Esperança, coisa emplumada Emily Dickinson Nisargadatta … · 2017-12-18 · Esperança, coisa...

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Com apenas 9 anos, Sarah está prestes a viver uma grande aventura: vai viajar sem os pais pela primeira vez na vida. A viagem tinha tudo para ser feliz e inesquecível, mas logo se transforma num terrível pesadelo. Sem o marido para ajudá-la, Lena, mãe de Sarah, confere e assina os documentos autorizando a ida da filha. David saiu de casa cedo dizendo que recebera uma ligação do trabalho. Mais uma desculpa esfarrapada que ela não engoliu. O casamento está em crise, mas ela acredita que os dois vão conseguir se acertar no período em que a menina estiver fora. Já pensando nos momentos a sós com o marido, Lena entra em pânico quando uma segunda van chega para buscar Sarah. Pouco depois, ela descobre que o primeiro motorista não faz parte da equipe do acampamento e que sua filha e outras três crianças foram sequestradas.

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Esperança,coisaemplumadaQueempoleiranaalmaParacantarolarcalada,Enuncamaispara.

EmilyDickinson

Averdadenãoéoresultadodeumesforço,ofinaldocaminho.Éoaquieagora,emseupróprioanseioebusca.Vocênãoavê,poisolhaparalongedemaisdesimesmo,paraforadeseueumaisprofundo.

NisargadattaMaharaj

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Um

AQUELE NÃO ERA UM EVENTO rotineiro. Essa desculpa ela nunca poderia dar.Não para um acontecimento desses, único na vida. Porém, imaginara eensaiaratantoaquelesmomentos,listandopossíveisproblemasesoluções,que parecia já ter passado por tudo aquilo inúmeras vezes quandoinalmente chegou a hora de levar Sarah até a van do acampamento edeixar que sua única ilha, de apenas 9 anos, viajasse sem os pais pelaprimeiraveznavida.

Quando suas fantasias se concretizaram, sem que nada de erradoacontecesse,acorrespondênciaentreimaginaçãoerealidadetornouaindamais autênticos aqueles poucos minutos de despedida. Ela não foienganadaporumindivíduoesperto,esimporsuasprópriasexpectativas.Aspessoasveemoquequeremver.Mágicosevigaristassabemmuitobemdisso. Somos aomesmo tempo cegos e con iantes. Acreditamos em nossainterpretação do que vemos, pois agir de outra forma nos paralisaria.Somostodoscegos.Esse foiseumantranos tempossombrios,aspalavrasque impediamqueaculpa torturantedaquelaépocaaconsumisse.Todososindíciosdequetudooqueviaerarealestavambemali.Nempensouemquestionarosfatos.

Se David estivesse com ela, talvez um dos dois houvesse estranhado,dadoumpassoatrásequestionado.Masnãofoiassimqueaconteceu.Lenahavia icadosozinhaparaorganizarascoisas,controlaromedo,pôrSarahna van e se despedir da ilha. Uma hora antes, sem aviso prévio, Davidsaíra do quarto dizendo que tinha recebido um chamado pelo celular eprecisavairatéotrabalho.

–Surgiuumproblema,precisamdemim–disseraele.Lenaduvidouquefosseverdade.Essasligaçõesdoserviço,peloquese

lembrava,eramsemprefeitasparaotelefone ixo.Alémdisso,erasábadoeeleestariade fériaspelasduas semanas seguintes.Davidnemocupavaum cargo tão importante assim a ponto de precisar se ausentar pararesolverproblemasnotrabalhojustamentenodiaemquea ilhairiapelaprimeira vez para um acampamento. Lena já cogitava questionar otelefonemaeanecessidadedeelesairquandopercebeuqueomaridonãoa encarava. Talvez a situação fosse di ícil demais para ele. Talvez ele nãogostasse de despedidas e, quem sabe, temesse o tempo que ia passarsozinhocomamulher,apósapartidadeSarah.PorissoLenaresolveunão

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falarnadaedeixoupassaramentira.David entrou no quarto da ilha e avisou que precisava sair. Notou,

contente, que isso não a incomodou. Antes mesmo que ele pedisse, ameninalhedeuumabraço.

– A gente pode se falar por e-mail, né? – perguntou ele, enquantoestavamabraçados.

–Achoquesim,papai,massóumavezporsemana.Lindadissequeoscomputadoressãoumadroga.Pelomenosnoanopassadoeramumlixo.

– Então, escreva um diário. Assim poderá nos contar tudo quandovoltar.

Davidbeijouameninana testa e sorriu.Uma súbitaondade carência,decoisasdeixadaspordizerouporfazer,oinvadiu.Emumahora,aquelepequeno milagre, que de repente deixara de ser um bebezinho e setransformara numa menina esperta, partiria em sua primeira viagemsozinhanomundo.Elenãodeveriaalertá-laarespeitodealgumascoisas?Nãodeveriadizer“Euteamo”comtodasasletras–emvezdecomofaziatododia, cantarolando, semdarmuita importância –, deum jeito especialdoqualSarahpoderiaselembrarquandosentissesaudadesdeleduranteasduassemanasdeacampamento?Sempreplanejaratransmitirà ilhaaomenosumapartedesuasabedoria,das liçõesqueaprenderaaolongodavida.Jánãodeveriaterfeitoisso,àquelaaltura?MasaexpressãonorostodeSarah–adegarotaindependente,comoeleeamulheraconsideravam–oimpediu.Elesedeucontadequesefalassealgocomo“Cuidadocomascobras”,ameninadariaumarespostado tipo“Dã!”.Entãonãodissemaisnada.

David recuou, se despediu e a ilha acenou. Ele deu meia-volta e suaiguraaltacruzouolimiardaporta.Nasala,Lenachecavaalistadositensque Sarah levaria para o acampamento. Como decidira não interpelar omarido a respeito do suposto telefonema do trabalho, preparara-se paraumadespedidafria,numrápidodistanciamentomútuo.Ultimamente,vinhasendo assim. E David não a desapontou. Só falou com ela quando seaproximavadaportadarua.Mostrouocelularedisse:

– Sehouver algumproblema, ligueparao celular. Talvez eunão iquediretonaminhamesa.

– Tudo bem – respondeu ela, apesar da vontade de dizer “Claro quevocênãovaificarnamesa”.Emvezdissoapenasdeuosorrisodesanimadodesempre,comosefosseumasenhaparaeleabriraportaesair.

Lenaolhouparao relógio antigoda sala e sedeu contadequeestava

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atrasada. A van passaria às nove. O pessoal do acampamento avisou quebuscariaSarahprimeiro,porissoLenaqueriaestarprontaàsdezparaasnove,nomáximo.Às8h25deixoualistadeladoefoiatéoquartodafilha.

Sarahassistiaaumvídeonocomputador.Lenaviuqueameninahaviacolocadoalgunslivroseroupasnacama.Semdizernada,pegoutudoefoiparaoquartodo casal terminarde fazer amalada ilha. ComoDavid, seperguntou se deveria dizer palavras sábias na partida, mas não haviaespaço para discursos pomposos no relacionamento entre elas, por issoresolveufazeradespedidamaistranquilapossível.

Sarah apareceu na porta do quarto. Parecia meio perdida, assustadaaté.

– O que foi, meu bem? – perguntou Lena enquanto continuava aarrumaramala,tentandonãodemonstrarsuapreocupação.

–Acabeidemelembrardequeumadasprimeirascoisasquefazemláno acampamento é a prova de natação. Linda disse que a gente passamuitofrioequetemdeboiarnofinal.

–Ah,masvocênadabem.–Não,mamãe,nãonado.Enãoseiboiar.Sógentegordaconsegueboiar.Lenariueseaproximoudafilha.–Euconsigoboiar.Estámechamandodegorda?–Não,vocênão.–Poisé,temavercomdensidadeóssea.Seosossossãodensos,émais

di ícil boiar. Suponhoque você tenhaumadensidade óssea semelhante àminhaedeseupai,portantotudoindicaqueboiarádireitinho.

–Estábem.Acreditoemvocê.Obrigadapelaexplicação.–Denada.Estátudopronto?Oquevaicalçar?–Isso–disseSarah,apontandoparaostênisnovosemseuspés.–Ejá

seioquevocêvaidizer:“Sãonovos.Vãosujarlogo.”Acertei?–Acertou.Etenhorazão,filha.–Massóvouusarnoônibus.Quandochegarlá,voucalçaraschuteiras.

Lenadecidiunãovoltaraoassuntodaschuteiras.Sarah,quejogavafutebolmelhor do que a maioria das meninas, icara em dúvida entre umacampamentodefutebolrecomendadopelotécnicodoseutimeeoversátilAcampamento Arno nas montanhas Catskills, que sua amiga Lindaconhecera no ano anterior, embora ele não oferecesse atividadesrelacionadasaseuesporte favorito.Depoisdedecidir irparaArno,Sarahpassouumbomtempoarrependidadesuaescolhaejurouusarchuteiraso tempo inteiro no acampamento. A mãe tentara argumentar que as

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caminhadas, em particular, seriam complicadas, talvez até perigosas comaquelecalçado.Masameninainsistira,eLenadesistiradeaconvencer.

Sarahsevirouesaiu.Lenapassouumminutoobservando-apercorrero corredor. Como a ilha sempre tinha se movimentado de maneiragraciosa,Lenatorceraparaqueasaulasdedançaaconquistassem,emvezdo futebol.Mesmocommuitoesforço, asoutrasmeninaspareciamduras,ao contrário de Sarah, que dava a impressão de lutuar enquantoexecutavaospassosbásicos.Lena,quenãoseconsideravanadagraciosa,lamentouaoportunidadeperdidaquandoSarahdeclarou,comoapoiodopai,quenãoqueriamaisiràestúpidaescoladedançadaSrta.Threadgill.Comoteriasido legal,pensouLena,mandarSarahparaumacampamentocom a turma do balé. Mas ela não era o tipo demãe que impunha suasambições e seus desejos frustrados à ilha. Sarah tinha opinião própria eLenapretendiaapoiá-laindependentementedequerumotomassenavida.

–Mamãe,eleschegaram!–gritouSarahdasala.Lena não entendeu direito o que a ilha quis dizer, mas logo se deu

conta de que deveriam ter chegado para buscá-la. Foi até a janela doquarto e viu a van amarela com o logotipo do Acampamento Arno nalateral,entãogritouparaSarah:

– Diga a eles… – começou, mas parou quando a menina entrou noquarto.

–Não,mãe,vocêvailáefalacomeles.– Pelo jeito, boa parte da con iança de Sarah se esvaíra nos últimos

minutos. Com carinho, Lena colocou uma dasmãos no ombro da ilha aosairdoquarto.

–Fecheozíperdamalae…espereumpouco.Elafoiatéaportadafrente,queabriuparapassaràpequenavaranda.

Um rapaz de cabelos encaracolados, provavelmente universitário, tinhaabertoaportadoladodomotoristaparadescer.

–Oi!Jávamossair!–gritouLena,acenandoparaele.Eleacenoudevoltaeamulherentrouemcasa.Saraharrastavaamala

pelasaladeestar,oqueeraumbomsinal,pensouLena.Aoolharorelógioantigo, viu que ainda faltavam vinte para as nove. Pelomenos eles erampontuais,pensouLenaenquantopegavaalistaemcimadamesadasaladejantar.

Osminutos seguintes foram dedicados a conferir os itens: travesseiro,toalhas, saco de dormir, nécessaire, chapéu, protetor solar, repelente deinsetos, lanterna, bola de futebol, cartões-postais com os destinatários já

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preenchidos e livros para ler no verão, tudo dentro da nova sacola deviagem. Lena olhava pela janela a todo momento e viu que o rapazencostadonafrentedavannãopareciaseincomodarcomademora.

Quandoestavatudoprontoparaapartida,Lenapegouamala,queeramais pesada, e ia pedir a Sarah que carregasse a sacola,mas viu que osolhosda ilhaestavamcheiosdelágrimasequeseuqueixotremia.Lenaaabraçou.

–Vaidartudocerto,meuamor.Lindaestarálátambém.Edaquiaduassemanasvocêvaivoltarparacasa.

–Maseuqueriamesmoerairparaoacampamentodefutebol–Sarahconseguiudizer, limpandoas lágrimas.Mesmoassimapanhouasacoladeviageme,fielàsuanaturezaindependente,saiunafrentedeLena.

Ouniversitárioabriuumlargosorrisoparaamenina,estendeuumadasmãosparaelaeseapresentoucomoJ.D.Usavacamisapolocomologotipodo acampamento, umpouco justa demais para seu corpo atlético, pensouLena. Ele pegou a bagagem e seguiu para a traseira da van. Lena oacompanhou e icou contente ao veri icar que o interior do veículo eraimaculado.Assimqueorapazguardouamalaeasacolaefechouaporta,Lenaestendeuamãoparaele.

–Olá,souLena,mãedaSarah.–Oi.SouJ.D.Prazeremconhecê-la.Precisoqueassineadocumentação.ElessedirigiramparaafrentedoveículoeSarahfoiatrásdamãe. J.D.

pegouumapranchetanobancoeaentregouaLena,comumacaneta.–Vocêprecisaassinarno inaldaprimeirapágina,dapáginatrêseda

última.Lenafolheouosdocumentos,eramasautorizaçõesdepraxe.– Não sabia que precisaria de um advogado hoje – comentou ela,

brincando.J.D.riuenotouqueSarahrecuava.Eleseaproximoudamenina.–Aquilodentrodasuasacolaeraumaboladefutebol?–Era.–Querdizerquevocêjogafutebol?–Jogo.–EntãovamosbatermuitabolaemArno.–Comoassim?Lánãotemcampodefutebol.–Sarah,confusaeansiosa,

arregalouosolhos.J.D.hesitouumpouco,depoisriucomoserevelasseumsegredo.

–Sabe,ofolhetonãoinformavanadaarespeito,mas izeramumcampo

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defutebolnabeiradolagonooutonopassado.SaraholhouparaLena,queouviaenquantoliaeassinavaospapéis.–Mamãe,vocêouviuisso?– Que bom! – respondeu ela, devolvendo a prancheta a J.D. Quando

percebeu a alegria de Sarah com a novidade, quis agradecer ao rapaz.Assim,adespedidaseriabemmaisfácil.

E foimesmo. J.D. abriuaporta lateral, SarahentroueLenaaajudouapôro cintode segurança.Aproveitouaoportunidadeparadarumúltimoabraçonafilhaeencostaroslábiosnoouvidodelaparafalar:

–Amovocê,querida.Nosvemosdaquiaduassemanas.–Tambémamovocê,mamãe.Lenapensoutervistomaislágrimasnosolhosda ilha,masseafastoue

J.D. deslizou rapidamente a porta até fechá-la. Esticou a mão e, ao olharparaLena,seurostopareciaquererdizer“Elavaificarbem”.

–Prazeremconhecê-la,Sra.Trainor.–Obrigada.Divirtam-senestasduassemanas.Querqueeuligueparaos

Rostenkowskieavisequevocêsestãoadiantados?J.D.consultouorelógioebalançouacabeça.–Nãoprecisa,vamoschegarláemcimadahora.Eesperaremos,sefor

preciso.Ele sorriu de novo antes de entrar na van.Desta vez Lenanotouuma

mancha nos dentes da frente que parecia ter sido causada por cigarro.Incomodava-se ao ver jovens fumantes. Mas aquele parecia apenas umpequenodefeitodeJ.D.“Sarahestáemboasmãos”,diriaaomaridoquandoeleperguntassesobreapartidadamenina.

Enquantoavanmanobravaparaarua,osre lexosnajanelaimpediramLena de ver Sarah com clareza. Por um instante, sentiu um impulso decorreratrásdoveículo.Porquê?Faltadecontrole?Nãosaberiadizer.Elase preparara bem, resolvera todos os probleminhas que surgiram, adespedidatinhasidotranquila.QuandoperdeuSarahdevista,porém,teveasensaçãodequea ilhaviajaraparaoutroplaneta.Osolhosembaçadosde Lena observaram a calma impecável de sua rua emWestchester e avan que sumia ao longe. Limpou as lágrimas e se censurou por ser tãosentimental.“Vejatudocomclareza”,pensou.“Orgulhe-sedesua ilha.Elaentrou na van de um estranho e partiu sem criar caso. Sarah, como J.D.prometera,iaficarbem.”

Enquanto tomava café, Lena se perguntou se ela eDavid também iamicarbem.Asaídadelenoúltimominutonãoajudariaemnadaarecuperar

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a con iança. Não falavam em se separar fazia algum tempo. Na verdade,nãoconversavamsobrenada.HaviamsidoamorososecarinhososumcomooutronosanosemquetinhamtentadodarumirmãoaSarah.Masdepoisque resolveram “não apelar para a tecnologia”, ou seja, não tentar afertilizaçãoinvitro,algomudounorelacionamento,emboranãofossenadaque o mundo exterior pudesse perceber. Ainda assim, ocorrera umamudançaprofundanocoraçãodosdois.

Ela não pretendia fazer uma lista das coisas que precisava conversarcomDavid,mas dedicaria aquelas duas semanas a lidar como problemadomesmomodoqueconduziaotratamentodospacientescomcânceremsuaclínica:ocasamentoeraumaespéciedecâncer,haviaalgodeerradono relacionamento, então eles precisavam descrever os sintomas edescobrir as causas para recuperar a saúde. Ela nunca usava essametáforadiretamente,maseraassimquepensava.Sintomas: faziamsexoesporadicamente e as relações eram insatisfatórias, evitavam passarqualquertempojuntos,sócompartilhavamascoisasquetinhamavercomSarah,praticamente.Causas:insatisfaçãodeDavidcomotrabalho…

Parou na primeira causa. Quando se conheceram, ele trabalhava numbanco de investimentos no centro e odiava o emprego. Depois que semudaramparaPelham,passouaodiá-loaindamaisporcausadadistância,então arranjou um emprego bem remunerado no departamento demarketingda sede regionaldaDell.Aprendeuas tarefasbásicasemumasemana,ganhouduaspromoçõesnoprimeiroanoecomeçouasonharcomvoos mais altos. Lena o incentivou a procurar outro trabalho, mas eleparecia preso ao emprego, que lhe proporcionava tempo para icar comSarah. Além disso, alegava que não conseguiria ganharmais, não queriapercorrergrandesdistânciasdiariamenteeosbene ícioseramgenerosos.Lena pensou que as duas semanas que teriam agora seriam uma boaoportunidadeparadiscutiremmelhoressaquestão,eletomaradecisãodemudardeempregoearranjaralgomaisgratificante,talvezatécriativo.

Nãoprecisavamrealmentedodinheiro.LenatrabalhavanoMountSinaihaviacincoanos.Elaeoscolegashaviamfirmadoumacordovantajosocomohospital,quedavacertofôlego inanceiroaocasal.Seeletirasseumanooudoispara investiremsimesmo,não iriamà falêncianemesgotariamapoupança. Ela queria que David fosse feliz. E isso seria como umaquimioterapiaparaocâncer.

Estava perdida em seus pensamentos quando tocaram a campainha.Não sabia quem poderia ser. Pensou nas possibilidades – entrega do

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correio,umcortadordegramaprocurandoserviço–etorceuparaquenãofosse Janet Rostenkowski, mãe de Linda. Janet era uma mulher comum,limitada, que Lena se vira forçada a aceitar como amiga em função dovínculo entre as meninas. Ela e o marido lecionavam na Pelham HighSchool e tinham pouco assunto, exceto a respeito dos ilhos e dosacontecimentos na escola. Ou sobre suas di iculdades inanceiras. Lenatemia o momento em que Janet deixava Linda na porta de sua casa eparavaparaumcafé.Torciaparaquenãofosseela,emborasoubesseque,na visão damulher, era omomento ideal para bater papo, pois as ilhastinhampartidojuntasparaoacampamento.

Mas não era Janet. Ao abrir a porta, Lena deparou com uma moçaesguia, atlética, de pele bronzeada e lisa, olhos brilhantes e um cabelolindo,commechasloiras.Elaestavasorridenteepareciaanimada.

–Olá.Sarahjáestápronta?Lena olhou para a jovem parada no acesso à casa. Viu uma van

diferentedaquevieradoAcampamentoArno.Essaeraverde,emvezdeamarela, e era de outra marca. Mas também tinha o logotipo doacampamento na lateral. Lena icou confusa por um instante, porém serecuperou.

–Oi!ASarahjáfoi.A moça não esperava essa resposta. Lena notou que ela vestia uma

camisadomesmotipousadopor J.D.eseguravaumrádionamãodireita.Tentousorrir,mesmoconfusa.

–Hã…jáfoi?Comquem?–ComJ.D.,ooutromonitor.Bom,achoqueeleeramonitor.Estavanuma

vanquenemasua.A moça foi incapaz de disfarçar sua surpresa. Então levou o rádio à

boca, olhou para a van e falou com o motorista. Lena podia vê-lo agora,atravésdopara-brisa.

–AlgumaoutrapessoaficoudepegarSarahTrainor?–Não–foiarespostafanhosaqueveiodoaparelho.–ConhecealgumJ.D.noacampamento?–perguntouamoça.–Não.Porquê?– Amãe de Sarah disse que um tal de J.D. passou aqui numa van do

acampamentoparabuscaramenina.Omotoristanãorespondeumaisnadapelorádio.Abriuaportadavane

desceu. Era um senhor demeia-idade e cabelos grisalhos, com o tom depeledequempassaboapartedo tempoaoar livre.Ele se aproximouda

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casacompassosdecididos.Lena jamais se esqueceria daqueles segundos em que observou o

homemcaminharemsuadireção,domodocomoassobrancelhasjuntasotornaramumpontodeinterrogaçãoambulante,deseperguntaroquesuasaída da van e o andar irme em direção a elas signi icava. De repente,tudoparoudefazersentido.Coisasquedeviamestarancoradas lutuavam.Omundoordenadoecientí icodeLenadesapareceu.Qualeraaquestão?Onde estava o problema? O sujeito continuava vindo ao encontro dela. OcoraçãodeLenadisparou.“Vocênãopassadeumpesadelo”,pensou.“J.D.erareal.Porfavor,sumadaqui.”

De repente, nada no mundo parecia digno de con iança. Estariarealmente parada na porta de casa com aquela gente? Teria de fatodespachadoSarahemoutravan,meiahoraantes?Davidsaíramesmoouestavaalidentro?Quemeraela?

O homem se aproximou, esforçando-se para esconder sua confusão,tentando compreender a situação. Fez várias perguntas,mantendo a vozcalma, e Lena respondeu a elas damelhormaneira possível. No entanto,dentrodela,umavozhorrívelgritavatãoaltoquechegavaaembaralharaspalavras que os dois pronunciavam. A voz berrava sem parar. Eraimpossível impedir.Ohomemfalava.Ela falava.Osolhosdamoça loira searregalaramdeapreensão.Nãohaviaâncoras.Nadaerareal.

EondeestavaSarah,afinaldecontas?

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Dois

SEJ.D.NÃOEXISTISSE,SEfosseumailusão,entãoSarahseperderanummundoirreal. Não era possível. Lena se agarrou enquanto pôde à ideia de que“tudonãopassavadeumterrívelengano”.Porém,poucoapouco,comdoisestranhos dentro de casa incapazes de esclarecer o mistério, acaboudesistindo. J.D. não era funcionário do acampamento. Ele a enganara.LevaraSarahembora,masnãoiamparaasmontanhasCatskills.

David não atendeu o celular. Lena estava pronta para soltar oscachorrosquandoeleatendesse,mas,comocaiunacaixapostal,nãosoubeoquedizer.Asituaçãocontinuavaconfusaemsuacasa,vozesfalavamcomela,distantes,difíceisdecompreender.Sócaptavaobásico.

–David.TemosumproblemacomSarahnoacampamento.Meliga.Pensouemligarparaotrabalhodele,mastinhacertezadequeelenão

estava lá. Por que não atendia o celular, então? Teria ido ao centro epegara o metrô? Não conseguia pensar em outro local fora da área decobertura. Teria icado sem bateria? Levaria horas para entrar emcontato?Precisavafalarcomomaridoimediatamente.

Lenaligavadocelulardela,noquarto.Ohomemdecabelosgrisalhoseamoçausavamotelefone ixopara“esclarecerocaso”.Elavoltouàcozinhapara saber o que haviamdescoberto,mas não alimentava esperanças deque resolveriam depressa um caso tão misterioso. As expressões nosrostos dos dois con irmaram a suspeita: eles pareciam perdidos. Aotelefone, o homem esperava em silêncio que alguém do outro lado semanifestasse.Emseguida,escutou,resmungouedesligou.

–Estãotodosnoportãodeentrada,providenciandoosregistros.Háummonitorjúniornoescritório,maselenãosabedenada.

–Não dá para entrar em contato como pessoal da entrada?Ninguémtemcelular?–perguntouLenaenquantoseguiaparaacozinha.

–Celularesnãopegamlá.–Entãomandemomonitorchamaralguém.–Elejáfoifazerisso.Informamosonúmerodestetelefone.Lena sentiu que a tensão dentro dela aumentava, como reação ao

conformismo que percebia naqueles dois. Participara de juntas médicasem que certos pro issionais, quando confrontados com uma série deresultados e evidências, recolhiam a cabeça como tartarugas, assimacabava sobrando para ela mobilizar a equipe até chegarem a um

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diagnóstico.–Precisamoschamarapolícia.Medesculpe,qualémesmoseunome?–SouoWinston,eelaéaKerry–respondeuele.–Vamosesperarmais

alguns minutos antes de acionar a polícia. Talvez tudo não passe de ummal-entendido.

– Que tipo de mal-entendido? Vocês disseram que não conhecemnenhumJ.D.equenãoháoutravan.

– Não que eu saiba. Mas o acampamento é enorme. Você disse queparecia uma van nova. Talvez tenham comprado agora, sei lá, e não nosdisseramnada.Talveztenhammisturadoaslistas.Estiveamaiorpartedasemana passada numa excursão. Pode ser que eu tenha informaçõeserradas.Nãogostariadeacionarapolíciaedepoisdescobrirquetudonãopassoudealarmefalso.

–Foiumsequestro.Eseela foisequestrada?–EraaprimeiravezqueLenapronunciavaapalavraemvozalta,emboraelaestivessenapontadesualínguadesdequeWinstoncaminharaemdireçãoàcasa.

–Nãopossoacreditar…–elecomeçouafalar,masfoiinterrompidopelotelefonequetocava.Lenafezumgestocomacabeçaeeleatendeu.

– Alô… sou eu, Rich. Recebeu meu recado? Não, ela disse que tem ologotipo do acampamento na lateral e que a papelada que o sujeitomostrou também tinha o logo. As autorizações eram parecidas com asnossas…entendi.Elaestáaquidolado.–ElesevirouparaLenaeestendeuofonenadireçãodela.–Elequerfalarcomvocê.

–Alô?AquiéLenaTrainor.Quemfala?– Rich Carlone, Sra. Trainor. Lamento o ocorrido. Poderia descrever o

homemque…bem,quelevouSarah?– Aparentava ser um estudante universitário. Tinha cerca de 1,70m e

cabelos encaracolados. Estava um pouco acima do peso e usava umacamisa igual à das pessoas que estão aqui comigo agora. E… ele tinhamanchasdecigarronumdosdentesdafrente.

–Nãocontratamosfumantes.– E como é que eu ia saber! – retrucou Lena, sentindo que perdia o

controle. A imagem da van se afastando ia e vinha em sua cabeça, e aconversaaimpediadecorreratrásdafilha.

–Nãotinhacomo,claro.–Carlonesoavaconfuso.– Alguma chance de que o sujeito faça parte da equipe do

acampamento?–insistiuLena.–Quetenhahavidoalgumaconfusão?Seguiu-se um momento de silêncio do outro lado da linha, como se

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Carloneponderasseapergunta.–Não.–Entãoprecisamoschamarapolícia.–Sim.Mas…–Mas,oquê?–Poderialiberaromotoristaeamonitora?Elesprecisampegaroutras

crianças.Apolíciapodetelefonarparamim,seprecisardeinformações.–Seprecisar?Aquemmaispoderiampedirinformações?–Certo.Entendo.Eulamento.Maselesdoisnãosabemdenada.–Tudobem.Lena ouviu as desculpas de Carlone, entregou o fone a Winston, que

recebeu instruções e trocou um olhar com Kerry. Quando o homemdesligou,amulherperguntou:

–EunãopoderiaficarcomaSra.Trainor?Winstonconcordou,masLenapensouque,numacrise,eramelhor icar

sozinhadoquenacompanhiadaquelamocinha.– Obrigada, mas meu marido chegará a qualquer momento. Pode ir

com…–maisumavez,esqueceraonomedosenhorgrisalho.–Winston–completouele.–Temcerteza?–Sim.Elejávem.–Querqueagenteespereatéchamarapolícia?Lena re letia se aquela era uma boa ideia quando o telefone tocou.

WinstoninstintivamenteestendeuamãoparapegarofoneeoentregouaLena.Comdificuldade,eladisseumalôdesanimado.

EraJanetRostenkowski,que,comosempre,desatouafalar.–Oi,Lena.Sarahpediuqueeuligasseparavocê.Elaesqueceuocasaco

delãemcasa,porissoemprestamosumdaLinda.Elanãoqueriaquevocêvisseoagasalhoaíepensassequeelaiapassarfrio.Comovocê…

– Ela passou aí? A van passou aí? – Lena despejou as palavras, semsaberqualperguntaformularprimeiro.

– Passou, sim. E já foi. Eram duas meninas alegres rumo aoacampamento.Eusóqueriasaber…

–Umavanamarela?OmotoristasechamavaJ.D.?– Não perguntei o nome. Phil falou com ele primeiro. Me pareceu um

bomsujeito.Porquê?– Ele não trabalha no acampamento. O motorista e a monitora de

verdadeestãoaquicomigo.

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Janet passou um longo tempo em silêncio. A linha zumbia como se elaestivesseandandocomumtelefonecelular.

–Nãoentendi.Oquequerdizer?– O homem que pegou Linda e Sarah não trabalha no acampamento.

NãosabemnadaarespeitodelenoArno.–Avaneradoacampamento.Viologotiponalateral.–Seidisso.Elemesmodeveterpintado.Eosformulários?Vocêassinou

apapelada?Janet não respondeu. Lena a ouviu conversar comPhil e contar o que

Lenaacabaradelhedizer.Philpegouotelefone.–Lena.ÉoPhil.Oquehouve?–Achoquenossasfilhasforamsequestradas.–Sequestradas?Porquem?–Pelorapazqueveiobuscá-las.EledissequesechamavaJ.D.,certo?– Sim,mas, hã, eu o conheço. Do ano passado. – Phil hesitou ao dizer

isso.–Vocêoconhece?– Pensando bem, ele disse que se lembrava demim, do ano passado.

Eramonitorjúniornaépoca.Masnãoconseguimelembrardele.–Osverdadeirosfuncionáriosdoacampamentoestãoaquicomigo.–Putaquepariu!–Opalavrãosaiuforçado,foradoesperadoparaum

sujeitoreservadocomoPhil.–Assinei…osformulárioseramiguaisaosdoanopassado.

–Aquehoraselessaíram?–Nãosei.Fuiparaoquintal…Janet,aquehoraselessaíram?Lenaouviuavozdamulheraofundo,entrecortadapelaslágrimas.Phil

pegouofoneoutravez.–Elaachaquefazdemeiahoraa45minutos.–Vouchamarapolícia.–Chame.Aequipeverdadeiraestáaí?–Está.–Precisapegaroutrascrianças?– Acredito que sim – disse Lena, dando conta subitamente de que

precisavamalertarosoutrospais.ElasevirouparaWinston.–Vocês iampegaroutrascrianças,depois?

–Sim.Tenhoalistalánavan.–Quantas?

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–Maistrês,acho.–Entãová.Peguealista!–gritouLena,furiosapornãoterpensadonos

outros pais antes. J.D. não dissera que precisava pegar mais crianças?Kerrysaiudacozinhacorrendo.Lenavoltouaotelefone.

–Phil,voudesligarechamarapolícia.Depois falaremoscomosoutrospais.Oufareiissoprimeiro.

–Davidestáaí?–Não.Foitrabalhar.–Tudobem.Vamosatéaílhefazercompanhia.–Nãoénecessário…–Nadadisso,estamosacaminho.–Edesligou.Lenarecolocouofoneno

gancho,esquecendoqueWinstonaindaestavanacozinha.Quandoseviroue o viu ali parado, com cara de cão vira-lata, sempoder ajudar emnada,primeiro icouassustada,depois,frustrada.Nãoconseguialembraronomedodesgraçado.

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Três

DUAS OUTRAS FAMÍLIAS FORAM ATINGIDAS pelo mesmo raio que caiu sobre osTrainoreosRostenkowski.Uma,chamadaWalker,vivianumbairrochiquede Larchmont, perto do mar. A esposa já tinha ido trabalhar, depois dedespachar o ilho, Franklin, na van com J.D. Enquanto Lena entrava emcontato com a polícia, Winston ligou para a mãe na Primeira IgrejaPresbiteriana,ondeelaeraapastora.Aquartafamília,chamadaWilliams,moravaemWhitePlains.O ilho,Tommy, foi oúltimoa entrarnoveículo.Quando o pai dele, Mike, empreiteiro cujos caminhões circulavam pelocondado de Westchester diariamente, soube do ocorrido, mandou seusfuncionáriosprocuraremavanemminutos.

Lena estava no banheiro, ligando para a polícia. Teve de relatar oocorridoaváriosníveisdecomandodadelegaciaatéchegaraumcapitãoqueconseguiucompreenderoqueelatentavacontar.

–Entãoosujeitopegouameninaeajogounavan?–Não–explicouLenaerepetiuahistóriapelaterceiravez.–Ele ingiu

queeradoacampamento.Minha ilhaestavaesperandoavan.Osujeitosepassoupormonitor.Assineiapapeladaeelefoiembora.

–Querdizerqueelenãoeradoacampamento?–Exato.Cercademeiahoradepois,omotoristadeverdadechegou,com

amonitora.Elesestãoaqui,agora.Winston, atento, surgiuna soleiradaportadoquarto, atraiua atenção

deLenaeergueudoisdedos.–Elesnãosabemnadaarespeitodooutromotorista?–Não.Enão foi sóaminha ilha.Peloquesei,o carapegou tambéma

filhadeumaamigaemaisduascrianças.Winstonconfirmoucomummovimentodecabeça.Ocapitãopigarreou.–SãotodosaquidePelham?–Nãosei.Falecomomotorista.Lenapassouo foneaWinstoneoouviu informarosdetalhessobreas

famílias ao capitão. Em seguida, o motorista icou quieto, escutandoatentamente, balançando a cabeça, até desligar. Lena não queria desistirdocapitão.

–Comofoi?Oqueeledisse?– Precisamos telefonar para a delegacia de Westchester. O capitão

explicouqueocasopertenceàjurisdiçãodeles,poisasoutrasfamíliassão

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delocalidadesdiferentes.–MeuDeus,elemesmonãopodiafazerisso?Winston a encarou impassível e Lena concluiu que seria perda de

tempotentarentenderporqueapolícianãopodialigarparaodelegadodocondado. Pegou a lista telefônica e procurou os números de emergênciadivulgados pela prefeitura, encontrou o da delegacia de Westchester erepetiuahistóriaparaacadeiadecomandodelá.

A primeira viatura da delegacia parou na frente da casa cerca de 10minutosdepoiseopolicialquebateuemsuaportatinhaumaboanoçãodoqueacontecera.Eraquarentão,tinhaabarrigasalienteeonarizgrande.OnomenafardaeraNorman.QuandoLenacomeçouafornecerosdetalhes,notou uma ponta de ceticismo no policial, como se ele achasse que ahistórianãofossebemaquela.Aofalar,elapercebeuqueahistóriainteirasoavamaluca.Nãoasuaatitudenocaso,esimosequestro,oesforçoqueoplanejamento exigira. Deu graças a Deus por não ter sido a únicaenganadapeloesquema.Oempreiteiromaisimportantedaregiãotambémtinhadeixadoofilhoserlevadopelofalsomotorista.

Norman interrogava Winston quando ouviu um chamado pelo rádio,então fezumapausaparaatender.Lena,que tinha idoatéacozinha,nãoconseguiu decifrar o que diziam, mas como devia ser alguma novidade,voltou para a sala. O policial disse “câmbio e desligo” ao operador e sevirouparaLena.

–Encontraramavan.–Comascrianças?– Não. Vazia, a não ser por alguns objetos. Estão checando o registro

nestemomento.–Onde?–NumbecosemsaídaemWhitePlains.Devemterplanejadoumatroca.

Oveículochamavaaatenção.–PelojeitooceticismodeNormandiminuíra.Ele passou a fazer perguntas sobre suspeitos, pessoas que poderiamconhecer a rotina do acampamento. Lena não sabia de nada e Winstondissequeprecisavachecarcomopessoaldasede.Normandissequeummembrodaequipedodelegadoestavaacaminhodelá.

Bateramna porta e os Rostenkowski entraram sem esperar que Lenaatendesse. Janet estava comumaspectohorrível. Já eraumamulher sematrativos,quecompensavaaaparênciaruimcommaquiagemdiscreta,masnomomento,semcosméticosedepoisdechorarmuito,seurostoeraumamáscaraassustadoradepavor. IssosurpreendeuLena,poisJanetsempre

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foramuitocontrolada.Atrás dela, Phil suava e dava a impressão de que ia socar algo com

força, não importava o que fosse. Era alto e magro, com olhos semprearregalados e um pomo de Adão que icava protuberante quando falava.Lena raramente o via sem o paletó esportivo simples que usava até nosins de semana. Agora, porém, vestia apenas uma camisa azul demangacurta.

JanetseaproximoudeLena, ignorandoasoutraspessoaspresentesnasala.

–Foinossa culpa.Nósas forçamosa irparaoacampamento.Lamentomuito.Aculpaénossa.

Todos perceberam que a mulher estava fazendo cena. Linda sedivertira muito no Acampamento Arno no ano anterior, e Lena e Davidicaramimpressionadoscomasmudançasnameninadepoisqueelavoltoude lá. Sarah decidira sozinha ir para lá este ano, em vez de para oacampamentode futebol. Pelaprimeira veznavida, Lenadeuumabraçosinceronamulher.

–Nãoéculpadeninguém…Vocêsabequemaisduas famíliastambémforamvítimas,nãoé?

– Como assim?! – gritou Phil, enquanto seus olhos iam de Lena eNormanaWinston.

Eles contaram aos Rostenkowski as notícias mais recentes sobre asfamíliaseavan.Enquantoisso,LenaselembrousubitamentedequeDavidnãoestavaemcasa.Duranteostelefonemaseointerrogatóriopolicial,nãosentirasuafalta,masagora,vendoooutrocasaljunto,sentiuaausênciadomarido.Ondeestaria?

Foi nesse instante que um pensamento devastador a obrigou a sesentar.Quantasvezesouvira falarqueapolíciaquase sempresuspeitavaprimeirodospaisquandoaconteciamcoisashorríveiscomcrianças?Numplantão, na faculdade de medicina, cuidara do caso de um menino quetinha vários ferimentos provocados por faca. Descobriram que ele eravítima dos ataques de fúria do pai. O que a polícia pensaria dela e deDavid? Descon iaria dos dois? Lena sabia que isso era ridículo. Ninguémsequestraaprópria ilha.MasondeestavaDavid?Eporquesaíra,dandouma desculpa tão esfarrapada? Por que não retornara sua ligação? Nãoque suspeitasse do marido, mas entenderia se uma pessoa que não oconhecesse e não soubesse do amor dele por Sarah icasse com um péatrásnaquelascircunstâncias.

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UmaperguntadeNormantrouxeLenadevoltaparaaconversa, comoseadivinhasseapreocupaçãoemsuamente.

–Ondeestáseumarido,Sra.Trainor?–Como?–perguntou,considerandoasrespostaspossíveis.–Seumarido?Nãoécasada?Elemoraaqui?–Sim,claro.Bem…eleestátrabalhando.–Eleestavaaquiquandoavanchegou?Aprimeira?– Ah, não. Ligaram para ele de manhã bem cedo. – Lena sentiu que

Janetcravavaosolhosnela,masnãoaencarou.–Ejáochamou?Eleestásabendodoqueaconteceu?–Já.Ela achoumelhor esclarecer tudo, mesmo omitindo parte da verdade.

David poderia estar aprontando alguma, mas isso não tinha nada a vercomosequestroesódesviariaapolíciadainvestigação.OlhouparaJanetepara Phil. Não os convencera. Os dois viram o desespero por trás daaparente segurançadeLena.TalvezNorman também tivessenotado.Nosilmes e nos livros, ela sempre se irritava com os personagens que nãodiziam a verdadepara proteger alguéme estava fazendo amesma coisa,de certa forma. Mas não precisava desses pensamentos melodramáticos.AvisaraaDavidquehaviaumproblema,deixandorecadonacaixapostaldocelular.Portanto,disseraaverdade.

Normantrocounovosgrasnidospelorádioedisse:–Osdetetiveschegaram.Ela apontou para o acesso e todos viram um carro de polícia sem

identi icação estacionar. Dele desceram um homem corpulento e umamulherpequenaebaixa,deuns30anos.Caminharamatéaporta.

–ÉAuggieMartin.Vocêsestãoemboasmãos.Martineamulhermaltinhamchegadoàportaquandootelefonetocou.

Lenaiaparaacozinha,masNormanaimpediu,erguendoumadasmãos.–Auggie,querqueelaatenda?–perguntouaMartin.Martin se aproximoudele, cumprimentouLena comummovimentode

cabeçaesedirigiuaela.– Você está bem? Caso sejam eles, você consegue falar e manter a

calma?Lenaachavaquenão,mastentoudisfarçar.–Sim,claro,masoque…devodizeralgoemespecial?– Ouça, não prometa nada, tente mantê-los na linha o maior tempo

possível, instalamos um rastreador de chamadas. Não grite com eles.

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Entendeu?Lenafezquesimeatendeuotelefonenoquartotoque,poucoantesdea

secretáriaeletrônicaentraremação.EraDavid.– Oi. O que foi? Desculpe, não pude ligar antes. Deixei o telefone na

mesa.– Esperem um instante – disse Lena aos outros. – É David. – Eles se

afastaram um pouco e ela voltou a falar com o marido em voz baixa,torcendoparaqueninguémaouvisse.–Ondevocêestá?

–Jáfalei.Notrabalho.Oquefoi?–Precisavoltarparacasa.Sarahfoisequestrada.–Oquê?–Omotoristaqueveiobuscá-la era…umsequestrador.LevouLindae

maisduas crianças, também. –Aodizer isso, se viroupara conferir se aspessoasaescutavam.Normanaouviacomtodaaatenção.

–Doquevocêestáfalando?– Volte para casa. Explicarei tudo aqui… A polícia já chegou. E a

imprensaestáacaminho.–Sequestrada?Como…–Issomesmo,David.Ele não disse nada, nem desligou. Lena não estranhou a reação do

marido.Aqueleeraumsilêncioprovenientedochoqueeda incapacidadede dar sentido a uma informação. Para ela, era como se tivesse dito“metástase”, explicado a palavra e concedido ao paciente algum tempopara assimilar a notícia. Esperava, enquanto David permaneciamudo dooutroladodalinha.Elequefalasseprimeiro.

–Estouindoparacasa.DesligarameLenavoltouàsaladeestar.Todosestavamdepé. Janete

Phil conversavam com Martin e a detetive. Martin notou quando Lenavoltouefoinadireçãodela.Porcimadoombrodele,Lenaolhoupelajanelaeviuavandeumaemissoradetelevisãopassarna frentedacasa.Aindaolhavaparaelequandoohomemestendeuamão.

–Dra.Trainor,souodetetiveMartin.Lenaapertouamãodohomemeseperguntoucomoelesabiaqueela

eramédica.Elesorriu,segurandosuamãoporumpoucomaisdetempodoqueonecessário.Delonge,quandoelechegouàcasa,pareciagorduchoeprevisível, um típico policial grisalho, de cara avermelhada. De perto,porém,comorostobanhadopelaluzamareladadalâmpadaincandescenteda cozinha, os olhos azul-claros dele se sobressaíam e Lena sentiu que o

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conheciahaviamuitotempo,comosejáfossemamigosdelongadata.– Gostaria de apresentarminha colega, detetive Salerno. – Amoça se

aproximoue, paradado ladodeMartin, estendeuumadasmãos. Pareciajovem, nervosa, embora o sorriso de solidariedade que mostrou a Lenafossegenuíno.

– Denise. Podem me chamar de Denise, por favor. Lamento que issotenhaacontecido.

–Obrigada.–Lenasabiaqueafrasenãopassavademeraformalidade,masa voz suavea reconfortou.Nãohavia feitonada, anão ser cuidardaida da ilha para o acampamento. Em segurança. Tudo saíra como elaimaginara. Lena examinara a van. Ajudara Sarah a pôr o cinto desegurança. Diante dos detetives, tentava afastar o sentimento de culpacomosefossempernilongosincômodos.EaspalavrasdeDeniseajudaram.

MartinsedirigiuaosRostenkowski,bemcomoàdonadacasa.–Porquenãosentamosecomeçamos?–EmseguidaperguntouaLena:

–Seumaridovaidemorar?–Eleestáacaminho.–Vamosesperarporele?– Sim. Seria bom. Ele está no trabalho. Não vai levar mais que 10

minutos.–Assimqueterminoudedizerafrase,Lenasedeucontadequenão sabia ondeDavid estava, nem quanto tempo levaria para chegar emcasa.

– Então vamos esperar – disse Martin. – Eu adoraria morar a 10minutosdoserviço.–Ele fezessecomentárioesesentou.Lenanãosabiaseprecisavadizeralgoeelecontinuou:–Eubemquetomariaumcafé.

–Maséclaro,medesculpe.Fizemosumpouco,eracedo.Vouprepararmais.

–Nãoprecisasepreocupar.Podemospedirpelotelefone.–Nãotemnenhumproblema.LenaseguiuparaacozinhaeJanetfoiatrásdela,dizendoqueiaajudá-

la. Pelo jeito, a mulher havia recuperado um pouco da compostura. Seurostoestavamenosretesado.Masaindaestavatensa.Quandochegaramàcozinha,Janetfalouemvozbaixa:

–Equantoàimprensa?Lena sabia que as pessoas tinham pensamentos estranhos quando

submetidas a situações de grande estresse, faziam coisas malucas,tentando afastar a causa central da tensão. Ela presumiu que Janetestivessefazendoisso.Quemestavapreocupadocomaimprensaali?Oque

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elespodiamfazer?–Nãosei.Apolíciacuidarádisso.–Maselesvãoquererentrevistarospais.Eunãoconsigofalarnadana

frentedascâmeras.–Nãoserápreciso–disseLena,começandoaficarnervosa.–Maseusouamãedela.Lena sempre achara Janet uma pessoa autocentrada. Acha que é a

única que tem problemas e que os outros têm de escutá-los longamente.Cinco anos antes, sofrera um grave acidente de carro, que não foracausado por ela. Com várias fraturas, passou quase um ano no hospital.Lena não a conhecera antes disso, por isso ignorava o efeito do desastreem sua aparência, mas na época em que a conheceu Janet se referia aoacidente com frequência, e nas inúmeras menções às di iculdadeseconômicas da família amulher atribuía a culpa àquele episódio, pois asdespesasmédicasaindanãotinhamsidoquitadas.

Lenaseocupoupreparandoocafé,semresponderaJanet.MaspensounooutrofilhodosRostenkowski,estudantedoensinomédio.

–OndeestáPaul?–Emcasa.DeveirparaMontanaamanhã.Osavósdeumamigomoram

lá, numa fazenda. Pensamos que seria bom para ele conhecer o Oeste. Eparanósdoisseriabomtirarduassemanasdefolga.

Lenanãoaguentavamaisaquelafalação.Sóqueriaduascoisasnaquelemomento: que David voltasse para casa e ouvir o que o detetive tinha adizer. Pediu a Janet que levasse as xícaras para a sala de estar e icouobservandoocafépingardacafeteiraenquanto torciaparaescutaravozdomarido.

Terminaram de tomar o café e David ainda não havia chegado. Phil eJanet levantaram questões que não podiam mais ser adiadas, sobre aimprensa e as outras famílias. Martin respondeu da melhor maneirapossível,tomandocafé,ecalmamenteassumiuocontroledasituação.

– Vamos começar? – perguntou Lena, inalmente. – David deve terficadoretidonaHutchinsonRiverParkway.

–EvitoaHutchaestahoradodia.Éprecisotermuitapaciência–disseMartin,pondoaxícarasobreamesaeselevantando.

– Pessoal, obviamente não temos nenhuma experiência neste tipo decrime. Para dizer a verdade, nunca atuei num sequestro. Em 24 anos depro issão,nuncavium.Entrareiemcontatocomquementendedoassunto,masantesgostariadeesclarecerquemefaltaexperiência.

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A declaração impressionou Lena. A coragem de admitir isso aconvenceudacompetênciadodetetive.

Martinabriuoblocoeconsultouasanotações.–Avan.Vocês sabemqueeles a encontraram.Digo “eles”porquenão

fomosnós,dapolícia.JádevemsaberqueumadasvítimaséMikeWilliams.Comcertezajáviramoscaminhõesda irmadopaideleporaí.Vermelhos,comletrasbrancas?Assimqueelesoubedoocorrido,mandoutodosparaaruaeumadasequipesavistouavan.Foimuitointeligentedapartedele.Duvidoquefosseencontradatãodepressadeoutrojeito.

–Nãofoidepressaosu iciente.–TodosolharamparaPhil,quemanteveosolhosfixosàfrente,semquereracusarninguémcomsuadeclaração.

–Semdúvida.Ascriançaslevavamsacolasdeviagememalas.Suponhoquesejaaregradoacampamento,certo?–Ostrês izeramquesimcomacabeça. – Bem, asmalas estavam na van, abertas. Pelo jeito, elas tiraramparte das roupas. Vocês precisam dizer quais foram. E só havia duassacolas.Acreditamosquetenhampostoroupasbásicasdetodosnasoutrasduas.

Janetfungouaoouvirosdetalhes.LenaseperguntouquetipodeforçaJ.D.haviausadoparaobrigarSaraha fazeralgoassim, tirarasroupasdesua mala e colocá-las junto com as das outras crianças, numa sacolacomum.Peloqueimaginava,a ilhaserebelariacontraumaordemdessas.TeriaJ.D.seguradoameninapelobraçoparaobrigá-la?

– Imaginamos que o sujeito que levou seus ilhos tenha um cúmplice,queoaguardavaemWhitePlains.Nãotemoscomosaberqualeraooutrocarro, nem se havia mesmo um. Nosso pessoal está procurandotestemunhas,masachoquevaiserdifícil.

–Ondeencontraramavan?–perguntouLenaantesde saberporqueissoimportavaparaela.

– Próximo da rua 287. Há um estacionamento à esquerda, perto daprimeira saída paraWhite Plains. Estava atrás dele, numa estradinha deterra, onde começarão a obra no ano que vem. Longe da vista de quempassavaedosprédiosquedavamparaoparque.

Lena mal escutou a resposta. Fizera a pergunta apenas para obrigarMartin a falar, pois tornava-se mais dependente de sua voz a cadamomento.Sentiaqueelesabiadascoisas.Resolveriatudo.

–Muitobem…–Aportadafrenteseabriueointerrompeu.David, que passara pelas viaturas policiais na frente da casa e pelos

veículosdasemissorasdeTV,chegandoatrocaralgumaspalavrascomum

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policialnogramado,aindaestavachocadoquandoentroueviuasalacheiadegente.Lenase levantoue foiatéele,compressa.Queria icarpertodomarido.Precisavatocá-lo.

–Lamento,pegueimuitotrânsitonaHutch–disseele,passandoumdosbraçospeloombrodeLena.Martinseaproximou.

– Sua esposa deduziu que isso acontecera, Sr. Trainor. Sou o detetiveMartin.

–DavidtirouobraçodoombrodeLenaparaapertaramãodopolicial.– E esta é a detetive… – Ele olhou em torno, procurando Salerno. Mas amulher estava na cozinha, falando ao telefone. – Bem, minha colega é adetetive Salerno. Se não se importam, eu gostaria de continuar. Depoisforneceremososdetalhesparavocê.

–Espereumpouco.Nãopossoacreditarnoqueaconteceu.Querdizerque um sujeito para na frente da casa e vocês deixam as crianças iremembora comele? – falouDavid, olhandoparaosRostenkowski,masLenasabiaqueelaeraoverdadeiroalvodaacusação.Umsilênciomortaltomoucontada sala.Elaprecisou se controlar aomáximoparanãogritar comomarido, perguntar onde tinha ido, por que não estava ali para ajudá-la aver que J.D. era um impostor. A voz abençoada de Martin quebrou oconstrangimento.

–Nãopodemosculparninguémnesta sala, Sr.Trainor.Aoqueparece,vocês foram vítimas de um sujeito muito esperto. Não izeram nada deerrado.Entãovamosnosconcentrarnatarefadelocalizarseus ilhos,estábem?

