios que dominavam o conteú-do, que utilizavam bem o quadro-negro e, o principal, que tinhamdomínio de classe. O domínio de classe era a prova de fogo. Seficássemos em silêncio e realizássemos as tarefas propostas naaula, o futuro professor teria domínio de classe; caso contrário, sehouvesse barulho durante a aula e se não obedecêssemos às or- .dens, o estagiário não teria domínio de classe. Não ter domínio declasse significava não ter dom para o magistério.

Às segundas-feiras uma chamada especial para saber quemhavia ido à missa no domingo.

Um bom investimento foi feito em nossa formação cívica: vári-as sessões para aprender, "direito", o hino nacional, o hino à bandei-ra, o hino da independência, o hino do estado, o recém-criado hinodo município e o hino da escola; os símbolos nacionais ... ôu, ôu, ôu,ôu, ôu ... aviõezinhos, cataventos, verde e amarelo. Sem falar na im-portante contribuição das aulas de História do Brasil e de Geografia.

No ginásio as aulas de ciências, a criação de um laboratório ea corrida louca atrás dos espécimes (cobras, cabeludos, morcegos,aranhas, etc.) colocados em vidros com formol, sinistras compo-tas; as festas cívicas toda segunda-feira; os livros de português egeografia aplicando instrução programada e na oitava série umteste vocacional.

No início dos anos oitenta, o segundo grau: curso profissio-nalizante.

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***Nos anos 70 a educação brasileira operava com um instru-

mento totalmente novo em sua história: uma rede de escolas pú-blicas espalhadas por todo país. Os dados de matrícula em escolaspúblicas de ensino médio mostram que em 1959 havia 373.187alunos matriculados. Dez anos depois, em 1969, este número su-biu para 2.056.992 17, um aumento de 82%. O que precedia a essesistema público de ensino era um significativo número de escolassecundárias particulares (colégios de padres e de freiras e leigos)que na década de 50 correspondiam a quase 90% das escolas se-cundárias do país".

Ao expulsar osjesuítas em 1759, o Marquês de Pombal anun-ciava estar substituindo a educação clerical da Companhia de Je-sus pelas aulas régias, insignificantes se se considera a extensãodo imenso território, complementadas por um subsídio literáriotambém muito reduzido e que era geralmente desviado.

A Companhia de Jesus, e seus colégios, deixava de existir poraqui, abrindo espaço para a Companhia Geral do Comércio doBrasil e com esta, o abandono total das poucas escolas de ler eescrever" assumiu ares de reforma, de inovação, de substituiçãodo arcaico pelo novo. Com essa medida, até a elite da Colôniadeixa de ter escola, sendo forçada a ir estudar em Portugal,

"Se examinarmos as peripécias do 'sistema' de educação nacionalfacilmente verificamos que o que sempre se chamou 'sistema' de educa-ção no Brasil foi um cerimonial destinado à iniciação cívico-mercantilde pequenas elites de comerciantes e latifundiários. (. ..) O 'sistema' edu-cacional, pois, nunca foi destinado ao povo, ao longo de nossa história.

17. Cf. Rornanelli, Otaíza de Oliveira. Histori a da Educação no Brasil.Petrópolis: Vozes. 1986:178.18.Oliveira Lima, Lauro de. op. cit.: 107-108.19. "Das 720 escolas primárias que os dados oficiais indicavam estar espalha-das por todo Reino, em 1779 (...) em sua maioria, ou não funcionava nunca oujamais puderam contar commestres eficientes e capazes, simplesmente porquenão os havia em número suficiente." Carrato citado por Oliveira Lima. L. op.cit.: 24.

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Se na Colônia, a Metrópole exigia que a elite fosse estudar em Coimbra,a partir da Independência criaram-se todos os obstáculos (. ..) para queos mestiços não ascendessem na pirâmide escolar: para as elites o 'sis-tema '; para o povo os 'exames ': a idéia de primitivo, menor imaturo,monge, mendigo, analfabeto ... sempre está presente quando se trata doexercício dos direitos de cidadania'?".

A 15 de novembro de 1827, o Imperador D. Pedro I promul-gava a lei que mandava "criar escolas de primeiras letras em todasas cidades, vilas e lugares mais populosos do Impé110"21.Essa leifazia referência, entre outras coisas, aos conteúdos a serem ensi-nados" , fixava os ordenados dos professores e das professoras,criava os Conselhos Gerais - com poder para criar e extinguir..es-colas -, determinava que as escolas seriam de ensino mútuo e ins-tituía exames para admissão de professores".

Essa primeira iniciativa de criação de escola pública no Brasilnão criou, na verdade, nenhuma escola. A escola pública foi, as-sim, "criada" quase um século e meio antes de sua materializaçãoem um sistema público de ensino. Todavia, a não existência deuma rede de escolas públicas não impediu que acontecessem, apósa Proclamação da República, muitas reformas educacionais antesda reforma que teve como culminância a lei 5.692/71 que fixou asdiretrizes e bases para o ensino de primeiro e segundo graus,direcionando a formação indiscrimanada da juventude brasileiracomo profissionais de nível médio".

20. Idem, p.33-35.21. Oliveira Lima, Lauro de. op. cit.: 105.22. "Art. 6° Os Professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações dearitimética, pratica de quebrados, decimais e proporções, as noções mais geraisde geometria prática, a gramática de língua nacional, e os princípios de moralcristã e da doutrina da religião católica e apostólica romana, proporcionados àcompreensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Impé-rio e a História do Brasil." Tipografia Nacional citado por Oliveira Lima, Laurode: 104-107.23. Idem.24. As reformas anteriores, foram: Benjamin Constant (1890); Amaro Cavalcanti(1892); Epitácio Pessoa (1901); Rivadávia(l91l); Carlos Maximiliano (1915);João Luiz Alves (1925); Francisco Campos (1931); Capanema (1942) e a Leide Diretrizes e Bases de 1961.

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o Estado Novo surge em 1937, correspondendo à febre tota-litarista que assolava o mundo (nazismo, fascismo, integralismo,etc) e no seu bojo, a Reforma Capanema. Dispensando qualquerdebate público, direcionou o ensino secundário para a formaçãode personalidades condutoras do povo, numa perspectiva inspira-da pelo nazismo, como uma forma de educação pré-militar e decriação de uma cultura patriótica. Esse regime durou 20 anos, pro-movendo coisas como: uma volta absurda a um tipo de "humani-dade" voltada para o ensino de latim e grego e o fechamento dequase 800 escolas "desnacionalizantes", ou seja, escolas de imi-grantes estrangeiros.

Nos anos seguintes há um fervilhamento nacional no que serefere às politicas de educação. Salienta-se porém, o crescente in-teresse dos Estados Unidos na sua expansão comercial e em impe-dir mudanças radicais ou revolucionárias nos países latino-ameri-canos, interesse que caía como uma luva nas intenções militares,no Brasil, de nacionalização, segurança e controle visando a suaeternização no poder. Começam a vir seguidos empréstimos e aserem instaladas as grandes empresas norte-americanas que pas-sam a influenciar nossa realidade cultural.

"Tal influência acentua-se, porém, de modo mais prejudicial atra-vés de instituições menos visíveis que as econômicas. Elas abrangeminstituições oficiais, semi-oficiais ou privadas, encarregadas de produ-zir a política de controle global das finanças, da educação, da pesquisacientífica, da inovação tecnológica dos meios de comunicação de mas-sa ...''25.

Fascinados pelas possibilidades de produzir brasileirosinteli-gentes, produtivos, dóceis, patriotas, corajosos e felizes, que per-mitiam prever os avanços científicos nos campos da psicologia eda pedagogia, os militares investiam na formação de especialistas(sob a orientação de cientistas e pesquisadores dos EUA) que ti-nham a responsabilidade de formar um exército de formadores deprofessores que em pouco tempo transformada o Brasil numa gran-de nação.

25 Moraes, Regis de. Cultura Brasileira e Educação. Campinas: Papirus, 1989.

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Começaram a ser veiculadas, principalmente no campo dasciências naturais", traduções de livros didáticos norte-americanospara utilização pelos professores e proliferam cursos de formaçãode professores que são "profissionalizados" às pressas, a torto e adireito, numa tentativa de corresponder à demanda emergente acen-tuada, principalmente, pela obrigatoriedade instituída de escolari-dade mínima.

É interessante observar a referência que os relatórios e atémesmo o texto da LDB-71, fazem à liberdade:

cc .•• A partir da LDBEN, tentamos 'americanizar' nosso processo, àrevelia do tipo de sociedade em que vivemos. O conflito entre o idealdos pedagogos e a brutal realidade de uma sociedade fechada cria umcipoal na regulamentação que só um tecnocrata com requintada habili-dade legislativa pode resolver.

A nova lei levou ao extremo este requinte, de modo que, dificil-mente, as famílias, alunos, professores e estabelecimentos entenderão oque podem e o que não podem fazer ou desejar. O emaranhado, que nãotem nada de babélico, é refinadamente lógico, tão lógico que nada tem aver com os problemas vivenciais de um adolescente confuso. Este re-quinte tem três objetivos evidentes: a) parecer que o regulamento dáampla liberdade de movimento, de opções e de combinações; b) resol-ver, por antecipação todas as hipóteses de ocorrências, para nada ficarfora de controle; c) sugerir, a quem não tem imaginação, o que deviafazer se tivesse ... Assim, a lei e as resoluções (. ..) criam um sistema deALGORITMOS,dentro do qual todos os problemas estão previstos epré-resolvidos. O aluno pode fazer o que quiser com as seguintes condi-ções: a) 'ano letivo de 180 dias'; b) 'com duração de x horas'; c) 'naseguinte seqüência seria!'; d) 'com os seguintes pré-requisitos"; e) 'comtal carga horária'; f) 'de acordo com a oferta da escola'; g) 'conformesuas conveniências'; h) 'dentre as aprovadas pelo Conselho'; j) 'quenão reduzem um período mínimo de tantos anos de curso', etc., etc., etc.São tais as condições que tudo se resolve como no dito popular: podecasar com qualquer uma conquanto que seja com Mariat".

26. Cf. Krasi1chik,Myriam. O Professor e o Currículo das Ciências. SãoPau-lo: EPUIEDUSP, 1987.27. Oliveira Lima, Lauro de. Op. Cit. p.257-258.

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Um exemplo são os "currículos mínimos" que dão ao profes-sor, uma vez trabalhados completamente, a possibilidade de de-senvolver com seus alunos temas regionais ou de interesse do gru-po; só que raramente, após ter trabalhado o '<mínimo", sobra umaaula sequer para desenvolver outros temas. A LDB está repletadesse tipo de liberdade que diz que o professor é livre para fazerqualquer coisa, desde que faça estritamente o estabelecido.

O elemento que esse movimento trouxe para a escola com osacordos MEC-USAID foi o especialista, ou seja, especialista ci-entífico. Este não era apenas o estudioso das ciências naturais mas,principalmente, qualquer um cujo discurso apresentasse um cará-ter de cientificidade legitimado por uma formação acadêmica es-pecífica: psicólogos, supervisores escolares, orientadores educacio-nais, pedagogos, especialistas em currículos e os administradoresescolares. As práticas relativas a estas funções, sempre existiramna escola - desde o seu surgimento com os jesuítas - mas agoracompletava-se o deslocamento do eixo verdade revelada da educa-ção religiosa, para a verdade científica.

Nesta época houve uma explosão da necessidade deperitos quetrouxe, além dos especialistas, ''inovações tecnológicas" tais como:a instrução programada, os testes de "QI", os testes vocacionais, acriação, a revisão e a reformulação dos currículos e, finalmente,a departamentalização de escolas e das universidades.

A necessidade de cientificidade, com a finalidade de legitimarpráticas e discursos, manifesta nas transformações pelas quais passaa escola ao ser apropriada pelo Estado aparece nos discursos dasciências da educação, nas publicações da época, ao darem um con-ceito de si mesmas:

"La Pedagogia, como ciência de Ia formación del hombre suelesubdividirse en educación y ensefianza" (Gartner, 1.970:17).

"Didática é a ciência e arte de ensinar. É ciência enquanto pesquisae experimenta novas técnicas de ensino, com base, principalmente, naBiologia, Psicologia, Sociologia e Filosofia. E arte quando estabeleceformas de ação ou sugere formas de comportamento didático com basenos dados científicos e empíricos da educação, isto porque a didáticanão pode separar Teoria e Prática" (Nérice, 1960:51).

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"A Psicologia educacional tem como principal finalidade aplicar oconhecimento científico da personalidade humana ao ensino, isto é, amotivação, direção, controle e avaliação da aprendizagem. A psicologiaeducacional utilizará, então, da psicologia, aqueles aspectos que darãoao professor uma visão correta e verdadeiramente científica da criança,uma compreensão da sua natureza e condições de aprendizagem, umaapreciação da importância das diferenças individuais, a consciência daimportância do ajustamento e o reconhecimento da necessidade de umaformação adequada ao caráter" (Kelly, 1969)28.

Tais manifestações acusam uma necessidade de científicidade/verdade que se funda numa perspectiva de ciência det erminist a,onde são traçadas trajetórias que respeitam e preservam as insti-tuições modemas. Encaram o homem como "caixa preta" recebe-dora de estímulos e emissora de respostas.

A escolha cuidadosa dos objetos pelas ciências experimentaisparece guardar uma relação muito estreita com o modus operandidas ciências da educação ao buscarem na psicologia educacional,derivada da apropriação por esta dos estudos skinerianos, as bases"científicas" que suportam os mecanismos de seriação, CUlTÍCU-

los, avaliação, duração das aulas, etc, que são instalados na escolapública brasileira.

No caso das ciências experimentais, o cientista é o represen-tante'? dos objetos que faz falar e que purificados, controlados'?a fim de que se tomem testemunhas fidedignas"; fazem falar osfatos. Neste processo, é muito importante que a testemunha se deixepurificar.

A química tomou-se uma ciência experimental não porque ela fi-nalmente pensou em purificar os corpos que emprega, e sim porque os

28. Os grifos são meus.29. Latour,Bruno. Jamais Fomos Modernos: ensaio de antropologia simétrica.Rio de Janeiro: Ed 34, 1994:33.30. Segundo Stengers, controlar e purificar é tentar eliminar tudo o quepudesseturvar o sentido do testemunho, tudo o que pudesse permitir outras leituras detal testemunho. Stengers, Isabelle. Quem Tem Medo da Ciência": ciência epoderes. SãoPaulo: Siciliano, 1990:83-87.31. Idem.

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corpos químicos se deixam purificar. Tentem purificar um rato ou umhomem":

As ciências da educação - que fundamentaram o projeto deescola pública empreendido pelos militares. e apoiado pela classemédia, que via em tal projeto a possibilidade de elitizar-se -- esco-lheram como testemunhas "ramsters", chimpanzés e o própriohomem. Tais testemunhas, como vimos, não se deixam purificar,logo ao invés de produzirem fatos, produzem artefatos.

o artefato é o pesadelo do experimentador. Se podemos dizer queele confundiu Wl1 fato com um artefato, podemos dizer que ele extor-quiu um testemunho.( ...) Podemos aliás dizer que do ponto de vista dasciências realmente experimentais, os psicólogos skinnerianos, que agem"em nome da Ciência", produzem sistematicamente artefatos. O ratonuma caixa de Skinner não tem nenhuma escolha, ele não faz o psicólo-go correr nenhum risco. O que quer que o rato faça, o psicólogo teráseus números.".

A purificação e o controle das testemunhas num plano gover-namental- que capitaliza o humano por meio de um controle indi-vidual, de um disciplinamento e da inserção desses indivíduos emtrajetórias fixadas em dispositivos como os currículos escolares -permitem a obtenção de testemunhos úteis a este plano. A partirdaí pode-se falar da escolarização enquanto violência, que disfar-ça nas práticas universalizadoras, práticas uniformizadoras queagem no sentido da prevenção contra todo possível desvio de tra-jetória na empreitada para formar cidadãos.

