Espaços e Paisagens - Antiguidade Clássica e Heranças Contemporâneas - Vol. 1 - Línguas e...

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Espaços e Paisagens Antiguidade Clássica e Heranças Contemporâneas Vol. 1 Línguas e Literaturas. Grécia e Roma Francisco de Oliveira, Cláudia Teixeira, Paula Barata Dias (Coords.) ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ESTUDOS CLÁSSICOS

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Três volumes com o título geral Espaços e Paisagens. Antiguidade Clássica e Heranças Contemporâneas e os subtítulos correspondentes:— Vol. 1 Línguas e Literaturas. Grécia e Roma— Vol. 2 Línguas e Literaturas. Idade Média. Renascimento. Recepção— Vol. 3 História e ArqueologiaNo seu conjunto, tais contributos, incluindo os de jovens investigadores, ilustram uma grande diversidade de perspectivas, uma enorme riqueza e variedade de temas, da filologia grega e latina e da tradição clássica à literatura comparada, da arte e do urbanismo à arqueologia e à economia, da política à filosofia, e desde a Antiguidade até aos nossos dias.TítuloEspaços e Paisagens. Antiguidade Clássica e Heranças ContemporâneasVol. 1. Línguas e Literaturas. Grécia e RomaEditorAssociação Portuguesa de Estudos Clássicos - APECCentro de Estudos Clássicos e Humanísticoshttps://bdigital.sib.uc.pt/jspui/handle/123456789/19

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  • Espaos e PaisagensAntiguidade Clssica e Heranas ContemporneasVol. 1 Lnguas e Literaturas. Grcia e Roma

    Francisco de Oliveira, Cludia Teixeira, Paula Barata Dias (Coords.)

    AssociAo PortuguesAde estudos clssicos

  • Espaos e PaisagensAntiguidade Clssica e Heranas Contemporneas

    VII Congresso da Associao Portuguesa de Estudos Clssicosvora, 10-12 de Abril de 2008

  • Espaos e PaisagensAntiguidade Clssica e Heranas ContemporneasVol. 1 Lnguas e Literaturas. Grcia e Roma

    Francisco de Oliveira, Cludia Teixeira,Paula Barata Dias (Coords.)

    Com o apoio de

  • TtuloEspaos e Paisagens. Antiguidade Clssica e Heranas ContemporneasVol. 1. Lnguas e Literaturas. Grcia e Roma

    EditorAssociao Portuguesa de Estudos Clssicos - APECCentro de Estudos Clssicos e Humansticos

    Edio1/Maro de 2009

    Concepo GrficaRodolfo Lopes

    Comercializao da verso impressaAssociao Portuguesa de Estudos Clssicos - APECInstituto de Estudos Clssicos3004-530 CoimbraTelefone: 239859981e-mail: [email protected]

    ISBN: 978-972-98142-3-5Depsito Legal: 291931/09

    Associao Portuguesa de Estudos Clssicos - APEC Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de CoimbraPublicado com apoio da Fundao para a Cincia e Tecnologia - Programa POCI 2010 Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis

    Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduo total ou parcial por qualquer meio, em papel ou em edio electrnica, sem autorizao expressa dos titulares dos direitos. desde j excepcionada a utilizao em circuitos acadmicos fechados para apoio a leccionao ou extenso cultural por via de e-learning.

  • Nota de apreseNtao

    A Associao Portuguesa de Estudos Clssicos - APEC optou h alguns anos pela deslocalizao do seu congresso peridico, o qual, de Coimbra, j peregrinou por Viseu, Aveiro, Faro, Braga, Lisboa e vora.

    Foi exactamente nesta belssima cidade que se realizou o VII Congresso Internacional da APEC, nos dias 10-12 de Abril de 2008.

    Nesse encontro, uma enorme pliade de participantes desenvolveu um exerccio de intensa interdisciplinaridade volta do tema Espaos e paisagens. Antiguidade Clssica e heranas contemporneas. Foi de cerca de uma centena o nmero de conferencistas presentes, um tero dos quais vindos de pases estrangeiros, e para eles que vai um primeiro agradecimento, em especial para os que aceitaram o desafio da publicao das suas comunicaes.

    O segundo agradecimento dirigido s entidades que assumiram a co-responsabilidade da organizao e da edio:

    o Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra, coordenado pela Professora Doutora Maria do Cu Zambujo Fialho;

    o Centro de Histria da Arte e de Investigao Artstica da Universidade de vora, dirigido pela Prof. Doutora Christine Zurbach;

    o Centro Interdisciplinar de Histria, Culturas e Sociedades da Universidade de vora, coordenado pela Prof. Doutora Mafalda Soares da Cunha;

    o Laboratrio de Arqueologia Pinho Monteiro da Universidade de vora, presidido pelo Prof. Doutor Jorge de Oliveira;

    o Departamento de Lingustica e Literaturas da Universidade de vora.

  • Os agradecimentos que endereamos a estas entidades so extensivos s prprias instituies acolhedoras, a Universidade de Coimbra e a Universidade de vora, e, nesta cidade, tambm ao Governo Civil de vora, Cmara Municipal de vora, ao Comando da Unidade de Apoio e ao Banco Millenium BCP, cujos responsveis mobilizaram toda a sua clarividncia e generosidade para garantir as melhores condies para a realizao deste evento cultural e cientfico.

    Em terceiro lugar, manifestamos a nossa viva gratido s entidades financiadoras, com particular relevo para o sempre solcito apoio da FCT Fundao para a Cincia e Tecnologia, da Fundao Calouste Gulbenkian e da Fundao Engenheiro Antnio de Almeida.

    Mas seria injusto no valorizar tambm a colaborao da Dr Carla Braz, tanto no secretariado do congresso como na recolha do material, dos senhores Dr. Rodolfo Lopes e Lus Miguel Barata Dias, na preparao da edio digital, e do Doutor Delfim Leo, pelo interesse em promover a divulgao atravs de Classica Digitalia.

    Estamos certos de que tais apoios, colaboraes, financiamentos, patrocnios e responsveis se sentiro compensados pela qualidade dos escritos dados ao prelo, organizados em trs volumes com o ttulo geral Espaos e Paisagens. Antiguidade Clssica e Heranas Contemporneas e os subttulos correspondentes:

    vol. 1 Lnguas e Literaturas. Grcia e Romavol. 2 Lnguas e Literaturas. Idade Mdia. Renascimento. Recepovol. 3 Histria e Arqueologia

    No seu conjunto, tais contributos, incluindo os de jovens investigadores, ilustram uma grande diversidade de perspectivas, uma enorme riqueza e variedade de temas, da filologia grega e latina e da tradio clssica literatura comparada, da arte e do urbanismo arqueologia e economia, da poltica filosofia, e desde a Antiguidade at aos nossos dias.

    Por acrscimo, ficam assim tambm nobilitados os estudos clssicos, humansticos, histricos, filosficos e literrios em Portugal, com a Associao Portuguesa de Estudos Clssicos APEC a cumprir a misso cultural e cientfica consagrada nos seus estatutos, em especial no espao da lusofonia e da Unio Europeia.

  • Comisso Cientfica Ana Cardoso de MatosArnaldo Esprito SantoCludia TeixeiraCristina PimentelFilipe Themudo BarataFrancisco de OliveiraHermnia VilarJorge de OliveiraJos Alberto Gomes MachadoLeonor RochaManuel PatrocnioMafalda Soares da CunhaMaria de Ftima Sousa e SilvaMaria do Cu FialhoRicardo SantosTeresa Santos

    Coordenao do VolumeFrancisco de Oliveira

    Cludia TeixeiraPaula Barata Dias

    Comisso OrganizadoraAndr CarneiroArmando MartinsCarla Braz (secretariado)Clara OliveiraCludia TeixeiraFrancisco de OliveiraJorge de OliveiraLeonor RochaManuel PatrocnioPaula Barata DiasRicardo SantosValentina Castro

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    NDICE

    Vol. 1 lnguas e literaturas. grcia e roma

    I - Antiguidade Grega

    Espaos do Grego e espaos do outro nas Suplicantes de squilo 15 Carlos A. Martins de Jesus

    Paisagens marinhas no Hiplito de Eurpides 23 Maria do Cu Fialho

    Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Hracles de Eurpides 29 Sofia Frade

    Nas moradas das ninfas: o cenrio do drama satrico 35 Tereza Virgnia Ribeiro Barbosa

    A gora de Atenas. Corao de uma urbe cosmopolita 43 Maria de Ftima Silva

    O espao rural ateniense no teatro aristofnico 49 Mrcia Cristina Lacerda Ribeiro

    Espaos concebidos pela mente 59 Susana Marques Pereira

    Quando P e as Ninfas convertiam os simples mortais 65 Ana Seia Carvalho

    Turismo e patrimnio na Antiguidade Clssica: o texto atribudo a Flonde Bizncio sobre as Sete Maravilhas 73

    Lusa de Nazar Ferreira

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    II - Antiguidade Romana

    El espacio de la mujer en la medicina romana 83 Jos Pablo Barragn NietoEspacios para la curacin: la domus en la tradicin hipocrtico-galnica 89 M Carmen Fernndez TijeroEspacios literarios para la botnica: un jardn de plantas medicinales 97 Alejandro Garca Gonzlez

    A configurao do espao potico: concepes sobre Metricologia Latina 105 Joo Batista Toledo PradoEntre vida pblica e luxuria privada. A propsito das villae de Luculo 113 Manuel TrsterA Siclia e a Cilcia na vida de Ccero 121 Virgnia Soares PereiraPndaro e Horcio face a face 131 Maria Mafalda de Oliveira Viana

    Virglio e a inveno da paisagem simblica 139 Lus M. G. Cerqueira

    Um repasto na Arcdia: as Buclicas de Virglio 147 Ins de Ornellas e CastroA poetizao do espao nas Buclicas de Virglio: simbologia da vida

    humana, entre a euforia e a disforia 155 Antnio Moniz

    Mitos de fundao de cidades e a representao do espao urbano nas Metamorphoses de Ovdio 169

    Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras

    O mundo natural e o espao do humano na poesia trgica de Sneca: Troades e Thyestes 175

    Mariana Horta e Costa Matias

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    Os espaos das Troades de Sneca 183 Paulo Srgio Ferreira

    Salomo parodiado: elementos judaicos na paisagem pompeiana 191 Nuno Simes Rodrigues

    O Anfiteatro de Csar: a nica obra que a Fama h-de celebrar 199 Joana Mestre Costa

    De rio lamacento a corrente cristalina: a transformao do espao e da paisagem em Silvas 4.3 207

    Ana Maria dos Santos Lio

    Paisaje fsico y paisaje humano de la Germania segn Csar y Tcito 215 Aurora Lpez

    A ekphrasis suetoniana da Domus Aurea 223 Jos Lus Lopes Brando

    Villae y otros espacios de recreo en las Vidas de los Doce Csares de Suetonio 231 M. J. Prez Ibez

    Roma nas Vidas Paralelas de Plutarco 237 Joaquim Pinheiro

    O espao britnico e a paisagem no Agricola de Tcito 247 Ana Isabel Fonseca

    Espaos da morte na historiografia de Tcito 255 Maria Cristina Pimentel

    O espao no conto de Eros e Psique 265 Maria Leonor Santa Brbara

    La relacin del hombre con la naturaleza y el medio ambiente 273 Paolo Fedeli

    ndice de palavras-chave 283

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    Vol. 2 lnguas e literaturas. idade mdia. renascimento. recepo

    III - Antiguidade Tardia e Idade Mdia

    Interpelaes entre espao e paisagem: uma leitura das Confisses de Agostinho 305

    Teresa Santos

    Espao e fronteiras do mundo romano na Antiguidade Tardia. Continuidade e rupturas em relao Europa Actual 313

