Espaço e Teatralidade na minissérie hoje e dia de maria

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Espaço e Teatralidade naMinissérie “Hoje é Dia deMaria”*Sylvia Nemer**

RESUMO: A relação entre cultura popular, teatro e expressãoaudiovisual é o tema do presente texto, interessado em discutira questão do uso do espaço teatral na minissérie “Hoje é dia deMaria”, obra profundamente marcada, segundo termos de PaulZumthor, por uma “intenção de teatro” (ZUMTHOR, 2007).

RÉSUMÉ: Les rapports entre culture populaire, théâtre etexpression audiovisuel sont la thématique du présent texte, oùon discute la question de l’espace théâtral dans la minisérietélevisée brésilienne “Aujourd’hui c’est un jour de Marie”, ouevreprofondement ancrée, selon les termes de Paul Zumthor parun “souci de théâtre”, une intentioin théâtrale (ZUMTHOR,2007).

ABSTRACT: The relationship between popular culture, theaterand audiovisual expression is the theme of this text, interestedin discussing the question of theatrical space using in theminiseries “Hoje é dia de Maria “, a work deeply marked,following Paul ZUMTHOR terms, by an “intention of theater”(ZUMTHOR, 2007).

Na vinheta de abertura da minissérie vê-se umpalco com uma cortina se abrindo e em seguida aimagem completa de um teatro de marionetes ondefiguras do artesanato nordestino se movimentamnum espaço composto por elementos do cotidiano,da paisagem e da cultura sertaneja. Na segundatemporada o mesmo palco se apresenta, porém suasfiguras remetem ao ambiente da cidade grande comseus personagens, seus edifícios, seu teatro devariedades, feitos de pano, metal e papelão. Emborasituadas em ambientes diferentes, tanto a primeiraquanto a segunda temporada da minissérie, nos fazpenetrar na história pela via do imaginário, dafantasia; o palco, como indica a vinheta de abertura,é o seu elemento central.

A vinheta é uma moldura da obra que buscarepetir, no campo diegético, a idéia de teatropresente na cena de abertura. Há um diálogo entre

a sugestão inicial e o enredo, que se desenrola pormeio de um tipo de montagem em que cada plano,lembrando o teatro de variedades, é uma espéciede atração à parte. Nesse aspecto, o espaço teveum papel fundamental.

Filmada no palco da terceira edição do Rockin Rio, a estrutura circular do espaço ocupado pelaprodução da minissérie repercutiu no esquemacircular da história contada, a de uma menina quesai de casa e após uma longa jornada acabaretornando ao seu lugar de origem, mas igualmenteno modo fragmentado de contá-la, associado aoprincípio das “atrações”. Cobrindo a parede internado círculo, um painel de 360° pintado à mãorepresenta as paisagens pelas quais Maria passa,como o bosque e o sertão. Cada cenário representaum momento da narrativa cuja estruturafragmentada lembra a dos espetáculos popularesnos quais predomina o princípio das “atrações”. Autilização de um cenário giratório foi, nesse caso,fundamental, possibilitando o estabelecimento denexos entre o “espaço cenográfico”, o “espaçodramático” e o “espaço fílmico”.

Levada ao ar pela Rede Globo em duas fasesno ano de 2005, a primeira com 8 capítulos emjaneiro e a segunda com 5 capítulos em outubro, aminissérie é uma adaptação da obra de CarlosAlberto Soffredini, que se inspirou nas fábulascoletadas por Silvio Romero, Câmara Cascudo eMário de Andrade para compor o enredo da história,

* O presente artigo é parte de uma pesquisa mais ampla realizada no

acervo de literatura de cordel da Fundação Casa de Rui Barbosa entre

2006 e 2008 com bolsa concedida pelo convênio FAPERJ/ FCRB.

** Pesquisadora da FAPERJ, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de

Janeiro, Brasil

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programada inicialmente para ser um especialcomemorativo dos 30 anos da Globo.