O que garantia a legitimidade dos especialistas era a cien-tificidade do discurso que detinham, tudo o que diziam deveriapossuir caráter de verdade. Um dos objetivos mais importantesdessa mudança na educação era diminuir a influência da famíliapara que a escola, com seu corpo de especialistas, conseguisseproduzir pessoas mais iguais, "sem influência" das crenças, doscostumes, de tudo que atrapalha a idéia de um Estado com pessoasque ao mesmo tempo que o defendem dele dependem.

32. Ibidem. p. 90.33. Ibidem.p.86-87.

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Aí, novamente, não se objetiva oferecer uma educação comomeio de ampliar a liberdade das pessoas para as quais se destina,mas como meio de formar patriotas, indivíduos úteis para o Esta-do, uniformizados, previsíveis e dóceis.

Em função disto, são instituídos campos de saber para especia-listas que, a partir do status de detentores de um conhecimentoverdadeiro e "científico", sentem-se responsáveis pela determina-

•.. ção de trajetórias delicadamente traçadas que restringem as possi-bilidades do conhecer aos conhecimentos legitimados pela ciên-cia, ou melhor, aos conhecimentos que satisfazem seu desejo decientificidade.

Os especialistas que plasmaram a escola a partir das intençõesmilitares aplicaram às relações professor-aluno e ensino-aprendi-zagem o modelo da temia da comunicação.

"Cibernética é a pesquisa que se processa mediante o instrumentoconceitual da teoria matemática da informação; ou 'domínio técnico docidode problemas de recepção, elaboração e transmissão de dados, atra-vés do tempo e do espaço e dentro de um ou vários sistemas, quer setrate de sistemas caracterizados como fisicos, fisiológicos ou psicológi-cos.' A aprendizagem, entendida como processo de comunicação ouassim considerada, situa-se dentro 'do círculo de problema de recepção,elaboração e transmissão através do tempo e do espaço.' Será precisoque dessa recepção da informação, elaboração e transmissão, partici-pem ambos os parceiros da comunicação'?".

O aluno passou a ser compreendido como processa dor de men-sagens: um computador. Input e output resumiam o princípio e o fimdo que chamavam aprendizagem: havia aprendido aquele que pu-desse dispor da informação recebida sempre que solicitada. Apren-dizagem como resultado da comunicação entre professor e aluno.A efetivação dessa comunicação era cercada por uma série de téc-nicas memônicas, de assimilação, de reforço, de ajustamento, en-fim todo um aparato normalizador preparado, aplicado e controla-do por pedagogos, programadores, psicólogos e administradores.

34. Shiefele, Hans. Ensino Programado: resultados e problemas teóricos e prá-ticos. São Paulo: Melhoramentos/Editora da USp' 1968.

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A unidade fundamental da comunicação escolar consiste da du-pla professor-aluno. O professor como o lugar, o sistema de ondeprovém as informações, o aluno como receptor. Cada aluno como re-ceptor. Entre cada aluno individualmente e o professor, as mensagens.Mensagens adequadas segundo critérios de cientificidade, de morale segundo a prerrogativa da "segurança nacional"; esta associada aosdois primeiros e correspondendo à necessidade de desmobilizaçãodas lutas intemas no país ou de mobilização para o consenso.

A relação professor-aluno dentro desse modelo busca o mes-mo efeito da relação televisor-telespectador e da relação propa-ganda-consumidor. Todas estas relações podem ser caracterizadascomo relações mediadas por técnicas de ensino-aprendizagem nasquais tanto quem, ou o que, ensina quanto quem aprende pode serpassivo; apenas a mensagem - o hífen que une todas essas pala-vras? - é sempre ativa.

Na sala de aula, a atividade da mensagem não diz respeitotanto ao conhecimento que veicula, e sim ao tempo que ,deve ocu-par mantendo as pessoas em situação de comunicação. E o exercí-cio da comunicação que importa. A polaridade emissor-receptortensionando as relações a ponto de eliminar e quebrar as linhastransversais; o corpo imóvel como suporte dos canais de aprendiza-gem: o olho e o ouvido. Por meio do emprego quase exclusivo detécnicas audiovisuais, a escola opera nos indivíduos a ela confia-dos uma profunda redução da capacidade de apreensão do mundo,de atuação e de expressão das suas vontades. Tal redução das pos-sibilidades de intervenção, criação e expressão permite a fabrica-ção de um indivíduo que vai apresentar apenas problemas possí-veis de serem encarados como problemas de ensino-aprendiza-gem, ou seja adequados à ação dos especialistas em educação.

Surge todo um aparato tecnológico que suporta a redução doeducar.à veiculação de mensagens -.A primeira destas tecnologiasfoi a escrita, e é em função dela que tomam corpo, com os jesuítas,as primeiras escolas dotadas desde então de seus elementos bási-cos: sala de aula, carteiras em fila, lugar à frente reservado para oprofessor e o quadro-negro.

O quadro negro é o equipamento desenvolvido para a tarefade alfabetizar grandes grupos, uma espécie de meio ideal que, acom-panhado do professor, possibilita a associação de cada caractere

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escrito, a letra, ao seu som; a formação de sílabas; a construção depalavras; frases e textos,

A medida que as pretensões universalizadoras foram aumen-tando, dentro de um programa de legitimação dos estados-naçõesmodemos, não bastava mais determinar - por meio de uma redu-ção drástica nos sentidos provocada pelo exercício visual da escri-ta alfabética - as fronteiras do espaço mental" de todos os quevivem em contato com a cultura do ocidente. A escola foi com-pondo então, um quadro de cultura universal a partir de um reper-tório estabelecido de motivos" extraído das ciências,

Não há como não sentir a "constrição" violenta que devemsofrer campos de conhecimento como a fisica, a química e a bio-logia e temas tão abstratos quanto modelo atômico e noções deteoria quântica ao terem como veículo quadro-negro e giz - queaté hoje são os equipamentos mais utilizados na escola. Produtoda pesquisa empírica, estas disciplinas têm dificuldade de expres-são por meio exclusivamente verbal (fala e escrita).

Com a impossibilidade de dotar as escolas de laboratórios ede treinar professores para o ensino de ciências, por exemplo, sur-ge o livro didático, como altemativa adequada à sala de aula, comouma série de quadros-negros já preenchidos na seqüência dos pro-gramas escolares. O livro didático passa a utilizar, além da lingua-gem escrita, gravuras que dão conta de aspectos da experiência -não somente a experiência de laboratório - de dificil expressãoatravés da linguagem escrita,

A imagem gráfica aparece na educação brasileira como umalinguagem que se põe entre a escrita, ou imagem verbal" - a lin-guagem "oficial" da escola - e a experiência do vivido, esta, decerto modo proibida pelas garantias da escolarização. A separaçãoforjada pela escola entre o vivido (situações locais e singulares), eos temas de que trata em sala de aula (universais e globalizantes) e

35. Steiner, G. Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1990: 153.36. Idem.37. Lúcia Santaella em seu artigo "palavra, imagem e enigmas", faz diferencia-ções importantes entre as imagens separando-as em gráficas, óticas, perceptivas,mentais e verbais. REVISTA USP Dossiê palavra/imagem. Número 16. SãoPaulo:Edusp,1993.

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da utilização da imagem como interface entre estas realidades, in-dica uma solução política e econômica aparentada com a propa-ganda uma vez que exige e estimula a passividade do aluno frenteàs mensagens que veicula.

Sempre se tentou reformar, atualizar, reciclar a escola. Entre osmovimentos mais importantes nessa linha, destaco aqui o da tecno-logia educacional. Surgido nos anos 70, visava produzir módu!osinstrucionais utilizando tecnologias avançadas. Passaram a concor-rer com o quadro-negro projetores de slides, episcópios, retropro-jetores, álbuns seriados, toda sorte de recursos audiovisuais destina-dos a prolongar, via aparatos tecnológicos, o recurso audiovisual bá-sico da escola: o professor falando frente ao quadro-negro.

Tendo como auxiliares a instrução programada, a análise desistemas e as temias da comunicação, a tecnologia educacionalintroduz, via pesquisa universitária, novos especialistas, técnicose programadores que logo, juntamente com os recursos audiovi-suais, cairiam em desuso.

O aparecimento do vídeo e do computador abre novas possi-bilidades para a discussão sobre o uso de tecnologias, agora novastecnologias, em educação. Rompendo com a especificidade dosprojetores de imagens e sons anteriores, -- dos quais circulam ain-da com freqüência pelas salas de aula os retroprojetores, talvezpela imagem silenciosa que projetam, como um "quadro-negro/quadro-branco" de luz que pede a voz do professor para completara mensagem que veicula - o vídeo permite o desenvolvimento daimagem da experiência no tempo, acompanhada pelo registro dosom nela produzido. Permite ainda a inclusão de outros sons eimagens e a criação de experiências simuladas, de cortes, de sele-ção, de resumo da experiência.

"O computador, por sua vez, inclui muitas outras possibilidades,seria algo assim como uma metaferramenta, uma ferramenta (hardwareicom a qual se pode "manufaturar" outras ferramentas (sojtware): o pro-duto final não é senão uma das possibilidades fenomênicas do progra-ma, este sim o manancial de materiais simbólicos onde vem banhar-se eembebedar-se a comunidade de usuários".

38. Bret tn Machado, A. Máquina e Imaginário. São Paulo: Edusp, 1993:39.

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Estas duas tecnologias, o computador e o vídeo, ao contráriodas anteriores, que eram produzidas com finalidades didáticas poruma tecnologia que se pode dizer genuinamente educacional, des-tinam-se a um mercado muito mais abrangente: a sociedade glo-bal. Desse modo, ao invés de nascerem adaptadas à comunicaçãotípica em sala de aula, produzida originalmente para a alfabetiza-ção, atraem para si a função instrucional até então desempenhadapela escola, podendo provocar tensões no processo de escolarizaçãoa ponto de exigir que elementos como currículos, seriação, avalia-ção, etc, se rompam e, assim, a escola.

Tal possibilidade, todavia, não significa que este seriao fim daescolarização, mas talvez o refinamento de uma estratégia de governoque iria em direção a uma mentalidade escolarizada que, preservan-do estruturas mentais introduzidas pela escolarização, viria prescindirda materialidade da escola -.

Ivan lllich, no seu artigo ''Na ilha do Alfabeto", chama a aten-ção para esta possibilidade quando pergunta:

"Antes de mais nada, há motivos para crer que o novo interesse dasinstituições em relação a uma universalização da capacidade técnica delere escrever possa, de fato, reforçar e difundir a estrutura mental alfa-betizada? Em segundo lugar, não será, talvez, que a escola se tomou umrito de iniciação que introduz à mente cibernética, ocultando àquelesque a freqüentam a contradição entre os valores da alfabetização quepretende servir e a imagem do computador que vende?'?".

Neste sentido, cabe ter sempre em mente - ao se falar e atuarno campo da educação, neste tempo em que tantas incertezas nosassaltam, em que as novas tecnologias estão à mercê de determi-nadas configurações de força na sociedade que agem no sentidode implementar e dinamizar novos regimes de pensamento, de sen-timento e de percepção" - que os inumeráveis avanços dainformática, no sentido de ampliar as possibilidades do humano,talvez não signifiquem ampliar a sua felicidade, uma vez que está-

39. Illich, 1. et alii. Educação e Liberdade. São Paulo: Imaginário, 1990:35.40. Luz in Parente, André (org.) Imagem - Máquina: a era das tecnologias dovirtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993:50.

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se sempre sujeito às possibilidades fenomênicas do programa",ou seja, está-se sempre sujeito ao programador.

a ensino secundário, com a falência da profissionalização, ain-da sob a vigência da LDB/71 - que vigorou até 1996, com algu-mas modificações - e pressionado pelo exame vestibular, foi-seadaptando e acomodando até poder lidar bem com a necessidadede oferecer cursos profissionalizantes sem professores habilita-dos, sem oferecimento de estágios, sem cumprir os programas, aensinar ciências por apostilas e resolução de exercícios, a tomar otempo dos estudantes ...

Nos anos 80, após a queda do regime militar, a Universidade -mais precisamente os cursos de licenciatura e as pesquisas em edu-cação - pôde polarizar a tarefa de conduzir os avanços no campoda educação escolar. Neste período, embora tenham havido im-portantíssimos avanços principalmente do ponto de vista da pro-dução teórica, com a produção de pesquisas em ensino, sãomantidas intocadas estruturas básicas que caracterizam a escola,desde sua implantação pelos jesuítas, como produtora de indiví-duos imediatamente úteis a perspectivas globalizantes e, dessemodo, como aparelho ou dispositivo que pode ser acionado pelocentro de decisões de qualquer poder (religioso e/ou político e/oueconômico) que esteja em vigência. A educação nos anos 80 fazemergir, por meio da produção teórica acadêmica, todo um apara-to de análise crítica da realidade educacional do país. a fervilhardesta produção deu-se sobre as estruturas resultantes das estraté-gias militares; quando se criticava ferozmente as práticas educacio-nais despolitizadas e despolitizantes incentivadas, até então, pelaescola, ofereceu-se instrumentos para reformulação dos currícu-los, dos objetivos educacionais, da didática, da relação professor-aluno, da avaliação. Se tal reformulação visava proporcionar aformação de um sujeito crítico, cidadão, consciente dos seus di-reitos e deveres, a formação deste sujeito se dava tomando comomeio todas as estratégias instituídas pelo govemo militar. Assimpermaneciam intocados o papel dos especialistas na seleção deconteúdos, na avaliação, na determinação de políticas educacio-

41. Idem.

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nais", na administração e com eles todas as estruturas de desmo-bilização política instauradas naquele período.

A partir de algumas garantias, e por meio de uma incrível ca-pacidade mimética, a escola assumiu o discurso da moraljesuíticapara a produção de sujeitos com alma; o discurso científico nomilitarismo para a produção de técnicos patriotas; delineia-seatualmente, o que parece ser um terceiro momento importante depedagogização:· o discurso de necessidades básicas de aprendiza-gem" com alcance global para a produção de consumidores, noseio do que, no Brasil, se chama Plano Decenal de Educação.

Vivemos um tempo em que estão sendo anunciadas mudançaspara a escola. Espalhados pelo planeta, estão novos especialistas atecer, com o fio dos seus conhecimentos, das suas crenças, dassuas limitações, da cumplicidade que têm com os que financiamseus interesses, da moral de cada um, do mundo que divisam dosseus gabinetes a nova teia reguladora e regulamentadora que serálançada sobre as teias já rotas produzidas pelo catolicismo e pelomilitarismo: o Plano Decenal de Educação ou, o sonho neoliberalde produzir consumidores.

Eficiente como máquina de uniformização cultural do ociden-te, a escola, servindo sempre a interesses centralizados, se trausmutahoje numa mentalidade escolarizada mantendo suas garantias eprescindindo de sua materialidade ao ser veiculada como infor-mação à velocidade da luz, para o deleite dos participantes do ban-quete que é servido no cyberspace.

***

É importante aqui, fazer uma distinção entre os processos deeducação e escolarização. O primeiro vem como uma das carac-

42. O papel desses especialistas 110 que respeita à elaboração de políticas edu-cacionais, é muito mais importante pelo seu caráter passivo frente às necessida-des apontadas pelo mercado. Neste campo o especialista em educação tem ser-vido historicamente como legitimador de intenções políticas de governo. Sobreisto ver: dos Santos, Laymert Garcia. Desregulagens: educação, planejamentoe tecnologia comoferramenta social. São Paulo: Brasiliense, 1981.43. UNICEF, 1990.