LenaesperavaqueDavidtivesseouvidoaquilo.Seráqueelefaziaideiado que ela estava passando?Não tirava os olhos domarido, queria fazercontato com ele. “Por favor, David”, pensou Lena, “as expectativas mecegaram. Confundiram todos nós. Deixei Sarah partir como um balão degás que me esqueci de amarrar ao pulso. A culpa está me corroendo.Nossafilhinhaestáperdidaporaí.Porfavor,meajude!”

MasDavidolhava inexpressivoparaMartin, evitandodeliberadamenteencararaesposa.Lenapercebeuqueeledeviaestarnumasituaçãoaindamaisdi ícildoqueadela.PelomenoselaestavaemcasaparaencararJ.D.,paraserenganada.AomenossedespediradeSarah.David talvez tivessedevivercomasconsequênciasdesuaausênciapelorestodavida.

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Quatro

J.D.NÃO DISSE QUASE NADA a caminho da casa de Linda, depois de buscarSarah.Fezumaligaçãopelocelularenquantodirigiaeameninasabiaqueissoeraproibido.Masfoiumtelefonemarápido,noqualelesóresmungousimenãoantesdedesligar.Deondeestavasentada,Sarahviaapenasummonte de cabelo encaracolado acima do encosto de cabeça do banco domotoristae,ocasionalmente,orostodelenoretrovisor.

–Estáconfortávelaí?–perguntouelequandoseaproximaramdacasadeLinda.Sarahfezquesimcomacabeça.

Ela icou contente por ver a amiga quando chegaram à casa dela,embora amenina estivesse furiosa por algummotivo. Sarah permaneceunavanenquanto J.D.desciaeajudavaoSr.Rostenkowski comamalaeasacoladeviagem.JanetsaiudecasalevandoumagasalhodelãparaLinda,quesevirouparagritaralgoparaamãe.

O rapaz abriu a porta lateral e Linda entrou. Ela não espichara tantoquanto Sarah. Era miúda, de cabelos escuros e costumava icar nervosapor coisas à toa. No entanto, ela e Sarah se entendiam nas questõesprincipais,entreasquaisaliçãodecasa(nãoligavamparaosdeveres),osmeninos (não precisavam bancar as idiotas na frente deles) e o futebol(como a amiga, ela também jogava bem). Linda, que costumava sedesentendercomamãe,eraa fúriaempessoa.AntesqueSarahpudessedizer qualquer coisa, a Sra. Rostenkowski apareceu na porta da van,segurandooagasalho.

–Leveocasaco,Linda.Tome.–Nãoprecisodele!Jáestoulevandoummoletomeumpulôver,nãofaz

muitofriolá.–Nuncasesabe.Émelhorlevar.OSr.Rostenkowskisurgiuàporta.Elepegouoagasalho.–Vouguardarnamalaparavocê–disseaLindaantesdeseguirparaa

traseiradavan.ASra.RostenkowskiolhouparaSarah,comoquempedisseajuda.–Apostoquevocêestálevandomoletometambémumcasacodelã,não

é,Sarah?Ameninaselembroudoagasalhodelaemcimadocestodecobertores,

noquarto.Napressa,Lenaseesqueceradele.–Não,esquecidetrazer.

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–Estávendo?–disseLinda,sentandoaoladodeSarah.– Não estou vendo nada – rebateu Janet. – Vou pegar um casaco seu

para ela. A mulher voltou para dentro de casa e Phil a acompanhou,parandonametadedocaminho,incertoarespeitodoquedeveriafazeroufalar.AoladodeSarah,Lindaexplodiaderaiva.

–Elasemprefazisso.Digaquenãoquerlevaroagasalho.–Nãovoumentir,Linda.Mandaramlevarumcasaco,eeuesqueci.De repente o rosto de J.D. surgiu a 30 centímetros, e ele sussurrou,

cúmplice,enfiandoacaradentrodavan:–Olá,Linda, sou J.D.Nãoprecisa sepreocupar, tá?Nãoprecisausaro

agasalho,senãoquiser.–Oi.Masissoépuraestupidez.– Na semana passada entrou uma frente fria. E choveu um pouco. Se

vocêdeixaromoletommolhar,comovaifazer?Lindasuspirou,contrariada,edisseaJ.D.:–Vocêdevesernovolá.–Émeuprimeiroano.Paravocêéosegundo,nãoé?–É.–Bem, entãopoderáme ensinar tudoquando a gente chegar lá. – Ele

falou comarmuito sério e Lindao encarou emburrada até o rapaz abrirum sorriso. Depois a Sra. Rostenkowski chegou com outro agasalho e oentregou ao marido. Os dois se aproximaram da van. J.D. se afastou daportalateraleapanhouapranchetanobancodafrente.

–Nóspusemososcartões-postaisnamala?–Sim.Eucoloquei.–Ótimo.Mandepelomenosumesteano,tá?–Lindabalançouacabeça.

PercebeupelavozdamãequeelaiachorarenãoqueriapassarvergonhanafrentedeSarah.

–Vouficarbem,mamãe.– Eu sei. –A Sra. Rostenkowski entrouna van, apertou a bochechade

Linda e recuou com os olhos marejados, mas não chorou. O pai delainalmenteterminoudeassinarapapeladaeJ.D.deuavoltaparafecharaportalateral.

–Tudocerto,aqui?Prontasparapartir?A Sra. Rostenkowski não olhou para ele nem disse nada. Linda

respondeu:–Estamos.

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O rapaz fechou a porta. Linda,meio constrangidapela atitudedamãe,não falou nada por um tempo. Sarah olhou pela janela e viu o Sr.Rostenkowski paradonomeio do gramado. São asmães que acenamnasdespedidas, pensou Sarah.Os pais icam trabalhandoou apenas olhando.Elanãoentendiaporqueascoisastinhamdeserassim.

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Cinco

PARA UM DETETIVE QUE INVESTIGAVA o primeiro sequestro, Martin se mostravabemseguroe informado,pensouLenaenquantoouvia instruçõessobreamaneiradelidarcomosequestradoraotelefone.

– Como eu disse antes à Sra. Trainor, não prometam nada. Digamsemprequevãopensarnaproposta.Quemestiverfalandocomvocêsdiráque precisam assumir um compromisso imediatamente, talvez ameacemaltratarascriançasoualgoassim.Nãoseesqueçamdequeascrianças,vivasesaudáveis,sãooúnicotrunfodosequestrador.Elenãofaránadaaelasatéconseguirodinheiro.

Lena gostou do fato de ele falar de um aspecto especí ico do caso. Aimagem da van partindo para um destino ignorado a atormentava. Elaansiavaporumcontatodossequestradores.

AdetetiveSalernodesligouotelefonedacozinhaevoltouparaasaladeestar.Martinpercebeuqueelatinhanovidades.

–Oquefoi?–Avan foi furtadadeuma lojadeautomóveisemClifton,Nova Jersey,

há dois dias. A polícia de lá contou que foi um serviço benfeito:arrombaramoescritório,pegaramachaveepartiram.Comoesperávamos,limparamoveículo.Nãolocalizamosimpressõesdigitais,apenasalguns iosdecabelo.

Martinbalançouacabeçaesedirigiuaospais:– Vamosmanter isso em sigilo, está bem? Quantomenos os bandidos

souberem,melhorparanós.–Achaqueéumtipodequadrilha?–perguntouPhil.–Duvido.Emgeralsãodoismalandrosquetentamganhardinheirofácil

raptando uma criança. Eles conseguem realizar o sequestro, o que é apartemais simples,mas depois não têm amenor ideia do que fazer. Porissoo telefonemase torna tão importante.Vão tentardara impressãodequeplanejaramtudo,masprovavelmenteestarãoapenasblefando.

David olhou para Lena, que sentiu os olhos do marido ixos nela e oencarou. Ele parecia diferente, como se o choque houvesse passado, ainformação tivesse sido absorvida e a culpa, sufocada. Agora ele tratavadosdetalhes,comoosdemais.

Martinolhouparafora,notandoquehaviacadavezmaisrepórteres.–Pelo jeitoa tropaestáchegando.Westchesteréo lugarparaondeas

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pessoassemudama imdegarantirqueos ilhoscresçamemsegurança,algo impossível numa metrópole. Até parece… Esperem só para ver ospolíticosusaremocasoparasepromoverna frentedascâmeras.–ElesevoltouparaosRostenkowski.–Porquevocêsnãovêmcomigo?Vouajudá-los a passar por eles sem impedimentos. Vocês precisam ir para casa,esperarotelefonema.

Lena sentiu o estômago contrair.Martin servira de tábua de salvação,masagoraiaembora.Aoselevantarparasair,Janetfalou:

–Lamentomuito,Lena.– Pelo menos as meninas estão juntas – respondeu ela, sem saber

direitooqueissosignificava.Oquepoderiahaverdebomnessahistória?TodossaíramcomosRostenkowskieosdetetives,excetoDavideLena.

OpolicialNormanestendeuamãoparaela,queocumprimentounasaída.– Lamento que isso tenha acontecido com a senhora – disse em voz

baixaecalma.Masseusolhosdiziamoutrascoisas,comosealembrassemde que ele sabia que Lena não fora inteiramente sincera com ele. Elaagradeceu e guardou a imagem de seu rosto. De agora em diante,pretendiadizerapenasaverdade.

Depois que a porta se fechou, David e Lena icaram novamentesozinhos.

– Eles vão encontrar pistas, não acha? – disparou David, como se nãovisseahoradefazerapergunta.

–Pistas?–Coisasquevocê,nós,Janet,Philpossamternotado.–Não.–Não?–Não,David.Tenhadó,foitudoexatamentecomoesperávamos.–Nãoestouacusandovocê.–Está,sim.Vocênãoestavaaquiquandoissotudoaconteceu.Entãonão

critiqueagora.–Masapostoquehaviaalgunssinais,sepensarbem.–Vimanchasdetabaconosdentesdafrentedele.–Bem…–Puxavida,David.Elefoigentileatencioso.Notouaboladefutebolde

Sarah,perguntouseelapraticavaoesporte…–Comoassim?–Dissequeelaiaadorarasatividadesrelacionadasaofutebol.

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–NãotemissonoAcampamentoArno.–Foioqueeufalei.Sarahtambém.Maseleexplicouquepassariaater

esteano.Pela lentidão da esposa ao pronunciar a frase, David soube que tinha

razãonesteponto,queLenaadmitiaque,nomínimo,poderiamencontraralguma pista sobre o disfarce naquela evidente falta de conhecimentosobreoacampamento.Masnãoqueriapressionaraesposa.

– Vamos examinar o material promocional do acampamento. Talveztenhamosdeixadopassaralgosobreumnovo…

–Não!–retrucouLena,áspera.–Quediferençaissofaz?Achaqueeuiadizer,“Ah!Vocênãosabeque lánãotemfutebol?Entãonãopassadeumimpostor!Veioparasequestrarminhafilha,aposto.Polícia!Polícia!”?

Aslágrimasmolharamseuscílios,maselasufocouochoro.Erahoradeimporlimites.ElaqueriadizeraDavidqueserecusavaasentirculpa,aseconsiderarresponsável.Martintinharazão.Nãoeraculpadeninguém.SeDavid encontrasse motivos para acusar alguém, teria de lidar com issosozinho.Lenasevirouparaajanela.

Ver uma quantidade cada vezmaior de carros de reportagemna rua,onde reinava uma tremenda confusão, revelou uma verdade a Lena: osequestrodeSarahnãopoderiaserreduzidoapoucoselementosbásicos.Quando imaginara icar sozinha com David, depois da partida da ilha,pensava em resolver questões especí icas, tratar de problemas docasamento. Mas agora algo imenso e aterrorizante acontecera e invadirasuavida,algocomqueelanãoeracapazde lidar,atépela faltadedados.Esse era, sem dúvida, um problema que David não podia ajudá-la aresolver. Sua experiência pro issional a levava a reduzir e eliminarvariáveis, até chegar à causa primordial de uma doença. Nesse caso,porém, não existiam sintomas e resultados de exames. Sua busca porrespostasprecisavaserabrangenteeissoaamedrontava.

David disse algo que ela não entendeu e, quando ia perguntar aomaridooqueera,otelefonetocou.Elesgelaram.

– Chame Martin – disse Lena, presumindo que fosse atender, sempensarnoassunto.

–Vocêvaichamá-lo.Euvouatender.MasLenajáestavaameiocaminhodotelefone.Nãopensavaemquem

deviaatenderequemdevia ir lá fora–suaúnicapreocupaçãoeraSarah.Em sua mente não era o sequestrador que estava ligando, mesmo queestivesse esperando o chamado dele, e sim Sarah. O toque do telefone a

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chamava para obter respostas, para conversar com alguém que estavacomsua ilhanaquelemomento.PegouofoneenquantoDavid,percebendoquenãoadiantavadiscutir,abriuaportaesaiu.

–Alô?Do outro lado da linha, em vez de uma voz desconhecida, Lena ouviu

umadasvozesmaisfamiliaresdesuavida–sonora,viril,amorosa.– Oi, querida. Perdi a noção do tempo. Queria falar rapidinho com

Sarahbell,antesdaviagem.Elajáfoi?Pega de surpresa, Lena começou a chorar. Seu pai, acostumado às

interrupções nas chamadas internacionais, pensou ter ouvido um somparecidocomchoro,masachouquefosseapenasruídonalinha.

–Papai…–Oque foi,meubem?–perguntouele, constatandoquea ilhaestava

realmentechorando.–Pai,aSarahfoisequestrada.O pranto de Lena aumentou assim que ela pronunciou a frase. Nem

escutouopaifalar:–Oquevocêdisse?!AportaseabriueMartinentroucomDavid.PensandoqueLenafalava

comosequestrador,odetetivefezcarafeiaaovê-lachorando.Aproximou-secalmamenteeperguntoucomvozabafada:

–Sãoeles?Lena não conseguiu responder. Passou o telefone para David,

gesticulando. Ele atendeu, olhando para ela e paraMartin. Finalmente, amulherconseguiudizer:

–Éomeupai.Davidrespiroufundo,aliviadodeinício,depoistensocomaperspectiva

deconversarcomosogro.–Richard,éDavid.–David,oqueestáacontecendo?–NãoseioqueLenacontou,mas…–Elafalouemsequestro.Davidengoliuemseco,umedeceuos lábiosesepreparouparacontar,

temendoterquedizerquenãoestavaemcasaquandoafilhafoi…– Sarah e mais três crianças. Um cara se passou por monitor do

AcampamentoArno.Lembra-sedequeelaia…– Sim, por isso liguei, queria falar com ela… Se passou por monitor?

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Comoassim?–Não sabemosquase nada. Tudoparecia normal.O rapaz aparentava

ser monitor, a van tinha o logotipo da empresa, ele apresentou adocumentação.Masnãoeradoacampamento.

–Apresentouaidentidade?–Sim.–Davidnãoqueria soarhesitante,nãoqueriaacabar revelando

quenãoestavalánahoraqueafilhapartiu.–QuerofalarcomLena.–Claro.Voupassarparaela.Ela se recuperou o bastante para falar. Martin se afastou quando

entendeuquemestavanalinha.–Papai.– Querida. Meu Deus! Não consigo nem imaginar o que vocês estão

passando.Chamaramapolícia?–Sim,jávieram.–Conheceasoutrascrianças?–SóaLinda.VocêdeveterouvidoSarahfalardela.–Claro.–Nãoconhecemososoutrosdoismeninos.–Masquemerda!Oqueelesquerem?–Nãosabemos.Penseiquefosseumdelesquandovocêtelefonou.–Droga! –A linha icou silenciosaporalguns instantes. –Nãodápara

acreditarqueissoestejaacontecendo!–Eusei.–MeuDeus!Querida,vouatéaí.Lenaesperoupararesponder.Percebiaqueopaiestavasendosincero

aodizer isso,mas também sedeu contadequenão seria prudente e eleseriapresoquandooaviãopousasse.

–Nãohánadaquevocêpossafazer.– Meu Deus. – Seguiu-se uma longa pausa. Lena imaginou lágrimas

escorrendo pelo rosto irme, formoso e moreno do pai. Mas, quando elefalou, a voz saiu vigorosa, desa iadora. – Eles não sabem com quem semeteram.Sarahvaidarumtrabalhão.

Lena voltou a chorar quando ouviu aquilo. O pai tinha razão. Elapensavanavulnerabilidadeda ilha,noperigoqueelacorria,edeixoudelevar em conta o que as pessoas diziamde Sarah, como ela era decidida,independente e con iante. Sempre acreditou que a menina herdara as

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qualidadesdoavô,umsujeitocorajoso.Agoraprecisavadacoragemdele.Acadaminutoasituação icavamais

complexa e arriscada.Martin estava de saída. Ninguém telefonara. Davidnão tinha resposta para nada. Mesmo que seu pai pudesse vir, de queadiantaria?OhorrordesaberqueSarahestavaperdida–umamenininhasoltanummundoimensoedesconhecido–fezLenagelar.Nãotinhaondese segurar. Afundava. Falava com o pai, olhava para o marido, mas sesentiacompletamenteperdida.

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Seis

SARAH E LINDA BATIAM PAPO quando a van estacionou no acesso comprido eelegante que levava a uma mansão branca revestida de madeira cujoquintal gramado descia até a baía. Quando ergueram os olhos, as duasmeninas soltaram exclamações de espanto por conta do tamanho eesplendordolocalelogoriramdesuaprópriasurpresa.

J.D. seguiu a mesma rotina que adotara ao buscar Sarah e Linda.Cumprimentou a mãe, uma senhora afro-americana de uns 40 anos queusavacolarinhoeclesiásticocomotailleurtípicodaspastorasprotestantes.Depoispegouamalaeasacolaeaslevouparaavan,guardou-asnapartedetráseapanhouaprancheta.

Quando Linda avistou o menino moreno e magro que saía da casa,acompanhandoamãe,sussurrouaSarahquejáoviranoanoanterior.

–ElesechamaFranklin.Euoconhecinaauladeteatro.NãogostaqueochamemdeFrankepassaotempointeirolendo.

Defato,elecarregavaumlivrodebaixodobraço.Paroueesperouqueamãe terminasse de assinar a papelada. Sarah notou quemais uma vez opai não se encontrava por perto. Pela janela, ouviu a mulher conversarcomJ.D.

–…aviãoquevemdeBerlim…Ela sevirouparao ilhoeosdoisbaixarama cabeça juntos.Amulher

falou de olhos fechados, depois os abriu e abraçou Franklin de um jeitomeio indiferente. J.D. abriu a porta lateral e o garoto entrou. Não dissenada às meninas e sentou no banco atrás delas. Quando recuavam peloacesso,Sarahviroueviuqueelejáenfiaraacaranolivro.

A última casa em que pararam também era grande e icava numterrenobemcuidado. Sarahnotouquehaviauma sériede equipamentosesportivos nos fundos, além de quadras de basquete e de tênis e umapiscina. Ela se perguntou por que alguém se dava o trabalho de ir a umacampamento,quandotinhatudoaquilonopróprioquintal.

Tanto a mãe quanto o pai saíram com o ilho, acompanhados pelosoutros dois ilhos, umamenina de 4 anos e um rapaz adolescente. Lindaresmungava por discordar de alguma coisa, mas Sarah nem lhe davaouvidos. A cena feliz que transcorria à sua frente a comoveu. Omenino,cujo nome mais tarde saberiam ser Tommy, abraçava a família. Quandochegou a vez da mãe, de olhos escuros e vivos e traços hispânicos ou

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indianos, elao apertounum longoabraço, acariciou seu cabeloeobeijounoaltodacabeça,antesdelimparaslágrimasdorostodogaroto.OpaideTommy,umsujeitocorpulento,derostoredondo,umpoucomaisvelhoquea esposa, girou o ilho no ar e o colocou no chão com cuidado. Omeninopraticamentecorreuparaavane,quandoentrou,sorriuparaasmeninas,dizendo“Oi”antesdesesentardoladodeFranklin.

Quando se afastavam da casa, Tommy acenou vigorosamente para afamília, e seu irmão mais velho bateu na janela lateral para que airmãzinha em seus braços pudesse dar tchau também. A mãe sorria,apesar das lágrimas. O menino só parou de acenar quando dobraram aesquinaeacasasumiudevista.EntãoseapresentouaFranklin:

–Oi,souoTommy.Franklinergueuosolhosdolivroedisse:–Oi.Sarah queria virar e se apresentar, mas Linda não parava de falar.

Finalmente,osolhosdelasecruzaramcomosdeTommy.Elesorriu.–MeunomeéSaraheestaéLinda.–Oi –disse ele,mais contido, comum tomreceosonavoz.Herdaraos

olhos da mãe, mas não a cor da pele. Era ummenino impressionante. –Você já conheceo acampamento? – perguntou a Sarah, que ia responderquandoFranklinfalou,pensandoqueaperguntaeraparaele.

–Sim,serámeuterceiroano.Ésatisfatório.Franklin voltou ao livro. Tommy e Sarah trocaramolhares e ela quase

riu alto quando ele fez uma careta para questionar o uso da palavra“satisfatório”.

Avanseguiupelavia287,engarrafadaebarulhenta,oquemanteveascrianças quietas por algum tempo. J.D. as observava pelo retrovisor efinalmentefalou:

–Oquemediz,Linda?Éparaviraraqui?Agarotariu,nervosa.–Seilá.–Vamostentar–disseJ.D.,sorridente.Passouparaapistadadireitae

desceucomavanpelasaídadaviaexpressa.A voz de Franklin, aguda e objetiva, surpreendeu os companheiros de

viagem:– Com certeza o caminho não é esse. Precisamos seguir pela 287 até

TappanZeeedepoisrumoaonorte.Pelo retrovisor, J.D. olhou para ele e sorriu, tentando esconder sua

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preocupação.– Tem razão, Franklin. Mas não vamos direto para o acampamento.

Preparamosalgoespecialparavocêshoje,umaexcursãosurpresa.– Que tipo de excursão? – Franklin sentou-se na beirada do banco e

fechouolivro.– Já vai ver. É uma pequena surpresa. Vocês levarão apenas o

indispensáveledepoisiremosparaoacampamento.–Nossospaissabemdisso?– Claro que sim. Inventamos o passeio ontem à noite, na reunião dos

monitores,eavisamosatodospore-mailhojedemanhã.Franklin parou de falar, mas os outros, percebendo as dúvidas

implícitasnasperguntasqueogaroto fez,pareceramcéticos.LindaolhouparaSarahantesdedizer:

–Nãofizemosissonoanopassado.–Não.Énovidade.Massaíramemexcursõesnoanopassado,certo?–Sim,saímos.–Fizeramcaminhadaseoutrospasseios,nãofoi?–Issomesmo.–Bem,pensamosqueseriamelhororganizaraprimeiraexcursãoantes

de chegar ao acampamento, em vez de viajar até lá, dar meia-volta eregressaramanhã.Assimébemmaiseficiente.

Tommypareceusatisfeitoeperguntou:–Paraondevamos?– Isso é segredo. O Sr. Everett me fez prometer que eu não contaria

nada.– Quem é o Sr. Everett? – perguntou Sarah, notando algo que a

desagradavanamaneiracomoJ.D.deuanotícia.–Umdosmonitores.Eleéespecialistaemsobrevivêncianaselva.–Oqueéisso?FranklinrespondeuantesdeJ.D.conseguirfalar.– Treinamento de sobrevivência. A gente aprende a procurar comida,

construirabrigosprovisórios,coisasdessetipo.–Emseguida,perguntouaJ.D.:–Masessaatividadenãoésóparaadolescentes?

–Era,masoprojetofoimodificadoparaincluirtodos.Depois de dizer isso, J.D. saiu da rodovia, que não passava de uma

estradavicinalatrásdeumconjuntodeedi ícios,eentrounumcaminhodeterra esburacado. Em meio à poeira, Sarah notou que começava a

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esquentardentroda van.A estradinha viravapara a esquerda e quandoizerama curvaas criançasviramumapicapeprateadaestacionadanumbeco,auns100metrosdedistância.Quandoseaproximaram,umhomemcomcercade60anos,usandocamisapolodoAcampamentoArno,desceudo automóvel. Tinha cabelo comprido, em parte grisalho, e exibia umabarriga considerável. Quando a van parou e ele se aproximou da janelalateral,do ladodomotorista,abriuumsorrisoagradável,deumaorelhaàoutra,eestendeuamãoparacumprimentarJ.D.

–Comovai?Estátudobem?–Ótimo.Aturminhaaquiestáloucaporumaaventura.Ohomemolhouparaosbancostraseiros.– Estou vendo. Oi, pessoal. Sou o Sr. Everett. Prontos para uma

tremendafarra?Ressabiadas,ascriançasresponderamquesim.J.D.falou,descendodavan:

– Muito bem. Vocês precisam pegar as roupas mais quentes quetrouxeram, escova de dentes e sabonete, se tiverem, e guardar tudo emduas sacolas. As meninas vão dividir uma sacola, e os meninos, a outra.Vamos. Andem depressa. Queremos avançar omáximo possível ainda dedia.

As crianças, surpresasdemais,não reclamaramdenada.Desceramdavan uma atrás da outra quando o Sr. Everett abriu a porta lateral eseguiramsuasinstruções.Eleasajudou,aprendeuonomedetodos,dissea Franklin que ele não poderia levar livros, pois era para ser umacampamento “selvagem”, e conduziu as crianças para o outro veículo,carregandoassacolas.

–Eanossabagagem?–indagouLinda.–J.D.vailevá-laparaArno,ondeesperaráachegadadevocês.Depois que todos entraramna picape e a ivelaramos cintos, J.D. falou

comelespelajanelalateral.Suavozperderaotomjovial.– O Sr. Everett comandará esse passeio especial. É muito importante

prestar atenção ao que ele diz e obedecer suas instruções. Nós nosdivertimosmuitonomato.Mas corremos riscos epode serperigosoparaquemnãoconhece.OSr.Everettéespecialistaemvivernomato,por issofaçamoqueeledisserevãosedivertiravaler.

Sarah sentiu certo constrangimento. O cinto de segurança a apertava.Sempreodiaraessesdiscursosqueos adultos faziam. Seuavô costumavalhe dizer, às vezes de brincadeira, para “questionar a autoridade”. Noentanto, J.D. dava a impressão de que não era omomento de questionar

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nada.Erahoradeobedecer.Ficouquieta,masnãogostoudaquelahistória.OSr.Everettligouomotor.J.D.resmungouumapergunta.–Nãoquermesmomecontarqualéolocal?Ohomembalançouacabeça.–Disciplina,rapaz.Nãovamosdesviardoplanejado,o.k.?– J.D. fezque

sim.–Coisaspequenas,comonãofumaraquipertoenãodeixarpistasquepossamserachadas.Nãodeixepassarnada,ouvaidartudoerrado.–Eleacrescentouumsorrisoàfrase,semomenorcalorhumano.J.D.olhouparatrás,paraverseascriançashaviamentendidoodiálogo.Convenceu-sedeque não tinham e abriu de novo o sorriso vazio, enquanto o Sr. Everettdavamarchaaréparamanobraresairdali.

J.D.continuouparadoemmeioaocaloreàpoeira,atéapicapesumirdevista.Depois tirou a camisetadoAcampamentoArno, vestiu uma emquese lia “Nascar Rocks!”, que trouxera na mochila e usou a anterior paralimpar todas as super íciesda van. Pegouo celular, digitouumnúmero edisseapenas:

–Missãocumprida.Em seguida, desligou e seguiu para um bosque de pinheiros que se

estendiaparaalémdobeco.

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Sete

O DETETIVE MARTIN VOLTOU MEIA HORA depois e disse que achava melhorpermanecerali,paraocasodeossequestradoresligarem.David icoucoma impressãodeque estavamsendovigiadospor aquelepolicial simpáticoaté demais. Quando o viu à porta, Lena praticamente o abraçou. Emseguida, Martin pediu a ela e ao marido que contassem um pouco suahistória.

– Fui criada na Suécia – começou Lena, acreditando que qualquerconversaaajudaria.–EstudeinaPenn,curseimedicinanaJohnsHopkinsefizresidênciaemNovaYork.

–Ah,entãovocêésuíça?–Vocêquerdizersueca.–Issomesmo.Sempremisturoessascoisas.– Não. Quero dizer, tenho dupla nacionalidade. Meus pais são

americanos. Meu pai servia no Exército e ia sermandado para o Vietnã.Paranão ir, alegouobjeção consciente.Nãoaceitaram, então fugiuparaoCanadá e depois obteve asilo na Suécia. Não conseguiu se enquadrar noprograma de anistia do governo Carter. Não pode voltar para cá. Minhamãe, que começou a namorá-lo no colegial, foi morar lá com ele um anoantesdomeunascimento.

MartinfranziuatestaeLenaimaginouqueeletalvezfosseveteranodeguerra.Pareciaumpoucomaisnovoqueseupai.

–Sei,aguerra–disseele, semseestender.–Elechegouaconheceraneta?

–Claro,Saraheelesãomuitopróximos.Vamosvisitá-loduasvezesporano.

– Que sorte. Meu ilhomora na Califórnia. Tem 32 anos. Casou com owindsurfe.Comoéquevouterumnetodessejeito?

Lena não teve chance de responder. O celular de Martin tocou, eleatendeueselevantou.

– Os Rostenkowski receberam um e-mail. Vamos ver se chegou paravocêstambém.

Os três foram para o quarto e Lena consultou a conta de e-mail dohospital e a de sua clínica particular, sem encontrar nada. Na do Yahoo,porém, encontrou um remetente com endereço esquisito, em polonês oualgum outro idioma do Leste Europeu. O campo de assunto estava em

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branco. A mensagem, em corpo 20 e letras vermelhas, dizia apenas:“FIQUEMISPERTOS.ELESESTÃOBEM.”

Enquantoobservavama tela,Lenase lembroude terusadoacontadohospitalparainscreverSarahnoacampamento.AquelacontadoYahooelausava apenas para compras on-line e atividades similares. Contou isso aMartin,quedeudeombros.

–Averdadeiraprivacidadese tornoualgoraro–disseele.Seucelulartocou de novo, ele atendeu e informou Salerno sobre as mensagens.Descobriu que todas as famílias receberam e-mails iguais. – PrecisamoschamaropessoaldoFBIagora–dissetantoaotelefonequantoparaLenaeDavid.

Martin saiudoquartopara fazeralgumas ligações.David sentou-senafrente do computador e conferiu suas duas contas de e-mail. Não notounada de anormal nelas. Apesar do erro de ortogra ia, Lena considerou amensagem um sinal positivo. Eles iam usar computador. Agora ela podiaencontrarSarahali.Seuspensamentosvoaram.

–Quantoconseguiríamoslevantarsehipotecássemosacasa?AperguntapegouDaviddesurpresa.–Menosdoqueháseismeses.Uns150,200mildólares.–AchaqueBillnosdariaumempréstimo?–Numcasodesses,comcerteza.Bill era o irmão mais velho de David. Em vez de sair da cidade para

cursar uma faculdade, ele icou em Oklahoma e trabalhou com umempreendedorousado, ganhouuma fortunacompetróleoe seaposentouaos41anos.

Lenanãodissemais nada e saiu do quarto.Depois que ela se retirou,David voltou ao computador e checou uma terceira conta de e-mail.Encontrouumamensagemlá,masnãoeradosequestrador.

A natureza particular do sequestro os tornou sucesso instantâneo nainternet. Se Lena tivesse checado sua contanoYahoo cincominutosmaistarde, veria a notícia em destaque na página inicial do portal. Muitosrelatos começavam com algo no estilo: “O pior pesadelo dos pais,multiplicado por quatro, acontece neste momento no condado deWestchester, ao norte da cidade de Nova York.” Blogueiros e leitoresmanifestavam compaixão, preocupação, revolta e muita confusão. Asdescrições das crianças e até fotos delas na escola (que não foram

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fornecidasporLenaeDavid)seespalharampelossites.Na sala,Martin conversava com alguém que, supunha Lena, devia ser

do FBI. Surpreendeu-se ao olhar para o relógio antigo da sala e ver queeramapenas14h20.Pareciaquehaviapassadomuitomais tempo.Ela foiao banheiro, sentou-se no vaso sem levantar a tampa e fechou os olhos.Queriarecuperaroequilíbrio,voltaraagirdemodoracional,comomédica,e usar a pista vaga do e-mail para lidar com o problema, mas nãoconseguiaconcatenaras ideias.Apalavraondeserepetiaeseampli icavano banheiro, dando a impressão de ecoar, mesmo sem que ela a tenhapronunciado. Sarah poderia estar em qualquer lugar, pensou Lena. E aincertezaquaseafezvomitar.

David bateu na porta e perguntou se estava tudo bem. Ela disse quesim.

–Osoutrospaisvãoaparecernatelevisãoaqualquermomento–disseele.

Ela se levantou, olhou-se no espelho, viu que estava razoavelmentecomposta e foi para a sala. De pé ao lado deMartin, David assistia a umnoticiáriolocal.Orepórter,nafrentedeumamansão,comaságuasdabaíaao fundo, falava com o âncora do estúdio, con irmando que teriam umaentrevistaaovivoemseguida.

– Sabemos que o senhor JohnWalker fará um pronunciamento. Ele évice-presidente executivo da divisão internacional do Citibank. Sabemosqueelenãoestavaemcasahojedemanhã,quandoseu ilhofoiapanhadopela van do acampamento, ou melhor, sequestrado. O senhor WalkerpegouumaviãoemBerlimecruzavaoAtlânticoquando…achoqueelevaisairagora.

A câmera se moveu do repórter para a tribuna instalada perto doacesso à casa. A família descia pelo caminho. Lena viu um senhor alto,negro, impecavelmente vestido, acompanhado de uma senhora numvestido conservador e discreto. Uma mulher branca desceu com eles,agitadaegesticulandoparaaimprensa.Pareciaumaespéciedeassessora.O homem se aproximou do microfone e, experiente, esperou até quefizessemsilêncio.

– Farei umabrevedeclaração,masnão responderei a perguntas.Meunome é JohnWalker. Nosso ilho Franklin foi raptado esta manhã, juntocom outras três crianças que também iam para o Acampamento Arno,depois de sermos enganados por um dos sequestradores que se passoupormonitor. Trata-se de um ato de covardia indefensável, praticado por

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um ou mais indivíduos. Exigimos que os responsáveis por esse crimelibertem nossos ilhos imediatamente. Recebemos uma mensagem curtados sequestradores, por e-mail. Solicitamos aos cidadãos deste país quepassem à polícia qualquer informação que possam ter a respeito doparadeirodenossascrianças.Obrigado.

Os repórteres izeram várias perguntas a ele, que deu meia-volta eseguiu apressado pelo acesso, retornando para dentro da casa. Atento,Davidnãotiravaosolhosdatelevisão.

Martin, que falava ao telefone durante o pronunciamento, resmungoualgonalinhaeseafastoudeLenaeDavid.

– Não me importa de quem ela é amiga, tire a relações-públicas doCitibankdacasaedigaquenãovoltesemminhaautorização.–Depoisdeouviraresposta,desligoueolhouparaLena,comumsorrisodesapontado.

– Lamento, houve uma quebra de sigilo. Mais tarde conversarei comWalkerarespeitodisso.Vamosparaládaquiaumahora.Todosospais.

–Paraquê?–OtomdevozdeDavideraagudo,quasedesafiador.–Queremosreunirtodosnamesmasala.Estãojuntosnisso.–Nãoestamos,nada.OtaldoWalkernemnosconsultouantesdefazer

opronunciamento.–Issofoiumerro.–Errodapartedequem?–insistiuDavid.–Dele?Sua?Quernosreunir

numasalaparauminterrogatórioemgrupo,certo?–Ninguémestáinsinuando…–Ah,nãovemcomessa!Emcasodesequestrovocêssempresuspeitam

dospaisprimeiro,depoisdosparenteseamigos.–Trata-sedeumpontodepartida,mas…–Entãodiga:oquevocêsabe?– David! – Lena se assustou com a atitude do marido. Por que ele

agrediaohomemdeolhosazuismeigos,osalvador?–Fazapenasalgumashoras.Nãosabemosmuitacoisa.–Ligueocomputador.AdivisãodeWalkernoCitibankestáencrencada.

Ele está sendo investigadopor umadessas agências reguladoras. Vai verprecisava desviar a atenção desses assuntos, queria algo que izesse aspessoasteremempatiaporele.

–Vamosinvestigarisso,certamente…– Ou Mike Williams, o megaempreiteiro. Como achou a van tão

depressa?Muitagentetemfeitoessapergunta.–Eletemmuitosfuncionários.

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–Eummercadoimobiliárioemquedalivre.MartinfezumsinalindicandoqueDavidjáfalaraosuficiente.– Voltarei para apanhar vocês em cerca de meia hora. Nada de

conversar com a imprensa. E, francamente, Sr. Trainor, em seu lugar eudesligaria o computador. – Ele saiu antes que David pudesse responder.Lenafechouaportaeencarouomaridocomfrieza.

–Dequeadiantasaberquemfoi?–Comoassim?–EuquerosaberondeSarahestá!Querominhafilhadevolta.–Eutambém.–Entãoconcentre-senisso.Esqueçaosblogsqueandou lendoetodoo

resto.– Como acha que vou conseguir fazer isso, me concentrar em Sarah?

Meditando?–Podeser.Qualquercoisa,menosbrincardedetetive.Lena não aguentava mais. Saiu depressa da sala e foi para o quarto,

ondeviuocomputadorsobreamesapiscarcomoseachamasse.Irritada,desligou-o.

Maistarde,quandosaíramdecasacomMartin,ocalorsufocantedodiaderavezaum imde tardeúmido,de cheirosagradáveis.O tipodenoitede verão que Lena apreciava, especialmente na rua em que moravam.Seguiram para a casa deWalker mais oumenos nomesmo horário queLenacostumavavoltardotrabalho.Comfrequência,aodescerdocarro,eladedicavaalgunsminutosparaabsorveracalmafrondosadobairro.

Agora, porém,o caos reinava.Apesarde sermantidoadistânciapelasfaixasamarelasdeisolamento,opessoaldaimprensaapontavaaslentesegritavaperguntas,oquefezLenasesentirmaisaindacomoumalvo.Elesentraram no carro de Martin, que foi na frente com o motorista, e oautomóvel abriu caminho, metro a metro, passando pela massa derepórteres.Algunschegaramaperseguirocarroapé.

Ao ver a vizinhança, o mundo exterior, Lena voltou a sentir umdesesperoprofundo, comoseoproblema fossegrandedemaisparaelaenãohouvessemeiodeenfrentá-lo.SarahpassarapelamesmaruacomJ.D.emaisumavezLenasentiuquea ilhasumiranoespaçosideral.Elalutoucontraopânicoqueacompanhavapensamentosassim.

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Quando o carro avançou um pouco mais, David apontou para algo láforaeLenaolhou.Identi icouumvizinho,alguémquesempreviamporali,mascujonomeeladesconhecia,demáquinafotográ icaempunho,tirandoretratosdocarro.Maisdoqueospro issionaisdiantedesuacasa,aqueleamador a fez sentir a náuseade serumavítima célebre, a passageiradeumdesfilecondenado.Comesforço,evitouolharpelajanela.

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Oito

CHASECOLLINSCHEGOUAOHOSPITALporvoltadomeio-diae fezquestãodesernotadonashorasqueantecederamo imdeseuturno.Queriagarantirqueohorárioregistradonorelógiodeponto fossecon irmadopeloscolegaseprecisava que se lembrassemde sua presença naquela tarde.Quando asnotíciasdoestranhosequestrodequatrocriançaschegaramà lavanderia,ele tinhamuitoadizer a respeito. Forneceua sua superior imediataumadescriçãobemdetalhadadoque fariaaossequestradoresse topassecomeles um dia, com imagens que ela certamente recordaria caso fosseinterrogadaarespeitodapresençadelenohospitalnaqueledia.

MasChasenãosepreocupavamuitocomapossibilidadedealguémligá-lo ao sequestro. Estava apenas sendo cauteloso.Arrancou a peruca ao seafastar da van abandonada e seu cabelo quase na altura dos ombrosevitaria que fosse reconhecido por aqueles a quem se apresentara comoJ.D. Chegou a imaginar que se dirigia a uma das vítimas, o empreiteiroimportante,econversavacomele,davaconselhos,chamava-odeMikeeiaemborasemserreconhecido.

Quanto à sua ausência durante as quatro horas em que pegou ascrianças e abandonou a van, não acreditava na possibilidade de alguémnotá-la.Trabalhavana lavanderiadohospitalenuncahaviamuitoserviçopelamanhã.Defato,quandoretornou,nãoencontrounadaparafazeraté13h30.Opiorjátinhapassado.

Assimqueseuturnoterminou,Chasesubiuaoquartoandardoanexo,comumpacotevaziodebaixodobraçoparaocasodealguémvê-loporali.Seguiu até a ala vazia do andar e entrou na salinha no im do corredor,usando a cópia da chave que izera. Como sempre, o pequeno escritórioestavaimpecável.Semjanelas,tinhaummonitordetelaplanaeumtecladoemcimadobalcãodefórmica–seupostodecomando.Sentou-se,ansiosopor ver se a mensagem programada havia sido transmitida. Na últimahora, acrescentara o erro ortográ ico em “ispertos”. Seu pai consideravaissodesnecessário.Eleveri icou,contente,queseuesforçoparaapagarosrastros digitais havia sido e icaz. Os relatórios dos servidoresmostravamque foram realizadas diversas tentativas de localizar a origem damensagem,semsucesso.

Programouasegundamensagemeasdúvidassobreasensatezdaquelaparte do esquema voltaram a atormentá-lo. Não entendia por que o pai

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insistira em incluir aquilo no plano, poderiam ter ido direto ao resgate.Chase pensou que tinha algo a ver com as informações fornecidas a elespelocliente,masdesconheciaoteordelas.

Antes de desligar o computador, limpou todos os traços de suapassagem por ali, como os intermediários instruíram, formatou o discorígido,abriuumanovacontadeusuáriocomaidentidadedeoutrapessoaque também trabalhava no hospital e desligou o sistema inteiro. Agorapoderiaenviaramensagemfinaldocomputadordesuacasa.

Quandodeixouoanexoefoiparaoestacionamentopegarocarro,osolcomeçavaabaixar,sumindoporentreasárvores,efaziamuitocalorparaum imde tarde daqueles. Imaginou que seu pai e as crianças já deviamteralcançadoseudestino,fossequalfosse.Extasiado,seriacapazdesocaralgumacoisa,darcambalhotasegritardealegria.Masnãoqueriachamara atenção de ninguém. Em silêncio, repassou seu desempenho teatraldaquela manhã. A operação inteira dependia de sua transformação, dacapacidadederepresentaropersonagemJ.D.,umrapazgentil,sincero,umperfeito monitor de acampamento. Inspirou a criação num professor deeducação ísica legal que tivera no ensino médio. A peruca, com cachosdescontraídos, lembravaocortedecabelodesseprofessor.Chaseviuseupersonagementraresairdavan,acalmarasansiedadesdospais,mostrarcomotratavabemascrianças.

Entrounocarroefoiparacasa.DirigindonanoitedeNovaJersey,teveumavisãode aonde tudo aquilo o levaria. Ele tinha talento.O sucessonamissão da manhã comprovara isso. Sempre achou que poderia ser ator,masagorahaviacon irmadoqueeracapazderepresentar.Imaginouumacâmera cinematográ ica bem ali, no banco da frente, a seu lado, com odiretoreaequipeacompanhandotudo,pararegistrarsuaperformance.

–Não sepreocupe,meu caro, está tudoplanejado –disse emvoz alta,num fragmentode cenaque considerouadequadoaomomento. –Não sepreocupe. – E permaneceu na pele do personagem ao longo de todo otrajetopara casa. Sóodeixoude ladoquandoabriuaportados fundoseJennifer,suafilha,de2anosemeio,correuparaabraçá-lo.

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Nove

FOI PRECISO ATRAVESSAR MAIS UM corredor de repórteres para que elesconseguissem chegar à casa de Walker. Outros carros estacionados nafrentedopórticomostraramaMartinqueeleshaviamchegadoporúltimo.Quando subiram os degraus de acesso, um policial de Larchmont quevigiavaaportaosdeixouentrar.ParaLena,atépareciaque ingressariamnumrecantosagrado,comomembrosdeumclubeexclusivo.Aportadavaparaumvestíbulo,depoisumaescadalargaemespiralseparavaohalldasala de estar à direita e do salão de banquetes à esquerda. Os casais,sentadosemsofásepoltronasnasaladeestar, foramrecebidospelaSra.Walker, que ainda vestia seus trajes clericais. Ela se apresentou comoSheila, simplesmente, e disse que lamentava conhecê-los naquelascircunstâncias. O marido John icou atrás dela. Era mais alto do queaparentava na televisão. Tinha pele clara, cor de caramelo, e olhoscautelosos, que revelavam reserva e discernimento, o tipo de pessoa queDavidsempreachouantipática.Walkerdavaa impressãode terensaiadotudo, principalmente quando apertou a mão de Lena e de David aoconvidá-losparasentarnasala.

John fez as apresentações como se comandasse uma reunião deexecutivos.

– Já conhecem os Rostenkowski, presumo. E esses são o Sr. e a Sra.Williams.Foramosfuncionáriosdelequelocalizaramavan.

Mike Williams se aproximou deles com olhar altivo, parando uminstante na frente de Lena para apertar a mão dela e depoiscumprimentandoDavid.

–MeunomeéMike.Umapenaestarmosenvolvidosnisso.–Elerecuoueaesposadeuumpassoàfrente.–EstaéPor ira.–Eladavaaimpressãodesertímida,masavozeraafávelesimpáticacomumsotaqueleve.

–PodemmechamardePo.Todomundomechamaassim.Lena tentou lembrar o que David dissera sobre Mike. Para ela, o

empreiteirotransmitiacalorecon iança.Olhouparaomarido,comseuarinexpressivo e reservado. Ele não conseguia ocultar o fato de quesuspeitava de que um ou mais dos pais presentes haviam planejado osequestro. Lena examinou o grupo e concluiu que, no mínimo, o maridoestavaexagerando.

Em seguida, eles escolheram os lugares, sentaram-se e o café foi

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oferecidoaosTrainorporumasenhoracomumsotaquediferente,queeraa cozinheira ou a governanta. Martin conduziu a reunião sentado numacadeiraaoladodosofáemqueMikeseacomodou,tendoLenanadiagonaldeles. Quando o investigador começou a falar, os olhos de Lena sedetiveramemMike.Imaginouqueeletivesseasuaidade.Mesmoassim,ocabelodelejáestava icandomeiogrisalho.Usavacalçajeansecamisapolocom o logotipo da empresa no peito. Enquanto ouvia, ela o observava,pensandoquesepodesabermuitacoisaarespeitodealguémpelomodocomo a pessoa absorve palavras e ideias. Mike parecia ponderado erespeitoso,aberto,dispostoaavaliartudooqueMartindizia.

Oempreiteiroergueuosolhosderepente ixando-osnosdeLena,comosesoubessequeelaoobservava.Poralgummotivoelanãose incomodoude ser surpreendida. Não desviou o olhar. Mike balançou a cabeça,sorridente,eaencarou também. “Vaidar tudocerto”pareciadizercomoolharesóquandoLenacaptouamensagemelevoltouaatençãoaMartin.

– Mandamos uma equipe ao acampamento para descobrir o que elessabem, mas não esperamos obter boas pistas por lá. Supomos que osresponsáveis por usar o acampamento como pretexto para o sequestrodevemterapagadoosrastros.Masnuncasesabe.Sempremesurpreendocomanegligênciadoscriminosos.

JohnWalker, quemostrava impaciência com o desenrolar da reunião,resmungavaesemexianoassento,inquieto.

–Bem,atéomomentonãovinenhumanegligência,esimumaoperaçãomuito precisa. Se minha cronologia estiver correta, eles pegaram o ilhodosWilliamsnahoraexata,talvezsóumpouquinhodepoisdachegadadosmonitoresdeverdadeàcasadosTrainor.SeaSra.Trainoreosmotoristastivessempercebido o golpeminutos antes, o pessoal deWilliams poderiatersurpreendidoossequestradores,emvezdeencontrarumavanvazia.

–Eunãoacho…–começouDavid,masLenaointerrompeu.–Estáquerendodizerquefuilentaounegligente?– Desculpe, não quis dizer isso. Só que eles calcularam muito bem o

momentodeagir.Martinselevantouparavoltarafalar.– Certo. Já falei isto para os Trainor e para os Rostenkowski, mas

gostariadeenfatizarumaspecto.Oesquemafuncionouporquenenhumdevocês tinhamotivos para duvidar de que omotorista que chegou a suascasasnão fossedoacampamento.Pareciaum funcionárioe agia feitoum,portanto vocês só podiam presumir que fosse mesmo da equipe do

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acampamento.– Eu devia ter levantado uma questão – disse Mike, olhando para o

tapete.–EstranheiqueumacampamentonoestadodeNovaYorkusassevancomplacadeNova Jersey, eaindapor cimaplacade revendedor.Noentanto, deduzi que provavelmente tivessem acabado de adquirir oveículo,aindaprecisavamregistrá-loemNovaYorkealojadeautomóveisdeixou que usassem a van para apanhar as crianças, mesmo sendoirregular.Puxavida,eudeviaterperguntado.Talvezomerdinhacaísseemcontradição.

UmasombratomoucontadorostofrancoeluminosodeMike.Polevouamãoàpernadeleeaacariciou,comose játivesseouvidoaquiloanteseinsistisseemmostrarqueareaçãodeleforacompreensível.Philrompeuosilêncio.

–Duvidoqueele fossecairemcontradição.Eleera jovem,admito,masjáviváriosmentirososdepouca idade.Elenãovacilouconosco,nemcomascrianças.Naverdade,foimuitolegalcomelas,nãofoi,Janet?

Amulherfezquesim.Davidnãoconseguiuseconter.–Vocêdizqueelefoilegalequementiabem,mastenhocertezadeque

os sujeitos por trás desse esquema sabiamuma porrada de coisas sobrenóseascrianças.

–Concordo–disseJohnWalker.–Aondequerchegar?–Sóisso,seilá,comoumacoisadessaspôdeacontecer?Nas entrelinhas da fala de David havia uma acusação, mas ninguém

quissereferiraela.Martin iacontinuarquandoavozdeSheilaWalkeroimpediu.

– Desculpem, mas não me sinto à vontade com linguagem vulgar. Seique ouvimos palavrões aosmontes na televisão e tudomais. No entanto,peço que evitem falar assim aqui. Palavras como as que os senhoresusaram me incomodam e, nas atuais circunstâncias, soam ainda pior.Esperoquecompreendam.

Mikepediudesculpas.Davidbalançouacabeça,endossandoaspalavrasdooutro.Martin torceuparanão seesquecerdissoe conseguirmanteronívelemsuasintervenções.

–Bem,quetalnoscontaremtudooquepossaserrelevanteemrelaçãoao acampamento? Será que alguém, por exemplo, insistiu em buscar ascrianças,emvezdedeixarquevocêsaslevassematélá?

Pelojeito,ninguémtinharespostaparaisso.–Então,querdizerqueninguémfoiforçadoapermitirqueo ilhofosse

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buscado?Nãopodemosdizerquefulanodetal,doacampamento,telefonoue disse que seria melhor mandar as crianças de van para lá, com osmonitores?

– Acho que o folheto dizia algo a respeito de ser mais fácil para ascrianças que participavam pela primeira vez se despedirem dos pais emcasaeiremdevan–disseLena,hesitandoumpoucoantesdecontinuar–,emvezdeseremlevadospelospaisatéolocal.

–Não – disse Janet. –Não estava no pan leto. Fui eu quemdisse isso.Passamos por momentos di íceis com Linda, na primeira vez em que alevamosatéoacampamento.PorissolhesugeriqueSarahfossedevan.–Lena se surpreendeu ao ouvir as palavras de Janet, assumindo aresponsabilidade,poiselasemprecolocavaaculpanosoutros.

– Franklin tomou a decisão sozinho – disse John. – Ele mesmo tomoutodas as providências. Só perguntou se estávamos dispostos a gastar 50dólaresamaisparaotransporte.

Osoutrospaisponderaramarespeitoecompararamocomportamentodeseus ilhosaodeFranklin.LenasentiuareaçãodeDavidsemprecisarfitá-lo.AantipatiaporJohnWalkerprovavelmenteaumentara,pensouela.

– Vamos ver o roteiro da van – sugeriu Martin, sentando-se de novopara consultar seu bloco de notas. – A ordem sofreu alguma alteração,depoisdetersidoelaborada?–Aquestãodeixoutodossempalavras.JanetolhouparaLena.

– Eles só informaram o horário a cada família. Quando eu soube queapanhariamSarahantesdeLinda,pergunteisevocêqueriatrocar,nãofoi,Lena?Ouseráquesópenseiemfalarenãodissenada?ImagineiqueseriamaisfácilparaSarahseLindajáestivessenavanquandoelaembarcasse.