    Paula Barata Dias

    El paisaje en la Peregrinatio Egeriae 327 Ana Isabel Martn Ferreira

    IV - Humanismo

    Espao e alegoria na poesia pica portuguesa seiscentista 337 Manuel dos Santos Rodrigues

    A mundividncia de Diogo Pires luz da colectnea potica dos Xenia 345 Antnio Manuel Lopes Andrade

    Espao literrio feminino. A obra de Maria de Mesquita Pimentel 353 Antnia Fialho Conde

    Paisaje, clima y carcter en De humana physiognomonia de Giovan Battista della Porta 361

    Miguel ngel Gonzlez Manjarrs

    Espaos para o dever e o lazer num modelo de educao humanstica (1599) 369 Margarida Miranda

    Utopa, espacios soados y Mito Clsico en la Tragicomedia de Los Jardines y Los Campos Sabeos de Feliciana Enrquez de Guzmn 377

    Cristina de la Rosa Cubo

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    Paisagem do crcere. O topos literrio numa epopeia neolatina 385 Carlota Miranda Urbano

    As minas de ouro das Amricas, novos espaos para a imaginao cientfica 395 Alexandra de Brito Mariano

    V - Temas de Recepo

    O espao fsico como alegoria da tragdia humana. Concepo do espao dramtico na Trilogia de dipo de J. de Castro Osrio 409

    lia Rosa C. Rodrigues

    Releituras de um passado grego: a tragdia Oedipus Tyrannos de Sfocles 417 Rogrio Jos de Souza

    Uma velha frica: Herdoto e o ensino de Histria da frica 425 Jos Maria Gomes de Souza Neto

    Elaborao da luz no espao entre a igreja visvel e invisvel no pensamentode Kant. As razes platnicas e utpicas do modelo original 431

    Giovanni Panno

    Descobrir com jovens: espaos e paisagens do Truculentus de Plauto 439 Adriano Milho Cordeiro

    Reflexos do espao de exlio ovidiano no Livro do Desassossego 451 Rodolfo Pais Nunes Lopes

    Ambincia clssica em invectivas s ditaduras militar e salazarista 459 Carlos Morais

    O mundo clssico nas Vidas Apcrifas de Amadeu Lopes Sabino:alguns paralelos imaginados 467

    Glaucianne Silva dos Santos Heuer

    Observao filosfica e contemplao potica das paisagens em Lucrcio 475 Andrs Pocia

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    O mito de Orpheus. A plasticidade do mito nas vozes de Virglio, Vincius e Camus 491

    Elaine C. Prado dos Santos

    Espao e paisagem em Doze Naus de Manuel Alegre 497 Jos Ribeiro Ferreira

    ndice de palavras-chave 503

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    I VOLUME

    Lnguas e LiteraturasAntiguidade Grega

    Antiguidade Romana

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    I - AntIguIdAde gregA

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    ESPAOS DO GREGO E ESPAOS DO OUTRO NAS SuPLiCANTES DE SQUILO

    Carlos A. Martins de Jesusuniversidade de Coimbra

    Bolseiro de doutoramento pela [email protected]

    AbstractSuppliants, mistakenly taken for a long time as the most ancient Aeschylus play preserved,

    focuses on the Greek/Barbaric dichotomy in light of the genre issue. Throughout the tragedy, several physical spaces, whether being only mentioned or dramatically presented, echo the first stated controversy: from the Nile margins to the Argos sanctuary and its statues of gods, and even going through the spaces referred by chorus by narrating its own escape, this communication studies how all these places not only in a geographical and physical perspective, but also in a cultural and political one work to draw near both Greek and Oriental civilizations. In fact, these two poles become gradually less different, even equally human, through the supplication, which is made, both legally and culturally, in a Hellenic way.

    Therefore, Suppliants offers both the reader and modern criticism a useful and fruitful example of how the concept of Otherness is challenged, allowing the identification of the Oriental Other with the Greek Self.Keywords: Aeschylus, barbarians, dramatic space, Egypt, Greek tragedy, journey.Palavras-chave: brbaros, Egipto, espao dramtico, squilo, tragdia grega, viagem.

    Durante muito tempo se pensou que Suplicantes fosse a mais antiga das tragdias conservadas de squilo e, como tal, o mais antigo dos dramas ocidentais que nos chegou.1 Datava-se a pea entre os anos 493-490 a.C., at que, em 1952, a publicao do Papiro 2256.1 (n.3) da coleco de Oxirrinco2 levou ao abandono desta ideia e a considerar que a pea teria

    1 Baseavam-se os estudiosos num conjunto de caractersticas de sabor arcaizante: a ausncia de prlogo, a predominncia das partes cantadas, dos monlogos e do coro (um ainda bastante precrio uso do segundo actor), a aco simples e a mtrica.

    2 Consistia esse texto numa didasclia que identificava, entre os concorrentes no festival, a presena de Sfocles, o que implicava uma datao posterior a 468 a.C., data da estreia oficial do tragedigrafo. Mas o texto do papiro podia mesmo dar-nos a datao exacta de Suplicantes (463 a.C.), se na primeira linha fosse aceite a leitura epi Ar[chemidou, pois que Arquemnides teria sido arconte entre 464 e 463 a.C

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    sido apresentada por volta do ano de 463 a.C.3As cinquenta filhas de Dnao, pretendidas para casar pelos cinquenta primos,

    filhos de Egipto, fogem do Nilo, onde habitam, para pedir asilo poltico e religioso em Argos. Perante o rei dessa terra suplicam por proteco, apresentando como argumento maior a descendncia comum de Io, num passado mitolgico ainda mais remoto. Por onde passara, na sua fuga s investidas do boeiro Argos, Io fundara povos e cidades que da sua passagem receberiam o nome. Estamos portanto perante um mito fundacional, de viagem e dispora. A unir ambos os tempos, o de Io e o das Danaides, est a splica, formalmente concebida, com vista a pedir asilo e direitos de habitao (metoikia).

    Em Suplicantes, trs so os espaos que concorrem para a construo do drama: dois deles so, acima de tudo, civilizacionais: o Egipto e Argos, este ltimo sindoque do imprio grego4; um terceiro o mar faz a transio entre os dois primeiros, ou seja, une pela viagem que nele se opera duas culturas que vo encontrar-se, estranhar-se e confrontar-se, para por fim se assimilarem e passarem a coabitar. Vista a questo pelo monculo da oposio Grego/Brbaro, a tragdia vai assentar na paradoxal representao disfrica do elemento brbaro por si prprio, uma auto-representao negativa do eu que elogia, em simultneo, os espaos, a religio e a cultura do outro grego. As cinquenta Danaides que formam o coro, detentoras de uma identidade egpcia que renunciam, aludem s margens de fina areia do Nilo (vv. 3-4), designando o Egipto ora como Terra de Zeus (vv. 4-5), ora como Terra Negra (aerias, v. 75)5. Se a primeira designao visa reforar o apelo divindade e se explica porquanto nesse lugar existiria o orculo de mon, que os gregos tinham identificado com Zeus (cf. Pind. P. 4.16; Hdt. 2.42.5; Plut., isis 354c), j a segunda parece aludir, a acreditar no escoliasta, a uma terra coberta de nvoas, ambiente prprio de uma zona costeira que amanhece ou mesmo do Hades, espao de morte.

    Uma vez mais revela squilo o seu conhecimento profundo sobre o Egipto quando, adiante (vv. 556-564), o coro narra a chegada de Io a essa terra:

    [s investidas] do aguilho desse boieiro alado chega ao prspero recinto de Zeus que a todos nutre, aos prados que as neves alimentam, nos quais irrompe a fria de Tfon, e s aguas do Nilo, jamais atingidas pela doena, desvairada por penas indignas e sofrimentos causados por um aguilho, qual bacante possuda por Hera.

    O espao brbaro descrito, em termos religiosos, por assimilao ao grego, como tambm se avana j com a correcta explicao para as cheias do Nilo, ou

    3 Para a exposio de toda esta polmica de datao veja-se a E. C. Yorke 1954: 10-11, E. A. Wolf 1958: 119-139, H. Lloyd-Jones 1964: 356-374 e idem 1991: 42-56.

    4 As fronteiras do domnio poltico de Pelasgo (vv. 254-273) coincidem, no essencial, com os limites do imprio grego ao tempo de squilo, pelo que j H. Bacon 1961: 47 e n. 39 concluiu a inteno de apresentar um precedente mitolgico para a distribuio do poder continental grego.

    5 Traduzimos por Terra Negra, pois que os prprios antigos egpcios sua ptria se referiam com o termo Kemt, que teria essa mesma traduo.

    Carlos A. Martins de Jesus

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    seja, o derretimento das neves da Etipia.6 Mas aflora tambm um verdadeiro topos da descrio da terra do Nilo: a fertilidade das suas guas, que a todos nutrem, mas que as Danaides vo recusar, quando em confronto com o arauto egpcio que vem com inteno de as arrastar para o barco (vv. 854-857). A frmula alphesiboion hydor (v. 855), cujo epteto, na pica, designava os jovens de grande valor, por quem se ofereciam muitos bois (e.g. il. 18.593), permite compreender como a recusa da fertilidade e da fecundidade das margens do Nilo dramaticamente significativa da falta trgica destas mulheres, que h-de tambm reclamar castigo: a negao consciente do seu papel csmico de procriao, uma hybris que ofende Eros e Afrodite. por isso que, perto do final, expressam o desejo de no mais louvar com hinos as desembocaduras do Nilo (vv. 1024-1025), o que nos remete para o paralelo j estabelecido por H. Bacon 1961: 54-55 entre as referncias corais de Suplicantes ao Nilo e os hinos egpcios de louvor a Hapy, deus desse rio. Num texto do Imprio Mdio7, podemos ler algo muito prximo:

    Dador de alimento, fazedor de abundncia,que cria tudo o que bom!Senhor de bno, doce de odor,gracioso quando vem.Que faz pasto para os rebanhos,d sacrifcio a cada deus.[...]Conquistador dos Dois Pases,enche os armazns,faz abarrotar os celeiros,d sustento aos pobres.

    6 Cf. Hdt. 2.19-31. squilo parece tambm aludir ao tema no frg. 300 Nauck2. Para a discusso desta problemtica na Antiguidade vide A. Deman 1978: 115-126.

    7 Para a traduo completa deste texto, a sua transmisso e atribuio, vide J. N. Carreira 2005: 125-130.

    Espaos do Grego e espaos do outro nas SuplicanteS de squilo

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    Toda esta fertilidade marcou tambm presena na iconografia. No tomaremos em conta os relevos egpcios que ilustram Hapy, mas no podemos deixar de referir Plnio-o-Velho (Nat. 36.58) quando alude a uma esttua egpcia na qual dezasseis crianas circundam o deus, representando os 16 cbitos de altura (aproximadamente 7,20 m) que, anualmente, o rio transboradava, assim garantindo a fertilidade do pas. Uma srie de grupos escultricos do perodo alexandrino, dos quais se encontrou um exemplar em Roma, nos incios do sc. XVI, t-la-iam imitado. O que estamos a ver uma cpia em mrmore de Volpato, de estilo neoclssico, da segunda metade do sc. XVIII, guardada no Museu do Vaticano.

    O tema da fertilidade e da prosperidade tambm central para o esboo potico do macro-espao grego, de que a cidadela de Argos sindoque perfeita. Se j as guas cristalinas da terra que recebe estas estrangeiras (v. 23) tendem a assemelh-la ao espao egpcio, para elas local de morte, e se tambm no final da tragdia afirmam preferir cantar os rios de muitos afluentes com a sua gua pacificadora e as suas frteis correntes (v. 1028), com isso denunciando a presena, em espao grego, da fertilidade e fecundidade em fuga da qual se evadiram do Egipto, contudo na longa ode de agraciamento a Argos8 (vv. 630-709) que esse paralelo tragicamente significativo mais evidente, em especial na terceira antstofre (vv. 688-697):

    E que Zeus, em verdade, torne frtil esta terra em frutos de todas as estaes; sejam fecundos os rebanhos que pascem nos campos, e que toda a espcie de benesses lhes venha dos deuses. Que os poetas entoem, junto dos altares, msicas inspiradas pelas musas, e que de lbios sem mcula brote uma melodia amante da lira.

