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Escolas de papel no espaço Luso-Brasileiro: Análise de pinturas, painéis azulejares e seus modelos Sílvia Barbosa Guimarães Borges Mestranda – Universidade Federal do Rio de Janeiro Jorge Victor de Araújo Souza Mestrando – Universidade Federal do Rio de Janeiro Em 79, nas suas Réflexions critiques sur la Poësie et sur la peinture, fazendo uma comparação entre poesia e pintura com uma abordagem propriamente estéti- ca, Jean Baptiste Dubos exclamou que: “As estampas multiplicam ao infinito os quadros dos grandes mestres. Elas colocam ao alcance de desfrutar deles aqueles que a distância dos locais condenava a vê-los nunca” . A pontencialização da di- vulgação de uma imagem através da circulação de estampas (gravuras), bem ex- pressa por Dubos, toma um sentido de concretude, por exemplo, ao perceber-se que uma bandeira processional, do século XVIII, da igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso, no Rio de Janeiro possui uma iconografia retirada de uma pintura de Peter Paul Rubens ou que a azulejaria portuguesa de um claustro franciscano em Recife possui representações criadas por Rafael Sanzio. Esse texto pretende, ao apontar um fator já conhecido pela historiografia brasileira desde a década de 940, ampliar o grau de complexidade das reflexões sobre obras artísticas produzidas no espaço Luso-brasileiro, durante o Antigo regime. Esquecido pela historiografia durante um período, o uso de modelos europeus, especificamente gravuras, para representações pictóricas de natureza religiosa vem retomando seu es- paço nas preocupações dos historiadores da arte Luso-brasileira. A constatação do uso de modelos leva a um questionamento: como classificar em estilos (barroco, rococó, Bolsista do Programa Nota 0 da FAPERJ. Apud. LESSING, G. E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia: Com escla- recimentos ocasionais sobre diferentes pontos da história da arte antiga. São Paulo: Ilumi- nuras, 998. p. 6.

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Escolas de papel no espaço Luso-Brasileiro: Análise de pinturas,

painéis azulejares e seus modelos

Sílvia Barbosa Guimarães Borges Mestranda – Universidade Federal do Rio de Janeiro

Jorge Victor de Araújo SouzaMestrando – Universidade Federal do Rio de Janeiro�

Em �7�9, nas suas Réflexions critiques sur la Poësie et sur la peinture, fazendo uma comparação entre poesia e pintura com uma abordagem propriamente estéti-ca, Jean Baptiste Dubos exclamou que: “As estampas multiplicam ao infinito os quadros dos grandes mestres. Elas colocam ao alcance de desfrutar deles aqueles que a distância dos locais condenava a vê-los nunca”�. A pontencialização da di-vulgação de uma imagem através da circulação de estampas (gravuras), bem ex-pressa por Dubos, toma um sentido de concretude, por exemplo, ao perceber-se que uma bandeira processional, do século XVIII, da igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso, no Rio de Janeiro possui uma iconografia retirada de uma pintura de Peter Paul Rubens ou que a azulejaria portuguesa de um claustro franciscano em Recife possui representações criadas por Rafael Sanzio.

Esse texto pretende, ao apontar um fator já conhecido pela historiografia brasileira desde a década de �940, ampliar o grau de complexidade das reflexões sobre obras artísticas produzidas no espaço Luso-brasileiro, durante o Antigo regime. Esquecido pela historiografia durante um período, o uso de modelos europeus, especificamente gravuras, para representações pictóricas de natureza religiosa vem retomando seu es-paço nas preocupações dos historiadores da arte Luso-brasileira. A constatação do uso de modelos leva a um questionamento: como classificar em estilos (barroco, rococó,

� Bolsista do Programa Nota �0 da FAPERJ. � Apud. LESSING, G. E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia: Com escla-recimentos ocasionais sobre diferentes pontos da história da arte antiga. São Paulo: Ilumi-nuras, �998. p. �6.

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maneirista, renascentista...) obras cujos suportes comportam, graças ao uso de diversos modelos gravados, uma combinação variada de elementos?

Gravuras como meio de divulgação religiosa

A circulação de livros ilustrados com gravuras religiosas foi ampla em todo mundo cristão, principalmente no período da Contra-Reforma, sendo Antuérpia seu principal centro difusor�. Antuérpia, por sua privilegiada situação portuária, propiciava um incessante intercâmbio de mercadorias, sendo a principal expor-tadora de gravuras neste período. Desde o início dos “Descobrimentos” a cidade contava com gravadores que se dedicavam principalmente à criação de cartogra-fias e que depois se voltaram para as gravuras religiosas4.

A combinação de gravura e leitura era excelente para uma empreitada peda-gógica, pois atingiam letrados e não letrados. A Igreja logo compreendeu sua po-tencialidade:

...o instruir de forma mais universal, pois não estavam condicionadas as di-versidades lingüísticas ou ao próprio domínio da leitura; o deleitar, pois for-neciam matéria de encantamento estético, e uma capacidade afectiva de pro-vocar emoções de maior intensidade e mais directamente do que o texto escrito�.