– Não me lembro de você ter dito algo a respeito. – De fato, Lenapensara em sugerir a troca poucos dias antes da data marcada para aviagem,masconcluiuqueestavamuitoemcimaparamudarocombinado.

As ideias de Lena sofreram um apagão súbito e uma sensação difusa,inegável e ameaçadora tomou conta de sua mente. O rosto de sua avósurgiu e sumiu, provocando um choque. O que signi icava aquilo? O queacontecera?Lenarespiroufundo,depoistiroudacabeçaavisão,ouoquequerquefosse.Olhouemtorno.ApenasMikeWilliamspareciatercaptadosuamudançarepentina.Oquehaviaocorridocomela?

Diversas pessoas entraram na casa durante a reunião, a maioriapoliciais fardados. A senhora obesa e o senhor latino que chegaramenquanto Martin terminava de falar não usavam uniforme e se

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comportavam como se fossem autoridades irrefutáveis. Martin se viroupara conversar com eles em voz baixa, depois os apresentou ao grupocomo “nossos amigos do FBI”. Lena, distraída, não entendeu seus nomes.Os dois acenaram rapidamente e foram examinar o computador deWalker.

Martin retomou a conversa sobre o acampamento, perguntando sobreprocedimentos, regras, motivo para escolha pelos pais, indícios deproblemas inanceiros,monitoresdoanoanteriordosquaisselembravame que poderiam ter tido acesso a informações con idenciais para usá-lasem seu plano abominável. David achou que Martin estava sendocontraditório, pois começara dizendo que não suspeitavam doacampamento e logo passou a fazer todos os tipos de perguntas sobre olocal.Deduziuquedeviaseralgumtruquedeinvestigador.

Lena olhava bastante para Mike e Po. Não falavam muito um com ooutro,nãosetocavamcomfrequência,maselapercebeuqueenfrentavamacrisejuntos.ÀdireitadeLena,Davidsesentaranumapoltronamaisaltae, para ela, era como se ele estivesse a quilômetros de distância. ExcetopelaatitudeemrelaçãoaosWalker,nãosabiaoqueeleestavapensando.Faziamuitotempoqueeladeixaradesaberoquesepassavanacabeçadomarido,queporsuavezpoucoseimportavacomoqueelapensava.Lenaolhouparaorelógiosobreamesa.Eramquasequatrohoras.SeSarahnãotivesse sido sequestrada, será que ela e David teriam iniciado o esforçopara vencer a distância que os separava? Ela sofria com a possibilidadeperdida.

Martin encerrou a série deperguntas e quis saber se algumaquestãoicara sem resposta. Phil perguntou sobre o resgate. Lena pensou queaquilo combinava comele,poisosRostenkowskiviviampreocupados comfinanças,promoções,aumentodepreços.

–Vamospagaroquepedirem,recusar,ouoquê?–Melhordeixarissodeladoporenquanto.Nãoseioquevaiacontecer,

o que os sequestradores pretendem exigir e o que os agentes federaisplanejamfazer.Seoprocurarem,porém,nãofalecomaimprensa.Essaéaregranúmeroum.

TodosentenderamqueJohnWalkereraoalvodaquelecomentário.Eleajeitouocorponapoltronaedisse:

– Lamento, mas tenho obrigações perante os acionistas do banco.Tambémpertenço ao conselho de diversas organizações conhecidas. Pelomenosdaminhaparte,tenhoquelidarcomaimprensanestacrise.Minha

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empresaestámaisdoquedispostaacompartilharrecursoscomvocês.Detodomodo,esperoquecompreendamminhaposição.

– E espero que compreendam, ou melhor, que sua companhiacompreenda, que o assunto está nas mãos do delegado do condado deWestchester e do FBI. Qualquer iniciativa de sua equipe de relaçõespúblicas precisa primeiro de nossa aprovação. –Martin enfatizou a frasecomumabatidalevenojoelho.

–Comcertezafarãoisso.– Certo, mas não foi o que aconteceu há pouco, quando deu sua

declaração.–Peçodesculpas.Nãoaconteceránovamente.Lena não acreditou na sinceridade das desculpas de John. Como

trabalhava com pacientes de câncer de todos os setores e camadas dasociedade, aprendera a reconhecer quais seguiriam a dieta adequada aotratamento e quais diziam que seguiriam,mas em geral não faziam isso.Incluiria John na segunda categoria, como executivo que não estavaacostumado a receber ordens. David trocou um olhar com ela, como sesoubesse o que pensava. “Olha só”, ele parecia dizer, “o sujeito pode terarmadotudoisso”.

Lena baixou os olhos. Pelo menos agora tinha uma ideia do que sepassavanacabeçadeDavid.

Encerrarama reuniãomarcandoumencontropara amanhã seguinte,mas Sheila lembrou que era domingo e tinha obrigações com suacongregação.TransferiramareuniãoparaapartedatardeeMartindisse“esperarquenãofossenecessário”.

Enquantoaguardavamnovestíbuloachegadadasviaturaspoliciaisqueabririam caminho, conversaram sobre amenidades. Os Rostenkowskiestavamna porta, despedindo-se dosWalker, quando o agente hispânicoveiodasaladejantaresussurroualgoaMartin,queanunciouemvozalta:

–Esperem.Voltem.Parecequechegououtroe-mail.Poraqui.Eles o seguiram até um escritório com três computadores em mesas

diferentes. Os agentes do FBI se debruçavam sobre umdeles. Os pais sereuniram em volta do segundo e começaram a ler. Pouco tempo depois,Mikerompeuosilêncio:

–Quemerdaéessa?–indagouelogopediudesculpasaSheila.– Precisamos veri icar a autenticidade da mensagem – disse Martin,

olhandoporbaixodosóculosdeleitura.Oagentehispânicofalouatodos:

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– Não creio que haja dúvidas sobre a autenticidade. Todas as contasforamrastreadas.

–Rastreadasounão,issosópodeserumapiada!Nãopodeserverdade–retrucouJohn,voltando-separaSheila,queencaravaatelaeofegava.

Lenanãoentendeuamensagemdeprimeiraeleumaisumavez.

PRIMEIRO PASSO. AMANHÃ DE MANHÃ, NO SERVIÇO DAS ONZEHORASDAPRIMEIRAIGREJAPRESBITERIANADELARCHMONT,VOCÊSREALIZARÃO UMA COLETA PARA O FUNDO DE CONSTRUÇÃO DOTEMPLO.ARRECADEMPELOMENOS25MILDÓLARESEPROVEMQUECONSEGUIRAM, PARA QUE POSSAM AVANÇAR PARA O SEGUNDOPASSO.FALOSÉRIO.

Nenhum dos presentes acreditou que a mensagem fosse verdadeira.Deviaserapenasumtrotecruelquepassoupelosfiltros,pormelhoresquefossem.Masamensagemeramuitoe icaz.Emvezdepediralgoparasi,oautor exigia contribuiçãopara uma instituição de caridade. Ao escolher aigrejadeSheila,tentoulançarsuspeitassobreumadasvítimas.Alémdisso,a ordem al inetara mais um membro do grupo reunido em volta donotebook.AconstrutoradeMikeWilliamsconstruiriaanovaaladotemplo,assimqueacampanhadearrecadaçãodefundosterminasse.

– Esta vai para o livro dos recordes – comentouMartin, olhando paraSheilaemseguida.–Suponhoquevocêstenhamumfundodeconstrução.

Amulher,profundamenteincomodada,foiincisiva.–Nãovejograçanenhumanisso.Nemacreditoquesejaverdade.Mas,

sim,temosumfundodeconstrução.–E25mildólaresviriamacalhar,nãoémesmo?– O que quer dizer? – indagou Sheila, sem tentar esconder sua

contrariedade.–Querodizerqueestamosobviamente lidandocomumsujeitodoente,

metido a engraçadinho,mas ele pode estar com nossos ilhos. Isso não éumresgate.Quemalpodehaveremfazeracoleta?

–Jamaisconseguiremos25mildólaresassim.–Vamosconseguir, sim.– John falounumtomdevozqueencerravaa

discussão. Sheila o conhecia bem o bastante para saber que não deveriainsistir.Osoutrosseguiramoexemplodela.

Emsilêncio,ogruposedirigiuparaaportadafrente.“Quetipodegentesequestranossos ilhos,acabacomqualquerexpectativa,fazgatoesapato

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dagente,estimulaaincertezaeaumentaaangústiacomrelaçãoaodestinodascrianças?”eraoqueseperguntavamaosairdacasa.Lenadesceupelocaminho ao lado de Mike, em direção aos carros de polícia. Pararamquandoaviaturaestacionoueelapercebeuquegostariadeouviralgodapartedele,comosetivessemacabadodeverum ilmeouumapeçadi ícileprecisassedainterpretaçãodele.Mikesevoltouparaela,talvezporintuirsuanecessidade,ouquemsabeporcausadesuaprópriadesorientação,enotouseuolhar.

–Sepelomenoseutivesseaporradoprojeto.Odeioisso!Lena entendeu.O sequestro izera comque outra pessoa tambémnão

soubessemaiscomoagircomasquestõesdodiaadia.Alguémmais teriade descobrir ummodo novo de aprender, resolver e perseverar sem osdados, as plantas e os treinamentos nos quais sempre con iara. Elabalançou a cabeça, mostrando-se solidária, contente por ele se sentir àvontadeparausarlinguagemvulgaremsuapresença.

O detetive Martin se juntou a Lena e David quando eles já estavamdentrodocarro,prontospara irembora.Depoisdepercorrerumasduasquadras,elesevirou,massóconseguiuverLenadireito.

– O FBI quer examinar os computadores de vocês, caso não seimportem.

Lenafezquesim,masDavidresolveucontestar:– Por quê? Omonitoramento está sendo feito a partir dos servidores,

nãoé?–Nãosei.Nãoentendonadadisso–disseMartin,incapazdeverorosto

deDavid.–Mas eu entendo. Trabalho com tecnologia e não gosto da ideia de o

governofuçarmeucomputador.Nãoéprecisoummandadodebusca?Martinesperouqueeleseacalmasse,masosilênciotornouaatitudede

Davidaindamaissuspeita.Lenaoencarou,masomaridoprosseguiu:– Acha que Walker e aquele banco desgraçado vão deixar alguém

mexernoscomputadoresdeles?Duvidomuito.– Acho que eles já… – Martin começou a dizer, mas David o

interrompeu,reclamandoelamentandoaomesmotempo:– Aquela família – resmungou, olhando pela janela enquanto falava. –

Por que diabos precisavam mandar o ilhinho mimado para oacampamento? Se o moleque for mesmo do jeito que o pai o descreveu,

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Sarah vai ter um troço. E a dona pastora, por que não podemos dizer“merda” na frente dela? Assim que ela reclamou, senti vontade de gritarunspalavrõesbemcabeludos.Nossos ilhosforamsequestrados,cacete.Eninguémpodedizermerdanemporra?

Ele suspirou, sem encarar Lena. Martin o itou para reforçar o quepretendiadizercomoolhar.

–Elesnão levarãoos computadores.Vocêpodeacompanharo serviço,sequiser.

Mais uma vez, Lena balançou a cabeça, autorizando a busca. David secalou.

Jáestavamchegandoemcasaquandoelaviuderelanceapiscinanumoutro quintal, reluzente no crepúsculo, sem ninguém dentro. Observou acena até a casa bloquear sua vista. Pela primeira vez desde o sequestro,recuperouumaimagemdeSarahquenadatinhaavercomavan,J.D.ouapartidada ilha.Eraumalembrançadocomeçodoverão,dequandoforamaumafestaàbeiradapiscinaorganizadaporumdoscolegasdeLenaqueiamoraremoutracidade.Sarahconheceualgumascriançasefoicomelasmergulhar e saltar do pequeno trampolim, na parte mais funda. Lena,sentadaaoladodadonadacasa,viua ilhasaltarfeitoumarãeagarrarotrampolim. Ia dizer que tomasse cuidado com as outras pessoas,mas, aopensar nisso, Sarah olhou para ela e a brindou com o mais feliz dossorrisos que Lena já vira no rosto da ilha. A vitalidade da menina eraimpressionante,osbícepsemoldurandoocorpoimpecável.Lenanotouquea ilha conseguiria subir no trampolim, seria capaz de se lançar ao alto,atingir o espaço, as nuvens, o céu azul sobre suas cabeças. Quando ossegundos do sorriso passaram, Lena e Sarah eram uma só, mãe e ilha,inseparáveis,umaaextensãodaoutra.

Alembrançavívidaesmaeceurapidamentequandoseaproximaramdacasaeocarropercorreuoacessocomlentidão,abrindocaminhoporentreo pessoal da imprensa. Lena sentiu ainda mais a ausência da ilha. AodescerdocarroepercorreroacessoatéaportaaoladodeDavideMartin,a perspectiva de entrar na casa e não encontrar amenina lá a atordoou.Sarah tinha de estar em casa. A cada passo Lena se convencia de que ailhaestava lá, de que fora encontrada em segurança e agora esperava achegada deles. Quase disse isso a David ao passar correndo por Martin.Seu cérebro transmitia amensagemde que isso era impossível,mas seucoraçãodisparado impediaqualquerraciocínio.ComcertezaSarahestavaemcasa.Entãoabriuaportadaruaeavançoupelaescuridãodasala.

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Dez

O SR. EVERETT PERMANECEU EM SILÊNCIO enquanto percorriam a via expressa,seguindo para o norte do estado de Nova York. No início, izera umabrincadeira comas crianças: cada um escolhia umnúmero e, quando eledizia o número em voz alta, o indicado devia se abaixar no banco. SarahperguntouporqueprecisavamfazeraquiloeoSr.Everettrespondeuqueera divertido. Depois disse o número dela. Porém, quando o trânsitodiminuiu,pertodeAlbany,oSr.Everettdesistiudojogoepassouadirigirsemfalarnada.

Depois de Albany, na Northway, a picape enfrentou uma tempestadeviolenta,quedi icultavaavisãodapista.Relâmpagosemsérieiluminavamaestradaeos limpadoresnãoconseguiamremover todaaáguadopara-brisa.OSr.Everett reduziuavelocidadee inclinouo corpoparaa frente,tentando não sair da pista. As crianças sentiram a tensão no ar. Tommydeuumpulo,assustado,quandoumcaminhãopassouporeleseasrodaslançaramáguanajaneladocarro.Omeninorespiroufundoevirouorosto,então viu os olhos assustados de Linda ixos nos dele. Nenhum dos doisdissenada.Nemprecisava.

A chuva parou de repente, como começara, e poucos quilômetrosadiante o sol já brilhava outra vez. O Sr. Everett recostou no banco edesligouo limpadordepara-brisa.Cincominutosdepoisalgooassustoueelegritou:

–Um,três,quatro!–Franklin,TommyeLindademoraramumsegundoparaentenderoqueelequeria,depoisseabaixaramnobanco.

Sarah observouos olhos do Sr. Everett no retrovisor, concentrados nocarroqueosultrapassara.Ameninaidenti icouumtipodeviaturapolicial,talvezdapolíciaestadual.

Ao dizer que as crianças já podiam sentar de novo, o Sr. EverettpercebeuoolhardeSarahpeloretrovisor.

–Algumproblema,Sarah?Vocêparecepreocupada.–Porquenãovamoslogoparaoacampamento?– Nós vamos, mas não agora. Planejamos uma viagem especial. Vocês

deramsorte.Franklingaguejou:–Duvidoquemeuspaistenhamautorizado.– Claro que não. Nenhumdos pais sabe. É surpresa! Acho que, a esta

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altura,alguémjáentrouemcontatocomelesparainformá-los.–Eleabriuumenormesorrisoeriusozinho,espiandoascriançaspeloespelho.

–Preciso ir aobanheiro–disseTommy.OSr. Everettnão reagiu.Pelojeito,nãooescutara.Sarahinterferiu.

–Tommyprecisairaobanheiro.–Vocêprecisa iraobanheiro?–perguntandooSr.Everett, fechandoa

caraparaomenino.–Preciso.–Tudobem.Faltasómeiahora.Dáparaaguentar?–Nãosei.– Ah, claro que dá. – Mais do que uma a irmação, a frase era uma

ordem.As crianças trocaram olhares furtivos. Conheciam aquele tom de voz,

típico dos professoresmais bravos.Mas não estavamna sala de aula e osinalnão ia tocar.Não sabiamcomoagir. Saraholhouparaos carrosquepassavamnosentidooposto.Queriaestarnumdeles,nãoseguindoparaonortecomoSr.Everett.

PegaramumasaídadaNorthwaye seguiramporumaestradademãoúnicamataadentro.Osolaindaaltofaziaolocalparecerquenteeabafadofora da picape. O ar-condicionado esfriava demais o interior do veículo.Sarah pensou em pedir ao Sr. Everett que aumentasse um pouco atemperatura, mas, por causa da má vontade em relação ao pedido deTommy,preferiunãosearriscaralevarumabroncasemelhante.

Depois de seguir por alguns quilômetros, entraram numa estrada decascalhoquesubiapelaencostaíngreme.Seguiramporváriosquilômetros,deixando a poeira para trás. As poucas casas que havia ali eramquadradas, afastadas da via, antiquadas sedes de fazenda. Pareciamdesabitadas. Quando a via inalmente chegou a uma partemais plana, ascrianças viram ao longe, por ummomento, os picos altos dasmontanhasAdirondack. A estradamergulhou namata densa e por um longo trechoprosseguiramnasombradasárvoresfrondosas.OSr.Everettpisoufundono freio quando deixou de virar numa curva, então deu marcha a ré elevouoveículoatéumtrechodegramaquenãopareciaserumaestrada.Avançou uns 100 metros e parou. As crianças acompanharam seusmovimentos quando ele desceu do carro e seguiu pela estradinha,esfregandoospésnagramaparaapagarasmarcasdospneus.

Quando ele entrou de novo no carro, Tommy surpreendeu as outrascriançasaodizer:

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–Precisomuitoiraobanheiro.–Tudobem.Faltamsóalgunsminutos.Não havia estrada adiante, apenas um caminho coberto de grama,

ladeado por arbustos e vegetação rasteira. O Sr. Everett seguiu nele porumquilômetroemeio,virouàdireitaeestacionouoautomóvelsobadensacopadospinheiros.

–Todomundoparafora.Ascriançasobedeceram,devagar.Linda iamurmuraralgoparaSarah,

masoSr.Everettabriuaportalateralantesqueelapudessefalar.–Desçam.Precisampassarrepelente.Quando estavam todos do lado de fora, o Sr. Everett mandou que

tapassem os olhos e espalhou repelente dos pés à cabeça de cada um.Tommy insistiu que precisava ir ao banheiro e o Sr. Everett sugeriu quefosse no mato. Para o garoto, aquilo era novidade, mas, como não tinhaalternativa,andouatéumamoitaeurinouatrásdela.Asmeninasouviramoruídoesentiramcertoconstrangimento,percebidopeloSr.Everett.

–Calma,meninas.Estamosnomeiodomato,agora.–Maselas icarampensandonoquefariamquandoprecisassemiraobanheiro.

O Sr. Everett pediu que pegassem as duas sacolas de viagem e oseguissem.Levouumamochilagrandeàscostaseavançouporumatrilhaquase invisível, pelo bosque dos pinheiros. Sarah apanhou uma dassacolas.Tommy,aoutra.

O homem percorreu alguns metros e olhou para trás, vendo queTommy, Sarah e Linda o seguiam, mas Franklin permanecia ao lado doautomóvel.

–Ei,Franklin,vamoslogo.O garoto não saiu do lugar e balançou a cabeça negativamente. O Sr.

Everettvoltouatéele.–Qualéoproblema?– Acho que não deveríamos fazer isso. Preciso da permissão demeus

pais.–Temospermissão.Oacampamentonãopromoveriaumpasseioassim

semqueelestivessemconcordado,nãoé?–Maselesnãofalaramnadasobreisso.DavaparanotaraimpaciênciadoSr.Everett.–Jáexpliqueiisso.Estátudoacertado.–Elepegouotelefonecelularna

mochila, enquanto falava. – Quando chegarmos no chalé o sinal voltará evocêspoderãoligarparaseuspais.Quetal?

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Franklin olhou para o Sr. Everett e para as outras crianças. Pelo jeito,todos pretendiam obedecer. Franklin não queria ser deixado para trás,comcerteza.Paradarênfase,ohomemergueuocelular.Omeninocedeu.

–Muitobem–disseoSr.Everett,batendodelevenascostasdomeninoe aproximando-o dos outros. – Bons meninos e meninas. Vamos lá.Caminharumpoucoparachegaratéochalé.

–Oquetemlá?–perguntouSarahquandocomeçaramaandardenovo.– Natureza. Vida silvestre. Guardamos comida lá, também. O que

gostariamdecomer?Ninguémrespondeuporalgumtempo,atéTommysemanifestar:–Torradacomgeleia.–Issonãotem.Eprecisadetorradeira.–Nãoprecisa–retrucouTommy.–Eugostodecomerastorradasfrias.OSr.Everettparou,contrariadocomaameaçaderevoltadascrianças.– Torradas não fazem bem à saúde, por isso não trazemos. Vamos

deixar esse assunto pra lá, está bem? – Ele virou e seguiu em frente. Opeito de Tommy subia e descia, enquanto os outros olhavam para ele,solidários.

A trilha subia pela encosta rochosa e todos se concentraram naescalada,emsilêncio.Ocaminho levouaumtrechomaisplano,entãoeleschegaramaumaáreaaberta,deondeerapossívelverasmontanhasmaispróximas. O Sr. Everett parou e baixou a mochila. Respirou fundo, comcertoexagero,evirouacabeçaparatrás.

– Sentem o aroma, meus jovens? Estão vendo como é lindo aqui? –Cansadaspelasubida,ascriançasnadadisseram.–Eu faleiqueera lindoaquiemcima,nãofoi?–Todosbalançaramacabeçaemconcordância.

O homem tirou um pedaço de corda e quatromáscaras de dormir damochilaedeuumaacadacriança.

–Sabem,alocalizaçãodochaléésegredo,porissovocêsprecisamusarvendasnapartefinaldatrilha.Vamoslá,cadaumcolocaasua.

–Ecomovamosandarcomavistatapada?–perguntouSarah.– Estão vendo esta corda? Segurem nela e eu guiarei vocês. Vai ser

divertido.Lentamente, as crianças obedeceram. Tommy e Linda encontraram

di iculdade para segurar a corda, pois já carregavam as sacolas. Mesmoassim, conseguiramacompanharogrupo.OSr.Everett lideravae todososeguiam segurando a corda com uma das mãos. Sarah se lembrou dospasseioscurtosquedavanapré-escola,quandotodos iampresosàcorda

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puxadapelaprofessora.Masaquiloeradiferente.Nãovendavamcriançasnojardimdainfância.

Algumas centenas de metros adiante, o Sr. Everett fez com queandassem em círculos, seguissem pela esquerda, depois pela direita eretornassem, como claropropósito dedesorientá-los.Quando voltaramaandaremlinhareta,Tommy,no imdacorda,pensavanashistóriassobremeninosperdidosna loresta.Passouasacolaparaamãoqueseguravaacordaeabriuozíperparapegaralgumacoisa, tirouumameiaea largounochão.AvozdoSr.Everettoassustou.

–Puxavida.Vocêssãomesmogarotosdesorte.As crianças tropeçavammuito,mas conseguiram percorrer o restante

do trajeto semcair.OSr.Everettoselogiou. Sarahouviugrilosnomatoesentiuosolforte.Elanãoviamaisasombradasárvores.Ohomemfezcomquedessemmaisvoltasedepoismandouqueparassem.

–Muitobem,tropa,chegamos.Horadetirarasmáscaras.Ao tirá-las, viram-se numa pequena clareira rodeada de pinheiros e

vegetação rasteira fechada. Um chalé precário, na verdade uma cabanaconstruída com tábuas fustigadas pelas intempéries, se erguia naextremidade da clareira. Atrás da cabana icava a casinha que servia debanheiroemaispareciadebrinquedo.

Linda começou a chorar e o tomde voz do Sr. Everett se tornoumaisduro.

–Oquefoi?Qualéoproblema?–Nãogostodaqui.Querovoltar.–Voltar?Ah,nãomevenhacomessa!ElepuxouLindapelobraçoemdireçãoaochalé.Aportasemtrancase

abriueeleempurrouagarotaparadentro,ordenandocomumsinalqueosoutrososeguissem.

–Entrem.Aquidentroémaisaconchegante.SarahacompanhouTommyparadentrodacabanaesentiuoodorforte

damadeiraembolorada.Demorouatéseusolhosseajustaremàescuridãoeelapoderenxergarmelhor.Napenumbra,percebeuqueoespaçoestavadividido em dois cômodos, com uma pia no canto do primeiro quarto, aoladodeumbalcãopequenoeumisoporgrande.Pelaaberturadaportadooutro quarto, ela viu colchões de solteiro no chão. Linda continuavachorando.Sarahaamparou,passandoobraçoemvoltadeseuombro.

–Nãogostodaqui–reclamouLinda, fungando,as lágrimasescorrendopelorosto.

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OSr.EverettiadizeralgoaLindaquandoFranklinsemanifestou:– Você falou que poderíamos ligar para nossos pais quando

chegássemos.–Falei?Eudissequetalvez.Masnãoadiantatentar,sónolaguinho.Lá

temsinal.Queremconhecê-lo?Lindaparoude chorar. Imaginouuma lagoa rodeadade casas, comoa

de sua avó em Connecticut. O Sr. Everett pegou o celular na mochila egesticulouparaqueoacompanhassem.Sorriaenquantoa iladecriançasoacompanhava até o laguinho. Pronto, conseguira afastar as crianças deolhares inquisidores. Ninguém se revoltara. Lá em Westchester o planoprovavelmentesedesenrolavaacontento.Podiarelaxarumpouco.Masselembroudealgoemandouogrupoparar.

–Esperemumpouco.Jávolto.Ele regressou ao chalé. As crianças trocaram olhares descon iados.

Tommyfalouprimeiro:–Achamqueeletrabalhamesmonoacampamento?–Não.–Franklin,furioso,foienfático.SaraheLindatrocaramumolhar.Nãoqueriamacreditarnaquilo.Seele

não era do acampamento, de onde era? A voz do homem fez todos sevirarem.

–Atenção,sorriam.Ele faziaumvídeocomacâmeradigital. Sobo sol forte,nãoconseguia

vermuita coisa na tela de LCD.Mas percebia que ninguém sorria. Tantofaz,pensou,melhorquepareçamsofrerquandoospaiseomundoviremas imagens. Ajustou o ângulo para obter um fundo bem neutro. Sóvegetaçãogenérica.Acionouagravaçãodovídeoeregistrouaspresençascom uma panorâmica. Terminou e avaliou o resultado. Perfeito. Todospareciam bem cuidados, mas nervosos e emburrados. Nenhum indíciocapazdeidentificarolocal.Ascriançaspoderiamestaremqualquerlugar.

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Onze

ERA QUASE UMA DA MANHÃ quando os agentes do FBI deixaram a casa.Passaram horas investigando os computadores e David acompanhou otrabalho de perto. Notou que não realizavam uma buscaminuciosa, pelojeitonãosabiammuitacoisasobrepesquisadodiscorígidoerecuperaçãode arquivos deletados. Intrigado, não sabia se eles queriam examinar oscomputadores ou se isso era apenas desculpa para avaliar o ambientedoméstico,sentiroclima,verseeleouLenadariamalgumsinaldeseremculpados.Emcertosmomentosresolveuajudá-los,mostraralgunstruques,sóparaevitarquepensassemque tinhaalgoaesconder.Não localizaramsuaterceiracontadee-mail,porém,eDavidjamaisamostraria.

Durante as buscas, Lena esperou na sala e na cozinha, depoisacompanhou os agentes até a porta, para se despedir. Ainda não sabiaseus nomes e preferia o detetive Martin àqueles dois. Quando saíram esumiramnoiteadentro,torceuparaqueDavid,queabriraumagarrafadevinho e a bebera praticamente sozinho, não quisesse conversar, apenasdormir. As vans das emissoras partiram, a rua icou deserta, exceto pelocarrododelegado,estacionadocoma luz internaacesaedoispoliciaisnobanco da frente. Eles trocaram algumas palavras com os agentes do FBI,entraramnaviaturaepartiram.

Cigarras nos arbustos à direita da casa entoavam seu canto chiado.Lena itouoacesso.Adespedidamatinalalvoroçada,emboratãonormaleperfeita na aparência, ressurgiu em sua mente. Nas horas que passarasozinha, enquanto os agentes examinavam os computadores, evitararecordar as imagens da despedida e os impulsos ansiosos, tentando seconvencer de que não estava sozinha, que Mike, um homem robusto efranco, também deixara que seu ilho fosse levado. Ela repassou seuspensamentos, elevou-os a um plano superior, examinando como amentepré-programada pode cometer enganos e entender errado. Mas teorizarsobre a situação equivalia a atravessar um rio traiçoeiro pulando pedrasescorregadias. Nomeio do gramado, de frente para a cena do crime, elanão conseguia afastar os detalhes do sequestro: Sarah de olhosarregalados quando J.D. contou que havia atividades relacionadas aofutebol,ocheirodavannova,obarulhosecodaportaaosefechar.

Entãoaconteceudenovo.Comosefosseumapresença ísica,orostodaavó de Lena surgiu nas trevas. Ela recuou um passo. O espectro falou.

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EstavanacozinhaemqueLenapassaraainfância.Aavóassavabiscoitoseconversavacomela.Eramãedesuamãe–osnetosachamavamdeNoonie–,e tinhaumespírito fortee independenteeosvisitava todososanosnaSuécia. Lena devia ter a idade de Sarah, cerca de 9 anos, e sorvia ávidacadapalavraditapelaavóquerida.

– Preste atenção no que a Noonie fala: nunca usemargarina, semprepre ira manteiga, entendeu? – Ou algo parecido. Vivia dando conselhos,criandoregras.Sorriaaopegaramassacomasmãosenérgicasemoldá-la.–Esteano, se foraoaeroporto,nãoqueroquemedêadeuscomonoanopassado. – Lena deve ter perguntado a razão, ou sua expressão seencarregoudisso. –Porqueelesnãoensinamas coisasdireitonestepaís.De onde eu venho a gente não acena para alguém que deseja vernovamente,alguémquevaivoltar,comoseestivesseespantandomosquito.De jeitonenhum.Presteatenção,Lena.Nuncadêadeusparaumapessoaquerida.Entendeu?

Naescuridãodopórtico,Lenamalconseguiarespirar.TeriadadoadeusparaSarah?Emtodososdetalhesdapartidaquemartelavamsuacabeça,nãohaviaregistrodisso.MasLenaselembravadoaeroportodeEstocolmo,quandoNoonieseguiaparaoportãodeembarqueeamãe,Sally,disse:

–Dêadeusparaavovó,Lena.MaselaserecusouecontouoqueouviradeNoonie,provocandorisos

namãe, que não deu importância. Lena, porém, levou a ordem a sério enão conseguiu se lembrar do que havia feito nas horas anteriores.Olhoupara o acesso, escuro e vazio, sem nenhuma pista. De repente a noiteaconchegantesetornoufriaeelavoltouparadentrodecasa.

Encontrou David na cozinha, bebendo o que sobrara do vinho. Eleofereceu, ela recusou. O marido explicou o que os agentes encontraram.Alegando cansaço, disse que ia dormir. Lena entendeu aquilo como umconvite para acompanhá-lo, mas sabia que não poderia. Enquanto Sarahnão voltasse, dormir parecia inimaginável. David,magoado, aproximou-sedetaçanamãoecomaexpressãodesolada.

– Vamos superar isso – disse ele, num tom quase sussurrado,embriagadopelovinho,queLenanão suportava.Elabalançoua cabeçaelhe deu as costas. David esperou um pouco. Ela o imaginou meio semequilíbrio,deolhosbaixos.Depoiselesaiudacozinha.

Lá fora, a noite estava escura, deuma imobilidade cadavérica.Da rua,de repente, veio o som de uma risada masculina. Ela supôs que fossempoliciaisdentrodaviatura–paraelestudonãopassavadeumturnocomo

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outroqualquer. Por instinto, consultouo relógiodomicro-ondas e se deucontadequejáeramoitohorasnaSuécia.Podialigar.

Sally, mãe de Lena, atendeu o telefone e demonstrou preocupação,pensandoqueteriaalgumanotícia.LenadissequenãohavianovidadeseSallyfezumasériedeperguntassobrecomoelaestavalidandocomocaso.Lena respondeu, incomodada com a preocupação da mãe. Sally semprefora um exemplo de desprendimento. Ao terminar a faculdade, correrapara encontrar o namorado na Suécia, quando Richard tomou a di ícildecisãodenãoserviraoexército.Noperíodoquepassouláedurantetodaa vida de Lena, Sally cuidara de todo tipo de gente problemática, comooutros desertores refugiados na Suécia, doentes mentais na assistênciasocial, ilhasemanosdi íceise,mais recentemente, a imensacomunidadede imigrantesárabes instaladanosubúrbiodeEstocolmo,onde residia.Adedicaçãodesuamãeaosoutros levouLenaàmedicina,mas tambémfezcomqueela se sentisse inadequadaemcertosmomentos.O altruísmodeSallyeraincomparável.

– Recebemos duas mensagens… dos sequestradores – disse Lena,preferindofalardefatosdoquedeseussentimentos.

–Seupaioschamade“filhosdaputadesgraçados”.Jásabemosdisso.–Doquê?–Dasmensagens.–Aindanãoforamliberadasparaaimprensa,mamãe.–Vimosespalhadaspelainternet,meubem.Vocênãosabia?–Não.Eunãoconsegui…Oquesaiu?– Ummonte de coisa. O caso despertou enorme interesse na Europa.

TemumvídeodevocêeDavidentrandonumamansãoemLarchmont.–Elesnospressionaramparamantersegredoarespeitodetudo,aqui.Sally passou a falar sueco, sempre fazia isso quandoqueria conversar

emparticularcomas ilhas.Richardapanhavadoidioma,nuncasetornourealmentefluente,dependiadoinglêseàsvezesdofrancêsparasevirar.

–Queroquedigaaseupai,semrodeios,queelenãopodeiratéaí icarcom você. Ele está deixando Sylvie e eumalucas. Pretendemos pegar umaviãoamanhã,seocasonãoforresolvido,eeledissequetambémvai.

Lenarespondeueminglês.–Edequeadiantaria?Eleserápresoassimquecolocarospésnopaís.–ElepretendeiraoCanadáeatravessarafronteirailegalmente.–Querofalarcomele.–Ummomento,vouchamá-lo.MasvocêquerqueSylvieeeuvamos,não

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é?Naverdade,Lenanãosabiacomoresponder.Sim,queriaqueamãeea

irmã estivessem presentes, mas, se viessem, isso signi icaria que Sarahcontinuavadesaparecida.Pensarnessapossibilidadeaarrepiou.

–Claroquesim.MaseleslogoencontrarãoSarah.Sallyvoltouafalaringlês.–Algumapista?– Não, mas ninguém consegue esconder quatro crianças por muito

tempo.OsilênciodeSallymostrouqueLenanãoforaconvincente.–Reservaremosaspassagensetelefonaremosparacon irmarsevamos

ounão.ComoDavidestáreagindo?–Estádesolado.Nenhumdenóssabeoquefazer.– Imagino. Fale comseupai.Amovocê, querida. Sylvie estámandando

lembranças. Isso tudo é horrível, mas você sabe que pode contar com agente.

Ela estava na cozinha, andando de um lado para outro com o telefonesem io,quandotevenecessidadedesentarnasala.Derepente,sentiu-seesgotada.Avozdopai,forteeanimada,parecialhetransmitirenergia.

–Oi,Lena.Algumanovidade?–Não,pelojeitovocêsaísabemmaisdoquenósaqui.–Quehistóriaabsurdaéessadefundoparaconstrução?–Nãosabemos.Umadasmãesé…–Ministradaigreja.Sei.Masoqueos ilhosdaputaestãopretendendo?

Alémdeinjúriaqueremcometerinsultotambém?MeuDeus!–Muitoestranho,pai.–Equantoàperuca?–Queperuca?–Umfaxineiroquetrabalhanumdosprédioscomerciaispertodeonde

a van foi abandonada achou uma peruca de cabelo cacheado. Não ouviunadaarespeito?

–Não.–Acreditamquepossatersidousada…pelo…desgraçado.Todavezque

pensonele,medávontadedearrebentaralgumacoisa.–Pai?–Oquefoi,minhaquerida?–Vocênãopodevirparacá.

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Richardnãofalounadaporalgunssegundos.Lenaouviusuarespiraçãodooutroladodalinhae lembrouqueelesofreraumataquedeanginanoanoanterior.

–Senãoaencontraremlogo,serádifícilparamimcontinuaraqui.– Seu nome está na lista negra. Se tentar entrar no país, irá para a

cadeianamesmahora.–Querida,paratudotemumjeito.Deixacomigo.–Maspapai…–Comosãoosoutrospais?Richard tentavamudar de assunto e Lena respondeu à pergunta com

uma descrição resumida dos outros casais. Quando chegou a Mike e PoWilliams,dissequeohomemafaziaselembrardele.

–Eleéumfilhodamãeteimosoeencrenqueiro?–Issomesmo.Comoumcãovira-lata.–Eraumabrincadeiraentreeles.

Richard, embora tranquilo, considerava seu estilo paternal um tantogrosseiro,secomparadoaomodogentilcomqueaesposatratavaas ilhas.A resposta de Lena, como sempre, dava a entender que ele falavabobagem.

–Puxa,eugostariadeestaraíparaabraçarvocê,minhaquerida.– Eu também, papai. Preciso desligar, senão começarei a chorar. Pode

memandarpore-mailasnotíciasquereceberaí?Comoanotaarespeitodaperuca?

–Claro, voumandar agoramesmo. – Ele nãoqueria desligar. – Temosum dinheirinho guardado aqui, sabe? E Sylvie o colocou numa boaaplicação.Seprecisar,ésómeavisar,estábem?

– Obrigado, papai. – Lena não queria pensar em detalhes como esse.Sabiaquepediriamresgate,maselasóqueriasaberseSarahestavabemequando voltaria para casa. Depois poderia entregar até o último centavoquetinhaouviriaater.

Finalmente desligaram e Lena se deitou no sofá. O telefonema lhetrouxera de volta à realidade, como esperava, fazendo com que selembrassedomundoreale sólidonoqual fora criada.Odiaqueacabavaagorapareciatoleráveleofuturoincerto,menoshorripilante.Conseguiriadormir. Não seria uma fuga de seus deveres, e sim uma coisa boa. Nãopensariasehaviaacenadoounão.Outraspessoas,espalhadaspelomundo,mantinhamavigília.Oterrordapalavra ondearrefeceu.Elapercebeuquepodiadeixarqueosmembrospesadoseocérebroconfusoa levassemaoreinoondeninguémdesaparecera,ondeestavamtodosjuntos,unidos.

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Doze

OESTRONDODEUMTROVÃOAVISOU queum temporal desabariano condadodeWestchester. A tempestade que passara pelo vale do Hudson, seguindopara noroeste, prometia ser rápida e devastadora, capaz de derrubarárvoreselinhaselétricas.Entreasvítimasdosequestro,elacairiaprimeironacasadosWilliams.Mike,depédesdeas trêsdamanhã, regressavadeuma volta pelo condado. No fundo, não procurava as crianças. Precisavaapenas sair um pouco de casa, se ocupar de alguma maneira. Quandoentrava no acesso da residência com a van da empresa, viu o ilhomaisvelho,Jack,empurrandoamotoparadentrodagaragem,a imdeprotegê-ladachuvaiminente.

Por um instante, Mike icou observando aquele ato simples. Jack eraatleta, disputava campeonatos regionais de futebol e basquete, além dejogar num time estadual. Po odiava a ideia de o ilho ter umamoto,mas,comoele economizoupara comprá-la,Mike convenceua esposaa aceitar,argumentando que ele pilotava bem, tinha ótima coordenação motora esaberia lidar com qualquer situação. Agora, com o desaparecimento deTommy, não sabia se queria ver Jackmontado naquelamoto novamente.Mikesabiaqueo ilhovoltariaparacasaembreve,massabiatambémqueseudesaparecimentootransformara.Seu ilho,altoemusculoso,guardouamoto e virou a cabeça para ver por que o pai não saía do carro.Mikeolhou pelo para-brisa e Jack, paralisado por seu olhar, teve a impressãoassustadoradequeopaiestavadistante,muitodistante.Oquesepassavanacabeçadele?

Os primeiros pingos de chuva bateram nas janelas do escritório deSheilaWalker pouco depois. Ela havia dormido ali, no sofá, deitando e selevantando a noite inteira. No início da noite anterior conversaralongamente com Tom Adams, ministro-assistente da igreja presbiteriana,garantindo a ele que teria condições de proferir o sermão planejado. Noentanto, ela não tinha mais tanta certeza disso, depois de passar horastentando pôr as palavras no papel. Tom disse que se prepararia eesperaria na lateral da nave, “caso não fosse possível”. Mas Sheila nãoaceitava abandonar o púlpito. Pensou em Abraão, quando Deus pôs aspalavras em sua boca, pois ele não conseguia falar. Sentiu vontade de

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tentar algo que nunca izera antes: proferir o sermão sem que houvesseum texto completo diante dela. No curso de teologia, como exercício nadisciplinadehomilética,ela izeraumsermãosemteranotadonadaantes,mas fora um desastre, e por isso ela sempre preparava o texto. Agora,pensou, este talvez seja o único meio de levar a palavra de Deus àcongregação,naquelamanhãchuvosaecinzacomoardósia:abrirabocaenãoperderaesperança.Suacabeçaseabaixouduranteaoração.

Emboraos trovões izessema casa tremereos relâmpagosentrassempela janela, Phil Rostenkowski teve di iculdade para acordar Janet. Amulher havia tomado um remédio para dormir na noite anterior, pois ocoraçãobatiacomtantaforçaqueelaachouquepulariaparaforadopeito.Ela estava presa nummundo entorpecido e Phil precisou sacudi-la, dizerque recebera um telefonemadodetetiveMartin, que passaria por ali embreve, para mostrar uma peruca que fora encontrada. Janet despertousubitamente do sono, apavorada, desorientada. Um trovão a fez gritar ePhil a abraçou, sentado na cama. Era a primeira vez que ele a abraçavaassimemmuito tempo.EraumaJanetdiferente.Agorahaviamaisdoquepalavras,preocupações inanceiras, listasde tarefas.Elavoltaraa sersuaesposa.

Lena sentiu o cheiro de café recém-preparado na cozinha antes deouvirobarulhodachuvaláfora.Sabiaquealgosombrioeruimaconteceraa ela recentemente, mas nos segundos que antecederam seu despertarplenonãoconseguiulembraroqueera.Odeliciosoaromadocafépassadonahorasigni icavaqueDavid já levantaraenada lheacontecera.Pareciaque ela estava machucada, talvez aleijada, como se tivesse perdido umadaspernas.Perda,issomesmo.Aquelaeraasensaçãodeperda.

Então omistério se resolveu num único golpe brutal, instantâneo, e ohorror do sequestro tomou conta dela de novo. Uma rajada de chuvaimpulsionada pelo vento tamborilou na janela da sacada, fazendo Lenaimaginar Sarah lá fora, ensopada pela tempestade, ou precariamenteabrigada num prédio velho. O cheiro do café agora parecia horrível e ocalor seco da casa era revoltante, uma proteção luxuosa com a qual suafilhanãocontava.

Elase levantou,odiando-sepor terdormidoduranteanoite,baixadoa

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guarda,esquecidoporuminstante.Depé,deualgunspassossemdireção.Parou, examinou o pedaço da cozinha onde se encontrava. O ombrodesnudodeDavidapareciapertodajanelasobreapia.Elemexiaocafé.Oribombardeumtrovãooassustoueofezdarumpulo.MasLenaabsorveuo barulho como se o esperasse. No momento, seus pensamentos sevoltavamparaSarahenadapoderiaafastá-ladafilha.

O tal laguinho não era nada parecido como que Linda imaginara. Eramuitomenordoqueo lagoemcujamargemaavómoravaealinãohaviacasas. A margem era barrenta e cheia de mato, o pequeno píer queavançava sobre a água parecia precário e oscilante. A própria água eraescura,impenetrável.

– Não é o máximo? – gritou o Sr. Everett, abrindo os braços, emborasoubesse que as crianças atrás dele, assustadas, não estavam nem umpoucoanimadas.Voltou-separaelas.–Eunadavaaquiquandoeramenino.Alguémseanimaadarummergulho?

Ninguém respondeu. Sarah, que já se preocupara só de ver a água eainda se agarrava à esperança de que o Sr. Everett trabalhasse noacampamento,arrepiou-seaopensarquetalvezseutestedenataçãofosserealizadoali.

Antes que alguém pudesse dizer qualquer coisa, o Sr. Everett pegouTommyeocolocoudebaixodobraçocomosefosseumabaguete,seguindoem direção ao píer. O garoto se debateu, mas o homem o segurou comfirmeza.

–Querdarummergulho,Tommy?–Não!Não!O Sr. Everett andou até o im do píer e balançou o menino, que

continuava a se debater, ingindo que ia jogá-lo na água. No entanto, ohomemperdeuo controle e o jogoude qualquer jeito no píer. Tommy selevantou.

–Minhanossa!Nãofaçaisso–brigouoSr.Everett.O garoto voltou para perto dos outros, deixando o homem de cara

amarrada.Franklinrecuperouavozantesdosdemais.– Podemos falar com nossos pais agora? – perguntou, incapaz de

disfarçaromedo.OSr.Everettolhouparaaágua,comosenãootivesseescutado,evirou

derepente,numefeitoteatral.

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– Prestem atenção, crianças, pois vai ser assim: o acampamentopreparou esta pequena aventura para vocês, mas ninguém me avisouquantotempopassaremosaqui.Podeserapenasestanoiteoualgunsdias.De qualquermaneira… eles só decidirão isso quando receberemnotíciasoualgoassimdeseuspais.Depoisqueeles izeremcontato,vocêspoderãoligar.Entenderam?

As crianças trocaramolhares.O Sr. Everett tirou o celular dobolsodacalça,abriu,olhouparaoaparelhointensamenteeovirouumpoucoparaveratela.NatrocadeolharesentreascriançasocorreuadecisãotácitadedeixarqueFranklinfalasseporelesnovamente.

–Não.Eunãoentendi.Porquenãopossoligarparameuspais?– Porque eu disse que não – retrucou o Sr. Everett, cansado da

discussão.–Agoravoltemparaochaléefiquemquietos.Jávousubir.Ele digitou um número enquanto percorria o píer oscilante, parou

quandoconseguiucompletara ligaçãoecomeçoua falaremvozbaixa.Ascrianças não ouviam o que ele dizia, por mais que se esforçassem paraentender as palavras. O Sr. Everett desligou pouco depois e terminou depercorrer o píer com um enorme sorriso no rosto, obviamente satisfeitocom alguma coisa. Quando chegou perto das crianças, sua voz perdera arispidez.

–Certo,então.Vamosvoltar,comeralgumacoisaearrumarascamas?Sem esperar pela resposta, foi para o chalé caminhando pela grama

alta.Ascriançasoseguiram,devagar.Eleparouesevirouparaelasmaisumavez.

–Primeira liçãodeaventuranaselva.Viramcobrasporaqui?Nãosãovenenosas. Não quero ver ninguém gritando e pulando se aparecer umacobra. Gritar e pular no mato pode ser perigoso. Podem torcer o pé oucoisapior.Ouatrairumurso.–Eleesperouatéqueaúltima frase izesseefeito e entãoprosseguiu. – Porém, os ursos não são o pior problema. Sóursospardoscostumamviverporaquie,anãoserqueseesqueçacomidaàvista,elesnãosemetemcomagente.Mas,secomeçaremagritarepular,eelestiveremfilhotes,talvezseirritemeataquem.Entenderamdireitinho?

Ascriançashaviamentendidotudodireitinho,atéosorrisoamploqueoSr. Everett deu ao encerrar a última frase. Havia algo de muito errado,concluiuSarah.Oefeitodoaviso,no casodela, foi exatamenteoqueoSr.Everettesperava:sentiamedo,vontadedefugir,massabiaquecaíranumaarmadilha,poisperdê-lodevistaeramuitomaisperigosodoque icarcomele, que, graças à sua esperteza, praticamente obrigara as crianças a

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aceitá-locomoprotetor.Osoutrostiraramconclusõessemelhantes.QuandooSr.Everett se viroue caminhouemdireçãoà cabana, todoso seguiramsemhesitar.

Quandoanoitecaiunaclareira, silenciosa,aescuridãodamataqueoscercava parecia subir até o céu púrpura, que logo se tornou um domonegropontilhadodeestrelas.OSr.Everettpreparoucachorros-quentesefeijão enlatado, aquecendo tudo no fogareiro a gás do chalé. Mandou ascrianças comerem do lado de fora, sentadas nas pedras espalhadas pelaclareira.FalousobreosiroquesesqueviviamnasmontanhasAdirondackeapontoualgumasconstelaçõesqueconhecia.Tommyfoioúnicoacomerofeijão em lata que vazavapelospratosdepapel.O cachorro-quente tinhaum gosto horrível. Um pio longo, feito um lamento, fez Linda se levantara lita, mas o Sr. Everett gostou do som da ave, disse que lembrava suainfância.Umcorodecigarraslogoencheuoespaçoemvoltadocasebre.

TodosentraramdepoisqueoSr.Everettusoua lanternaparaconferirseninguémdeixararestosdecomida.Dissequequalquermigalhaatrairiaosursos.Ao chegarno chalé, ele abriuumbaúe tirou cobertoresvelhos,manchados.Dissequeprecisariamdecobertas,poismaistardefariamuitofrio.Mandouquetodoslavassemasmãoseorostonapia,explicandoqueaáguadaquelatorneiraeraamaisnaturaldomundo,águapuradafonte.

Ordenou que as crianças deitassem nos colchões espalhados pelosegundo quarto. Quando focalizou a lanterna em seus rostinhos, viu asexpressões apavoradas emolduradas pelo facho ofuscante, como serealizasseacontagemdosdetentosnumapenitenciária.

–Não se preocupem, amanhã vamosnos divertirmuito. Faremosumacaminhada.Quetal?–Ninguémrespondeu.OSr.Everettmirouofachonosrostosassustados,umaum.–Eentão?Nãoachamlegalfazerumpasseio?–Elesresmungaramquesim,umacaminhadaeraumaboaideia.

Ohomemdeixouaportaaberta,masascriançassóconseguiamverunscincometros adiante de onde estavam. Queriam trocar impressões umascomasoutras,masnão tinhamcoragem.O Sr. Everett, andandonooutroquarto, acendeu um lampião de querosene. A fraca chama amarelabruxuleou,lançandosombrasaracnídeasnaparededoquarto.

A luz logo causou um efeito hipnótico e Tommy e Linda pegaram nosono. Sarah, ao ver os olhos de Linda bem fechados, rolou o corpo edeparoucomFranklin,queaencarava.Nãofalounada,nemtentoumoveros lábios, mas seu olhar era bem expressivo. “Estamos numa encrencaenorme”,pareciadizer.“Umdenósprecisa icaracordado.”Revezando-se

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emturnos,osdoisconseguirammontarguardaanoiteinteira.Duranteumdeseusmomentosdevigília,Sarahviuobrilhodeumaluz

estranha vindo do canto do outro quarto. Engatinhou para fora da cama,debruçou-sesobreLindaeesticouopescoçoparaveralémdobatentedaporta.Aluzvinhadeumnotebook.OSr.Everettestavadebruçadosobreapequenamesaondepuseraocomputadoreumacâmeradigital,ealuzdatela iluminava seu rosto por baixo. Quando sentiu que alguém o espiava,viroulentamenteacabeçaeencarouSarah.Agarotanãodesviouavista.Oolhar distante, indiferente do sujeito fez seus cabelos da nuca icaremarrepiados,maselanãosabiaseeleolhavadiretamenteparaela,sepodiaperceber sua presença na penumbra, ou se itava um futuro incerto,imprevisível,paratentardecifrarsuamensagemcriptografada.

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Treze

O FBIASSUMIU O CONTROLE TOTAL da investigação, mas Martin continuou emcena, ajudando no que podia. Chegou à casa de Lena e David demanhãcedo,paramostraraperucaencontradananoiteanterior.Levoutambémfotos de um policial parecido com a descrição de J.D. com a peruca. Opolicial icava tãoridículocomoscachosabundantesqueLenanãosoubedizercomcertezaseaperuca forausadapelosequestrador, seéqueelerealmente havia usado uma. Em todas as imagens dele que guardara namemória,nenhumasugeriaousodeperuca.Martindissequehavia iosdecabelo comprido presos ao forro, que ela podia ter sido usada por umamulherequeaperíciaestavafazendováriostestes.

