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    Formas de ver a cidade,

    uma leitura de Luiz Ruffato e Rubens Figueiredo.

    Paulo Roberto Tonani do Patrocnio

    Ler a escrita da cidade e a cidade como escrita buscar o legvel num jogo

    aberto e sem soluo.

    Renato Cordeiro Gomes, Todas as cidades, a cidade.

    Toda e qualquer epgrafe, ainda que de forma sutil, utilizada como uma

    possibilidade de enunciao prvia de um argumento que ser discutido

    posteriormente. Trata-se de uma estratgia, de um recurso que resume ou introduz

    determinado tema no ncleo de um texto que se abre. possvel ainda dizer que uma

    epgrafe uma espcie de janela que revela um percurso que ser posteriormente

    trilhado. Dito isto, devo esclarecer que a frase que abre meu texto no foi escolhida de

    forma aleatria, no um fruto do acaso. A argumentao de Renato Cordeiro

    Gomes, retirada de seu livro Todas as cidades, a cidade, apresenta de forma clara um

    aparente paradoxo que acomete todo e qualquer movimento de leitura da cidade e,

    por esta razo, ser amplamente discutido aqui. Tal paradoxo pode ser facilmente

    delimitado em uma simples questo: Como ler o que ilegvel?. O impasse passa a

    assumir a feio de uma aporia. Por se tratar de um jogo aberto e sem soluo, a

    leitura da cidade no um ato que aponta essencialmente para um fim, para um

    resultado. Pois, o ilegvel resultante da proliferao dos muitos fios descontnuos que

    formam a prpria malha discursiva que reveste a cidade. Dessa forma, o exerccio de

    leitura da cidade no se fixa no desejo de alcanar sua concretude e totalidade, mas,

    sim, na elaborao de um experimento de aproximao em direo a este ato de

    leitura. Dessa forma, atento ao percurso de anlise que ser aqui estabelecido,

    possvel afirmar que mais do que o resultado da leitura, importa observar osmecanismos discursivos que so ativados para a obteno de uma imagem da cidade.

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    O carter mltiplo da cidade requer, antes de tudo, a construo de uma

    forma de aproximao que permita a elaborao de um eixo de observao que

    resulte em um discurso. Em princpio podemos delimitar que a leitura e a percepo

    da paisagem urbana podem ser demarcadas por duas matrizes formadas na

    modernidade e que, de certa forma, foram amplamente revisitadas por diferentes

    discursos literrios e flmicos. Estas duas matrizes so a rua e a janela. So formas

    antagnicas de compreender a cidade. A primeira necessita do movimento de adentrar

    no labirinto de signos que configuram a cidade e, literalmente, perder-se nele. No

    sentido oposto, a janela apresenta uma fixao e torna o ato de leitura dotado de certa

    passividade ao afirmar a separao do sujeito frente ao espao urbano. Dois contos

    foram os responsveis pela criao destas duas matrizes: O homem da multido, de

    Edgar Allan Poe e A janela de esquina do primo, de E. T. A. Hoffmann. Ambos foram

    publicados na primeira metade do sculo XIX e contriburam para a cristalizao da

    vitalidade urbana ao enunciarem sua diversidade enquanto smbolo da vida moderna.

    Seja na passividade do olhar distanciado (a janela) ou na enunciao

    pedestre (a rua), estas duas formas de representao apresentam seus limites e

    potencialidades. Ao contrrio da experimentao do ato de penetrar na densidade de

    signos que formam a cidade, a janela produz um isolamento que permite a observao

    e impede a participao do sujeito. O olhar emoldurado comporta a ateno a

    determinado ponto, tornando a janela um quadro vivo por onde transitam os elementosque formam a cidade. Nesta perspectiva, cabe recordar a lcida reflexo produzida por

    um dos personagens do conto de E.T.A. Hoffmann aps demorar-se observando da

    janela o mercado:

    Este mercado , neste momento ainda, uma imagem fiel da vida cambiante que

    no cessa. Uma febril atividade e as necessidades do momento reuniram esta

    multido; alguns instantes foram suficiente para que tudo seja de novo deserto;

    as vozes que experimentavam dominar o tumulto foram agora extintas, e cadalugar abandonado no exprime seno mais vivamente um aceno:

    passou!(Hoffmann, 2011)

    A concluso do personagem reproduz de forma precisa o dado efmero do

    espetculo que se desenha a sua frente em contraste a sua prpria paralisia: passou!

