Escola e Socializacao

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Pensando sobre a escola como espaço de socialização

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Escola e socializao: o desaparecimento do professor

(Fragmento de texto de Juan Carlos TEDESCO/Livro: O novo pacto educativo: educao, competitividade e cidadania na sociedade moderna. Vila Nova de Gaia, FML, 2000, p.44 -48)

A perda da capacidade socializadora da escola vem sendo apontada com insistncia h j muito tempo. As causas so diversas e vo desde factores internos tais como a massificao da educao, a perda de prestgio dos professores e a rigidez dos sistemas educativos, at factores externos como o dinamismo e rapidez da criao de conhecimentos e o desaparecimento dos mass-media. Todos esses factores, porm, se revelam num aspecto que nos parece central: a significativa deteriorao do professor como agente de socializao. Para continuarmos com a metfora do desaparecimento da diferena entre a infncia e idade adulta, utilizada na anlise da famlia, poderamos defender que, tambm na escola, se d um processo de desaparecimento das distines entre professor e aluno. Este desaparecimento deu-se ao mesmo tempo que a presena fsica de ambos adquiria dimenses massivas. A massificao da escola andou a par, neste ponto de vista, com um processo de perda de significao social das experincias de aprendizagem que nela se realizam. So vrios os factores que explicam este processo, e procuraremos enumerar aqui os principais.

Em primeiro lugar, o desaparecimento da distino entre professor e aluno faz parte do processo mais global de crise de autoridade na sociedade contempornea. Hanna Arendt analisou este processo com grande clareza. A crise de autoridade na sociedade moderna adquire a sua mxima expresso quando atinge, precisamente, as reas pr-polticas de exerccio da autoridade, como sejam as relaes entre professores e alunos e entre pais e filhos. E, contudo, boa parte da literatura pedaggica das ltimas dcadas tem dedicado a politizar a anlise das relaes entre professores e alunos e, desse modo, a degradar o vnculo de autoridade poltica. O carcter hierrquico da socializao tradicional dava azo a esta crtica, e da que o professor tivesse sido associado figura do amo e o aluno a do escravo, e o vnculo de aprendizagem tivesse sido includo na categoria mais global de vnculo de imposio ideolgica.

A pedagogia activa, assim como grande parte das inovaes pedaggicas destinadas a personalizar a educao permaneceram, assim, limitadas ao mbito de experincias isoladas que no lograram contaminar o sistema no seu conjunto. Existiu e existe uma espcie de contradio insolvel nas inovaes pedaggicas. O seu xito supe a existncia de toda uma sorte de factores que so precisamente aqueles que o sistema no admite: equipas de docentes motivados que compartilhem um projecto pedaggico comum, dedicados ao seu trabalho em funo dos objectivos do projecto, e no de uma carreira burocrtica. A teoria pedaggica permaneceu, assim, desvinculada da realidade do funcionamento das aces escolares e, a partir dessa dissociao, sofreu o empobrecimento que suporta toda a teoria que no resolve os problemas reais. Por sua vez, a prtica pedaggica tambm se empobreceu cada vez mais pois, ao carecer dos fundamentos tericos que a fizeram evoluir efectivamente ficou subordinada aos limites do empirismo. Os tericos da educao foram desclassificados como utpicos e irrealistas e os empricos da educao foram desclassificados pela incapacidade de justificarem, sistematizarem e difundirem as suas aces.

A crescente debilidade da pedagogia para explicar e orientar as aces escolares deu azo ao desenvolvimento de um conjunto de saberes que vieram acentuar ainda mais a desprofissionalizao dos professores. No por acaso, por exemplo, que as teorias educativas dominantes nos ltimos trinta ou quarenta anos tm sido teorias em que o factor educativo, em si mesmo, ou seja, a relao professor-aluno, vem sendo subestimada, ou criticada e desqualificada. Estas teorias podem dividir-se em dois grandes grupos: 1) as provenientes da economia da educao e dos planificadores; 2) e as teorias crticas, provenientes, quer da sociologia, quer da psicologia social, ou da antropologia social. A teoria dos recursos humanos e do capital humano so as principais expresses do primeiro grupo e, de acordo com elas, tudo o que sucedia na aula era conceptualizado em termos de caixa negra, que no tinha influncia no desenvolvimento da teoria. No segundo grupo, podemos situar a teoria da reproduo, nas suas diferentes verses, em que, como vimos, as relaes professor-aluno foram conceptualizadas como relaes de dominao.