    Ho-de ter concretizao estes votos e numa destas mulheres surgir o desejo de ser fecunda e obedecer aos preceitos de Eros: Hipermenestra. Para a inevitabilidade do casamento, do desejo e da procriao, leis csmicas a que se no foge, tornar a tragdia a adverti-las o coro de criadas9 (vv. 1043-1051):

    Para estas fugitivas receio, antes do tempo, cruas penas e guerras de sangue. Mas porque fizeram eles boa viagem, seguindo-nos a toda a velocidade? O que est fixado pelo destino h-de por

    8 squilo traa o quadro tradicional e comum ao tempo de uma cidade em paz (eirene), onde abunda a riqueza (ploutos). Se a mais antiga descrio de tal cenrio a encontramos no momento ekfrstico do Escudo de Aquiles (il. 18.491-508), tambm Baqulides (frg. 4 Maehler) pintou por palavras um quadro semelhante. Recordemos ainda Aristfanes, que dedicou duas comdias a esta relao entre paz (Eirene) e riqueza (Ploutos). J no sc. IV, teve grande fama o grupo escultrico Eirene, da autoria de Cefisdoto, que por volta de 370 a.C. estaria exposto na gora de Atenas.

    9 Todos os crticos concordam que, a partir do verso 1034, a pea pe em cena dois coros, defensor cada um deles, em alternncia, de duas posies contrrias. D. A. Hester 1987: 9-18, baseando-se no facto de todos os verbos deste final estarem no singular, defendeu a possibilidade de apenas Hipermnestra proclamar as virtudes do casamento, fazendo deste modo o elo para a tragdia seguinte, concluso a nosso ver forada e desnecessria.

    Carlos A. Martins de Jesus

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    fora cumprir-se. insupervel o grande pensamento de Zeus, insondvel. Como muitas outras mulheres anteriores a ti, o teu fim h-de ser o casamento.

    No as livrou a mudana de pas da sombra de fecundidade que as cobria na terra do Nilo. E a sua recusa, que tambm ofensa aos deuses, h-de resultar num simblico castigo, a acreditar no mito: o interminvel enchimento com gua de vasilhas furadas, como que alegricas, as ltimas, de ventres que recusaram a gestao.

    A separar ambos os macro-espaos, o egpcio e o grego, est o mar, espao de viagem e conhecimento para as Danaides e seus primos. Mais que uma vez, o tragedigrafo recorre alegoria da nau do estado para representar um povo metonimicamente representado no seu chefe e na sua descendncia que busca, por mar, a sua salvao e identidade ancestral. Por isso se refere o coro a si prprio como um bando martimo (vv. 1-2) que atravessou o largo oceano numa morada feita de lenho, protectora do assalto das ondas10 (vv. 135-136), como dos barcos que transportaram os filhos de Egipto dito serem escuros (vv. 743-744), reforando simbolicamente a sua barbrie. Numa hdria ateniense de figuras vermelhas, datada de c. 460-450 a.C. e atribuda ao Pintor de Nauscaa (LiMC, s.v. Danaos 2), podemos ver o desembarque das Danaides em Argos; o pai est ainda no barco e entrega s filhas os presentes de hospitalidade que devem oferecer a Pelasgo, a mesma tarefa que parecem cumprir numa outra hdria de igual estilo e provenincia, datada do mesmo perodo e atribuda ao Pintor da Centauromaquia do Louvre (LiMC, s.v. Pelasgos 5).

    Um ltimo olhar nos merece o mais concreto espao de Suplicantes: o espao cnico do altar comum da cidadela de Argos. Local de confronto entre duas civilizaes, espao religioso que no pode consentir a ameaa de derramamento de sangue que lhe feita pelo coro (v. 465) uma mancha que, a concretizar-se, seria extensvel a toda a cidade, de que esse altar metonmia , ele em primeiro lugar identificado por Dnao (v. 190). J antes, porm, o coro havia aludido proteco garantida por um recinto religioso desta natureza,11 mas sobretudo a partir do v. 212 que, comandadas por seu pai, as Danaides vo dirigindo splicas a Zeus e s diferentes divindades helnicas ali representadas, cujos atributos mostram conhecer bem. Hlios, a aceitar a lio do manuscrito, referido como a ave de Zeus (Zenos ornin, v. 212), o que permite associ-lo ao deus-pssaro filho da divindade egpcia Amon R; Apolo, como o prprio coro recorda (v. 214), conhece bem o desterro; Posidon protegeu-as j na viagem por mar at Argos; e Hermes, por fim, tem para a sua

    10 Segundo Apol. 2.22 e Hyg., Fab. 227, Atena ter instrudo Dnao a construir um barco com duas filas de remadores, num total de cinquenta lugares, para se escaparem, ele e as filhas, do Egipto.

    11 Outros passos de tragdia comprovam a proteco que um altar representava a um fugitivo: e.g. Eur. Heracl. 260, Supp. 267-268.

    Espaos do Grego e espaos do outro nas SuplicanteS de squilo

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    casta o sentido de libertao, porquanto foi ele o matador de Argos12, tendo com isso libertado Io das suas penas.

    A se concretizam tambm a splica e uma srie de imagens expressivas da situao vivida. Referiremos apenas duas. A primeira, de resto recorrente na pea, a alegoria da nau do estado, directamente revelada pelo coro quando convida Pelasgo a respeitar a proa da cidade (prymnan poleos) rodeada de grinaldas (v. 345). Como no barco que as transportou, tambm neste altar est em jogo o futuro de toda uma cidade, dependente da deciso de Pelasgo, timoneiro da embarcao.13 A segunda, mais simples mas no menos rica, parte do mesmo espao para identificar os filhos de Egipto com corvos que rapinam as oferendas consagradas aos altares dos deuses (vv. 750-752), presentes de hospitalidade que no so respeitados.

    Visualmente, neste altar que se conciliam todos os elementos que enchem a pea de cor e exotismo. O texto permite-nos visualizar os ramos de suplicante entrelaados com fios de l (vv. 21-22), ora em mos do coro, ora depositados aos ps das esttuas que rodeariam a orquestra, ou o estranhamento das vestes de linho e dos vus de Sdon das Danaides (vv. 120-121). Mas tambm a iconografia, de que damos apenas trs exemplos do sc. IV a.C. (LiMC, s.v. Danaides 2; Pelasgos 8 e 9),14 parece ter apreciado estas cenas de splica num altar onde so visveis vrias divindades.

    A acreditar em Hertodo (2. 156) e Pausnias (8.37.6), squilo seria um bom conhecedor do Egipto, da sua religio e dos seus costumes, dados que habilmente usou no tratamento de um mito de viagem e dispora como , desde as errncias de Io, o mito das Danaides, onde os espaos ganham uma mltipla dimenso potico-dramtica, religiosa e poltica, contribuindo tambm eles, no limite, para a neutralizao da velha e j ento desconstruda oposio Grego / Brbaro.

    Bibliografia

    Edies, tradues, esclios e comentrios

    J. N. Carreira (2005), Literatura do Antigo Egipto. Lisboa.D. Page (1976), Scholia in Aeschylum. Pars i. Leipzig.A. P. Quintela Sottomayor (1968), squilo. As Suplicantes. Coimbra.M. L. West (1990), Aeschylus. Tragoediae cum incerti poetae Prometheo. Leipzig.

    12 A expresso surge j em il. 2.103 e Od. 1.3813 O dilema de Pelasgo, para muitos a personagem verdadeiramente trgica de Suplicantes,

    deu aso a uma vasta bibliografia. A este respeito vide P. Burian, N. C. Durham 1974: 5-14 e F. Ferrari 1974: 375-385.

    14 Respectivamente: kratr de volutas da Colecco do Vaticano, do terceiro quartel do sc. IV a.C.; kratr aplio atribudo ao Pintor de Dario, c. 350-325 a.C.; kratr aplio atribudo ao Pintor de Bari, c. 350-325 a.C.

    Carlos A. Martins de Jesus

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    Estudos citados

    H. Bacon (1961), Barbarians in Greek Tragedy. New Haven.P. Burian, N. C. Durham (1974), Pelasgus and politics in Aeschylus Danaid

    trilogy, Wienen Studien 8, 5-14.A. Deman (1978), Eschyle et les crues du Nil, in J. Bingen (et alii, eds.), Le

    Monde Grec. Hommages Claire Praux. Bruxelles, 115-126.D. A. Hester (1987), A chorus of one Danaid, Antichthon 21, 9-18.H. Lloyd-Jones (1964), The Supplices of Aeschylus: the new date and old

    problems, L Antiquit Classique 33. 2, 356-374.____________ (1991), The Suppliants of Aeschylus, in Segal, E., Oxford

    Readings in Greek Tragedy. Oxford, 42-56.E. A. Wolf (1958), The date of Aeschylus Danaid tetralogy, Eranos 56. 3-4,

    119-139.E. C. Yorke (1954), The date of the Supplices of Aeschylus, Classical Revue

    4, 10-11.

    Espaos do Grego e espaos do outro nas SuplicanteS de squilo

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    PAISAGENS MARINHAS NO HiPLiTO DE EURPIDES

    Maria do Cu Fialhouniversidade de Coimbra

    AbstractThe main sites in the play are essentially three: the city, the countryside visited by Hippolytus

    and his companions, and the sea. Divine action and its meaning intertwines with these three spaces of action. At first sight it appears as a domain of oppositions, but in fact it is a domain of complementarity. The aim of this paper is to understand this intertwining process and its importance to the reading of this tragedy.Keywords: Aphrodite, Artemis, Hippolytus, Poseidon, sea, wild nature. Palavras-chave: Afrodite, rtemis, Eurpides, Hiplito, mar, natureza selvagem, Posidon.

    A ciso cartesiana entre sujeito, como entidade que pensa, e objecto, como uma alteridade susceptvel de ser pensada, observada e dominada por esse mesmo pensamento abriu um caminho que, como sabido, nos conduziu at perspectiva tecnolgica e tecnocrtica que veio crescendo at contemporaneidade. O homem de hoje apercebe-se, finalmente, dos limites e dos perigos desta dinmica levada s ltimas consequncias. O pretenso domnio da Natureza despoletou consequncias catastrficas que atestam a sua dimenso indominvel.

    Tal ciso afecta o modo como o homem se v no mundo e como v o mundo. Assim, o termo paisagem, que nos chegou do francs e que tem uma composio anloga ao do ingls landscape ou do alemo Landschaft, ainda que assente na noo de terra a que o homem est iniludivelmente ligado, tomou, cada vez mais, a carga de uma alteridade que os olhos humanos apreciam, e em que repousam, que os artistas observam para recriar, que a mo humana altera. Paisagem como quadro da natureza, onde o homem pode, tambm, entrar para seu repouso e fruio, opunha-se, implicitamente, a espao urbano. relativamente recente a noo de paisagem urbana, ainda assim com a carga mista de valorizao ou desvalorizao do espectculo do espao construdo pelo homem e de espao de interveno do homem, em funo de uma melhor habitabilidade.

    Este ltimo cambiante revela j a abertura da contemporaneidade para uma simbiose necessria, em nome do equilbrio ecolgico, entre espao de habitao humano e natureza como mundo habitvel a que o homem pertence como parte integrante a que tem de respeitar. Esta nova perspectiva nasceu da conscincia de ameaa e conduz, curiosamente, sem que muitos disso se

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    apercebam, noo implcita do mundo como oikos conjunto, de que o homem tambm faz parte uma vivncia determinante nas matrizes gregas da nossa civilizao.