    Em operao oposta, no ato de leitura da cidade que utiliza a rua enquanto espao de

    observao, produzindo uma enunciao pedestre, perde-se a acuidade do olhar e o

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    elemento efmero resultante do prprio ato de percorrer a cidade, sem fixar-se em

    um ponto determinado, perdendo-se no labirinto de signos.

    Rua e janela. Estas duas formas de olhar e representar podem igualmente

    estar relacionadas famosa reflexo criada por talo Calvino, em Seis propostas parao prximo milnio, ao afirmar que a cidade o smbolo capaz de exprimir a tenso

    entre a racionalidade geomtrica e o emaranhado das existncias humanas. Tal

    reflexo, conforme analisa Renato Cordeiro Gomes, formada a partir do

    acionamento de duas metforas que sintetizam o complexo jogo de leitura da cidade:

    o cristal e a chama. Por este turno, a racionalidade geomtrica apresentada por

    Calvino passa a ser metaforizada no cristal e o emaranhado das existncias humanas

    assume o corpo da chama. Cria-se, nesta perspectiva, uma equao que pode ser

    simplificada na seguinte sentena: o cristal forjado pela chama. No h possibilidadede leitura da cidade que possa se ater em apenas uma nica esfera de representao,

    se faz necessrio produzir uma leitura que coadune o cristal e a chama.

    Com este horizonte de questes, o presente trabalho tem como objetivo a

    anlise de dois textos literrios que possuem como principal foco a representao do

    espao urbano. Dessa forma, proposta uma leitura do romance eles eram muitos

    cavalos, de Luiz Ruffato, em dilogo com outra obra literria, o romance Passageiro do

    fim do dia, de Rubens Figueiredo. Ainda que os dois textos apresentem perspectivas

    distintas em relao ao modo de narrar a cidade, torna-se rentvel o exerccio crtico

    de aproximao destes dois discursos, colocando em relevo questes como a

    legibilidade da cidade, formas de representao do cenrio urbano e, principalmente, a

    experimentao de recursos literrios para a apresentao de relatos acerca da

    experincia urbana.

    No romance de Luiz Ruffato, atravs de 70 fragmentos o autor busca retratar

    a cidade de So Paulo em um dia. O resultado deste olhar prismtico sobre a cidade

    a produo de um texto marcado pela polifonia e pelo corte. Ao focalizar So Paulo a

    partir de uma colagem de vozes estilhaadas e desconectadas uma das outras,

    Ruffato eleva a cidade personagem principal com a funo de exercer o papel de um

    tnue fio comum a ligar os personagens. O prprio espao urbano passa a assumir o

    lugar de observador para expor, de modo acelerado, as histrias e eventos que so

    vivenciadas na metrpole. O registro fragmentrio de um nico dia na cidade faz com

    que desaparea diante do leitor qualquer possibilidade de continuidade narrativa, e,

    em seu lugar, surja uma profuso de vozes dissonantes das quais ns temos apenas

    breves relances. Desta forma, no estamos mais diante de uma representao que

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    busque uma totalidade da cidade, opta-se pelo registro do efmero. No h tempo

    para um exerccio descritivo mais longo, se faz necessria a produo de um olhar

    que possa em um breve focar alcanar uma forma de expor a vivncia urbana.