O projeto, que não chegou a ser concretizadona ocasião, foi retomado, anos mais tarde, por LuizFernando Carvalho que sem poder contar com aparceria de Soffredini, morto em 2001, recorreuao dramaturgo Carlos Alberto Abreu que o ajudoua desenvolver a versão apresentada em 2005 parao aniversário de 40 anos da emissora.

A minissérie, seguindo a linha do trabalhodesenvolvido por Soffredini, recorre ao repertóriodas tradições orais do Nordeste para compor ahistória de Maria (Carolina Oliveira), uma meninaque após fugir da casa do pai (Osmar Prado) paraescapar dos maus tratos da madrasta (FernandaMontenegro) se vê perdida no mundo, defrontadaa surpresas, perigos e obstáculos.

Inseparável da chavinha dada, antes de morrer,por sua mãe (Juliana Carneiro da Cunha), Mariapercorre um longo caminho; em busca das “franjasdo mar” ela atravessa o “país do sol a pino” ondese depara com os mais variados tipos deexperiência: a fome, sofrida por Zé Cangaia (GeroCamilo) que, diante das privações, se vê obrigadoa vender sua sombra ao diabo; a ganânciaencarnada pelos executivos (Charles Fricks eLeandro Castilho) espancadores de cadáveres; aexploração vivida pela menina carvoeira (LauraLobo) e pelas outras crianças trabalhadoras nasminas de carvão.

Todas essas experiências lhe deixam marcasprofundas, porém as figuras que as correspondemdesaparecem da mesma forma que haviamaparecido. A única que vai lhe acompanhar aolongo de toda a trajetória é o diabo Asmodeu(Stênio Garcia) que tentando desviá-la do seucaminho acaba roubando-lhe a infância. Mariaadulta (Letícia Sabatella) não desiste, no entanto,de sua busca. Encorajada pelos saltimbancosQuirino (Daniel de Oliveira) e Rosa (InêsPeixoto), que com sua trupe ambulante levamalegria aos pequenos vilarejos por onde passam,ela segue em frente contando com o apoio dosnovos amigos, com o amparo de Nossa Senhora

da Conceição (Juliana Carneiro da Cunha), antigaaliada nos momentos de aflição, e com a proteçãodo pássaro misterioso que a acompanha desde oinício da jornada e que acaba tornando-se seuAmado (Rodrigo Santoro).

O amor pelo pássaro, que durante a noite semetamorfoseia em homem, é a última experiênciavivida por Maria que depois de libertar seu Amadodo cativeiro, retorna a condição de criança. A partirdaí ela reinicia o caminho de volta reencontrandoas mesmas figuras pelas quais havia passadoanteriormente e chegando, finalmente, ao pontode partida, a sua casa, onde vê seu pai, sua mãe eseus irmãos trabalhando na roça normalmente,como se nada tivesse acontecido.

A jornada de Maria é uma história que costura,através das experiências vividas pela menina (emseu sonho), fragmentos de várias outras histórias,de histórias antigas pertencentes ao repertório dastradições orais do país.

Representando arquétipos do imagináriobrasileiro e universal, os personagens da minissériefuncionam como elos de ligação entre o passado eo presente, entre o mundo rural e a cidade grande,entre as antigas tradições (registradas pelosfolcloristas entre o final do século XIX e o iníciodo século XX) e a cultura contemporânea. Foi comesse propósito, de estabelecer uma ponte entre osdois mundos, que os personagens (com outrasroupagens) retornaram na segunda temporada daminissérie.