As gravuras iam ao encontro dos intentos contrareformistas: ajudavam os fiéis a compreender as doutrinas das Escrituras posto que a Igreja Católica exigia sua apre-sentação em Latim, e poucos compreendiam esta língua. Auxiliavam na prática de uma devoção mais intimista uma vez que eram facilmente carregadas por indivíduos, e também podiam ser penduradas em qualquer parede. Formando “quadros devocio-nais”6, elas produziam um contato mais pessoal entre o fiel e sua figura de culto, lembrando-o constantemente das coisas santas. Por fim, divulgavam e reafirmavam a importância do culto dos santos, contrariando um dos pontos mais importantes da

� SEBÁSTIAN, Santiago. Contrarreforma y Barroco. Madrid: Alianza Editorial, �989. p. ��.4 BOTEY, Francisco Esteve. Historia del Grabado. Barcelona: Editorial Labor, �9��. p. �69-�70.� CETANO, Joaquim Oliveira. As imagens do Texto. In: ____. (Org,). Gravura e Conhecimento do Mundo – O Livro Impresso Ilustrado nas Coleções da BN. Lisboa: Ed. BN, �998. p.�9.6 “O termo ´quadros devocionais` (quadri di devotione) era corrente no período, quando imagens e fervor religioso parecem ter tido uma associação mais próxima que a usual, fos-sem as imagens crucifixos recomendados por pregadores importantes como Bernardino de Siena e Savanorala) ou o novo meio da gravura em madeira, ou um tipo de pintura reli-giosa, pequeno e íntimo, próprio para casas particulares, não tanto um ícone, mas uma narrativa, que funcionava como estímulo para a meditação sobre a Bíblia e sobre as vidas de santos.”In: BURKE, Peter. O Renascimento Italiano – Cultura e Sociedade na Itália. São Paulo: Nova Alexandria, �00�. p.���.

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Reforma Protestante. As gravuras, com seus preços relativamente baratos e com sua grande reprodutibilidade, se coadunaram com um “cristianismo de massas”, caracte-rizado pela ascensão de uma devoção popular que a Contra-Reforma incentivou7.

A maior singularidade da gravura é sua reprodutibilidade, assim como o seu fácil manejo, tornando-a uma das formas artísticas de maior mobilidade. Dentro de livros ou dobradas em um bolso, uma gravura poderia circular com muita facilida-de. Sendo comparável a “mercadorias”, muitas vezes seu comércio foi feito em toneladas8.

De certa maneira, os grandes mercados do início da modernidade, principal-mente da Itália e dos Países Baixos, tornaram-se pontos de divulgação dessa arte, pois, como afirma o historiador Peter Burke, “as rotas de comércio eram rotas de papel”9. A partir da divulgação de tais gravuras, diversos artistas tiveram contato com obras de grandes mestres, implementando uma incessante troca de técnicas, informações, estilos e referências iconográficas. Percebe-se que, na Europa, a prá-tica do uso de gravuras como modelos para a criação de pinturas começa a se es-tabelecer neste período inicial de grande circulação de papéis:

A arte da xilogravura e da estampa calcográfica logo se espalhou por toda a Europa. Existem gravuras à maneira de Mantegna e Botticelli na Itália, e outras dos Países Baixos e França. Essas estampas tornaram-se ainda mais um veículo através do qual os artistas europeus tomavam conhecimento um dos outros. Nessa época, ainda não era considerado desonroso aproveitar uma idéia ou composição de outro artista, e muitos dos mestres mais humildes fizeram uso de gravuras como livros de modelos em que se inspiravam. Assim como a in-venção da imprensa acelerou a troca de idéias sem a qual a Reforma nunca teria ocorrido, também a impressão de imagens assegurou o triunfo da arte da Renascença italiana no resto da Europa. Foi uma das forças que pôs fim à arte medieval do Norte e precipitou uma crise na arte desses países que somente os grandes mestres puderam suportar�0.

E mais tarde, em Portugal, não será diferente:

Conhecemos dados concretos sobre a chegada a Portugal, desde os portos flamengos, de coleções de gravuras adquiridas pelos negociantes de arte por-tugueses aos seus colegas de Antuérpia, de Bruges ou de Gand. Em �6��, por exemplo, André dos Santos, vendedor de obras de arte com loja aberta em

7 DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, �994. p.��6.8 HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, �998. p. �7�.9 BURKE, Peter. Uma História Social do Conhecimento – De Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, �00�. p.�4�.�0 GOMBRICH, E. H. História da Arte. São Paulo: Círculo do Livro, S/D,. p. ��6. (grifo nosso).

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Lisboa, mandou vir de Antuérpia através do negociante Paul du Jon duas cai-xas de estampas...��

O historiador da arte Max J. Friedländer salienta que constantemente vacilamos ao usar a palavra “cópia”, pois é carregada por um tom pejorativo��. Friedländer de-monstra que, mesmo para aplicar-se em uma cópia, um artista deve desprender uma enorme paciência e possuir uma boa dose de talento e atenção��. Para Friedländer todo o efeito que uma pintura imprime em outra obra deve ser denominado “influên-cia”. Mas quando esta “influência” supera os limites da mera semelhança, alcançan-do uma reprodução “presa ao original”, passa a ser cópia, portanto, fruto das mãos de um copista: “El copista, al contrario del maestro creador, no parte de la vida, sino de una pintura, y tiene que trabajar sobre una visión ya materializada”�4. A respeito do uso de gravuras como modelos para outras obras, Friedländer afirma que:

Algunos maestros fueron imitados porque su manera pictórica despertó admira-ción, pero fué mucho mas vigorosa, se difundió com mayor amplitud, fué mas modílica la influencia de los creadores de tipos de composición, narracions po-dríamos llamarles, especialmente porque el arte del grabado, empleado como medio de difusión, permitió ofrecer cómodamente, como em compendio, las composiciones dignas de ser imitadas. Por obra del grabado en cobre, tanto los maestros originales como los grabadores lograron extender considerablemente su dominio. Así Shongauer, Durero, Rafael, Rubens e Watteau��.