    Assim, aquilo que, ao homem moderno, pode soar como descrio de paisagem na poesia grega, como escapismo, na tragdia grega, documentado na descrio de paisagens ideais, harmnicas e longnquas, no o , na realidade. Chora a terra a que o homem pertence, com o seu espao urbano, a natureza, stricto sensu, trabalhada ou no, , enfim, extenso de pertena mtua passvel de coincidir com a ptria-plis. sagrada, a partir de ncleos determinados, temenoi, altares ou templos que condensam e assinalam materialmente a presena divina e assumem a fora energtica de a difundir. Deuses, homens, animais, vegetao coexistem num ritmo harmnico, de acordo com a natureza especfica e o mbito de poder e aco da cada um.

    As descries poticas trazem, pois, uma fortssima carga semntica, um sentido profundo que serve de horizonte ao sentido da aco humana enquanto sintnica ou distnica com a natureza que a sua prpria natureza. H que entender assim, por exemplo, os dois mais famosos elogios poticos a Atenas, o estsimo III de Medeia e o estsimo I de dipo em Colono, entoados como voz da harmonia de uma terra que acolhe quem nela procura refgio, selado o pacto de acolhimento entre o representante de Atenas Egeu, na primeira das peas, Teseu na segunda e Medeia, na pea homnima, ou o velho dipo, na ltima tragdia de Sfocles.

    Em Hiplito as aluses ou descries da natureza primam pela ambiguidade. E essa ambiguidade levaria, certamente, o espectador do tempo ao cerne do sentido do mythos, proposto na dramatizao euripidiana. j Afrodite, no prlogo, quem d o tom (29-33): Antes de volver a Trezena [Fedra], tomada de amores por um amor ausente, mandou erguer, junto rocha de Palas, um templo a Cpris, visvel desta terra. Doravante se dir que a deusa tem a o seu assento por causa de Hiplito.

    O texto ambguo, j que o grego Hippolythoi epi (v. 32)1 pode ser indicativo de proximidade prximo de Hiplito ou de causalidade por causa de Hiplito. De facto, perto do temenos de Afrodite existia no sc. V, consoante testemunhos antigos, um monumento funerrio em honra do filho da Amazona. Virado a sul, o templo seria potencialmente visto em Trezena, para alm das guas do Golfo Sarnico2.

    1 A preposio epi, com regncia de dativo, d com maior frequncia o sentido de proximidade, no mesmo plano ou em plano superior. De facto, W. S. Barrett (paperback 1992), Euripides. Hippolytos. Ed. w. introd. and comm. Oxford, 5, [Barrett] faz referncia a dois espaos de culto a Hiplito, em que Afrodite tinha tambm lugar de venerao: um em Trezena, onde a deusa recebia culto como Aphrodite Kataskopia, segundo o testemunho de Pausnias, 2.32.3, outro em Atenas, com a presena de Aphrodite en Hippolytheioi ou epi Hippolytoi, testemunhado por uma inscrio de 423/422. Ainda assim, o eminente helenista defende, neste passo, o sentido causal (comm. ad 32-33). F. Loureno, na sua traduo, mantm o efeito da ambiguidade: por intermdio de Hiplito.

    2 Digo potencialmente dada a vasta extenso de guas que medeia entre a tica e a costa junto qual fica Trezena.

    Maria do Cu Fialho

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    As guas marinhas so elemento de Afrodite, bero de onde nasceu. A prpria Ama, no seu discurso sofstico a Fedra, sobre essa espcie de cosmogonia cpria, sublinha a presena de Afrodite nas ondas do mar (447-448). E a prpria Fedra, no seu famoso monlogo, invoca a soberana Cpris, marinha (415). Aparentemente, ao espao marinho, conotado com Afrodite, se oporia o espao da terra, para alm dos limites da urbe, intransposto pelo comum dos mortais que a terra trabalham ou que guiam os rebanhos: os prados virgens de onde Hiplito chega, no incio da pea, que ele frequenta, no que pensa ser um ostensivo e exclusivo convvio com a presena de rtemis, a deusa caadora (73 sqq.). Do seu espao existencial pensa ter arredado Afrodite, cultivando, assim, uma eterna e intemporal virgindade.

    O final da sua splica, no prlogo (possa eu chegar ao termo da corrida da vida do mesmo modo que a comecei, v. 87), indicia a sua firme vontade de se manter alheio ao curso normal da vida humana, da historicidade do cidado que cumpre o ritmo da existncia, funda ou continua casa, tem filhos. Hiplito pressupe que nada tem de aprender (hosois didakton meden, v. 79), numa pureza intacta e superior da sua sophrosyne onde s rtemis cabe: ou melhor, a sua concepo de rtemis3.

    Assim entende Hiplito o prprio mbito de exclusividade da deusa que venera. E, todavia, Fedra, no seu devaneio amoroso, anseia por se juntar a Hiplito nesse mesmo espao, qual caadora, depreende-se, unida presa (vv. 215-222). Nos prados de rtemis volitam as abelhas (v. 77), na sua incessante tarefa de fecundao. Como o volitar da abelha canta o Coro, no estsimo I (563-564), o envolvimento de Cpris em relao queles que atinge4. E atinge-os tambm, ainda que a pea o no refira, como o caador em perseguio da caa, actividade to querida a Hiplito, por o aproximar de rtemis. Os animais selvagens so pertena do espao de rtemis, todavia, ainda a poldra indomada susceptvel da submisso ao jugo, como a donzela da Eclia, ole, o ao poder de Afrodite (estsimo I).

    Esta ambiguidade, j notada por Segal5 e Zeitlin6, estende-se ao espao marinho e sua proximidade, a praia. Da costa norte do Golfo Sarnico, junto a Trezena, se avista o templo ateniense de Afrodite, no sop da Acrpole, no longe do monumento funerrio a Hiplito. Nessa mesma costa, a norte de

    3 Sobre esta dimenso da figura de Hiplito, a sua persistncia em se manter margem do curso da historicidade humana, num mundo idealizado, sem evoluo nem aprendizagem, veja-se F. Zeitlin: 1985: 66-67.

    4 Nota Barrett, comm. ad 563-564, que a imagem de Eurpides sublinha, essencialmente, a imprevisibilidade, no voo da abelha, do stio onde vai pousar: assim se refora a ideia de que Afrodite e Eros so imprevisveis na sua aco sobre os mortais.

    5 C. Segal (1965: 117-169) dedica todo o seu trabalho a esta rede de ambiguidades. Veja-se M. C. Fialho, (1996: 47) onde cito, alm do mais, a pertinente observao de Burkert: h, em rtemis e no seu cortejo, um erotismo latente. Por outro lado, sabemos que, do cortejo de Afrodite pelos bosques, fazem parte os grandes felinos selvagens. Ora, como nota M. P. Nilsson (1967: 488) h notcia da oferenda, por ocasio das festividades em honra de rtemis Ortia, de um grande queijo feito de leite de leoa deusa.

    6 Op. cit. 52-111.

    Paisagens marinhas no Hiplito de Eurpides

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    Trezena, tem rtemis um espao sagrado, nas guas salgadas da Lagoa, cantada pelo Coro no prodo (148-150), a senhora da Lagoa, conforme Fedra invoca rtemis Sarnica (228)7. Ou seja, a costa de que se avista o espao sagrado de Afrodite, associada a Hiplito, est sob o signo da proximidade do espao sagrado de rtemis, fundido com o das guas marinhas.

    Dictina, a deusa cretense, da terra natal de Fedra, portanto, invocada no prodo por um Coro que se interroga sobre a origem dos males de Fedra, , na religio grega, assimilada a rtemis. Tambm aquela protectora dos animais selvagens. Mas , todavia, em Creta, para alm disso, patrona dos pescadores daqueles que entram, assim, no elemento salgado de onde Afrodite nasceu. Nilsson aponta a derivao do nome da deusa cretense a partir de diktyon, rede: comum caa e pesca8.

    De Creta, espao de Dictina, trouxe o navio de velas brancas, atravs da onda do mar salgado a noiva para as npcias fatais, consoante o Coro o recorda no estsimo II, at ao porto de Munquia, sob a gide de rtemis o que evoca uma outra proximidade: a de um outro espao sagrado, tambm sob a gide de rtemis, de ritual de passagem da jovenzinha da infncia idade nbil: Bruron. Conclui Burkert: There is no wedding without Artemis: hers is the power to send and ward off dangers before and after this decisive turning-point in a girls life9. Ela a senhora dos partos, assimilada a Ilitia. No h rtemis sem Afrodite e da aco de Afrodite-Eros se gera mundo e novos seres, para a tutela de rtemis.

    Hiplito projecta, nos espaos que frequenta, a unilateralidade da sua viso de mundo. Mas os espaos falam de uma outra realidade mais rica e mais profunda, que a do universo humano e divino pautado pelo ritmo de uma lei universal da Natureza. Os espaos marinhos ilustram-no, com particular eloquncia, ainda que Hiplito frequente a sua proximidade, sem de tal se aperceber. Na praia treina os cavalos beira de rtemis, mas tambm de Afrodite na praia chora o seu exlio. A sua queda, fruto da vingana de Afrodite ou do que a deusa representa, dar-se-, metafrica e literalmente, na sequncia dos votos de Teseu, beira de ambas as deusas, no promontrio selvagem, sobranceiro ao mar. Posidon, deus do mar e deus do solo, o que abala a terra, o agente invocado para a sua destruio.

    Nas suas competncias, o deus alia a sua presena, quase como entidade unificadora, aos espaos terrestres mais marcados pela gide de rtemis aqueles em que Hiplito exercita os seus cavalos e aos espaos marinhos,

    7 Nilsson, op.cit. 492-493, nota que, no Peloponeso, rtemis e o seu culto andam tambm associados a fontes, pntanos e depresses de terreno ricos em gua. Quanto ao culto de rtemis Sarnia, com um bosque sagrado que lhe era dedicado, beira da lagoa salgada, na costa, junto a Trezena, refere o autor o testemunho de Pausnias 2.30.7. Cf. Barrett comm. ad 148-150. O mesmo Nilsson lembra a profuso de espaos sagrados dedicados a rtemis, Afrodite e s Ninfas na foz do rio Alfeu (rio que o Coro canta no estsimo I).

    8 Op. cit. 311. Sobre as equivalncias teolgicas de Dictina, Ilitia, Hcate, Cbele e rtemis, efectivas na religio grega e evocadas pelo Coro de Hiplito no prodo, veja-se M. C. Fialho 43-44 e a bibliografia a indicada.

    9 W. Burkert 1985: 151.

    Maria do Cu Fialho

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    onde rtemis est presente, na Lagoa do Golfo Sarnico, mas onde Afrodite tem o seu mbito de provenincia. O deus que abala a terra faz tremer os fundamentos desta e a carreira certa de Hiplito, para se elevar, como gigantesca onda marinha de maremoto, e se abater, sob a forma de um touro gigantesco, sobre o destino de Hiplito.

    O touro , em todas as iconografias e no imaginrio grego tambm, smbolo material de potncia viril, de fora natural de uma sexualidade violenta e incontrolvel. Nem Hiplito, na sua mestria de auriga virginal, que pretende concluir a sua corrida consoante a comeou, o pode evitar e fazer-lhe frente, a ele, Posidon, o deus que ensinou a domar os cavalos e a pr-lhes o freio, como canta o Coro do estsimo I de dipo em Colono. Nesse aspecto, o deus actua, efectivamente, como mestre da domesticao, num mbito que serve de fonte linguagem figurada da passagem da virgindade submisso amorosa: a donzela admetos, olhada na lrica ertica como objecto do desejo, tender a conhecer o jugo imposto pela fora de eros. Assim o refere o Coro em relao a ole, a poldra da Eclia, azyga lektron, , anandron, anymphon (545-547) logo subjugada por Hracles.