Com diferenas segundo os pases, a formao dos professores nas ltimas dcadas efectuou-se no quadro destas concepes, em que possvel falar duma espcie de componente autodestrutiva da identidade profissional docente. Os docentes, na sua busca de maior prestgio social e profissional, tenderam a afastar-se do que lhes era prprio e especfico. A ampliao de saberes nos processos de formao docente desenvolvidos nas ltimas dcadas esteve vinculada ao que Basil Bernstein chama regras de hierarquia, de critrio e de seleco (avaliao, currculo, orientao, sociologia e poltica da educao, investigao, etc.) O desenvolvimento destes saberes um facto real, mas todas as reas do saber esto fora do controlo dos profissionais que as dominam. Sendo assim, a ampliao de saberes teve um profundo efeito desestabilizador, uma vez que, em muitos casos, o domnio desses saberes dava origem a um alheamento ainda maior na prtica lectiva, ou apenas se limitava a fornecer elementos crticos dessa mesma prtica. Neste sentido, seria interessante analisar as razes pelas quais esta ampliao de saberes no se traduziu numa maior qualificao da procura educativa por parte do corpo docente. Em vez desta maior qualificao da procura deu-se um fenmeno educativo, em que os saberes acadmicos da formao inicial perdiam legitimidade, dada a distncia em relao aos problemas reais e os saberes empricos aprendidos no trabalho careciam da legitimidade outorgada pela universidade.

O aparecimento, aceitao e vigncia destas ideias em diferentes contextos sociais e culturais indica que no estamos perante um facto puramente arbitrrio. H factores que explicam esta situao e que permitem apreciar a complexidade do problema. Alguns destes factores j foram mencionados na anlise sobre a famlia. Mas outros tm a ver, mais directamente, com a escola.

Como vimos, os dois conceitos centrais da organizao escolar tradicional foram a sequencialidade no acesso informao e a hierarquizao das posies a que se pode ter acesso, no caso de se superarem os escales da hierarquia educativa. A sequencialidade estava ligada distino clara entre etapas do desenvolvimento da personalidade e hierarquizao s diferentes posies na estrutura social. Uma das peculiaridades da sociedade actual , precisamente, a eroso dos dois conceitos.

A sequencialidade do acesso ao conhecimento est posta em questo por dois factores principais. Em primeiro lugar, porque a televiso pe a circular a mesma informao para toda a gente, independentemente da idade. Em segundo lugar, porque a necessidade de educao permanente para a constante renovao do conhecimento acarreta a crise tanto da ideia de sequencialidade, como dos prprios conceitos de professor e aluno. Se precisamos de nos ir educando ao longo da vida, ento todos somos alunos. Num perodo de alteraes radicais no modo de produo e nas relaes sociais, o velho conhecimento em nada ajuda, antes estorva. No imaginrio popular da sociedade contempornea est muito difundida a ideia de que no necessrio ser-se adulto para ter acesso aos novos conhecimentos, nem para lidar com novos meios. O passado concebido como um obstculo que nos coloca perante um cenrio, em que o domnio da aparelhagem pelas crianas e no pelos adultos cria a separao entre conhecimento e pensamento. As crianas conhecem e operam com os novos instrumentos, mas no tm a capacidade de pensar no sentido daquilo que fazem. Os adultos, por seu lado, possuem essa capacidade, mas no sabem operar com os instrumentos.

A hierarquizao, por sua vez, vem sendo minada pelas dificuldades crescentes em manter a coerncia entre um sistema educativo que se expande cada vez mais e um mercado de trabalho cada vez mais reduzido, e que tende a eliminar as posies intermdias. A distino entre professor e aluno mais fraca do que no passado e, alm disso, superar os escales da hierarquia educativa , cada vez menos, garantia de superao dos escales das posies sociais.