Em certo sentido, Friedländer libera o copista de sua carga pejorativa, dando-lhe até certo status. Segundo este autor, copiar constitui uma atividade árdua que requer sacrifício, paciência e atenção�6. Ao que se refere às representações religio-sas, aspecto particularmente importante, destaca que:

Antes se trataba de ilustrar para los fieles la historia de los Evangelios y las leyendas, así como de hacer tangibles a las personas santas. Sólo si se presen-taban en forma conocida podían ser compreendidas las situacionas y recono-cidos los personajes. La necessidad de hacerse perfectamente comprensible limitaba y restringía la liberdad de expresión. Ni el pintor, ni los demás, habí-an visto a San Pedro; pero conocían muchas imágenes que lo representaban.

�� SERRÃO. Vitor. A Pintura Protobarroca em Portugal 1612 – 1657 – O Triunfo do Natura-lismo e do Tenebrismo. Lisboa: Edições Colibri, �000. p. �84.�� FRIEDLÄNDER, Max J. Arte y sus secretos. Barcelona: Juventud, �949. p. �90. �� Ibidem. p. �86. �4 FRIEDLÄNDER, Max. Op.cit p. �86.�� Ibidem. p. �77. �6 Ibidem. p. �86.

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La imaginación y una vaga creencia relacionaban tales imágenes con arque-tipos, hasta alcanzar la época del santo�7.

Sobre a pintura sacra é preciso levar em conta as imposições tridentinas, e suas preocupações com os erros heterodoxos que implicavam na existência de um câ-none para as representações.

Historiografia da arte no Brasil e os modelos gravados

No Brasil, o primeiro pesquisador a apontar semelhanças entre gravuras euro-péias e pinturas religiosas do período colonial foi Luís Jardim, em um artigo de �9�9�8. O pesquisador, do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), descobriu em Minas Gerais um missal impresso em Antuérpia no ano de �744, que serviu de modelo para a pintura do Nascimento de Jesus em um retábulo da Igreja de Bom Jesus de Matosinhos�9. Além disto, demonstrou que uma estampa avulsa representando a Ressurreição de Cristo foi utilizada para uma pintura de Manuel da Costa Ataíde na capela-mor da igreja Matriz de Santo Antônio, em Santa Bárbara�0. Apesar destas descobertas, o pesquisador não se aprofundou em análises iconográficas e na pro-blemática do transplante do meio monocromático (gravura) para o policromático (pintura). Um aspecto que marca o texto de Luís Jardim, que também aparece em escritos de outros pesquisadores, é reafirmação da “originalidade” do pintor colo-nial, mesmo usando modelos europeus��.

Na década de �940, chegou ao Brasil a historiadora da arte Hannah Levy, re-fugiada da Alemanha durante a Segunda Guerra��. Como Luis Jardim, trabalhou para o então SPHAN e publicou quatro artigos na revista desta instituição. Percebe-se em seus textos a preocupação com a metodologia, destacando sempre a impor-tância do tratamento documental. Em um artigo publicado originalmente em �94�, ela destaca as inúmeras pinturas sem autoria definida e levanta alguns casos de semelhanças entre painéis que estão no Rio de Janeiro e pinturas européias, como por exemplo a Descida da Cruz da Igreja de Nossa Senhora de Bonsucesso e o painel de Peter Paul Rubens na Catedral de Antuérpia; a Assunção de Nossa Senho-

�7 Ibidem. p. �9�. �8 JARDIM, Luís. A Pintura decorativa em algumas igrejas de antigas. Revista do SPHAN, número �: Rio de Janeiro, �9�9.�9 Missale Romanum ex Decreto Sacrosancti Concilli Tridentini Restitutum. Antuérpia: Typo-graphia Plantiniana, �744. �0 JARDIM, Luis. Op. cit. p. �9�-�00. �� Ibidem. p. �98-�99. �� Sobre a trajetória de Hannah Levy ver o comentário de Til Pestana em: Revista do Patrimô-nio Histórico e Artístico Nacional, Número �6. Rio de Janeiro: MEC, �997. p. ��7-��9.

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ra no painel do retábulo de São Lourenço na capela de São Lourenço dos Índios, em Niterói com a pintura de J. Palma na igreja de São Giuliano, em Veneza��. Nes-te estudo encontra-se o início de sua hipótese: baseada na análise estilística das pinturas fluminenses, propõe que houve um largo uso de gravuras européias como modelos para pintura colonial. Todavia, destaca que, mediante as condições de sua pesquisa, seria pouco provável estabelecer uma ligação concreta entre as gra-vuras e as pinturas.