    Hiplito despenhar-se- do promontrio, para aquele espao sobre o mar, sobranceiro s guas de Afrodite e no desvinculado de rtemis. A sua corrida no pode, pois, terminar como comeou homem algum pode fazer coincidir princpio e termo. Lembrando Alcmon de Crotona (frg. 2B, DK), dizem que por este motivo que os homens morrem: por no poderem ligar o princpio com o fim. esse o preo da historicidade humana.

    No seu fim, rtemis o compensar de um modo que ao espectador pode parecer fraca recompensa concedida quele que to fielmente a venerou (ainda que da deusa tenha tido uma concepo empobrecida, fruto da projeco da sua prpria mundividncia e natureza): um culto ser institudo, que perpetuar a memria do jovem. As donzelas, antes de casar, cortaro madeixas do seu cabelo em sua honra e choraro a sua sorte. A grande compensao reside, afinal, na verdadeira integrao de Hiplito, ainda que post mortem, no grande ciclo da vida: ele ficar associado ao limiar da passagem do mbito de uma deusa para o de outra. E no h espao sagrado, em Trezena ou Atenas, que, consagrado a Hiplito, no tenha Afrodite por perto. A tenso entre as deusas continua mas essa tenso a prpria violncia da natureza, nas fases do seu ciclo vital. E tenso significa coexistncia de uma por dentro do reino da outra, no espao natural em que o homem se enraiza e que representa o seu mundo. Uma e outra se encaram e completam, frente a frente, de costa para costa no Golfo Sarnico, entre Trezena e Atenas.

    Bibliografia

    W. S. Barrett (paperback 1992), Euripides. Hippolytos. Ed. w. introd. and comm. Oxford.

    W. Burkert (trad. ingl.1985), Greek Religion Oxford.

    Paisagens marinhas no Hiplito de Eurpides

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    M. C. Fialho (1996), Afrodite e rtemis no Hiplito de Eurpides, Mthesis 5 33-51.

    F. Loureno (21996), Eurpides. Hiplito, trad. introd. notas. Lisboa.P. Nilsson (1967), Geschichte der griechischen Religion, Bd. I Mnchen.C. Segal (1965), The Tragedy of Hyppolytos: the Waters of the Ocean and the

    Untouched Meadow, HSCPh 70 117-169.F. Zeitlin (1985), The Power of Aphrodite: Eros and the Boundaries of

    the Self in the Hippolytus in P. Burian (ed.), Directions in Euripidean Criticism. A Collection of Essays. Durham 52-111.

    Maria do Cu Fialho

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    TEBAS: A CIDADE DE DIONISO O CASO DE HRACLES DE EURPIDES

    Sofia Fradeuniversidade de Lisboa

    [email protected]

    AbstractThe most recent studies about ancient Greek tragedy link the dionisiac to the patterns

    of tragic action and to its political references. In the extant Attic tragedy, Thebes is the most important city in the repetition of these patterns. Starting fom a reading of Euripides Heracles, this article analyses the repetition of these patterns and their resolution.Keywords: Dionysus, Heracles, Thebes, tragedy.Palavras-chave: Dioniso, Hracles, Tebas, tragdia.

    A relao entre a figura de Hracles e a cidade de Tebas enunciada no ttulo desta comunicao pode no parecer bvia partida. A ligao entre o maior heri do mundo grego e a cidade de dipo no , em termos mticos, necessria. No entanto, ao criar o seu Hracles, Eurpides opta por colocar a aco em Tebas. Para compreender esta opo , parece-me, fundamental compreender o papel de Tebas na tragdia do sculo V a.C..

    Em primeiro lugar fundamental clarificar que, quando nos referimos a Tebas na tragdia tica, no estamos a falar da cidade com uma realidade histrica que se encontra a pouco mais de 80 km de Atenas. Toda a nossa reflexo tem por base no a realidade fsica da cidade, mas a sua construo literria no palco do teatro de Dionso em Atenas no sc V. a.C. Em artigo relativamente recente, Froma Zeitlin defende que a imagem que Atenas constri de Tebas no palco trgico corresponde a uma inverso da imagem que tem de si mesma, uma espcie de negativo daquilo que idealiza de si1.

    Defende Zeitlin que, dos espaos mticos, Tebas o espao trgico de eleio. Por um lado a cidade de dipo, figura em torno da qual gira o ciclo mtico mais aproveitado na tragdia tica, por outro, toda a histria mtica da cidade profcua em material trgico: desde a fundao da cidade por Cadmo por meio da morte do drago de Ares2. A figura desta divindade, que representa o que de mais violento e menos racional tem a guerra, surge como um espectro sobre a cidade, por vezes tnue, por vezes palpvel: encontramo-la nos primeiros autctones da cidade, os Spartoi, que imediatamente se dilaceram,

    1 Zeitlin 1986: 116 ss.2 Zeitlin 1986: 101ss.

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    encontramo-la na figura da esfinge, em dipo que mata o pai e finalmente na guerra fratricida de teocles e Polinices.

    Alm disso, toda a histria da cidade implica um excessivo centramento em si mesma. a prpria terra que d luz os seus primeiros habitantes (como mais tarde ser a prpria me a dar luz os filhos do seu filho), e tendencialmente rejeita quem vem de fora, mesmo que outrora lhe tenha pertencido, como o caso de Dioniso e de Polinices, curiosamente esta excluso tem a nica excepo na figura de dipo, gerando a incluso excessiva do incesto. Assim, Tebas , na tragdia tica, o espao por excelncia do excesso, a cidade onde no h redeno, a cidade onde, depois da tragdia, ficam sobreviventes, mas nunca descendentes: Agave sobrevive a Penteu, tendo morto o seu nico filho, dipo sobrevive a teocles e Polinices, tendo-os levado morte com a sua maldio, Creonte sobrevive a Hmon tendo, com a sentena de morte de Antgona, levado morte o seu filho (em Eurpides, aps a morte do seu outro filho: Meneceu). Assim, Tebas, a cidade sem esperana, a cidade sem renovao, sem salvao.

    Tebas , pois, a cidade ideal para ser utilizada como anti-Atenas: o espao da tirania, por oposio ao espao da democracia, o espao do caos por oposio ao espao da ordem, o espao da excluso por oposio ao espao da incluso, uma vez que Atenas, quando surge em palco surge sempre como a cidade de redeno. a cidade de redeno de Orestes nas Eumnides, a cidade de redeno para dipo em dipo em Colono, a cidade de redeno para as mes argivas que vm suplicar os corpos dos seus filhos mortos em Tebas. Vez, aps vez, Atenas a cidade da salvao, da fuga do trgico, da esperana e da renovao. Tebas o espao da tirania e dos vcios tirnicos, Atenas o espao da democracia e da ordem.

    Fundamental para a percepo da importncia dos padres mticos de Tebas, so as posies recentemente defendidas por Richard Seaford. No contexto da questo do papel de Dioniso na tragdia tica, o autor defende que numa primeira fase a tragdia ter tido origem na representao dos ritos dionisiacos3. Defende, alis, que as Grandes Dionsias, ao contrrio da Antestrias e das Leneias, no incluem nenhum ritual de iniciao. Assim, o autor d como possvel explicao para o surgimento da tragdia tica como a conhecemos o desenvolvimento dos rituais de iniciao dionsiaca com todas as temticas que lhe pertencem4: o frenesim inspirado pela divindade e a morte fictcia do iniciado. Das temticas dionsiacas que se vo perdendo (para serem retomadas na conservadora pea de final de carreira de Eurpides: as Bacantes) ficam apenas os seus padres. Nos principais mitos dionsiacos o deus chega cidade e sendo rejeitado pelo tirano leva um membro da casa real a um frenezim bquico que o conduz destruio da sua prpria descendncia. Esta rejeio vista por Seaford como o paradigma da tenso okos plis, a passagem da tirania e da autocracia ao culto colectivo, ao culto dionsiaco em que todos so iguais e que

    3 Seaford 2006: 87ss.4 Seaford 2006: 87ss.

    Sofia Frade

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    constituir, pelos menos no espao mtico ateniense, um elemento fundamental da democracia5. Perdida a ligao directa entre Dioniso e a aco trgica, ficam estes padres de auto-destruio da casa real: o que encontramos, por exemplo, no ciclo de Agammnon e no ciclo de dipo. E Tebas , pelo exposto acima, o espao literrio preferencial para a repetio deste tipo de padres.

    Assim, a tragdia pe potencialmente em oposio os dois tipos de manifestao do deus: a manifestao catica e destrutiva, na tragdia, e a manifestao organizada e construtiva, no ritual das Grandes Dionsias. Mas no so s estes dois tipos de manifestao que so postos em causa, so tambm os contextos das suas manifestaes: a tirania por um lado, a democracia, por outro.

    Gostaria de reter da posio de Seaford a possibilidade de as foras dionisacas serem na tragdia intrinsecamente polticas: ou seja, foras que quando caticas conduzem destruio da casa real e quando organizadas em ritual conduzem unificao da plis, atravs do sentimento de comunidade gerado pelo prprio ritual.

    Uma das principais objeces a Seaford o facto de a oposio tirania -democracia no corresponder realidade histrica do sculo V ateniense6, uma vez que aquele regime poltico no constitua ameaa plis democrtica. Tal como quando falamos de Tebas nos referimos no ao espao fsico-histrico, mas ao espao literrio, tambm no que diz respeito tirania, no levaremos em conta a realidade histrico-poltica, mas a concepo mental que dela tinham os atenienses do sc. V7. Para isso, nada melhor que tomarmos em conta o testemunho de Plato.

    Lemos na Repblica: E assim , meu caro, que um homem se torna rigorosamente um tirano, quando, por natureza, ou por hbito, ou pelos dois motivos, se torna brio, apaixonado, louco [573c]. Plato associa tambm imagem do tirano aquele que se entrega aos desejos da sua parte animal e selvagem, pondo de lado a razo, como so: No hesita (...) em tentar unir-se prpria me, ou a qualquer homem, deus ou animal, em cometer qualquer assassnio, nem em se abster de alimento de espcie alguma (571a-d).8 A definio que encontramos aqui claramente o ideal que origina as vrias concretizaes de tirano que encontramos na tragdia tica. , alis, possvel vislumbrar a figura de dipo por detrs da definio platnica.

    Tebas a cidade de Dioniso, a cidade onde o deus se manifesta mais plenamente no que de pior e mais assustador tem em si, ao induzir essas caractersticas que Plato associa directamente imagem do tirano: brio, apaixonado, louco.

    Seaford defende ainda que provavelmente durante todo o sc. V, nas Grandes Dionisias era anunciado um prmio para quem capturasse e matasse

    5 Seaford 1996.6 Griffin 1998.7 Seaford 2000.8 Traduo portuguesa de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa, 1996.

    Tebas: a cidade de Dioniso. o caso de HracleS de Eurpides

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    um tirano. Exemplo claro de que a ameaa da tirania constitua pelo menos na mentalidade ateniense, uma ameaa real9.

    Voltemos, pois, pea em causa e vejamos como estes padres so desenvolvidos e como relevante que a aco se passe em Tebas. Nesta tragdia o autor coloca em cena dois modelos de tirano: Lico e Hracles.

    Lico o modelo do tirano soberbo, usurpador do poder, que se aproveita da ausncia do heri para controlar a cidade ameaando matar a esposa e os filhos de Hracles. Tebas, cidade da tirania por excelncia, apresentada no incio da pea como vtima de uma tirania ainda mais terrvel e cruel do que aquela a que est habituada.