Quando Martin perguntou se pretendiam ir à igreja, Lena respondeuque não sabia. David balançou a cabeça. Ela perguntou se os outros paisiriam e se acreditavam mesmo que conseguiriam arrecadar o valornecessário.Martinsuspirou.

–OsRostenkowskinãovão.Nãoseise faloucomJanetestamanhã.Elapassouumanoiteterrível.Phil temequeamulhernãoaguente,dissequeelachegouao limite.Umahoraatráselemandouumamensagemdizendoque não pretendem ir. Os Williams con irmaram presença, mas nãolevarãoa ilhapequena.EoSr.Walker tambémvai.Elepretendedoaros25milparaofundodeconstruçãodotemplo.Aquantianãodevesermuitoaltaparaele.

DavideLenatrocaramolhares,antesdebaixaravistaparaochão.–Nãopossoir–disseDavid inalmente,balançandoacabeça.–Vaiser

umapalhaçada.–Nãopermitiremosapresençada imprensanas imediaçõesda igreja.

Ospaisentrarãopelosfundos,pelaruaCulpepper.– Mesmo assim, aquilo vai virar um circo. Você sabe que os e-mails

forampararna internet.OpaideLena icousabendodaperucaantesdenós.Issoéfoda.

–Euvou–disseLena, olhandoparaMartinmesmodepoisdeDavid aencarar. – Não sou religiosa, mas… gostaria de ir. – Tomou uma decisãoimpulsiva,pornãoquererpassarhorasemcasasozinhacomomarido.

– Eu não consigo, Lena – implorou David, como se aquela fosse umadecisãoconjunta.

–Compreendo.Masnãomeimportoemirsozinha.

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SeMartinnãoestivesseali,Davidateriapressionado,perguntadooqueas pessoas pensariam do fato de ela ir sem o marido. Na presença dopolicial, porém, ele teve de icar e manter sua decisão. Sentia-seencurralado,comoseamulherolevassearevelarseuspensamentosparadepoispuni-loporeles.Nesteaspectoelechegoupertodaverdade.

Martin levara três pastas de fotos e Lena passou meia horaexaminando-as. Não viu nenhum rosto parecido com o de J.D., admitindoqueapósametadedasegundapastaelanãoconseguiamaisselembrardecomo era o sequestrador. O investigador comentou que isso era normal.Fechou as pastas e disse que viriambuscá-la às 10h30. Uma brecha nasnuvens, sobre a casa, inundou subitamente a sala com a luz do solofuscante.ElesolharampelajanelaesóentãoperceberamqueasvansdasemissorasdeTV, comsuas antenas, voltavama cercá-los.Martinpegouocelular, digitou um número e perguntou se havia algum motivo especialpara“aquelesrepórteresdesgraçados”estaremalinovamente.Recebeuaresposta,desligouoaparelhoedirigiu-seaDavideLena,queaguardavamansiososasnovidades.

–Nãotemmaisnadadeinteressanteacontecendo–explicou.

Depois que Martin saiu, David tentou conversar com Lena sobre suadecisão,maseladissequenãoestavacomcabeçaparadiscutir.Temiaqueumaconversacomomaridoalevasseaperguntarporqueelenãoestiveraem casa quando Sarah partiu,mas ainda não se sentia pronta para isso.Tomouumaduchaeaáguaaacalmou.Fezumamaquiagem leve, comoaque usava para ir trabalhar, pois não queria dar a impressão de queestavaexagerandodemaneiraimprópria.Escolheuumconjuntodecalçaeblazer para ir à igreja. Olhou seu re lexo no espelho grande do quarto.Nada diferia da aparência costumeira e isso a incomodou. Sabia quemudaracompletamentenasúltimas24horasemesmoassimsua imagempoucosealterara.Comoerapossível?

Entrandona cozinha, começou a preparar ovospara o café damanhã,mas ao ver a gema endurecer na frigideira perdeu todo o apetite. Sentiuaténáuseasefoiaobanheiro,masoenjoopassou.Precisariaseobrigaracomeralgo,elogo.

Ligou para os Rostenkowski e Paul atendeu. Ele chamou o pai e LenaperguntouaPhilsobreJanet.

– Não está nada bem – disse ele. – Passou uma noite terrível. – Não

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pareciadispostoaentraremdetalhes.–Possoajudaremalgo?–Não, eunão…–Eparou, nãodissemaisnada, apenaspassouo fone

paraJanet.Avozdela,fraca,eraquaseinaudível.–Lena?–Oi,Janet.Teveumanoitedaquelas,nãofoi?–Não aguentomais.Não sei o que vou fazer. Tomei um remédio para

dormirontem,masacordeimaisansiosaainda.–Querumsedativoouumansiolítico?Possotelefonarparaafarmácia.–Talvez. – Lena ia dizer quepoderia fornecer a receita, quando Janet

começoua falardescontroladamente: –Deveriamserdois.Eu conferi.Nanoitepassada.Nose-mailsdoacampamentodiziaclaramentequehaveriaummotorista e ummonitor na van. Por que não percebemos que haviaalgosuspeito,quandoapenasummonitorapareceu?

–Duvidoquefosseadiantaralgumacoisa.–Comonão?Eleteriasidodesmascaradoepreso.–Apostoque teriaumarespostapronta.Eraumsujeitomuitoesperto.

Planejou tudo com perfeição. Além disso, sabia que não pensaríamos emnadadogênero.Nãoseiquantoavocê,maseumepreocupeimaiscomoque acontecia a Sarah do que com o motorista. Janet, você não deve seculpar.Nenhumdenóscometeuerros.

– Isso tudo está me deixando louca. Não consigo parar de merecriminar. Sinto uma culpa enorme. Acho que vou morrer. É comodaquelavezque iquei internadanohospitalesofriadedoresconstantes.Não vai passar e não há nada que eu possa fazer para detê-la. – Lenanotouqueelachoravaaodizerisso.

–Possopedirummedicamento,vaiajudar.Qualfarmáciacostumausar?Janet respondeu e Lena já ia desligar quando a mãe de Linda

acrescentouumcomentárioinesperado.– Não con io naquele empreiteiro. Não posso provar nada, mas não

gosto do jeito dele. Nem da mulher. Parece que ela está escondendoalgumacoisa.Sabeoqueeuquerodizer.

Lenanãoconcordounemdiscordou,dissequeprecisavasairedesligou.Pensounaconversamaistarde,enquantoalevavamdecarroparaocultoreligioso.Janetfalaraapenasdesuaprópriadoreculpa.NemumapalavrasobreLinda.Depois,tentoulançarsuspeitassobreosWilliams.Aspessoasnãomudamsóporteremsidovítimasdeumsequestro,pensouLena.

O templo era um dos mais antigos de Larchmont, uma construção

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despojada com teto abobadado, vigas de madeira envernizada, voltadapara o culto. Tinha 10 vitrais com cenas da vida de Jesus e um altarsimples,baixo,nocentro.Opúlpito icavana lateral.Lenaentrouesedeucontadeque ignoravacompletamenteosprocedimentos.David,poroutrolado, tinha alguma experiência com os rituais religiosos. Crescera numafamília batista que o forçava a frequentar o culto dominical, além doserviço às quartas-feiras, até terminar o colegial. Lena participara de umgrupo de adolescentes na igreja luterana sueca, mas os encontros erambasicamente sociais. Ali, todos pertenciam à congregação e conversavamanimados.Umhomemdecabelobrancoeportearistocráticoaproximou-separa cumprimentá-la. Entregou-lhe um folheto e seguiu na direção dosWilliams,queacabavamdechegar.Tambémnãopassoumuitotempocomelesemantevecertodistanciamento.MikeviuLenaeseaproximoudela.

–Somoscatólicos.Vocêsabecomoéoritualdaqui?–Nãofaçoideia.Vejoquehápessoasparaconduzi-loatéumlugar.–Nãoquerficarconosco?Juntosvamosdescobrircomonoscomportar.Lena fezquesimcomacabeçaeagradeceucomumsorriso.Poe Jack

chegaram,Mike apresentou o ilho a Lena. Disse que ela eramédica, emseguida voltou-se para ela e falou que Jack pensava em fazer medicina.Lena resmungouumcomentáriodo tipo “quebom”,notandoqueo rapazestava constrangido. Como herdara a vivacidade do pai, saiu-se bem,dizendoqueprimeiroprecisavacuidardesuacarreiranobeisebol.Amãelhe deu um soco de brincadeira. Lena pensou que o gesto havia sido umdos mais bonitos que já testemunhara entre mãe e ilho. Aonde Janetpretendiachegar?Aquelafamíliaeraperfeita.

Eles estavam sentados na parte da frente. Dois terços dos lugares dotemplo estavamocupados.QuandoLena se acomodouno banco, uma vozfemininasoouatrásdela,numsussurro:

–Todosnóslamentamosoocorrido.Ficamoscontentesporvocêsteremvindo.

Lena virou o rosto e agradeceu com ummovimento de cabeça. Evitoucontatovisualcomosoutros,en iandoacaranofolheto.Nãohaviamençãodaarrecadaçãonele,poisdeviatersidoimpressoantesdorapto,antesdoe-mail enviadopelos sequestradores.Provaadicionaldissoerao temadosermãododia,pelareverendaWalker:“DiasAlegresdeVerão”.Lenatinhacertezadequenãoseriaaquelaahomilia.

John Walker percorreu a nave parando praticamente em todos osbancos para cumprimentar os iéis, receber mensagens solidárias e ser

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abraçado.QuandochegouaobancodeMike,quesesentaranaponta,deuum show de camaradagem, que Mike retribuiu com elegância. Walkersentou na primeira ila, ao lado da nave, seu lugar de costume. Baixou acabeçaeassimpermaneceuporlongosminutos.Ergueu-aquandooórgãotocou a introduçãodohinode abertura, levantando-se como restantedacongregação.

Longedesesentirdeslocadaduranteoserviço,Lenasentiu-seatraídapeloritual,pelaatuaçãodocoronofundodaigreja,queentroucantandoese dividiu ao chegar ao altar, movendo-se para as laterais, onde osmembrosocuparambancosespeciais,pelomovimentodosorientadoresediáconosquedesempenhavamváriasfunçõesumtantoobscurasparaela.

Amovimentaçãohabitual,noentanto,nãoescondiaatensãoquetomavacontadosantuárionomomentoemqueSheilaentrouesesentounoaltarcom o ministro assistente. Lena, como todos os outros presentes,preocupava-se com a condição da mulher e se perguntava se elaconseguiria conduzir a cerimônia. Não trocara mais do que algumaspalavras com Sheila, a quem considerara distante e desagradável noencontro do dia anterior, o que não a impediu de se solidarizar com apastorapeladi ícilposiçãoemqueseencontrava,tendodetrabalharcomopúblico,desempenharumaatividadeque,obviamente,nãopodiadeixarde realizar.Lenapensounodiaemque teriadevoltaraoMountSinai seSarahcontinuasseausente.Masseutrabalhoeraatenderospacientesuma um, não tinha nada a ver com se apresentar perante a congregação,comonocasodeSheila.

Tom Adams, o ministro assistente, conduziu as orações, a leitura doAntigoTestamento,oanúnciodoshinoseaprecedacon issão.Depoisdadoxologia, na qual os Williams e Lena permaneceram calados enquantotodosemvoltarecitavamaspreces,Adamsdissequeacongregaçãopodiasesentar.Umgestodirigidoaos fundosda igreja fezcomqueosdiáconosfossematéoaltare sedistribuíssemna frentedoministroassistente.Eleapanhouospratosdecoletanumaplataformaeosdistribuiu.Emseguida,dirigiu-seàcongregação.

– Teremos hoje uma oferta especial para o fundo de construção dotemplo. Como sabem, chegamos quase à metade de nossa meta de 2milhõesdedólares. Pedimosque contribuam comgenerosidade. Como setrata de uma coleta para o fundo de construção, divulgaremos o totalobtidoassimqueforsomado.

Lena sentiu o rosto enrubescer. Não estava preparada para aquela

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situação, embora a coleta fosse a única razão para sua presença ali. ViuJohn Walker pôr um cheque no prato e se deu conta de que não havialevado seu talão nem tinhamuito dinheiro. Revirou a bolsa, encontrandoduasnotasde20etrêsde1dólar.Pegouasde20.MikepegouopratododiáconoeopassouaPo,queoentregouaLena.Aocolocarasnotasde20,viuumavariedadedechequescoloridosemuitoszerosnocampodovalor.Sentiu-sehorrível.Baixouacabeçadetantoconstrangimento.

Quando os diáconos voltaram e a congregação cantou, o diácono-chefeaproximou-sedeTomAdamse lheentregouumpedaçodepapel.Adamspegou os pratos e baixou a cabeça. Fez uma oração de agradecimento e,depois do “amém”, olhou para a congregação, ávida por notícias, pois amaioriadospresentessabiaoqueestavaemjogo.

–Agradeçoatodospelagenerosidade.Hojeconseguimos48mildólaresparaaglóriadeDeus.

Lena pulou quando a congregação aplaudiu com entusiasmo. Aslágrimas escorriam pelas faces enquanto as palmas prosseguiam, comoumamuralhadedesa iosonorodirigidaaossequestradoreseaseue-maildetestável. Sentiu a mão de alguém tocar em seu ombro, por trás.Apreciava o calor do lugar e das pessoas. Uma frase de seu distantecontatocomosluteranosvoltouasuamente.Elaforaelevada.

Quandoaspalmascessarameasconversasnointeriordotemploforamseacabando, todososolhossevoltaramparaSheila.Elapareciamenor,acadeira de espaldar alto a engolindo. Olhava direto para John, sem semexernoinício,comosetivesseraízesoulhefaltassemforças.Emseguidarespiroufundo,levantou,seguiuatéopúlpitosemtextosouanotaçõesnasmãos. Pediu à congregação que baixasse a cabeça e orasse, entoando apreceritual: “QueaspalavrasproferidasporminhabocaeasmeditaçõesdemeucoraçãosejamagradáveisaTi,Senhor.”Acongregaçãorespondeuamém.Sheilaprecisoudeuns15segundosparaserecomporecomeçarafalar:

– Sinto faltademeu ilho, Franklin,maisdoqueposso explicar.Há24horas, euo coloqueinumavan, certadeque estava seguro equeo veriaoutravezdaquiaduassemanas.Agoranãoseiondeeleestá.Nãoseiquemtoma conta dele, se é que há alguém. Não suporto imaginar o que podeestar acontecendo com ele, Tommy, Linda e Sarah. Desde o primeirominutoemquesoubemosdoocorrido,domodocomofomosiludidos,tenhooradoparaquetudonãopassassedeumsonhoruim.Masaquiestoueuetudo é bem real. Hoje, por extrema ironia, eu pretendia falar sobre as

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alegriasdoverãoedomodocomoalembrançadessasalegriaspodetrazeresperança a nossas vidas. Ainda sinto que devo dizer algo a respeito daesperança,masnãooqueplanejaraoriginalmente.

Ela parou, imóvel, como se aguardasse algo, sem se mexer, sem sepreocuparcomosilêncioprolongado.

Lena sentiu a presença de David a seu lado, embora nada houvessemudadonobanco.Sentiasuainquietudeemmomentosassim.Melhorquenãoestivesseali.Sheilafinalmenterecuperouavozeretomouosermão:

– Jamais voltarei a usar a palavra esperança sema consciênciadequeelaseopõeaminhafé.Duranteavida inteirauseiessapalavra inúmerasvezes e muitos foram reconfortados imensamente quando a empreguei.Masagoraseialgoquenãosabiaantes.Esperançaemedonãopassamdedoisladosdamesmamoeda.Deumamoedaquenãotemnenhumarelaçãocomaverdadeirafé.NasprimeirashorasdosequestrodeFranklinrepetimuitas vezes, a mim, a John, a vários de vocês: “Minha esperança é quemeu ilhovolteparacasaembreve.”E, lánofundodaalma,eutemiaquealgo horrível pudesse acontecer a ele. E a morte não era a piorpossibilidade que eu imaginava. Orei, claro. E foi em resposta a essasprecesqueminhavidamudouirremediavelmente.Aesperança,fuilevadaa entender, signi icava ansiedade em relação ao futuro, como o medo.Percebi que, ao ansiar por um desfecho, duvidava de Deus e de suaperfeição.Abraão,medei conta,não levou IsaacparaoaltodamontanhaesperandoqueDeus fossemandaroutramensagem,alterandoasordens.Sua fé emDeus não permitiria uma ansiedade tão super icial. Sua fé eratãoprofundaesinceraqueelecon iavaemseuDeusparadetersuamão,se fosse essa a Sua vontade, ou deixar que prosseguisse em sua terríveltarefa,casoDeusassimoexigisse.NãofoiaesperançaquelivrouIsaacdafacanagarganta.Foiafémaisprofundaquesepodeimaginar.

Sheilafezumapausaedepoisprosseguiu:– Não conto mais com a esperança para o retorno de Franklin em

segurança. Coloquei toda a minha fé nas mãos de Deus, a quem servi avidainteira.SeFranklinnãovoltarparanós,sealgoacontecer,sofrereiatéo im dos meus dias. Sentirei falta de meu ilho, ummenino estudioso emuitosério,acadavezquerespirar.Masestamosagora,eestaremosparasempre,unidosnafé,eoúnicomododeeuperdermeufilhomaravilhosoépermitir que essa fé seja trocada pela esperança e pelo medo. Fuiconduzida pela mão e trazida a este lugar. Com a outra mão alcançareitodos vocês, e John, e o delicado corpo de Franklin, para pedir que me

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acompanhem,queencontrema fémaisprofundaemseuscoraçõesequeconfiemnelaportodaaeternidade.

Sheilaviroueseguiuparaaportapelaqualentrara.Derepenteoritualdo serviço se dissolveu. Tom Adams parecia perdido, mas após longossegundos de hesitação ele pulou o hino inal, ergueu asmãos, fechou osolhoseentoou:

–QueoSenhorestejaconvosco.QueElelancesobretodosa luzdeseusemblanteenosdêapaz.Amém.

A congregação, que normalmente conversava enquanto saía da igreja,ficouatordoada,semdizernada.

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Quatorze

QUANDOSAÍAMDOTEMPLO,MIKEseaproximouparafalarcomLena.– Deve ser coisa de protestante. Não captei. Ela quis dizer que devo

abandonaraesperança?Lenaconcordoucomacabeça,masnãodesmereceuosermãodeSheila.

Ela invejou, isso sim, sua solução para o problema horrível quecompartilhavam. Por um instante, Lena pensou que seria capaz deentender a abordagem nada cientí ica da ministra. Mas, ao sair pelasportasescancaradasesentirosol forte,a ligaçãodébilcoma fédeSheilaseesvaiu.

A presença do detetive Martin a surpreendeu, ele subia os degrausparacumprimentarosWilliamsepuxá-losdelado.

–Chegououtroe-mail.Umvídeodascrianças.Todosparecemestaremsegurança. – Martin olhou para Mike. – Suponho que pre iram ver asimagensemcasa.

Oempreiteirosemostroudesconfiado:–Porqueveioatéaqui?–ParabuscarLena.Eavisar…–Espere.Oquequerdizerisso?Ovídeo.Porquenãonosconta?– Calma, Mike. Não é nada, con ie em mim. É apenas um vídeo, nada

mais.Nãotireconclusõesprecipitadas.–Tiro a conclusãoquequiser eponto inal.OqueoFBI falou a vocês,

hein?Sereceberamumvídeo,querdizerqueaconteceualgumacoisacomascrianças?Oqueestãoescondendo,porra?

Martin não teve tempo de responder, pois JohnWalker se aproximoudeles,desligandoocelular.

–Soubequeenviaramumvídeo.Oqueaparecenele?–Comosoubedisso?–perguntouMartin.John,pelojeito,nãopretendia

responder. – Bem, acabou de chegar. O FBI já começou a analisá-lo, comtodos os recursos disponíveis. Vão para casa. Manteremos contato. Lena,voulevá-la.

Antesdeseguiroinvestigador,Lenaachouqueaindatinhaalgoadizera Mike. Ele havia levantado uma dúvida em relação a sua opiniãoimaculadasobreMartin.Ela sentiavontadededefenderodetetive.OlhouparaMikecomfirmezaedisse:

–Nãoacreditoqueestejamquerendonosenganar.

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–Esperoquenão–respondeuele,enfatizandoo“espero”.MasLenaviuqueestavadescrente.

Quando David e Martin acompanharam Lena até o quarto, o maridotentouexplicaredefinirparaamulheroqueelaiaver.Elaointerrompeu.

–Queroverprimeiro,David.Lenatinhacertezadequeveriaa ilhadeitadaemalgumlugar,deolhos

fechados. Entrou no modo à prova de choque, sangue gelado circulandonasveias, comoaprenderaa fazerna faculdadedemedicina,quandoeraobrigadaavercadáveresmutilados.

Davidclicoucomomousee,emvezdecriançasmortas,elaviuquatropessoinhasmuito vivas, franzindo a testa por causa do sol, emolduradaspelo verde de uma mata qualquer. Quando seus olhos se ajustaram àprecariedadeda imagem,elaviuSarah,umpoucoà frentedosoutros,doladoesquerdo,calada.

–Sarah!Lenasentiuapresençadafilhaeachamou.Tommypronuncioupalavras incompreensíveis.Sarahvirou-separaele

e o vídeo acabou abruptamente. Lena queriamais. Nos poucos segundosdevídeo, forasugadaparadentrodatelaeagoraeraarrancadade lá,dacompanhiadafilha.

– O FBI disse que o pessoal do laboratório de imagens digitais deWashington vai examinar o vídeo detalhadamente. Já chamaramespecialistasembotânica,disseramqueavegetaçãopodeserdequalquerlugar,desdeumquintalatéasMontanhasRochosasdoCanadá,ouatémaislonge.Ouseja,nãonosforneceunenhumapista.–Martinsemostravamaiscontido e sensível do que antes. Lena registrou a mudança decomportamento, o tratamento mais gentil, e isso fez aumentar suaansiedade.Quisassistiraovídeonovamente.

Vendo o vídeo feito pelos sequestradores repetidas vezes, Lenaencontrou alguma esperança nosmovimentos da ilha na clareira, com amesmagraçanaturaldequese lembravanosvídeoscaseiros.Porém,suaangústia aumentava a cada vez que via aquela cena. Imaginava a pessoaatrás da câmera, a quem as crianças, por alguns segundos, pareciamreagir.Osquatroestavamempé,agrupadosarti icialmente,pertodemaisuns dos outros. Talvez para se protegerem, pensou Lena. Nãomanifestavam seu medo abertamente, mas aquele não era o

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posicionamento relaxado que crianças de 9 ou 10 anos costumavamadotar.

SóquandoMartin,depéatrásdela,mencionouahoraeadata,Lenasedeucontadosnúmerosnocantosuperiordireito.

–Estamostentandorelacionarpadrõesclimáticosdaárea,comoaluzdosol, com o momento do vídeo, ângulo solar e outros dados. Um tiro noescuro, mas, como já se passaram mais de 24 horas, temos de fazer omáximo.

–Oqueas24horastêmavercomocaso?–perguntouDavid.–Nada,ésóummododedizer.Martin dera um fora e relutava em explicar que as chances de

encontrar vítimas de sequestro diminuíammuito depois do primeiro dia,casoossequestradoresnãoaslibertassem.Masnãopodiadizerisso.LenaeDavidentenderamecompartilharamacompreensãocomumolhar.

Lena voltou a itar omonitor do computador. A tela plana a encaravacomoumidiotaquenadatinhaaoferecer,excetoumsorrisoestúpido.NãoaaproximavadeSarah.Nãoeraasoluçãoquebuscavadesesperadamente.Estavaapontodearrebentaromonitor,mascomesforçolevantouesaiu.

O vídeo em si não fora liberado para a imprensa, nem ossequestradoresodivulgaram,masàumadatardejácirculavanainternet.Surgiram comentaristas que disseminavam suas fantasias de vingança,especialistas oportunistas ostensivamente a favor das famílias ofereciamauxílio, mas queriam apenas aparecer. Políticos onipresentes na mídiadavamsuasopiniõesefaziamoraçõeseapelosgrandiloquentesdeação.

Surpresa, Lena viu que nenhum dos pais, nem mesmo John Walker,deradeclaraçõespúblicassobreovídeoatéasquatrohorasdatarde.Janettelefonara por volta das 15h30, para agradecer a Lena pela receita,dizendoqueoansiolíticoajudaramuitoequenãoachavaqueascriançasno vídeo estivessem muito “assustadas”. A ideia simplesmente nãoocorreraaLena.Presumiraqueelasestavam“assustadas”equequalquerindicação em contrário se devia à imagem bidimensional enganosa ou àcapacidadedeocultaremseusmedos.

Duranteatarde,Lenasentiusonolênciaeocorpopesado,comosefosseicar doente. Tomou vitamina C, mas não acreditava que uma doençaqualquer pudesse ser detida pelo remédio. Deitou-se numaespreguiçadeiranoquintal, espantandoo sono, embora cochilasse de vez

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em quando. Uma foto sua, tirada de longe por um desconhecido para oPost, saiu no jornal e foi parar na internet no dia seguinte. Lena pareciatranquila emais de um comentarista considerou chocante que amãe deumacriançasequestradatomassebanhodesolnoquintalenquantoa ilhaestava desaparecida. A imagem, claro, transmitia uma impressãomentirosa. Lena estava quase em pânico quando se deitou lá, tentandomais uma vez lembrar se acenara para a ilha e se Sarah também deraadeusparaela.

Lena escutou David falando ao telefone várias vezes durante a tarde.Não sabia para quem ele ligava, nem quis saber. Ele não agiu àsescondidas. Conversou com o irmão de Oklahoma e com um parceiro degolfe, mas fora isso ela não identi icou quem era, nem se importava.Percebeuque aspalavrasdele eram sempre similares. Estava “atônito” enão tinha “a menor pista” de quem poderia ser responsável pelosequestro.SeuúnicoconfortoeraofatodeSarahser“umagarotadurona”.Segundoele,pelovídeodavaparaverqueelaestavaaguentandootranco.Mencionouaalgunsqueestavamquerendoformarumaespéciedegrupodebusca,mastudosoavavagoevazio.Falava,percebeuLena,paranãoterdepensar,talvezparanegarseussentimentos.

Martinsaiuepassouumbomtemponarua.Voltoucomosdoisagentesdo FBI. Lena os recebeu na porta e logo notou uma atitude diferente nodetetive. Ele não a encarava. Apresentou os agentes outra vez e Lena,sabendo que poderia precisar deles, gravou os nomes: o hispânico sechamavaDomingo,eamulherobesa,Newmark.

OdetetivequisconversarcomDavidasós.David,quevieradasalacomofonenaorelha,ouviuasolicitaçãoequissaberomotivo.Martindissequehaviaalgumasperguntasquepreferia fazeraelesemqueLenaestivessepresente. Ela não gostou daquela história, mas David disse à pessoa dooutroladodalinhaqueprecisavadesligarefoiparaoquartocomMartineDomingo.Newmark icoufazendocompanhiaaLena.Ela tentoudescobriroqueacontecia,masaagentefingiuquenãosabiaedeudeombros.

Depoisdesesentarem,oagentehispânicoassumiuocomando.PediuaDavid que lhe contasse o que já dissera a Martin: onde estava quandoSarah foi sequestrada. O pai da menina repetiu que estava trabalhando.Domingo suspirou, co iou o bigode farto e usou a pausa rápida parainformaraDavidquenãoacreditavanele.

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–Não se trata de um depoimento nem nada assim, Sr. Trainor.Mas émelhorquesejaprecisonasinformaçõesquenosder.

–Masfoiisso,ligaramdotrabalhoefuiparalá.–ParaaDell?–Sim.–Sr.Trainor,sabemosquefoidemitidodaDellhá13dias.Davidrespiroufundo,olhandoparaMartineDomingo.– Certo, mas… eu precisava terminar umas coisas, um projeto

incompleto,eelesmechamaramparatratardisso.– A companhia não tem nenhum registro do fato e ninguém de sua

antiga divisão sabe nada sobre essa ligação nem sobre sua presença láontem.Osenhorprecisasersinceroconosco.

Davidsuspirou,olhoudenovoparaospoliciaiseconcluiuquenãodavamaisparaocultaraverdade,balançandoacabeça.

– Eu não queria que minha esposa soubesse da demissão. Ainda nãoconteiaela.Mecandidateiaoutrosempregoseontemrecebia ligaçãodeuma das empresas. Queriam marcar uma entrevista no café da manhã.Disseramqueprecisavamcontrataralguémimediatamenteequeeutinhaquecomparecer,ouperderiaavaga.NãopodiacontaraLenaaondeeuia.

– Com quem era a entrevista? – perguntou Martin. Domingosurpreendeu-secomainterferênciadodetetive.

–TriciaSands.ElatrabalhanasededaKraftFoods,emRye.–Temonúmero?–Sim,claro.Nãoseiondefoiparar.Pegueiocartãodevisitas.–Elatelefonoudasededaempresa?–Dasede?Seilá.Marcouaentrevistaeeufui.–Onde?–NumacafeteriadeTuckahoe.Esquecionome.Domingo pigarreou, sinal paraMartin não interferir, e fez a pergunta

seguinte:–DepoisqueaSrta.Sandstelefonou,vocêligouparaela?–Não,creioquenão.Euiaencontrá-la,mas…– Sr. Trainor, examinamos seu computador e permitiu o acesso aos

registrosdeseucelular,lembra-sedisso?– Sim. – Os ombros de David caíram, mas sua isionomia permanecia

impassível.– Con irmamos que recebeu um telefonema da Srta. Sands ontem. Da

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casadela.Nãofoiaprimeiravezqueelaligouparaosenhor.–Não.Certo.Elaeeutrocamosalgumaspalavrassobreoemprego.– Há registros anteriores à sua… demissão. Dúzias de ligações para o

númerofixoeocelulardela.–Será?Achoqueeuestavaprocurandosaber…– Chega de enrolar, Sr. Trainor. Podemos interrogar a Srta. Sands a

respeito,masseriabemmelhorseosenhormesmoesclarecessetudo.Davidre letiuumpouco,olhouparaotapete,comasmãosescondendo

o rosto. Ergueu os olhos quando sentiu que estava calmo e pronto pararevelartudo.

– Não acreditam que isso tenha algo a ver com Sarah e seudesaparecimento,nãoé?

–Nãosabemos–respondeuDomingo.–Nãosabemosoqueé“isso”.– Pelo jeito, já adivinharam. Tenho um caso com Tricia há uns quatro

meses. Foi uma das razões para minha demissão. Meu chefe descobriutudo.Éummoralista ilhodaputa.Alegouquenãoqueriagentedemoralduvidosa trabalhando com ele. Disse que não contaria nada à minhamulher,masmedemitiu.Triciaeeunosencontramosporacaso,numbaremDallas.Estávamosnacidadeparaparticipardeconvençõesdiferentes.Depoisquefuidemitido,elacomeçouaexigirmuitascoisas.Emrelaçãoaocasamento. Sabia que Sarah ia para o acampamento e queria me ver.Prometi a Lena que passaríamos as duas semanas juntos. Ela… TriciatelefonouontemdemanhãeameaçoucontaraLenasobrenossocaso.Euprecisavaencontrá-la.EstavacomTriciaquandorecebialigação.

–Quandoorecadofoideixadoemsuacaixapostal.–Certo.Estávamosnomeiodeumadiscussão,nãoouviocelulartocar.–Ondefoiestadiscussão?–perguntouDomingo.–Onde?Bem,penseiquevocês…noHoliday InndeYonkers.Ela fez a

reserva.–Elapareciadiferente,nervosa?Notoualgoforadocomum?–Nãosei.Comodisse,ficouexigente.Masporquê…?–Elatirouosenhordaquinummomentocrucial.Talveztenhaalgoaver

comosequestro.David balançou a cabeça negativamente, mas Domingo já plantara a

sementedadúvida.–TeremosqueinterrogaraSrta.Sands–disseDomingos.–ELena?Vãocontaraela?–Veremos.

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Davidvirou-separapediraMartin.– Sei quepisei na bola.Mas será necessário contar a Lena sobremeu

caso?Puxavida!Jáviramcomotudoissoestásendohorrívelparaela,paranós dois. Estamos distantes há algum tempo. Provavelmente foi por issoqueeu…Bem,dáparaseguraressahistóriaporenquanto?

– Sr. Trainor, pelo que sei isso é problema seu – disse Martin, semesperar a resposta de Domingo. – Se isso causar algum impacto nainvestigaçãodosequestrodesua ilha,entãoprecisaremosfalarcomLenaeosoutrosarespeito.Peloquesabemosatéagora,porém,trata-sedeumaquestãoparticularentreosenhoresuaesposa.

–Certo.–Bem,elavaiquerersaberporquemeinterrogaramseparadamente.–Maisumavez,éproblemaseu–retrucouMartincomvoz irmeetom

gelado. – Se tivesse nos contado a verdade desde o início, nãoprecisaríamosinterrogá-loassim.

–Sei,mas…–Vamos fazeropossívelpara sermosdiscretos.Masos computadores

conseguempassarcoisasadianteenãopodemoscontrolá-los.David agradeceu aos policiais com um olhar. Domingo revelou a

suspeitasobreTricia,descon iadodequeelapoderiaquereratingirDavid,sequestrandosuafilha.

– Duvido muito que ela tenha feito uma coisa dessas – disse David,tentandoselembrardocomportamentodaamantenodiaanterior.

– E Lena? – perguntou Domingo. – Algo a respeito do comportamentorecentedesuamulherpoderiaindicarqueelaplanejavaestesequestro?

David olhou para Domingo e em seguida para Martin, viu que aperguntaerasériaedisparou.

–MeuDeus, não!Quemerda é essa? Entendo que suspeitemdemim,poismentiparavocês.Mas,minhanossa, Lenaéuma santa.Nãoviramoefeitodissotudonela?

– Francamente, Sr. Trainor – rebateuDomingo, preparado. –Notamosqueelamantémacompostura.Normalmente…

– Ela é médica! Lida com crises todos os dias. Está arrasada, podemacreditar.Sóporqueelanãoseacabadechorarnem ica jogadanacamanãoquerdizerquenãoestejasofrendo.

Emvezdedesculpasdospoliciais,Davidrecebeuolharesqueindicavamsuspeita, talvez pensassem que seu protesto fosse exagerado. Não seimportava. Parte de suas dúvidas quanto ao casamento se dissolveram

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quando Domingo o interrogou sobre Lena. Amava sua energia contida enãopermitiriaqueuminvestigadorqualqueraatacasseporcontadisso.

Lena e Newmark estavam na cozinha. Os 20 e poucos minutos queDavid passou no quarto sendo interrogado foram um tormento para suamulher. Enquanto jogava conversa fora com a agente, tentava imaginarsobre o que os dois policiais falavam com David. Perguntou a Newmarkpela segunda vez por que havia necessidade de interrogar omarido emseparado, e a agente disse que não sabia, enquantomascava chiclete.NoinícioLenapensouquehavia algumanovidadeno caso, umanotícia ruimcomaqualnãoconseguiria lidar,por issoapouparam.Maselaaindanãodemonstrara descontrole, pensou, e eles não pareciam preocupados comsuareação.

Ostrêspoliciaisrecusaramcaféeforamembora,deixandoDavideLenaa sós. Ela o encarou comoquemdiz “Conte tudo” eDavid soube que nãolherestavaescolhasenãocontarsuahistória.

–Mentiarespeitodeteridotrabalharontem…–Eujáimaginava.Aondevocêfoi?– Espere até eu terminar. Menti sobre o serviço porque não havia

serviçonenhum.Fuidespedidoháduassemanas.Lena foi pega de surpresa, tanto que o fez repetir tudo. Virou-se de

costasparaabsorverasconsequênciasdarevelação.– Queria arranjar outro emprego antes de lhe contar. Fiquei

envergonhado. Recebi um convite para ir a uma entrevista ontem, nohorário do café da manhã. Sabe, queriam que eu fosse e achei queprecisava ir, mesmo perdendo a despedida de Sarah. Lamento, querida.Não deveria ter ido. Deveria ter contado a verdade. Principalmente àpolícia.

– Mas…. – Lena tentava assimilar a notícia. Jamais imaginara aquelapossibilidade.–Masporquevocê…como…estãocortandopessoal?Oquehouve?

– Nada. Foi o Crocker. Nunca nos demosmuito bem. O departamentocometeualgunserroseeleosusoucomodesculpaparamedemitir.

–Vocênãopodeentrarcomumaação?–Provavelmente,sim.Masdequeadiantaria?–Seilá.Porquenãomecontou?–Jádisse.Fiqueicomvergonha.– Vergonha! – gritou Lena, surpresa com a veemência inusitada e

imediata.–VocêdeixouSaraheeuparairaumaentrevistadeempregoe

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não teve sequer a decência de nos contar a verdade! –A raiva incontidaera consequência das 24 horas que passara se controlando.Mas ela nãopretendiaparar.

–Eupenseiqueestavasendo…–Conseguiuoemprego?–Comoé?–Conseguiuoemprego?–Eu…aindanãosei.Acreditoquenão.Foi…–Eleparoudefalarquando

Lena se afastou, tomando fôlegopara continuar adiscussão. – Lamento–disseDaviddebilmente,comvontadedeseaproximardamulhereabraçá-la, unir-se a ela pela primeira vez desde o sequestro. Quando ela viroupara encará-lo outra vez, com os olhos brilhando, ele intuiu umaoportunidade. Chegou mais perto. Ela não saiu do lugar. – Assim queconseguirumemprego,contareiavocê.

– Minha nossa, David. Não quero que você arranje um emprego.Pretendiadizerissoquandoconversássemos,maistarde.Puxavida.

David viu lágrimas rolarem pelo rosto dela. Aproximou-se da esposainstintivamente, e ela deixou que ele a abraçasse. Para ambos foi umchoque, por ummomento. “Aí está omeumarido”, pensouLena.ODavidquedesaparecerapormeses,anos,oDavidqueafaziarir,quemostravaaelaqueexistiavidaalémdo trabalho,queaapoiaranumpartodi ícil,umhomem carinhoso, vulnerável, que ela amara desde que tinham sidoapresentados. Lena não conseguiumais sufocar as lágrimas e afundou acabeçanopeitodele.

David sentiu que as mentiras esfarrapadas e a ansiedade paralisantedosúltimosmesesderretiamaocontatocomorostoeocorpodeLena.Elequeria terminaracon issão, revelarocasocomTriciaese livrar tambémdaquele fardo. Mas percebeu que não adiantaria nada fazer isso agora,comasvansdasemissorasdoladodefora,a ilhaemperigo,sabe-seDeusonde. Contar sobre seu caso amoroso só aumentaria a tensão. Queriatomaradecisãocorreta,não fazerbesteiras,comovinhaacontecendonosúltimosmeses.

Lenarecuou,enxugouosolhoseoencarou.Nãodissenada,masDavidreconheceuemsuaexpressãoumimpulsotácitodereconciliação.Beijou-anatestaelembrou-se,comocoraçãosubitamenteapertado,dequebeijaraSarah do mesmo jeito, quando se despediu. Sentia muita falta da ilha,estavaarrasadocomasensaçãodeperda,masnãotinhaculpaouraiva.

– Eu queria tanto que ela voltasse – murmurou ele, para si mesmo e

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para Lena. A esposa suspirou e se afastou para evitar um acessoincontroláveldechoro.

Eles seafastaramumpoucoparaabsorvera intensidadedomomento.David, imóvel, olhava ixamente para os veios da madeira da mesa dacozinha, quando a imagem de Tricia Sands invadiu sua mente. Ele adeixaranacamadoquartodomotel,depoisdecontarqueSarahhaviasidosequestrada. A ligação de Lena para dar a notícia o confundiracompletamente,porissoseesqueceradareaçãodeTricia.Masagora,apósosolhareseasperguntasdeDomingoeMartin,lembrou-sedefragmentosdo momento em que saíra correndo porta afora. Tricia o questionaraquando disse que Sarah fora raptada, e a incredulidade que elademonstrou não transparecia o choque esperado numa circunstânciadaquelas. Enquanto ele se vestia, ela icou de joelhos na cama, sem secobrir: as curvas dos quadris, os seios expostos, os pelos pubianosconvidando-oafazeramordenovo.“Elanãodeveriater icadochocada?”,pensouDavid.“Estariapreparadaparaanotícia?”Claro,disseraaverdadeaodeclararàpolíciaqueTriciaseriaincapazdearmarumplanointricadocomooqueforarealizadoporJ.D.Entretanto,elasemdúvidatinhamotivoseomomento,reforçadopelasameaças,foraperfeito.TalveztivesseamigosqueconheciampessoasquepoderiamraptarSarah,dandoassimumaliçãoemDavidpordemorarempedirodivórcio.

EmseguidaveioosilênciodeTricia,nenhume-maildesolidariedadeoupreocupação, nenhum recado. No início, ele sentira alívio, mas agora seperguntavaseafaltadecontatonãoseriaumapista.NinguémsabiaondeprocurarSarah.Oqueeledeveriafazer?DeveriaprimeiroconfessartudoaLena?Fitounovamenteseusolhoscastanho-claroscalorosos,vendo-adeumjeitonovo,comoamulherquelheensinaraoqueeraoamor.SeTriciaestivesse por trás do sequestro, então David era responsável pela dorterrível que Lena sentia. A ideia o paralisou, embora tenha se esforçadoparadisfarçarissocomumsorrisodesolado.

Lena, registrando apenas o sorriso, desfrutando a sensação de terrepousado a cabeçano ombrodeDavid, acariciou o braçodomarido e obeijou.Aindanãoeraacura,pensou,masaferidaforamedicada.

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Quinze

SARAHACORDOUCOMOCROCITARdistantedeumcorvo.Aluzmatinalchegavaàcabana atravésdaneblinaque embaçara as janelas sujas.O pio, agudo ealarmado, dava a impressãodequeopássarohavia sidoperturbadoporalguém e fugira. Sarah imaginou que a mãe e o pai tinham assustado ocorvoaopercorreratrilhaàprocurada ilha.Então,quandoviupelocantodoolhoumrostosurgirnajanelatevecertezadequeeraumdeseuspais.

Ela se virou e deparou com o Sr. Everett, que vigiava o interior dacabana,protegendoosolhoscomamãoparaveratravésdovidro.Elenãodisse nada ao se afastar da janela. A realidade da situação se impôs aSarah novamente quando ela olhou em torno e viu os três colegasdormindo nos colchões. Franklin, acordado, ainda repousava a cabeçasobreumcobertordobrado, imóvel.Assumiraoúltimoturnodevigilânciaesemantinhafirme.Linda,enroladanocobertor,amãopróximaaorostoeopolegarnumaposiçãoquepareciaqueela iachuparodedo.Tommy,debruços,pernasabertasebraçosestendidos,assemelhava-seaumanjinhoviradoparabaixo,sobreocolchãomanchado.

Sarah ouviu quando o Sr. Everett entrou no casebre para preparar ocafé damanhã. Pensou no último desjejum em casa, com o pai àmesa, amãeentrandoesaindodacozinha,preparandotudoparaoacampamento.

–Porquevocênãosesentaumpouco?–disseraDavidaLenaquandoelavoltouparaacozinha,masnãoobteveresposta.ElesorriraparaSarah,quepercebeusuaansiedade,emboranãosoubessearazão.Notavaqueopaiandavaansiosoultimamente,comotomdevozbaixoesemfazersuasbrincadeirasbobas.

–Pegoupilhas extraspara a lanterna? –perguntouLena.Davidolhouparaela,quehaviapercebidoseuesquecimento.

–Não,maspossodarumacorridaaté…–Nãodátempo.–Claroquedá.Nãodemoronem…Sarahinterrompeuosdois.–Seapilhaacabar,possocomprarnacantinadoacampamento.Sarahlembrouqueamãeaolharademodoestranho.Porquê?Irritara-

se por a ilha ter resolvido o problema de David? Ou havia algo mais?Di ícil dizer atualmente, em relação aos pais. Quando estava sozinha comumdeles,eratudocomoantes.Masconvivercomosdoisgeravamomentos

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confusoscomoaquele.O Sr. Everett atravessou a porta entre os dois quartos do chalé,

interrompendo as recordações de Sarah, para ordenar que selevantassem. Tommy, assustado com a voz dele, virou-se rapidamente,piscando depressa e esfregando os olhos. Linda não se mexeu. Franklinsentou-senacama.Enquantoohomemfalava,Sarahsacudiuaamigaparaqueelaacordasse.

– Temos umaprogramação, pessoal – disse o homem,mantendo certadistância da porta enquanto as crianças levantavam. – Podem enrolar oscobertores.Duvidoquesejamnecessáriosestanoite.

–Comoassim?–perguntouTommy.–Bem,achoquenãovamosdormiraqui.Elenãodeixoubrechaparaoutrasperguntasevoltouparaofogareiro,

ondeumafrigideirachiava.Ascrianças trocaramolhares,masnadadisseram.Sarahouviuocorvo

novamente,sóquemaisperto.Dessaveznãoconsiderou issoumsinaldequeseuspaisestavamvindosalvá-la.

Aneblinasedissiparaquandoascriançasterminaramdecomerosovoscom bacon do café da manhã, preparados pelo Sr. Everett. Ele faloupraticamente sem parar durante toda a refeição, outra vez feita com ascriançassentadasnaspedras.

–Vivemosnumgrandepaís, pessoal.Mas umhomem comboas ideiasnão tem vez. Se o sujeito nasce com grana, não precisa pensar em nadapelorestodavida.Bastaaproveitar.Noentanto,umapessoacomoeu,umcrânio, alguém que sabe como as coisas funcionam e consegue resolverproblemas, que apresenta soluções inventivas e inovadoras, ica a vernavios.Eu…

–Agentevaipoderiremboradaquilogo?–interrompeuFranklin.OSr.Everettfechouacara,masrespondeusemsealterar:

–Achoquesim.Logoqueeureceberosinal.Antes de irem para a cama, na noite anterior, o Sr. Everett os levara

paraconhecerobanheiro.Lindaolhouparaoassentorústicodemadeiraepara o rolo de papel higiênico pequeno, que pelo jeito passara váriasestações ali, pendurado num prego torto, e a irmou que jamais entrarianaquele lugar.Noentanto,depoisdocafédamanhã,quandoavontadesetornouinsuportável,elapediuaSarahqueaacompanhasseatéobanheiro,paraficardeguardaparaela.

Ainiciativaabriuaporteira,porassimdizer,etodosacabaramindona

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instalaçãoprecária.QuandooSr.Everettperguntou,zombeteiro,seelanãoeramuitomelhordoque“umtoaletepresunçoso”,Tommyrespondeuquesim, pois “a gentenãoprecisa dar descarga”.Os outros nãomostraramomesmobomhumor.De todomodo, a brincadeiraos animouumpouco.Ohomem falou em partir, dando às crianças a esperança de que o desvioinesperadoedesagradávelestivesseparaterminar.Logoseguiriamparaoacampamentoouparacasa,ondeestariamemsegurança.

O Sr. Everett, entusiasmado, preparou um lanche e os levou parapassear. Desceram um barranco íngreme, atravessaram um riacho,subiram pelamargem oposta e pegaram uma trilha que os conduziu atéumpicocomvistamaravilhosadasmontanhasAdirondack.Lánoaltobatiaum vento frio. O sol esquentava as pedras achatadas e, depois daquelacaminhada, os sanduíches de mortadela com batatinha chips e Gatoradequereceberamparaoalmoçopareceramdeliciosos.

Eleabriuocelular,masnãohavianenhumsinal,oqueabalouseubomhumor.Ascriançasnotaramamudança.Noentanto,oSr.Everettdeuumaaula sobre a precariedade da cobertura da rede de celular, ressaltandoque, de qualquer maneira, com certeza teriam sinal no laguinho.Começavam a descida quando Linda tropeçou numa raiz exposta e caiu,cortando a coxa acima do joelho e batendo o cotovelo com força. Aindasentada onde caíra, ela chorou enquanto examinava o corte comprido naperna e a mancha roxa no braço. Sarah tentou acalmá-la. Os meninosrecuaram,sempoderajudaremnada.OSr.Everett,queseguiaumpoucoadiante,voltoueavaliouosmachucados.

–Levante-se.Vamosversevocêconsegueandar.Aindachorosa,LindaselevantoucomaajudadeSarahedoSr.Everett.

Um iletede sangueescorriado corte, cobrindoo joelhodamenina.Ele aenxugoucomumguardanapo,semescondersuacontrariedade.

– Por que não olha por onde anda? Está no meio do mato, mocinha.Aviseiqueprecisavamtomarmuitocuidado.

Apesardadoredaslágrimas,Lindaodesafiou:– Avisou coisa nenhuma! Não falou nada que era pra gente tomar

cuidado!OSr.Everett lhedeuumabofetadanacara,umgestoconvincenteque

calouLindaefezosoutrosrecuarem.Sarahserecuperouprimeiro.–Nãofaçaisso!–Façooquebementenderevocêsvãomeobedecer.Agora,sigamem

frente.Vamos,depressa!

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Eleosempurrouparaatrilha,tratandoLindarispidamentequandoelacomeçou amancar. Passouo tempo tododemauhumor, reclamandodascriançasmalcriadasdehoje,mimadaspelospais,e como icaria “contentepra caramba quando vocês fossem embora”. Os meninos, antesressabiados,agoratremiamdemedo.Caminhavamumatrásdooutroesópodiam trocar olhares virando a cabeça.Depois queo Sr. Everett lagrouTommyvirandopara falar comFranklin e deuumabroncaneles, porém,todosprosseguiramolhandoparaafrente.

Quando cruzaram o riacho, o Sr. Everett parou e ingiu não saber ocaminhoparaacabana.

– Alguém sabe por onde temos que ir a partir daqui? – As criançasolharam para omato e para as árvores à frente,mas ninguém falou. Eleresmungoueseguiupelaesquerda.–Muitobem.Agoravocêssabemquenãoconseguemiremboradaquisemaminhaajuda,certo?–Semesperarpelaresposta,seguiuadiante,pisandoduro.

Quando chegaram ao chalé, no meio da tarde, o sol batia forte naclareira. A cabana, ainda fresca, recebeu as crianças cansadas, quedeitaramnoscolchões.

–Muitobem–disseoSr.Everett.–Tiremumasoneca.Eu…–eleparou,pois avistou algo através da janela. Virou-se para as crianças e ordenou,com olhar severo: – Fiquem deitadinhos nos colchões até eu voltar.Entenderam?

Elas izeram que sim. Ele saiu, mas ninguém ousou se levantar docolchão.

Ao sair do chalé, o Sr. Everett se dirigiu a passos largos até acaminhantesolitáriaqueentravanaclareira.Vinteepoucosanos,deboné,baixamasemótimaforma,carregandoumamochilagrande.Eleaabordoucomcharme.

–Oi,tudobem?Seusorrisoeralindo.–Tudoótimo.Diaincrível,né?–Comcerteza.Veiodarumpasseio?– Isso,passarunsdiasna lorestaparadesanuviaracabeça.Masacho

quemeperdi.–Acha?–Querodizer,nãoestouperdida.Nascinaregião.Crescinestasmatas.

Masesteéumtrechodi ícilepensei…Bem,nuncatinhavistoestacabanaantes.Ésua?

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–Não.TomocontadelaparaumsujeitodeNovaYork.Estásozinha?–Estou.–Elasorriudenovo.–Jásei.Oqueumamulherfazsozinhano

meio do mato? Não se preocupe. Sei tomar conta de mim. Servi duastemporadasnoIraque.Nãotemnadaaquicapazdemeassustar.

O Sr. Everett icou preocupado. Será que ela podia ver as crianças nochalé?Haveriasinaisdapresençadelesporali?

–Faztempoqueveioparacá?–Vimontemdemanhã.AcampeiemPotter’sRidgenanoitepassada.De

tarde, iquei ensopada. Mas foi bom. Adoro a chuva, passei dois anosenterradanaquelaareiadesgraçada.

– E onde pretende passar a noite? – disparou o Sr. Everett, sem seimportarnemumpoucocomaempolgaçãodamulhercomachuva.

– Não sei. Importa-se se eu montar a barraca por aqui? Não vouincomodar.

–Nãodá.OsujeitodeNovaYorknãoquerqueninguémentreaqui.–Maselenãoprecisaficarsabendo.– Ele costuma aparecer inesperadamente. Se a vir aqui, vai dar um

escândaloemedemitir.Nempensar.Amoça se surpreendeu coma respostadele e seuolhardemonstrava

isso.–Vocêpoderiameindicaralgumlugar?–Nãofaltambonslocais.Sigaporali,passeasbétulasqueformamuma

espécie de pórtico, desça um pouco e encontrará ótimos pontos paraacampar,aoladodeumriacho.

–Certo–disseela.–Masnãoquero irnaqueladireção.Nãomelevarádevoltaàestrada.Masgosteida ideiadoriacho.Eprometiamimmesmaqueseguiriameuinstintoaqui.