    A opo pelo fragmento est diretamente relacionada ao desejo do autor derepresentar sujeitos, em princpio, invisveis. O prprio ttulo do romance expe este

    desejo ao tomar de emprstimo um trecho do poema de Ceclia Meireles, reproduzido

    tambm em forma de epgrafe: Eles eram muitos cavalos/mas ningum mais sabe os

    seus nomes,/sua pelagem, sua origem.... Os fragmentos, nesta perspectiva,

    assumem a funo de recordar as origens e os nomes dos muitos sujeitos que

    habitam uma grande cidade e que transitam nela. O romance passa a exercer a

    funo de uma rua, na qual figuram os muitos rostos e histrias que compem a

    cidade. O espetculo efmero resultante do movimento de adentrar o labirinto designos que a enunciao pedestre produz passa a ser vivenciado no prprio ato de

    leitura do livro de Luiz Ruffato. Leitura semelhante produzida por Giovanna Dealtry,

    no ensaio O romance relmpago de Luiz Ruffato: um projeto literrio-poltico em

    tempos ps-utpicos:

    O leitor v-se diante de pequenas janelas que acendem e apagam sem que esse

    movimento comprometa-se com uma continuidade narrativa. Nesse sentido, os

    termos aqui utilizados para caracterizar o romance referem-se de maneira

    proposital viso e mais especificamente imagem editada da fotografia, do

    cinema e, em especial, da esttica televisiva. (Dealtry, 2007, p. 170)

    A estrutura fragmentada do romance, propondo a apresentao de janelas

    mltiplas que se abrem e se fecham, sem relao direta entre si, no produzindo

    assim uma unidade narrativa formal, resultante da necessidade de produo de uma

    nova forma de representao da cidade. Nesta perspectiva, no h mais espao paraa atuao de um flneur, personagem fundamental da cidade moderna e que melhor

    encarna o ato de perder-se calmamente nas ruas da cidade, em seu lugar passa a

    figurar o zappeur, para citar o termo formado por Giovanna Dealtry:

    (...) podemos afirmar que [em eles eram muitos cavalos] a suspenso, o corte

    seco, determina a passagem de um fragmento ao outro simulando a figura do

    zappeur que, ao contrrio do flneur, separa-se fisicamente da cidade para

    constitui-la distncia, elegendo ou eliminando as imagens de seu interesse.

    (Idem, Ibidem)

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    Assim, possvel dizer que o romance de Luiz Ruffato traa um movimento

    de romper com paradigmas da modernidade e insere um novo referente para a

    obteno de um novo molde de observao da cidade, criando uma nova forma derepresentao. A rua no mais o espao da representao, seu lugar passa a ser

    ocupado por janelas que expem de modo fragmentado o cotidiano da cidade.

    No romance de Rubens Figueiredo possvel identificar o mesmo movimento

    de releitura destas duas matrizes de representao da paisagem urbana. A janela

    perde seu sentido de fixao e passa a assumir uma feio mvel. A nova

    funcionalidade da janela, por assim dizer, resultante da prpria estrutura do

    romance, que narra o deslocamento de um personagem dentro de um nibus.

    O plano narrativo tem como foco o percurso de nibus que o personagem

    Pedro faz entre o centro e a periferia, fazendo o deslocamento entre seu trabalho e a

    casa de sua namorada, Rosane, que reside no Tirol, uma comunidade localizada no

    extremo oeste da cidade. O trajeto longo e o personagem utiliza como refgio para

    apaziguar a demora da viagem a audio de um rdio de pilhas e a leitura de um livro

    que relata a vida e as ideias de Darwin. No por coincidncia, o mesmo livro apresenta

    a visita que o cientista ingls fizera ao Brasil para coletar insetos e outros animais,

    percorrendo inclusive a mesma regio que o personagem agora corta dentro donibus. Ser a partir da leitura de trechos do livro que o personagem aciona as ideias

    de Darwin enquanto uma possvel mediao para a obteno de respostas para os

    questionamentos que surgem durante a viagem.

    Impulsiona esse movimento de observao o uso constante de verbos que

    apontam para o ato de olhar. Em diferentes passagens, Rubens Figueiredo filtra a

    descrio do narrado pelos olhos do prprio personagem, indicando que o descrito

    construdo pela perspectiva de Pedro. Ver, olhar, observar, so os nicos atosrealizados por um sujeito que, no ao acaso, busca o assento mais alto do nibus,

    localizado acima das rodas traseiras, para acompanhar a viagem. O realismo

    descritivo passa a ser apaziguado pelos traos de subjetividade do olhar do

    personagem. O olhar surge como metfora do limite da compreenso sobre o outro.

    o personagem Pedro, descrito como distrado, que seleciona e organiza os eventos e

    recolhe as histrias dos personagens que circundam sua trajetria. Tal operao

    impede que as descries sejam pautadas pela objetividade naturalista, rompe-se com

    o modelo clssico para a insero de movimentos especulativos que tangenciam os

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    eventos a partir do uso de metforas, tornando o texto mais potico e livre da

    densidade naturalista.