    Hracles surge como um modelo de tirano mais comedido, de alguma forma semelhana de dipo: aquele que levado catstrofe por foras transcendentes e no pelo seu carcter prfido. Levado ao erro por Hera, o heri entra num frenesim bquico que o leva a matar a sua prpria descendncia. Ao acordar do transe, Hracles salvo do seu desespero pela ajuda de Teseu. O rei de Atenas surge como forma de redeno. Se no h qualquer esperana em Tebas, Atenas, pelo seu lado, oferece a salvao e o culto eterno ao heri.

    Reanalizemos a reelaborao do mito luz dos tpicos acima expostos. Encontramos a repetio dos padres dionisiacos defendidos por Seaford: o frenezim bquico que leva destruio de qualquer esperana da casa real (com a morte dos descendentes pelas mos do prprio pai) e inaugurao de um culto democrtico, o culto de Hracles institudo em Atenas.

    Voltemos agora questo da escolha da cidade de Tebas por Eurpides para esta pea. Tebas no por definio o lugar de Hracles, a sua associao com a cidade no necessria em termos mticos. Porm, a importncia de Tebas com os seus padres tirnicos de auto-destruio bastante trabalhada por Eurpides. Veja-se a importncia que lhes atribuda em Fencias e a forma como todos esses padres so sublinhados ao longo das odes corais10. Assim, a escolha de Tebas como palco da loucura de Hracles, penso, corresponde claramente utilizao de um tpico literrio com vasta tradio, que permite salientar ainda mais (por distanciamento na comparao) o papel de Atenas na aco. Em comparao com a cidade das sete portas e com todos os vcios que lhe esto associados, a cidade de Teseu surge ainda com maior esplendor. A sublinhar este facto encontramos um conjunto de paralelos entre o discurso de Teseu e alguns discursos de Pricles, conforme registados por Tucdides, como to bem salienta Bond no seu comentrio ao texto11. Teseu a imagem de Pricles, a sua Atenas a imagem da Atenas do sc. V, aquela que numa poltica to diferente da de Esparta, corre para socorrer os seus aliados ainda antes de eles pedirem ajuda, uma Atenas pro-activa e empenhada em redimir aqueles que necessitassem de redeno, aqueles que aceitassem o caminho de sada das trevas caticas da tirania para a luminosidade racional da democracia.

    9 Seaford 2006: 97.10 Cf. S. Frade (2006), As Odes Corais de Fencias: uma Visita Oficina Lrica de Eurpides.

    (Diss. Mestrado. Universidade Lisboa). 11 Cf. Bond 1988: 266n; 334n 1334n; cf. Th. 1.70.8; 2.41.1, 2.37.1; 2.40.4ss.

    Sofia Frade

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    assim que Atenas se v quando se olha ao espelho, assim que Eurpides no-la apresenta nesta pea.

    Assim, os rituais das Grandes Dionsias em geral, e a tragdia em particular, se, no sculo V, alguma coisa tm a ver com a divindade, no o teriam em relao com a faceta de fora motriz da natureza (presente no vinho e no erotismo), mas na fora motriz de uma comunidade de iguais entre si, na ideia do Liber, que liberta do jugo da tirania. Ao contrrio das Antestrias e das Leneias, as Grandes Dionisias so, no uma manifestao de agradecimento da fertilidade da terra, mas, pelo menos depois das reformas dos Pisstratos (se que existiram antes), um elogio da cidade de Atenas. No nos esqueamos que a tragdia se desenvolve no festival onde, durante o sculo V, Atenas vai receber o tributo dos aliados, vai pronunciar o discurso fnebre em honra dos seus heris de guerra, onde ver os rfos de guerra marchar, armados pela cidade, prontos para o combate. Mais do que um espao de reflexo sobre o que a terra produz, a tragdia o espao de reflexo sobre a melhor forma de governar a terra, a melhor imagem de plis, e certamente que para a Atenas do sculo V no havia outra plis como ela prpria.

    Ou seja, os padres dionsiacos na tragdia tica, a existirem, so essencialmente de carcter poltico. A tragdia o espao de demonstrao dos vcios da tirania e da excelncia da democracia (no sem, por vezes, crticas muito ferozes a esta mesma democracia).

    E a escolha da cidade de Tebas nesta pea permite sublinhar, por meio do recurso aos vrios tpicos literrios associados cidade, a diferena de Atenas, representada por Teseu, utilizando claramente essas tenses como forma de discurso poltico.

    Bibliografia

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    Tebas: a cidade de Dioniso. o caso de HracleS de Eurpides

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    NAS MORADAS DAS NINFASO CENRIO DO DRAMA SATRICO

    Tereza Virgnia Ribeiro Barbosa universidade Federal de Minas Gerais

    AbstractThis article intends to show the personification of space in a Sophocles satyr play whose

    finality is to provoke laugh. The same strategy is used in a Brazilian romance, incidente em Antares, of rico Verssimo.Keywords: cave, nature, nymphs, women.Palavras-chave: cave, mulher, natureza, ninfa.

    Discorrerei sobre uma concepo de espao do mundo antigo que permanece frtil e que se mantm nos textos literrios contemporneos. O processo to antigo quanto o homem e talvez passe despercebido, embora seja uma forma oportuna para reintegrao e revalorizao de espaos j muito maltratados. Abordarei as montanhas, as guas e as grutas, vistas na perspectiva de moradas das ninfas, no s como seu local de refgio, mas como o seu corpo e o meio pelo qual elas se manifestam e se ligam aos seres humanos.

    Meu lugar de enunciao uma regio de montanhas, nascentes e grutas: as Minas Gerais do Brasil. Infelizmente, percebo que o relevo do lugar onde cresci tem sido brutalmente alterado pela mo do homem, que parece no mais se relacionar amorosamente com seu habitat. As montanhas, extrado o minrio de ferro, esto ocas; as minas, acabado o ouro e a gua, so perigosas e foram interditadas; os bosques tm muita vida, mas quase s de eucaliptos. Diante de tudo isso, no h como contestar a pertinncia de uma reflexo acerca do espao e de suas transformaes na realidade e no imaginrio.

    O processo mencionado , como se sabe, uma variante da alegoria, a personificao. verdade que se pode retrucar que o tratamento de coisas concretas, noes abstratas e ou coletivas como pessoas se enfraquece numa literatura em que deuses so antropomrficos e interagem com gente. Mas com ninfas diferente: elas morrem; elas parecem ser mais que uma categoria que retrata o relacionamento de deuses, homens e natureza; pois parecem assumir a materializao do sagrado profanado pelo homem (refiro-me teoria do filsofo italiano Giorgio Agamben em Profanaes). Agamben (2005: 99 e 113) dir que religio no se opem a incredulidade e a indiferena, mas a negligncia, ou seja, uma atitude distrada frente s coisas, banalizao que

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    levaria prostituio. De acordo com o filsofo, a profanao o uso consciente e a reintegrao do sagrado no jogo da vida.

    A associao oportuna, pois na era da realidade virtual, poca de foras e poderes encerrados em si mesmos sem o desejo de realizao, os cenrios, os espaos e o tempo s vezes se anulam, s vezes tornam-se meras iluses que podem nos levar para longe da experincia corporal e visceral, to importante para a realizao pessoal. A reatualizao incondicional do que se perde na virtualidade leva banalizao. Contudo, h circunstncias em que a iluso, a virtualidade e a realidade visceral formam um conjunto interessante: o caso das ninfas, na encenao do drama satrico.

    No quero afirmar que aos gregos do sc. V a.C. contexto de minha anlise no agradariam os dolos e mentiras poticas; alis, o engano dos sentidos e da mente tema de reflexo especial para eles. Entretanto, o logro com tcnica potica se levarmos em conta, por exemplo, Bacantes de Eurpides invade, violenta e afronta aquele corpo que v a ao ilusria fabricada diante de si.

    Para Hyde (1915: 70), a questo da relao dos helnicos com o espao natural foi inaugurada por Humboldt, em sua obra Kosmos, onde se coloca a hiptese de que os gregos tinham pouco apreo pela acidentada geografia mediterrnea e que o gosto pela magnitude de suas terras deitadas junto a um mar vigoroso seria uma projeo moderna.

    Ainda segundo Hyde, citando Tozer e Ruskin, haveria, de acordo com o primeiro, um desprezo pelo cenrio no cultivado pelo homem. Ruskin aponta para uma intimidao diante do descontrolado poder de adversidade de cu, mar e terra. Assim, aprazveis seriam os lugares controlveis (cf. Hyde 1915: 71), conjectura que suponho ser uma projeo do seu tempo.

    Para os dois pesquisadores, Tozer e Ruskin, via-se beleza exclusivamente no homem, em seu esprito, mente e corpo (Hyde, 1915: 70-1). Os lugares diletos seriam a polis, pequenas fontes, bosques sombreados e a segurana dos prados que a vista pudesse conter e entender sem grandes surpresas.

    Hyde (1915: 74) no compartilha dessas idias; ele reala versos em que os poetas contemplam o espao que os acolhe, porm, paralelamente, mostra que a natureza curva, dobra e ameaa o homem, como o caso do Cucaso no prlogo do Prometeu de squilo e de vrios outros locais citados, predicados por adjetivos como: hostil, selvagem, agreste etc. A partir de ento, desenvolve reflexes acerca do relacionamento afetivo do homem com seu habitat. Nesse ponto vou, por meio das intuies de Hyde, observar um espao recorrente drama satrico. Todavia no seria prudente tomar apenas um texto de quase cem anos como referncia. A noo de espao histrica (Berquist, 1999); criada, formada, transformada e apagada pela cultura (Foucault, 1967).

    No h dvida de que o maior interesse do grego o homem. Conservando o pressuposto, vou tratar o espao que, metaforizado no corpo de ninfas, interage com deuses e homens e, por causa de seu duplo acesso ao divino e ao humano, se torna um espao epifnico, o qual, para no se manter intacto, isolado e esquecido, como si acontecer com o sagrado, profanado, isto , devolvido ao

    Tereza Virgnia Ribeiro Barbosa

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    uso comum (Agamben, 2005: 105) tornando-se, desse modo, mais real, afvel, insubstituvel e inalienvel.

    Num trecho de incidente em Antares, romance de rico Verssimo, (1994: 44-45) Tibrio Vacariano, olhando para a pradaria gacha, se pe a pensar no Rio de Janeiro:

    Algumas vezes, porm, quando estava em cima dum cavalo, na estncia, parando rodeio ou simplesmente cruzando uma invernada, passavam-lhe pelo campo da memria imagens fugidias como essas que a gente mal v pela janela dum trem em movimento. O Corcovado... a pedra da Gvea... ondas batendo na pedra do Arpoador... as areias de Copacabana... caras, coxas, seios, pernas, ndegas de mulheres, sob pra-sis coloridos... peles reluzentes de leo de coco... e o sol e o mar e as montanhas... Pota que me pariu! Que que eu estou fazendo aqui neste fim de mundo, fedendo a creolina e levando esta vida de bagual1?

    O que interessa, particularmente, o sutil e deslizante deslocamento que se opera: Corcovado, pedras, areias, caras, coxas, seios, pernas, ndegas de mulheres, sol, mar e as montanhas. A transio que cria da paisagem um corpo humano feminino tradio muito antiga j apontada por Hesodo na expresso terra de amplos seios. moda brasileira, o escritor gacho desenvolve sua analogia ao longo da relao amorosa de Tibrio e Cleo, que se d com detalhes pitorescos, dentre os quais a apropriao pelo velho fazendeiro, de um personagem lendrio, o destemido desbravador Blau Nunes, campeiro que [t]inha aprendido com o fantasma dum padre renegado o caminho da furna do Jarau, onde existia um tesouro escondido, e guardado pelos bichos e assombraes mais horrveis. (Verssimo, 1994: 69).