–Certo.Aquinomatotemquefazerissomesmo.–Eledeuaentenderaelaqueerahoradepartir,eamoçacompreendeuorecado.

– Tudo bem. Obrigada. – Após uma olhada rápida para onde icava acabana,elaseguiunadireçãoqueeleindicou.

O Sr. Everett esperou até que ela se afastasse, depois voltou ao chalé,repassando mentalmente o encontro. Ficou com uma impressão ruim. Aidiota parecia toda cheia de si. Teria bisbilhotado antes, observado acabana, visto as crianças? Resolveu segui-la. Acompanhou-a enquantodesciaodeclive.Oquefaziaali?Tentavaatrapalharseusplanos?Perdida,umaova.Estavasódisfarçando.

Avançou, escorregando nas folhas úmidas. Quando chegou a uns 50

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metros, sem que ela ouvisse seus passos, pegou no chão uma pedra quecabianamãoeaescondeuatrásdascostas.Entãoachamou.

– Ei, moça, espere um pouco. – Ela se virou quando o Sr. Everett seaproximou. Abriu de novo o sorriso simpático e idiota. Precisava tiraraquelesorrisodacaradela.–Achoquepodemosdarumjeito.

Estavamapoucosmetrosumdooutro,agora.–Não,tudobem.Euentendo.Só…Ele a surpreendeu de guarda baixa, bateu a pedra com força em sua

face esquerda. Sentiu os ossos e os dentes dela se quebrarem e viu osangueescorrerpelabocadamulher.Noentanto,elanãocaiu.Nãofugiu.Furiosa, avançou inesperadamente para cima dele. Seu peso, aumentadopela mochila, fez o Sr. Everett cambalear alguns passos para trás. Elachutouacaneladelecomtodaaforça.

Eleaatacoudenovo,maselaaparouogolpecomoantebraço.Porém,precisoudarumpassoàfrenteparasedefender,eoSr.Everettconseguiuagarraramochila,puxaramoçaparapertodesiedesferirumapancadaforte no alto da cabeça, com a pedra. Ela caiu de joelhos, como seimplorasse,enãoseergueumais.

Ofegante,ohomemaempurrouparaquetombasse,acertou-amaistrêsvezeseparou,exausto.Ela icoucaída,apoiadanamochila, inerte.Elenãoconseguia raciocinar. Suamão e a pedra estavam ensanguentadas. Haviasangue em sua camiseta, também. Precisava enterrar o corpo. Ou talvezfossemelhordeixá-laalimesmo.

Pensou então nas crianças e se virou, como se estivessem no alto daencosta, observando. Não estavam. Sem olhar para trás, subiu o morro.Precisoupararnomeiopararecuperarofôlego.

–Minhanossa–disseemvozaltaparasimesmo.–Porqueelatinhadefazerisso?Euestavaquaseterminandominhaparteaqui.Porquenãomedeixou trabalhar em paz? – Examinou novamente amão ensanguentada.Parecia pertencer a outra pessoa. Sua vista estava embaçada. –Ninguémpassaporaqui.–Tentourecuperarofôlego,diminuindoamarcha,falandosozinho.–Aoperaçãofoiumsucesso.Opedidoderesgateestáacaminho.Vou levar as crianças de volta logomais. Ligar para Chase e antecipar adescida. Sem problemas. O intermediário nunca precisa saber de nada.Estátudocerto.

Ele não ofegava mais quando chegou à cabana, mas sua visãocontinuava turva. Pegou o celular, chamou as crianças e ordenou que oseguissem.Nãoqueriaqueencontrassemumcadáver.

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Ninguém tinha visto nada. Quando Tommy criou coragem su icienteparaespiarpela janela,encontrouaclareiradeserta.MinutosdepoisoSr.Everett voltou, entrou na cabana emandou que o seguissem. Ele desceupelatrilhatãodepressaquetodosficaramparatrás.

Olagoexalavaumcheirofortedeáguapodreporcausadosolquente.OSr.Everettandoupelopíereseajoelhouparalavarasmãos.

–Fiquemaí–ordenou,sentindodi iculdadeparase levantar.–Depoisqueeutelefonar,vamosemboradaqui.–Ascriançasfranziamonarizporcausa do fedor, mas o homem sofria mais. Respirava com di iculdadeenquantocaminhavapelopíerdetábuasirregularesebrancasfeitoossos,detãoressequidas.

Virou-se de costas para eles mais uma vez, enquanto telefonava. Ascriançasouviramsuavozseelevaredepoisbaixaratésetornarinaudível.Gesticulavacomamãolivreepareciaapertarotelefonecomforçacontraoouvido, pressionando o cotovelo nas costelas. Os meninos notaram algoestranhoneleecontinuaramaolhar,perplexos.

Eleaindanãohaviaterminadoaligaçãoquandoseviroucomviolência,quasecaindodadoca,paragritar:

–Umacoisaquedeuerrado…Suamão livre subiu até opeito epuxou a camiseta.Depois levantou a

mão que segurava o telefone e o aparelho voou sobre a água, caindodentrodolagounscincometrosadiante.OSr.Everettdobrouocorpoparaafrentecomoseestivessejogandoboliche,otóraxseaproximavadochãoconformeaspernasarqueavam.Levouasduasmãosaopeito.Emseguidadesabou sobreas tábuaspodresdopíer, batendoa testa com tanta forçaque uma delas rachou. Os braços se mantiveram na altura do peito, aspernas dobradas se debateram um pouco antes de pararem, abertas.Entãonãosemexeumais.

Linda, aúnica a rirdo espetáculobizarro, assustou-se tantoquantoosoutros quando ele caiu e permaneceu imóvel. As crianças esperaramumbom tempo, achando que o Sr. Everett ia levantar num salto, como ospalhaços do circo que caíam, permaneciamum tempão deitados e depoisicavam de pé, sorridentes. Mas ele não se ergueu. As ondas fracas queformaramcírculosconcêntricosondeocelularcaírachegaramaospilaresdo píer. Nada se movia no lago. Sarah inalmente rompeu o silêncio,gritando:

–Sr.Everett!

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Oecodesuavozaumentouaestranhezadomomento.– Ele desmaiou – sussurrou Tommy, como se temesse acordá-lo caso

falassealto.Osoutrostorceramparaqueogarototivesserazão.Eleprecisavavoltar

asiparalevá-losemboradali.Sarahgritoudenovo.–Sr.Everett!–Eosoutrosaimitaram.Masocorponãosemexia,ogalo

na testa aos poucos icava arroxeado, os braços ainda dobrados sobre opeito.

–Eleteveumataquecardíaco–atestouFranklin,finalmente.Osoutrosre letiramsobrea frase.Tommysabiaqueoavôsofreraum

infartonaCostaRicaesobrevivera.Lindasemprepensouqueumataquedo coração era algo que o coração fazia com as outras pessoas. Sarah serecordavade ter estudadoaquilona auladebiologia,masnão recordavasecausavaumcoágulonocérebroouentupimentodasartérias.Assistiraaum vídeo sobre primeiros socorros,mas ao ver o corpo estendido no solnãoselembravadenada,excetoquedeviasocaropeitodavítima.

Os quatro desceram em silêncio na direção do píer, chamando o Sr.Everettpelonomeváriasvezes.

– Precisamos fazer respiração boca a boca – disse Franklin com certaautoridade,emboranenhumdelesseimaginassefazendoisso.

Os meninos percorreram o píer com cautela. Sarah foi na frente e,quandopisounatábuarachadapelacabeçadadoSr.Everett,elaterminoude quebrar, fazendo amenina recuar, commedo. O corpo do homem semexeuumpoucoquandoacabeçatombouparadentrodoburaco.Ficaramumtemposemsaberoquefazer,apavoradoscomastábuaspodressobospés.

Sarahassumiualiderançaeosorientou.AscriançasrodearamocorpoeseprepararampararolaroSr.Everett,paraele icardecostas.Quandooergueram,acabeçajáarroxeadaearranhadaviroudebocaabertaparaoladodeLinda.Elagritou,largouocorpoeosoutrosaimitaram.

– Ele estámorto! Elemorreu! – gritou Linda e saiu correndo do píer.Franklin o examinou de perto e con irmou amorte balançando a cabeça.SarahrecuoudepressaeFranklinaacompanhou.

Tommy hesitou. Não tirava os olhos do cadáver. De onde estava, viaapenasumpedacinhodorosto,apartequeainda tinhacordecarne.Seuavô não morrera do coração. Talvez o Sr. Everett estivesse apenasinconsciente. Ele se lembrou da história: a avó trouxera o avô de volta àvida rezando para seu santo favorito. Mas Tommy não sabia o nome do

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santo nem a oração. Por isso icou ali parado na frente do corpo e rezouparaquesuaavóoajudasse.

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Dezesseis

ALIGAÇÃO PARACHASE COLLINS FOI abruptamente interrompida. Parecia queseu pai tentava dizer que havia algum problema com o sinal.Mas aquilonão tinha importância. Jáhaviam terminado.Chase receberaordensparaagir.Sóprecisavamandara terceiramensagemagorae,anãoserqueospaisfossemcompletosidiotas,ocasotodoseencerrariaembreve.

O pai de Chase o mataria se soubesse que ele atendeu o telefonemajuntodoscuriososaglomeradosdooutroladodarua,nafrentedacasadeDavideLenaTrainor.Passaramaisdeumahoraali,coma ilhaJenniferaseu lado. Ele deveria ter levado amenina ao parque enquanto a esposa,Helene, acompanhava o outro ilho, Hector, de 4 anos, a uma festinha deaniversário. Ao entrar no carro, contudo, pensou que a companhia dameninaseriaumótimodisfarceeseguiuparaaponteGeorgeWashingtonsemhesitar.

A princípio, icou empolgado por estar na cena de seu triunfo no diaanterior.Repassoumentalmenteodiálogocomamãe,afacilidadecomqueconquistara a con iança da menina, os olhares que as tranquilizaram, apartidacalma.Umapenaquenãotenhapodidogravartudo,teriaumótimomaterialparaprocurartrabalhocomoatoremHollywood.

Chase puxou conversa com um policial que se posicionara entre oscuriososeaimprensa.

–Comlicença,seuguarda.Jásabemquemfezisso?–Nãosei.Esesoubessenãodiriaavocê.– Sabe, ouvi dizer que um sujeito apareceu aqui, ingiu que era do

acampamento,pegouameninaecaiufora,né?–É.–Minhanossa.Comoninguémpercebeu?–Ocaradeviaserbom.Chasepensouemiremboradepoisdeouviroelogioaseudesempenho.

Oquemaispoderiaalmejar?Jennifer,quenãotinhaamenorideiadoquefaziam ali, agarrou uma das pernas do pai e começou a cantarolarbaixinho. Uma cinquentona parada ao lado de Chase apontou para amenina.

–EumelembrodeSarahquandoelatinhaessaidade.Chase não reconheceu o nome imediatamente. Ele e o pai sempre se

referiamàscriançascomoAlvo1,Alvo2,etc.

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–Asenhoraévizinhadeles?–perguntou.Amulherapontouparaumacasaadiante,namesmarua.–Moramos aqui há30 anos. Foi a pior coisaque aconteceu.Amenina

era tudo para eles. Pelo que sei, ela queria mais um ilho, mas nãoconseguiu. Imagine,mesmosendomédicaelanãoconseguiuengravidar.–Chasebalançou a cabeça e amulher prosseguiu: –Muito parecida comasua,sabia?Umalindamenina.Umagraça.

Cincominutosdepois,opaideChasetelefonoueorapaz icoucontente.De repente, desejou que a história toda acabasse logo, que as criançasvoltassem para casa. Depois do telefonema pegou Jennifer e seguiu ruaabaixo, até onde estacionara o carro. Ela fez uma de suas brincadeiras,largando o corpo, com a cabeça em seu ombro, para ingir que dormia.Chaseadoravacarregá-laassim.Hector,seu ilho,nunca izeraissoquandotinha a idade da irmã. O menino ia sempre ereto, alerta. Jennifer seentregava ao prazer do passeio e Chase se sentia mais próximo delanessesmomentos.

Aovoltarparacasa, elepensouemcomo teria sidopassearnocolodopai, quando tinhaa idadede Jennifer.Talvezelenãoo carregassenunca.Nãosabia,nuncavirafotossuasnocolodele.Desdequeselembrava,opaisó pensava no trabalho, vivia mergulhado numa ideia, num plano ouesquema. O pai trabalhara num posto de gasolina durante anos, comofrentista, mas não era nenhum puxa-saco. Perguntava aos clientes aquantidade, enchia o tanque, pegava o dinheiro ou passava o cartão decréditoepronto.

–Euviviacomacabeçaemoutrolugar–diziaeleaChase.Seu pai acreditava que a vida conspirava contra ele, que sua carreira

acadêmica–elemalconseguiuterminarocursomédio–forasabotadaporprofessorescretinosquenãoperceberamsuagenialidade,oqueoforçouase alistar no Exército. Suas sugestões para reestruturar o comando ondeservia foram recebidas com zombarias por todos. Foi um dos rarossoldados dispensados após cinco meses de serviço. Amargurado,ressentido,afastavaaspessoas.QuandoChase tinha13anos, suamãe foiembora, levando o ilhomais velho.Mas Chase não arredou o pé. Queriacontinuarcomopai.

Acreditava obstinadamente nele e costumava acompanhá-lo em suasaventuras quixotescas, pressentindo que um dia encontrariam ouro, porassim dizer. Só porque seus inventos fracassavam – a bicicleta elétricanunca funcionou, a bomba portátil para drenagem de charcos pesava

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demaisesó trêsouquatrohomensconseguiriamtransportá-la,etc.–nãosigni icavaqueChasedeixavadeadmirarumhomemqueoencantavacomseus planos grandiosos. Mesmo depois de se casar e ter ilhos, passavamuitotempocomopai,ouvindosuashistóriasporhorasa io.Helene,suaesposa, não entendia tamanha atração, concluindo que era um vínculoexcepcionalmenteprofundoentrepaiefilho.

Chase não acreditou no pai quando ele disse que queria a ajuda delepararealizarumsequestro.Protestou,porcontadanaturezacriminosadoprojeto,edisseque issonãoseenquadravanocampodosconhecimentosdo pai, mas quando este começou a detalhar o que pretendia fazer, aousadia e a genialidade do golpe atraíram Chase, do mesmo modo queoutros esquemas, como trapacear na loteria estadual, o haviam atraídoanteriormente. Desta vez, usariam as expectativas dos pais em relação àida para o acampamento, levariam as crianças para um local distante,trabalhariam com redes de computadores protegidas por complexossistemas de criptogra ia, deixariam que intermediários estrangeiroscuidassem do resgate, conduziriam toda a operação sem recorrer àviolência.Naspalavrasdopai,umgolpedemestrebastanteviável.Chasepensounocasoduranteumdia inteiroeresolveuaceitaraofertaparaseresponsabilizarpelaparteinicial,acapturadascrianças.

QuandochegouemcasacomJennifer,foidiretoparaocomputador,queicavanasaletadecosturaondeHelene trabalhava,ecomeçouaenviaraterceira e últimamensagem aos pais. Haviam decidido que a enviaria decasa,paranãocorreroriscodeservistousandoocomputadordohospital.Segundo seu pai, a codi icação impediria a identi icação do computador.Mesmoqueoidentificassem,oesquemaforatãobemboladoquepareceriaque o computador de Chase fora invadido e operado remotamente, semqueelesoubesse.

Por ordem do pai, o protocolo dos códigos, com as normas paratransferência dos dados, não icaria registrado no computador, em vezdisso seria anotado à mão numa caderneta. Chase guardou a cadernetacomcuidado,nofundofalsodeumagavetadacômoda.Sabiaqueeraumamedida de segurança um tanto exagerada. Helene não era enxerida, nãodescon iavadenadaenememummilhãodeanosrevistariasuasgavetas.Mesmo que a encontrasse, ele poderia driblar qualquer pergunta comfacilidade. Ela nunca questionava o que Chase dizia, pensava ter ummaridoperfeito,sujeitobrilhanteepaiamoroso.

O protocolo exigia algum tempo. Como era processado em servidores

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diferentes, em diversos fusos horários, era bastante comum ter queesperar entre um passo e outro. Estava quase no último passo doprotocolo,oquetornariaseuendereçodeIPinescrutável,comoosusadospelaCIA.Quandoessapartedocódigofosseaplicadaàcadeiadecontatosentre servidor e cliente, não haveria praticamente nada que se pudessefazerpara identi icarseucomputadorcomopartedacadeia.Nomomentoqueiaexecutaroprocedimento,Jenniferentrounoquarto.

–Annabelletádodói–disseamenina,erguendoabonecadepanoparamostraraopaiobraçodescosturado.

–Jávouver,Jen.–Agora,vêagora.ElaseaproximoudeChase,quesepreocupoucomapossibilidadedea

ilha estragar a delicada operação que ele estava prestes a concluir.Levantou-se,pegouameninanocoloealevouparaasala.

–Fiqueaqui,Jen,daquiapoucovenhoajudarvocêcomaAnnabelle.–Não,papai,agora.Chasevirouevoltouparaasalinha.Jenniferoseguiucomabonecanos

braços.Eleperdeuacalma.–Saia,Jen.Agora!Aintensidadedaordemsurpreendeuamenina,quecomeçouachorar.

OuviramaportadeumcarrobaterláforaeJenniferpercebeuqueamãevoltaraparacasa.Saiudoquartochorando,chamandoporela.

OcoraçãodeChasedisparou.Helenehaviachegadomaiscedo.Poderiasimplesmente fechar aporta, elanemperguntariaoqueomaridoestavafazendo lá,mas Jennifer chorava semparare eleprecisariaexplicar isso.Voltou ao computador. Encontrou as instruções na caderneta, tentou seconcentrarnelas.Helenejáestavadentrodecasa.Ouviusuavozenquantoela falava com Jennifer. Hector também gritava. Chase olhou para a tela,certi icou-sedequeestava tudoemordempara enviar e respirou fundo.Como izera com todas as atividades relacionadas aos computadoresnaqueleprojeto,começouacontaraté10antesdeteclarenter.Aochegarao sete, ouviu os passos de Helene, aproximando-se da saleta. Apertou oenter.

–O que aconteceu coma Jen? – perguntou amulher ao abrir a porta.Chaseposicionou-seentreelaeomonitor.

– Nada. Eu estava aqui trabalhando e ela não queria esperar. Possoterminarissoaqui,sóvailevarumminuto?

–Claro–disseHelene,saindo.

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Chase voltou ao micro. O aviso de “mensagem enviada” piscava e elesentiu-serealizado.Suaparteestavaconcluída.Elesesurpreendeucomoprimeiro pensamento que lhe veio à mente, sobre o Alvo 1, Sarah,correndo pelo acesso até a casa dos pais. Só depois disso pensou nodinheiroqueembreve“herdaria”.

Já ia fechar e guardar a caderneta quando um asterisco chamou suaatenção. Ficava no inal de uma linha de código incompreensível quecopiara no passo inal da criptogra ia. Chase não se lembrava de terdigitado o asterisco. Repassou as etapas da codi icação rapidamente,esperandoqueestivesseerrado.Nãoestava.Deixarapassaroasterisco.

Olhouparaatelaoutravez.Poderiafazeralgumacoisa?Dariatempodecancelar o envio da mensagem? Examinou a tela, pesquisou o site e alixeira. Consultou a caderneta. Caía sempre no aviso de “mensagemenviada”. Seu coração disparou. Papai. Precisava falar com ele. Pegou ocelularedigitou.Concentrou-senostoques.Avozdopaiemitiuumconciso“deixeseurecado”nacaixapostaleChasesussurrou:

–Pintouumproblema,pai.Ligueassimquereceberorecado.Suamente vagava. Sabia que asmensagens circulavam depressa pelo

mundo inteiro,mesmo as que eram enviadas com criptogra ia elaborada,como aquela. Os outros quatro tipos de codi icação seriam su icientes? Opânicosubiudoestômagoàgarganta.Sedestruísseocomputador,estariaprotegido? O que Helene diria se ele jogasse o micro fora? Deveriacompartilharoqueestavaacontecendocomela?PassoudacertezadequeestavatudodandocertoparaanoçãoangustiantedequeoFBIjápoderiaestaratrásdele.Apósalgunsminutos,a incertezasereduziuaumaúnicaquestão:deveriafugir?

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Dezessete

LENAEDAVIDUSAVAMCOMPUTADORESdiferentesquandooe-mailchegou.Ela,noquarto de Sarah, matava o tempo examinando as mensagens, mas seusolhos mal se ixavam nas expressões “sentimos muito” e “não dá paraimaginaroquevocês estãopassando”.Quandoviuo endereço já familiarsurgir na tela, gritou e David veio correndo. O telefone tocou no mesmoinstante.

–E-maildeles–disseLena.–Atendaotelefone.Daviddeuumaespiadanoe-mailantesdeirpegarotelefone.–Ummilhão…Lena leu rapidamente: “FAÇAM A TRANSFERÊNCIA ELETRÔNICA DE

UMMILHÃODEDÓLARESPARAACONTAABAIXOESEUSFILHOSSERÃOSOLTOS IMEDIATAMENTE.” Em seguida havia números de conta, deidenti icação e outros detalhes para depósito em um banco das ilhasCaymã.

Davidvoltouaoquarto.–ÉMartin.Queriasabersetínhamosrecebidoamensagem.–Pergunteseéummilhãodedólaresporcriançaouportodasjuntas.Omarido obedeceu.Martin achava que era ummilhão no total. David

ouviuumpoucomaisedesligou.–Vãopassaraquiparanospegardentrodeumahora.Marcaramuma

reuniãocomopromotorfederalnoHiltondeScarsdale.Lena mal ouviu o que ele disse. As letras e os números do e-mail

dançavam na frente dela, como num balé da boa notícia. Não trazia aviolênciadeletrascoladasnumafolhadepapelquesevênos ilmesouseouve falar em outros sequestros, com palavras recortadas de revistas.Aquelapareciaumatransaçãosimples,pro issional.Asolidezdasolicitaçãoa arrebatou. A essência da mensagem era informativa e concreta. Nãodeixavadúvidasa respeitodoque fazer.Mandeodinheiro, recebaSarahdevolta.ParaLena,agoraaquestãoera ísica.A ilhavoltariaparacasa.Jásesentiaaabraçandonovamente.

David,debruçadosobreamulherpara leramensagem,franziuatestaparaatela.

– Não entendo. Mesmo que seja num paraíso iscal, não se podeproteger uma conta dessas. Semandarmos o dinheiro, o FBI prenderá otitular da conta. Acha que isso é real? Poderia ser uma piada de mau

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gosto?Lenanemconsideraraapossibilidade.–Elesnãomarcariamumareuniãoporcausadeumabrincadeira.–Certo…mastalvezsejamelhoreuligarparaele.–Não, vamos saberdurante a reunião. – Lenaqueriamuito que fosse

uma mensagem real. Não queria que seu entusiasmo arrefecesse porsuspeitadetrote.Talveznãoaguentasseoimpacto.

Derepente,sentiufome.Seucorpopediaenergiaparaoqueestavaporvir.Foiatéacozinha,masaúnicacoisaqueencontroufoigranola.Comeuuma tigela. David tomou uma cerveja. Os dois passaram a hora seguinteinquietos. Repassaram os valores que dispunham em contas bancárias,extratos de investimentos e da hipoteca. Se Martin tivesse razão e ummilhãofosseovalorqueprecisariamlevantarjuntos,cadafamíliateriadeprovidenciar um quarto do total. Após alguns minutos de cálculos,con irmaram que poderiam dispor dessa quantia, e até mais. Só nãosabiamemquantotempo.

A imprensa compareceu em peso à frente do Hilton de Scarsdale.Policiais militares estaduais desviavam o trânsito, os carros com os paispassaram direto pela barreira, parando na entrada do hotel como sefossem uma caravana de participantes de uma reunião de cúpulainternacional.David e Lena foram conduzidos ao saguão e subirampeloselevadores dos fundos. Phil e Janet Rostenkowski já os esperavam. Amulher parecia ter envelhecido uma década nas últimas 24 horas. Phil,totalmente perdido,mantinha-se a seu lado emal cumprimentouDavid eLena com um movimento da cabeça. Lena aproximou-se de Janet paraabraçá-la.

–Oi–disseLena.–Comovai?Janet balançou a cabeça, mas não falou nada. Lena perguntou a si

mesma se oferecer a receita para o remédio fora uma boa ideia. Elaobviamente tomara algum medicamento. Seus olhos reumosos e fora defoconãodeixavamdúvida.

Quando a porta do elevador se abriu, Mike e Po Williams foram aoencontro deles. Mike era o oposto de Janet – alerta, enérgico, disposto.Lena achou que reagira como ela ao pedido de resgate. Ninguém dissenadaquandoentraramno elevador,masLena sentiu apresençapositivadeMikeesorriuparaele,queretribuiu.

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Chegaramaoúltimoandar,aportaseabriueumpolicialmilitarindicoucomumgestoquedeveriamseguirparaaesquerda.Aportaduplano imdocorredordavaparaumsalãodebanquetescomparedesenvidraçadas.Pelasjanelaserapossívelverotopodasárvoreseopôrdosolsemnuvensno condado de Westchester. Subitamente, Lena se deu conta de que játinha estado naquele lugar, no bar mitzvah do ilho de uma de suascolegas.Oevento tivera como temaumahistóriaemquadrinhosea festahaviaacabadocomumaguerradeconfeteeserpentina.

Umasenhoraquedeviater40anosmasesforçava-sevisivelmenteparapassar por 30 aproximou-se deles, saindo damultidão reunida em tornode umamesa em forma de ferradura no centro do salão. Seu cabelo eralaqueado, o rosto reluzia de maquiagem e ela usava uma blusa justadecotadaquedestacavaseiosimpressionantessobotailleur.

– Olá, sou Lynn Witherspoon – disse, apertando as mãos, como seesperasse que todos a conhecessem apenas pelo nome. – Por favor,sentem-se. –Ela sevoltouaosoutros: –Podemos começar, agora?–Lenadeduziu que a mulher devia ser a responsável pela organização doencontro.

Porém,quandosentaramàmesa,comasfamíliasalinhadasdeumladoeMartin,Domingo,Newmarkealgunshomensdeternodooutro,Lynnselevantouesedirigiuatodos.

–EmnomedopromotorpúblicofederaldodistritosuldeNovaYork,eulhe dou as boas-vindas. Lamento que tenhamos nos conhecido nestascircunstâncias,mas…

–Comlicença.Quemévocê?–perguntouMike.Amulherdeixoutransparecercertamágoapelapergunta.– Sou a promotora federal assistente responsável pelo caso. Pensei…

Bem,todosaqui jáseconhecem?–Seguiu-seummomentodesilêncio,eladeuavoltanamesaedisseonomedecadaum.OtomagudoeinformaldesuavozincomodouosouvidosdeLena.

–Paracomeçodeconversa,ossequestradoresdevemtercometidoumerro ao enviar o último e-mail. Ainda não posso a irmar nada, mas opessoaldainformáticadissequeembreveteremosboasnotícias.

–Conhecemosopessoaldainformática–comentouDavid,ferino.– Nós também. Mas agora é para valer. – Ela não se abalou. – Bom,

sobre o pedidode resgate. Emprimeiro lugar, o FBI, agindo em conjuntocom a Interpol, concluiu que ele tem a mesma origem dos outros dois.Portanto, seosprimeiroseramautênticos, enada indicao contrário,uma

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vez que o vídeo chegou pelo mesmo sistema de codi icação, podemospresumir que a última mensagem também seja verdadeira. A contabancária citada existe, já veri icamos.Não sabemos a quempertence, e anãoserquehajamudançasnospróximosanos,jamaissaberemos.Trata-sedotipodecontamaissecretadomundo.Nuncavimosumesquemaassimusado em sequestros,mas, francamente, chega a ser surpreendente quenãotenhampensadonissoantes.Quandoodinheiroentranaconta,écomosetivessedesaparecidodafacedaTerra…

–Nãoéverdade.–Johnnãoergueuosolhosaointerrompê-la.–Existemmaneirasdeobterinformações.

Lynnpareciajáesperarporisso.– Agimos pelos canais diplomáticos, Sr. Walker. Estou falando de vias

normais.Nãopodemosnosenvolveremtransaçõesilegais.Seasegurançadas criançasdependerdonomedo titularda conta, consideraremosusarmétodos extremos e perigosos, como o senhor sugere.Mas pretendemosevitar isso.No âmbitodesta reunião, estamospresumindoqueodinheiroseráperdido,casodecidampagaroresgate.

–Atévocêspegaremosbandidos–disseMike.–Podeser,mesmoassimnãohágarantiadedevoluçãododinheiro.Não

entraremosemdetalhes,masestamoslidandocomgentemuitoperigosa.Lenanãodavaamínimaparagenteperigosaoudinheiroperdido.Não

via motivo para John retardar tudo falando no titular da conta. Ela sóqueriapagarlogoeterSarahdevolta.Porquealguémiriaquereratrasaroprocesso?

LynnWitherspoon ajeitou o terninho, dando aindamais proeminênciaaosseios,comoparaenfatizaroqueiadizer.

– Vamos falar do resgate. A experiência nos diz que atender àsexigências dos sequestradores não necessariamente aumenta aprobabilidadedeasvítimasvoltaremparacasa.Portanto,emcasosassim,oFBInãoincentivaopagamento.

Ospaisforampegosdesurpresa.Mikefoioprimeiroaserecuperardosusto.

–Comoassim,“nãoencoraja”?– Quer dizer que o FBI não costuma participar do pagamento do

resgate,excetoquandotodasasoutraspossibilidadesforamesgotadas.AvozdeDavid,forteeagressiva,fezLenapularnacadeira.–Queoutraspossibilidades?–A capturados sequestradores, Sr.Trainor.Vejambem, sei como isso

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soa para vocês. Parece uma equação simples. Paga-se o resgate e ascrianças voltam para casa. Mas os criminosos não jogam conforme asregrasda lógicaouda justiça.Nãosetratadeumatransaçãocomercial.Omaiorriscoéaentregadodinheiroe,assimqueelessuperaremesserisco,quando tiverempartidopara sóDeus sabeonde, restarápouco incentivoparaquecumpramsuapartenoacordo.

– Mas eles têm de fazer isso! – A voz angustiada de Janet cortou acadênciaregulardeLynn.

–Nãotêm,não.Essaéaquestão.Depoisderealizadoopagamento,elesnãotêmmaisobrigaçãodenada.

–Porra,entãoqualéaalternativa?–Mikesentiaorostoenrubescereopescoçoesquentarsobagoladacamisa.

– Antes de responder à sua pergunta, gostaria que o agente Domingoinformasseoandamentodasinvestigações.

Domingo se levantou como se fosse ao quadro-negro, mas apenasesfregouasmãosecomeçouafalar.

–Vouresumiroqueestáacontecendo.Emseucomunicadodestatarde,os sequestradores deixaram uma porta aberta, por assim dizer, nocomputadorqueoriginouasmensagens. Ignoroosdetalhes técnicos,masnossosespecialistasvãolocalizarocomputadororiginalembreve.

Eleencarouospais,aflitos,econtinuou:–Assim que chegarmos a ele, poderemos cruzar os dados comoutras

informações. Como sabem, temos a peruca que o tal J.D. provavelmenteusou. Acreditamos que ele a tenha adquirido numa loja a uns 40quilômetros do local onde a van foi furtada. A tinta usada para pintar ologotipodoAcampamentoArnona lateral do veículo veio de um lote quefoi vendido parcialmente em áreas situadas na mesma região de NovaJersey. Portanto, esperamos que o cruzamento dessas informaçõeseventualmentenosleveaumaconclusão,talvezatéaumsuspeito.

Lena se aborreceu com a hesitação implícita. Domingo se distanciavadosfatosconcretosqueelaconsideravafundamentaisparaocaso.

– Como assim, “eventualmente”? Não dá para termos uma ideia? Umprazo?–perguntou,semescondersuacontrariedade.

– Não, infelizmente não podemos. Mas posso adiantar que estamosfalandodedias,enãodesemanas.

–Dias?–disparouDavidcomosetivessebebidoleiteazedo.–Equantoàshoras?Operíodode24horas jápassou.SegundooFBI,nãoéapartirde agora que as coisas começam a se complicar num sequestro? Não

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estamos…–Francamente,essenegóciode24horassóexistenatelevisão.Usamo

recurso para criar suspense nos programas. Sim, o primeiro dia éimportante, mas já resolvemos casos semanas e até meses após osequestro.

OcoraçãodeLenabatiacomforçanopeito.ElanãoconseguiaimaginaroutranoitesemsaberondeSarahestava.Esperavaassinaralgunspapéisnaquela reunião, conseguir um empréstimo, organizar a questãoinanceira, mandar o dinheiro e fazer os planos para a volta da ilha,quandoela fosse libertada.Agoraoagentevinhadizendoqueelateriadeesperarsemanas,oumeses.Elasabiaquenãoiaconseguirfazerisso.

JohnWalkermalconseguiaconteraraiva.– Então vocês querem dizer que devemos esperar o FBI localizar o

computador de onde asmensagens foramenviadas antes de pagarmos oresgate?

–Bem,emresumo,sim–disseLynn,tamborilandonamesacomapontadasunhas,comoseprecisassecompareceraoutrareunião.

– Bom,minha esposa e eu não aceitamos isso. – John olhou em volta,para os outros pais. – Hoje em dia, encontrar um computador não é amesma coisa que localizar um suspeito. Eumesmo poderia piratear umamáquina.E se encontraremomicro e elepertencer à vovozinhaouaummoleque de 10 anos que não sabem de nada a respeito do pedido deresgate,poisosequestrador invadiuocomputadordeles, como ica?E, seencontraremumsuspeito,quemgarantequeacharãoascriançascomele?

–Mandar o dinheiro para as ilhas Caymã não irá aproximar vocês deseus ilhos nem um pouco – rebateu Lynn, contrariada com ainsubordinação.–Senãotivéssemospistassólidas,senãosoubéssemosdenadaarespeitodoscriminosos,sualocalizaçãoeseuendereçodeIP,talvezpermitíssemosquepagassemoresgate.Mas,nasatuaiscircunstâncias…

– Espere aí! – A nova voz, com sotaque, fez com que todos olhassempara Po Williams. Ela se inclinou para a frente e seus olhos escurosdardejavam quando ela formulou a pergunta. – Como assim, nãopermitirão?Amensagemveioparamim,paranós.Sedecidirmospagaroresgate, comopretendemnos impedir? –Elanãoprecisoubaternamesaparaquetodossentissemaintensidadedesuaraiva.

– Bem, temosmeios de impor nossa política,mas espero que não sejanecessáriochegaraesseponto.–LynnWitherspoonnãoseabalou.

–Quemeios?–Duasoutrêspessoasfizeramamesmapergunta.

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–Existeextorsãoecumplicidadeemextorsão.JohnWalkerbateunamesa.–Pretendemnosacusardecumplicidadesepagarmosoresgate?–Talvez.Mas,repito,esperamosnãochegaratalponto.Entendambem.

Esta é aprimeira vezqueprecisam lidar comsequestradores.Nós temosuma longa experiência com histórias desse tipo e muitos casos paraembasar nosso posicionamento. Solicitamos que con iemnas pessoas quejápassaramporissoantes.

– Quem de vocês já teve um ilho raptado? – O rosto franco de Mikeestavacontraído,agressivo.

Lynnhaviasepreparadoparaessapergunta.– Esta é a questão, Sr. Williams. Nenhum de nós se inclui nesta

categoria.Nãotemosnasnossascostasoterrívelfardoemocionaldevocês.E,emcasoscomoeste,oamorquesentempelos ilhosnemsempreresultanas melhores decisões para eles. Por isso precisam con iar nosprofissionaisquevãofazerseusfilhosvoltaremparacasaemsegurança.

LenanãoaguentavamaisficaralicomLynn,Domingoeseugrupo.–Podemosfazerumapausa,paraqueospaissereúnameconversem?

–perguntou.– Claro. Na verdade, preparamos uma sala para vocês, onde podem

fazer um lanche leve. – Lynn olhou para um assistente e ele fez que simcomacabeça.

Lena teve a sensação de que estavam preparados para uma reaçãofuriosaequeasforçasdaleiestavamumoudoispassosàfrentedospais.Quando levantaram, David olhou para a esposa como se perguntasse:“Estamos juntos nessa?” Lena respondeu passando a mão de leve nascostasdele.

–OCitibankestádispostoaemprestarqualquervalornecessárioajurozero–começouJohnquandoospaissereuniramemtornodobufêdasalaaolado.

–Mesmoissoestariaforadonossoalcance–dissePhilemvozbaixa.–Somosprofessores.Oqueganhamosmaldáparavivereaindatemosquequitar despesas médicas. Não vejo como pegar 250 mil dólaresemprestados.Nãoseioquevamosfazer.

–Entendambem–prosseguiuJohn,obviamenteprontoparaareação.–

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Con iememmim.Teremosoportunidadesdereaverodinheiro.Lynnestásendomuitoconservadora.

–Nãosei,não–disseJanet.–Émuitodinheiro.Lenasentiunáuseasaoouviraquilo.Nãopodiaacreditarqueamulher

colocavaodinheiroacimadetudo.Mikecoçouacabeçaepassouosdedospelocabelocacheado.–Não boto amenor fé no FBI,mas quero ter certeza de que estamos

agindodamelhormaneira.QueroTommydevolta,maisdoquequalquercoisa no mundo, mas desejar e raciocinar nem sempre andam de mãosdadas.

– Não pretendemos esperar semanas – disse David, sem olhar paraLena.

–Nemeu–retrucouMike.–Masascoisasacontecemrápidonaeradoscomputadores.Quemsabeoqueocorreránaspróximashoras?

– Pode demorar mais do que algumas horas para a compensação deumatransferênciaeletrônica–disseJohn.–Talvezossequestradoresnãosaibamdisso.Efiquemnervosos.

Apossibilidadededeixarosbandidosansiosos fez todossecalarem.Aúltima coisa que qualquer um ali queria era imaginar um sequestradorabalado,quepudessecolocarascriançasemperigo.Janetmexeuocafénaxícara.

–Não dispomos do dinheiro, portanto não sei o que dizer.Mas queriamuitoquetudoissoacabasselogodeumavez.

Lena se deu conta de que Janet sugeria que o grupo pagasserapidamente, mas ela mesma não desembolsaria um tostão. O tipo depensamentotípicodePhile Janet.LenasentiuDavidolhandoparaelaeoitou. Provavelmente pensava a mesma coisa, mas a discussão pareciadeixá-loimpaciente.AvozdeJohnfezcomquetodossevirassem.

– Creio que chegou a hora de tratarmos da logística. Primeiro odinheiro,depoisatransferência.Então,oquetemos?

PoolhouparaMike,pedindoconfirmação,efalou:–Estamosdispostosapagarnossapartedoresgatee tambémmetade

do valor dos Rostenkowski – Phil e Janet olharam para o chão, mas nãoprotestaram.–Casoelesqueiram,bementendido–acrescentouPo.

–Obrigada–disseJanet,sussurrando.–Vamosprecisar.–Achoquepodemoscompletaraoutrametade,alémdanossaparte–

disseJohn.O grupo esperou o posicionamento de Lena e David. Ele mordeu os

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lábios.Nãosabiaoquedizer.Maselasabia:–Nãogostodisso.Seiquehádiferençasaqui.Seiquealguns têmmais

dinheiro que outros. Mas, quando a questão são os nossos ilhos, somosiguais.Nãosetratadeterdinheirooudeassumirdívidas.Temosquefazero necessário para trazer nossos ilhos de volta. Acho que todos devemosassumir as mesmas responsabilidades, mesmo que seja mais di ícil paraalguns.

Janet lançouumolharsurpresoparaLena,comosetivessesidotraída.Phil balançou a cabeça, quase imperceptivelmente. Os outros sentiram atensão no ar. Lena não recuou. Não havia planejado nada daquilo. Falouporintuição.SheilaWalker,talvezmaisacostumadaasituaçõescomoessa,encontrouumasaídaparaodilema.Olhouparaomarido.

–Podemosgarantiroretornododinheiro?Johnrefletiuporumsegundo.–Garantir?SóseconseguirmosacooperaçãodoFBI,dodepartamento

deJustiça,do…– Não estou falando disso. Você e eu podemos garantir o retorno? –

Sheilamostravamuitadeterminação,quandonecessário.–Suponhoquesim,havendoprazosuficiente.– Certo. Então cada um de nós assumirá a mesma responsabilidade

inanceira. John fará o possível para conseguir o dinheiro de volta. E, emcasonegativo,oferecemosumaapólicedeseguroparatodos.Concordam?

Ninguém respondeu diretamente à pergunta de Sheila, mas icouevidenteque todos concordavam. JanetePhil, recebendoumempréstimosem juros comgarantiadepagamentopor terceiros,não tiveramopçãoanão ser aceitar a transação. Mike avançou na discussão, perguntando arespeitoda transferência. Johnexplicouosdetalhes e todos concordaramem marcar a remessa para o dia seguinte, ao meio-dia. John já haviatratadodosprocedimentoscomseubancoepassouas informaçõessobreosempréstimosparaquemprecisasseedissequecontaseriausadaparaatransferência.

–Equantoaosaspectoslegais?–perguntouDavid,depoisdeconsultarospapéis.

–Quesedanem!–quasegritouMike.–Seelatentarindiciarvítimasdesequestro por cumplicidade emextorsão ou algo assim, vai arranjar umatremendadordecabeçaemtermosderelaçõespúblicas.Vamosvoltarláedizeraelaoquepretendemosfazer.

Efoioque izeram,semperceberqueoplanodeadiaropagamentoaté

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as doze horas do dia seguinte era exatamente o que LynnWitherspoonesperava.Elamanipularaogrupocommuitahabilidade.

Lenasócomeçouasedarcontadissoquando,umahoradepois,elaeosoutros pais icaram atrás de Lynn, na porta do hotel, enquanto amulherenfrentava as câmeras e driblava as perguntas sobre a investigação e oeventualpagamentodoresgate.Aovê-lapôraimprensanalinha,fazendocom que repórteres agitados aceitassem as parcas informações quefornecia, Lena lembrou que entrara na reunião decidida a enviar odinheiro imediatamente e agora estava ali, endossando um plano paraadiaropagamentopor,nomínimo,16horas.

O que aconteceria a Sarah durante essas 16 horas? Estaria em algumlugar ondepodiadistinguir odiadanoite, ounumburaco escuro?Oquecomeria? Passaria frio? Choraria? O que posso fazer por minha ilha,pensava Lena? A confusão da entrevista coletiva, as palavras, os lashesdas câmeras, os re letores, tudo sumiu, dando lugar a um pavor que fezsuagargantasefechar.ElaestendeuamãoparasegurarobraçodeDavidepegousuacamisa.Elesevoltouparaela,masnãoaencarou.Elateriadesuperar a entrevista coletiva, a volta para casa e a longa noite. Sentiatontura,quaseânsia.Nãoqueriacederàansiedade,masissoestavaquaseacontecendo. Olhou para os outros pais, aglomerados atrás de LynnWitherspoon. Po parecia calma e segurava o braço deMike. A raiva queestava logo abaixo da super ície, na isionomia daquele homem,desaparecera. Janet agarrava-se a cada palavra da promotora e dava acuriosa impressão de estar satisfeita com o rumo que as coisas estavamtomando. John deixara de lado seu comportamento arrogante e parecianotar as câmeras que o focalizavam. Além de Lena, ninguém aparentavaestar contrariado com a demora e com o espetáculo para os meios decomunicação. Lena sentiu uma nova onda de náusea e lutou contra ela,apertandoobraçodomaridocomforça.

O puxão na camisa arrancou David de seus pensamentos. Ele tinha aimpressão de que acabara de assinar um contrato que não entendiadireito. John os envolvera numa complicada transferência bancária egarantiuqueteriamodinheirodevolta.Davidsabiamuitobem,porcausado período em que trabalhou em bancos de investimento, que taisgarantiascostumavamserbemtênues.PorquetantapressãodapartedeJohn? Como os sequestradores escolheram ummétodo de pagamento deresgatequeseencaixavatãobemnomundopro issionaldele?Sefosseumjogodedetetive,elejáteriamarcadoonomedeJohncomosuspeito.

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DavidviuumcâmeradeTVregistrandocomumapanorâmicaaimagemdas famílias atrás da promotora. Ele se perguntou se um dia aquelatomadaseriausadae,quandoacâmerapassasseporJohn,aimagemseriacongeladaeolocutorcontariaasórdidahistóriadeumbanqueiroque,poralgummotivoignóbil,mandousequestraroprópriofilho.

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Dezoito

OCHOQUEDAMORTEDOSr.Everettconfundiuascriançaspelorestodatarde.Encontraram sanduíches no isopor, mas quando saíram para comê-lossentadosnaspedrasperceberamqueninguémestava commuito apetite.Depois dedar apenasumamordida, Linda embrulhouo dela de volta nosaco plástico e o escondeu numa fenda, guardando-o para mais tarde.Mosquitos revoavam em torno das crianças enquanto elasmastigavam etentavamconversar,afugentando-osparanãoserempicadas.

Depoisdecertotempo,elasseconvenceramdequetalvezoSr.Everettnão estivesse morto. Franklin sugeriu que descessem até o lago paraveri icare todosseguirampara lácomootimismorenovado.MasocorponãosemoveraeFranklinfoiescolhidoparainspecioná-lodeperto.Quandochegou a dois metros da cabeça do Sr. Everett, já azulada, ele parou.Abaixou-seeprotegeuosolhosdosolpoente.

Derepenteumcorvo,negroereluzente,comasasasenormesabertas,decolou de uma árvore próxima e mergulhou em direção ao corpo.Franklin recuou assustado, escorregou e caiu do píer na água rasa ebarrenta. Os outros gritaram e correram para socorrê-lo. Mas Franklinsubiude voltanadoca e se afastoudo Sr. Everett comas calças sujasdelodoeostênisensopados.

Voltaramrapidamenteparaochalé.LádentroFranklinremoveualamasecada calça, enquanto todos começavama sedar contadequeestavamsozinhos.Sarahfalouprimeiro:

–Precisamosiremboradaqui.Precisamosdeajuda.Como ainda temiam que o Sr. Everett pudesse voltar dos mortos, o

grupoencarregouTommyde icardevigiadoladodeforadacabana,parao caso de ele dar sinal de vida, enquanto Franklin pegava o notebook namochila do homem e o ligava. A tela se iluminou e o sistema operacionalfuncionou, mas pediu uma senha. Eles tentaram nomes e letrasrelacionados ao proprietário, mas nenhuma opção funcionou. Enquantodiscutiam o que fazer, Tommy os chamou. Sem entender o que ele dizia,Franklinfechouonotebookeoguardounamochila.Depoissaíram,omaiscalmamentepossível.

– Ali – disse Tommy, apontando. – Mais ali na frente. Vi as moitasmexendo.

Olharam para o mato e ouviram um baque seco, depois outro. Em

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seguida, avistaram o lanco de um cervo. Linda, sem saber o que era,soluçou. O ruído levou o animal, uma fêmea, a erguer a cabeça esguia,encarando-os. Ela permaneceu imóvel por um minuto, assim como ascrianças,assustadas.Depoisdeumeia-voltaesumiunafloresta.

Passaram um tempo sentados nas pedras até Franklin se lembrar deque,napressa, seesqueceradedesligaronotebook.Aovoltarpara fazerisso e guardar de volta o computador, encontrou uma caderneta deanotaçõesnumdosbolsosdamochila.Omeninoalevouparaforaparaquetodosaexaminassem.

Na maioria das páginas eles encontraram endereços e telefones,algumas informações sobre a picape e uma espécie de diário, comanotações estranhas e frases do tipo “A hora é esta, mas o relógio estáquebrado”.Depois havia diversas páginas quepareciamestar em código,repletasdepalavrassemsentidonumalfabetoesquisito.Sarahresmungoualgo a respeito de um livro que tinha lido no qual as palavras vinhammisturadascomoaquelaseeraprecisodescobriraque letrasdoalfabetoreal equivaliam as letras impressas. Mas, após 15minutos de tentativas,nãoconseguiramdecifrarocódigo.

Quandoaluzdosolsetornouumbrilhosuaverendadopelasfolhasdasárvores que rodeavam a clareira, o ar esfriou e as crianças passaram adiscutirasopções.Sarahretomouseuscomentáriosanteriores.

– Precisamos descobrir a saída, chegar ao local onde ele nos vendou.Daliemdianteésóseguiratrilha.

–Existemváriastrilhas–retrucouFranklin.–Vamosnosperder.–Nãoqueromeperder–disseLinda,chorosa.–Achomelhor icarmos

aquiaténosencontrarem.– Quem vai nos encontrar? – perguntou Sarah e a clareza de seu

raciocíniolançoutodosnumaatmosferadeansiedade.Tommyrompeuosilêncio:– Eu deixei uma pista. Joguei umameia onde paramos, para saber se

estavanatrilhacerta,navolta.–Sóumameia?–disseSarahe,quandoTommyfezquesim,osoutros

se deram conta de que uma única meia não garantia um desfechofavorável.

Franklin pegou a caderneta e estudou as páginas codi icadas. Umanuvem de insetos revoava ali perto. A calma noturna tomava conta daclareira,masnãotranquilizouascrianças.Apavorada,Lindaqueriavoltarparadentrodacabana.Sarahrapidamentefezcomqueelasecalasse.

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–Nãodigaqueestácommedo,Linda.Mesmoseestiver.Nãodiga isso.Nenhum de nós pode falar isso. Só serviria para nos deixar maisapavorados.

–Masnãopossoevitar.Estoucommuitomedo.– Todos nós estamos. – Ela olhou para os meninos. Embora menos

inclinadosaadmitiromedo,seusrostosdiziamtudo.–Estávendo?Então,vamosdarumjeitodevoltar.

– Bem, não podemos caminhar – disse Linda, tentando se controlardepois da bronca de Sarah. – Não sabemos por onde começar, nem qualtrilha seguir. E tem ursos na loresta. Vocês ouviram o Sr. Everett dizerisso.

NemSarahnemosmeninostinhamrespostaparaaquilo.EmboraSarahtenha concordado tacitamente com Linda, ela não se conformava com afaltadeopçõesparaquese salvassem.Seguiuatéabeiradaclareira, emparteparapensar,emparteparamostraraosoutrosquenãotemiatantoamataquantoLinda.

As cigarras ciciavam, como se umamuralha de zumbidos desa iasse acoragemdeSarah.Elanãovoltouimediatamentee,paraasoutrascrianças,parecia que ela tinha sido engolida pelo barulho.Mas um rugido grave edistante cortou o som dos insetos. Amenina voltou para perto do grupo,olhou para cima e apontou. Viramum avião re letir a luz dourada do solpoente,comoumminúsculocruci ixoa lutuar,deixandoumrastrobrancodi ícil de relacionar com o ruído que produzia. Observaram aquelaocorrência normal como se fosse algo único na história, até odesaparecimentodaaeronavenanévoadohorizonte.Todosqueriamestarnaquele avião, mas tiveram de voltar para a cabana como se fossemprisioneiros obrigados a retornar às celas. Trancaram a porta para seprotegeremdaescuridãoassustadoraquetomavacontadaclareira.Lindasentiu-semaissegura ládentroenempensounorestodesanduíchequedeixaraemcimadeumapedra.

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Dezenove

VÁRIASHORASTRANSCORRERAMDESDEQUEhaviamvoltadodareunião,períodoemque Lena perambulou pela casa, checou e-mails obsessivamente, ligou edesligou a televisão, vendo as horas se passarem como se fosse umcondenadoàmorteemseusúltimosinstantes.

QuandoRichard, seupai, ligoudizendoqueprecisava conversar senãoenlouqueceria,elaentendeu.Eledissequeestavanoquintaldecasa,semconseguirdormirnemfazernada.DissequeamãeeairmãdeLenaaindanãohaviamdecididoseviajariamparaosEstadosUnidos.

–Eeuaindanãotomeiumadecisão–disseele.Lenaoalertoudequenãohavianadaqueelepudessefazer,contouque

o FBI estava quase localizando o computador de onde fora enviado opedidoderesgateeessaeraaúnicapistanomomento.

–NãoconsigoparardepensarnodiaemquesuamãeeeuperdemosSarah em Estocolmo, por alguns minutos. Ela nem ligou, mas nós quasemorremos.

LenapodiasentiroaromadaSuécianoverão,aslongasnoitesclarasdejunhoe julho.ViaSarahnoquintaldosavós,prontaparairsedeitar,compijama de verão, usando a máscara de dormir que ganhara de Sally. Amenina ria ao tropeçar no quintal. Lena sempre odiara usarmáscara dedormiretinhadi iculdadeparaachargraçanomundoinvisívelqueSarahdescobriranaquelanoitedeverão.

LenaperguntouporSylvie,quemandaraume-mailmasnãotelefonara.Sentiu-se grata por isso. A irmã faria com que Lena se sentisseterrivelmenteculpadapelosequestro,deumjeitooudeoutro.