    A janela, por estar em movimento, impede a observao atenta e fixa. Sua

    funcionalidade no mais a compreenso do que se passa no espao externo. Apassagem abaixo revela a impossibilidade de demarcao de uma cena e fixao a

    um determinado ponto:

    Um carro novo, grande, de marca sueca, se aproximou silenciosamente e parou

    ao lado. O cachorro sentado no banco do carona metia o focinho afoito pela

    fresta que o motorista uma mulher, na verdade tinha deixado aberta no alto

    do vidro da janela. Pedro olhou bem para o cachorro, acomodado sobre as patas

    traseiras num assento estofado em couro preto. Pedro tambm gostava de sentir

    o vento na cara, tambm seria capaz de acreditar, nessas horas, que a janela,

    toda e qualquer janela, de um nibus, de um carro ou de uma casa, no tinha

    outra finalidade seno deixar o vento bater na cara da gente. Tanto assim que,

    quando o sinal abriu e o nibus recomeou a andar, Pedro levantou um pouco

    mais o nariz e ps a cara s um centmetro para fora para aproveitar o

    vento.(Figueiredo, 2010. p. 20)

    A funcionalidade da janela, para o personagem, no outra a no ser deixar o

    vento bater na cara da gente. No entanto, o prprio vento, provocado pelo

    deslocamento do nibus, que impede a fixao a um ponto exato. O efmero no

    resultado de um espetculo que se desenha na frente do observador e que depois

    ser desfeito, tal qual observou o personagem do conto de E. T. A. Hoffman, mas, sim,

    pelo movimento que o personagem realiza dentro do veculo. A passagem abaixo

    indica esta mudana.

    Pedro lembrou que, nas vezes em que passou por ali e observou a paisagem ao

    longe, atravs da janela do nibus em que viajava, teve a impresso de que tudo

    estava adormecido, encoberto por um topor dentro e fora das casas. As

    antenas de tev e os fios bambos nos postes pareciam tambm desativados,

    sem carga. O aspecto, no conjunto, era de um cenrio oco, sem nada por trs.

    Mas no podia ser verdade e, j que no via ningum por ali, Pedro escolhia

    uma casa e nela fixava o olhar. Tentava imaginar como eram os moradores e em

    que trabalhavam. Porm o nibus avanava em velocidade, a estrada traava

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    uma curva comprida e a casa escolhida por ele ficava para trs aos poucos. Por

    fim sumia, antes que Pedro conseguisse formar qualquer ideia.(Idem, p. 40)

    O desfecho da cena emblemtico. A acelerao impede a organizao de

    uma ideia. A efemeridade provocada pelo olhar em movimento no possibilita a

    fixao e compreenso da prpria paisagem urbana que se desenha fora da janela do

    nibus. So flashs momentneos que se formam atravs do olhar do personagem.

    Alm disso, retomando as imagens do cristal e da chama, tal qual foram formadas por

    Italo Calvino, possvel dizer que o personagem se interessa primeiramente pela

    chama e considera o cristal um cenrio oco, sem nada por trs. Em outras palavras,

    Pedro, o personagem descrito como distrado, busca em seu olhar alcanar o

    emaranhado das existncias humanas. Dessa forma, a representao da cidade, no

    romance de Rubens Figueiredo, passa a privilegiar os relatos sobre o cotidiano e no

    se ocupa de uma descrio da racionalidade geomtrica que da forma cidade.

    Para oferecer mais vulto aos relatos sobre a vivncia na cidade, Rubens

    Figueiredo prope um dilogo com o naturalismo. O dilogo que se cria, semelhante a

    um jogo de aproximao e afastamento, tem como foco o prprio questionamento

    acerca do uso do naturalismo enquanto ideologia para a tematizao da realidade de

    uma grande cidade. Na leitura do texto soa claro que o autor no abarca ocientificismo da escola naturalista, ao contrrio, coloca em tenso o lugar deste

    discurso e, principalmente, a vitalidade deste modelo de compreenso da sociedade.