    Sntese de minha proposta: o corpo humano das ninfas o espao geogrfico que oculta um tesouro escondido e vigiado por assombraes (entendo assombraes como tudo que gera assombro).

    Do mesmo modo podemos entender o espao no drama satrico: lugar potico onde surgem as ninfas, entidades femininas: montanhas, fontes e grutas. Dedico-me apenas s orestades e, especificamente, a Maia e Cilene, deidades que aparecem uma citada, a outra como personagem em ichneutas, de Sfocles. Ambas representam recantos ntimos de pequenez aconchegante, mas de profundeza assustadora. Vou associ-las, seguindo passos de Verssimo, histria da Salamanca do Jarau de Blau Nunes, vinculando-as a Tibrio e Cleo.

    Tomo 2 versos da obra de Sfocles: vv. 267-8, fragmento, alis, muito mutilado. Diggle completa o v. 267 da seguinte forma: Z[eu]s g[ar] kryph[aios es ste]gen A[t]lantidos. Wilamowitz prefere kata speos. Terzaghi completa o v. 268: Maias eselthe tende e Vollgraff encerra a complementao: kanympheusato. A passagem narra a unio de Zeus e Maia e a concepo de Hermes:

    Pois Zeus, s ocultas, para gruta da filha de Atlante,Maia, veio, adentrou nesta .... e a ela uniu-se.

    1 Regionalismo: potro domado.

    Nas moradas das ninfas: o cenrio do drama satrico

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    As grutas das ninfas eram consideradas entradas tanto para o mundo subterrneo como para o celestial (Homero, Od. 13. 96-112). A partir da associao da histria de Cilene e a brincadeira de Tibrio e Cleo oferecerei uma interpretao cmica desses versos. Personagem destacada do drama satrico de Sfocles, Cilene homnimo de uma montanha (cf. Hyde, 1915: 75). Enquanto ninfa, ela caracterizada pelos stiros (v. 41) com eptetos comuns a todos os habitantes das florestas e montanhas: montesa como as cabras, suas companheiras (Homero, Od. 9, 152-155). A relao entre elas parece estar na funo do aleitamento e pode ser comprovada no mito de Zeus (Dez Platas, 1996: 29, 32, n.19 e 34). Diez Platas afirma que, em geral, os eptetos utilizados para as ninfas referem-se exclusivamente a suas qualidades fsicas. Nos hinos homricos encontramos vrios qualificadores e entre eles aqueles formados com bathy-, componente que indica profundidade ou maciez para penetrao, e kolpos, termo que pode levar para o campo semntico da nutriz (Dez Platas, 1996: 35-36). Expresses cunhadas por Ariano Suassuna, em A Pedra do Reino e O rei degolado, parecem-me muito adequadas para uma traduo deste epteto bathykolpos: peitos brandos ou peitos macios. Dessa forma, passo a entender as ninfas como deidades habitantes de montanhas de peitos macios, relevos penetrveis. Bathykolpos no ocorre nos versos que nos chegaram de ichneutas; contudo, um de seus componentes utilizado por Sfocles em bathyzonos, composto que, se tomamos a indicao de Liddell-Scott para zone- como cinto; ou de Bailly, como cintura, objeto que contorna a cintura, podemos traduzi-lo por cinta macia ou cinta ajustada ou, ainda, se associarmos leitura de Vivante (1982: 115) que confere ao termo o sentido de que se pode mergulhar, penetrar, lanar-se ou emergir-se, teremos que Cilene uma ninfa que se pode enlaar. A reflexo pretende mostrar que, ao tratar de ninfas, estamos entrando em um campo semntico que remete para curvas, volumes, abundncia e penetraes, termos que, na analogia de Verssimo, remetem para a exuberncia feminina.

    Porfrio, em El antro de las ninfas, comentando a gruta de taca, consagrada s Naides, expressar a abundncia pelo fluxo contnuo das guas. As passagens duplas (do lado de Breas acessvel aos mortais e do lado de Noto, aos imortais) mostram-nas como seres intermedirios. A gruta de taca sagrada e consagrada, segundo ele, s ninfas. Durante os 3, 5 e 6, Porfrio discute a unio de atributos aparentemente contrrios, a saber, amena e sombria (eperaton eeroides) para definir este espao. Ele explica que esses traos no so incompatveis: a forma exterior e a superfcie so agradveis; o interior e a profundidade so sombrios (6). Para ele a gruta smbolo do mundo sensvel, dos poderes invisveis presentes nesse mundo. Assim, associando ninfa e gua, o filsofo (8) cita o Hino a Apolo e afirma que as ninfas proporcionam aos mortais incessantes ondas de doces correntes. Em sentido estrito, ele acrescenta que as Niades, que presidem as guas, designavam com seu nome todas as almas que descem para a encarnao e que Herclito afirma que as almas que vm para serem geradas se tornam midas e que o sangue e o smen lhes so amveis (10); por essa razo a concepo dos seres se d na umidade.

    Tereza Virgnia Ribeiro Barbosa

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    Concluindo, Porfrio afirmar que todas as grutas so consagradas s almas e s ninfas (13). Ele explica alegoricamente que a carne se forma em torno aos ossos, que so como pedra nos seres vivos (14); e que, seguindo Fercides de Siro quando fala de ocos, orifcios, entradas e portas, a gruta simboliza enigmaticamente a gerao das almas (31).

    Voltando ao ponto de partida: a narrao do nascimento de Hermes, histria que tem seus antecedentes no Hino Homrico a Hermes e visa exaltao do deus, observando somente os 2 versos citados, noto que, no contexto de ichneutas, tanto Cilene como Maia, alm do campo semntico de nascimentos e aleitamentos, integram as faanhas sexuais2 de seus parceiros (Zeus, no caso de Maia e stiros no caso de Cilene). Apoiada nos vestgios dos textos gregos, com incurses a El antro de las ninfas de Porfrio, argumento que a unio com a ninfa, materializada nos encontros amorosos de cavernas subterrneas, concretiza o espao de seduo onde se dar a criao do imprevisvel e do espantoso. O fruto dessa unio a experincia da profanao definida nos termos de Agamben, ou seja, a percepo da ninfa divindade nitidamente atrelada Natureza de forma antropomrfica concebe-a prxima a ponto de se tornar alegoria do ato amoroso. Retornemos a Verssimo com Tibrio, o qual descreve a sua amante Cleo:

    (...) a rapariga mais linda do mundo. Dezessete aninhos (...) Morena jambo (...) (1994: 66). (...) que habita o bordel de Venusta, um lugar que ficava numa ruela pouco iluminada e tinha nos fundos do seu quintal um porto que dava para um terreno baldio espcie de entrada secreta ou pelo menos discreta... (1994: 67)Que fmea mais bem-feita de corpo! uma potranca de raa cabocla de pele acetinada cor de areia mida, seios midos, quadris estreitos, delicada como uma flor... Em cima dela sentia-se com vinte anos menos. (1994: 68)O cheiro dela ficava nas suas narinas, nos seus dedos, na sua pele, entranhado em todo o seu corpo. (1994: 68)

    A assimilao da natureza com o corpo humano permite a Verssimo a narrativa do j apresentado Blau Nunes, a qual se estabelece na alegoria do ato amoroso, que transcrevo com cortes:

    Faz de conta que aqui vai o Blau Nunes...Com os dedos indicador e mdio da mo direita imitou as pernas dum homem a caminhar. Blau Nunes percorreu o brao e o ombro de Cleo, devagarinho, pisando forte. De repente Blau avista um cerro... E os dedos de Tibrio escalam... (1994: 69)(...) Ento Blau Nunes desce do cerro e comea a andar por uma linda vrzea...E agora os dedos de Tibrio caminham pelo ventre levemente cncavo da menina, com lenta volpia.

    2 De fato, os templos dedicados s ninfas, segundo Lloyd-Jones (2003: 157), apresentavam relevos com perseguies dos stiros a essas divindades. O helenista comenta que as proezas com a lana descritas, frequentemente, pelos stiros so triunfos alcanados no leito.

    Nas moradas das ninfas: o cenrio do drama satrico

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    De repente Blau Nunes avista um capo... (1994: 69)(...) Mas Blau Nunes continua a andar... l dentro est a entrada da Salamanca, do tesouro... (1994: 69).

    assim que Tibrio, imitando as pernas do campeiro da lenda, escala com os dedos os seios de Cleo que de cerros se haviam transformado em montanhas, por artes da fisiologia mancomunada com o tempo e depois percorre em passos lentos o ventre, no mais uma plancie com uma suave depresso, mas j uma coxilha. (1994: 479).

    Concluindo, proponho a leitura do passo de ichneutas que se torna risvel e maliciosa, bem apropriada para o gnero, em analogia com o corpo feminino. Dessa forma, quando Cilene, a ninfa de cintura macia descreve como Zeus adentra o espao onde habita Maia e concebe Hermes, todo o trecho adquire um gosto picante. a reflexo sobre o tratamento do espao sagrado em profanao que o torna ntimo, amado e possudo. Se, segundo Adrados (apud Dez Platas, 1996: 65, n.32), a ninfa uma menina na cabea e uma mulher corpo abaixo, a natureza, a montanha e as grutas, sendo ninfas, no devem jamais ser violadas, somente profanadas.

    Bibliografia

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    Tereza Virgnia Ribeiro Barbosa

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    Nas moradas das ninfas: o cenrio do drama satrico

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    A GORA DE ATENASCORAO DE UMA URBE COSMOPOLITA

    Maria de Ftima Silvauniversidade de Coimbra

    [email protected]

    AbstractGreek comedy is a good testimony of contemporary Athens. Its urban plan, movement in

    the streets, but mainly the agora, as they appear in the Aristophanes plays, give a real portrait of a cosmopolitan city.Keywords: agora, Athens: commerce, population, war.Palavras-chave: gora, Atenas, comrcio, guerra, populao.

    Como retrato da realidade que a circundava, a comdia deu, da Atenas do seu tempo - cidade onde nasceu e que reproduziu na cena de Dioniso -, uma imagem que adivinhamos fiel sob a capa deformante da caricatura. Uma leitura atenta de Aristfanes revela, da cidade, um traado que desce ao pormenor. So primeiro as muralhas, orgulho e grandeza de Atenas, sinal da sua segurana e autoridade, mas tambm fronteira entre cidade e campo, a criar fractura entre uma populao que, dentro dos basties, se defende da destruio que o inimigo dispersa j pelos subrbios, e a cintura urbana onde os aldees sofrem, com mais violncia, a razia causada pela guerra. Intramuros acumula-se uma sociedade heterognea, numerosa, activa, que tenta resistir aos anos difceis da crise com o fervilhar das ideias, das discusses, dos negcios. Mltiplos, os espaos pblicos animam-se, desde as primeiras horas da manh, de gentes mescladas, na maioria distribudas em grupos annimos, que no entanto identificam uma sociedade democrtica e aberta; como de figuras marcantes que, na sua individualidade, tipificam uma poca e um estdio cultural. sobretudo a praa pblica, no centro da cidade, a concentrar boa parte da policromia social do quotidiano. Mas, nas vizinhanas, a Acrpole, a Pnix, os edifcios pblicos, que abrigam o funcionamento das instituies ou respondem necessria prestao de servios, multiplicam-se. A circulao nas ruas prima pelo engarrafamento, recintos cheios, gentes que se acotovelam, ao ritmo da vida congestionada de uma grande cidade. A marginalidade e o pequeno crime interferem numa ordem social, posta em causa pela prpria agitao da vida citadina. O roubo, a agresso, o incmodo da lixeira que inunda as ruas, pechas agravadas com o cair da noite, dificultam o dia-a-dia dos Atenienses. Fora do centro, nos bairros perifricos, a misria acumula-se,

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    numa denncia de dificuldades gritantes, a multiplicar fronteiras e hierarquias dentro do espao urbano. natural, portanto, aquele olhar sonhador que o citadino lana sobre os campos, distncia, como sobre uma espcie de paraso, que o milagre da mesma distncia torna utopicamente perfeito.