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terÍsticas importantes que distinguem o gênero humano a partir dafaculdade da memória e da sua capacidade de construir ferramen-tas aliadas à vida em sociedade, na conseqüente união destes as- ,.c,

pectos na construção da cultura. Deste modo ser humano em socie-dade implica estar envolvido por situações de educação, seja de.um indivíduo para com o outro; do meio social para com o indiví-duo e vice-versa; e ainda, do indivíduo ele mesmo com tudo que ocerca: a auto-educação - ou a leitura que o indivíduo faz do mun-do a partir de suas experiências e capacidades.

A educação assim, não conduz necessariamente ao bem, à fe-licidade ou ainda a um ideal de humano e de sociedade. Ela erranum mar onde as correntes que a conduzem se formam cones-pondendo a processos tanto individuais quanto sociais: finitudeda vida, a percepção e registro de espaço e tempo, riqueza, pobre-za, etc.

A escolarização, por sua vez, é também educação só que vin-culada a objetivos institucionalizados. Almeja-se com ela um tipode homem e um tipo de sociedade. A escola funciona dentro des-ses objetivos como máquina, aparelho ou dispositivo que pode seracionado pelo centro de decisões de qualquer poder (religioso e/ou político e/ou econômico) que esteja em vigência, onde se pro-cessa a fabricação desses indivíduos "ideais" e, na lógica dessespoderes, conseqüentemente, da sociedade. A escola tem como açãofundamental a uniformização da cultura, condição essencial paraa ação do Estado. Este processo sempre pressupõe algumas garan-tias: inventar espaços próprios para a educação, controlar o tempoem que se desenvolvem as atividades, selecionar saberes e dar aeles caráter de universalidade, inventar uma relação saber-capaci-dade, obrigar a freqüência, desqualificar outras práticas em educa-ção, seriar, avaliar e certificar.

A escolarização põe-se no mundo moderno como agência depropaganda do Estado, não como algo destacado deste, mas comoum subsistema ou órgão que tem, ao se concertar com outros, umafunção vital neste sistema maior ou corpo estatal.

Empenhada na empreitada de uniformização cultural, a esco-la sempre lançou mão das tecnologias mais avançadas que garan-tissem a conformação das mentalidades à mentalidade científico-política do Estado.

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Tomando para si a tarefa da educação dos brasileiros, a escolapública foi concebida para a consecução de um projeto que produ-ziria um mundo novo, onde o homem não teria nada a dizer atésair como produto - cidadão, profissional, dócil, trabalhador, dis-ciplinado, criativo dentro da lógica do trabalho assalariado - doprocessamento, ou linha de produção da maquinaria escolar. Nes-te mundo, um mundo simples, a vontade de cada um se traduziriano desejo de engrandecimento do Estado pela força do trabalhorestrito às relações de produção e consumo, onde a supressão deoutras formas de produção de saberes é condição fundamental paralevar a termo seu projeto no qual os saberes, tanto relativos aohomem, quanto às coisas, concertam-se na direção do universal.

* * *

A educação que acontece nas escolas, públicas ou particula-res, é sempre controlada pelas leis que regem a educação nacionale submetida a uma série de limites que garantem a efetividade doprocesso de escolarização.

Estes limites, que chamo de garantias da escolarização, sãoos elementos mais ativos da escola enquanto dispositivo. Estasgarantias envolvem todo um complexo de controle sobre o tempo,sobre os saberes e sobre os corpos que são exercidos por meio deprogramas de ensino, seleções de conteúdos, leis, horários, avali-

o ações, etc. que fazem penetrar a disciplina, o disciplinamento, portoda a sociedade.

Assim, garantem o processo de escolarização as seguintesações:

• Inventar espaços próprios para a educaçãoA sala de aula, onde se fala do mundo estando fora dele, um

espaço apropriado à transmissão do conhecimento escolar, é umconjunto de celas individuais, solitárias, onde cada um recebe asmensagens e processa-as para a posterior avaliação: aplicação deinstrumentos que irão verificar a aprendizagem.

O modo como o espaço da sala de aula está configurado -com suas paredes nuas de cores neutras, com suas janelas altas de

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vidros translúcidos que permitem a passagem da luz e não dasimagens de fora - faz com que o indivíduo seja encerrado em umacélula projetada para que a sua interação com o mundo seja míni-ma e sua atenção para o conhecimento que lhe está sendo transfe-rido, seja máxima. Há ainda a marcação dos lugares dos que apren-.dem, enfileirados, individualmente ou em duplas de modo que asua atenção esteja voltada para o lugar de onde é transmitido oconhecimento. A sala de aula constitui-se, assim, num espaçoidealmente projetado para a relação sujeito-conhecimento, um es-paço de solidão, de comunicação.

A sala de aula perfeita poderia prescindir da relação profes-sor-aluno desde que a relação sujeito-conhecimento fosse garanti-da (máquinas de ensinar e outras investidas em substituir o profes-sor).

A arquitetura escolar está intimamente ligada ao que se esperaque aconteça na escola, aos fluxos humanos e de saberes, à ori-entação das relações em termos de conhecedor-ignorante, leitor-analfabeto, de diretor-dirigido, de fiscal-fiscalizado, de ajusta-do-desajustado, de professor-aluno. As relações que se travam noâmbito do pedagógico (conduzir o outro a) necessitam dessas di-ferenças; diferenças que determinam os lugares que cada um deveocupar; arquiteturas que configuram distribuições e combinam-secom hierarquias, produzindo importante parte do que não se diz,do não dito que produz efeitos de escolarização. .

• Controlar o tempo em que se desenvolvem as atividadesO controle do tempo evoca as badaladas do sino nas reduções

jesuíticas marcando o despertar para a oração, o desjejum, a cami-nhada cantando até a lavoura, o dia todo, até a ave-maria, o inícioe o fim de qualquer atividade; lembra ainda a sirene da fábrica e ogrito do carcereiro avisando a uma ala que pode dirigir-se ao pátiopara tomar sol. Entre cada sinal o contínuo da atividade: estudar,recrear, exercitar-se, deslocar-se de um lugar a outro.

A duração das aulas, como tempo que aproveita a capacidadeque um sujeito normal tem de manter a atenção voltada ao profes-sor, é determinada segundo as temias da psicologia educacional epode ser traduzida na intenção de otimizar a aprendizagem, au-

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mentando a produtividade do sujeito, a fim de produzir um máxi-mo de rapidez e de eficácia":

A duração do dia escolar é ainda importante fator social quepermite manter o jovem escolar protegido do mundo (das drogas,da violência, das gangues) enquanto seus pais trabalham.

cc ••• há muitos argumentos ponderáveis a favor do dia escolar mais lon-go. Entre eles, podemos citar os seguintes: (1) a desejabilidade de man-ter os alunos na escola, a não dispensá-los durante horas em que os paisnão podem exercer controle adequado sobre suas atividades, ou em queeles podem ocupar seus momentos de ócio em atividades de valor duvi-doso; (2) a menor confiança que pode ser depositada no estudo feito emcasa; tendo em vista o número muito maior de horas que os jovens dedi-cam ao rádio, à televisão e às atividades sociais; (3) a conveniência deprever, no programa da escola, tempo suficiente e oportunidades para asatividades extracurriculares; e (4) a tendência para as aulas mais demo-radas, de 52 a 67 minutos líquidos de duração, que tem origem princi-palmente na orientação de se utilizarem menos recitações e mais estudoe trabalho de laboratório?".

':: O tempo que o aluno permanece na escola é um tempo em queestá garantido o controle adequado sobre ele. No interior da esco-la, no lado de dentro dos muros, por um tempo xis, os responsá-veis podem desfrutar da tranqüilidade de que o seu filho está lon-ge, afastado dos males do mundo, realizando atividades adequa-das à sua idade e à sua capacidade; atividades curriculares eextracurriculares - estas também sujeitas a programas.

Dentro deste tempo, desenvolve-se um outro: o tempo das ta-refas; um tempo que mais e mais se toma um tempo que se esperapassar. Uma espera. A vida escolar, o tempo da escolarização, comouma grande espera marcada pelos finais fictícios das fOlmaturas-

,> como o "fecha parêntesis" que contém os términos de aula, desemana, de bimestre, de semestre, de ano, de curso.

44. Machado, R. in Foucault, M.Microfisica do Poder. Rio de Janeiro: Graal.1979:17-18.45. 111.: Douglass, Harl. Administração Moderna de Escolas Secundárias. Riode Janeiro: Editora Fundo de Cultura. 1963:460-461. Traduzido de:ModernAdministration ofSecondary Schools. Ginn and Company, New York, 1954,USA.

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• Selecionar saberes e dar a eles caráter de universalidadeOs programas escolares, os currículos, aproximam de nós, no

final do século XX, a ação seletiva dos jesuítas do século XVIsobre os conhecimentos. Ação que tinha como fim preservar asalmas dos infantes dos temas profanos e da corrupção que daí po-deria advir. Lembram ainda a crença na didática como arte de en-sinar tudo a todos anunciada por Comenius no século XVII; propo-sição que não resiste às perguntas o que é tudo? e quem são todos?

Um rol de co:rihecimentosuniversais de caráter científico, pro-venientes dos centros da cultura colonizadora e mercantilista doocidente compõe o que se chama tudo; e os contingentes de indi-víduos colonizáveis e possíveis de serem reduzidos ou tomadosnormais, encenam o que se diz ser todos.

Mora tudo e todos, um conjunto inominável de saberes e mo-dos de viver que não ocupa espaço no tempo histórico nem na geo-grafia a que temos acesso por meio dos programas escolares e dosseus prolongamentos que veiculam os meios de comunicação demassa.

É dentro dos limites dessa seleção de saberes, ou a propósitodela, que adquire coerência tudo que se diz, na instância das leisou da pedagogia, de modo a que a escolarização pareça encenarnela mesma as possibilidades da educação.

O conhecimento escolar pode ser encarado como uma produ-ção de saber que é interdição dos saberes possíveis (tudo que fogedo âmbito do conhecimentos e circulação, afirmação dos conheci-mentos universais. E aí que o professor é deixado livre para pro-por, para buscar soluções. Uma vez que já estão devidamente sele-cionados, hierarquizados, adequados, encenados em disciplinas,universalizados, cabe ao professor reordená-los, reavaliá-los, atua-lizá-los, relacioná-los entre si em tentativas multi, inter ou trans-disciplinares.

Os saberes escolares têm como característica principal, o fatode circularem codificados de modo a exigirem uma espécie deiniciação à "gramática" que rege a lógica desses códigos e conferea esses saberes status de cientificidade; parece ser desse modo quese instituem a escrita para a escola, a matemática para as ciênciasnaturais e, atualmente, a informática para os participantes da "so-ciedade global".

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e Inventar uma relação saber-capacidadeCabe ao especialista em educação estabelecer as relações en-

tre saber e capacidade. As ordens religiosas, marcadamente os je-suítas dão condições para o aparecimento do professor como auto-ridade moral que

" ... además de poseer conocimientos sólo él tien Ias claves de una correctainterpretación de Ia infancia así como deI programa que 10s colegiales han deseguir para adquirir los comportamientos y 10sprincipios que correspoden a sucondición y edad.

Todo un conjunto de saberes vau aser extraídos del trato directo con estos .seres encerrados desde sus cortos anos que, dia a dia, se vau convirtiendo cadavez más en niííos; saberes relacionados con el mantenimiento del orden y Iadisciplina en Ias clases, el establecimiento de niveles de contenido, Ia invencónde nuevos métodos de ensefíanza y, en suma, conocimiento do 10 que hoy sedenomina organización escolar, didáctica, técnicas de ensefíanza y otras cienciassutiles de carácter pedagógico que tuvieron sus comienzos en Ia gestión y elgobierno de 10sjóvenes".

Adequar os saberes às capacidades, como um prenúncio danecessidade do desenvolvimento de um estudo, uma especializa-ção, que aponte que tipo de saber deve ser dado para que pessoa eem que fase de sua vida; logo, também, da necessidade de peritos.

Com os militares acontece a introdução do especialista cientí-fico, dos expertos, daqueles a quem cabe definir diretrizes e pro-gramas nacionais de educação. Os profissionais da psicologia daeducação, da didática, da administração escolar, da tecnologia edu-cacional, da orientação educacional, da educação especial são osque passam a produzir materiais e ordenações de conhecimentosadequados às idades, às capacidades intelectuais e fisicas e tam-bém ao nível social dos g11lpOSa que se destinam seus programas.

eDesqualificar outras práticas em educaçãoA eliminação das escolas populares não estatais e não cleri-

cais, ligadas aos sindicatos e ao movimento anarco-sindicalista noprincípio do século?", e das escolas consideradas "desnaciona-

46. Alvarez-Uria, F. y Varela, 1. op.cit.47. Cf. Jomini, Regina Célia Mazoni. Uma Educação para a Solidariedade:contribuição ao estudo das concepções e realizações educacionais dos anar-quistas na República Velha. Campinas, SP: Pontes, 1990

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lizantes",escolas dos imigrantes", foi uma ação muito corriqueirano processo que resultou na instalação do Estado Novo em 1937.A desqualificação de outras iniciativas educacionais, tendo comobase as leis nacionais que regem a educação, mantém-se até hojena Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Embora anun-cie um "pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas", a leilimita a liberdade de organização aos "termos da lei" exigindo dainiciativa privada (escolas particulares, comunitárias, confessionaise filantrópicas) o "cumprimento das normas gerais da educaçãonacional e do respectivo sistema de ensino", a adoção de um "cur-rículo minimo com base nacional", o cumprimento de "uma cargahorária mínima anual de oitocentas horas" e concede ao PoderPúblico a faculdade de conceder autorização de funcionamento eavaliação de qualidade" .

• Obrigar a freqüênciaO acesso ao ensino fundamental aparece na LDB com duas rou-

pagens, a primeira é a de um "direito público subjetivo" que podeser exigido por qualquer cidadão; a segunda é a da obrigatoriedade- termo que no texto da lei aparece sempre acompanhado da pala-vra gratuidade. A partir daí, pode-se falar em escolarização como sen-do um direito compulsório e gratuito. Aqueles que não usufruemda escola enquanto direito, são forçados a freqüentá-Ia, Diariamen-te ser submetido aos exercícios promovidos na escola. A obrigato-riedade escolar tem importância capital para a uniformização cul-tural que inscreve o Estado na consciência dos sujeitos tomando-os cidadãos tutelados pelo Estado. Tal medida garante, ainda, asupressão de outras formas possíveis de educação uma vez que ocumprimento dessa obrigação com o Estado nos ocupa, diaria-mente, pelo menos quatro horas. Uma boa parcela do dia... da vida.

48. "As primeiras medidas mais drásticas, de caráter nacionalista, na primeirarepública, foram as de 1917, quando para evitar a formação de quistos raciais, ogoverno federal fechou escolas no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina,"Foram fechadas quase 800 dessas escolas. cf. Villalobos, João EduardoRodrigues. Diretrizes e Bases da Educação: ensino e liberdade. São Paulo: EdUniversidade de São Paulo. 1969: 1749. Cf. texto da LDB em Saviani, Dermeval. A Nova Lei da Educação: trajetó-ria, limites e perspectivas. Campinas, SP: Autores Associados, 1997: 163-8.

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r

• SeriarHá um entrelaçamento significativo entre as garantias fazen-

do com que seja dificil pensar uma sem a outra, ou seja, essasmedidas gerais têm como fim implantar uma única forma de açãoeducacional baseada na escolarização controlada pelo Estado. Es-pecificamente a seriação garante que o sistema de ensino oficialvai ser utilizado prioritariamente pelos cidadãos. A seriação estábaseada na não validade da instrução obtida fora do sistema(autodidatismo e escolas não reconhecidas pelo Poder Público) ena necessidade de submeter o indivíduo às estratégias e mecanis- .mos de produção de cidaniapor meio das instituições do Estado .