Em �944, dois anos depois de ter iniciado sua pesquisa, Hannah Levy escreve para a Revista do SPHAN o artigo intitulado Modelos Europeus na Pintura Colonial, em que apresenta casos de pinturas que tiveram gravuras européias como base iconográfica�4. Dos mais de vinte casos apresentados, destacam-se, por sua beleza artística e relevância na historiografia da arte brasileira, seis pinturas da Capela-mor da igreja de São Francisco de Assis, pintadas por Manuel da Costa Ataíde��. A autora demonstra que estas obras foram copiadas das gravuras da Bíblia de Demar-ne�6 e que, parte delas, reproduz pinturas de Rafael Sanzio da segunda Loggia do Vaticano, em Roma. Segundo a autora gravuras desta mesma bíblia também servi-ram para os mestres azulejadores que atenderam a encomenda da Capela da Ja-queira, em Recife.

No Rio de Janeiro, Levy aponta dezesseis pinturas representando a vida de Jesus na Igreja de Nossa Senhora do Carmo (pertencente à Ordem Terceira do Car-mo), feitas a partir de gravuras de três livros e uma estampa avulsa: Vita D.N. Jesu Christi ex Verbis de Bartolomeu Ricci, publicado em Roma no ano de �607;�7 Vita Passio, conhecida como a Bíblia de Sadeler, publicada em Antuérpia no ano de �7�8; Hetnieuwe Verbondt, publicado em Amsterdã em �648 e uma gravura avulsa do Pentecostes, presente na Coleção de estampas da Biblioteca Nacional (Rio de Ja-neiro). Destaca, no levantamento das obras desta igreja, o uso de livros de diversas procedências. Pode-se argumentar que não foram exatamente estes livros que servi-ram como fonte, mas é possível que tenham sido usadas gravuras na forma “avulsa”, pois seria mais coerente o uso de um mesmo livro com uma seqüência inteira da narrativa.

�� Cf. LEVY, Hannah. A pintura colonial no Rio de Janeiro. Revista do SPHAN número 6: Rio de Janeiro, �94�. �4 Cf. LEVY, Hannah. Modelos europeus na pintura colonial. Revista do SPHAN número 8: Rio de Janeiro, �944. �� Ibidem. p. 99-�0�. �6 Este termo foi usado pela autora para referir-se à bíblia ilustrada Histoire Sacrée de la Pro-vidence et de La Conduite De Dieu Sur les Hommes Depuis le commencement du Monde Jusqu’aux Temps préds dans l’Apocalypse. Publicada em Paris entre �7�8 e �7�0, possui quinhentas estampas, divididas em três volumes, que representam passagens do Antigo e do Novo Testamento.�7 Existente no acervo de obras raras da Biblioteca Nacional, ver: RICCIUM, Bartholomaeum. Vita D. N. Jesu Christi ex uerbis evangeliorum in ipsismet conccinata. Roma, �607. Localiza-ção BN: SOR �84, �, �0.

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Hannah Levy levanta algumas problemáticas interessantes. Ela aponta na pin-tura a hegemonia nas características dos gêneros humanos, as diferenças estilísticas em várias obras de um mesmo artista, e a inserção de elementos diferentes do co-tidiano “colonial”, como por exemplo, as arquiteturas européias. Afirma que estas são características do uso indiscriminado de gravuras européias como modelos. Porém, não faz uma análise iconográfica propriamente dita. Não se preocupa, por exemplo, com a função destas pinturas ou com seus significados.

Contudo, pode-se considerá-la pioneira no estudo de influências européias na pintura “colonial”, porque sistematizou as descobertas de Luis Jardim, ampliando o número de casos em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Ela considera a maioria das pinturas, mesmo sem autoria definida, como obras de pintores brasileiros, o que pa-rece ser uma afirmação de grande imprecisão, considerando-se as parcas pesquisas sobre autorias de pinturas na América portuguesa. Em suas análises, nota-se uma preocupação em não macular a “áurea de originalidade” do artista colonial, o que vai ao encontro do pensamento vigente. Após a “redescoberta” do Barroco pelos modernistas, esse estilo foi alçado como a gênese da arte brasileira, e segundo alguns autores, como Mario de Andrade, possuía uma singularidade extrema. Além disto, sua opinião estava profundamente vinculada à instituição para qual trabalhava, cria-da em �9�7, durante o Estado Novo, um período de aclamação nacionalista. Logo, não era propício apontar que os pintores aclamados como a “gênese artística” brasi-leira copiavam modelos europeus.

O que se percebe nas publicações posteriores sobre o tema é uma excessiva repetição dos casos descobertos por Hannah Levy e um desconhecimento da docu-mentação contida nos arquivos e bibliotecas eclesiásticas, que poderiam elucidar análises sobre o uso de gravuras por pintores, assim como, indicar um possível circuito de circulação das estampas. Em Portugal, esse estudo arquivistíco já está adiantado como demonstra o historiador Vitor Serrão: “A documentação recensea-da do século XVII inclui referências às coleções de estampas nos inventários de bens dos nossos artistas; ainda que quase sempre de definição imprecisa, mostram, todavia, o peso da sua circulação entre as oficinas”�8.