–ElafoiparaMadriatrabalhoestanoite.Pensamuitoemvocê,Lena,dojeitodela.

Lena icou ainda mais inquieta depois de desligar o telefone. Davidsugeriu que jogassem buraco, talvez a propostamais absurda que ela jáescutaranavida.Orelógioquasenãosemexia.EleperguntouseaesposaestavacomfomeeLenaresolveuprepararalgo,oqueamanteriaocupadaporumtempoeadistrairia.

Fez um omelete, comeu um pedaço e deixou o resto. David ofereceuvinho, e ela decidiu tomar uma taça, por mais que não estivesse comvontade. Era um tinto de que eles gostavam muito, mas que deixou umgostodemeiasujaemsuaboca.Bebeumaisumgole,porém,poisoálcoola

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aqueciaeaacalmavaumpouco.–Vamosdormir–disseDavid,servindomaisumataça.Lena olhou rapidamente para ele, tentando descobrir se havia um

convitenafrase.Eleretribuiuseuolhara imdeesclarecerquepretendiaapenasdormirmesmo,maisnada.Lenaansiavapelamaciezdos lençóisepelocalordocorpodomaridoaseulado,masaculpaporquererconfortoquandoSarahestavadesaparecida,correndoperigo,aimpediudeaceitar.Tomoumaisumgoledevinho.

Quinze minutos depois, o mundo reduzira a marcha o bastante parapermitirqueLenatrocassederoupaefosseparaacama.Davidfoifechara casa. Ela ouvia ao longe a conversa dos plantonistas da imprensa queesperavamnarua.Fechouosolhos.

Omovimentonoquartoasurpreendeueelaabriuosolhosderepente.David, perto do guarda-roupa, se despiu e estava só de cueca. PercebeuqueassustaraLena.

–Sintomuito,penseiquevocêestivessedormindo.–Aindanão,sófecheiosolhos.David tirou a cueca e continuou conversando com ela, nu. Seu corpo

magroecompridoaindaexibiaboaforma.Quandoelevirouparapuxarascobertas,aluziluminouseupênis.Pequenoemrepouso,dojeitoqueLenasempreconsiderouesteticamenteagradável.Porém,avisãonãoaexcitounaquelemomento.Eleolhoupara ela, coçandode leveospelospubianos,comocostumavafazer.AtranquilidadedesuaatitudeatraiuLena,maselesemantevedistante ao deitar a seu lado, tocandoo ombrodamulher deleveantesdebeijarsuaface.Eraosuficiente,pensouela.

EntãoLenasentiu-seplena,comoalguémqueconquistoualgo.Enormefoi o contraste com os dois últimos dias, nos quais a sensação de vazioapavorante,degelarosangue,aacometiaquandorealmentecompreendiaquea ilhaforalevadaetalveznuncamaisvoltasse.Deitadaali,estranhouasensaçãodeplenitude,masnãoarefutou.IntuíaqueSarahfaziapartedoque estava sentindo. Será que ela e a ilha estavam se aproximando, seunindocomonuncaacontecera,agoraqueSarahseencontravatãolonge?Lenacomeçavaapegarnosono,aquelaestranhaplenitudesechocavacomos números, as horas e os dólares do dia seguinte. Ela viu o monitorcaminhardavanatéaentradadacasaefechouosolhosparaohorror.

MikeePoWilliams izeramamorcomocostumavamfazerquandooato

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não provinha do desejo ou da paixão, e sim da proximidade. MikepermaneceudentrodePosemsemexer, acariciandoseupescoçocomoslábios. A mulher falava espanhol, sabendo que Mike não compreenderiatodas as palavras, mas captaria o sentimento quando usasse o termomanito. Ela chamava os ilhos assim, de um jeito carinhoso. Ele beijou osseiosmiúdosdePo.Suasmãospercorreramocorpodela,areconfortaramatéqueaereçãocessoueelerolouparaoseuladodacama.Podescansouacabeçanoombrodeleenãoevitouaslágrimas.Mikeafastouocabeloquecaíasobreatestadaesposa.

Minutosdepois, lembrouquehaviacompradoentradasparaojogodosMets na sexta-feira seguinte à data prevista para Tommy voltar doacampamento. Iria sópor causado ilho, pois a vida inteira torcerapelosYankees.MasosparentesdePo,fanáticospelosMets, izeramacabeçadomenino desde pequeno e todo ano Mike o levava a um jogo do time.Deitado na cama, tentou afastar a imagem deles dois no estádio, Tommycom luva de beisebol, ansioso para pegar uma bola rebatida, olhosbrilhantes de contentamento pelo lindo espetáculo. Perdeu a batalha,porém.Consultouorelógiodocriado-mudoepensouqueeratarde,queascriançasjádeveriamtervoltado.

– Aonde você pensa que vai? – Janet surpreendeu Paul, seu ilho, acaminhodaporta,usandofonesdeouvido.Elevirouparaela.

–Nãopossosair?–Claroquenão.Oqueaspessoasvãopensar?– Sei lá! Não vou a nenhuma festa. Só queria encontrar uns amigos,

desanuviarumpouco.–Issoépior.–Elalhedeuascostasecomeçouaseafastar.–Oquetemderuimnisso?Vousair.Janetvoltou-separaelerapidamente,deuumpassoameaçadoredisse:–Nãovainada.Ficarádentrodecasaatéestaconfusãoacabar.–Comoé?–Vocêouviubem.Demonstrealgumrespeitopornós.– Por vocês? E quanto a mim? Eu não sequestrei Linda. Não sou

nenhumbandido.MeuDeus!–NãouseonomedoSenhoremvão.Vaificaremcasa,entendeu?–Ese issoduraranos?Esenuncaaencontrarem?Voupassaroresto

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davidatrancadoaqui?–Nãosejaridículo.–Então,possosair?Janetmordeuoslábios,afugentandoaslágrimas.–Vãoencontrá-los. Logo. – Semconseguir encararo ilho, saiuda sala

pisandoduro.

JohnWalkerdesligouotelefoneelevantou.Nãosemexeuporumlongominuto, porém, e Sheila, sentada na frente do computador do escritório,olhouparaele.

–Quemera?–perguntou.Elepareciaconfuso.–Marshall…hã…Rogovin. Chefe da segurança global de tecnologia da

informaçãodoCitibank.–Oqueeledisse?– Disse que está cuidando do caso. Eu autorizei sua intervenção. Os

computadores do FBI não dão conta de certas tarefas que os nossosconseguem realizar. Aspectos técnicos. Algo a respeito de identi icarmarcasempontosnodais.Nãoseibem…

–John–disseSheila,virando-separaele.–Estátudobem?–Está,sim.Masacabodemedarcontadeumacoisa.–Oquê?–Estoucomprometido.–Comprometido?Foioqueosujeitoacaboudedizer?–Não,masolheiporoutroângulo.Vocêbemsabequantoosexecutivos

sãoparanoicosemtermosdesegurança.Sabecomosãoosprocedimentosna América do Sul, na Ásia, por toda a parte. Ninguém vaime dizer issodiretamente.Todos semostrarãoeducados e solidários,mas eu sei oqueestarãopensando.

–Oquê?–Quenãofuicapazdeprotegermeuprópriofilho.Sheila se levantoue foi atéele.Percebeuqueomaridonãoqueriaum

abraço,esimmergulharemseuspensamentos.Mesmoassimelasegurouamãodele,porcompanheirismo.Eleaceitouogesto.

–Eunãopenseinisso–disseJohn.–Nãopensounissoquando?

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–Antesdosequestro.–Ecomopoderia?–Sheilaficouconfusa.OlhouparaJohn,maselefitava

ovazio,voltadoparapensamentosquenãopretendiacompartilhar.

LenasonhoucomJanetRostenkowskieSarah.Quandoacordousuandono meio da noite, foi só disso que se lembrou. David dormiaprofundamente. Ela viu um pedacinho do céu escuro no alto da janela.Pontilhado de estrelas, tinha algo de vertiginoso, como se ela estivessesendo sugada pela vastidão do espaço. Sentou-se na cama. Davidresmungou,mas não acordou. Lena virou e pôs os pés no chão,mas nãolevantou.

De repente, não era mais segunda-feira de manhã, os dias tinham sepassado, talvezosmeses também,eSarahcontinuavadesaparecida.Lenasentiu o pânico como um soco no estômago, encharcada de suor. Comesforço,trouxeamentedevoltaaomomentoatualerepassouosfatos.Nãopoderia ter evitado que a iludissem, eles izeram todo o possível desde oraptodeSarah,receberame-mailseumvídeo,pagariamoresgatedentrodeseishorasemeia.Afilhavoltariaparacasa.

No entanto, pensou numapaciente que tivera anos atrás, umamulhercujonomeagora lheescapava. Seu casoveio àmente comoumresultadode busca no Google. Amulher sofria de câncer na garganta e informaraque fumava desdemenina. Um dia, porém, confessou a Lena que nuncahavia fumado,mentiraparanão terdeenfrentaraverdadeiraorigemdeseucâncer:sofrimentocontínuo,crônico, inevitável.Aos30epoucosanos,mãesolteiradeumaadolescente, sofreraa tragédiadevera ilhasairdecasa para pegar o ônibus e ir trabalhar, depois da aula, e nunca maisvoltar.Nuncaencontraramomenortraçoda ilha.Amulherachavaqueador constante da perda se entranhara em seu corpo, dando origem aocâncer.

Nacama,Lenaafastoudalembrançaaquelehorrívelepisódio.Nãoteveforças para se levantar. Recostou a cabeça no travesseiro úmido.Impossível imaginar que nunca mais veria Sarah. Mas a possibilidadeestavaali, presente.Teria acenado,dadoadeus?Noonie tinha razão?Nãosabia para quem rezava, mas pediu que esses pensamentos sombriossumissemdevez.

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Vinte

CHASENÃOCONSEGUIUESCONDERDEHeleneseupânico.Saíradoquartoapósastentativas iniciais de deter o envio do e-mail, pois faltara completar suacriptogra ia, e sua atitude nervosa e desorientada transformou a tardeplácidanumturbilhão.Amulher,quetratavacomJenniferdoferimentodabonecaAnnabelle,aproximou-sedele.

–Qualéoproblema?Elenãopodiaresponder,nemcontarnada.Precisavapensar,masesse

tipoderaciocínioelesóhaviafeitocomopai.“Estouferrado”,aexpressãomartelava sem parar em sua cabeça, impedindo qualquer outropensamentooufrase.Finalmente,teveumaideia.

–Umapacientedohospital.Morreuumamulherqueeuconhecia.–Sei.Coitada,quepena.Helene tentou consolá-lo com um abraço, mas a expressão “Estou

ferrado”voltouàsuamenteeninguémpoderiaconsolá-lo.–Vousair–disse,afastando-separapegarocelular.Ele foi até a entradada casa,pensandoempegaro carroe ir a algum

lugar,masde repente temeupartir para sempre, fugir, sabendoquenãoeraaopçãocorreta.Emvezdisso,seguiupelacalçada.

A uma quadra de casa digitou o número do pai. Os dois telefonesestavam codi icados, portanto não precisava se preocupar com grampos.Não sabia que tipo de recado deixar se o pai não atendesse: “Estouferrado.” “Pai, temosproblemas.” “Preciso falar comvocê.”Não conseguiasedecidir.Rezouparaopaiatender.Masnãofoioqueaconteceu,ecomoaligaçãocaiuimediatamentenacaixapostalelesoubequeotelefonedopaiestava desligado ou fora da área de cobertura. Quando ouviu o toque,Chasefaloudeimproviso.

–Pai,pintouumproblema.Meliga.Desligou e voltou para casa. Percebendo que ainda não estava pronto

paraenfrentarHelene,mudoudesentidoefoiparaooutrolado.Fugircomafamíliaeraumaopção,maselenãopodiafazerissosemaaprovaçãodopai. Além do mais, só serviria para piorar tudo, faria dele um suspeitoóbvioparaoFBI,umfugitivoasercaçado.Poderiaavisarointermediário,massósepercebessequesuaprisãoeraiminente.Umaligaçãoemcódigopara o intermediário, sua única iniciativa possível, detonaria o imediatocancelamento da operação, o adeus à recompensa e só Deus sabe que

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consequênciasteriaparaascrianças.Pelomenosporenquantonãousariaessacartadaextrema.

Aospoucosseupensamentoclareou.Elese lembroudequandoestavacomopainavaranda,noestágio inicialdoplanejamento.Helenetrouxeraasobremesaparaeles,depoisdojantar,numanoitequentedeprimavera.Ficouporaliumtempo,interrompendoaconversa.Assimqueentrou,opaisussurrou que a melhor proteção para Chase era sua vida normal, emfamília,eofatodeHeleneignorartudo.

– O plano é perfeito – prosseguiu o pai, sussurrando. – Mas, se poralguma razão um gênio decifrar nossa criptogra ia, o que jamaisacontecerá, e baterem à sua porta, mesmo assim você estará seguro.Helene, com seu olhar inocente, os ilhos, tudo fará com que se sintamestúpidos por terem aparecido na sua casa. Quando quiserem examinarseu computador, permita: não acharão nada. Não entre em pânico, poisterão a impressão de que alguém invadiu sua máquina, você e suaadorávelesposaforamvítimas,sóisso.Entendeubem?

Chaseselembroudaconversanomeiodaquadra.Umirrigadorentrouem funcionamentoautomáticoeele considerou issoumaespéciede sinal,um ponto de exclamação para seu pensamento. Não precisava fugir nemfazernadadeanormal,bastavasentareesperarcomcalma.Sebatessememsuaporta,elesóprecisariaselembrardopai,sentadocomumpratodetortademorangonocolo,ordenandoquemantivesseacalma.Não iriasedesesperar,mas ignorava a velocidade com que essas coisas aconteciam.TemeuqueoFBIjáestivesseemsuacasaequeosagentesdescon iariamquando Helene dissesse: “Ah, ele estava com problemas e saiu para darumavolta.”Entãocorreudevoltaparacasa.

Naquela mesma noite, mais tarde, Chase assistia a um programa natelevisãocomocelularnamão,ansiandopelaligaçãodopai.Heleneentrounasalaaosairdobanhoesentouaseuladoapenascomatoalhaenroladano corpo. Ele entendeu o recado, mas, naquele estado, não conseguiaimaginarqualquerespéciedecontato ísico,muitomenosoatosexual.Noentanto, raramente recusava as iniciativas da mulher e pensou que elapoderiaestranharsuaatitudeedesconfiardealgoquandooFBIchegasse.

Por isso recorreu a seus dotes teatrais e transou com ela. “Porra”,pensou,“soumesmobomnisso”.Oquemeimpededecontinuara ingir?OFBIquevenha.PassareiobraçopeloombrodeHelene,pegareiascrianças

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nocolo, icareisurpresoquandodisseremquemeucomputador foiusadonaoperação.OscandidatosaoOscarquesecuidem.Heleneacariciariaseupeito.Eledesempenhariabemseupapel.Dissotinhacerteza.

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Vinteeum

AS CRIANÇAS HAVIAM CONSEGUIDO ACENDER o pequeno lampião de querosene, econformecaíaanoiteassombras fantasmagóricas lançadasnaparededacabanaaslevaramatemertudooqueoSr.Everettusaraparaassustá-lasemuitomais. Mesmomorto no píer, amenos de um quilômetro dali, elecontinuavavivonaimaginaçãodelas,deummodomaisdevastadordoquesuaprópriapresençafísica.

Franklin lidava com o horror examinando a caderneta do Sr. Everettsemparar. Tommy checava as janelas o tempo todo, apesar de Linda terpedidoa elequeparasse.Ela acreditavaqueoSr.Everett,mesmomorto,poderia se levantar e vir até eles, deformado e ensanguentado. Sarahrecorreu a jogos mentais, imaginando que tudo aquilo era uma festa deaniversário surpresa que seus pais izeram para ela certa vez, que aausênciadopaiquandosaiuparaoacampamentoera,comoaconteceranafesta,umtruqueparaelesairearrumar tudo.Nãocontouparaninguém,contudo, pois sabia que não fazia o menor sentido. Preferiu palavrasotimistasencorajadoras.

–Tenhocertezadequeaestaalturanossospais jáperceberamtudoeestãotomandoprovidências–disse,quebrandoumlongosilêncio.

–Perceberamoquê?–perguntouTommy,umaquestãosurgidadesuaincapacidadedecompreenderasituaçãoemqueseencontravam.

O silêncio após a pergunta foi revelador. Mostrava que os outrostambém tinhamdi iculdade em entender a natureza exata da situação. OSr. Everett a irmou que fariam uma excursão especial do AcampamentoArno. E a van pertencia ao acampamento. No entanto, todos concluíramqueoSr.Everettmentira.Alémdisso,eledissera,poucoantesdoacidente– foi assim que passaram a se referir ao acontecido, pois nenhum delesrealmente sabia o que era um ataque do coração –, que logo iriam paracasaeveriamseuspais.

Franklin, perto da lamparina, inalmente respondeu à pergunta deTommy:

–Fomossequestrados.Osoutrosnãoqueriamacreditar.– Então ele nãodeveria ter nos amarradoou algo assim? – perguntou

Linda.–Nãoprecisava–disseSarah, lembrando-sederepentedealgoquea

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assustaramuito.–Ouvifalarnummeninoquefoiraptadoeviveuanoscomumhomem.Nãooprenderam.Elepodiaatépassearpelobairro.

– Que menino? – desa iou Linda, pois não queria nem pensar napossibilidadedepassarmaisumanoitelongedecasa.

–Nãoseionomedele.Vinatelevisão.Elefoicrescendo,ohomempegououtromenino,eaíosdoisfugiram.

Quando ela falou em fugir, todos se calaram, recolhidos em seuspensamentos.Comosefosseumsinal,olampiãodequeroseneapagoueopavioqueimou.Procuraramumalanternasobaluzfracaqueentravapelajanela, mas não encontraram nada. Franklin disse que deviam ir para ooutroquarto e tentardormir. Falou comoumadulto, e de fato imitavaospaisdele,poisassimsesentiamaisseguro.Osoutrosconsideraramaideiareconfortanteeobedeceramsemdiscutir.

No entanto, ninguém dormiu. Nas trevas noturnas era como se asparedes do chalé tivessem se dissolvido. Não podiam protegê-los dosperigos reais e imagináriosqueosameaçavam,maisalémda clareira.Devez em quando uma das crianças virava ou emitia um som fraco. “Estouaqui”,ossonspareciamdizer.“Vocêestáaí?”

Cerca de uma hora depois, uma luz leitosa começou a entrar pelasjanelas.Tommyolhoupara foraeviuquea luznasciaa leste.Nocomeçodo verão, ele e o irmão Jack icaramem casa sozinhosnumanoite de luacheia e saíram para jogar bola no quintal só com a luz do luar. Fora ummomento mágico para Tommy, em primeiro lugar por receber tantaatenção do irmão mais velho, e em segundo por ver a bola vir em suadireçãocomosefosseumfantasmagiratório.Assim,pensouquepoderiamsair,ascoisastalvezmelhorassemláfora.

Ao se afastar da janela, viu com o canto do olho um movimento naclareira que atraiu sua atenção, então voltou. Não percebeu nenhummovimento enquanto tentava ajustar a vista à luz exterior. Parecia haverumasombra,quepermaneceuimóvelporlongosminutos,eTommypediua todos que esperassem. Quando a silhueta se levantou de novo, foi fácilidentificá-la.

–Urso–disseSarah,comumnónagarganta.Linda soltouumgritinhode surpresa.Osoutros,deolhosarregalados,

gelaram.Oanimalseviroualgumasvezes,comosepretendessedeitaredormir.

Em vez disso, porém, olhou para a cabana, ou pelo menos deu essaimpressão.Di ícilsaber,à luzda lua.Quandocomeçouaandarnadireção

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do chalé, porém, não restou dúvida sobre o que estava acontecendo. Ascriançasseabaixarameseaninharamdebaixodajanela.

Osminutosseguintesforamaterrorizantes.Lindanãoparavadetremer,mastodospermaneceramsilenciosos,apurandoosouvidosparaentenderoqueocorrialáfora.Escutaramoruídodaspatasarranhandoumapedra,que logocessou.Nãoreconheceramdireitoossonsseguintes,quedeviamsergrunhidosouoursomastigando.Emseguidaouviramumbarulhoquefez todos pularem, uma pancada seca na parede, seguida pelo arranhar,como se ele estivesse se jogando contra a cabana. O som se tornoumaispróximo e as crianças voltaram para o quarto, apavoradas. O topo dacabeçadoursopassoupelajanelaeSarahsoluçoualto.

O urso parou, suas costas arqueadas visíveis através do vidro sujo, asilhueta peluda contra o céu azul profundo. As crianças estavampetri icadas. O animal parecia farejar sua presença, preparando-se paraumataque.Eleseafastouda janelaenão feznenhumbarulhoporváriosminutos. O silêncio assustava mais do que os ruídos. De repente, asparedesdochalétremeramea janeladooutroquartoquebrouquandooursogolpeousuafrágilestrutura.Lindagritou,masosoutros izeramcomqueelasecalasse.Esperaramoataqueseguinte,maselenãoaconteceu.

Quando o silêncio reinou novamente, tudo parecia calmo lá fora. Elesesperaram, quase sem coragem de respirar. Passados váriosminutos detensão, icou claro que o urso tinha ido embora. Será mesmo? Onervosismopermaneceunoarpormaisumtempo,atéFranklinrecobraravoz e dizer que achava que o animal tinha se afastado. Linda começou achorarbaixinho.

–Esqueciosanduíchelá–disseela,fungando.–Foiminhaculpa.Para as crianças, a hora seguinte trouxe apenas preocupação. Os

horrores imaginados do lado de fora da cabana, na beira da clareira,tornaram-se assustadoramente reais. O tamanho do monstro quearranhara as paredes do chalé, rosnara e perambulara pela clareira fezcada um mergulhar em seu inferno particular. Quando falavam,gaguejando, formulavam pensamentos entrecortados, incoerentes,fragmentados. Alguém apareceria para resgatá-los, pensou Sarah, océrebro anuviado pela fome, pelo medo e por um cansaço que tornavapenoso cadamovimento. Alguémprecisava vir, pois eles não podiam sairdali.Estavamencurralados.

Opurocansaçofezcomquepegassemnosono.Sarahacordounomeioda noite, mas pensou que sonhava. Ouviu o urso voltar, sua respiração

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pesada, as garras rascantes. Só podia ser um sonho, certo? Então deixouqueosonoaembalassedenovo.

Franklinacordouprimeiro,horasdepois,aindaexausto.Comoosoutrosdormiam,nãoprecisavamaisfingirquenãosentiamedo.Queriaqueamãeentrassenoquartocomosempreaconteciademanhã,nahoradeirparaaescola, sentasse na cama para acordá-lo com carinho, esfregando suascostasenquantofaziaumaoraçãoporseubem-estarduranteodia.Pensarnisso encheu seus olhos de lágrimas e o corpo foi sacudido pelo chorointenso que vinha tentando sufocar nos últimos dias. Sarah se mexeu eFranklinfungou,enxugouaslágrimasesevirouparaooutrolado.

Sentia frio e pegou um cobertor. Depois de chorar, Franklin passou apensar com mais clareza e se lembrou de ter lido a respeito de escritaespelhada. Ansiava pela luz para que pudesse procurar um espelho etestar sua hipótese. Tommy resmungou, dormindo. Franklin fechou osolhoserezou,pedindoaoSenhorqueoajudasseadecifrarocódigo,obterasenhaemandarumpedidodesocorro.

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Vinteedois

QUANDO ACORDOU, LENA SENTIU-SE EM queda livre, no vácuo. Impotente,atordoada. Achou que ia vomitar. Saiu da cama e chegou até a porta doquarto de Sarah. Não era náusea nem vertigem. Não corria o risco dedesmaiar.Percebeuqueopesoacumuladodosdiasdeincerteza,semfatosnem orientação, a esvaziara a ponto de deixá-la vulnerável à profundaansiedadedonada.

Enterrouorostonotravesseiroda ilha,consolando-secomsuamaciezenvolvente.Depoisdeummomentodeabraçosilencioso,opânicocedeueLenaconseguiuvoltararespirarnormalmente.Aocolocarotravesseirodevolta no lugar, Sarah subitamente apareceu na cama, pronta para irdormir.Lenarecuou,afastandoaimagemilusória,esaiudoquarto.

Foi até a cozinha preparar um café. Aqueceu uma rosquinha noforninho elétrico, mais por hábito do que por apetite. Bebeu um gole decafé. Parecia sopa aguada, era como papel molhado na boca. Tirou amanteigadageladeira eumcheiroestranhonasprateleiras indicavaquealgo estragara, deixando-a enjoada. Passoumanteigana roscaquente e alevou para amesa da cozinha. Lembrou-se de que 45 horas antes haviasentado àquela mesa, fazia uma refeição igual àquela quando ouviu acampainhatocar.Aindaouviaaqueletoque.Seráqueoescutariapelorestodavida?

Ao sentir a ânsia subir pelo estômago, percebeu que ia vomitar.Levantou e correu para o banheiro, mal conseguiu fechar a porta elevantar a tampa da privada quando o jato saiu com força de sua boca.Vomitoumais duas vezes até o estômago se acalmar e ela perceber queterminara. Limpou a borda do sanitário e o chão, perguntando-se se anáusea resultava da sensação de queda livre anterior. Mas a impressãopassara completamente. Talvez, pensou, estivesse doente, ou houvessecomido algo estragado. Pensava em veri icar a temperatura quando viuseurostonoespelhodoarmáriodobanheiro.Olhouparaseure lexo,quepareciafalarcomela,ordenandoqueprocurassebemnofundodoseuser.

Ela percebeu de repente que não estava doente nem comera nadaestragado.Abriuoarmárioderemédiosepegouoexamedegravidez.Nãousavaostesteshaviamaisdeumano.Tirouumdacaixasempensar,semansiedade.Agiademaneiraautomáticaquandosentounaprivadaeurinouna ita.Nemprecisou ler as explicações. Percebeunahora.Os riscosque

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indicavamoresultadopositivonãodemoraramasurgir.Ela icouolhandoaté ouvir David vindo do quarto. Sabia que ele vinha direto para obanheiro, como de costume. Jogou a ita na privada, levantou e deudescarga.

Davidbateueempurrouaportadeleve.–Possoentrar?–Pode.–Elescostumavamcompartilharobanheiro.Davidnemnotoua

expressão no rosto de Lena, de tanta urgência para urinar. Ela saiu dobanheiroquandoomaridoergueuatampadaprivada.

Lena foi para a sala, tentando absorver o impacto do que acabara dedescobrir. Tentou se lembrar de quando David e ela haviam feito amorpela última vez. Houvera uma tentativa atrapalhada algumas semanasantes, sob efeito de bebida, quando voltaram de uma festa e a distânciaque sentiram nos últimos meses desapareceu. Mas David não conseguiumanter a ereção e eles desistiram, frustrados. Depois ela se lembrou decerta manhã, uns 15 dias antes, quando acordou com David acariciandoseuseio.Aindasonolenta,sentiuqueamãomornaesuavedespertavaseudesejo. Quando percebeu que ele estava excitado, puxou-o para cima deseu corpo e deixou que a penetrasse, irme e quente, quando ainda nemtinhaabertodireitoaspernas.Lembrava-sedavontadedeficarassim,semsemexer,apenasemcontato.Masnãodissenadaeodesejolevouocorpoa semover. Faziamuito tempoque não transavam, então gozou rápido eele, logo em seguida. Nem deu tempo de saborear o momento, poisouviram o barulho da porta do quarto de Sarah e David logo rolou paraseuladodacama.

Foinaqueledia,então?Sópodetersido.Suamenstruaçãoatrasousemque percebesse? Ela tentou saber a época exata, os dias, mas nãoconseguiu se lembrar, não sabia quando deveria ter menstruado. Soumédica, pensou, e não consigo nem saber isso? Ouviu David sair dobanheiroevoltarparaoquarto.Quandocontariaaele?

Uma série de pensamentos horríveis a invadiu. Seria obrigada aenfrentar a gravidez sem saber do paradeiro de Sarah? Esta nova vidacompetiria com Sarah pelo amor de Lena? Como agiam as mães de doisilhos?Elasseparamoafetodadoacada ilho?AconfusãodentrodeLenaaumentoumais ainda, ela nem sabia se deveria dar continuidade ou nãoàquela gravidez, com um futuro tão incerto. David saiu do quarto.Conseguiria esconder isso dele pelo tempo necessário para pensar commais clareza e decidir qual seria a melhor opção? E, inalmente, o que

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havia feito para merecer este destino, receber este pequeno milagre danaturezabemquandoSarahestavadesaparecida?

Davidaproximou-seportrásdela, levouasmãosaseusombros,beijousuanuca.Nãoagiaassim faziamuito tempo.Eracomoseelesoubessedealgo.O testenão sumiuquandoeladeudescarga?Não, elehavia sumido.Virou-separaeleeosdoissefitaramsemdesviarosolhos.

– Dormiu bem? – perguntou ele, obviamente preocupado com aexpressãonorostodeLena.

–Malepouco.–Porqueocheiroestranhonobanheiro?–Sentináuseas.–Vomitou?–Sim.–Porquê?–Não sei. Acho que comi algo estragado. E estou nervosa. Queria que

issotudoacabasselogo.–Eusei.Fezcafé?Lena se lembrou do café e da rosca na mesa da cozinha. Não

conseguiriaencará-los.–Fiz.Estánacozinha.Temumarosca.Podecomer.Aindaestouenjoada.

– Talvez, esperava, David lesse nas entrelinhas do que lhe dizia ecompreendessequea esposaestavagrávida.Mas seriapedirdemais, atéelaquasedeixoupassaroalerta.

–Porquenãovoltaparaacama?Jáverificouocomputador?–Não.Achoquevouvoltar.Ela foi paraoquarto,masDavid a seguroupelos ombros e a encarou,

quaseaforçouaolharparaele.–Eumesentimuitomalpornãotercontadoarespeitodoemprego.–Tudobem.Euentendo.Davidqueriadizermais,tiraropesodopeito.Massecontrolou.–Durmamaisumpouco.Sesurgiralgumanovidade,euaviso.Quando tirou a roupa e se deitou de novo, Lena achou que ia enjoar

outra vez. Mas após alguns minutos as questões relativas à gravidezdesapareceram e, como ocorrera com Sarah, ela percebeu que estavaligadaparasempreàquelanovavida.Lágrimasdeculparolaramporsuaface. A incerteza medonha da hora em que acordou deu lugar a umasensaçãodeplenitudeinacreditável.Elaenterrouacabeçanotravesseiroechoroudealegria.

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Davidviuqueonúmerodocelularerafamiliar,masnãooidenti icoudeimediato. Precisou de um minuto para se dar conta de que fora Triciaquem ligara às 23h24 da noite anterior, sem deixar recado. Ele passoualguns minutos em dúvida se deveria retornar o telefonema ou não. Foiparaoquarto,abriuumpoucoaportaeviuqueLenadormia.Voltouparaacozinha.Naquelamanhã, faziacadavezmaiscalor.O telefonetocouoitovezesantesdeTriciaatender.

–David?–Sim.Vocêmeligouontemànoite?–Liguei?–Tenhooregistrodeumachamadaàs23h24.–MeuDeus.–Oquefoi?–Euestavabêbada.Tomeiunsdrinques comSherry, não jantei, voltei

para casa ematei uma garrafa de vinho quase cheia. Apaguei, dormi nosofá.Acabeideacordar.

Davidesperou.Sentiuqueabolaaindaestavanocampodela.Nãosabiacomoformularapergunta,excetodemododireto:“Vocêtevealgumacoisaa ver com o desaparecimento de Sarah?” Mas sabia que assim nãoconseguirianada.Pensouterouvidoumbarulhonacozinha,foiatélá,mascontinuavavazia.

–Estátudobem?–aperguntasoouforçada,vindadeTricia.–Não.Sarahcontinuadesaparecida.Nãovouficarbematéelavoltar.Davidpensouterouvidoumsuspiro.–Vi uma fotode suamulher. Pareceque está sendomuitodi ícil para

ela.–Oqueesperava?–Vocêéumsujeitoforte,David.Mereceumamulherforte.Ele queriamatá-la.Não eraum sujeito forte. Caíranas garrasdaquela

criaturanocivaqueestavadooutroladodalinha.Seráqueseuerrotinhalevado ao sequestro de Sarah? Ao perceber a insensibilidade entediadadaquelamulher,fez-senovamenteamesmapergunta.

–David?Estáouvindo?Sabequetenhorazão.Vocêvai tersua ilhadevolta,masissonãoquerdizerqueprecisadeuma…

–Comosabequetereiminhafilhadevolta?Tricianãorespondeu.

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–Comosabe?–Seiepronto.Apolíciaveiofalarcomigo.Elesdisseramqueascrianças

voltariamlogo.Bastapagaroresgateetudovaiterminarbem,nãoé?–Oquesabearespeitodoresgate?–Minhanossa,David.Nãoseinada.Precisodesligar.Nãometelefonede

novoenquantonãoestiverprontoparamudardevida.Ela desligou. Amão deDavid se ergueu,mas ele a controlou antes de

jogar longeo aparelho.O arrependimentobateupesado equestões vitaispara a investigação surgiram. Tricia poderia ter armado tudo aquilo?Como? Ele repassou imagens dos momentos que tiveram juntos; seusgestos de desprezo, as exigências na cama, a avaliação fria dos colegas eaté dos amigos. Ele resistiu à tentação de se recriminar, de pensar emcomo havia sido estúpido, e procurou imaginar aquela pessoaprofundamenteegoístafazendocoisasmedonhasparalhedarumaliçãoarespeito do tipo de mulher que precisava ter a seu lado. Não conseguiuimaginarisso,nemtampoucodescartarapossibilidade.Nuncamaisligariaparaela,masporenquantosabiaquecontinuavaencrencado.

QuandoDavid acordou Lena, uma horamais tarde, avisou que fariamumateleconferênciadentrodealgunsminutos.Elademorouaentenderaque ele se referia. Dormira profundamente. Aos poucos se lembrou dosequestrodeSarahedoenvolvimentodeoutrasfamílias.

John Walker tratou a teleconferência como se fosse uma de suasreuniões pro issionais. Apresentou os pais ao funcionário do bancoresponsávelpelastransferências.Aúnicamençãoaofatodequeocontatose devia ao rapto ocorreu quando o funcionário começou a falar,lamentandoosequestro,antesdeentrarnosdetalhesdaoperação.

David usou o telefone da cozinha e Lena icou na extensão do quarto,aindadebaixodascobertas.Suamentedivagouenquantoouviaaspessoasfalando, torcendo para que o marido estivesse prestando atenção pelosdois. Pelo menos prometera isso ao chamá-la. Lembrou que Sarah haviapassado a segunda noite sem a mãe, num lugar que Lena nem sequerimaginava.Distantedosoutrospaisnateleconferência,elaseperguntouseos sequestradores teriam separado as crianças para escondê-lasmelhor,evitando a localização do cativeiro. Pagariam o resgate como um grupo ereceberiam os ilhos de volta todos juntos? E se as crianças estivessemseparadaseumdossequestradoresfossemaiscompetente–estranhoua

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palavra por um instante: como um monstro desses poderia sercompetente? – do que os outros? Ou completamente despreparado? Apossibilidade signi icava uma situação horrível para Lena, na qualesperava que Sarah recebesse o melhor tratamento e, portanto, que asoutrascriançaspoderiamsermaltratadas.Senãomantivessetodosjuntosem seus pensamentos, teria uma competição do pior tipo. Lena tentouprestaratençãonateleconferência.

–LynnWitherspoonestápedindomaisprazo–disseJohnquandoLenavoltou a prestar atenção na conversa. –Disse que chegarammuito pertodo que chama de “provável suspeito”. Mas eu discordo, não devemosesperar mais. Vamos iniciar o processo ao meio-dia e quem estiverencarregadodemonitoraracontasóreceberáacon irmaçãode initivadobancoporvoltadas trêsda tarde. Seadiarmosmais, comoosbancosnasilhasCaymãfechamàscinco,teremosdeesperarmaisumanoite.

–Não–reagiuLena.–Quemdisseisso?–perguntouJohn.– Fui eu. Lena. Não quero esperar mais uma noite. Por favor. Vamos

prosseguircomopagamento.– Aqui éMike. Concordo com ela. Se o pagamento for feito nomesmo

período em que eles pegarem o tal provável suspeito, qual seria oproblema?

– Nenhum, exceto a perda do dinheiro – respondeu John. Houve ummomentodesilênciona linha.–Então,podemosdar inícioaoprocessoaomeio-dia?

Johnfezessamesmaperguntaacadaumerecebeurespostas irmesdetodos, apoiandoopagamento. Janet acrescentouum “eugostariaque issoacabasse logo” a seu “sim”.Mike encerrou a teleconferência dizendo queele e Po receberiam com prazer os pais que se sentissem melhor nacompanhia dos outros. Lena gostoumuito do convite.Mas, quandoDavidentrou, vindo da cozinha, disse que a última coisa que queria fazer nomundoerasejuntaraosoutrospaisàesperadenotícias.

–Eoquemaispoderíamos fazer?–perguntouela, levantando-separasevestir.

–Nãosei.Levantar provocou náuseas em Lena novamente e ela foi para o

banheiro. Não restava muita coisa para vomitar. David a acompanhou,parandonaporta.

–Achaquepegouumagripeoualgoparecido?–perguntou,semdaro

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menorsinaldequepoderiaimaginarque“enjoomatinal”fossearesposta.Lena balançou a cabeça enquanto lavava a boca e começou a escovar osdentes. Olhou para seu rosto no espelho, para amesma imagem que lherevelara a gravidez pouco antes. Não houve nenhuma revelação. Eraapenas uma mulher com a escova na boca, uma ilha desaparecida, ummarido ainda distante demais dela para receber a informação maisimportantequeumcasalpoderiacompartilhareumanovavidacrescendoemseuventre.Sentiuquesua imagemnoespelhoerapuxadaemmuitasdireções, como um re lexo nos espelhos que deformam a gente nosparques de diversões, e que poderia se desfazer ao menor movimento.Mordeuascerdasdaescovacomforça,comoseassimpudesseseguraraspontas.

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Vinteetrês

CHASENÃOTINHAMUITOAfazernoserviço,umahoradepoisdeentrar.Saiudohospital para tentar contato com o paimais uma vez, porém, novamente,caiu na caixa postal. Chase repetiu para si o que vinha dizendo amanhãinteira, que estava pronto para desempenhar seu papel e enfrentarqualquer di iculdade que surgisse. Mesmo assim, gostaria de conversarcomopai.

Eraimensaapaixãodopaipeloprojetoemandamento.Nãoerasóporcausadodinheiro,Chasesabiabem.

– A grana é só o inal da história – dissera ele ao ilho na época doplanejamento.–Oquemeinteressamesmoéaexecução.Queroestarbemnomeio de tudo, ter as crianças ameus pés e os pais nasminhasmãospara jogá-los deum ladopara outro.Queroouvir o roncodomotor emesatisfazer sabendo que tudo aconteceu por minha causa. E sua também,claro.

Chase esperava que o pai estivesse aproveitando a aventura tantoquanto imaginara.E, emrelaçãoaodesempenho teatraldo ilho, eraumapenaqueelenãopudessevercomoorapazestavasesaindobem.Chaseentrou no hospital revigorado pela simples lembrança do homem quesempreforatãoimportanteparaele.

Quarenta e cinco minutos depois a cortina se ergueu para Chase. Decara, pensou que os dois homens fossem vendedores. Usavam ternosescuros, um deles carregava uma pasta, e vinham do elevador do porão.Vendedoresfamiliarizadoscomohospitalcostumavamusaragaragemdosubsolo e passar pela lavanderia para chegar aos elevadores principais.Por isso Chase os ignorou até que o abordaram e um deles mostrou odistintivo,abrindoacarteira.

–Sr.Collins,souoagenteAllen,eesteéoagenteToomey.SomosdoFBI.Queremoslhefazeralgumasperguntas.

Allen era mais velho, provavelmente cinquentão, meio calvo. Toomey,aos 30 e poucos anos, tinhapele clara, olhos azuis e cabelo preto grosso.Chaseassociouaduplaaeleeseupai.

–FBI?Doquesetrata?– Seu supervisor nos autorizou a usar a sala dele. Venha conosco e

explicaremos.– Claro, mas… – Chase havia preparado a fala, caso a abordagem

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ocorressenohospital–eunãoseidenadaarespeitodaadministraçãodohospital.Sófaçoomeuserviço.

–Nãotemnadaavercomohospital,Sr.Collins.Chaseexibiuseuarconfusomaiscaprichadoeacompanhouosagentes

atéasaladeseuchefe.Sentounacadeiradosupervisordalavanderiaeosagentesseacomodaramdooutro ladodamesa,de frenteparaele.Chasegostoudoarranjo.Davaaimpressãodequeelecontrolavaacena,nopapeldeinquisidor.Noentanto,sabiaquenãopodiaexagerar,seexibir,mostrarsegurançaexcessiva.Precisavademonstrarcertoreceio.

–Temalgoavercomimpostos?Eufizadeclaraçãodesteanoe…– Nada a ver com impostos – disse Toomey. – Quem trata disso é a

Receita.Queremossaberarespeitodeumcomputadorregistradoemseunome.

–Ah.Maseunãotenhocomputador.Nãoprecisamosaquie…– Em casa. Estamos falando do seu computador pessoal. Temmais de

um?–Não.Tenho telefone celular. E umgravadorTiVopara os programas

datelevisão.Chase viu que a cena se desenrolava conforme planejara. Bancava o

inocente,tentavaajudar.Avaliavaossujeitoscomoavaliaraospais.Omaisvelhoprovavelmente icariacontentecomafaltadefamiliaridadedeChasecom computadores, poderia se identi icar com ele. Impressionaria ocabeludocomoobompaidefamíliaqueera.

–Sóocomputadorinteressa–disseAllen.–Vocêéoúnicooperador?–Operador?–Oúnicoqueusaomicro.–Não,minhaesposatambémusa.–Eháoutraspessoascomacessoaele?–Não.–Entãotudoqueexistenocomputador,nodiscorígido,pertenceavocê

ouasuamulher?– Suponho que sim. Aparecem uns pop-ups, clico onde mandam e

ganho… – Ele parou de falar e fez cara de preocupado com a maiorcompetência. –Ai, Jesus.Euentroemsitespornôs, àsvezes.Masnãonosruins,comcriançaseoutrasmaldades.Sónormal.Foiporisso…?

Toomeysempreassumiaaatitudedequeumsuspeitoeraculpadoatéprovaemcontrário.Assimeramaisdi ícildeixarumculpadoescapar.Seosujeito o encurralasse com sua enorme inocência, se ela fosse óbvia,

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Toomey desistiria, relutante. Contudo, se houvesse um sinal de inocênciaaqui,outroali, ele continuariaaacharqueera culpado.O talCollinsdavaas respostas certas, mas na cabeça de Toomey nada soava genuíno.Decidiuquechegaraahoradeinterferir.

– Descobrimos atividade potencialmente criminosa relacionada a seucomputador.Nós…

–Atividadecriminosa?–Nãopossoespeci icar.Outrosagentesestãorealizandobuscasemsua

casaenquantoconversamos.–ToomeyesperouareaçãodeChase,maselenãofalounada.Opolicialnãosoubecomointerpretarofato.

–Minhaesposa…–Oquetemela?–Elanãosabedossitespornôs.Juroqueétudo…bem,normal.– Seu computador será con iscado e examinado em outro local. Desde

quenãohajaatividadecriminosa,respeitaremossuaprivacidade.Chase olhou para baixo, receoso, pensou, mas sem parecer um

criminoso apavorado. Orgulhou-se de seu bom desempenho. Torcia paraque suspeitassem um pouquinho dele, pois planejara uma bela respostapara quando lhe dissessem que seu micro havia sido invadido porsequestradores.

Allenfalouemseguida:– Gostaríamos que nos acompanhasse até nosso escritório. Temos

outras perguntas. Pode chamar um advogado e pedir a ele que nosencontrelá.

–Umadvogado?Achaqueeupreciso?–Dependedosenhor.Sãoperguntasderotina.– Bem, não conheço nenhum advogado. Podem fazer uma para mim?

Assimtalvezeusaibaseprecisodeadvogadoounão.–Umaoquê?–Umapergunta.Dasquevocêspretendemfazerlá.–Seucartãodepontoindicaqueentrouaquiàs8h28,nosábado,esaiu

às16h31.Ficoudentrodoprédiootempointeiro?–Sim.Precisoficar.Possoalmoçarnorefeitório,masnãosair.–Enãosaiu,nosábado?–Não.–Chaseviuqueosagenteschegavamao inaldaquelaparte.–Se

foremquestõesdessetipo,nãovejonecessidadedeadvogado.Toomeyainda tinhadúvidas,maserampoucas.Felizmente,nestecaso,

tinham um computador, não precisavam tirar conclusões com base em

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palpites. O sujeito era duro na queda. Quando se levantaram para sair,tentouimaginarcomoChaseficariadeperuca.

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Vinteequatro

SARAH JÁ ESTAVA ACORDADA QUANDO a clareira se iluminou. Foi até a janela eobservouabeiradadamataqueoscercava.Viuosfragmentosdosacodosanduíche de Linda sobre uma pedra, mas fora isso a clareira pareciacalma.Precisavaurinarcomurgência.Franklinsussurrouparaela:

–Estávendoalgumacoisa?–Não.Ele se levantou para ir ao outro quarto. Tirava a caderneta do Sr.

EverettdamochilaquandoSarahseaproximou,foiatéaportaeaabriu.–Oqueestáfazendo?–perguntouFranklin.–Precisofazerxixi.NafamíliadeFranklinpreferiamdizer urinar,maselenãose importou

comaversãoinfantil.Eletambémqueriafazerxixi.–Voucomvocê,paraficardeguarda.A gramada clareira brilhava, úmidade orvalho.Umapomba arrulhou

suavementeemesmoassimSarahpulouassustada.Nãodeixoudeiratéobanheiro, porém, onde se aliviou em tempo recorde, sentada nas tábuasduras e frias. Franklin foi em seguida, e quando saiu Tommy e Lindaesperavam,tremendo.

No fundodo isopor, encontraramumpacote demuf ins, que serviramde café da manhã. Franklin examinava a caderneta, intrigado. Não seassemelhava em nada à escrita espelhada da história que havia lido.Revistou a mochila e a cabana, em busca de um espelho, mas não deusorte. Os outros, esforçando-se para ingerir os bolinhos ressecados, oouviramfalandosozinhoenquantoandavadeumladoparaoutro.

–…se for escrita espelhada, então precisaremos descobrir se a senhaestá em algum lugar ali. Quando conseguir a senha… – Seu pensamentopelojeitoterminavaali.

–Oquefoi?–perguntouLinda.–Aímandaremosume-mailparanossospais.Todas as crianças pensaram amesma coisa. Sarah foi a primeira a se

manifestar.–Nãoseiosendereçoseletrônicosdosmeuspais.Minhamãeosanotou,

masficaramnaminhamala,nocarro.– Os meus endereços também icaram no livrinho do computador –

disseLinda.

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Franklinfalou,emburrado:–Sóseioendereçodaminhamãenaigreja.Enãotenhocertezaseela

vêasmensagenscomfrequência.– Acho que eu me lembro do e-mail da minha mãe – disse Tommy,

emboranãodemonstrassemuitaconfiança.– Bem, ainda nem conseguimos descobrir a senha – disse Franklin,

olhandoemvoltadacabana.–Oquepoderíamosusarcomoespelho?Todos procuraram super ícies brilhantes, mas no chalé rústico não

havianenhuma.– No vidro da janela, pelo lado de fora – disse Sarah. Os outros

hesitaram um pouco, sabendo que, se saíssem, estariam vulneráveis aosperigosexternos.Sarahpercebeuomedo.–Duvidoqueursosandemporaíduranteodia.Ontemnãovimosnenhum,certo?

Alembrançadoanimalenormenajanela,nanoiteanterior,pesoumaisque o comentário de Sarah. Não queriam se arriscar por um palpite.Franklinresolveuoimpasse.

– Serão apenas algunsminutos. Não temmais comida lá fora. Foi porissoqueoursoveio.Paracomer.

Emmeioaolharesnervosos,assustados,osquatrorodearamacabanaatéencontraremumajanelanasombra,capazdere letirbemossímbolosda caderneta. Franklin a ergueu, mas o texto parecia ainda maisimpenetráveldaquelejeito,nãopareciamletrasdoalfabeto.

–Viredecabeçaparabaixo–sugeriuTommy.Funcionou. Um tipo de escrita espelhada surgiu quando viraram a

cadernetadepontacabeça.Naprimeirapáginahaviaumtítulo,“Contatos”,seguido dos nomes Chase, Marshall, Intermediário, Gursy e Farrow. Masdepois de cada nome, em vez de telefones, havia uma combinação denúmeros e letras, novos códigos. Franklin virou a página. O título era“Sequência”.

–Oque é sequência? – perguntouLinda.Os outros não sabiam.Haviadatasehoráriosabaixodotítulo,portantoSarahdeuseupalpite.

–Achoqueéquandoascoisasacontecem.Eles leram coisas como “pegar van”, “pintar van”, “pegar Trainor” e

“troca das crianças”. Linda murmurou seu sobrenome quando o viuescrito, “Rosten”.Osoutros localizaramseus sobrenomesnapágina.Apósum momento de silêncio, as crianças entenderam que haviam sidoescolhidascomoalvoeseguidas.

–Eleplanejoutudo–disseSarah.

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–Oque é isso? – perguntouTommy, apontandopara umapalavra emletrasgrandes,sublinhada:“RESGATE”.

– É o dinheiro que pagam aos sequestradores – respondeu Franklindevagar,compreendendoquealguémprecisariapagarporsualibertação.

–Equempagaquem?–perguntouTommy,genuinamenteconfuso.– Nossos pais – respondeu Sarah. – Nossos pais precisam pagar para

elesnossoltarem.TodosospensamentossevoltaramparaoSr.Everett.Liamacaderneta

dele, mas seu nome não aparecia. Provavelmente continuava no píer,morto.Comopoderiasoltá-los,setinhamorrido?

–Vocêfaloueles.Temmaisdeum?–quissaberTommy.–Outrosvirãoparacá?–Ninguémsabiaaresposta.

Franklin não quis pensar nisso e virou a página. Não havia título. Aprimeira linha dizia: “Nome da op.”, seguida de “Arno”. Na segunda, “Op.Capt.”, seguida de “Pensador”. Outras linhas continham palavras semsentidoparaascrianças:“rapto”,“reconhecimento”,“duraçãodamissão”e“compensação”.

A última página continha o título “Criptogra ia” acima de palavras enúmerosquenão faziamomenorsentidoparaaquelascrianças.Franklinfechouacaderneta,decepcionado.Elesvoltaramparaaportadacabana.Osol, totalmente à vista agora, aquecia o local. Sarah não queria entrar nacabana.

–Vamos icaraquifora.Seaparecerumurso,corremosparadentrodacasa.

–Nãoéumacasa–retrucouLinda.–Chalé,ousejaláoquefor.Sarah, Linda e Franklin resolveram continuar ali, ao sol. Tommy

também queria,mas antes pensou em tentar a sorte com o notebook denovo. Ansiava por ligar o micro, ver a tela, sentir o teclado e arriscaralgumas senhas. Herdara do pai o jeito para lidar com máquinas eequipamentos, sempre considerara computadores uma questão detentativa e erro, umaespéciede abstração.Quandoo computadorde suacasa travava, ele não icava parado pensando, pressionava as teclas,desligavaeligavadenovo,chegavaatéabaterneledeleve,comopunho.

SaraholhouparaosacoplásticorasgadodosanduíchedeLinda.Estavadespedaçado,comrestosdecomidagrudados.Amenina,paradaaliperto,soltou um gritinho, “eca!”, e Sarah olhou para o mesmo lugar. Havia ummonteenormedefezesdeursoespalhadasnumtrechodegrama.Sarahe

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Linda se aproximaram de Franklin, que, sentado em outra pedra,continuava concentrado na caderneta, como se olhar para ela bastasseparadecifrarseuconteúdo.Depoisdealgumtempo,ergueuosolhos.

– Acho melhor ver o que aconteceu com o senhor Everett – disse,hesitante.–Talveztenhaalgonacarteira,umpapelcomasenha,seilá.

– Pode ser – concordou Sarah, pensando nos perigos contidos nadescidaatéolaguinho.–Euqueriapegarocelulardele.

–Isso–disseLinda.–Porqueeleojogoulonge?–Eledeixoucair–retrucouFranklin.–Nadadisso.Viquandoelejogouocelularnolago.Franklinnãodiscutiumais, concentrando-senoquepoderiahavernos

bolsosdoSr.Everett.OgritodeTommy,dentrodacabana,osapanhoudesurpresa.