• ÂvaliarA avaliação está baseada na obrigatoriedade legal de medir

todo o conhecimento transferido ao aluno. É a atribuição, peloprofessor, de um número que indica se o sujeito é apto ou não,primeiramente para a vida escolar e depois para assumir papéis nomundo do trabalho assalariado.

É a avaliação que faz o corte mais profundo entre alfabetiza-dos e não alfabetizados, entre normais e não normais, entre ajusta-dos e desajustados, entre competentes e incompetentes. Dependedo professor estabelecer os critérios e a forma de avaliação, desdeque ao fim de cada bimestre seja enviado à secretaria da escola umnúmero que indica o quanto o aluno aprendeu do conteúdo minis-trado. Não seria necessário acrescentar que a obtenção desse nú-mero pressupõe documentos - provas - de que o aluno tem o graude conhecimento que a nota indica .

• CertificarO diploma oficial confere o título que transforma o estudante

em profissional habilitado, ou seja, alguém protegido pelas asso-ciações de classe, que está protegido por lei da concorrência des-leal dos não habilitados, dos charlatães. A acusação de char-latanismo como forma de exercício de poder que marginaliza for-mas de trabalho e competências que não tenham sido adquiridaspela via do sistema autorizado de ensino.

A qualificação baseada em diplomas tem como fundo a for-mação de uma cultura cartorial que necessita da centralidade do

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documento oficial em detrimento, muitas vezes, da capacidade queo "profissional" tenha de realizar o que o seu título anuncia; talcentralidade impulsiona todo um mercado de universidades e cur-sos que têm como finalidade, muitas vezes explícita, concedercertifícações de competência profissional.

* * *São essas garantias que qualquer trabalho em educação esco-

lar deve respeitar. E dentro dessas regulações que se movem aspossibilidades da escolarização. As reformas educacionais e pro-postas curriculares têm estado permanentemente avaliando, anali-sando, produzindo diagnósticos e apontando soluções do tipo: for-mação continuada de professores, interdisciplinaridade, novas ten-dências pedagógicas, novas perspectivas didáticas.

Diagnósticos e soluções que são apenas sons que ecoam gravesnos corredores das escolas, mas que não movem, não transformam,sequer arranham as estruturas sólidas e ancestrais das suas garantias.

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RAÍZES DA ORGANIZAÇÃO ESCOLAR(HETEROGESTIONÁRIA)

Clóvis Nicanor Kassick

A relação escola x fábrica:mudança de paradigma organizacional

Ao olharmos para a instituição Escola na busca de perceber asua organização, não podemos nos furtar a uma série dequestionamentos com vistas a nos esclarecer a forma pela qual elaestá organizada. Se o objetivo principal da escola é o acesso dasnovas gerações ao conhecimento, será esta forma de organizaçãoa mais recomendável? Se é objetivo da escola a socialização doindivíduo, as ações que desenvolve são coerentes com este objeti-vo? Quer a escola formal" sujeitos críticos?. Na busca de respostas a tais questionamentos é indispensável

voltarmos nosso olhar para a época da institucionalização da edu-cação através da criação do "aparelho" Escola'. Neste olhar re-trospectivo veremos a escola como uma criação da modemidadejuntamente com outra contemporânea sua - a fábrica. Mera coin-cidência? O que uma tem a ver com a outra?

Se à escola é colocada a tarefa de adaptar os indivíduos àsnecessidades sociais para que possam nela se inserirem produti-vamente, então não há como dissociá-Ias, ao contrário, é necessá-rio analisá-Ias em paralelo, atentando para o caráter de complemen-tariedade de ambas as instituições.

Iniciaria dizendo que na perspectiva e na necessidade do ho-mem em prover a sua subsistência, uma das :finalidades da educa-ção é a de habilitar o homem para interferir no meio na buscadesta subsistência. Não desconsiderando a sua :finalidade últimaque é da humanização do homem. Nesta perspectiva, em tese, tãomais educado é o homem quanto mais capacitado se encontre parafazer de sua intervenção, uma intervenção crítica, criteriosa, cons-ciente - inteligente, em última análise.

1. Entendemos aqui a Escola como instituição escolar burguesa, criada paraatender aos interesses da classe emergente.

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Esta inserção inteligente do homem na natureza, demanda umaação, um trabalho, pois o provimento da subsistência demandauma transformação, uma ação transformadora sobre esta mesmanatureza.

Temos aqui, portanto, explicitado o que entendemos, a partirde Proudhou' por trabalho:

"É a ação inteligente do homem sobre a natureza com vistas à satis-fação de suas necessidades e à realização pessoal".

A história do desenvolvimento da sociedade tem nos mostradodiferentes sistemáticas organizativas desta ação, onde o homemexerce a sua ação transformadora de diferentes formas (ainda queem muitos casos, dificihnente possam ser chamadas de inteligen-tes, tanto no sentido da exploração do meio, quanto da exploraçãohumana).

Assim, tivemos em diferentes momentos da história a organiza-ção do processo politico-social e produtivo de diferentes modos.Na organização político-social encontramos a sociedade de sobe-rania (da Idade Média), disciplinar (do inicio da Idade Modernaaté meados do presente século) e de controle (dos dias atuais). Naorganização produtiva encontramos o modo de produção asiático!feudal/mercantilista ou pré-capitalista!capitalista e socialista.

Ora, se afumamos anteriormente que uma das finalidades da edu-cação é habilitar o homem para a ação transformadora da realidadee considerando que a organização da produção é resultado da educa-ção, ou, fruto de uma determinada forma de pensar a produção, signi-fica que nestas diferentes formas de organizar a produção, tive-mos diferentes formas pelas quais se procurou educar o homem.

Um breve histórico: da fábrica à escola

Estas diferentes formas de educar consolidaram, ao longo dahistória, a instituição Escola.

2. Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Sistema de Ias ContradiccionesEconomicas, o Filosofia de Ia Miseria VII, Ediciones Júcar, Madrid, 1975.

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Na Idade Média, a educação existente, restringia-se quase que ex-clusivamente às Escolas Funcionais, desenvolvidas nos conventos emosteiros, destinadas a uma ínfimaparcela da população, com o obje-tivo de tradução de textos bíblicospara referendar os dogmas da Igreja.

A Idade Moderna, desde o período de transição (da Idade Mé-dia para a Moderna), vai encontrar a sociedade organizando ou-tros tipos de escolas. Além das Escolas Funcionais, vai encontraras Escolas Pias (Esculápios), escolas primárias católicas de ensi-no gratuito destinadas ao atendimento da infância abandonada'.Vai encontrar igualmente, as Escolas Municipais ou do Burgo oudo Município - que ainda na Idade Média começam a ser organi-zadas e articuladas pelos burgueses para atender às necessidadesimpostas pelas novas relações de exercício do poder político-soci-al que a nova organização (composição) social engendrava". A partirda Idade Moderna essas escolas (Municipais) passam a desempe-nhar rim papel de suma importância: a de se opor à Escola do Es-tado Eclesiástico divulgando o ideário da burguesia emergente.Encontramos ainda as Escolas Gremiais - escolas profissionaisque tinham por objetivo a profissão específica da agremiação, es-cola de artesãos.

A época de transição da Idade Média para a Idade Moderna émarcada por uma série de acontecimentos. Na área política - atomada de Constantinopla (1453), a queda do feudalismo e a as-censão da monarquia absoluta. Na área econômica: conquista domar (grandes navegações); troca da base da riqueza da sociedade,o bem imóvel (a terra) é substituído pelo bem móvel (as coisas).Na área das ciências - descobrimento da bússola, da pólvora, daimprensa. Na área do poder instituído (Igreja e Estado) a ReformaProtestante (1517) e a Contra- Reforma (Companhia de Jesus -1534/ Inquisição - 1542/ Concilio de Trento - 1545). Na área daeducação - o desenvolvimento simultâneo e concomitante destesfatores, que alteram o caráter político-social na organização dasociedade, provoca um movimento no sentido do Realismo Peda-

3. É esta mesma infância que educada, irá constituir o baixo clero da Igreja.4. Deve-se ter presente aqui, a nova composição de forças que se desenhava nocenário social, onde a burguesia emergente media forças com o Estado Ecle-siástico e a Monarquia.

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gógico, que não é mais que a conseqüência da preocupação dasociedade emergente (burguesa) com as coisas (res). A classe emer-gente entende que a educação das novas gerações deveria ater-semais à realidade das-caisas, à cotidianeidade da sociedade e nãopreocupar-se unicamente com a transcendentalidade do indivíduo.

É a inter-relação das ações nestas diferentes áreas que fará sur-gir a Idade Moderna. As descobertas na área das ciências permi-tem ao homem aventurar-se na conquista de outras regiões embusca de objetos (especiarias) passíveis de serem comercializados.Este processo (mercantilista) paulatinamente vai enriquecendo umanova classe - a burguesa, que concomitantemente vai desejando econseguindo maior poder social. Em decorrência, pela oposiçãode forças, a terra (bem imóvel - fundamento da sociedade medie-val) vai cedendo lugar às coisas (bem móvel - fundamento da so-ciedade moderna), passando este a constituir a base da riqueza dasociedade. Também o poder político, antes centrado nos possui-dores de terra (senhores feudais e Igreja), cede lugar à Monarquia.Neste conturbado processo de transição da Idade Média para aIdade Moderna, temos em verdade a emergência de um novo Esta-do, o terceiro Estado (Estado Burguês y, que ocorre concomitanteao arrefecimento do poder do Estado Eclesiástico e Monárquico.Isto porque, a Igreja e a Monarquia, grandes proprietárias de ter-ras, perdem parte de seu poder econômico, ocasionado pela trocada base da riqueza da sociedade, perdendo também, para o Estadoemergente, parte do poder político que detinham.

De tal forma que a Idade Moderna vai encontrar a sociedadecom um novo paradigma organizacional, fruto das novas compo-sições de forças e que estruturam o modo de produção mercantilistaou pré-capitalista, com uma preocupação muito maior para comas coisas materiais, do que com o transcendental, buscando mini-mizar os efeitos de poder da Igreja e da Monarquia na forma deorganizar e prover a subsistência material da sociedade. É o mo-

5_Estado Burguês ou terceiro Estado porque é o terceiro a surgir, numa socie-dade até então dominada pelas alianças entre o Estado Eclesiástico e o Estadorepresentado pela Aristocracia. O terceiro Estado emerge de parte da popula-ção (a que começava a acumular riquezas fruto do mercantilismo proporciona-do pela comercialização das coisas -- res) em oposição a estes dois.

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mento de surgimento de duas instituições básicas necessárias parao novo processo socioprodutivo que busca se instalar - a Escola ea Fábrica.

É o momento em que a Escola Municipal, a escola burguesa,se consolida enquanto instituição a serviço dos valores da classeemergente, da classe em formação - classe burguesa, ao mesmotempo que produz esta nova classe, esta nova sociedade.

A fábrica, segundo Decca (1993), enquanto local de concen-tração da produção, surge no início do século XVI enquanto estra-tégia específica dos mercantilistas (pré-capitalistas) na expropria-ção do saber dos mestres artesãos (profissionais) para garantir aordem, a disciplina e o controle sobre o processo de produção e,portanto, sobre o produzido, iniciando e garantindo a submissãodo operário ao patrão.

Esta nova organização da produção realiza-se tendo em vistaos objetivos mercantilistas, isto é, a acumulação do capital - olucro. Para tanto, é preciso garantir a existência da produção emum determinado tempo e em determinadas especificações, tantode qualidade no processo da produção quanto no material utiliza-do.

Portanto, para que o novo modelo socioprodutivo se consolidas-se, era necessário criar uma nova ordem organizacional (nova or-dem político-social), era necessário alterar a lógica produtiva orga-nizacional do sistema artesanal até então vigente.

Para a institucionalização da produção segundo a nova lógica,foi necessário retirar o artesão do seu espaço, do seu local de pro-dução (o ateliê, a oficina) e colocá-lo num prédio chamado fábri-ca. Estabelecia-se, assim, um novo espaço de produção.

Junto à retirada do espaço de produção se retirou também, doartesão, o tempo de produção. Não é mais o dono do seu tempo nadeterminação de quando irá produzir. O tempo de produção passaa ser determinado pela fábrica: entra e sai em horários determina-dos por outros. É importante lembrar que é com o advento da fá-brica (no século XVI) que é introduzido na sociedade o controledo tempo através do relógio. Segundo Franco Júnior (1986:22):

"A sociedade medieval não dava milita importância à medição dotempo: o dia estava dividido em 12 horas e a noite também, independen-

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temente da época do ano. As formas de medi-Ias eram precárias ( ...) poisnão era necessário submeter as horas a um sistema rígido, guiavam-sepelo ritmo mais visível da natureza: o sol, a lua, as estações. Apenas oclero, por necessidades litúrgicas, estabeleceu um tempo maior sobre ashoras, contando-as grosseiramente de 3 em 3 a partir da meia-noite."

o relógio mecânico aparece no século XIV, mas é no séculoXVI que passa a ter papel fundamental, o de regular o tempo daprodução.

Uma vez retirado do artesão seu espaço e tempo, retirou-setambém a sua autonomia em definir o que produzir, o que fazer.Quando ele vai para a fábrica, num determinado tempo, já sabeque deverá fazer determinadas coisas preestabelecidas.

Da conjunção destes três fatores: delimitação do espaço, dotempo e do que produzir, resultou o trabalho fragmentado. Estetem, como conseqüência, a expropriação do saber do mestre arte-são e o controle, tanto do processo de produção quanto do produ-zido. A expropriação gerou hierarquia de conhecimentos, novasrelações saber/poder e novas relações interpessoais, ou seja, novaforma de organização do processo fabril.

A estruturação da escola burguesa

Neste contexto, esta nova sistemática de organização da pro-dução ganha respaldo pela própria forma como é organizada aEscola, passando esta a exercer importante papel na consolidaçãodesta nova organização.

Portanto, não é por acaso que a Escola, enquanto instituição,seja ,contemporânea da Fábrica.

E no período de 1530 a 1550 que a Escola é reorganizada ten-do em vista esta nova organização da produção, ou seja, a Escolabusca adequar-se a esta nova realidade social. Portanto, a novaordem social demanda a reorganização da Escola que se concreti-za com a emergência dos Colégios (concomitante com a estru-turação, no plano produtivo, da classe burguesa) baseando-se, fun-damentalmente, segundo Petitat (1995), em quatro pontos:

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10. Na reorganização do espaço em que ocorre o ensino: Con-

centra-se em um único edifício, com diversas salas, os professorese alunos. Esta alteração no processo de educação, atende às neces-sidades de alteração do espaço individual-artesanal para o espaçocoletivo-manufatureiro. As conseqüências desta alteração revelam-se principalmente nas possibilidades do controle dos estudos, nasupervisão dos estudantes, administração centralizada, racionali-zação, planejamento, enfim, todos requisitos necessários à novaforma de produzir;

20. Na sistematização do tempo de ensino: A Escola determi-na o tempo: seja de chegar ou sair, o de falar, o de calar, o delevantar, o de sentar, o de ir ao banheiro, o de comer, o de brincar,etc .. Todo o tempo é fracionado, medido, controlado e seriado pelocurrículo. A delimitação do tempo de estudo aliado ao do espaço,possibilita a graduação dos estudos em diferentes tempos (regimeserial) e a separação, parcelarização, das matérias de ensino. Narelação entre espaço-tempo e conteúdo (onde e quando fazer oquê) consolida-se a idéia de Trabalho Escolar. Entre a matéria en-sinada e o tempo de aprender surge a verificação do que é aprendi-do, isto é, surge a avaliação enquanto controle das ações e dascategorizações que permitem definir os estudantes como inteli-gentes, preguiçosos, estúpidos, etc.

A importância máxima da avaliação enquanto controle justifi-ca-se tendo em vista que as atividades que deveriam ser desenvol-vidas pelos alunos eram descontextualizadas e fora dos interessesdos estudantes, logo, era necessário criar, artificialmente, meca-nismos que mantivessem os alunos realizando aquelas atividadese não outras.