Se no Brasil a situação se encontra em tal estado, o mesmo não se pode dizer de Portugal�9 e de alguns países da América Latina, destacando-se Peru, Bolívia, México e Argentina�0, levando, na década de �990, o historiador Sebastián López

�8 SERRÃO, Vitor. A Pintura do Brutesco do Século XVII em Portugal e a suas Repercussões no Brasil. In: ÁVILA, Afonso Barroco - Teoria e Análise. São Paulo; Belo Horizonte: Editora Perspectiva, �997. p. �09. �9 Cf. SOBRAL, Luís de Moura. As gravuras de Antuérpia e a pintura portuguesa no começo do século XVII: O Missal Pontifical de Gonçalves Neto. In: Portugal e Flandres: Visões da Europa. Lisboa: Edição do Instituto Português do Patrimônio Cultural, �99�. p. ��-6�; SER-RÃO, Vitor. A Pintura Protobarroca em Portugal 1612-1657 – O Triunfo do Naturalismo e do Tenebrismo. Lisboa: Edições Colibri, �000. �0 Sobre isto, ver: KELEMEN, Pal. Barroque and Rococo in Latin America, Vol.I. New York, �967. p. �00-��4; SORIA, Martins. Una nota sobre pintura colonial y estampas europeas. In:

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afirmar que, “dia a dia ganha mais interesse o estudo de livros ilustrados, cujas gravuras serviram de fonte de inspiração, especialmente para a pintura...”��.

Em pesquisas recentes pudemos identificar outros casos do uso de gravuras como modelos para pinturas e lançar o olhar para objetos ainda não estudados sob o ponto de vista da circulação de estampas e sua larga utilização. Os casos que se seguem foram objetos de monografias para conclusão do Curso de Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro��.

Assunção de Maria

O pintor anônimo do painel do retábulo-mor da igreja de São Lourenço dos Índios, em Niterói (RJ), utilizou uma gravura de um missal de oficina Plantinense: Officium Beatae Mariae Virginis��. Este retábulo é considerado uma obra jesuítica, de estilo maneirista, do século XVII�4. Na pintura que o encima, vê-se Maria ascen-dendo aos céus em uma nuvem sustentada por anjos��. Sua mão direita está sobre o peito, enquanto o braço esquerdo está esticado e seus olhos estão voltados para

Anales del Instituto de Arte Americano e Investigaciones Esteticas de Buenos Aires. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, �9��. p.4�-49; IÑIGUEZ, Diego Ângulo. Pereyns y Martin de Vos: El Retablo de Huejotzingo. In: Anales del Instituto de Arte Americano e Inves-tigaciones Esteticas de Buenos Aires. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, �949, p. ��-�7; MESA, José de; GISBERT, Teresa. Martin de Vos em America. In: Anales del Instituto de Arte Americano e Investigaciones Esteticas de Buenos Aires. Buenos Aires: Universidade de Buenos Aires, �970, p. �� LÓPES, Santiago Sebastián. A Edição Espanhola do “Teatro Moral da Vida Humana” e sua influência nas Artes Plásticas do Brasil e Portugal. In: ÁVILA, Affonso. Op. cit. p. ���.�� Cf. BORGES, Sílvia B. G. Antigo Testamento em Azulejos: Uma análise do programa ico-nográfico dos painéis azulejares do claustro do Convento de Santo Antônio em Recife. Rio de Janeiro, �00�. 96 f. Monografia (Bacharelado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro; SOUZA, Jorge Victor de Araújo. Escolas de papel – As influências de gravuras européias na pintura colonial brasileira. Rio de Janeiro, �004. 76 f. Monografia (Bacharelado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. A fusão das principais questões das duas monografias, ver: ARAÚJO SOUZA, Jorge Victor de; BORGES, Silvia Barbosa Guimarães. Espelho da fé. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano �, Nº ��. Rio de Janeiro: Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional, Out. �006. p. 6�-67. �� Officium Beatae Mariae Virginis. Antuérpia: Typographia Plantiniana, �774. p. ��4.�4 Cf. OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Escultura colonial brasileira: um estudo pre-liminar. In: ÁVILA, Afonso. Op. cit. p. �6�-�67; COSTA, Lúcio. A Arquitetura dos Jesuítas no Brasil. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Número �6, �997. p. ���; BONNET, Marcia. A talha Filipina em madeira na colônia: influências e mutações. In: PE-REIRA, Sonia Gomes (Org.). Anais do VI Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte (Vol.�). Rio de Janeiro: CBHA/PUC-Rio/UERJ/UFRJ, �004, p.4��-46�. �� O tema da Assunção não possui nenhuma referência bíblica de forma explicita e só se transformaria em dogma com a emissão da bula papal Munificentíssimo Deus, em �9�0.

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cima. Sua postura denota um sinal de puro êxtase. Seus trajes, cabelo e manto estão agitados pelos ventos em um movimento típico de figuras barrocas. Nossa Senhora está na mesma postura da gravura, e também é sustentada por anjos que seguram a nuvem. A semelhança é muito grande, principalmente se as zonas de luz forem comparadas. No traje de Maria, sobretudo, no “y” formado no manto logo abaixo do braço estendido, é possível identificar esta similaridade. Outros pontos clara-mente idênticos são formados pelos detalhes das mãos, do cabelo da Virgem e dos anjos. Um exemplar do Officium Beatae, edição do século XVIII, cuja gravu-ra serviu de modelo para a pintura pode ser encontrado na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