–Ei,venhamaqui!Debruçado sobre o notebook, o menino esperou até que todos o

rodeassemparamostrarqueconseguirachegaràpáginainicial.–Comofezisso?–perguntouFranklin.–“Pensador”.Useiessapalavraedeucerto.–Porquetentouessasenha?–indagouLinda.–Estavanacaderneta.Tenteioutraspalavras,masnãofuncionaram.– E agora, como fazemos para mandar o e-mail? – perguntou Sarah.

Nenhumdelessabia.Nãoidenti icaramosíconesnapáginainicial.Tommyclicouemalguns.Umdelescontinhaumaplanilhacomvaloresemdólares.Outrapareciaserumprogramadee-mail,masprecisavadesenha.Dessavez,“pensador”nãofuncionou.

–Estámuitoestranhoparamim–disseFranklin.–MeucomputadorédaApple,umMac.

–Achoque este é o botão para a internet – disseTommy, clicandonoíconedoInternetExplorer.

Depois de algum tempo, surgiu na tela a mensagem de página nãoencontrada e um aviso de que ela poderia ter sido removida ou que nãohaviaconexãodisponível.Emseguidaumabolhasurgiudabarra inferior,informando:“Redesemfionãoencontrada.”

Isso tudo era ummistério para as crianças,mas Franklin argumentouque, como o celular, se saíssem talvez conseguissem acesso a uma rede.FranklineTommyseguraramonotebookabertojuntos,saíramdacabanaesubiramnumapedra,mastambémnãoconseguiramconexãoali.

–O lago– lembrouSarah.Lindaaencaroucomolhos suplicantes,pois

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nãoqueriavoltar lá. Sarah tambémnão,mas fazia sentido.–Era láqueocelulardosenhorEverettfuncionava.

Ainda carregandoonotebook aberto, como se fosseumaoferenda aosdeuses, os quatro desceram cautelosamente até o laguinho. De longe, acenaerainsólita:avastidãoselvagemdasmontanhasAdirondackemtodoo seu esplendor matinal, pontilhada por quatro crianças e um artefatotecnológico capazde resgatá-las.Quando chegaramao lago, o cenário erasurreal.O Sr. Everett continuavaondeo tinhamdeixado,masdois corvosenormesbicavamasáreasexpostasdocorpo.Olharamparacimaquandoascriançaschegaram,masnãovoaram.

O choquede ver o sangue espalhadoparalisouos quatro, que icaramespantados demais para dizer qualquer coisa. Linda inalmente gaguejoualgumaspalavras,rompendoosilêncio.

–Estãocomendoele!Sarahdeu as costas para a cena e olhoupara o notebookqueTommy

segurava. Lembrou-se de quando viu o Sr. Everett debruçado sobre omicro,sobsualuzfantasmagórica,tardedanoite.

–Oqueéaquiloalido lado?–perguntou,examinandoonotebookcomatenção. Tommy procurou também, puxou o que parecia ser o acesso aumaaberturanalateralelocalizouapequenaantenachata.Atelamudounahora.

–Ei,aquitemsinal.– Satélite – disse Franklin semmuita certeza quando se reuniram em

volta damáquina quasemágica. Eramuito di ícil enxergar coisas na tela,por causa da forte luz solar.Mas havia, sem dúvida, um portal com umabarra conhecida no alto. A questão era como proceder. Tommy sabiaacessarsuacontanoYahoo,masquandoapáginadoprovedorapareceu,elenãosabiasuaprópriasenha.

–Meuirmãoabriuacontaparamimeasenhaficanamemória.FranklinusavaumacontadaApple,masnão lembravacomoacessá-la.

Pelo jeito todos dependiam dos atalhos e das senhas salvosautomaticamenteemseuscomputadores.Sarahteveumaideia.

–Facebook!–gritou. –Minhamãe temper il lá.AgentepodemandarumamensagempeloFacebook.

–Aminhatambémtem–disseLinda.Encontraram a página do Facebook com facilidade e começaram a

escrever,masnãosabiamoquedizer.–Avisequefomoscapturadoseprecisamosdeajuda–sugeriuFranklin.

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–Ondeestamos?–perguntouSarahquandoTommycolocouonotebooknochãoecomeçouateclar.Aperguntaospegoudesurpresa.

– Longe do Acampamento Arno – respondeu Franklin. – Acho quepassamosporAlbania.

–Albania?Comoseescreveisso?Franklin ia responder quando o grito de um dos corvos cortou o ar e

assustou os quatro. Os dois pássaros abriram as asas enormes e voarampara longe dali. Quando se recuperou do susto, Sarah voltou a teclar emandou um e-mail. Linda fez o mesmo, escrevendo praticamente asmesmascoisasqueaamiga.

Elesnãosabiamoquemaispoderiamfazer,masnãoqueriamfecharonotebookoudesligá-lo.Dependiamdeleparasobreviver.Franklinforçouavistaeviuoindicadordebateria.Sabiaoqueeraepercebeuqueacargabaixaramuito.Avisouosoutrosedesligouomicro.

A lagoa estava calma.Dali não viamdireito o corpo ensanguentadodoSr. Everett, mas dava para ter uma ideia do que os corvos haviam feito.Tinham resolvido alguns problemas, enviado um pedido de socorro paraquempodiasalvá-los,semsaber,porém,seasmensagensseriamlidaseseospaisteriamcomofazeralgoapartirdaquelasinformações.

Quando voltavam para a cabana, Sarah percebeu que Franklin seenganara.

– Não é Albania. É Albany, capital do estado de Nova York – disse,interrompendoacaminhada.Franklinconcordoudeimediato.

–Bem,achoqueelesvãoentender,né?Esperoquesim.Ninguém podia garantir, mas só lhes restava alimentar esperanças.

Precisavam acreditar que os pais receberiam as informações enviadas,olhariamparaomapaediriam:“Claro,elesestãoali.”Eviriambuscá-los.Osolmatinalos aqueciademaneira agradável,mas seospaisnãoagissemdepressaanoitecairiadenovo,tenebrosa.

Sarahavalioucomrealismoaschancesderesgate.Lembrou-sedomarde lorestasqueoscercava.Sentiuaslágrimasescorrerempelorosto.Suamãe era muito inteligente e seu pai muito forte, capaz de longascaminhadas.Elesdariamumjeitodesalvá-la.Sabiadisso.Tinhacerteza.

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Vinteecinco

DAVIDDESLIGOUOCOMPUTADOR,SAIUdoquartoeencontrouLenanoquintal.–Temmuitaporcarianainternet.Seeufossevocê, icarialongedarede

–disseele,olhandoemtornotentandoidenti icarfotógrafosescondidosnomato.–OFBIvailigarseapareceralgumacoisa.

–Quetipodeporcaria?–Maldades a respeito de nós e das crianças. Paródias no YouTube. O

que quiser. A rede deveria servir para ajudar a resolver situações comoesta, não é?Minha nossa. Todos os usuários de computadores domundodeveriam sair por aí com as fotos das crianças, em vez de engolir ummontedelixo.

– Não vou acessar – repetiu Lena automaticamente, como se mal otivesseescutado.

Na verdade David explorara a repercussão do caso na internet, paraversehavianovidades.Seuex-chefenãoeraoúniconaDellquesabiadocaso.Emblogs,artigosecomentáriossobravamcalúniasdetodosostipos,acusações de atividades criminosas diversas por parte dos pais, teoriasconspiratórias segundo as quais eles haviam executado o sequestro embene ício próprio, absurdos de todos os tipos.Mas nada, David veri icou,sobresuasescapadascomTriciaSands.Sóqueissonãootranquilizou,poisaindanão se livraradoproblema.Resignara-se a enfrentarodia emqueteriadeencararsuaadorávelesposaecontaraelaoqueacontecera.Nãoqueria que esse dia chegasse enquanto Sarah continuasse desaparecida,mas, ao navegar pela internet, quase preferiu ser exposto publicamente.Nãoviaahoradedeixarparatrásaqueleepisódiodesuavida.

– O Acampamento Arno fechou pelo resto do verão, por causa darepercussão–disseele,finalmente.

–Ótimo.–Como?–Sei lá.Odeioaqueleacampamento.Nãoconsigonempensarnele.Por

quenãodeixamosSarahfazeroqueelaqueria?Porquenãoamandamosparaoacampamentodefutebol?

–Lena,preferimosdeixarqueelaescolhesse.Eelaescolheu.–Querpôraculpanela,agora?–Comoassim?Lenapercebeuque seafastavadosargumentos razoáveis,mas sentiu-

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sebemassim.– Nós a izemos tomar essa decisão, lembra? Ela só pensava no

acampamento de futebol, mas lá ela só passaria o dia, não dormiria, equeríamosasduassemanassóparanósdois.Jáesqueceu?

– Não. Mas sei que senti orgulho por nossa ilha, pequena eindependente, ter analisado os prós e os contras e escolhido oAcampamentoArno.

– Nada disso, David. Por que ela pretendia usar chuteira lá no Arno?Hein?

Lena sentiu a torrada pesar no estômago e temeu outra crise denáuseas.Masasensaçãoruimpassou.Elacedeu.

–Sintomuito,achoqueestouenlouquecendo.Oqueelesdisseram?Quereceberíamosnotíciasàstrês?

–Disseramque seria apartir das três,mandandoodinheiro aomeio-dia.

Lenacalculouquefossem11h30.Nãoqueriamaispensarnotempo.–VouatéacasadafamíliaWilliamsestatarde.–Nãopretendoaparecerlá.Confraternizarcomasoutrasvítimas?Nem

pensar.–Eoquemaispodemosfazer?David não sabia a resposta. Lena sentiu novamente que precisava se

afastardele.Entrouemcasaesentiuumapontadanoestômagoaoverosrestosdocafédamanhãdomarido.Saiudacozinhaefoiparaoquarto.Ocomputador num canto mais parecia uma gárgula ameaçadora.Aproximou-se dele e olhou para o monitor e para o teclado. Um Post-itcolado na parte de baixo do monitor, com a letra de Sarah, continhainstruções para Lena se tornar sua amiga no Facebook. Imaginou que osmalucos da internet podiam ter invadido o per il da ilha e causadoinúmerosdanos,masnãotevecoragemdeentrarnapágina.Olhandoparafora, viu dois homens de uma equipe de reportagem jogando frisbee. Aliberdadedaquelabrincadeiraaenojou.Deitou-senacamae ixouosolhosno teto, tentando relaxar, manter a imensidão do mundo fora de suasparedes,paranãoenlouquecer.

Permaneceuemestadoquasecatatônicopor15minutosoumais,atéotelefonetocar.Sentou-senacamaeatendeudepressa.

–Alô?– Sra. Trainor? Aqui é Lynn Witherspoon. – Lena precisou de um

segundoparalembrarquemera.Preparou-separamásnotícias.

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–Poisnão?–Estamosinterrogandoodonodocomputadorusadoparaenviarose-

mails que vocês receberam. Não quero dar falsas esperanças. Talvez eletenhasidoenganadopelosverdadeirossequestradores.Masvamostentarfotografá-lodeperuca.GostaríamosquevocêseosoutrospaisquefalaramcomotalJ.D.vissemafoto.

–Comoassim,vãotentar?–Bem,eletemodireitodeserecusar.–Sei.–Mastemcooperadoplenamenteatéagora,portantoachoqueteremos

afotoembreve.PlanejairàcasadosWilliams?–Acabeidefalarsobreissocommeumarido.Creioquesim.– Bem, poderia esperar até enviarmos a foto? Queremos que a veja

sozinha,semosoutrosemvolta.–Certo.Quantotempovaidemorar?–Nãoseibem.Possopedirumfavor,Sra.Trainor?–Diga.–Achaquepoderiaconvencerosoutrospaisaretardaropagamentodo

resgateporalgumtempo?–Porquê?– É uma questão estratégica. Se realmente localizarmos J.D. e vocês

realizarem o pagamento, mas ele for para outra pessoa, talvez não sejapossível prender o outro envolvido. Mas, se ainda não tiverem feito opagamentoeJ.D.confessar,podemospegaraquadrilhatoda.

Lena reagiu à voz rascante da promotora domesmomodoque no diaanterior. O incômodo, somado à incerteza e ao raciocínio dependente detantashipóteses,deixouLenafuriosa.

–Creioqueogrupojátomouadecisão.Eutomei,pelomenos.– Entendo. Tudo bem. Avisaremos caso ele aceite tirar a foto, que

seguirápore-mail.Atélogo.Amulher desligou e Lena encontrou David na cozinha. Ele escutara a

conversa.–Achaqueconseguiráidentificá-lo?Lembra-sebemdesuaaparência?Lena não sabia responder àquelas perguntas. Ou melhor, não queria.

Aguardaria a foto. Tinha certeza de que o reconheceria imediatamente.Nãoporumprocessoracional.Seriaemocional.AvisãodeJ.D.semdúvidaaarrepiariainteira.Assim,teriacerteza.

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Phil Rostenkowski atendeu à chamada de Lynn Witherspoon. Sentiauma dor de cabeça lancinante, mal conseguiu se concentrar no que eladizia. Aceitou examinar a foto com Janet, mas tinha certeza de que nãoseriacapazdeidentificarJ.D.

–Eporquenão,Sr.Rostenkowski?–Jáfalamosarespeito.Nãolembramosdequasenada.Estávamosmais

preocupados com nossa ilha. Janet nemmesmo se lembra que ele tinhacabelocacheado.Aslembrançassãoumgrandeborrão.

Lynn pediu que adiassem o pagamento do resgate,mas Phil enfatizouquemandariamo dinheiro omais rápido possível. Depois do telefonema,elemassageouastêmporascomforça,esperandoqueissoatenuasseador.Janet tomara outro remédio para se acalmar e fora para a cama. Philpensou em fazer o mesmo, mas temia não conseguir pensar direito setomasseocalmante.Precisavamanteralucidez,aperspicácia.

Foiatéoquarto.Janetacordavaeabriuosolhosquandoeleentrou.–Quemera?–perguntouela.–Lynn.–Como?OuviramPaultossirnocorredorantesdeentrarnoquarto.–Oqueera,pai?– Eu estava contando para sua mãe. A promotora federal assistente,

LynnWitherspoon, ligou. – Ele se virou para Janet: – Estão interrogandoumsuspeito.

–Quem?–quissaberJanet,sentando-senacama,alerta.–Nãodisseramonome.Seiapenasqueestãointerrogandoalguém.Foi

oqueeladisse.Vãotirarumafotodeledeperucaemandarparanós.–Nãovamosconseguiridentificá-lo.–Jáavisei.Maselaquermandarassimmesmo.–Bom,éumaboanotícia,nãoacham?–perguntouPaul.Phil e Janet balançaram a cabeça a irmativamente, mas nenhum dos

dois pareciamuito animado. Phil levou os dedos às têmporas de novo. Adordecabeçaeradematar.

SheilaWalkerhesitavaemrelaçãoàsuacapacidadederelacionarafotoaorapazqueraptaraseufilho.

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– Eu estava com a cabeça cheia naquela hora. Pensava em Franklin,numareuniãoimportante.J.D.mepareceuumapessoamuitogentil.Sómeimporteicomisso.Franklinprecisadeadultoscompreensivosporperto.Orapaztransmitiuumaboaimpressão.

Lynn nem chegou a pedir a ela que adiasse o pagamento do resgate.Duas famílias já tinham decidido pagar e ela sabia que a decisão dosWilliamstambémeradefinitiva.

Sheila desligou, encontrou John na cozinha e fez um resumo daconversa. Iam discutir o caso quando receberam outro chamado, deMarshall Rogovin, chefe de tecnologia da informação do Citibank. EleestavaligandoparapassaraJohnumrelatóriosobreainvestigação,antesdeenviá-loaoFBI.

– Lamento não ter notícias melhores para você, John. Nossa análisemostraqueoendereçodeIPdeondesaíramose-mailsfoipirateado.

Johnsabiaoqueaquilosignificava,masprecisavatercerteza.–Alguém invadiuesse computadoreousoucomobaseparaenviare-

mails,certo?Portanto,elenadatemavercomahistória,nãoé?– Provavelmente, não. Devem ter escolhido alguém ao acaso, uma

pessoa semmuita proteção. O FBI vai desvendar essa parte, se é que jánãofizeramisso.

–Certo.Obrigado,Marshall.TemonomedealguémdoFBIparaenviaromaterial?

–Sim,podedeixar.Temmaisumacoisa.–Oqueé?– Localizamos tráfego regular de um terceiro computador para um

endereçodeIPdogrupodospais.–Paratodosnós,querdizer.Ose-mails?– Não, antes deles. Para um micro. Dos Rostenkowski. Foram três ou

quatromensagens,datadasdemaio.–Oquequerdizer?Elesestãoenvolvidos?–Não.Acreditoqueosbandidosestavamtestandooesquema,tentando

ver se conseguiam fazer a coisa funcionar bem. Isso signi ica que não foiumaoperaçãorealizadaàspressas.Tudofoiplanejadocommuitocuidado.

–Puxa,issonãoénadabom.–Emaisumacoisa,John.–Diga.– Vamos nos dedicar ao caso ainda mais agora. Passou a ser

considerado um problema do banco, e não apenas uma questão pessoal

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sua.–Comoassim?– Sabe,minha tarefa é ser paranoico. Com tanta so isticação, temosde

presumir que os sequestradores não são um bando de idiotas sentadosnum bar pensando numa maneira de ganhar 1 milhão de dólares semesforço.Precisamossuporqueo fatodeumadasvítimasserodiretordaárea global de um dos maiores bancos do mundo não foi aleatório. Nãosabemosaondepretendemchegar,masprecisamostomarcuidado.

JohnnãogostoudotomdeRogovin.–Oquequerdizer,Marshall?–Estoudizendoqueéumsequestro.Masénecessárioexaminarocaso

por outro ângulo. Aceitar que talvez haja umaquestão diferente por trásdetudo.Suspeitardeumardil.

Johnnãoquis fazermaisperguntas.Começavaaentendersuaposição.Nãoduvidavamnemdescon iavamdele.Mas,parasuaprópriasegurança,o banco precisava mantê-lo a distância, afastar-se de um de seusexecutivos.Aperdado ilhodeumdiretoreraumatragédia.Masobancotinharesponsabilidadesbemmaioresdoquecomumexecutivoeseu ilho.Havia depositantes, investidores, acionistas e uma diretoria. Se alguémqueria atacá-los usando o sequestro como fachada, bem, precisavamprimeirovigiaresseexecutivo,depois livrar-sedele.Apósumadespedidatensa,Johndesligou.Omesmopensamentoveioàsuamente:porquenãopenseinissoantes?

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Vinteeseis

APERUCASURPREENDEUCHASE.Passara15ou20minutossentadocomToomeyeAllen, tendooque consideravaumdesempenhobrilhante, equilibrandoinocência e espontaneidade com falas genuínas e sinceras sobre seusilhos. Quando revirassem as entranhas de seu computador edescobrissemquefora“pirateado”,elesabiaqueaquiloquemostravaaosagentesfariasentido.Nãoprecisavasernenhumespecialistaemtecnologiapara perceber que atividades criminosas estavam sendo cometidas apartirdeseumicro.

No entanto, quando Toomey se ausentou por algunsminutos e voltoucomaperucanamão,Chasesaiudopersonagemporummomento,comoseestivessenomeiodeumaapresentaçãoealguémnaplateiaespirrassealto.Descartaraaperucanolocalexatoordenadopelopai.Comoahaviamencontrado?Deu um jeito de se recompor logo,mas não gostou nem umpoucodanovidade.

–Doqueestávamosfalando?–perguntouaAllen.–Computadoresnoserviço.– Certo. Não preciso usar. Já disse. Os supervisores do meu

departamentoosutilizamparacontrolaromovimentodalavanderia,paraver se os prestadoresde serviços sãohonestos, essas coisas.Mas eunãopassodeumtrabalhadorbraçal,nãoprecisousarcomputador.Conheçoodaminhacasa.Seimexernele.Foraisso,mesintoperdido.

Toomeysentouepôsaperucasobreamesa.Chasesabiaqueprecisavasemanifestar.

–Issotemalgoavercomigo?– Talvez – retrucou o agente, sem tirar os olhos de Chase. – Você é

quemsabe.– Pensei que fosse uma pele quando vi. Fiquei tentando identi icar o

animal.Vocêssãocaçadores?ToomeyeAllenbalançaramacabeçanegativamente.–Gostaríamosde tiraruma fotosuacomaperucasenãose importa–

disseToomey.Chaseriu,nervoso.–Queremqueeuuseisso?–Sim.–Oquetemavercomocomputador?

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– Não sabemos direito. Talvez nada. Digamos que é uma espécie deexperiência.

Chase percebeu que o tom da conversa mudara. Chegara a hora debancarosério.

– Bem, quanto a isso eu não sei. Não é o mesmo que responder àsperguntas,comovocêsfalaram.Nãoqueromemeteremproblemas.

–Semeteremproblemas?–perguntouAllen.–Nãomeentendammal.Nãoestouacusandovocês.Masandei lendoa

respeito de prisões indevidas, eles condenam um sujeito por assassinatooualgoassim,aítestamoDNAanosdepoisedescobremqueerainocente.Etudocomeçouporiniciativasestranhasdospoliciaisoudopromotor.Aíoquadro…seilá.

–Achaestranhopedirmosissoavocê?–perguntouToomey.–Nãodepropósito.Oquepretendemfazercomafoto?–Vamosmostrá-laaalgumaspessoas,maisnada.–Quepessoas?–Nãopodemoscitar.Semaparentar,Chasesentiu-sealiviado.Viuaíumasaída.–Bem, lamento,masnãovou tirara foto.Nãoquero.Nãoantesdeum

advogadomedizerqueestátudobem.–Temadvogado?–Allenointerrompeu.–Não.Nuncaprecisei, sóquando compramosa casa.Masnem lembro

quemera.–EquetalconsultarasPáginasAmarelasparachamarum?Chaseriudenovo.Estavasendomaisfácildoqueeleimaginara.–NãoesperamqueeuescolhaumadvogadonasPáginasAmarelas,né?–Eoquepretendefazer?–Voutelefonarparaminhamulher.Afamíliadelasabelidarcomessas

situações.Toomey e Allen o encararam, sabendo que estavam sendo testados.

Chasepercebeua reação e se orgulhou.Decidiu levar a vitóriaumpassoadiante.

–Sabemdeumacoisa?Nãotenhodinheiroparapagarumadvogado.Eupossomerecusarapôraperucaepronto,nãoposso?

Os dois agentes responderam a irmativamente, resignados. Chasesegurouosorriso.

–Entãoéissoquevoufazer.

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Orelógiograndedasalaindicava12h04.LenachamouDavid,queestavanacozinha.–Recebemosaconfirmaçãodequeatransferênciafoiefetuada?–Nãosei.Obanqueiroficoudecuidardisso.Inquieta,elaavaliouoquepoderiafazer,pensandoqueafotodaperuca

chegarialogo.Entãolembrouquetinhaprometidoligarparaohospitaldevez em quando, nas férias. A recepcionista, Mayra Sanchez, uma jovemdominicana muito e iciente, levou um susto quando identi icou a voz nalinha.

–Dra.Trainor!LamentotantooqueaconteceucomSarah.MeuDeus.–Obrigada,Mayra.–Alguma…alguma…?–Novidade?Nenhuma.Sóoquejásaiunaimprensa.– Posso ajudar em algo? Chegamos aqui hoje demanhã e icamos em

estadodechoque.–Seidisso.Masnãohánadaquepossamfazer.–Estourezando,sabe?Etodaaminhafamíliatambém.–Obrigada.–Querfalarcomosoutrosmédicos?Lena não sabia o que queria fazer. Estabelecer um vínculo, talvez.

AquelemomentocomMayraforasuficiente.– Não. Peço apenas que agradeça a todos pelos e-mails e diga que

podemmeligarseaparecerumaemergência.Agradeçosefizerisso.– Pode deixar. – Não restavamais nada a dizer,mas Lena sentiu que

Mayranãoqueriadesligar.–Dra.Trainor?–Diga.– Vi o retrato falado que foi divulgado na televisão e noPost. O do

sujeitoque…pegouSarah.–Sei.– Bem, conheço um rapaz que trabalha no setor cirúrgico da terapia

intensiva.Éacaradele.Sabedequemestoufalando?– Não.Mas deve saber que o homem do retrato falado usava peruca.

Nãosabemosqualéaaparênciadelesemodisfarce.–Ah.Émesmo?Eunãosabia.Quepena.–Tudobem.Digaatodosquetelefonareiembreve.Obrigada.Atélogo.O retrato falado.Lena seesqueceradele.OdetetiveMartinpassaraos

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detalhes a um artista, no sábado, para elaboração do retrato. Depois osquatro casais receberam o desenho por e-mail, sugeriram correções e aversão inal circulou entre eles. Lena pensou nela do modo comocostumava pensar nos retratos falados que conhecia: genéricos demais,pareciam máscaras, não continham características su icientes paraidenti icar um ser humano real. Ao ver pela primeira vez a versão inal,nãopôdedeixardepensarqueSarah,umaboadesenhista, teria feitoumtrabalhomelhor.

Ela foi até o computador para examinar o retrato falado de novo everi icar se Lynn tinha mandado a foto. O desenho parecia vago comoanteseelaoremoveurapidamentedatela,poisnãoqueriaconfundirsuaimagem mental de J.D. Nenhum e-mail da promotora. Olhando para omonitor,resistiaaoimpulsoderevirarolixoque,segundoDavid,circulavapelarede.

No entanto, sentiu necessidade de proteger Sarah. Sem saber o queocorria, deixava que omundo cibernético abusasse do sofrimento de suailha.FezumabuscanoGooglecomonomedeSaraheseassustoucomaquantidade de ocorrências que surgiram instantaneamente. Olhou paraelasporumlongotempo,comamesmasensaçãodeestarlendoosboletinsda menina. Aquelas palavras, como as notas das provas da escola, nãorepresentavam sua ilha, não davam conta do ser humano complexo emaravilhosoqueLenatantoamava.Percorreualgumaspáginasdabuscaeoefeitoseintensi icou.ComoaquelagenteousavapresumirquetinhaalgoadizersobreSarah?

A busca apontou também o per il de Sarah no Facebook, com foto. Aimagem minúscula dava à ilha um ar vulnerável, apesar do sorrisoradiante.Sempensar,clicounocampo indicadoeentrounosite.Navegoupela página de Sarah, aliviada ao veri icar que não havia sido invadida.ChorouquandoviuelaeDavidcomoosdoisprimeirosamigosdeSarah.Aseção “comentários” dos amigos estava lotada de reações ao sequestro,tantodepessoasconhecidasdameninaquantodemilharesdeoutrascujoúnico vínculo era sua fama recém-adquirida. Lena não rolou a tela, só aencarouporumlongotempo,tentandocriarumaconexãocomSarah,masnãofuncionou.Sua ilhanãoestavaali,naquelemundovirtual.LenanotouqueoúltimoacessodeSarah foranodia12de julho.Ela se lembravadevê-ladebruçadasobreocomputadorpoucoantesdesairepresumiuqueaquela fora a última vez que a menina acessara o site. A dor de ver aimagemdeSaraherademais.Lenadesligouocomputador.

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DavidrecebeualigaçãodeLynnesedespediuantesqueLenapudessepegaraextensão.

– O suspeito se recusa a permitir que o fotografem com a peruca e ocomputadordelefoiinvadidopelossequestradores.

– Fim da linha, então? – perguntou Lena, de costas para a pia, ondepegavaumcopod’água.

–É.Vãosoltá-lo.Aindabemquenãoesperamosmaisalgunsdiasparapagaroresgate.

Lenaconcordouebebeuumpoucodeágua.Falarsobredatasalevouaolhardistraidamenteparaa folhinhanaparede,ao ladodo telefone.Nemelanemomaridose lembraramderemoveras folhasreferentesaosdiasdecriseeaindaconstavaapáginade “Sábado,10de julho”.Lena ixouavista no calendário e arrancou as folhas de sábado e de domingo,amassando-ascomforçaantesdejogá-lasnolixo.

Davidseaproximouquandoaviuagirassim.–Elavoltarálogo,oresgatefoipago,meuamor.–Quando?–rebateuLena,comoseelesoubesseadata.Ficoudecostas

para ele e viu o número12 enorme e preto na folhinha, pulsando.Davidtentouabraçá-la,maselaoempurrou.

– Espere, David. – Lena saiu da cozinha e correu para o quarto. Nãoqueria icar lá tampouco,mas não sabia para onde ir. Pensou em ligar ocomputador, mas não havia nada para ver nele, nenhum e-mail dapromotora. Olhou para o relógio de cabeceira, que marcava 12h24. Emcercademeiahorapoderia ir para a casadosWilliams e se acalmarumpouco com a presença deMike, pensou. Juntos esperariam as novidades.Trêsdatarde.Ansiavapelomomento.Temianãosuportarmaisumdiaquefosseseossequestradoresnãomandassemnotícias.

O calendário voltou à sua mente quando se deu conta de que o diaseguinte seria dia 13. Não se considerava supersticiosa em relação anúmeros,masodiavapensarnodiaseguinte,sefossemaisumsemSarah.Olhoupara o computadordenovo. Lembrou-sede Sarah ali, pouco antesdepartir.Derepente,umasensaçãoesquisita tomoucontadela,amesmaque sentia no trabalho quando uma série de sintomas diferentesconvergiam para a certeza de um diagnóstico. O que provocara essasensação?O que estava acontecendo? Algo no computador desencadearaumprocesso. O quê? Virou-se ao ver queDavid vinha pelo corredor. Eleinterromperia sua tentativa de desvendar aquela intuição. Precisava agir

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depressa.Oqueera?Adata!Hoje eradia12, resmungou sozinha.Como…?Entãoa linhano

per il de Sarah no Facebook saltou na sua frente. Último acesso: 12 dejulho.Sarahhaviaacessadosuapáginahoje!

–Meubem–começouDavid,masLenaseafastoudeleecorreuparaocomputador.Elefoiatrás,fazendoperguntas,elaligouamáquinaeentrounapáginadeSarah.

–Elaacessouainternethoje–disse,quasegritando,apontandoparaainformaçãonatela.Omaridodemorouaentenderedepoisduvidou.

– Espere um pouco, Lena. Talvez não seja ela. Aposto que consegueminvadiressapáginasemamenordificuldade.

–Bem,achomelhoravisarMartin.Temosquefazeralgumacoisa,nãoé?–OFBIestámonitorandotudo.Elesdevemsaber.–Ligueparaeles.Davidhesitou,olhandoparaatela.Levantou-seepegouotelefone.Lena

encaravaapáginacomoseestivesseviva,comoseSarahfosseaparecernatela,atrásda foto,edizer: “Oi,mamãe.”Asensaçãose intensi icoueLenalembrou que Sarah e ela se comunicaram algumas vezes, deixandomensagensnaspáginasparaamigos.Lenatentoufazerologinnosite,mashavia esquecido a senha. “Qual era mesmo, porra? Por que precisamosdessassenhasmalditas…”Finalmente lembrouacombinaçãoeentrouemseuperfil,aindapraticamenteembranco.Haviaumamensagem.DeSarah!

–David!Ele falava com Domingo, pelo telefone, quando a mulher o chamou.

Virou-se.Lenaclicoueoe-mailsurgiunomonitor.

MamãeUmhomemlevouagenteparaomato,nãoparaoacampamento.O

homemmorreu. Seu nome era Sr. Ivrit. Vimos um urso. Não sei ondeestamos, éno meio do mato. Passamos por Albania. Quero que vocêvenhabuscaragente.Querovoltarparacasa.Sarah

–MeuDeus,David–disseLena.–Éume-maildeSarah!Digaaelequerecebemosumamensagem…

Davidergueuumadasmãos,pedindoaelaquesecalasse.Depoisdisse:–Elesabe,viramamensagemfazumahora.–Comoassim?

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Lenaolhoudenovoparaoe-mail.Tinhasidoenviadoàs9h46.–Eleexplicouqueestãoveri icandoaautenticidade.–Davidandavade

um lado para outro, atrás de Lena. – Janet recebeu uma mensagem deLinda,também.

Lenamalescutouaúltimafrase.Clicounobotãoderespostaecomeçoua escrever. David, ainda ao telefone, acenou para chamar a atenção deLena.

–Nãoqueremqueagenterespondaporenquanto.–Nãoresponder?!Porquenão?–Lenanãoparavadedigitar.– Não conseguiram localizar o computador de origem. Pode ser uma

piadademaugosto.–Edaí?David icou na posição de intermediário da conversa. Primeiro ouviu,

depoispassouasexplicações.– Ou pode ter sido enviada pelos sequestradores. O FBI pediu que

esperássemos.–EraSarah.Tenhocertezadequeeraela.–EladissequetemcertezadequeeraSarah–falouDavidaotelefone.

OuviuarespostaedisseaLena:–Pedirammaisalgumashoras.Elafezquenãocomacabeça.Terminoudeescrevereleu:

SarahFicamos contentes em receber sua mensagem. Você precisa falar

mais do lugar onde está. Vamos buscá-la. Está tudo bem? As outrascriançasestãoaítambém?Euteamo.Beijos,Mamãe

Daviddesligouepôsamãosobreamãodela,queseguravaomouse.–Lena.Issopodeserprejudicial.–EraSarah,David.Leiaamensagem.Nãopercebe?–Comoelapoderiateracessoaumcomputador?–Osujeitomorreu.Talvez…– Lena, por favor. Isso soa real para você? Está deixando que as

emoçõestomemcontadetudo.Podeserumafarsa.–Esefor?–Bem,quemfezissopodeespalharsuamensagem,rirànossacusta.

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LenaolhouparaDavid.–Nãoestounemaípraisso.AfastouamãodeDavideenviouamensagem.

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Vinteesete

OFBILEVOUCHASEDEVOLTAparaohospitaldecarroeodeixounaentradadeemergência. Ele ligou para Helene e explicou que o interrogatório nãopassou de um terrível engano, que alguém invadira o computador deles.Mas ela nãoparecia nemumpoucopreocupada e precisoudesligar paracuidardascrianças.

Por um instante fugaz, Chase pensou em largar o serviço, entrar nocarro, voltar para Westchester, parar de novo na frente da casa dosTrainor,misturar-se aos curiosos e acompanhar o show em parte criadopor ele. A inal de contas, passara no teste do FBI e nada o impedia dedesfrutar as glórias do sucesso. No entanto, enquanto pensava, um Fordcomumpreto, comdois homens no banco da frente, avançou pelo acessoda entrada de emergência e saiu pelo outro lado, voltando à rua. Chasedespertoudeseusonho triunfal, imaginandoqueoFBI talveznão tivessecaído completamente em sua encenação e pretendesse segui-lo. Por issovoltouaotrabalho.

A performance para o supervisor e os colegas de setor também foiótima,emsuaavaliação.

– Quando descobriram que invadiram meu computador, pediram mildesculpasemepagaramoalmoço–disseaeles.Poderiatertiradoorestododiadefolga,maspreferiu icarporali,meditandoumpouco.Helenenãocriariacaso,mesmoassimprecisavadetempoparaensaiar.

Mais tarde, ao passar pelo quarto de um paciente, viu parte donoticiário. Ouviu algo a respeito de um e-mail das crianças,mas calculouque fosse mais um boato, visto que os repórteres precisavam inventardesdobramentos.Napausaparaocafé,tentouligarparaonúmerodopaimaisumavez, ansiosopara relatarasnovidades.Nãodeixourecado.Nãosabiaondeeleestava.Deacordocomoplano,opaiadotaratáticasdaCIA,tiradasdeumlivro,aoplanejaramissão.Umadelas:Chasedesconheciaoparadeirodos“alvos”.

–Assimvocênãovacilaecontaparaalguémondeestou.–Nãovouvacilar,pai.Podeconfiaremmim.O pai lhe lançou um olhar condescendente e ergueu uma das

sobrancelhas.– Precisamos ir além da con iança, Chase. Funcionar como um

mecanismo de precisão. Se uma parte sair do lugar, tudo vai por água

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abaixo.Nãobastasaberquevocênãovacilará.Preciso tercertezaabsoluta ,entendeu?

Chaseterminoudefumarsentindoohumormudar.Oqueera?Pensavana primeiramenininha que pegara. Era do tipo con iante, atlético. Torciapara que Jennifer icasse assim quando crescesse. No momento,experimentavasentimentoscon litantes.Talveznãofossetãobacanaassimestar metido naquilo até o pescoço. Também queria que as criançasvoltassem logo para casa. Quando isso acontecesse, iria até Westchesterpara vê-las chegar. Só assim o projeto chegaria ao im. Isso marcaria odesfechodefinitivo.

Voltou para o hospital mergulhado em suas re lexões. A portaautomática se abriu com um chiado que o assustou. Parou, identi icou aorigem do som e do movimento, percebeu que precisava prestar maisatençãoaoqueaconteciaemtornoeentrou.

AhistóriadamensagempeloFacebookseespalhoupelainternetelogovirou assunto nosmeios de comunicação. Uma hora depois de Lena tê-lavisto,aumentaramuitoaquantidadedecarrosdereportagemnafrentedesuacasa.

– Não é culpa deles – comentou David, sensato, ao acompanhar aagitaçãopelajanela.Nãoentrouemdetalhes,nãorevelouoquesepassavaemsuacabeça,queaimagemdascriançasraptadasnomeiodomato,comum sequestradormorto e ursos rondando a área, causava um tremendoimpacto.MasLenacompreendeuaondeelequeriachegar.

Ela permanecera grudada no computador desde que enviara amensagemderesposta.Seconseguiramenviarume-mail,deveriampoderresponder logo, repetiaa simesma.Masosminutoseashoraspassavamsem nenhum sinal e a esperança deu lugar ao medo. Os detalhes erambemespecíficoseprojetavamimagenssombrias,apavorantes.

O detetive Martin bateu na porta e Lena logo concluiu que foramandadopeloFBIpara icardeolhonela.Maseletraziainformaçõeseelacontinuava a con iar em seus olhos azuis. Era melhor do que icarencarandoumapáginadoFacebook.

EnquantoLenaserviaocafé,elecomeçou:– Sabemos o seguinte: a ilha dosRostenkowskimandoupor e-mail as

mesmasinformaçõesqueSarahenviouparavocê.Sóisso.Nãoajudamuito.– Ele pegou o bloco de notas no bolso do paletó e o consultou enquanto

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estavam sentados à mesa da cozinha. – Conseguiram algo a respeito docomputador usado por elas, um endereço de IP. Trata-se de um microfurtadohácercadetrêsmeses.

–Nãodiga–comentouDavid.–Poisé.Essas coisasdecomputação…Bem,oFBIachaqueose-mails

podem ajudar a desmascarar o suspeito que eles encontraram. Hásemelhança de nomes. Só posso revelar isso e peço, claro, que nãocomentemcomninguém,poisvãointerrogarosuspeitooutravez.

–EondeestáSarah?–perguntouLena,sabendoqueeraestupidez.Martin a encarou com uma compaixão incomum a um homem de sua

profissão,comoseresponderfosseumsofrimento.–Delimitaramumaárea–começou,consultandoseubloco.–Presumem

que“Albania”sejaAlbany.Portanto,estãoaonortede lá.Pelahoraedatado vídeo enviadopelos sequestradores, conseguirãodeterminar até ondechegaram, na direção norte. E houvemenção a… ursos. Devem estar nasmontanhas Adirondack. Para prever a localização, traçaram um raio de160a200quilômetros.

–NasAdirondack–disseDavidemtomneutro, imaginandoaextensãodoterritório.

–Sim,nasAdirondack–repetiuMartin.– Já começaram a busca por lá? – Os olhos de Lena brilhavam

intensamente.DavideMartinperceberamsuaimpaciênciacontida,aânsiadecorrerparaprocurarSarah.

–Éumaáreaenorme,Lena–disseomarido.–Eusei.Abuscajácomeçou?Martinfezquenãocomacabeça.–Estãoorganizandotudoparacomeçaramanhã.Nãoestoupordentro

dosdetalhes.Lenalutouparacontrolararaiva.–OsagentesdoFBInãonoscontaramnadaarespeitodoe-maileagora

retardamoiníciodasoperaçõesdebusca?– Eles têm esperança de obter resultados favoráveis no novo

interrogatóriodosuspeito–respondeuMartin,sabendoqueissonãoseriasuficienteparaLena.

– Querida, você precisa compreender – acrescentou David, o que sóbotoumaislenhanafogueira.

Lena levantou agitada e seguiu para a sala. Os dois homens trocaramolharesespantados.Ouviramaportadafrenteseabrirebateremseguida.

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Elapegouosrepórtereseoscâmerasdesurpresa.Quandoaviramsairdecasa,passarpelocarroecaminharemsuadireção,apressaram-seemaprontar o equipamento, ligando as câmeras, os microfones e osgravadores. Parou no inal do acesso, furiosa. David e Martin saíram decasa apressados, quase correndo, para alcançá-la. Os repórteres serecobraram do susto e gritaram perguntas que ecoaram pela vizinhançasilenciosa. Lena os afastou com um gesto e esperou, até que um dosrepórteresmandouosoutroscalaremaboca.Quandoelacomeçouafalar,suavozmaispareciaumrugido.

– Não estou pedindo nada. Queremos nossos ilhos de volta. Se vocêtiver alguma coisa a ver com este ato terrível, desista e traga nossascriançasparacasa.Setiverinformações,procureoFBI.Evocês,comsuascâmeraseseusmicrofones,sejamúteis.Nãoadiantaficaraquinafrentedaminhacasa.Vãoprocurarminhafilha!

Só uns poucos repórteres descarados gritaramperguntas em seguida,quando David e Lena deram as costas e voltaram para casa. Martincontinuoulá fora, tentando,semêxito,convenceros jornalistasanãousaromaterialgravado.Porém,umpoucomaistarde,nosdoisladosdarua,erapossívelouviralgunsrepórterescomeçaremseusrelatoscomvariaçõesde“Amãedeumadasvítimascriticouaimprensahojequando…”

De volta à casa, Lena foi para o computador,mas só achou um e-mailcurto da secretária de Lynn Witherspoon para as famílias, pedindopaciência. Para Lena era como pedir que voltasse no tempo. Não teriasequer um pingo de paciência, nem que sua vida dependesse disso. O e-mail de Sarah fez a ansiedade dos últimos dias dar lugar a uma buscafocada, concentrada, e Lena sentiu que a partir dali a única coisa queinteressavaeracomeçaraprocurar.

Os agentes Toomey e Allen esperavamChase em sua casa quando elechegou. Chase conseguiu representar o papel de pai de família exemplarnafrentedosagentes,dizendoaHelenequeestavatudobemepegandoosilhosnocolo.Masnãoconseguiuchegaratéatelevisãoparaacompanharo noticiário. Os agentes não explicaram por que precisavam interrogá-lonovamente.

Ficaram em silêncio durante o trajeto e levaram Chase até uma salapequenanos fundosdasederegionalempolvorosa.Deixaram-nosozinhoe Lynn Witherspoon entrou depois de alguns minutos, apresentou-se e

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sentou.Dissequeinvestigavaapossívelparticipaçãodelenumcrime,masque não estava sendo preso. Perguntou se Chase queria chamar umadvogado.

O primeiro impulso de Chase foi dizer sim, com o objetivo de adiar odesfecho. Mas gostou do fato de a mulher peituda estar sentada na suafrenteequisimpressioná-la,exibirseutalentoteatral.Elaoencaroucomose fosse uma professora cobrando o dever de casa. Ele sempre se derabememsituaçõessimilares.Declarouquenãoprecisavadeadvogado.

Manteveadecisãomesmodepoisdeelaconvocarumassistenteeumafuncionária do fórum, que entrou com uma espécie de máquina deescrever para registrar o depoimento. “Pura pressão”, pensou Chase.Preparou-se para atuar enquanto Lynn dava informações paraidenti icaçãodagravação.Mostrariamaisumavezsurpresa, ingenuidade,talvez um certo choque. Mas, após a primeira pergunta da promotora,depoisdaspreliminares,nemprecisoufingirsurpresaouchoque.

– Posso chamá-lo de Chase? Então, Chase, o nome de seu pai é JamesEverettCollins?

“Meupai?Porqueperguntamarespeitodele?Quemestánopalcosoueu,enãoele.”

–Sim.–Evocêsabeondeseupaiseencontranestemomento?Para Lynn, o interrogatório podia terminar alimesmo.A expressãodo

homem não revelava apenas que ele sabia onde o pai estava, comotambémesclareciaseuenvolvimentonosequestro.ElaconcluiuqueestavafalandocomJ.D.

Chasemanteve a expressãode surpresa, invocouuma imagemmentaldopaierecuperouocontrole.

–Aconteceualgumacoisacomele?–Talvez.Sabeondeeleestáagora?–Hojeésegunda-feira?Emcasa,provavelmente.Eleestápraticamente

aposentado.Sótrabalhaalgunsdiasporsemana.–Fomosàcasadele.Nãoestálá.Quandofaloucomelepelaúltimavez?– Não me lembro. Mas, se aconteceu alguma coisa com ele, acho que

deveriamedizer.Sabe,éque…–Faloucomeledesdesábado?–Sábado?Não,achoquenão.–Nãofaloucomelehoje?–Não.

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Lynndiscutiracomsuaequipesedeveriasaltarna jugulardosuspeitologonoiníciodaentrevista,masquandoviuareaçãodeChasesoubequenãoprecisavatomaradecisão.

–Temosmotivosparaacreditarqueseupaiestámorto–disseela.Chase não falou nada por um tempo. Ou essa era uma tática

inacreditávelmente cruel, ou era verdade. Ele não quis levar a segundahipóteseemconsideração.Nãoerapossível.Mas,claro,elerealmentenãofalavacomopaidesdedomingo,e…

–Porqueachamisso?–Recebemosumamensagemdealguémque,emnossaopinião,estava

juntodelequandoelemorreu.–Quem?–Umacriançasequestradahádoisdias.Isso se encaixava perfeitamente com o fato de o pai não estar

atendendoocelular.Chaseabandonouoteatro.–Nãoentendi.– Acho que entendeu, sim. Já foi apelidado de J.D., por causa de sua

predileçãoporJackDaniels?– Quase não bebo mais. – Chase não conseguia raciocinar. Seu pai,

morto?–Maseraoseuapelido.–Nãosei.Aspessoasmechamavamdeummontedenomes.Oqueisso

temavercommeupai?–Talvezvocêpossamedizer.–Nãoseidenada.Nãofalocommeupaidesde,seilá,desdesábado,eu

nãodisse?–Vocênãosabeoquedisse?–Nãoconsigopensaremnada!Vocêestádizendoquemeupaimorreu!

Oquemaisesperava?!–AsveiasdopescoçodeChasesaltarameseurostoficouvermelho.

– Espero que nos diga como seu pai e você sequestraram quatrocrianças que iam para o Acampamento Arno e onde elas estão agora –rebateu Lynn, embora sua voz aguda não chegasse à altura da voz deChase.

–Estábrincando?–Claroquenão.Chase ofegava, seus pensamentos se anuviaram, não conseguia

suportaraimagemdopaimortosabe-seláonde.Olhouparaapromotora,

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para o assistente impassível, para a funcionária do fórum, muito bonita,com os dedos na máquina, à espera de suas declarações. Voltou a itarLynn.

–Podemparar.Queroumadvogado.

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Vinteeoito

LENASENTIATANTATENSÃOENQUANTOesperavaoutroe-maildeSarahquetemeuperder o bebê. Falou sozinha e tagarelou com David para controlar onervosismo.AvozdeMikeWilliamsaotelefonetambémserviudeantídotoparaseudescontrole.

–Oi,Lena.AquiéMikeWilliams,ligueiparadarumalô.–Oi,obrigada.Issotudoéterrível.–Dáparaimaginar.Po icounadúvidaseseriamelhoroupiorreceber

ume-maildeTommy.–Tambémnãosei.Quandoabrioe-mail,tiveasensaçãodeelaestartão

próxima.Agoraparecequeestásumindo.Mikeesperouumpoucopararesponder.– Espero que não se ofenda, mas estávamos conversando e dizíamos

que Tommy às vezes deixa a imaginação ir longe demais. Quando ascrianças estão na mata… – Lena não se incomodou. Não havia pensadonaquilo.

–Querdizerqueelas…SaraheLindatalveztenhamapenasimaginadoqueviramumurso?

–Ouentãootalsujeito,sejaláqualforseunome,nãotenhamorridodeverdade. Talvez tenha passado muito tempo adormecido, as criançaspegaramonotebookeeleacordou.

Lena não sabia o que era pior, as crianças nomeio do nada com umcadáver,ouumsujeitovivoimpedindoqueenviassemoutrasmensagens.

–Duvido que Sarah confunda sono commorte. Ela não é umameninamuitosonhadora.Elaémuitoracional,puxouamãe.

–Muitobomparaela–disseMike.Lenapensouque,emoutrocontexto,afraseseriaconsideradaumflerte.

–Mas não posso deixar de pensar que não raciocinei cienti icamente.Nãoobastante.

–Comoassim?–Haviapistas.Fui treinadaparaexaminarasmenoresevidências.Não

deveriaterpercebidoqueeleusavaperuca?– Ele não estava ali para receber um diagnóstico, Lena. Também tive

pensamentoscomoesse.Nãorecebitreinamentoespecí ico,mascontocommuitos anos de experiência em distinguir o falso do verdadeiro, saberquemvai fazero serviçoequemsóvaidardorde cabeçaeprejuízo, ser

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umpénosaco.Malolheiparaocara,detãoorgulhosoqueestavapormeumoleque subir correndo na van, viajar sozinho. Não vi mais nada nemninguém.

Lágrimas escorreram pelo rosto de Lena. Sempre teve uma fraquezapor homens que amavam tanto os ilhos que os chamavam por nomescarinhosos.SeupaisemprechamaraSylviede“Sylvieamil”,porcontadesua hiperatividade precoce. E chamava a neta de “Sarahbell”. David sereferia a Sarah como “arteira” quando ela era pequena, mas não serecordavadeterouvidootermorecentemente.

–Lena–disseMike,quebrandoosilêncio.–Estátudobem?–Tudobem.Nãosepreocupe.– Ligue quando quiser ou passe aqui. A situação que estamos

enfrentandonãoéfácil.–Nemmediga.Masnãopossolargarocomputador.– Pode acessar a internet por aqui. E Jack,meu outro ilho, é fera em

informática.ElessedespediramdepoisdosagradecimentosmútuoseLena,depéna

cozinha,olhouparaoquintal.–Quemera?–indagouDavidaoentrarnacozinha.–MikeWilliams.–Novidades?– Ele levantou a hipótese de excesso de imaginação por parte das

crianças – disse Lena enquanto punha uma xícara de café morno paraesquentarnomicro-ondas.

–Quem?–Mike.–Querdizer,inventarcoisas?–Algoporaí.Talveztenhamapenasimaginadoourso,talvezoSr. Ivrit

estivessesódormindo.–DuvidomuitoqueSarahconfundissesonocommorte.Talvezasoutras

crianças,masela…–Foioqueeudisse.Achoqueelesóqueriademonstrarsolidariedade.FosseamençãoaoapoiodeMikeououtracoisa,Davidsentiuoimpulso

de abraçar Lena, mas ela estava sentada de costas para a pia, com osbraços cruzadosna frentedo corpo, soprando a xícarade café. Imaginouqueela recusariaoabraçoepreferiuevitara rejeição.Anão serporumúnicogestocarinhoso,elasefecharaemseumundodesdeoiníciodocasoeporenquantoDavidnãoviaummododeretomaraantigaproximidade.

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–Elefaloualgoarespeitodeumblog?–Umblog?Não,oqueé?– Há um blogueiro que se intitula NutsandBolts. É um blog sobre

reformasdomésticas,masoautordizqueconheceWilliamsequeele fezumsegurodevidaenormeparaosfilhos.

Lena fechou a cara, irritada com David. A voz calma de Mike aindaecoavaemseusouvidos.

– A teoria é que ele planejou o sequestro e vai mandarmatar o ilhoparareceberoseguro?MeuDeus,David.Issoéloucura.

– Não sei, não. O sujeito diz que a situação econômica prejudicouimensamente os negócios deMike e, pensando bem, como o pessoal deleachouavantãodepressa?

–Jádescartaramessahipótese.Martinnãoopreveniupara icar longedessasbobagens?

– Você soa como um daqueles médicos que ignora um paciente sóporqueeleobteveinformaçõesnainternet.

Lena não queria pensar nessa possibilidade. Queria entender por queDavid estava puxando seu tapete, caluniando o homem que mais aampararanosúltimosdias.

– Aposto que em algum blog dizem que promovemos reuniões debruxasemnossacasaequeascriançasestãopresasnoporão.

–Nãoétãomalucoquantoparece.–Oquê?Ocalabouçodabruxa?–Não,Williamsprecisardedinheiro.Eleeamulhermantêmumacalma

suspeita desde o começo. E aquela proximidade toda. Nem parecem seimportar.