    Ao propor o dilogo com as teorias evolucionistas de Darwin, Rubens Figueiredo

    provoca uma leitura da sociedade que tem como base a prpria interrogao do lugar

    dos sujeitos dentro da estrutura social. O jogo que passa a ser estabelecido

    complexo e dotado de muitas nuances. So os personagens que, assombrados diante

    da prpria interrogao, questionam os mecanismos sociais que permitem a sua

    acomodao dentro da hierarquia social. So as conversas com Rosane,

    rememoradas por Pedro durante a viagem de nibus, que apresentam o olhar crtico

    sobre a dinmica social. A prpria formao do casal insere um interessante aspecto

    narrativa, na qual Pedro assume uma perspectiva distanciada frente aos fatos e, por

    sua vez, Rosane surge como uma relatora das situaes prosaicas. O relato de

    Rosane sobre a experincia de uma amiga de infncia em seu local de trabalho revela

    este aspecto.

    Aconteceu que ali no escritrio, entre as paredes limpas e pintadas em tom

    pastel, com reprodues de pinturas abstratas penduradas no meio dos

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    aparelhos eletrnicos novos que zumbiam e piscavam discretos em cima das

    mesas sobre o piso de granito reluzente debaixo das luzes distribudas de

    forma calculada por um arquiteto ali, onde todos sabiam que causas jurdicas

    complicadas, misteriosas, caras, recebiam os cuidados e as atenes mais

    especializadas e onde fortunas trocavam de mo por fora de simples

    assinaturas num documento ali, sua vizinha e amiga de infncia tornou, na

    mesma hora, um aspecto incmodo, impertinente e quase aberrante aos olhos

    de Rosana, como aos olhos dos outros. (Figueiredo, 2012, p. 61)

    A postura da amiga de infncia destoa no ambiente, ganha um aspecto

    incmodo e estranho. Uma figura que se destacava por sua no adaptao ao espao.

    A detalhada descrio do espao coloca em destaque os elementos decorativos

    tpicos de um ambiente sofisticado e favorece de forma clara a compreenso de que a

    presena da jovem por sua conduta, por seus modos era destoante. Pois, como a

    prpria Rosane descreve,

    Quinze minutos depois de comear a trabalhar, j se irritou com algum que

    reclamou da sua voz alta. Em meia hora criou um problema srio por se recusar

    a fazer de novo uma faxina num pequeno banheiro. Depois brigou com uma

    colega que reclamou porque ela pegou um pouco da sua comida na geladeira,

    s para provar. Pegou um telefone celular que estava em cima de uma mesa

    para fazer uma ligao e, trs horas depois de chegar, saiu pela porta de vidro

    aos gritos, abanando os braos, atirou-se direto pela escada, no quis nem

    esperar o elevador com raiva tambm do elevador, que no vinha busc-la

    depressa. E no voltou mais. (Idem, p. 62)

    A partir da avaliao do comportamento da amiga, Rosane chega a uma

    concluso no mnimo estarrecedora: Uma doida, um bicho, disse Rosana para Pedro

    em voz baixa com vergonha, com susto de estar dizendo aquilo: um bicho.(Idem,

    Ibidem). A constatao de que sua amiga de infncia com quem brincava depois da

    escola, com quem cresceu ao mesmo tempo e nas mesmas ruas de seu bairro, com

    quem meteu os ps nas mesmas poas de lama , segundo suas prprias palavras,

    um bicho, oferece assombro Rosane. O assombro e a vergonha de Rosane surgem

    em decorrncia do ato de nomear uma pessoa que sua semelhana vivenciou todas

    as situaes de vulnerabilidade social que ela prpria sofreu durante a infncia, mas,

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    que, infelizmente, no se adaptar. Ou, em outra perspectiva, no seria a prpria

    postura de Rosane uma forma de no adaptao:

    Mas na certa o que mais incomodava no fundo daquele tumulto e daquela raiva,

    capazes de causar uma preocupao to funda que dava at um pouquinho denusea em Rosane, era saber que ela mesma poderia muito bem ser aquela

    moa igualzinha, em cada gesto.(Idem, Ibidem)