Ambientada na cidade grande, a segundatemporada colocou em cena o mesmo elenco quehavia atuado na primeira temporada. Os atores(com exceção de Carolina Oliveira, que continuouinterpretando a mesma Maria que haviainterpretado na primeira temporada) encarnarampersonagens diferentes, porém com os mesmostraços arquetípicos dos vividos anteriormente.Stênio Garcia, por exemplo, retornou comoAsmodeu Cartola, o inescrupuloso proprietário doteatro. Osmar Prado reapareceu na pele do Dr.Copélius, o generoso dono da loja de brinquedos.Letícia Sabatella voltou como Rosicler, a dançarina

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que despertou uma louca e impossível paixão nosonhador Dom Chico Chicote, vivido por RodrigoSantoro. Através desses novos personagens, atrajetória de Maria é re-encenada, desta vez numambiente urbano, que, por sua vez, é perpassadopelas mesmas referências presentes narepresentação anterior voltada para o mundo rural.

Com base no quadro, até aqui, delineado,julgamos oportuno, antes de darmos continuidadeà reflexão, definir o quadro conceitual que norteiaa análise proposta.

Os três principais conceitos empregados sereferem à questão do ESPAÇO: “espaço cênico”(correspondente ao local de realização dasfilmagens e seus elementos cenográficos); “espaçodramático” (referente ao enredo e aos recursos derepresentação utilizados para desenvolvê-lo);“espaço fílmico” (operações de câmera, processosde edição, etc). Os dois primeiros foram pensadosa partir da definição de Patrice Pavis (2007 p 132-136). O terceiro foi extraído da obra de AndréGardies (1993).

No que diz respeito à articulação entre os trêsníveis de espaço – cênico, dramático e fílmico –outras noções serão ressaltadas. A primeira se refereà questão do deslocamento, à jornada dapersonagem principal cuja caminhada, informandoa construção do espaço, pode ser associada aomodo de composição das cenas de perseguição emfilmes de ação ou suspense nas quais o fluxonarrativo está condicionado a uma descontinuidadeespacial: “Quando você tem de seguir a trajetóriade uma ação através de vários espaços, começa ater a idéia de que cada plano é fragmento de umespaço ficcional maior; o espaço total daperseguição.” (GUNNING, 1994, p. 118).

A segunda noção diz respeito aos obstáculosencontrados pela personagem na realização de seupercurso. Em relação a isso o caso de Maria, naminissérie analisada, e de Fabiano, no filme “VidasSecas” (1963) de Nelson Pereira dos Santos, seequivalem. Nos dois casos os obstáculos fazemparte do enredo, da evolução da história na qual odeslocamento espacial equivale às mudanças no

enredo e ao estado da personagem cujo caminharse realiza (GARDIES, 1993, p. 78).

A terceira noção se liga mais diretamente àcenografia e à atividade de recepção, ou seja, àcapacidade do espectador preencher mentalmenteos dados que não são passados materialmente pelofilme. Uma posição em torno dessa questão foi dadapor André Gardies em sua análise do filme “Lesalaire de la peur” (1953) de Georges-HenriClouzot. Nesse filme, a relação entre a realidadelatino-americana e a representação dessa realidadeé sugerida através de um cenário que evocadeterminados objetos que seriam próprios doambiente representado. Dessa forma o diretorapontou para um ponto comum a todos paíseslatino-americanos sem a necessidade de se referirespecificamente a nenhum:

“O burro como meio de transporte, a calçadanão asfaltada e deteriorada, as roupas das pessoasna rua me dizem da pobreza do país. Um conjuntode traços me envia para o significado ‘pobreza’.Do mesmo modo outros signos têm por significadocomum o calor úmido: transpiração dospersonagens, proteção contra o sol etc.”(GARDIES, op.cit., p. 72, trad. da autora).

Em relação à questão da TEATRALIDADEserá nossa referência conceitual o verbete dePatrice Pavis, segundo o qual: “teatralizar umacontecimento ou texto é interpretar cenicamenteusando cenas e atores para construir a situação. Oelemento visual da cena e a colocação em situaçãodos discursos são as marcas da teatralização”(PAVIS, 2007, p. 374).