30. Na ruptura do conteúdo ensinado com a realidade: Apesarde advogar o realismo pedagógico, isto é, uma educação voltadapara a realidade da sociedade, o currículo desenvolvido estava ba-seado nas "belas letras'? o ensino era desenvolvido em latim e gre-go, os conhecimentos traba1hados eram dissociados do contexto soei-

6. "Belas Letras" (Larroyo, 1979) Período no qual (1528) o ensino estava basea-do nos textos de Virgílio, Ovídio,Cicero, Esopo, Terêncío, etc., que caracteri-zou a época do Renascimento (volta aos clássicos greco-romanos) a partir doqual surgiu, em oposição, o Iluminismo ou Racionalismo,

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al. Havia, portanto, desprezo pela língua matema. Éneste momentotambém que ocorre a troca da cultura oral pela cultura escrita. Aclasse emergente precisava identificar-se com as classes operári-as. Assim, a utilização das mãos para a escrita os identificava comas classes "maquinais". Ambas utilizavam as mãos para produzir.

4°. Na nova autoridade educacional: Esta nova autoridade eranecessária como condição para submeter as vontades dos alunos,uma vez que deveriam ser submetidos a um outro espaço, a umaoutra organização temporal e estudar outros conteúdos. Os alunosperdem o direito de organizar os estudos de forma autônoma, sen-do-lhes determinado onde, quando, o quê e com quem devem apren-der. Os professores, nesta organização, podem ser melhor supervi-sionados no que fazem, sendo igualmente submetidos ao controlee advertência caso se desvirtuem do fazer preestabelecido.

Esta organização escolar se sustenta, principalmente, atravésde recompensas, punição, competição e delação, como forma desubjugar não só as vontades mas também o modo de vida e o modusoperandi, necessário à transformação da produção individual-artesanal na produção coletiva da fábrica.

Vemos assim o quanto a Escola, enquanto instituição do ter-ceiro Estado, da burguesia, foi um auxiliar importantíssimo paraproduzir esta nova sociedade, reproduzindo a sua ideologia.

Fazendo um parênteses para ressaltar a importância atribuída aopapel que cabia à Escola desenvolver no sentido da manutenção dosvalores vigentes, lembremos que a partir do movimento da Reforma,iniciada por Lutero em 1517, a Igreja Católica reagiu com a Contra-Reforma, e nesta, a sua primeira ação foi criar, em 1534, a Companhiade Jesus que foi oficializada pelo Papa em 1540, cuja atribuição, atra-vés de Loyola, foi organizar um ritual tal que garantisse a forma-ção pretendida pela Igreja. Mais tarde, em 1542, a Igreja lançoumão da Inquisição enquanto instituição eminentemente de puni-ção e controle. E somente em 1545, quando o terreno já havia sidopreparado, primeiro pela educação e depois pela Inquisição, que aIgreja Católica reafirma seus dogmas através do Concílio de Trento.

Contudo, a preocupação educativa voltada para a realidade dascoisas retoma em 1657 (portanto 123 anos após a fundação da

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L

Companhia de Jesus) através da obra de Ratke e Comênio quecontesta a rigidez da educação jesuítica, fundando a Escola Tradi-cional.

Fazendo outro corte na história da educação, vamos encontrara partir da segunda metade do século XIX uma outra insatisfaçãogeneralizada, em nível mundial, com a educação vigente.

Este movimento de insatisfação tem em Johu Dewey nos EUAo seu representante mais concreto através do pragmatismo da edu-cação e que a partir de 1900 irá encontrar seguidores emMontessori,Decroly, Claparéde, Ferriêre e Freinet. A partir de 1868, atravésde pedagogos libertários como Paul Robin", Franscisco Ferrer yGuardia e Sebastian Faure, vamos encontrar esta insatisfação con-cretizada através de uma pedagogia revolucionária que buscavanão a mera adequação da Escola aos novos tempos, mas uma ou-tra organização social. No final do século XIX e início do XX, hátodo um movimento por uma Nova Escola, que venha a contestar/substituir a concepção de educação até então veiculada pela Esco-la Tradicional.

Especificamente no Brasil, o movimento mais radical, de cu-nho libertário, por uma nova escola, tem início no final do séculoXIX (1895 - criação da Escola União Operária de Rio Grande, nacidade de Rio Grande IRS) perdurando até a década de 20, atravésda criação das Escolas Modemas e das Escolas Racionalistas, pe-los Centros de Cultura Social e pela Universidade Popular, veicu-lados pela pedagogia libertária em estreita vinculação com o mo-vimento sindicalista da época.

Além destas rupturas no pensamento pedagógico, observamostambém que frequentemente novas teorias de educação são intro-duzidas na prática pedagógica, buscando "adequar" a educação,através dos processos de ensino-aprendizagem, a novos momen-tos sociais, a novas "exigências" da sociedade. Esta instabilidade

7. Já em 1867, Paul Robim participando da 1"Internacional no Congresso deLausane, integra o Conselho Federal Belga da Internacional ficando encarregadode preparar uma moção sobre a educação para os operários (educação integral).Seu trabalho foi apreciado e aprovado por unanimidade no Congreso seguinte, emBruxelas, em 1868. (Robin, Paul. Manifiesto a los Partidarios de Ia Educacion In-tegral: um antecedente le Ia Escuela Moderna. Barcelona, Calamvs Scriptorivs,1981).

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do pensamento pedagógico, cada vez mais constante, nos leva aopróprio questionamento das teorias. Por que será que elas não dãomais conta da educação? Será unicamente pela compreensão (psi-cologia da aprendizagem) de que o sujeito apreende a realidade deuma outra forma ou será por que o processo produtivo (a fábrica)precisa que a escola (en)forme o sujeito segundo outras caracterís-ticas?

A escola e a reprodução social

A contextualização da Escola e de suas relações com as de-mais instituições da sociedade, principalmente com a organizaçãodo processo produtivo e de seu papel neste contexto poderia noslevar a afirmar que:

"A escola se insere numa estrutura social de tal forma que não fazmais que reproduzir esta mesma sociedade." (Kassick, 1996)

Ainda que esta afirmação pareça trágica, iremos analisá-Ia paraverificar as possibidades de relativizá-Ia.

Diante do que foi anteriormente exposto, vamos identificar nasociedade o discurso liberal que afirma a igualdade - liberdade -fraternidade, na qual a educação assumida o seguinte enfoque:

A sociedade projeta um ideal de homem e para concretizá-lobusca respaldo numa sociologia, psicologia e filosofia da educa-ção cuja expressão teórica fimdamenta uma pedagogia. (Diferen-tes sociedades terão diferentes ideais de homem, logo diferentespedagogias. Ex.: pedagogia capitalista e socialista.) Esta pedago-gia toma-se ação, portanto prática-concreta, no espaço escola atra-vés da atuação de seus atores num processo de ensino-aprendiza-gem. Uma vez que a ação dos atores envolvidos ocorra conformeo determinado, teremos a produção do homem desejado ou, o quedá no mesmo, a reprodução do ideal de homem projetado pelasociedade. Isto ocorrendo, a sociedade garante a sua perpetuação.

Observa-se aqui, a intencionalidade da educação na produção/reprodução da sociedade, referendando aquilo que Paulo Freire

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(1988) já havia afirmado de que "a educação é um ato eminente-mente político" e como tal, pré-determinado, tendo em vista finsespecíficos.

Contudo, o discurso liberal busca esconder o que sua práticadenuncia: a formação de um indivíduo que pense e outro que exe-cute, evidenciando a contradição socia1. A prática pedagógica li-beral instala portanto, também na escola, a dicotomia presente noprocesso produtivo entre mando/obediência, entre trabalho inte-lectual e trabalho manual, entre teoria e prática ou, em outra pala-vras, entre classe possuidora e classe despossuída.

Este embate entre classes na sociedade, evidencia a contradi-ção social que na Escola revela-se sobretudo através dos mecanis-mos de resistência que se desenvolvem contra o processo de "tor-nar natural" as diferenças. Uma das resistências, talvez mais co-mum, seja a resistência à implantação do currículo planejado edesejado pelas instâncias administrativas. Na prática, observa-sea emergência de um currículo que se opõe ao modelo hegemônico.

Vemos portanto, que ainda que a Escola procure cumprir seupapel de reprodutora das relações sociais, pode também, através.da resistência ao projeto social estabelecido, produzir uma outrasociedade através da produção de outro homem.

A escola e as alterações do processo produtivo

Se, conforme afirmamos, Escola e Fábrica são contemporâne-as, que a Escola serviu e serve de instrumento auxiliar para o esta-belecimento da nova ordem político-social e socioprodutiva ins-taurado pelo advento da Fábrica, bem como para as alterações sub-seqüentes ocorridas neste processo ao longo do tempo, então énecessário analisar as alterações do processo produtivo e comoeste tem repercutido na Escola.

Para tal análise, iniciamos afirmando que:

"as mudanças educacionais não são mais que o reflexo das alterações naorganização do processo produtivo" (Kassick, 1996).

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Esta afirmação nos remete à análise entre as alterações na orga-nização do processo produtivo e as correspondentes alterações nastendências educacionais ou no ideal do homem projetado.

Ainda que a Fábrica seja uma criação do século XVI verifica-se que a sistemática de produção, principalmente no que diz res-peito ao aperfeiçoamento dos instrumentos de produção só ocor-rerá, significativamente, no século XIX com o advento da primei-ra Revolução Industrial. Isto porque, uma vez completamente as-similada e internalizada a nova "forma" de produzir, isto é, a novaorganização da produção, inaugurada com o surgimento da fábri-ca, pode-se pensar na otimização instrumental da produção, o queefetivamente OCOlTeatravés da primeira, segunda e, mais recente-mente, da terceira revolução industrial".

Além da otimização instrumental da produção, era necessáriotambém pensá-Ia organizacionalmente, o que OCOlTede maneiramais significativa no início deste século com Taylor e Fayol, queinauguram a organização da produção segundo parâmetros "cien-tíficos".

Assim, ao olharmos para a organização do processo produtivovamos verificar que no início do século, Taylor e Fayol vão orga-nizar a produção em termos de tempos e espaços, a partir da racio-nalização do trabalho e especialização das funções enquanto prin-cípio administrativo. Trata-se de colocar o homem certo no lugarcerto. O homem - "homo economicus ", é tomado em sua expres-são econômica, do quanto é capaz de produzir.

A Escola, nesta perspectiva, tem como função básica discipli-nar a mão-de-obra para o trabalho fabril (o que já vinha fazendo)dividido em tempo e espaço. O modelo fabril se evidencia de di-versas maneiras, como as filas para entrar e sair da sala, a disposi-ção dos alunos em classe, a divisão do tempo escolar, das tarefas,da relação entre tempo/ local/atividade, dos diversos tipos de con-trole: espelho de classe, chamada, avaliação, etc., o esquadrinha-mento do indivíduo do qual nos fala Foucault (1987).

8. Ao nos referirmos àRevolução Industrial, estamos utilizando como parâmetro:Para a primeira revolução industrial o desenvolvimento da máquina-vapor; paraa segunda revol ução industrial, o desenvolvimento da máquina (motor) a explo-são e para a terceira revolução industrial o desenvolvimento da microeletrônica.

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A partir da década de 30 a organização da produção sofre altera-ções pela incorporação, principalmente, da contribuição da psico-logia. Em conseqüência, passa a reconhecer que o indivíduo tor-na-se mais produtivo na medida em que se sinta participante doprocesso. Esta Escola de Administração da Produção (Escola dasRelações Humanas), percebe no trabalho a existência de gruposinfor-mais que influem no aumento da produção destes. Em síntese, o ho-mem - homo social, é tomado também em sua expressão social, cujopressuposto é de que a satisfação no trabalho gera maior eficiência.

O papel da Escola neste contexto, é adequar, integrar a criança(futuro operário) às regras. O pressuposto das ações escolares ba-seia-se na participação,

E um momento em que na Escola há grande ênfase na psicolo-gia e nos métodos de educação.

Por fim, vamos encontrar a partir da década de 70 no Japão, oprocesso produtivo se reestruturando naquilo que se tem chamadode Produção da Qualidade Total.

O processo produtivo, concebido historicamente e esque-maticamente em quatro etapas (planejamento, gerenciamento, exe-cução e distribuição), na busca de sua constante otimização paramaior acumulação, verifica que as etapas de gerenciamento e exe-cução, se mantidas estanques, dificultam a transformação e apri-moramento da produção pela participação dos operários que, sen-do responsáveis pela execução e seu controle, têm melhores condi-ções para, a partir da prática, inovar o processo de produção e,conseqüentemente, otimizá-la. O operário, sendo também o ge-rente de sua produção, exerce o controle sobre a qualidade do pro-duzido, baixando os percentuais de defeitos de produção e evitan-do, portanto, o retrabalho.

Assim o operário-executor é chamado a ser operário-gerente-executor, isto é, passa a ser o seu próprio gerente, fiscalizando a suaprópria produção e a dos demais, sendo, simultaneamente, res-ponsável pela qualidade do produzido.

Esta característica, além de economizar recursos humanos,envolve o operário-gerente-executor na responsabilidade diretacom a qualidade/quantidade produzida, dos quais a terceirizaçãode partes da produção é um exemplo. Este exemplo, o da tercei-rização de serviços, nos mostra que na prática, a fábrica alarga

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seus limites, seus muros. O espaço privado toma-se espaço públi-co. O tempo privado toma-se tempo público. O operário que des-de o "conforto de seu lar"pode dar seqüência à produção, está naverdade transformando o seu espaço privado em espaço público,transformando a sua casa num anexo da fábrica, transformando asua casa na própria fábrica, O mesmo acontece com relação aotempo de produção que passa a tomar todo o seu tempo. Se nafábrica (espaço público) havia uma determinação do tempo de pro-dução (tempo público representado pelo horário de trabalho), so-brava, ainda que pouco, um tempo privado ao operário que podiausufruí-Io, num espaço privado, com os amigos, familiares; lazernos :finaisde semana, etc .. Mas com a nova sistemática produtiva,produzindo em sua própria casa, todo o tempo é tempo de traba-lho, é tempo de produção, logo, todo o tempo é tempo público queenvolveu e eliminou o tempo privado.

O operário especializado-manufatureiro, volta para casa. O locale tempo da produção volta a ser o local e tempo da produção doartesão. Agora, porém, já intemalizada a lógica e a nova sistemá-tica da organização político-social da produção capitalista.

Nesta nova organização da produção, o capital entrega o "mio-lo" do processo produtivo com vistas à sua otimização, conser-vando para si as "pontas" do processo, cabendo-lhe decidir o queproduzir e para quem produzir. Conseqüentemente, detém o con-trole básico, ou seja, o resultado - o lucro.

Para este novo operário, gerente-executor, algumas caracterís-ticas são imprescindíveis, tais como: criatividade - para inovarno processo; criticidade +para reconhecer circunstâncias que nãoestão firncionando a contento; solidariedade e cooperação - paraatuar com os outros em toda a extensão da produção e buscar res-postas em conjunto.

Tais características, evidentemente, passam a ser a nova de-manda para a escola - formar sujeitos críticos, criativos, responsá-veis, solidários, etc. Ou seja, nada que uma educação "progressis-ta", voltada para o estabelecimento de uma sociedade mais justa,não queira,

Observa-se, neste aspecto, uma tomada, pelo capital, das cate-gorias propostas pela educação progressista e a sua reconceitua-Iização para adequação ao modelo socioprodutivo explorador.

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Considerando que o objetivo principal da institucionalizaçãoda educação na Escola era, entre outros, a consolidação desta novaforma de pensar a organização político-social e produtiva da socie-dade, e tendo esta ''lógica produtiva" como reitora da organizaçãosocial, podemos entender por que, em diferentes momentos do pro-cesso produtivo, este demanda à escola diferentes formações (edu-cação) do sujeito (futuro operário) adequando-o constantemente aestas novas exigências.