Bíblia de Demarne

As várias edições do Officium Beatae foram muito usadas, mas o conjunto de estampas que influenciou o trabalho de muitos artistas foi o do francês M. Demar-ne. Sobre ele há pouquíssimas informações. Sabe-se apenas que foi arquiteto e gravador e que viveu no século XVIII. Uma série de gravuras que possui sua assina-tura é Histoire Sacrée de la Providence et de La Conduite De Dieu Sur les Hommes Depuis le commencement du Monde Jusqu’aux Temps préds dans l’Apocalypse, que ficou conhecida como Bíblia de Demarne�6. Publicada em Paris, entre �7�8 e �7�0, foi dedicada à rainha da França, Maria Leszczynska (�70�-�768). Seus três volumes, com quinhentas estampas, podem ser encontrados na Biblioteca Nacio-nal (Rio de Janeiro) e em outras grandes bibliotecas da Europa. Na folha de rosto da Bíblia de Demarne há uma inscrição onde o gravador declara que poderá oferecer as gravuras separadamente e no tamanho de papel que se quiser. Fato interessante é que cinqüenta e duas destas gravuras são cópias das pinturas que Rafael Sanzio (�48�-���0) e seus colaboradores realizaram em ���8, para a segunda Loggia do Vaticano, longa galeria (6� metros), dividida por treze arcadas. Em cada uma das abóbadas há quatro cenas que narram passagens do Antigo ao Novo Testamento. As decorações “em grotescos” completam o espaço. A série de pinturas conhecida como “Bíblia de Rafael” é composta por afrescos, cujo traço bem delimitado e desenho preciso são características fundamentais. Por estas qualidades era aprecia-do por gravadores que multiplicaram e divulgaram suas pinturas em forma de es-tampas, desde Marcantonio Raimondi.

As gravuras de Demarne serviram de inspiração para uma das mais importan-tes obras sacras do Brasil, pois foi através destas imagens que Manuel da Costa Ataíde (�76�-�8�0), fez, entre �80� e �804, as pinturas da igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto (Minas Gerais)�7. Este artista ornou as paredes com pinturas que ilustram seis cenas do Antigo Testamento, todas retiradas da História de Abraão.

�6 SIMÔES, J. M. S. Azulejaria em Portugal no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gul-benkian, �979. p. 4�-48. �7 Como foi dito anteriormente, este caso foi estudado por Hanna Levy, na década de �940.

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Ataíde não alterou as composições das gravuras de Demarne. Todavia, fez peque-nas modificações, como, por exemplo, na cena que retrata os três anjos com Abraão. Em comparação com as gravuras, Ataíde também simplificou os planos de fundo das pinturas, mantendo apenas os elementos centrais de cada cena.

Ataíde pintou estas obras de maneira muito semelhante aos painéis de azule-jos portugueses, tão comuns em igrejas da Ordem Franciscana. Isto pode ser facil-mente observado através de três aspectos: o formato da moldura que envolve as cenas, a localização especifica na parte inferior da parede e a cor azul em várias tonalidades. É preciso destacar as dificuldades que envolviam o transporte seguro de peças delicadas como os azulejos para uma igreja em Minas Gerais exigindo, assim, o embelezamento das paredes por meio de uma adaptação. Por este motivo, as pinturas de Ataíde são uma inovação e uma intrigante apropriação das caracte-rísticas azulejares. Através de gravuras de Demarne, Ataíde conseguiu um modelo para suas obras e reproduziu algumas pinturas de Rafael.

Gravuras de Demarne também serviram de modelo para os azulejadores portu-gueses que produziram, no século XVIII, os painéis de azulejos do claustro do con-vento franciscano de Recife. São vinte e sete cenas que representam passagens do Gênesis, entre elas a Expulsão do paraíso. A cena da expulsão ilustra a passagem:

E Iahweh o expulsou do jardim do Éden para cultivar o solo de onde fora tira-do. Ele baniu o homem e colocou, diante do jardim do Éden, os querubins e a chama da espada fulgurante para guardar o caminho da árvore da vida (Gen. �:��,�4).

Na cena, vê-se um homem andando com as mãos na face, num gesto que é um misto de desespero e vergonha. Ao seu lado caminha uma mulher que tenta tapar seu corpo com as mãos. Atrás do infortunado casal segue um anjo segurando uma espada com a mão direita. O ser celestial está com a mão esquerda pousada no ombro do homem, em um gesto ambíguo, quase a consolá-lo.

Comparando a cena da expulsão de Adão e Eva no painel de azulejos com a gravura de Demarne e com a pintura de Rafael é possível atentar para inegáveis se-melhanças: os degraus da escada, a vestimenta e a leve curvatura dos ombros do anjo e as posições de Adão e Eva. A luminosidade é marcadamente semelhante nestas três obras. Nos suportes – afresco, papel e azulejo – é possível perceber que os raios de luz vêm de trás do anjo. Em Rafael, a luminosidade é expressa pelo jogo de cores que o gravador Demarne traduz em riscos finos, reproduzidos pelo azulejador. No fundo, que também é sutilmente modificado nos azulejos, é possível perceber com clareza o “alargamento” feito pelo artista. Ao copiar os três personagens, o azulejador retirou o tronco de árvore de trás da mulher e o colocou mais à frente, ampliando a cena para limitá-la com a moldura em estilo rococó do painel azulejar.