Esta definição é complementada pelaobservação de Paul Zumthor que, citando JosetteFéral, fala de uma “intenção de teatro”:

A teatralidade parece ter surgido do saber doespectador, desde que ele foi informado daintenção de teatro em sua direção. Este sabermodificou seu olhar, forçando-o a ver o espetacularlá onde só havia até então o acontecimento. Eletransformou em ficção aquilo que parecia ressaltardo cotidiano, ele semiotizou o espaço, deslocou ossignos que ele então pode ler diferentemente... A

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teatralidade aparece aqui como estando do ladodo performer e de sua intenção firmada de teatromas uma intenção cujo segredo o espectador devepartilhar. (FÉRAL, apud ZUMTHOR, 2007, p. 41)

Sobre a noção de ATRAÇÕES,recorreremos ao estudo de Tom Gunning sobreo cinema das origens. Referindo-se a esse cinema,o autor comenta: “os filmes eram breves, umshow de filmes era uma série de atrações curtase não a criação de um todo ficcional”. Alinguagem das atrações é abandonada com aprogressiva adoção pelo cinema de umencadeamento narrativo. No entanto (como seobserva em Méliès, por exemplo) “havia filmesusando a combinação de narração e atração”(GUNNING, 1994, p. 115-117).

Nos filmes de Georges Méliès, como observouSusan Sontag, há uma profunda relação entre oteatro e o cinema. A autora chama atenção parauma possível equivalência entre a montagem teatrale o processo de montagem dos filmes daquelediretor, cujo resultado, revelado num tipo deespetáculo denominado de “atrações” destacariao “artifício” sobre a forma realista de representação(SONTAG, 1987, p. 108).

A esse respeito são expressivas as experiênciasde Eisenstein e de Maiakóvski. Nos dois casos aexperiência com o universo das “atrações”, comas técnicas do teatro popular, transfere-se da práticateatral, onde atuaram inicialmente os dois diretores,para o cinema. (RIPELLINO, 1971).

Definidos os conceitos, levantaremos algunspontos relativos ao modo de construção dos trêsníveis de espaço (o “espaço cênico”, o “espaçodramático” e o “espaço fílmico”) na minissérieestudada. Nossa preocupação é compreender comoestes “espaços” se articulam, ao mesmo tempo emque dialogam com as instâncias inspiradoras dareferida obra (o teatro popular e o repertório dastradições orais).

Um dos aspectos relativos a tal articulação dizrespeito à evolução da história de Maria e aoavanço da personagem no espaço, em suas duasjornadas: a primeira em que, depois de fugir de casa

e de vagar perdida a procura do mar, ela reencontrasua família; a segunda em que, depois de encontraro mar e de ser engolida por um monstro, ela se vêsozinha na cidade grande e procura o caminho devolta para casa.

Em “Hoje é dia de Maria” a ênfase recai sobreo fantástico, o maravilhoso, o extraordinário. Aquias coordenadas de espaço tempo foram abolidas.Maria empreende uma longa jornada, encontrainúmeras pessoas, vive diversas experiências, perdea infância, torna-se adulta, conhece o amor,sofrimentos, perdas, volta a ser criança, atravessadiversos tempos e lugares, sem, contudo, sedeslocar no tempo ou no espaço. Própria daexperiência do sonho, em que no fim tudo volta aser como era antes, a trajetória de Mariadesenvolve-se de uma maneira circular. Pode-se, aesse respeito, pensar nas narrativas da tradição oralque acabam com todos os problemas resolvidos eo mundo voltando à sua antiga ordem[1].

A presença de um narrador (na voz de LauraCardoso), repetindo em off a mesma históriamostrada no campo visual pelos diálogos e açõesdos personagens, reforça essa idéia, ou seja, de quehá uma estrutura lendária (circular) presidindo acomposição da minissérie. Essa idéia é retomadana segunda jornada quando vemos no final doúltimo episódio que toda a história não passara deum delírio da menina que, doente em sua cama, vêa história contada por sua avó (Laura Cardoso)materializar-se em imagens, as mesmas que vemospassar na tela e que, no fim das contas, constituemo enredo da minissérie, o enredo que acom-panhamos ao longo dos cinco capítulos.