    O tpico da adaptao surge de forma suavizada ao ser filtrado pela

    percepo da personagem. No um princpio cientificista que orienta o

    questionamento produzido por Rosane. No h um tom assertivo que regula e

    determina o estabelecimento do olhar crtico frente situao narrada. Ao serapresentado pela perspectiva da personagem, o questionamento acerca da no

    acomodao da personagem no ambiente sofisticado do escritrio recebe traos de

    subjetividade que apaziguam o referencial naturalista e o transforma em uma

    possibilidade especulativa para a compreenso da dinmica social.

    Rubens Figueiredo apresenta uma cidade marcada conflito. No apenas o

    relato produzido por Rosane sobre a amiga de infncia indica esta percepo e este

    modo de leitura da sociedade. possvel afirmar que todos os personagens e ashistrias so pontuados por este movimento de coliso de sujeitos. novamente

    atravs da interlocuo com Darwin, moldada pela leitura que Pedro faz do livro, que

    temos a estruturao de olhar que aponta para o cientificismo enquanto modelo de

    compreenso da sociedade. A descrio que Darwin faz de um combate entre uma

    vespa e uma aranha, combate este que foi observado na mesma regio que o

    personagem corta dentro do nibus, surge como uma espcie de metfora da

    sociedade, uma possibilidade de leitura dos prprios conflitos que so vivenciados

    cotidianamente. Contudo, o acionamento desta imagem no um ato simples eapresenta tambm uma dose de ironia. Pois, como o prprio personagem especula ao

    fim da leitura, o nico ensinamento que o episdio pode apresentar no est

    relacionado ao da aranha ou da vespa, mas ao prprio Darwin: Tudo o que

    soube, ao fim da histria, que Darwin capturou o tirano e a vtima e os levou

    embora, para si, para seu pas. Cento e setenta anos depois, lida num nibus, parecia

    que era essa toda a moral da fbula.(Figueiredo, op. cit., p.24). Soa clara a ironia da

    cena descrita, no resta uma escapatria, o tirano encarnado na figura da vespa que

    vence a disputa mortal e a vtima representada pela aranha foram capturados e,por que no, derrotados. Vale destacar que uma mesma disputa entre uma vespa e

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    uma aranha relatada por Darwin e lida por Pedro em momento posterior da narrativa.

    A dose irnica novamente acionada, no entanto o desfecho distinto. Neste novo

    embate, a aranha que figura como tirana: Mas agora a vespa que era a presa:

    capturada na cola dos fios da teia.(Idem, p. 162). Ou seja, no h uma ordem rgida

    que determina as resolues dos conflitos e muito menos aponta para um vencedor

    nico.

    A percepo de uma cidade em conflito apresentada pelo olhar de Pedro e

    a partir dos relatos de Rosane. So estes dois personagens que possibilitam a

    emergncia de episdios e histrias que, em semelhana imagem da disputa entre a

    aranha e a vespa, so vivenciados por tiranos e vtimas. Exemplar deste aspecto a

    narrao que Rosane faz do processo de ocupao de seu bairro, indicando que a

    presena dos novos residentes incidiu na formao de uma rivalidade com osmoradores de um bairro vizinho:

    A imagem daquela gente que de uma hora para outra comeou a percorrer as

    ruas com suas moblias e seus pertences gente que parecia vir s pressas e

    em fuga, e todos ao mesmo tempo - , a presena fora de pessoas que eles

    no chamaram, no conheciam, no queriam ali acabou formando nos

    moradores da Vrzea a ideia de que aquela gente vinha para prejudicar, vinha

    para desvalorizar a vizinhana de algum jeito, para degradar o bairro todo. Ou,

    quem sabe, at coisa pior. (Idem, p. 38)

    A rivalidade ganha ares de disputa e os bairros so transformados em

    territrios inimigos separados unicamente por uma fronteira imaginria. Impulsionada

    pela presena de homens armados, cria-se uma cultura da violncia que contamina

    ambos os espaos. Assim, conforme relata a prpria personagem,

    Os nomes Tirol e Vrzea comearam a aparecer nos jornais, na televiso, nos

    noticirios de crime. Os grupos armados nos dois bairros pareceram crescer e se

    hostilizavam. Juravam vinganas seguidas. Sem notar, as crianas comearam a

    aprender aquela raiva desde pequenas. Educavam-se com ela, tomavam gosto e

    se alimentavam daquela rivalidade. Cresciam para a raiva: aquilo lhes dava um

    peso, enchia seu horizonte quase vazio nada seno aquilo fazia delas algum

    mais presente. (Idem, p. 54).