Uma vez intemalizada a nova organização, cabe otimizá-la nosentido de maximização do lucro.' este o sentido do Capitalismo.Para atender esta lógica a escola viveu e vive constantes altera-ções das quais as teorias de educação (sempre mutáveis ) são umexemplo.

Se, no final do século XIX e início do XX, à Escola era exigida,fundamentalmente a disciplina, isto é, que instruísse e adequasse(acomodasse) o indivíduo à aceitação plena e sem questionamentodas regras, porque indispensáveis ao processo produtivo, sobretudoa imobilidade fisica necessária à esteira de produção, o último quar-to deste século tem exigido, ao contrário, sujeitos não tão passivos.

Este afã produtivo, buscando o máximo de produtividade, tevenecessidade de incursionar por caminhos não tão tayloristas, exi-gindo do trabalhador participação, solidariedade, criatividade einventividade enquanto expressão máxima de seu rendimento ede sua qualidade. Assim, o processo produtivo mo demo , engen-drado pelo capital, necessita de um trabalhadoT capaz de ajustar-se e sobretudo discernir tanto sobre a sua própria ação, quaruesobre o próprio processo produtivo. Em decorrência, o ''novo tra-balhador" necessário a esse processo produtivo, não deve restrin-gir-se e constituir-se num mero executor de tarefas, faz-se neces-sário um trabalhador que "pense" o processo produtivo paragerenciá-lo, antes de executá-lo, tendo em vista a sua otimizaçãoem termos de produtividade.

O processo produtivo (concebido em etapas de planejamen-to-gerenciamento-execuçao-distribuiçao, conforme já assinala-do) necessita que o operário deixede assumir apenas a:etapa deexecução para assumir e responsabilizar-se também pelo geren-ciamento. Se de um lado significa um avanço qualitativo da par-ticipação do operário no processo produtivo, por outro nãogaran-

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te a participação total na distribuição da renda. Ao mesmo tem-po que recoloca a unidade do trabalho e minimiza a sua aliena-ção, na verdade esconde o interesse do capital em, entregando o"miolo" deste processo, ter aumentada sua produtividade, conti-nuando, por deter as pontas do processo, a deter o controle sobreo que produzir e como distribuir o produzido e :finalmente aapropriar-se do "excedente produtivo", segundo Proudhon(1975).

Ora, na nova função - de gerente - é necessário um operárioque para 'pensar" o processo produtivo e para que deste resulte omáximo de resultados com o mínimo de custo, seja: crítico - paradetectar possíveis falhas na produção; criativo - para inovar o pró-prio processo; solidário e cooperativo - porque a sua etapa é partede um processo, o que pressupõe uma etapa anterior e outra posteri-or, o que iniplica necessariamente trabalho conjunto, que tenhacapacidade de tomar decisões em conjunto - o que implica con-senso e não decisões individuais. Se as etapas parciais do processoprodutivo forem realizadas com qualidade, teremos a "qualidadetotal" do produto. resultante deste processo. Isto significa perdasmínimas tanto no decorrer do próprio processo, quanto do produto:final, por conseqüência, a otimização da produção ou em outraspalavras, uma produtividade capaz de competir no mercado".

Ora, se este é o perfil do novo trabalhador que esta nova siste-mática produtiva requer, a quem cabe formá-lo?

A instituição escolar e o fazer escolarnum novo processo produtivo

A organização escolar, definida nos termos de qualquer orga-nização formal/estatal, embora se diferencie quanto aos fins a atin-gir, se iguala às demais ao se submeter a determinados meios, auma certa estrutura e funcionamento. A lógica organizacionalque define tal forma, tem sua gênese nas estruturas administrati-vas inerentes às instituiçõesmodernas. Estas se caracterizam por

9. Temos aqui uma das razões para que os postos de trabalho, nos dias atuais,exijam do operário um maior nível de escolarização.

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um processo organizacional fundado na hierarquia, na divisão dotrabalho, no saber especializado e em regras de conduta que ex-propriam do trabalhador o poder de gestão de seu próprio trabalho.

As normas e regulamentos que regem as relações sociais nointerior da prática pedagógica, isto é, que determinam sob quecondições o trabalho coletivo se construirá, justificam-se não ape-nas por uma relação autoritária de acatamento às ordens, mas prin-cipalmente, pelo princípio da racionalidade como única possibili-dade de pôr em funcionamento a organização. Organização que,segundo Lapassade (1989),

" ...tanto designa um ato organizador que é exercido nas Instituições"[quanto] " se refere a realidades sociais: uma fábrica, um banco ousindicato " .

Estas organizações, para o autor, representam

" ...uma coletividade instituída com vistas a objetivos definidos tais comoa produção, a distribuição de bens, a formação de homens." (Lapassade,1989:101).

Portanto, para Lapassade, as empresas são diferentes somentequanto aos objetivos. Considera que existe uma igualdade no quese refere à dinâmica que as move a qual é apurada pela sociologiadas organizações.

Também para Etzioni (1984), na sociedade moderna, as orga-nizações se caracterizam por .

" ... unidades planejadas, intencionalmente estruturadas com o propósitode atingir objetivos específicos."

No modelo produtivo taylorista, a qualificação profissional jáera dada "em serviço", isto é, a própria empresa formava seus qua-dros. Contudo, para esta formação recebia indivíduos "educados"pela instituição escolar que cumpriae cumpre exemplarmente suafunção disciplinadora - a de formar "C01pOS dóceis" (Foucault, 1987), .capazes de se ajustar, adequar e suportar a "esteira" da linha deprodução fabril.

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o novo modelo produtivo (toyotismo), que busca "a quali-dade total", requer outros atributos. O fundamental ao "homo-faber" não é mais a função estanque do "apertador de parafu-sos" mas a do operário com capacidades que lhe permitam "tran-sitar" por uma parcela maior do processo. A "qualificação" con-tinua em serviço, na fábrica, mas os atributos básicos a que cor-responde a tarefa educacional da escola são outras. A chave é aparticipação.

Decorrente desta necessidade, surge a gestão participativa naprodução.

A concepção de gestão participativa pressupõe dois mecanis-mos fundamentais: o primeiro - a participação da coletividade emalguma das etapas do processo decisório sobre o trabalho e nesteparticular podemos citar as células de produção do toyotismo, ondeos operários podem ter ingerência direta no como produzir; o se-gundo - a delegação de mando via representatividade, dos conse-lhos de fábrica por exemplo, com o fim de desestabilizar a açãoautoritária que é muito explícita quando o diligente é nomeadodiretamente por uma autoridade superior. Trata-se do interesse daorganização em administrar suas decisões de forma a obter sem-pre a conformidade e o consenso, antecipando-se ao conflito, semcontudo abrir mão de determinar o quê a coletividade, via repre-sentação, deverá administrar. Trata-se em última análise de permi-tir que a coletividade estabeleça o como irá administrar o que foipreviamente concebido.

Neste "processo democrático" se estabelecem relações soci-ais de trabalho em que a subordinação aparentemente é menosrígida, em que o controle coletivo toma mais tênue o poderdiretivo do representante eleito e em que há possibilidade de maiorparticipação de todos na definição do como conduzir ou admi-nistrar as ações. Verifica-se, assim, que a participação na organi-zação do trabalho, transforma-se num mecanismo de dissimula-ção da estrutura autoritária da organização e busca, na coletivi-dade, a legitimação da ordem preestabelecida. Este pressupostopalie do princípio de que o trabalhador aceita melhor a norma, sepensar que sobre ela exerce alguma influência, o que leva a orga-nização a incitar a participação para que a colaboração de todosseja obtida. Este movimento originou a ''Escola de Relações Hu-manas", em substituição à Escola Clássica ou Científica, que ao

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considerar os aspectos psicológicos que envolvem as relações detrabalho trouxe para dentro da organização a necessidade da com-preensão da natureza social do homem.

A participação, portanto, se torna a fórmula ideal das organi-zações, cujas relações de trabalho precisam se "democratizar". Es-tratégica e ideologicamente funciona no sentido de dissimular adireção autocrática e introduz uma nova concepção de organiza-ção.

"A burocracia gestionária perde sua rigidez, é capaz de integrar osque se desviam, de praticar a dinâmica de grupo e a democratizaçãointerna ( ...) de buscar a participação, mas isso não é a democracia direta,a autogestão verdadeiramente coletiva." (Lapassade, 1989:55).

Assim, a concepção de relações humanas, cujos fundamentosestão a serviço da eficiência da organização do novo modelo pro-dutivo, oculta a dimensão política dos problemas organizacionais.O trabalhador é engajado em cursos de formação nos quais os te-mas se relacionam com o aperfeiçoamento ao nível das relaçõespessoais, ao nível de sua relação com o trabalho, visando maximizara produção.

Para este novo trabalhador - participativo - deve a escola de-senvolver solidariedade/ cooperação/ criticidade/ criatividade/inventividade/ capacidade de tomar decisões/ participação.

Este é o novo papel ''formador'' da Escola, que exige uma novaprática pedagógica, onde a teoria das relações humanas determinauma outra forma de relacionamento entre a hierarquia e a base. Reu-niões coletivas, para o repasse de informações e de ordens emana-das do órgão central, passam a acontecer com mais freqüência. Arigidez da relação vertical, ameniza-se em função das técnicas degrupo que permitem a socialização entre professores, especialistas edireção, intercalando o conteúdo autoritário e facilitando a sua acei-tação.

Mas tal papel, não cabe exclusivamente à Escola. Tal qual emsua origem, Escola e Fábrica andam juntas. A busca da qualidadetotal, da maximização da produtividade, exige que não só a Escola(em)forme o novo "Cidadão", mas também que a empresa sereestruture em função deste objetivo. Os departamentos de Recur-sos Humanos das empresas foram chamados para esta nova

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"preparação" do trabalhador, e o próprio organograma da empre-sa, que expressa as suas finalidades e funcionalidade, assume onovo discurso. O lucro deixa de ser objetivo para tornar-seconseqüência.

Esta metamorfose empresarial alicerçou-se em estudos e pes-quisas de autores como Shewart, Demin, Juran.(1994) e Maz1ow,entre outros, que estabelecem, a grosso modo, quatro pontos fun-damentais sob os quais se estrutura a política responsável pelaqualidade total:

. 1.0 O Cliente:A empresa existe para produzir algo necessário para a satisfa-

ção de alguém E neste sentido, é objetivo primeiro da empresasatisfazer a necessidade de quem dela depende.

2° O Funcionário:A satisfação de alguém, por algo que é produzido, só é possí-

vel porque alguém o produz e o produz satisfeito com o que faz.Portanto, satisfazer as pessoas de dentro da empresa que são as

responsáveis por esta produção é condição sine qua non para queo produzido tenha qualidade e portanto satisfaça as necessidadesdo cliente.

3° A Comunidade:A empresa é a comunidade.A produção particular da empresa necessita, além da parce-

ria de quem vende o seu produto, do ambiente social. Ela estálocalmente e socialmente inserida num município e com ele deveestabelecer relações de parceria, segundo um comportamentoético 10.

10. Comportamento ético que implica cumprir não apenas com suas obrigaçõesfiscais e tarifárias mas sociais. Este comportamento ético faz com que empresasassumam a responsabilidade financeira por escolas públicas, já que o Estado nãoo faz, para que toda a comunidade dela se beneficie, ao invés de procurar resolvero problema educacional apenas de seus operários ou dos filhos destes, instalandouma escola particular dentro da empresa. Até porque, a instituição Escola possuium conhecimento acumulado que uma escola, em particular, não tem condiçõesde desenvolver. Outra forma social de atuação é a de exigir que suas subsidiárias,quando houver, venham a se instalar no município para gerar mais empregos.

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A empresa, portanto, ao nível de município tem responsabili-dades para com a comunidade onde está localizada.

4° O Acionista:O lucro é decorrente da satisfação das necessidades do consu-

midor (cliente), do funcionário e da sociedade. Logo, se estes trêssegmentos estão satisfeitos, o quarto segmento, o dos acionistas,também estará, pois obteve lucro.

Inverte-se, portanto, os objetivos da empresa. O objetivo não émais o lucro mas sim a prestação de serviços.

Portanto, a qualidade da produção (qualidade total) dependeda satisfação das pessoas que compram, das que produzem e dasociedade envolvida.

Temos assim o que poderíamos chamar de "ideologia dasatisfação" embasando o novo processo produtivo do qual, porconseqüência "natural", adviria o lucro.

Dentro desta ideologia da satisfação, cabe aos departamentosde Recursos Humanos "adequar" o quadro de funcionários dentrodesta nova visão 11, tendo emvista o não comprometimento do proces-so e de sua qualidade. Além disso, há muito que as empresas jásabem que uma alta rotatividade em seu quadro de funcionários émais perniciosa, onerosa e desgastante que os custos de manuten-ção de cursos e serviços com vistas à satisfação dos funcionários.

Decorrente desta nova necessidade imposta pelo processoprodutivo, na busca de uma maior acumulação expressa pelamaximização da produtividade, é necessário que se reflita sobreo discurso, que nesta mesma época chega à Escola, o da gestão

11.O que efetivamente tem realizado, como demostra as diversas formas adotadaspor diferentes fábricas, para o funcionário expressar o seu descontentamentopessoal com a empresa ou até mesmo com relação ao seu "estado de espírito",onde, por exemplo, ao chegar na empresa coloca no local, antes reservado aocartão de ponto, um cartão colorido, com cores previamente determinadas, queirá acusar o seu estado de ânimo. Verde - o.k. [...] vermelho - péssimo, etc. Osoperários que acusaram, seu estado de espírito através do cartão vermelho, numtempo máximo de até uma hora, após o início do expediente, já deverá, o depar-tamento de recursos humanos, ter conversado com estes(s) funcionário(s) parasaber de seu problema, confortá-lo, solucioná-lo, etc., pois a partir daí (destetempo de uma hora) já compromete não apenas a sua própria produção mas a dosegmento em que está inserido.

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particip ativa, da gestão democrática da escola e que passa a seruma meta não apenas dos professores e/ou de seus sindicatos, mastambém uma bandeira de luta do próprio Estado através do discur-so de seus gerentes (ministros, governadores, secretários, etc.).Nesta reflexão podemos perceber claramente a demanda à Escolapela (em)fonnação participacionista dos sujeitos, futuros operári-os, proposto pelo processo produtivo, uma vez que o perfil deseja-do é o do operário participativo.

Tal proposição, da gestão participativa e/ou co-gestão foi, porvezes, intencionalmente confundida com autogestão, por esta ra-zão acreditamos ser imprescindível distinguir entre estas duas for-mas de organizar as ações."

Autogestão x heterogestão:as possibilidades autogestionárias

Entendemos preliminarmente, que a autogestão não pode serreduzida a mera organização coletiva do trabalho, pois esta é ape-nas parte do processo autogestivo. A participação coletiva na or-ganização do trabalho, no processo heterogestionário, assegura aosparticipantes o gerenciamento no como fazer e não no que fazer,que é anterior ao como, e portanto, pensado e decidido nas instân-cias decisórias responsáveis pelo planejamento estratégico daempresa, a cargo do Capital.

Convém lembrar que o discurso da gestão participativa, quan-do muito, insurge-se contra a intensidade autoritária contida nasdecisões que são exteriores aos sujeitos e não contra a estruturasocial que assim os organiza e os dispõe à sua mercê.

Esse discurso Participacionista não sepropõe revolucionário, masrefonnador; porque busca apenas atenuar a pressão autoritária so-bre os indivíduos e não alçá-los à condição de sujeitos de seu pró-prio processo. Propõe a participação no esquemajá posto, ou seja,é concessão no sistema pelo próprio sistema, como recurso paraamenizar as conseqüências do autoritarismo organizacional, semalterar-lhe a causa - a organização heterogestionária da sociedade.