Jornada iniciática, a história de Maria sedesenvolve no espaço que atua como elemento deobstáculo ou de favorecimento à personagem(GARDIES, op.cit., p 78). Não se trata de umasimples ocupação do espaço cênico (normalmenteconcebido apenas como o local onde a trama sedesenvolve), mas de um tratamento metafórico doespaço, ou seja, da tentativa de reproduzir noespaço cênico a idéia de busca que perpassa oespaço dramático.

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Há, portanto, uma proposta clara dearticulação entre forma e conteúdo, entre a estéticada minissérie e o seu enredo, que se traduz, entreoutros aspectos, pela estrutura circular do palco epelas sucessivas mudanças de cenário quereproduzem visualmente os diferentes estágios datrama, segundo observação de Lia Renha,responsável pela direção de arte da obra em pauta:

O caminho de Maria, que é o caminho da vidade todos que escolhem seus propósitos, vai pelomundo; não fica trancafiado de forma cartesiana.Quando vemos uma paisagem, a enxergamos em360º. Quando se entra dentro desse domo, não seestá dentro de um mundo recriado. Eu nãoconseguiria contar essa história como eu sinto forade um círculo; não vemos o mundo com quinas.(RENHA, 2005, p. 36-37)

Os dramas vividos pela heroína acompanham,como salientou Lia Renha, o seu deslocamento embusca das “franjas do mar”. Essa busca, iniciadaapós a fuga de casa, será recortada pela figura dodemônio Asmodeu com quem Maria irá se depararinúmeras vezes ao longo de seu percurso. Sempreajudada por alguma alma boa que encontra pelocaminho, Maria consegue avançar e se manter firmeem sua busca, apesar das tentativas de Asmodeude desviá-la de seu objetivo.

Cada vivência de Maria, cada figura que elaconhece ao longo de sua trajetória, representa umaaventura à parte, um quadro com relativaautonomia em relação aos demais que formam otodo da narrativa. Como no cinema de GeorgesMéliès vê-se aqui uma proposta de unidade emmeio a uma estrutura fragmentada na qual cadaatração visa captar, por meio da surpresa, do susto,do riso, a atenção máxima do espectador(GUNNING, 1994). Trata-se, no caso, de um tipode dramaturgia inteiramente diferente da quecostuma caracterizar a programação ficcional datelevisão brasileira.

A composição e a montagem dos planosreforçam essa concepção estética, de quadros, deatrações, muito comum no cinema de GeorgeMéliès e nas expressões populares tradicionais de

grande influência na obra do diretor do chamado“cinema das origens”[2]. A técnica (operações dacâmera, montagem) transpõe para a tela estruturasnarrativas próprias do primeiro cinema, evocandoo universo da cultura popular[3] por meio dalinguagem das atrações. Desse modo, a“apropriação”[4] das tradições se processa nãocomo “citação”[5] (como é comum na televisão enão raro no cinema), mas em termos “dialógicos”[6](não excluindo aí o diálogo com a tradição dasimagens em movimento).

Fugindo ao encadeamento narrativotradicional, rompendo com as noçõesconvencionais de tempo e espaço, “Hoje é dia deMaria”, por meio de uma concepção cenográficaincomum nos produtos televisivos, dos maismodernos recursos tecnológicos e deprocedimentos típicos da linguagem audiovisual,como movimentos de câmera e operações demontagem, dialoga com as manifestações da culturaoral tradicional que operam segundo uma lógicanão linear, como observou Paulo Vieira. Referindo-se à presença de romances, xácaras, vilanicos deinspiração marítima na peça “Viva a NauCatarineta”, de Altimar Pimentel, o autorcomenta:

Somente a simplicidade destas fontes deorigem popular faz compreender – e aceitar, semmaiores exigências quanto à construção da fábula– a passagem de uma ação à outra, da taverna ànavegação, da navegação ao assalto à fortaleza deonde se liberta a Saloia, daí à tempestade, sem quehaja momentos de crescimento da ação, deestabelecimentos de pontos de ruptura queconduzam à circunstância seguinte. (VIEIRA,2000, p. 170)

A “mediação”[7] do teatro, que ajuda apromover a idéia de circularidade e de fragmentaçãonarrativa, se faz também presente na concepçãodramatúrgica. Através das técnicas, principalmente,do teatro popular, “Hoje é dia de Maria” dialogacom processos narrativos característicos dasmanifestações orais tradicionais, baseadas,fundamentalmente, nos gestos e na voz que na

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minissérie receberam um tratamentoparticularizado como se observa no making off daobra onde, nas etapas de preparação dos atores,verifica-se a preocupação do diretor com asdimensões gestual e vocal. Elemento fundamentalda trama, a música (com Villa Lobos e Pixinguinhadividindo a trilha sonora com maracatus, frevos ecirandas), na maior parte das vezes, é entoada pelospróprios personagens em substituição aos diálogos,dentro de uma linha de representação fortementeteatralizada.

Apesar das inúmeras referências às tradições(romances, mitos, lendas, fábulas cantigas) e aoteatro popular (de variedades, de bonecos, demarionetes, circo), a relação da obra com essasexpressões não é de mera transposição deelementos de um universo para o outro. Trata-se, ao contrário, da busca de uma linguagem dearticulação entre expressões orais e audiovisuais,feita através da música, do gestual, do uso demarionetes, do figurino, da maquiagem, dailuminação, do cenário e do recurso a acervostécnicos próprios ao meio audiovisual comdestaque para a técnica de montagem de atraçõescaracterística do cinema das origens. Essesdiferentes níveis de articulação não apenasapontam para possibilidades estéticas novas nomeio audiovisual (contrapondo-se ao realismo,principalmente, televisivo) como tambémpropõem formas alternativas de abordagem dacultura popular pelas artes da representação nasquais prevalece, quase sempre, a opção pelotípico, pelo característico, em detrimento datécnica:

No que se refere à percepção de acervostécnicos, talvez devêssemos suspender oencantamento aflorado pela visão de umanatureza característica, e, então, indagar por umsistema de códigos tão singulares quantolongamente elaborados. E, acredito, será atravésdo cuidadoso exercício de compreensão erecuperação destes códigos, e através de suaprecisa reelaboração em métodos e técnicasadequadas à arte da cena, que um teatro popular

pode vir a se articular de maneira mais efetiva,isto é, como expressão artística criadora eautônoma, e não como instância redutora deuniversos culturais diversos. (RABETTI, 2000,p. 7 e 8)

A observação de Beti Rabetti a respeito doteatro popular (“como expressão artística criadorae autônoma”) serve para pensarmos a obra aquianalisada em sua relação “de diferença e dedistância” com a cultura popular o que, por suavez, pressupõe a capacidade de articular“variâncias e invariâncias, que garantem apermanência de um núcleo matricial fixo dedeterminadas produções arcaicas, ao mesmotempo que possibilitam um constante processo deatualização, para adequação a transformaçõeshistóricas mais amplas”. (RABETTI, op.cit., p 18)

[1] A noção de “circularidade”, apresentadapor Bakhtin em seu estudo sobre a obra de Rabelais,envolve uma relação com o tempo que está na baseda cultura popular, das expressões do riso, dogrotesco: “A sucessão das estações, a semeadura,a concepção, a morte e o crescimento são oscomponentes dessa vida produtora. A noçãoimplícita do tempo contida nessas antiqüíssimasimagens é a noção de tempo cíclico da vida naturale biológica” (BAKHTIN, 1999, p. 22)

[2] Nos filmes de Méliès os vínculos com asatrações circenses e teatrais, talvez se expliquempela experiência prévia do diretor nessas áreas.Também no caso de Soffredini, Abreu e Carvalhoa atividade teatral é concomitante à experiênciados autores nos meios audiovisuais. Além disso,os três expressam, em várias de suas obras, fortesvínculos com a cultura popular tradicional que é,em última análise, um campo onde as atraçõescostumam se fazer mais presentes.