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    Um confronto entre pares, entre iguais. No so os diferentes que duelam em

    um mesmo territrio, tal qual ocorrera no relato de Darwin sobre a batalha entre a

    vespa e a aranha, so sujeitos pertencentes a uma mesma classe que utilizam a

    violncia enquanto mecanismo de construo identitria, negando o outro para afirmar

    a si prprio. A rivalidade entre os dois bairros, um fenmeno rotineiro no cenrio

    urbano carioca, a vlvula mestra que impulsiona a narrativa e transforma a viagem

    de nibus do personagem em um acontecimento mpar. Ao serem informados sobre a

    notcia de um confronto entre grupos armados das duas localidades, os passageiros

    do nibus passam a especular sobre a prpria segurana, tornando tenso um

    deslocamento rotineiro. A insero do tema da violncia urbana na estrutura da

    narrativa produz um dilogo com parte significativa da literatura contempornea que

    utiliza a margem enquanto cenrio. Dessa forma, mesmo introduzindo a ideologia do

    naturalismo enquanto possibilidade de leitura da sociedade, Rubens Figueiredo

    tambm constri um expressivo dilogo com a prpria produo literria

    contempornea que aciona o temrio da violncia como principal eixo temtico.

    Na leitura de ambos romances possvel observar certa atualizao das duas

    matrizes de representao da cidade formadas no sculo XIX. A janela e a rua j no

    possuem a mesma feio e agora esto dotadas de novas caractersticas. Se faz

    necessrio ativar um novo referente para alcanar um molde de representao da

    cidade que possibilite observar estas mudanas e que permita novamente exercitar oexperimento da representao. O olhar surge como metfora possvel para alcanar

    um foco que coloque em destaque uma possibilidade de leitura da paisagem urbana. E

    ser deste olhar que resultar um relato, como nos informa Michel de Certeau, emA

    inveno do cotidiano 2, a cidade o teatro de uma guerra de relatos. Ainda que

    breve, a definio apresentada pelo autor serve como ponto de referncia para o

    estabelecimento de um horizonte de questes acerca da produo literria brasileira

    contempornea que narra a cidade. Dessa forma, a partir da leitura produzida por

    Certeau, possvel identificarmos o princpio prismtico da subjetividade que

    determina a forma de narrar e ler a cidade. Ao ser classificada enquanto um palco de

    uma disputa discursiva, a cidade surge como espao que se constri no apenas em

    sua materialidade fsica, mas, igualmente, no prprio ato de narr-la. A edificao da

    narrativa resulta no estabelecimento de uma imagem para a cidade que entra em

    choque com outras imagens j existentes, evidenciando a perpetuao de uma guerra

    de relatos. No entanto, conforme o prprio autor afirma, tal conflito operado no

    espao da performance e tem como cenrio o prprio campo da fabulao: o teatro.

    Por este vis, no se trata do estabelecimento dos relatos enquanto verdades acerca

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  • 7/28/2019 Espaos narrados_Paulo Tonani

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    da cidade, mas, sobretudo, como construes discursivas que refletem a subjetividade

    do prprio sujeito que as produziu. Romances como eles eram muitos cavalos e

    Passageiro do fim do dia so formas de ver da cidade, possibilidades de resolver um

    enigma: como transformar em texto literrio a malha de signos que reveste a cidade?

    Referncias bibliogrficas

    DEALTRY, Giovanna. O romance relmpago de Luiz Ruffato: um projeto

    literrio-poltico em tempos ps-utpicos. In: Alguma prosa: ensaios sobre literaturabrasileira contempornea. Rio de J aneiro: 7Letras, 2007.

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