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São Miguel

Na gravura, presente na seção de iconografia da Biblioteca Nacional, São Mi-guel está de pé sobre nuvens, sua mão esquerda segura um estandarte com o sím-bolo da Santíssima Trindade, enquanto aponta para cima com a mão direita. Sua perna esquerda está ligeiramente flexionada em contraposto, dando graça e harmo-nia ao conjunto. Ao lado de seus pés surgem, entre as nuvens, dois orantes de meio corpo. Acima de sua cabeça vê-se o mesmo símbolo da Trindade que ornamenta o estandarte. O triângulo eqüilátero era o que freqüentemente representava a Trinda-de. Este símbolo, presente no estandarte de São Miguel, ia ao encontro do que postulava o Catecismo Tridentino: não ser pecado mostrar a Santíssima Trindade ou uma de suas pessoas, mesmo que em referência simbólica ligada a uma figura geométrica�8. São Miguel veste uma calça acima dos joelhos, um colete e uma tú-nica esvoaçante, e usa um capacete com penacho virado para frente. Por trás de sua figura saem raios de luz típicos da iconografia barroca. Abaixo das nuvens lê-se a inscrição: “O Emº Snrº Cardeal Patriarcha concede �00 dias de indulgência a quem rezar hum pai nosso diante desta imagem”�9.

A pintura correspondente a esta gravura encontra-se em Minas Gerais, na igre-ja de São Miguel, no Arraial de Arcângelo40. Nela, nota-se que o pintor seguiu o mesmo esquema compositivo presente na gravura, repetindo a postura da figura central, porém, retirando os orantes e o símbolo da Trindade que aparecia acima de São Miguel, além de ter simplificado suas vestes. Houve de certa forma uma simplificação na totalidade, mas, observando-se os detalhes como o caimento do drapejamento, a inclinação e posicionamento do estandarte, a posição da mão er-guida em relação à asa direita, e os raios de luz que emanam do centro, fica inegá-vel a semelhança entre as obras. Sua postura é parecida com as duas imagens da Igreja do Santíssimo Sacramento no Rio de Janeiro4�.

De acordo com Luís Chaves, especialista em iconografia, existem quatro tipos característicos nas representações de São Miguel: combatendo Satã, em atitude de vencedor, em socorro das almas do purgatório e pesando as almas4�. A iconografia da pintura está próxima do segundo tipo, que de acordo com este autor é uma re-

�8 DELUMEAU, Jean. O que sobrou do Paraíso? p. ��4.�9 Esta estampa é idêntica à feita pelo gravador Manoel da Silva Godinho, em Portugal, no século XVIII e “vendida em casa de Francisco Manoel no fim da rua do Passeio”. Reprodu-zida em: CHAVES, Luís. São Miguel na Terra Portuguesa e na alma dos Portugueses. Guima-rães, �9�6. p. �9. 40 Este forro é um belo exemplo da pintura rococó produzida em Minas Gerais de setecentos. Sobre este estilo, ver: OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil e seus Antecedentes Europeus. São Paulo: Cosac & Naify, �00�. p. �7�-�9�. 4� Reproduzidas em: JUSTINIANO, Fatima. São Miguel Arcanjo – Duas Esculturas Policro-madas. Arte e Ensaios, Revista do Mestrado em História da Arte. Rio de Janeiro: EBA-UFRJ, �º Semestre, �996, p. �8-�9. 4� É muito comum ver sua iconografia associada com a passagem do Apocalipse: “Houve então uma batalha no céu: Miguel e seus Anjos guerrearam contra o dragão.”

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ferência a Daniel, onde Miguel aparece como um príncipe: “O Príncipe do reino da Pérsia me resistiu durante vinte e um dias, mas Miguel, um dos primeiros Prín-cipes, veio em meu auxílio”; “Nesse tempo levantar-se-á Miguel, o grande Prínci-pe, que se conserva junto dos filhos do teu povo”4�.

Por que São Miguel está de pé sobre as nuvens e com raios de luz por detrás, como o esplendor do firmamento? Essa representação, que estava de acordo com o discurso da Contra-Reforma44, possui uma composição que vai ao encontro do que postulava o teólogo de Louvain, Molanus, e que influenciou a iconografia ociden-tal de São Miguel. Em ��70 ele escreveu o Tratado das Santas Imagens, onde se refere ao modo como os anjos se apresentam:

Eles estão rodeados de muitas nuvens, seja porque sua residência é nos céus, seja porque às vezes sustentaram a pessoa de Deus nas nuvens, seja porque, da mesma maneira que o esplendor do sol se comunica ao olhar humano por intermédio das nuvens, a luz divina da verdade que eles recebem do alto com respeito difunde-se, por derivação segunda, para os mortais, na propor-ção da faculdade de cada um deles4�.

A associação entre o sol divino e os anjos também se encontrará na obra de Louis Abelly, bispo de Rodez, que escreveu em �69�:

os anjos e outros espíritos celestes foram como os primeiros raios que o sol da Divindade lançou de si e como os primeiros regatos (como fala São Gregório Nazanzieno) que emanaram desse oceano infinito de luz que está em Deus, o qual, desde os primeiros instantes da criação, os ornou e os enriqueceu de vários excelentes dons de natureza e graça [...]46.