    Sobre a anarquia da cidade pondera alguma preocupao urbanstica, abonada pela popularidade de especialistas na matria, como o clebre Mton1. Preocupao que no retira Atenas do momento a sua ndole tendencialmente catica, na imagem traada pela comdia. A cidade vive dentro do esplendor das suas muralhas, que, alm de imponentes como logtipo de um bastio poderoso, desempenham uma funo protectora em tempo de guerra. No sem que vozes de reprovao se ergam a censurar uma certa atrofia que essa cintura de pedra veio trazer a uma cidade que mal respira, retalhados os seus cidados entre uma malha urbana apertada e a exposio dos campos investida inimiga (Eq. 817-818).

    Passada a barreira de segurana que controla o acesso, a cidade humana do ltimo quartel do sc. V a. C. pouco mantinha da ordem antes exigida s novas geraes, como escola dos cidados do futuro. A caminho da aula de msica, em tempos que j l vo, as crianas do mesmo bairro seguiam tranquilamente, em formao organizada, vestidas de roupa ligeira apesar da neve que fustigava os caminhos (Nu. 964-965). Sobre essa ordem, o desenvolvimento explosivo da cidade imps o bulcio e o movimento constante de uma urbe que parece no dormir. Lavradores, comerciantes, artesos, metecos, estrangeiros, insulares (Pax 296-297, cf. Av. 489-492), animam, noite ainda, as ruas da cidade, a caminho dos postos de trabalho que repartem uma vasta populao activa, da soluo de uma misso ou de simples turismo no caso dos que visitam Atenas. Corporaes h que se movimentam em conjunto, depois de uma ronda casa a casa, como os juzes, companheiros de Filcleon, madrugada ainda, a cantar pelas ruas velhas melodias de Frnico, qual senha de uma velha gerao (V. 218-221, 268-269). Ainda que protegida, a circulao urbana d mostras do clima de guerra que prossegue para alm dos seus muros, no vaivm de gente armada, lanas e escudos luzindo entre a multido que vive uma falsa normalidade (Pax 353-356). Como da crise tambm sintoma a populao rstica que agora se acumula nas ruas, desadaptada vida citadina, desempregada, carente de um naco de po e, por isso, presa fcil das promessas de polticos e demagogos (Pax 632-636, Ec. 276-279). natural, em todo este movimento de um dia-a-dia cada vez mais perturbado, que o comentrio poltico cruze as ruas, dando voz a um desencorajamento que penetra o colectivo e que se espelha naquela pergunta carente de esperana (Lys. 524): J no h um homem a srio nesta terra? Desiluso que o passar dos anos se encarregou de concretizar. Com o fim da guerra e o nascer de um novo sculo, os sintomas da crise agravaram-se. Cedo ainda, as ruas regurgitavam de uma turba que acorria assembleia, no sob o aguilho do interesse pblico, mas

    1 Mton, visitante de Nefelocucolndia em Aves 992 sqq., era bem conhecido como gemetra e astrnomo. A proposta que faz (1005-1009) de um esquema radial para a nova cidade, com a praa ao centro e ruas largas que dela partem como os raios de um astro, seria decerto ousada; in-terfere com o padro ortogonal, ditado por Hipdamo de Mileto, assente numa rede perpendicular e paralela de ruas, a formar quarteires rectangulares.

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    na esperana de receber o tribolo, a senha de participao, como uma espcie de penso de sobrevivncia (Ec. 30-31).

    Por entre os pees circulam as viaturas, como marca de uma classe abonada, que faz deste luxo um sinal de distino e riqueza; tnicas de prpura, coroa nos cabelos, sobre uma quadriga de ouro (Eq. 967-969), elegantes aurigas atraem os olhos do comum dos mortais, ou enchem de orgulho famlias de nome lustroso, como a menina Mgacles com quem Estrepsades juntou os seus trapinhos de aldeo (Nu. 15, 69-70).

    A gora representa o principal ponto de atraco de toda esta sociedade em movimento. A se fazem os negcios, se visitam os servios pblicos, l fervilham os comentrios sobre os assuntos do momento, ou simplesmente se cavaqueia ou se circula. A sua marca principal um notrio cosmopolitismo, prprio de uma metrpole destacada (Av. 37-38). De todas as partes do mundo grego ou do estrangeiro chegam compradores, vendedores ou meros curiosos. disso exemplo o mercado utpico criado por Dicepolis sobre a imagem do corao comercial de Atenas, onde comparecem um Megarense e um Becio a oferecer especialidades regionais. Agorzein (cf. Ach. 720, 750) vinculou em definitivo a gora com o centro comercial. Na sua evocao Paz, patrocinadora generosa de abundncia e bem-estar, Trigeu suplica o regresso aos velhos tempos de prosperidade, que retrata num mercado polcromo e farto (Pax 999-1005): Faz com que a nossa praa se encha de tudo quanto bom: vindos de Mgara, alhos, pepinos temporos, mas, roms, e uns capotezinhos para os escravos; vinda da Becia, gente com gansos, patos, pombos, carrias; do Copas, as enguias aos cabazes. Em contrapartida, Atenas tem tambm as suas especialidades bem conhecidas: anchovas do Falero e loia (Ach. 901-902, Av. 76). A riqueza e variedade de produtos exigiu, na praa, uma ordenao cuidada e regulamentos precisos. Nas palavras que Dicepolis pronuncia contra o acesso dos indesejveis sicofantas (Ach. 725-726), parece adivinhar-se a frmula convencional com que se reserva o direito de admisso. De resto, esse um princpio que vigora no seu mercado, onde os Megarenses so admitidos na fico cmica, apesar da excluso legal a que a realidade poltica ateniense os condenara (Ach. 515-534, 729-730, 818-829). Em circulao permanente pelo mercado, os sicofantas, como fiscais do consumo, tratam da denncia e da apreenso dos produtos em situao ilegal (cf. Ach. 910 sqq., 916 sqq., 926). Para conhecimento colectivo, avisos pblicos so colocados em lugar bem visvel (Ach. 727-728), a divulgar a regulamentao em vigor. A cobrana de um imposto de presena e de venda permite a Dicepolis a exigncia, como taxa de acesso, de uma enguia do Copas ao Tebano (Ach. 896-897). Menos atingidos pela censura pblica do que os sicofantas so os agornomos (Ach. 723-724, V. 1406-1407), incumbidos de misses de controle e de manuteno da ordem pblica (Ach. 968), para o que se munem de chicotes de couro como uma fora especial de interveno.

    Repartida em sectores distintos, a oferta variada. Numa rea, carnes desmanchadas e enchidos (Eq. 146-147, 417-420), noutra o peixe (V. 787-793, Ra. 1068); noutro espao aves (Av. 14, 529-530), alm reses (V. 169-171);

    A gora de Atenas. Corao de uma urbe cosmopolita

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    farta , sem dvida, a zona dos cereais e dos legumes, um sector que parece, juntamente com o da venda do po, caracteristicamente feminino (Eq. 857, Lys. 457-458), onde discusses e rixas figuram no programa dirio (Lys. 459-460, Ra. 868), perto das inevitveis bancas do queijo e do mel (Eq. 852-854) e numa estranha vizinhana com a venda de couros. Mas no falta tambm a florista, que da venda de coroas e flores consegue, apesar de viva, sustentar um rancho de filhos (Th. 447-448); o ourives (Lys. 408), o sapateiro (Lys. 414), ou mesmo os vendedores de livros e decretos, instalados na gora ao lado de outros bens de consumo dos mais comuns (Aristmenes fr. 9 K.-A.; upolis fr. 327 K.-A.; Ar. Av. 1288; Nicofonte fr. 10. 4 K.-A.; Teopompo fr. 79 K.-A.); a os locais de venda de livros eram populares e sobretudo atractivos para os jovens (cf. Pl. Ap. 26d), que l poderiam encontrar, por preos aceitveis, novidades atraentes. A agitao natural numa cidade em guerra reflecte-se na prpria cadncia comercial, numa acelerao inaudita de oferta e de procura (Ach. 549-554): Eram odres, correias para os remos, gente a comprar pipos, alhos, azeite, rstias de cebolas, coroas, sardinhas, flautistas, narizes esmurrados.

    H decerto o vendedor mais permanente e estvel, que dispe de uma banca de madeira para expor o produto (pinakoples, Av. 14), a quem os clientes identificam j pelo nome; a par da vendedeira ambulante que confecciona em casa os artigos de l para os ir vender ao mercado (Ra. 1346-1351). H tambm, nas redondezas, os prestadores de servios, as lavandarias, por exemplo, onde se vai limpar um fato com uma ndoa renitente (V. 1127-1128), e que inundam o ar do cheiro perfumado das lixvias (Lys. 469-470).

    A oferta obedece a regras de troca e venda de produtos. A troca directa, que isenta da interveno do dinheiro, parece aceite com naturalidade; essa uma prtica que Dicepolis vulgarmente prope aos fornecedores que abordam o seu mercado particular. Fazem tambm parte do processo as promoes, naqueles dias em que o preo das sardinhas cai ao mnimo (Eq. 644-650, 671-672), ou em que o slfio atinge nveis quase de oferta (Eq. 894-898). As ervas aromticas, que se acrescentam, como tempero, ao peixe podem tambm constituir uma espcie de brinde do fornecedor (V. 493-499). Na qualidade do servio est contemplada a embalagem, cuidadosa e robusta, a proteger produtos frgeis, sobretudo em caso de exportao; situao de que exemplo um sicofanta, rplica de qualidade, embalado como se fosse loia (Ach. 904-905), protegido sob camadas de palha para resistir viagem (Ach. 926-928, 948-950).

    Este um espao onde reinam as camadas populares e como que o bero daqueles a quem a sorte no bafejou. Assim o Salsicheiro de Cavaleiros sente-o como a sua casa e escola da vida, onde, fora de migalhas de po e de tabefes, se criou, educado na dureza prtica do dia-a-dia (409-414, 636). Para alm da legenda que o distingue como um vendedor, para este poltico em potncia Aristfanes encontra o nome de Agorcrito, baptizado a partir dessa gora onde se formam as carreiras promissoras do momento (Eq. 1259-1260). Mas ao centro aflui a cidade inteira, com o objectivo concreto de satisfazer as necessidades do quotidiano, ou simplesmente em procura

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    de novidades ou para dois dedos de cavaqueira. Em torno de um petisco saudoso, como as cobiadas enguias do Copas, acumulam-se, em chusma, os gulosos (Pax 1005-1015). Como termmetro das emoes colectivas, o mercado rene, junto de pacficas vendedeiras, militares armados, num conflito visual entre o verde vioso das hortalias ou o espectculo familiar dos figos e das azeitonas, e a agresso metlica de elmos, lanas e escudos (Lys. 555-564, 633).

    Mas h tambm os que simplesmente se passeiam, desde logo para exibir aos olhos de todos sinais de luxo, modernice ou arrogncia. A gente abonada tem tiques conhecidos, responsveis por um estilo prprio de andar, negligente e sofisticado (V. 1168-1173). Incontveis so os inteis, entretidos a comentar, na praa ou nas barbearias, a vida prpria ou a alheia (Nu. 1002-1003, Av. 1439-1445, Th. 577-578, Pl. 337-339), ou em eternas conversas pelas perfumarias, onde predomina o tom snob dos intelectuais da moda (Eq. 1375-1380). populaa annima misturam-se as figuras t