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A autogestão, ao contrário, significa a ruptura com a domina-ção legal, o que só ocorrerá a partir da ruptura com a sociedade es-truturalmente organizada de forma hierárquica.

Contudo, para que a organização autogestionária se efetive, éimprescindível que seus sujeitos não abram mão do poder socialque produzem e que deles emana; que não permitam a sua expro-priação, seja individualmente, seja através de grupos, com suaconseqüente transformação em poder político e como tal de domi-nação. Só assim nos parece possível evitar que experiências queiniciam segundo princípios autogestionários acabem burocratiza-dos e sob as bases da democracia estatal, como nos afirmam asexperiências da Comuna de Paris, dos Sovietes russos na revolu-ção de 1905 e nos primórdio s de 1917, da Catalunha, do movi-mento de Maio de 1968 e de todos os anônimos que buscam nodia-a-dia outra organização.

Pensamos com Castoriadis (1983) que o ato revolucionárioocorre quando nos insurgimos contra as normas que nos são im-postas de fora. A permanência ou não destes atos dependerá deuma série de fatores. Neste sentido, as experiências da Históriatem mostrado que, ao destituir o Estado e instalar "a nova ordem",não se pode permitir que o poder social, que a coletividade recon-quista, seja expropriado para a constituição de um novo Estado,tão opressor quanto o que foi destituído. Uma sistemática organi-zativa, que impeça esta expropriação, não será e não pode se ex-pressar numa proposta acabada, num modelo libertário, mesmoporque, este seria a negação do próprio pensamento libertário queé o de estar em constante construção.

Considerando estes fatores, a leitura que faço da Escola, buscapontuar algumas questões específicas no que diz respeito à suaestrutura organizacional hierárquica e à possibilidade de estru-turar-se diferentemente.

Neste aspecto, o próprio trabalho escolar estabelece o grandeconfronto entre a organização heterogestionária da escola e a pos-sibilidade de organizá-Ia autogestionariamente. E desse confrontonasce a grande dúvida, se é possível a auto gestão da escola e comorealizá-Ia no interior da sociedade heterogestionária. Ferreira, Ba-tista; Kovács &Antunes (1985:21) apontam neste sentido ao enun-ciar a tese de que

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" ...a descentralização e a humanização do micro é um contributo funda-mental para aprofundar a: democratização do macro."

Gallo (1995:67) ao analisar o pensamento educativo deBakunine a importância que este dava à educação devido ao seu caráterrevolucionário, afirma que para ele,

" ...a educação não prepara para a revolução; a educação já é um dosprocessos da própria revolução. No momento em que educamos para aliberdade e a igualdade, no seio de uma sociedade de exploração e desi-gualdade, já estamos realmente fazendo a revolução: estamos começan-do a mudar as consciências, estamos ajudando a ver o mundo de manei-ras diferentes. E ver de outro modo é o primeiro passo para a transfor-mação, pois ninguém transforma nada se não consegue ver as coisas deoutra maneira".

Mas, continua ele,

" ...como a educação não se processa apenas na instituição escolar, masna sociedade como um todo, uma escola revolucionária não lograria al-cançar plenamente seus objetivos em uma sociedade reacionária (. ..)fundar uma escola no seio de uma velha sociedade, sem a preocupaçãode organização de um trabalho revolucionário para transformar paula-tinamente as estruturas sociais, é condenar esta escola ao fracasso."(73-74).

Também os integrantes do Centro Educativo Paidéia'", deMérida-Espanha, têm bem claro esta questão quando afirmam:

"Sabemos que não podemos gerar um coletivo autogestionário den-tro de uma sociedade que não o é, porém tentamos alcançar o máximode liberdade, solidariedade e responsabilidade que os condicionamen-tos sociais nos permitem, em uma luta constante contra o que está funcio-nando ao nosso redor. Ao mesmo tempo, a ação para a sociedade e parao meio que nos rodeia é paralela, utilizando as mesmas constantes queno processo de autogestão educativa. Cultura, educação e evolução narelação com seus filhos e os demais." (L 'Asamblea, n? 10, p. 10)..

12.O Centro Educativo Paidéia é uma escola criada em 1978por um Coletivode pessoas e organizado segundo ospressupostos da pedagogia libertária e quecontinua em funcionamento até os dias de hoje.

lOR

o confronto está posto e, por conseqüência, cabe-nos refletir 'sobre o que hoje se constitui em tensão para novas formas alterna-tivas, que se dão no movimento contra a "ordem", buscando cap-tar a nova ordem anunciada.

Resta-nos, portanto, refletir sobre o que apontamos ser a gran-de dúvida: Como a organização autogestionária da escola podeviabilizar-se e constituir-se noutra forma, noutra sistemáticarelacional e organizacional, com vistas à superação da heteronomiae dependência imposta aos indivíduos pelo sistema tradicional,promovendo a autonomia dos sujeitos?

Para isto, quer nos parecer que é fundamental o estabeleci-mento de dois pontos: o primeiro é de esclarecer como e quandose está organizando a Escola autogestionariamente; e o segundo: ode buscar entender como tentativas que se pretendem autogestio-nárias, acabam se esfacelando, sendo apropriadas e transformadas emorganizações tão hierarquizadas e autoritárias como as demais.

Para o primeiro ponto, recorremos a Proudhon (1975) quandocoloca que na organização autogestionária,

". ..a sociedade deve ser considerada não como uma hierarquia de fun-ções e de faculdades, mas como um sistema de equilíbrio entre forçaslivres, onde a cada um é assegurado gozar os mesmos direitos na condi-ção de realizar os mesmos deveres, obter as mesmas vantagens em trocados mesmos serviços; sistema essencialmente igualitário que exclui todaacepção de fortunas, categorias, classes",

Para a organização autogestionária consolidar-se, uma condi-ção é essencial: que no plano individual não haja a expropriaçãodo trabalho de uns sobre os outros e no plano coletivo tampoucoocorra a expropriação política do poder social do grupo. Lembra-mos que Proudhon (1977) coloca como elementos básicos para aorganização autogestionária o trabalho - sob condição de não serexplorado; ajustiça como garantia de participação no produto desua ação enquanto associado; a liberdade enquanto respeito às di-ferenças e singularidades e o livre contrato como garantia de res-peito à liberdade e sua associação no trabalho. Assim, autogestãopressupõe autonomia e esta não se consegue se a título de auto-gestão se busca uma organização alheia aos individuos, cerceando

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....- -

por qualquer mecanismo a sua participação direta na consolidaçãoe concretização destes princípios.

Tenhamos presente que a autogestão, ao contrário da chamadaco-gestão ou participação democrática nas decisões, constitui-seem ação revolucionária pela forma de organização que desenvol-ve a partir da ação direta, uma vez que coloca em questão a estru-tura das organizações da sociedade tradicional, inaugurando no-vas relações político-sociais. Neste sentido o que à primeira vistase constituiria em forma, na verdade representa o próprio conteú-do da organização autogestionária, isto é, a contestação da estru-tura organizacional social heterogestionária.

A co-gestão e a co-participação pressupõe uma estrutura pré-determinada que organiza a atividade a ser desenvolvida e quetão-somente abre mão apenas de parte de seu poder, de seu "direi-to" de determinar o que deve ser feito, em favor da participação dealguns representantes da massa sobre a qual atua, travestindo-seassim de democracia.

A autogestão só se concretiza à medida que seus participantesdeterminam e organizam a direção de suas ações.

Após as considerações sobre a organização autogestionária, seuspropósitos e possibilidades, resta-nos considerar o segundo pon-to: como tentativas autogestionárias acabam sendo transformadasem estruturas hierarquizadas.

Consideramos que na organização autogestionária, a coletivi-dade surge não enquanto agrupamento de funções individuais,controladas hierarquicamente, cujas relações de trabalho exigema subordinação, mas como coletividade, formada por livre opçãodos participantes, que se encontram na unidade e liberdade de ação.

Da unidade e liberdade de ação decone uma "força coletiva"que não se traduz pela pura e simples soma de suas partes (dasforças individuais), mas cujo resultado lhe é superior, E este exce-dente coletivo produzido, esta força coletiva traduzida em "podersocial", não pode ser a ninguém imputado em particular e por nin-guém apropriado porque fruto do coletivo, devendo permanecercom a coletividade que o gerou.

Quando isto não acontece, o poder, de subordinado passa asubordinador, não apenas justificando mas consolidando o mode-lo hierárquico de mando e submissão. .

110

Temos, neste sentido, uma inversão onde, segundo Proudhon(In: Gurvicth: 1983:80) "... o poder, que por essência é como ocapital, o auxiliar e o subaltemo do trabalho ...", arvora-se em suacausa. Assim, continua ele:

" ...é mercê do antagonismo da sociedade que o poder tal qual ? capital, setoma em espião, no juiz e no tirano das funções produtivas. E príncipe esoberano quando sua inferioridade original lhe impõe a obediência."

....,

Através dos mecanismo de expropriação, as forças coletivassão alienadas: pelos capitalistas na exploração econômica dos ope-rários; pelo Estado na alienação e expropriação do poder socialque, transformando-o em poder político, coloca-o a serviço dasclasses dominantes para assegurar a dominação econômica. Nãoesqueçamos que a dominação antes de ser econômica, é política.(Carrapato, 1991).

Instalada a contradição pelo processo de usurpação da forçacoletiva, isto é, sua alienação através de sistemáticas de organiza-ção impostas que lhe tomam seus instrumentos de trabalho e aforça social da qual são produtores, devolve-os sob a forma dedispositivos e regulamentos hierarquizados que impedem os pro-

. cessos auto-organizativos.Assim, a organização autogestionária para consolidar-se como

possibilidade organizativa da sociedade, deve submeter o capital esubaltemizar o poder político ao poder social, como condição desobrevivência.

Quer nos parecer que o desconhecimento deste processo deexpropriação que a Sociedade-Estado realiza sobre os grupos,mesmo os auto-organizados, é o principal fator que faz com queestes grupos caiam na armadilha que acaba por transformá-los deautogestionários em estruturas verticalistas, tão hierarquizadasquanto as sustentadas pelo Estado" .

E, neste sentido, a autogestão não é senão a retomada e areapropriação da força social produzida no grupo, pelo próprio

I .110-

13. A esse respeito ver a análise que realiza Kassick (1992) ao abordar o pro-cesso pelo qual os grupos alternativos (autogestionários) acabam se burocrati-zando/estatizando, apesar de seus objetivos iniciais. .

111

grupo, utilizando para si a sua conseqüência - o poder social,redistribuindo-o e mantendo-o entre e em favor de seus membros.

Lembremos de Leval (1978), quando afirma que:

" Os povos que perdem sua liberdade durante muito tempo, acabampor não experimentar a necessidade de utilizá-Ia. Aqueles por quem sepensa em tudo e se prevê tudo, perdem o costume de pensar." (1978:61).

Acredito, portanto, que a organização autogestionária, da es-cola em particular, resgata sobretudo a liberdade do sujeito e suacapacidade de agir e pensar.

Em resumo, o que até agora discutimos parece indicar para umreferencial elucidador das duas questões que entendemos cruciais,A primeira delas é a de verificar a possibilidade da autogestão daescola numa sociedade heterogestionária; e a segunda, consideran-do a possibilidade da autogestão, os desafios que deve enfrentar esuperar para constituir-se como alternativa organizacional para aEscola e quiçá para as Instituições Sociais.

Características/fundamentos da autogestão

Freqüentemente constata-se que grupos de pessoas buscammobilizar segmentos da sociedade no sentido de criar outras formasde administração no interior de associações de bairro, escolas, clu-bes, etc., de forma a possibilitar uma gestão direta, ou seja, alicerça-das no claro intuito de se auto dirigirem, de se antogovernarem,

Não basta a tais grupos questionar apenas as formas de admi-nistração ou as particularidades organizacionais de uma dada ins-tituição, como por exemplo, a escolar. Importa sim, entender atéque ponto estas formas de organização e gestão constituem-se numresultado ficcional criado para respaldar o mito da eficácia econô-mica. Cabe questionar até que ponto essas novas organizações re-presentam um dado modelo social de hierarquização e dominaçãoou se elas poderão se constituir numa sistemática organizativa se-gundo princípios autogestionários.

Na perspectiva do Pensamento Socialista Libertário que im-pregnou os movimentos sociais em vários países, inclusive no

112

Brasil desde final do século XIX até os nossos dias, encontramosa organização de instituições (escolas, sindicatos, fábricas, clu-bes, etc) baseados em práticas coletivas e igualitárias a partir doestabelecimento de relações solidárias e cooperativas entre seusmembros, ou seja, organizações autogestionárias, constituindo gru-pos auto-administrados, onde a hierarquização e dominação de-ram lugar à coordenação coletiva e descentralizada a partir da "au-toridade funcional" (Bakunin, 1978) entre os seus membros.

A este respeito, recordemos o relato que faz Oiticica (1983: 11)

" ...em 1913, ao procurar a Federação Operária do Rio de Janeiro, no Largo doCapim, subi as escadas e fui recebido por um operário carpinteiro a quem per-guntei pelo presidente da entidade. Informado de que ali não existia presidente,só comissões administrativas que executavam as decisões das suas assembléias,vibrei com a resposta e desde então jamais abandonei os trabalhadores."

Essa forma de organização voluntária e não hierarquizada exi-ge um empenho pessoal, uma participação direta e efetiva e umaconsciência individual marcante, ao contrário das formas de orga-nização heterogestionárias que recorrem à coerção, à chantagem eà recompensa como fundamento da submissão hierárquica.

Portanto, o aprendizado da auto gestão é também pessoal, nosentido de romper com a dependência gerada pela produção demotivações externas e de substituí-Ias pelas motivações que ema-nam das necessidades do grupo em interação.

Igualmente é pessoal porque fruto de uma decisão individualde romper e insurgir-se contra as normas preestabelecidas e alhei-as à sua vontade.

Esta rebeldia à exploração e dominação tende a produzir nãoapenas resistências às normas e à estrutura, mas também à criarimaginários que evidenciam o desejo de outra sociedade com ou-tras formas de organização e relação entre os homens, isto é, umasociedade autogestionária.

Este mecanismo, inicialmente de caráter pessoal, consubstan-cia-se no coletivo, onde adquire e produz uma força social querespalda o poder social desta comunidade.

Contudo, o caminho desta alternativa à organização social nãoé tão CUltoe linear como possa parecer, até porque o fenômeno da

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~--~--- -- ---

subordinaçao-alienaçao-dependência está interiorizado no indiví-duo de tal forma que impede, muitas vezes, de pensar-se dominador/dominado.

O antagonismo competitivo tem raizes culturais profundas etraz como conseqüência, nas suas formas mais violentas, a explo-ração, a morte, a guerra e a alienação. Apesar disso, no interiormesmo desse processo destrutivo, como bem demonstrou Kro-potkin (1989) em seu livro Apoio Mútuo, surge, desde o mundo ani-mal, um dos fatores decisivos para a sobrevivência ~ a cooperação.

Do ponto de vista filosófico e político, o desafio está em saberaté que ponto as sociedades humanas são capazes de levar, a bomtermo, o seu processo de aprendizagem histórico e de recriaçãodas formas de organização social, no sentido da realização da exis-tência humana, ou se a força conservadora da inércia misturadacom as teias autoritárias do poder podem hibemar a criatividadehumana que percorre a História.

O caminho da liberdade é o caminho de superação da depen-dência da natureza e do outro, isto é, de construção da autonomia.E esse caminho que alguns grupos sociais buscaram através daHistória, e que significa o fim das amarras da exploração, da do-minação e da alienação, potenciando uma relação autêntica e pro-funda entre o indivíduo e os que o rodeiam, "a reciprocidade en-tre o,shomens", de que falava Buber (1986).