São Miguel, cujo nome em hebraico Mî Kã’El significa, grosso modo, “Quem é como Deus?”, segundo a hierarquia celeste, é um Arcanjo47. Ele possuiu uma enorme devoção na América portuguesa, principalmente na região das Minas. Devoção esta que pode ser constatada observando-se a toponímia de várias freguesias com suas pa-róquias dedicadas a São Miguel, como o do próprio local onde se encontra esta pintu-ra – São Miguel do Cajuru. A historiadora Adalgisa Arantes Campos, levantou, somen-te em Minas Gerais, mais de cinqüenta localidades que possuíram irmandades de São

4� Cf. Daniel, �0:��; ��:�. 44 DELUMEAU, Jean. O que sobrou do Paraíso? São Paulo: Cia. das Letras, �00�. p. �47.4� Apud. Ibidem. p. �47. (grifo nosso). 46 Apud. Ibidem. p. ��0. 47 Na hierarquia celeste os anjos foram agrupados em nove ordens, a saber: Serafins, Querubins, Tronos, Potestades, Virtudes, Dominações, Principados, Arcanjos e Anjos. A terminação “El”, que em semita significa Deus, indica a ordem dos Arcanjos, como Uriel, Rafael, Zaquiel etc.

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Miguel48. Já o historiador Caio Cesar Boschi afirmou que as irmandades de São Miguel e Almas representavam �0,9% das devoções mineiras, perdendo somente para as do Santíssimo Sacramento e as de Nossa Senhora do Rosário49. Essa devo-ção importou-se da metrópole, como observa Flávio Gonçalves: “Outro tanto aconteceu em relação ao Arcanjo São Miguel, cujo culto, bastante antigo no âmbi-to oficial do país, se alargou por reflexo de devoções dos finais da Idade Média e mesmo por interferência do rei D. Manuel...”�0.

Nesta pintura mineira, a iconografia de São Miguel tem pouco sentido escato-lógico, ou seja, ele não luta contra o dragão (Apocalipse) e tão pouco pesa as al-mas. Como porta-estandarte sua postura é mais triunfante. Seu estandarte demons-tra a causa em que milita – a devoção à Santíssima Trindade. Apesar de ligeiras modificações, a pintura em Minas é fiel a seu modelo de origem.

Conclusão

As comparações em si, como num “jogo da memória”, são infrutíferas. Deve-se atentar para os questionamentos que elas propõem. As pequenas modificações que os pintores executam nas iconografias, partindo de uma gravura, podem assi-nalar mudanças nos gostos e contingências de determinadas sociedades. Um exem-plo: Adão na pintura de Rafael Sanzio, não possui folha de parreira tapando o sexo, diferentemente do que se vê na gravura e no painel azulejar. Este pequeno elemen-to permite perceber que também era possível ao gravador implementar modifica-ções a partir de seu modelo. O detalhe da folha de parreira aponta, e aqui está a questão da importância comparativa, para o tipo de tratamento que passou a ser dado à nudez nas obras religiosas posteriores ao Concilio de Trento, quando o corpo nu voltou a ser visto com receio. Outro exemplo da ação do pintor diante do modelo gravado é o que Manoel da Costa Ataíde fez ao pintar a cena da morte de Abraão (Igreja de São Francisco – Ouro Preto). O pintor acrescentou em baixo da cama do patriarca uma escarradeira, fazendo com que a representação se tornasse mais próxima ao expectador na medida em que a aproximava do cotidiano dos indivíduos na época.

Não é grande surpresa perceber entre pinturas de nossas igrejas cópias de ar-tistas consagrados como Peter Paul Rubens, Annibale Carracci ou mesmo Rafael Sanzio, provas da crença católica espalhada pelo mundo. No processo de circula-

48 CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Portada da Capela de São Miguel e a Veneração às almas do Purgatório, Vila Rica – Brasil (século XVIII). In: SCHUMM, Petra (ed.) Barrocos y Moder-nos. Frankfurt/Madrid: Vervuert/Iberoamericana, �998. p. ���. 49 BOSCHI, Caio Cesar. Os Leigos e o Poder – Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ed. Ática, �986. p.�87.�0 GONÇALVES, Flavio. Breve Ensaio Sobre a Iconografia da Pintura Religiosa em Portugal. Lisboa: �97�. p. ��.

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ção de idéias e práticas religiosas, as gravuras cumpriram um papel fundamental como modelos legitimados aos artistas que atuaram no espaço luso-brasileiro. Apontar a assimilação desses modelos é reconhecer um aspecto da mundialização em constante processo na monarquia católica e a complexidade que pode envolver a categorização de estilos artísticos. Através do uso de gravuras, amalgamando modelos de diferentes tradições pictóricas, as obras que foram concebidas no espa-ço luso-brasileiro nestas condições teriam como característica a assimilação de vários temas, desenhos e estilos. São obras que reúnem, por exemplo, temática barroca, desenho renascentista, e moldura rococó.

Expulsão do Paraíso. Afresco de Rafael Sanzio. Loggia do Vaticano (Roma).

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Expulsão do Paraíso. Painel azulejar anônimo. Claustro do Convento de Santo Antônio (Recife – PE).

Expulsão do Paraíso. Gravura em metal de M. Demarne. Histoire Sacrée de la Providence et de La Conduite De Dieu Sur les Hommes Depuis le commencement du Monde Jusqu’aux Temps préds dans l’Apocalypse.

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Expulsão do Paraíso – Anjo (detalhe). Painel azulejar anônimo. Claustro do Con-vento de Santo Antônio (Recife – PE).