[3] A noção de cultura popular adotada napresente análise parte das observações de GerdBornheim que recusa a visão dicotômica promovidapor determinados segmentos intelectuais emrelação à chamada “cultura popular” cujas posturas(positiva, face às tradições do mundo rural,

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consideradas como elevadas e autênticas, enegativa, face às manifestações culturais dagrande cidade, vistas pelo prisma damassificação) revelam, segundo ele, uma totalfalta de atenção às metamorfoses do públicocontemporâneo. O autor, que defende umaposição menos idealista da cultura populartradicional, apresenta duas atitudes em relaçãoao uso do folclore no teatro: “Uma coisa é ofolclore em estado bruto, que se repete tal comosurgiu no passado e que, bem ou mal, continuase mantendo vivo. E outra bem diferente estánaquilo que o teatro pode fazer com o folclore,servindo-se dele como ponto de partida para ainstauração de um teatro popular.” (BORNHEIM, 1983, p. 31-32)

[4] Sobre a noção de “apropriação” RogerChartier comenta: “Ela evita, inicialmente,identificar os diferentes níveis culturais a partirapenas da descrição dos objetos que lhes seriamconsiderados próprios”. Nessa passagem o autor,ao se referir às formas de apropriação deelementos de uma tradição cultural por outrapertencente a um campo diferente, recusa a idéiade homogeneidade que quase sempre leva a umavisão hierárquica da produção cultural(CHARTIER, 2004, p. 12)

[5] Uma análise do processo de “citação”de elementos da cultura popular por parte dear tistas eruditos foi feita por ElizabethTravassos. A autora comenta sobre osprocedimentos adotados por representantes damúsica nacionalista do século XIX (comoAlberto Nepomuceno que inseriu um maxixe noPrelúdio da ópera “O garatuja” e por CarlosGomes que costumava introduzir temasameríndios em óperas com roupagens do belcanto

italiano) que recorriam à cultura popular emtermos de citação. Esse recurso foi criticado porMário de Andrade, defensor de um tratamentodas tradições populares cuja ênfase deveria recair

não sobre o conteúdo das mesmas mas sobre assuas formas, suas estruturas (associadas àessência da expressão) que deveriam serprocessadas para dar corpo à nova músicanacionalista (TRAVASSOS, 2000, p. 36-38)

[6] O conceito de “dialogismo” de Bakhtinfoi analisado por Robert Stam que chama atençãopara o aspecto relacional do discurso, ou seja,para a “relação entre o texto e seus outros”. Naminissérie “Hoje é dia de Maria”, não se observauma relação direta entre o contexto e o textoque o informa; observa-se, entre estes, o queRobert Stam denominou de dialogismo culturale textual (STAM, 1992, p. 72-78)

[7] O conceito de “mediação” foiintroduzido nos estudos de Comunicação eCultura por Jesús-Martin Barbero que buscou pormeio deste pensar os trânsitos entre o populartradicional, o erudito e o popular massivoultrapassando, assim, as fronteiras normalmenteestabelecidas entre as respectivas “áreas”. Dessemodo a fórmula de McLuhan, de que o meio é amensagem, passa por uma revisão, apontandopara um processo no qual ganha corpo a noçãode mediações que pressupõe os intercâmbiosentre as mais variadas formas de comunicação emanifestação cultural (BARBERO, 1997).

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