E esse o debate que continua a se impor aos movimentos soci-ais e dentre eles a Escola, caso não queira perder-se no caminhodas ''facilidades'' com que o sistema sempre acenou, tomando-osna maioria dos casos, meros usuários e aproveitadores, via coopta-ção, da exploração e dominação que antes condenavam.

As instituições burocráticas e corporativas, reprodutoras deformas heterônomas de organização, que se baseiam na existênciade um grupo de diligentes que são especialistas na representaçãodo mundo aos seus dirigidos, coincide com os interesses dosgestores da sociedade capitalista na defesa da "necessidade" darepresentação e da "inevitabilidade" da burocratização das orga-nizações.

A escola (como instituição) organizada autogestionariamenteem todas as suas dimensões- políticas, administrativas e pedagó-gicas, independente e autônoma com relação aos laços e amarras

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da estrutura do Estado, é ainda um dos principais instrumentospara a mudança social.

Recordemos que de um modo geral, estava claro para os liber-tários - defensores da escola autogestionária, que o fator educaçãonão era o único nem o principalagente desencadeador do processorevolucionário. Mas era evidente para eles, que sem a ocorrênciade mudanças profundas na mentalidade das pessoas, mudançaspromovidas em grande medida pela educação, jamais a revoluçãosocial alcançaria êxito.

Esta concepção de Escola autogestionária, não passa contudo,por meras opções de vagos princípios de caráter teórico, mas im-põe uma nova prática e outras formas de ação que apontam, desdea sua origem, para um modelo igualitário, autônomo e auto-orga-nizado, um micromodelo do que seria um projeto social global.

E necessário, portanto, refletir a contemporaneidade da auto-gestão para que possamos afirmar, a partir de sua construção teóri-ca e prática, os princípios que a sustentam, não como modo deorganização que subsiste sob a concessão estatal, mas como emer-gência de uma organização social que já expurgou das suas rela-ções a propriedade privada da organização e gestão.

O princípio que orienta tal organização, conforme afumamosanteriormente, "...não pode ser reduzido ao complemento de umasociedade economicamente hierarquízada" (Joyeux, 1992: 80) atéporque a hierarquização das sociedades burocratizadas só é possí-vel por se encontrar, tal sociedade, expropriada de seu poder social.

Lembremos novamente Carrapato (1991), quando afirma quea dominação antes de econômica, é política, pois

" ...a categoria de domínio é mais vasta do que a da exploração ( ...) emque o explorador de um é por via de regra o explorado doutro."(l991:8)

Em tal sociedade não se pode falar em igualdade e liberdade,pOIS

"(i..) nestas circunstâncias, não estamos mais a pensar a autogestão ( ...)em termos de mudanças na organização do trabalho e dos sistemas degestão, mas no sentido da transformação radical dos paradigmas so-cietários persistentes" (Perreira, 1992:1).

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Isto implica reconhecer na auto gestão não apenas uma nega-ção continuísta da sociedade que, assimilando alguns preceitosautogestionários, busca enxertá-los nos limites organizacionaisda burocracia, mas sim em conceber a autogestão como uma no-va sistemática organizacional da sociedade e não apenas comouma sistemática organizacional do trabalho.

Assim, a auto gestão que se pretende é um mecanismo que nospossibilita contrapor à heteronomia a autonomia, ao individualis-mo a solidariedade e o coletivismo, à concentração de renda a dis-tribuição eqüitativa.

No entanto, o caminho que se vislumbra para tal organizaçãodeve passar necessariamente pela ação direta, do confronto real etotal e não pelo vulgarismo do discurso que reconhece e condicionanos espaços da dominação, espaços de contradição capazes depermitir que pela participação, se estabeleça a força de oposiçãosuficiente para reverter o sistema. Até mesmo porque, os espaçoscontraditórios estão sendo ocupados por relações sociais tambémautoritárias, porque igualmente fundadas na hierarquia dos "natu-rais" dirigentes, na autoridade hierárquica que emana do sabercompetente de alguns e na representatividade que também hierar-quicamente envolve os saberes existentes na estrutura organiza-.cional. .

O espaço da contradição constiui-se, em síntese, em espaço deafirmação e de reprodução da própria hierarquia, o que torna indi-ferente se de princípio capitalista ou marxista, pois continua emverdade, a submeter as vontades e a consolidar a relação de domi-nação.

Deve-se questionar, portanto, se o fundamental e o determinanteda estrutura organizacional da sociedade é a forma pela qual oprocesso produtivo a estrutura, ou se este processo produtivo édecorrente da organização político-social. Em síntese, a questãose resume em saber se a organização político-social é decorrentedo modelo produtivo e, se outra organização político-social en-gendraria outro modelo produtivo.

Sob esta última ótica, teríamos não a estrutura econômica de-terminando a social, mas esta determinando a estrutura produtiva.

Em tal sociedade autogestionada, as relações interpessoais te-liam por base, necessariamente, a igualdade e liberdade dos indi-

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víduos, sem hierarquizações. A organização social seria uma con-seqüência da "força social" (no sentido proudhoniano do termo)que constituindo um "poder social" remeteria aos seus geradores(todo o grupo) a responsabilidade, o direito e o dever de decidirsobre suas próprias ações. Sob esta ótica, não se trata apenas deevitar ou minimizar a exploração e expropriação material (econô-mica) dos sujeitos-sociais enquanto produtores, mas sim, de evi-tar-se a expropriação da autonomia e da liberdade imposta poruma relação de mando-obediência, própria das sociedades he-terogestionárias e por conseqüência, hierarquizadas. Trata-se, por-tanto, de impedir a exploração e expropriação político-social.

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ESCOLA E PEDAGOGIA

Ierecê Rego Beltrão

o cotidiano escolar

omenino de 13 anos mostra à mãe, constrangido, a cadernetaescolar. Nela, lêem-se as reclamações da Escola, oficializadas:

Advertido por ser excluído da aula de Geografia. Não pára de brin-car e conversar na aula, mesmo depois de ser chamado várias vezes.Pedimos apresença do Pai no colégio das 13:00 às 18:00.( ...) Após inú-meras advertências orais, o aluno insiste em atrapalhar a aula com brin-cadeiras (emite sons), levando a classe a tumultuar a aula de Italiano. Oaluno foi advertido sobre sua postura e encaminhado ao Orientador Edu-cacional. ( ...) Advertido duas vezes por insistir em conversar na aula deEducação Artística 1.

A mãe alcança-me a caderneta, como quem indaga o que sig-·nifica essa queixa que é, ao mesmo tempo, uma chamadainstitucional à ordem. Leio e pergunto-me também: o que signifi-ca "advertir"? O que significa "atrapalhar"? E "conversar"? E "brin-car"? E "presença de Pai", grafado assim, em letra maiúscula, ademarcar, inequivocamente, uma autoridade superior, única, tal-vez similar e representativa de "Deus"?

As respostas que encontro, para além do sentido das palavras,para além do sentido da ordem a ser cumprida e do modelo a serseguido, referem-se ao trabalho que a Escola, hoje, se propõe: pro-duzir indivíduos que sejam dóceis, obedientes e que sejam úteis,produtivos. E nisso, tenha o regulamento que tiver, pertença a estaou àquela entidade mantenedora, a Escola é sempre igual a si mes-ma e se repete nas geografias diversas, nas histórias várias, nos ní-veis múltiplos que desdobra, desdobrando-se e aos seus atos e efei-tos.

1. Caderneta de estudante de 10 Grau de instituição privada de ensino (SãoPaulo, SP).

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Mas está a Escola, com isso, "traindo" a Pedagogia? Está eladescumprindo o que os discursos sobre a educação proferem comoprincípios, finalidades, objetivos, metas? É a Escola incapaz depôr em prática a teoria que deveria embasar suas ações? O que unee o que separa Pedagogia e Escola? Como funciona uma em rela-ção à outra?

Para pensar tais questões, é preciso buscar a formação, a cons-tituição de cada uma - Pedagogia e Escola - separadamente eatravés de relações de um poder que se caracteriza por ser discipli-nar.

Os saberes em torno da educação:a pedagogia e a escola

Em todas as sociedades, asforças, que são próprias ao poder,fabricam as formas, que são próprias ao saber. Nas sociedadespredominantemente disciplinares, em tomo da educação, de suaspráticas, constituem-se duas formas de saber: as discursivas e asmaquinicas. Estas formas são, também, formações políticas por-que se originam das relações de poder.

No âmbito das práticas educativas, as formas discursivas (quese referem a um regime de linguagem, às palavras) compõem umcampo e um objeto de discurso. A Pedagogia é este campo, e aeducação este objeto de discurso.

Nesse mesmo âmbito (das práticas educativas), as formas não-discursivas (que se referem a um regime de luz, às coisas) com-põem um campo e um objeto de visibilidade. A Escola é este cam-po e o escolar é este objeto de visibilidade.

Enquanto maneira de dizer, a Pedagogia enuncia sobre a edu-cação, o ensino, a aprendizagem, a ignorância, em nome de umaperfeiçoamento, de uma melhoria ou de uma transformação doindivíduo e/ou da sociedade.

Mas a Escola, enquanto forma de ver, não é conseqüência enem depende de um discurso que a orientaria; não é fruto materi-alizado de uma "ciência" sobre a educação: a Escola não é o des-dobramento, a materialização, da Pedagogia-discurso ou da Pe-

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•....-

dagogia-ciência. A Escola é umaforma de ver para agir sobre osalunos: ela se organiza como uma máquina de disciplinar que operaatravés de visibilidades e, por isso, remete a palavras e conceitosdiferentes dos da Pedagogia.

Portanto, a Pedagogia-discurso diz respeito ao "falar sobre", ecompõe a "ciência da educação"; a Escola-máquina diz respeitoao "ver e agir sobre" e realiza o disciplinamento dos indivíduos. Ese "ver" e ''falar'' são as formas que o saber toma, é preciso com-preender que "nos não vemos aquilo de que falamos, -e não fala-mos daquilo que vemos "2. A linguagem não é espelho da realida-de, não é sua representação :fiel.Mas como isso pode acontecer?Como se fala de algo que não é o que se vê, e se vê algo que não éaquilo de que se fala? É que:

Enquanto nos atemos às coisas e às palavras, podemos acreditar quefalamos do que vemos, que vemos aquilo de que falamos e que os doisse encadeiam: é que permanecemos num exercício empirico".

É preciso quebrar as palavras e as coisas, abrir os discursos e asmáquinas para extrair dos primeiros o enunciável e, dos segundos, ovisível e compreender essa disjunção entre as duas formas de saber.

Então, percebe-se: a Pedagogia, "ciência da educação", temconteúdos seus - as inúmeras concepções e temias sobre o que éeducar. A Escola, máquina de disciplinar, tem enunciados seus: osregulamentos, as regras que gerem seu funcionamento intemo.

Estas duas formas - Pedagogia e Escola - comunicam-se einserem-se uma na outra ininterruptamente, cada uma arrancan-do uma parte da outra, mas sem coincidirem. A Pedagogia nãopára de remeter educandos à Escola, através de seus discursos. Oque faz a Escola? Substitui o educando por outro personagem-o escolar - e, graças a essa substituição, ela não pára de produziruma certa instrução, um celto conhecimento, uma certa capaci-dade e uma certa competência, ao mesmo tempo em que nãopára de produzir uma certa ignorância, um certo desconhecimento,

~. 2. DELEUZE, Gilles. Foucault. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 117.3. Id. Ibid., p. 74.

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uma certa incapacidade e uma certa incompetência, fazendo dessasproduções "objetos" que retomam para o discurso pedagógico",

A Escola realiza de outro modo os objetivos da Pedagogia: emnome do aperfeiçoamento social/pessoal ela organiza a multi-plicidade, ao mesmo tempo, pela individualização e pela normali-zação. A Pedagogia, quando diz "Eu educo." fala sobre educação; aEscola,quando diz "Eu educo" disciplina os indivíduos.

Administrando os corpos, a Escola, lança mão de um suple-mento de poder que a Pedagogia não tem. Este suplemento de po-der, este "a mais" de dominação é expresso pelos seus regulamentos,pelas suas regras arbitrárias de conduta, pelas "violências in-justificadas" dos professores e/ou pelo autoritarismo de sua gestão.

Mas, com isso, ela não ''trai'' a Pedagogia, ou não se mostrasimplesmente incapaz de ligar à sua prática a teoria pedagógica'.A Escola apenas cumpre aquilo que a ela, máquina pensada paraorganizar a multiplicidade, se pede - não que eduque, mas que,através de um enclausuramento típico, fabrique indivíduos dóceise produtivos, indivíduos normatizados.

Em síntese, a Pedagogia é o discurso e a Escola é a máquinaque estão a serviço de uma tecnologia de poder disciplinar capazde produzir indivíduos segundo um modelo de normalidade quepressupõe obediência e utilidade. Pedagogia e Escola, discurso emáquina são saberes criados, construídos, inventados, fabricadosa partir de. relações de poder que buscam dominar os corpos: oscorpos individuais e o corpo social.

Pensar o cotidiano escolar

Dentro dessa analítica do exercício do poder nas sociedadesdisciplinares (e nossa sociedade é, ainda, disciplinar em muitas desuas práticas) é que deve ser pensada a cademeta escolar repleta deadvertências que o menino de 13 anos mostra à mãe, constrangido.

Nela, as reclamações da Escola, oficializadas através de anota-ções, não veiculam o discurso da Pedagogia, não se fundamentam

4. São "objetos" produzidos pela máquina-Escola a evasão, a repetência, aindisciplina, as dificuldades de aprendizagem, isto é, todas as diferenças enqua-dradas como deficiências.

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em finalidades, objetivos ou metas da educação; não reafirmam alinha pedagógica adotada pela instituição. O discurso registradona caderneta é um discurso fundamentado na forma de ver e agirsobre o aluno, e aponta para um comportamento normatizado, comoideal a ser alcançado.

Assim, por mais que se elaborem discursos transformadorespara a educação, estar-se-á, ainda, apenas no espaço dos enuncia-dos e a máquina-Escola permanecerá intocada. Apenas quando asvisibilidades forem, também, focos de análise e locais de muta-ções, poder-se-á falar de (e fazer) um novo projeto educativo.

Para isso, é preciso pensar todos os mecanismos que mantêm aEscola, como máquina de disciplinar, em funcionamento, e quevai fabricar uma individualidade enquadrada, programada, ades-trada, sujeitada a programas preestabelecidos, a exercícios im-postos e a regulamentos institucionalizados.

E preciso, ainda, questionar os mecanismos de vigilância, pu-nição e exame que a Escola utiliza e que visam comparar, diferen-ciar, hierarquizar, homogeneizar e excluir indivíduos e grupos,dando uma "organização racional" àquilo que é considerado "pe-rigoso" para o corpo social - a multiplicidade difusa e nãohierarquizada dos indivíduos e grupos humanos'.'

Sem essa análise das duas faces dos saberes institucionais quese autorizam como únicas formas de falar e fazer a educação emsociedades como a nossa - a Pedagogia (saber discursivo) e a Es-cola (saber maquínico) - estar-se-á apenas tangenciando a proble-mática que envolve o educar.

Cabe, em tal análise, perguntar-se, também, o quanto se estádisposto a mudar e quem deseja as mudanças. Esta é, talvez, aúnica via possível para trazer ao "educativo" o que ele pode ter deconstrutivo, inventivo, prazeroso.

Pensar diferentemente do que se pensa ... Educar diferentementedo que se educa ... E, talvez, só então poder dizer "Nunca mais!" apunições e castigos infligidos a jovens de 13 anos porque conver-sam, porque brincam, porque riem. .. Talvez só então poder insti-tuir uma outra formação que não tenha por meta fabricar corposdóceis, mentes vazias e corações frios.

5. Cf Foucault, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. ô.ed. Petrópolis:Vozes, 1988.

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