Lenanãoouviuaquilocomocrítica,mascomodemonstraçãodeciúmes.Levou amão aobraçodeDavid e o olhou com intensidade.Nãoprecisoudizernada.Acapacidadedecomunicaçãosilenciosaserestabeleceu.“Ouçabem o que você está falando”, os olhos dela disseram. Mas David nãodesistiu.

–Sei lá.Viveconvidandotodomundoparairàcasadele.Quer icardeolhonagente?Eporqueligaparavocê?

Lenaolhouparaotelefone,masavozdeMikesumiradesuamente.OMike que quase lertava com ela não estava mais lá. Apenas umempreiteirocomsegurodevidaparaosfilhos.

Entãoo telefone tocou.NãoeraMike,e simalguémdaequipedeLynnWitherspoon pedindo a David que icasse na linha para uma

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teleconferência. David alertou Lena e ela foi para o quarto, onde haviaextensão. Sentiu o sangue latejar nas têmporas. Ouvia as vozes e arespiraçãodosoutrospaisnalinha.JohnWalkerfalouprimeiro.

–Lena,estáouvindo?–Sim.– Agradeço pelas coisas que você disse à imprensa.Minha posição no

bancoimpedequeeumemanifeste,maspensoexatamenteamesmacoisa.Outras vozes repetiramo incentivo, depois Lynn entrouna conversa e

perguntouseestavamprontos.Todosresponderamquesimeelacomeçouafalar.

– Conversarei com a imprensa em poucos minutos, mas queria antespassar algumas informações a vocês. Temos desdobramentos. – Lenaescutavaoofegaransiosodosoutrospaisnalinha.–Detivemososuspeitoque acreditamos ser J.D. – Ela paroude falar por ummomentopara quetodosabsorvessemanotícia.–Omesmosujeitoqueserecusouatirarfotodeperuca,ChaseCollins.OnomedomeiodopaiéEverett,muitopróximodoqueconstanose-mailsdasmeninas.A reaçãodelea certasperguntasnoslevaaacreditarqueopaisejaosujeitocitadopelasmeninas.

Outras questões foram levantadas simultaneamente durante ateleconferênciaeLenaperdeuofiodameada,assimcomoapromotora.

– Podemos deixar as perguntas de lado? Não sabemos de mais nada.Talvez seja aconselhável uma reunião esta noite. Não poderemosinterrogarosuspeitonovamenteatéelecontratarumadvogado.Issopodelevarváriashoras.

–Euointerrogo–disseMike.– Entendo o que você está sentindo. Vou acrescentar uma informação

que não será divulgada à imprensa. Há a possibilidade de Collins serecusar a dar qualquer declaração. É um direito dele. Também existe achance, embora pequena, de que ele não saiba para onde as criançasforamlevadaseachoquevocêsprecisamlevarissoemconta.

Lenaouviuumasequênciadesuspiros.–Comopodeser?–quasegritouJanet,obviamenteestressada.– Trata-se de uma operação bem so isticada, pelo que investigamos. A

únicatarefadeCollinspodetersidopegarascriançaseentregá-lasaopai,que as conduziu para local desconhecido. Eu agiria assim se planejassealgodogênero.Elepoderesponderhonestamenteànossaperguntasobreo paradeiro das crianças, dizendo que não sabe de nada. Lamentoencerrar assim, mas preciso desligar. – E Lynn Witherspoon saiu da

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conferência.Apósumbrevesilêncio,DavidsurpreendeuLenacomumadeclaraçãoa

todosquecontinuavamnalinha.–Senãohouvernovidadesatéoamanhecer,vouparticipardogrupode

buscaqueestásendoorganizado.Elerecebeumanifestaçõesdeapoio,emseguidaPofalou,comumavoz

suave:– Lena, Janet, vocês têm certeza de que suas respostas aos e-mails

chegaramàcaixadeentradadasmeninas?Lena icou confusa. Deixara de pedir con irmação de recebimento da

mensagem, um procedimento muito simples. Não pedira um aviso de“mensagem recebida”. E se estivesse esperando este tempo inteiro e o e-mail para Sarah tivesse caído em alguma conta desativada? John falou eajudouareduzirostemoresdeLena.

–OFBIvemmonitorandotudo.Tenhocertezadequeelesgarantiramachegadadose-mailsaosendereçoscertos.

Ninguémqueriadesligar,maschegaramaumpontoemquenãotinhammais nada a dizer. Po convidou os outros pais a irem até sua casa, casoquisessem, pois poderiam monitorar os e-mails de lá. De repente, Lenasentiu-se exausta demais para pensar em driblar a imprensa e ir aqualquerlugar.Desligaramdepoisdesedespedirem.

LenaeDavidseencontraramnasala,ondeelecomeçouaandardeumladoparaoutro,agitado.

–Vocêfalousério?–perguntouLena.– Sobre ir até lá? Claro que sim.Mais umdia sentado aqui esperando

queelesfaçamofilhodamãeconfessarmedeixariamaluco.Ele elaborou uma lista de tarefas e a leu em voz alta. Entre as

providências incluiuchamarumamigodoserviço,caçadordecervos,quesempre mencionava as Adirondack, telefonar para o irmão e ver se eletinha algum conselho para dar, separar os mantimentos e decidir qualcarrolevar.

Lena observava o marido enquanto ele circulava pela sala. Davidcrescera numa região inóspita de Oklahoma e passara boa parte dajuventude no meio do mato. Ele levara Sarah para acampar certa vez,numa viagem infeliz, prejudicada pelo equipamento inadequado e pelachuva torrencial. No entanto, a aparência cosmopolita adquirida nafaculdade, em Cornell, prevalecera nos últimos anos. Lena não conseguiaimaginá-lo seguindo pistas na mata fechada das montanhas Adirondack.

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Mas ele precisava fazer alguma coisa. Ela entendia isso. Chegava até ainvejar sua liberdade de sair de casa e procurar a ilha nas montanhas.MasLenanãosevianessasituação.Pormais irracionalquefosse,achavaquedevia icaremcasaparaocasodeSarahchegar.Elaaabraçariacomforça e deixaria que chorasse até esgotar as lágrimas.Depois seria forte,preparada para as consequências, para os meses e anos em que osvestígiosdaquelesdiassairiamaospoucosdesuapeleedesuaalmaparasempre.

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Vinteenove

NO MEIO DA TARDE, O sol forte na clareira deu lugar ao cinza-chumbo dasnuvens. Franklin disse que deveriam levar o notebook até o laguinho denovo,antesquechovesse,paraveri icaremseospais tinhamrespondido.Ninguémqueria deixar a segurança da cabana e da clareira,mas ali nãohaviasinal,portantoprecisavamretornaràquelelugarmedonho.

Desta vez os corvos voaram batendo as asas com força assim que ascrianças se aproximaram. Tommy olhou em volta rapidamente, supondoque um urso talvez rondasse o lago, pois os corvos não se assustaramquando as crianças chegaram, da primeira vez.No entanto, não viu nadadeanormal.

Eramais fácil enxergar a tela do notebook com temponublado,mas oqueviramosdesanimou.O indicadordoníveldabateriaestavapiscando,prova de que a carga chegara ao im. Sarah teclou o mais depressapossível e soltou um gritinho quando entrou na página dela e viu amensagemdamãe.As lágrimasrolaramporseurostoquandocomeçoualer, mas Franklin insistiu para que se concentrasse em sua missão. Otempopassavaeelespensavamnoquedeviamescrever,nascoisasdequeselembravam.Finalmenteconseguiramredigiraseguintemensagem:

MãeEstamos numa cabana. Perto de um laguinho. Tem courvos.

Viajamosnumcarrocinzaesubimosatéaquiapé.Socorro.

Todosconcordaramqueerasóoquesabiam.Franklindisseque corvosnão tinha “u”, mas não dava tempo de corrigir. Sarah ia enviar o e-mailquandoTommyteveumaideia:

–Deixeicairameia.Nãodeviaavisar?Ninguémsabia,masaluzinhadabateriacomeçouapiscarmaisrápido.

Franklintomouadecisão:–Precisamosmandaramensagemjá.Sarah precisou de alguns segundos para levar a seta até o botão de

enviar, pois não estava acostumada a usar notebooks. Todos ixaram avistanaampulhetaque icougirandodepoisqueelaclicounobotão.Antesqueparasse,noentanto,atelapiscoueapagou.

–Achaqueamensagemfoienviada?–perguntouLinda.

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Ninguém soube responder. Olhavam para a tela escura como seesperassemqueumgêniosaltassedelaparaesclarecerasdúvidas.A inal,passarampraticamente a vida inteiradependendodeumgênioqualquerqueaparecianumatela.Agora,nada.

Oroncogravedeumtrovãoaoestefezcomquevirassemascabeças.Océu escurecera consideravelmente, as nuvens cinzentas icaram quasepretaseaumentaram.Sarahtentouligarocomputadoroutravez,masnãofuncionou.Franklincomentou:

–Talvezeletenhaumabateriareserva.Todos entenderam a quem o menino se referia. Haviam vasculhado

cadacantodacabanaeamochiladoSr.Everett,chegaramaprocurarumabateria no isopor quase vazio, porém não encontraram nada. Entãoolharamparaocadáveraindaestendidonopíer.

– Duvido muito – disse Linda, mais levada pela repulsa do que pelarazão.

– Deveríamos procurar, pelo menos – disse Franklin. Outro trovão aoesteofezexclamar:–Antesquechova!

–Eondevamosolhar?–quissaberTommy.–Nosbolsosda frenteounosdetrás?

Sarahexaminouonotebookeavaliouotamanhodabateria.–Sópodeestarnobolsodetrás.–Esperoquesim–disseTommy.–Poisnãoíamosconseguirvirá-lo.Sem hesitar, ele desceu na direção do cais enquanto os outros

esperavam. No caminho, murmurou o que sabia do terço. Ao dar osprimeiros passos nas tábuas do píer, esforçou-se para concentrar a vistanos bolsos traseiros da calça do Sr. Everett. Quantomais se aproximava,mais restringia a visão. Virou-se, vendo que os outros ainda não tinhamchegadoàplataforma.Não importava.Eleavançou,meioatordoado, comosefossecairnaágua.Esperouatonturapassareseguiuemfrente.Haviavolumes proeminentes nos dois bolsos traseiros. Tommy se recordou daaparênciadobolsodacalçajeansdopai,acarteiradeixavamarcasporserusada sempre do mesmo lado. O bolso direito do Sr. Everett exibia asmesmas marcas, portanto Tommy deduziu que só precisava examinar oconteúdodobolsoesquerdo.

Quandochegoubempertodocorpo,olhandoapenasparaosbolsos,asmoscas revoaram em volta do Sr. Everett. Isso, junto com o mau cheiro,deteve Tommy por um segundo, mas ele estendeu a mão para o bolsoesquerdo,usandotodaasuaforçadevontade.Quandoseusdedostocaram

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o tecido, sentiuquehavia algoduro, retangular, deplástico.Umabateria!Elesegurouoobjetocom irmezaepuxou.Oquesaiupareciaumabateria,mas o puxão fez com que o menino perdesse o equilíbrio. Para serecompor, ele deu um passo à frente e baixou a cabeça. O rostoensanguentadoecarcomidodoSr.EverettentrouemseucampodevisãoeTommyrecuoucomumsalto,horrorizado.

Umpoucopara trás, ofegante, ele viu a bateriameio exposta. Comumgesto certeiro e irme, apanhou-a e a puxou com força.O corpo rígidodoSr. Everett se ergueu e bateu nas tábuas ao cair. Com a bateria namão,Tommysaiucorrendopelopíeraoencontrodostrêsamigos,querecuaramquando ele se aproximou, como se o contato com o Sr. Everett o tivessecontaminado. No entanto, ao mostrar o objeto recuperado, todos seaproximaramdele.

–Nãoédomesmotamanho–disseSarah.–Éumabateriadetelefonecelular–acrescentouFranklin.Tommy examinou o objeto. Eles tinham razão. Em vez de tábua de

salvação,o retângulodeplásticonãopassavadeuma lembrança inútildosujeitoqueossequestrara.Eleseviroueatirouabaterianolaguinho.

Neste instante, as crianças notaramque caíamos primeiros pingos dechuva.Resolveramvoltarparaacabana.OestrondodeumtrovãopróximofezLindagritar.

–Odeiotrovão!Aquilo era novidade para Sarah. Ela tentou se lembrar de algum

episódio anterior em que Linda e ela tivessem enfrentado juntas umatempestade, enquanto subiam pela trilha e a chuvamolhava a grama docaminho.Nãoserecordoudenenhumincidente.

Ao chegarem a cerca de 100 metros da cabana, a chuva aumentoumuito.Correramatéaportaeentraramnochaléquaseescuro.Ofegavam,ensopados. A água batia com tanta força no telhado que as criançaspensaramqueastábuasfossemceder.Asgoteirasformavam iosdeáguaque corriam pelo chão. Sarah tirou a mochila do Sr. Everett, que estavaembaixo de uma goteira, e os outros seguiram seu exemplo e salvaramoutros itens ameaçados pela água. Tommy encontrou um baldinhovermelhonumcantoeoposicionoudebaixodagoteiramaior.Emseguida,eles passaram para o outro quarto. Lá não estava tão ruim, masprecisaram mudar um colchão de lugar por causa das gotas que caíam.Puseram todos os colchões de pé contra a parede, longe das goteiras, eacharamquetinhamasituaçãosobcontrole.

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Derepente,umaluzazuladatomoucontadoquarto,eporuminstanteomundo lá de fora – a clareira, vista através da janela – ganhou umaclaridade estroboscópica. Antes que as crianças pudessem reagir aorelâmpago,oestrondodotrovãosacudiuacabana,balançandoasjanelaseseusvidrosfrouxos.Todosgritaramoupularam,depoisseamontoaramaoladodoscolchõesparaseprotegeremdachuvaquebatianoteto,ouvindoo barulho das goteiras maiores no outro quarto, que acrescentava umanota grave ao barulho da tempestade. O medo do próximo relâmpagoseguidodetrovãoeraevidente.

Quandochegou,orelâmpagodistantefoimaisfracoedifusoeotrovãodemorou mais até explodir em seus ouvidos. Assim que os gritinhoscessaram,Tommypronunciouseuveredicto,usandouma fraseouvidadopai.

–Opiorjápassou.

O tempo passou, o relógio marcou 15 horas e nada de contato dossequestradores, nenhuma indicação de que a transferência havia sidobem-sucedida nem e-mail de Sarah. Em seu computador, Lena checou aprevisãodotempoeviuqueumatempestadeviolenta,comraiosetrovões,varria a área em que as crianças se encontravam, de acordo com o FBI.David, revigorado pela decisão, estava preparando sua bagagem haviamais ou menos uma hora, trocando impressões com o pessoal dasAdirondack responsável pela organização dos grupos de busca, pedindoconselhosaseuamigocaçador.

QuandoodetetiveMartin chegou, às 17h30, já era quaseummembroda família, pensou Lena. Entrou anunciando novidades, fora outra vezenviado pelo FBI para “garantir que você mantenha a calma quandoreceber as informações”. Ela não levou a brincadeira a mal, graças aosmodosafáveisdopolicial.

– O Facebook vem monitorando a conta de Sarah e há uma hora,aproximadamente,osservidoresregistraramotrânsitodeumamensagemdestinada à conta de Lena cuja origem era o mesmo endereço de IP doqualSarahenviaraoe-mailanterior.

–Nãorecebemosnada–disseLena,respirandofundo.–Nãoentrounoservidor,sejaláoqueissofor.–Éocomputadorquetransfereasmensagensrecebidasparaascontas

doFacebook–explicouDavid,aindasegurandoalanternaquetrouxerado

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porão.–Senãochegouaoservidor,comoelessouberamqueamensagemfoienviada?

–Sei lá.Nãoentendonadadaparte técnica. Só seique identi icaramaorigem, foi mandada pelo mesmo computador que as meninas usaramantesparaenviarooutroe-mail.Noentanto,amensagemnãochegou.

–Oqueissosignifica?–perguntouLena.–Querdizerquealguém,Sarahtalvez,estavatentandoenviaroe-mail,

masalgumacoisaa impediu. –Martin traiu certonervosismoaodaressainformação.

–Algumacoisa?Comoassim?–Podeserqualquermotivo.Faltadeenergia,seabateriativeracabado.

ElesestavamusandoumaconexãoWi-Fi,podeterocorridointerrupçãodesinal por causa das condições atmosféricas. Ou erro humano, alguémapertouateclaerrada,seilá.Detodomodo,sabemosqueelatentouentrarem contato com você novamente e que ainda pode fazer isso. Quando ascondiçõesforemfavoráveisenviaráoutramensagem.

–Estáchovendoforteporlá–disseLena.– É verdade, está mesmo – concordou Martin. – Vendo pelo lado

positivo, ela tentou entrar em contato com você. Isso quer dizer querecebeuoseue-mail.

Os trêscontinuavamempénomeiodasala.David falou,olhandoparaLena:

–TalvezMiketivesserazão.–Comoassim?– Talvez o tal Everett não tenha morrido. Vai ver as crianças

conseguirampegaronotebookeeleossurpreendeuquandoSarahestavaenviandooe-maileadeteve.

MartinviuomedonosolhosdeLena.– Para mim, isso não soa muito real. O pessoal do FBI disse que a

conexãodonotebookébemprecária.Deveserporfaltadesinal.A chuva lançava gotas de água no vidro da janela. Lena viu os

repórteres e suas equipes correrem para cobrir o equipamento. David eMartindebatiampossibilidades,masLenasóconseguiaveroladonegativodas informações. A linha de comunicação que fora aberta se rompera.Sarah continuavaperdidanomeiodomato, não se sabia onde.Maisumavez, a situação pareciamuito grave e incerta. Aos poucos, Lena perdia aesperança. Ela se perguntou se Sarah, que tinha uma con iançainquebrantável, enfrentava as di iculdades sem sofrer tanto quanto ela.

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Tentouparar,masnãoconseguiu.Talvezpelaprimeiravezdesdeo inícioda tragédia, ela tenha contemplado a possibilidade de nunca mais falarcoma ilha.Então largouocorponumapoltronaquandoouviuumtrovãoaolonge.

Dequeseupaipoderiatermorrido?Chasenãopensavaemoutracoisaenquantoesperavaoadvogado.Nãose lembravadaúltimavezqueopaiadoecera. Ele sempre comeu carne magra. Mantinha-se em boa forma.Mesmo barrigudo, conseguia fazer 20 elevações na barra, coisa de queChasejamaisforacapaz.

Concluiuquementiamarespeitodovelho.Amulherpeitudadebatomprovavelmente nem era promotora de verdade, vai ver era alguémencenandoumpapel, comoele.MeuDeus,nãodevia terperdidoacalma,pedindoumadvogado.Heleneprometeuarranjarumbom,maselepodiaterdeixadoacoisacorrer,pagandoparaveroblefedaquelamulher.

Trouxeramumsanduícheparaele,masChasesóconseguiuengolirumpedaço.Asensaçãoestranhaemrelaçãoàscriançasnãooabandonava.Viao menino negro esquisito sozinho e duvidava de que fosse capaz desobreviver. Descon iava de que o pai levara as crianças para o meio domato,entãoserealmenteestivessemortooumachucado,comoomeninoiavoltar? E a segunda menina que ele pegou? Era do tipo chorona.Provavelmentedeixariaseupaienlouquecido.Ela…

Porquepensavanascrianças?PrecisavapensaremJennifer,issosim.Eem Hector. Precisava se dar bem neste caso, por causa deles. O pai nãodisseraisso,logonocomeço?

–Trata-sedeumprojetofamiliar,Chase–explicaraopai.–Umdiavocêvai poder contar a seus ilhos que conseguimos realizar uma proeza.Distribuiçãoderenda.Semconfusão,semagitação.Ficaremoscomalgunsdosdólaresqueosricos têmsobrando.A ideiacentraléessaeachoumabelezaquesejarealizadaporpaiefilho,juntos.

Chase andava pela saleta onde o tinham deixado trancado. A falta defatos concretoso atormentava.Onde estavaopai?E as crianças?Tudo iabem enquanto mantiveram contato. Agora, as coisas se tornaram muitovagas,umatremendaagonia.Torciaparaqueoadvogadosoubesseoqueestavaacontecendo.

Mas ele não sabia. Chase percebeu assim que ele entrou e fechou aporta. Foram buscá-lo no meio do campo de golfe. Chamava-se Andy

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Bingham. Tinha a mesma idade que Chase, ou quase, e era umacelebridade graças à defesa bem-sucedida de um político que batia naamante.

– Chase, nunca pergunto a meus clientes se eles são culpados ouinocentesdasacusaçõesquepesamcontraeles–disseohomemdepoisdese apresentar. –Deixo apromotoriadecidir se vãomedizer ounão.Mastemosaquiumcasobemdiferente.

–Comoassim?–Bem,ocrimeestáemandamento.Nãoaconteceuontemeacabou.Ele

continua. As quatro crianças permanecem desaparecidas. – Ele esperouumpouco.

–Nãoseiondeascriançasestão–disseChase.– Certo. Vamos deixar assim, então. Podemos esperar o indiciamento

semdeclararnada.Pormim,tudobem.– Mas eu queria que as crianças voltassem. – Chase disse isso sem

pensar,maseraseumaiordesejonomomento.–Todosnósqueremos.Vocêtemalgumainformaçãoquepoderiaajudar

atrazê-lasdevolta?–Não.Sóquisdizer…–Achaqueascriançasestãocomseupai?–Disseramqueelemorreu.–Certo.Foioquemecontaram,também.–Acreditouneles?–Chasemalconseguiadisfarçarsuavulnerabilidade.Bingham já avaliara o que tinha pela frente. Em determinadas

circunstâncias, orientaria o cliente a fechar o bico, não dizer mais umapalavra a ninguém, ganhar tempo para dar início ao controle de danos,usar o sistemaa favordo cliente.Mas vira fotosdas crianças, soubepelapromotoriaqueasautoridadesdescon iavamdequealgoaconteceracomo sequestrador e que elas estavam por conta própria no meio do mato,portantoocasonadatinhadenormal.

– Sim. Creio que está morto. Lamento. Sabe para onde ele levou ascrianças?

–Não!Porra,não sei!Elenãomedisse,paraevitarqueeu contasseaalguém.Merda!Porquefezisso?–LágrimassurgiramnosolhosdeChaseenquantoelefalava.Começouatremer,entregando-seàdorquereprimiranasúltimashoras.

Bingham sabia que conseguiria convencer Chase a confessar, mastambémtinhaconsciênciadequeissonãoajudariaa localizarascrianças.

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Lamentou,emparte,terlargadotudoparaatenderorapaz.Abandonaraojogono12ºburaco,comtrêsabaixodopar.

O detetive Martin ainda estava na casa quando recebeu uma ligaçãopelo celular. Tirou o bloco e começou a tomar notas, fazendo perguntascurtas,depoisdesligou.DavideLenaperceberamqueeraalgorelacionadoaocaso.Elebalançouacabeça.

–Asboasnotícias.Osujeitoestáconfessando.–Easmás?–quissaberDavid.–Elenãosabeondeestãoascrianças.–Comoépossível?–perguntouLena– Suponho que esse era o esquema da operação. O tal de Chase

entregouascriançasaopai.Eleaslevouparaalgumlugarsecreto,quenãoorevelouaofilho,paraevitarquecontasseaalguém.

–Merda. –Davidparouna frentedamesada cozinha. –Elenão tinhaumapista,nemumpalpite?

– Nada melhor do que as suposições do FBI. – Martin procuravaelementos positivos. – Mas disseram que é uma área relativamentepequena,paraumabuscadestetipo.

Lena não engoliu a história. As notícias a abalaram profundamente.Perdeuaesperançadepositadanopagamentodoresgate,nocontatocomos sequestradores. Sarah continuava tão distante quanto no sábado àtarde.Lenasentiunáuseaseesgotamento,eMartinpercebeu.

–Lamento–disse.Eprocurouumjeitodeiremboradepressa.–Precisoinvestigar pistas no local onde encontraram a van. Vai icar bem aqui,Lena?

–Vou.– E você pretende ir para as montanhas pela manhã? – perguntou a

David.– Com certeza. Mas que droga! Disseram quem está por trás de tudo

isso?Martinconsultousuasanotações.– Não. Eles não sabem. Foi tudo organizado como nas operações

terroristas,comcélulaseoutrosardis.– Soa organizado demais. Duvido que fôssemos o alvo. Acho que

visavamaJohnWalker.Tenhoaimpressãodequealguémpretendeatingir

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oCitibank.Fomosapanhadosnomeiodeumahistóriabemmaior.– Talvez tenha razão, aomenos em parte – concordouMartin. – Bem,

precisoirembora.Apósapartidadodetetive,DavidpegouocontroleremotoeligouaTV.

Assistiu a uma reportagem ao vivo das Adirondack. Segundo o repórter,umacaçadahumanagigantescacomeçarianodiaseguinte,depoiscorrigiu-seedissequeeraumaoperaçãoderesgate,enãoumacaçadahumana.

– Será uma caçada infantil, melhor dizendo – acrescentou, meioconstrangido.DaviddesligouaTVedesceusemdizernada.

Minutos depois o telefone tocou e Lena ouviu a voz da mãe. Olhandoparaorelógio,percebeuqueeramquatrodamanhãnaSuécia.

– Seu pai acaba de sair para o aeroporto. Vai pegar um voo paraMontrealbemcedo–disseSally.

–Ah,não!–Tentamosdetê-lo,Lena.Sylvie icouaquiatétardedanoite.Umvelho

amigo do Exército disse que o ajudará a atravessar a fronteira emsegurança.Achoquenuncaovitãoagitado.

Lena relatou a Sally as novidades e a decisão tomada por David departicipardabusca.

– Tenho o telefone do amigo de seu pai emMontreal – disse Sally aosaber disso. – Pode falar com ele lá. Deve chegar por volta das cinco,amanhã,horáriodevocês.Quemsabeeleaceiteconselhossensatosdesuaparte.Talvezeleaceiteapenasvoaratéaí.

–TalvezatélájátenhamencontradoSarah.–Deusteouça,meubem.Imaginoosufocoquevocêestápassando.Lena parou e não pensou em nada no intervalo da conversa. E disse

algoqueasurpreendeu.–Mãe?–Sim?–Estougrávida.Lenaesperouatéquearevelação fossedigerida.Sallyquis tercerteza

dequeouviracorretamente.–Bem…como,quando?–Quando?Nãosei.Descobriontem.AindanãoconteiaDavid.–Ofilhoédele?–Mãe!–Seilá,nãocontouaele.MoronaSuécia,lembra?

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–Sim,ofilhoédele.–Entãoporquenãocontalogodeumavez?Porquenãofalouainda?–Quersaberaverdade?–Claro.– Estamos meio distantes. As coisas não andam bem. Tentamos nos

entender,sabecomoé,masachoquedesistimos.Nãoseinemoquesintoarespeito.E,comodesaparecimentodeSarah…

Aslágrimasescorreram,Sallyouviuafilhachorar.–Ah,Lena,seeuestivesseaí.Vocêquerqueeuvá?–Nãoprecisa,mãe,tudobem.Davidsubiueperguntouquemera.Lenadissebaixinho:“Minhamãe.”E

continuouaconversa.–Passeonúmero,mamãe.Vouverseconsigofalarcommeupai.Elaanotouo telefone. Sallydissequeestava contentepelagravidezda

ilha. Lena resmungou uma resposta, pois David continuava na sala, edesligou.

–PapaiestáacaminhodeMontreal.Arranjouumcaraparaajudá-loacruzarafronteiraclandestinamente.

David sentiu uma espécie de ciúme infantil, como se Richard quisesseroubar a cena,mas afastou a impressão e demonstrou preocupação pelosogro.

– Ele pode pegarmuito tempo de cadeia. E pra quê?Mais um par deolhos nas montanhas? – Ao dizer isso, porém, se deu conta de que eletambémnãopassaria demais umpar de olhosnasmontanhas e,mesmosem correr risco de ser preso, sua viagem era tão quixotesca quanto aatitudedosogro.Resolveudescernovamente.

Lena ouviu os passos de David, que descia para o porão. Pensou nodiálogocomamãe,quandodisseaelaqueestavagrávida.Umpensamentosombrio,assustador,quaseaderrubou.Aqueleembrião,onovobebê,seriaumacompensaçãopelaperdadeSarah.Percaum.Ganheoutro.Percebeuna hora a insensatez da ideia, mas a força da terrível equação eratremenda, quase ísica. Lena lutou para manter a cabeça fora d’água,chegar à terra irme da racionalidade, onde acaso e coincidência nãopassavam do que realmente eram, e não uma compensação irônica dosdeuses.Mesmoassimopensamentocresceuetomoucontadesuamente.As quatro horas seguintes foram as mais medonhas que enfrentou.Perderia Sarah. Já tinha perdido. E a chegada de outro bebê era tanto aprovadissoquantoacompensação.Asensaçãoseaprofundouapontode

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ela considerar o pensamento insano de que precisava abortar para terSarahdevolta.Perambuloupelacasa,semsaberdireitoondeestava.

Tudo o que podia fazer era checar a conta de e-mail no computador,mas não havia nenhumamensagem, o que só piorou sua histeria. Então,tirou a roupa e foi para debaixo das cobertas. David entrou no quarto ecomeçouasedespirminutosdepois.

– Está tudo pronto. Vou sair bem cedo – disse, indo para o banheiro.Lena, agitada, esperou que ele voltasse e entrasse debaixo das cobertastambémparadespejaraspalavras.

–David,vamosteroutrofilho.Ele pensou que Lena queria trazer outra criança ao mundo, pela

intensidadecomqueelafalou.–Quandoissotudoacabarpodemostentar,fazerqualquercoisa…–Vocênãoentendeu.Jáestougrávida.David itouosolhosarregaladosdamulher,tentandoencaixaranotícia

nomododramáticocomqueforaapresentada.Gaguejou:–Émesmo?–Lenafezquesim,chorosa.–Quandovocêdescobriu?–Ontem.Lembraquefiqueienjoada?– Puta merda. – Então, como Lena, ele tentou se lembrar de quando

haviamfeitoamorpelaúltimavez.Lenapercebeu.–NaquelamanhãemqueSarahnosinterrompeu.Davidlembrou.Adatarepresentaraumaviradaemsuavida.Acordara

antesdeLena,osonocortadopelaculpa,adúvidaarespeitodeseucasocom Tricia. Viu Lena, maravilhosa, a seu lado e sentiu uma profundarenovaçãodeseuamorporela.

–Foisensacional–disseele.Lenarejeitouaa irmaçãocomumgestoeseusolhosendureceramnovamente.

–ÉporcausadaperdadeSarah–gaguejouela,sufocadapelopranto.–Seidisso.Sarahsefoiparasempreevamosganharumnovofilho.

–Lena.–Davidseaproximou,maselaoempurrou.–Não.Presteatenção.Pensebem.David passou rapidamente para o lado de Lena da cama, segurou-a

pelosombroseaobrigouaencará-lo.–Pare.Lena,chega.Nãodigabesteira.–Nãoestoudizendobesteira.Porqueoutrarazãoumbebêviriaagora?– Porque izemos amor e você engravidou. – Ele a segurou commais

força,queriaarrancardacabeçadelaessaideiaabsurda.–Olheparamim,Lena. Trata-se de uma nova vida. Não é Sarah. Não tem nada a ver com

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Sarah.Nossa ilhavaivoltar.Prometo.Estebebêtemvidaprópria.Énossofilho…

–Mas…–Nossobebê,Lena.Seu,meuedeSarah.Ele a olhou com tanta certeza e paixão que Lena não pôde evitar,

abandonou o buraco escuro dos pensamentos sombrios e se entregou aele, a seus olhos, a seus braços. Aliviada, o puxou para perto de si e obeijou,semparardechorar.Disseramtudooquehaviaparaserditocomseus corpos. Foram além da razão e do amor, da perda e da dor.Abraçaram-secomtodaaforça.Re izeramseusvínculose,umpoucomaistarde, dormiram abraçados, exaustos das incertezas profundas edominados por uma alegria indescritível, como se no meio da noite aaurorairrompessenoquartodeles.

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Trinta

UMVENTOFORTESOPROUNAclareiradurantemetadedanoiteeobarulhoquefazianasárvoresenosvidrosdasjanelasmanteveascriançasacordadasealertasmuito tempo depois de seus corpos famintos desistirem. Deitadosnos colchões frios, tremendo,ouvidosatentos, elas se revezaramà janela,procurandoursos.

Quando a ventania amainou e as nuvens se dispersaram, revelandouma lua quase cheia, Sarah, espiando pela janela, se deu conta de queseriam obrigados a tentar voltar até a estrada quando amanhecesse. Acomida acabara. O computador não funcionava. Sim, a loresta escondiaameaças,mas elesnãohaviamandado até a cabana semavistar nenhumurso?Oqueosimpediadecaminhardevoltasemencontrá-los?

Adireção seria o pior problema.Que rumo tomar?Nãohaviamaneiradedeterminarqual trilhaquedavana clareira eles haviam seguidoparachegar ali. O Sr. Everett garantiu isso quando os obrigou a girar com osolhos vendados. Ele havia tornado a última parte da caminhada umaespéciedejogodeprenderorabonoburro.

Sarahsentouderepente.Alembrançadabrincadeiradorabonoburrotraziaalgumsigni icadoparaela,algoimportante,masnãosabiaoqueera.Sóbrincaradissoduasvezes, trêsnomáximo,mas saiu-semuitobem.Asoutras crianças trapaceavam, ou alguém precisava gritar “mais quente,mais quente” várias vezes. Sarah, porém, sabia onde estava o burro,embora não enxergasse nada. Agora, olhando pela janela e vendo aclareira iluminada, a temível escolha da trilha a percorrer deixou deincomodá-la. Cheia de si, con iante, engatinhou até onde Linda dormia,aindachoramingando.

–Linda,Linda,jásei.Équenemabrincadeiradebotarorabonoburro.Euconsigoencontrarocaminhodevolta.

A menina não fazia a menor ideia do que ela estava dizendo. Sarahvoltou à janela. Saberia liderá-los, pensou. Se hesitassem, seguiria emfrentesozinha.Seuestômagoroncou,elaarrotoupuroar.Quinzeminutosantes,afomeeraumproblema.Agora,não:Sarahtinhafé.

Quando acordou, Lena sentiu que não queria que David a deixassesozinha. Enquanto se beijavam, combraços e pernas entrelaçados, quase

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pediu a ele que icasse, que a protegesse de qualquer outro ataque deloucura,comonanoiteanterior.Imaginouaspioresnotíciasquereceberiana ausênciadomarido enão sabia se conseguiria lidar comelas sozinha.Chegouapensarnosperigosqueelecorreria,comoalguémquenadaparasocorrerumnáufragoeacabaseafogando.

Masosorrisocon iantedeDavidalevouacontrolarseusimpulsos.ElepassouamãonabarrigadeLena,descendoatéospelospubianos.

–Vocêestábem?–perguntou,comoseintuíssealgo.Lenapegouamãodeleeaguiouparabaixo,demodoqueosdedosdele

a tocassem. David beijou um de seus seios. Ficaram assim por váriosminutos,semlevaradianteoatosexual,semquererabandonarosossegodesuaintimidade.

Depois do café, ele deixou o número do telefone de seu contato nasAdirondack.LesMalone, fundadordoclubedecaça, chamaraseupessoalpara ajudar na busca. Lena foi ao banheiro quando enjoou, mas nãochegouavomitar.Eles sedespediramnasala, comumabraço forteeumbeijo apaixonado. Nada tinham a dizer. David afastou o robe de Lena eacariciousuabarrigamaisumavez.

– Pelo menos não deixarei você sozinha – disse ele. Lena lutou paraafastaraslágrimas.

–Tomecuidado–pediuela,entãoelesefoi.Lena observou quando ele dava ré no carro e passava pelas vans de

reportagem,aosair.Sentiuumpesoinesperadoemsuascostas,umapertonoestômagoquenãoeraenjoomatinal.DavideSarahhaviampartido.Porque elanão foi também?Oquepoderia fazer em casa? Ligou a televisão,não para procurar informações,mas para ter companhia, paramanter ovínculocomorestantedomundo.

Umahoraemeiadepois,Lenaestavanacozinha,tentandoingerirumatigela de cereal, e ouviu o nome “Rostenkowski” na televisão. Voltoucorrendoparaasala.Natela,viuacasadeles ilmadaporumateleobjetivae paramédicos empurrando umamaca da casa para a ambulância, sob aluz fracadamanhã.Umarepórterdizia: “…seguiuparaohospitalPelhamMemorial em condição crítica. No momento, são as únicas informaçõesdisponíveis.” A imagem foi cortada para o estúdio, onde dois âncorasprocuravamexplicarocasocomsobriedade.

–Apressãonasfamíliaséenorme–disseumalouradebatombrilhante

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demais.Seucolega,umhomemquepoderiaserseupai,concordoucomumaceno e folheou anotações para anunciar as reportagens que iriam ao ardepoisdointervalo.

Lenaseesqueceudequecomonovoequipamentodevídeodigitalelapoderia voltar até o início damatéria e assistir à reportagem na íntegra.PegouotelefoneeligouparaosRostenkowski.Ninguématendeueelanãoquis deixar recado. Resolveu ir direto ao PelhamMemorial. Com certezaJanetsofreraumcolapsonervoso,talvezatéumataquecardíaco.

Assumir o volante, abrir a porta da garagem e dar marcha à ré peloacessopareciamoperaçõesestranhas,emborapoucosdiasantes,nasexta-feira à noite, ela tivesse dirigido até a mercearia. Ao chegar no im doacesso, umpolicial da delegacia local a ajudou a passar pelos repórteres,masnãopôdeevitarqueelescercassemocarro.Lena,queaindaignoravaos detalhes do ocorrido, abaixou o vidro e deixou que despejassem asperguntas. Depois escolheu um dos repórteres, o senhor de meia-idadequeestendiaogravadoremsuadireção,eperguntou:

–OqueaconteceuaosRostenkowski?Nãovionoticiário.–Omaridotentoucometersuicídio–gritoueledevolta.–Parecequefoi

isso.Lena ergueu o vidro olhando para ele, procurando evitar o massacre

televisivo.Opolicialaorientouaseguiradianteeela tentou imaginarPhilcomaarmanamão,ouumalâminadebarbearnospulsos,masasimagensnão a convenciam. Ela pensou em Linda, perdida no meio do mato,desamparada pelo ato do pai. Ela não aceitava o suicídio, Lena teriaadmitidoaqualquerum.TalvezfosseporcausadaquantidadeanormaldecolegasquetiraramaprópriavidaquandocursavaocolegialnaSuécia.Oua revolta contra um paciente em potencial que, ao se matar, na práticarecusavaotratamento.Dequalquermaneira,encontravadi iculdadeparatolerar pessoas que preferiam a rota da autodestruição em vez de fazerumatentativa,qualquerquefosse,deresolverseusproblemas.

Entrar no hospital foi mais reconfortante do que Lena imaginara.Aquele mundo ela conhecia, era um lugar onde as pessoas resolviamproblemas. O cheiro adstringente a envolveu. Ao contrário do nebulosoemaranhadodemedosesuposiçõesdosúltimosdias,alihaviaumterrenofirme,referências,umlugarparasuperardificuldadeseseguiremfrente.

Foiprimeiroparaoprontoatendimento,ondedescobriuquePhiljáfora

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medicadoeinternadonumquartoparticular.Aplantonistadaemergência,umamédicaindianacujonomedesconheciaenãoconseguiulernocrachá,reconheceuLenamasnãodissenadaalémderesponderasuasperguntassobre o caso. Phil tomara uma dose de remédios para dormir e talvezalguns barbitúricos também. A esposa o encontrara no início da manhã,desacordado. A lavagem estomacal realizada no pronto atendimento fora“minimamentebem-sucedida”,ouseja,grandepartedosmedicamentos jáhaviasidodigerida.Osantídotosevitaramqueelemorresse,masnãoqueentrassenumcomarelativamenteprofundo.Nas24a36horasseguintes,seria possível saber se ele sairia do coma e se haveria danos cerebraispermanentessignificativos.

–Barbitúricos?–perguntouLena.–Quemreceitaissohojeemdia?–Ajovemmédicabalançouacabeça,desconsolada.

Lena pegou o elevador para subir até o andar onde Phil estavainternado e se lembrou de ummédico de plantão que contou o caso deuma tentativade suicídiodeumpaciente, com comprimidosparadormir,dizendoqueerararohomensrecorreremaessemétodo,poisatendênciadeleséusararmasdefogoousaltaremdoaltodeumprédio.Talveznemsejatentativadesuicídio,apenasumacidente.

Ao entrar no quarto de Phil, Lena só notou a presença de Paul, ilhodele. Mal conhecia o rapaz. Vira-o apenas algumas vezes ao passar parapegar Linda. No entanto, ao vê-la, Paul a cumprimentou com um abraçoforte.Lenaoabraçou,emborasesentissemeioconstrangida.Aofazerisso,notou a presença de outras pessoas no quarto, sentadas em poltronas,perto da parede. Virou-se e viu Sheila Walker e outra mulher, que nãoconhecia.Sheilaacumprimentoucomummovimentodacabeça.

– Lamento muito, Paul – disse Lena, quando o rapaz inalmente seafastou.

–Minhamãecomeçouagritar,descieoencontrei.Tivedeligarparaaemergência.Elevaificarbom?Aquinãoinformamnada.

Lena não queria responder e retribuiu efusivamente a saudação deSheila e da outra mulher, que se apresentou como Ellen, irmã de Phil,residentenoBronx.SheiladisseaLenaqueachamaramporsercapelãdohospital em regime demeio período. Comentou que chamara o padre daparóquiadePhile issotraziaàtonaumaquestãosimilarà formuladaporPaul:opadreeranecessário?Deveriaministraraunçãodosenfermos?

– Não vi o relatório do caso e não sei quais foram os medicamentosingeridos.Maseleparece…

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Lena aproximou-se da cama. Viu Phil, sereno no coma, com o cabelogrosso desgrenhado e uma máscara de oxigênio que lhe cobria a maiorparte do rosto. Ela procurou os sinais clássicos de derrame, comodeformaçãofacialededosencurvados,masnãoachounada.Talveztivesseescapado a alguns dos piores efeitos colaterais de uma overdose decalmantes, ou estivesse se deteriorando aos poucos, imperceptivelmente.Umadasprimeiras surpresasqueLenaaprendeua respeitodamedicinafoi quando se chega a um ponto em que omédico já fez o possível pelopaciente e não lhe resta mais nada a não ser sentar e esperar que anaturezacolaboreouestraguetudo.

–Ossinaisvitaisestãonormais,elepareceestável.Creioquetemosumprognósticopositivo–disse,apósumapausa.

–Ouvidizerqueagentedeveconversarcomumapessoaemcoma,poiselas ouvem tudo – disse Ellen, aproximando-se da cama para acariciar acabeçadoirmão.

–Achoqueéumaboa ideia. – SóentãoLenaestranhoua ausênciadeJanet.Virou-separaPaul:–Ondeestásuamãe?

–Emcasa,dissequenãosuportariaapressão.–Estásozinha?–Achoquesim.Lena sentiu uma súbita e profunda solidariedade em relação a Janet.

Normalmente a criticaria, considerando-a culpada por omissão e pordeixar tudo nas costas do ilho de 16 anos. No entanto, sabia quanto osequestro e a espera conduziam ao pensamento irracional, levando apessoa a fazer coisas que não faria em condições menos estressantes.Imaginou quanto seria mais di ícil ainda se acrescentasse tentativa desuicídio às desgraçaspor quepassavam.Dada a frágil naturezade Janet,pensou Lena, ela simplesmente não conseguia lidar com a enormidadedaquelacrise.

–Achomelhoralguémfazercompanhiaaela–comentouSheilaeLenatorceu para que ela se oferecesse para visitar Janet. Mas a mulher nãodissenadaeosolharesdospresentessevoltaramparaLena,quedisseaPaul:

–Possolevarvocêparacasaejuntosveremosoquesepodefazerparaajudarsuamãe.

Ogarotorespondeudepressa:– Pre iro icar aqui commeu pai. – A frase saiu tão fácil e clara que

mostrou,semsombradedúvida,queelepensaranapossibilidadede icar

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comamãeeserecusara.Nocorredor,aosairdoquartodePhil,LenadeudecaracomMartin.–Comoeleestá?–perguntouodetetive,apontandoparaaportadePhil.

Lenaiaresponderquandoumpadrejovempassouporela,bateunaportaeentrou.Martinprosseguiu:–Unçãodosenfermos?

–Suponhoquesim.Oestadoécrítico.–Souumapostador.Quaisaschancesdele?–Soumédica.Nuncaapostocontraanatureza.–Fazsentido.Percebeuqueelepretendiasematar?–Não.Masagenteraramentepercebe,nocasodesuicidas,nãoé?–Achoquetemrazão.Lena sabia que precisava ir,mas não queria se afastar deMartin. Ele

fora o primeiro. Chegara em sua casa com novidades, informações e… oquê? Fé. Martin simbolizava a fé. Era irme. Os agentes do FBI e LynnWitherspoonnãopassavamdetécnicos.Martinerasuatábuadesalvação.

–Novidades?–perguntouela.–Não.Seumaridojápartiu?–Já.Martin não escondia seu pessimismo quanto à busca,mas não disse a

elaoquerealmentepensava.–Eles enfrentarãoumgrandedesa io.Mas apostoque encontrarão as

crianças.Sheila Walker saiu do quarto e Lena viu o padre preparando o

sacramento.–Esperavaqueaesposa izesse isso,masnãoele–comentouSheila.–

Elepareciamais…nãosei,agitado.–Talvezsejapiorquandoapessoanãodemonstra–disseLena.– Preciso ir – avisou Sheila. – Não sei como, mas preciso preparar o

aniversário de80 anosdaminhamãe. Ela sofre deAlzheimer.Nem sabeque Franklin desapareceu. – Ela arriscou um sorriso débil. Lena secomoveu.

–Voucomvocêatéaporta.–LenasevirouparaMartineapertousuamãodenovo,buscandoenergianaquelesolhosazuis.–VisitareiJanet,paraversepossoajudaremalgo.

–Elanãoestáaqui?Lenafezquenão.Martinfranziuocenho.Noelevador,SheilasurpreendeuLenacomumaconfissão:

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–Admitoquenão sei quasenadadessas coisas,mas iz umapesquisahojedemanhã.EntreinoGoogleEarth, li relatosecasossimilares.Émaisdi ícil do que achar agulha num palheiro. Duvido que encontrem nossosfilhos.

Lenareagiuaoataquedepessimismo:–Eupreciso…querodizer,Davidfoiparaasmontanhas…lamento,não

possoperderaesperança.– Nem eu pediria que izesse isso. Sei que o desespero e o desalento

revelam tanta falta de fé quanto a esperança e omedo.No entanto, umamãe sabe essas coisas, não concorda? Lá no fundo. – Ela apertou oestômago.–Nãodáparadiscutircomestasensação.Nãodáparadisfarçar.

Lena combatia sentimentos parecidos em sua mente. A porta doelevador se abriu. A agitação do térreo lhe transmitiu uma súbitaimpressãodeperigo.

– Espero… – tentou, mas Sheila a interrompeu, virou-se e abriu osbraços.Lenaviulágrimasemseusolhos.

–Sintomuito.Vocêmalmeconhece.Peçoquemedesculpe,àsvezesmedescontroloesourude.

ElasseabraçarameLenasentiuumcarinhosurpreendentenoabraço.

LenapassouporumpolicialfardadoquetomavacontadoacessoàcasadosRostenkowskisentadonumacadeirade jardim.Elaocumprimentouebateu na porta várias vezes, mas desistiu, girou a maçaneta e entrouchamando Janet. Já estava nomeio da sala quando amulher a escutou esaiu do quarto dos fundos. Parecia muito confusa, agitada, mas não tãoarrasadaechorosaquantodaúltimavezemqueLenaaencontrara.

–Ah,olá–disseela.–Janet,sintomuito.AmulherprecisoudealgunssegundosparacompreenderqueLenase

referiaà tentativadesuicídiodomaridoenãoa terentradonacasasemtersidoconvidada.

– Obrigada… –Mas algo se rompeu e um grito que soava como tossesaiu de seus lábios. Lena se aproximou, mas não a abraçou. Janet nãopareciaquererserabraçada.Sóqueriasufocaroestranhoruídoesuperaraquelemomentoconstrangedor.

Sem dizer nada, Janet foi até o banheiro e voltou com lencinhos de

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papel.Voltou recomposta, embora transtornada.OlhouparaLenaporumlongotempo,comoseaexaminasse.

–Quertomarumcafé?–perguntou,semdeixardeencará-la.–Sósejáestiverpronto.Nãoqueroincomodar…Janet nem esperou Lena terminar. Seguiu para a cozinha e Lena a

acompanhou. Janet jogou o iltro cheio de pó velho fora e começou apreparar um café novo. Lena percebeu que protestar não ajudaria emnada. A Janet indecisa do passado recente não existia mais. A Janetatarefada na cozinha revelava-se uma pessoa inesperadamente decidida,meiozumbi,masnadaausente.

–Quaissãoaschancesdele,nasuaopinião?–perguntou,poucodepois.– Não sei, Janet. Não sou especialista na área. Depende de vários

fatores.–Porexemplo?–Seilá.Quantotempodepoiselefoiencontrado.Como…–Calculamosqueforamcercadetrêshoras.Fuidormiràsduas,acordei

pouco antes das cinco.Não o vi na cama ameu lado, então levantei paraprocurá-lo.Encontrei-odormindonosofá.

–Bem,ébastantetempo,mas…talveznãotenhasidodemais.Seestavacom o estômago cheio… – Lena percebeu que se arriscava mais do quegostarianoprognóstico.MasJanetnãoeraaquaseviúvadesesperadaqueelaimaginavaencontrareaconversaseguianumtompraticamenteclínico.

O café acabou de coar e Janet surpreendeu Lena com omesmo olharixo de antes. Lena sentia-se examinada, julgada, avaliada. Finalmente,Janet saiu da cozinha, gesticulando para que Lena a acompanhasse. Elaobedeceue,quandoaalcançou,Janetestavaparadanaportadoescritório,pertodosquartos.

– Veja isso – disse Janet, fechando os braços em torno do corpoenquantodavaumpassolateralparaLenapassarpelaporta.

O escritório estava uma bagunça. Havia papel espalhado por todos oslados, gavetasdaescrivaninhaarrancadasdo lugareviradasno chão.Osquadrosestavamforadoganchonaparede,algunscomovidroquebrado.Lenasópôdepensarqueacasatinhasidoinvadidaporladrões.Janetnãoexplicounada.

–Elefezisso?–perguntouLena,finalmente.–Não,fuieu.Janet não falou mais nada. Lena não sabia se deveria insistir nas

perguntas.Masolongosilêncioaincomodou.

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–Vocêestavabravacomele?–indagouLena.– De certo modo. – Havia resignação na voz de Janet. Na cozinha, a

cafeteiraemitiaruídosaocoarorestinhodocafé.Janetviroueseguiuparalá.–Esqueci.Vocêtomacomcremeeaçúcar?

– Só um pingo de leite. – Lena deu uma última olhada na cenadesoladoraesaiu.

Comosenãotivesseacabadodemostrarumescritóriodestruído, Janetcomeçou a pôr a mesa do café. Lena percebeu subitamente que estavadiante de uma pessoa em choque. Surpreendeu-se por não ter pensadonissoantes.Claro,testemunharacasossimilaresmuitasvezesemsuavidapro issional, maridos e mulheres perambulando pelos corredores dohospital, nos momentos posteriores a uma morte, parecendo calmos esensatos,sóparadesabaraomenorfuronabolhadeseusofrimento.Lenacompreendia a fragilidade à sua frente e se preparou para um possívelcolapsodeJanet.Elassentaram-se.

–Euestavaprocurandoalgoespecí ico–disseJanet,comoseestivessecontinuandoafraseanterioreLenaprecisouseesforçarparaacompanhá-la, lembrar o quedissera antes. Janet a ajudou. –Não é que eu estivessebravacomele.Fiqueifuriosaporeleterfeitooquefezsemmeinformar.

–Nãoentendo.–Vaientender.Espereeverá.Janet começou a ofegar, Lena não sabia dizer se a mulher estava a

pontodegritarouchorar,talvezosdois.Duranteumalongapausa,porém,elapermaneceuimóvel,olhandoparaamesa.

–Tudocomeçouquandosofrioacidenteeoplanodesaúdenãocobriutodasasdespesas.Vocêsabedisso.Jácontei.

– Sei – respondeu Lena, embora não soubesse a que Janet se referiaquandodisse“tudocomeçou”.Presumiuqueatentativadesuicídiofosseofinal.

–Depoisdaquilo,nuncamaisparou.Diasim,dianão,depoisqueadornapernaenamão inalmentepassaram,ascontascontinuavamachegar.Depois vieram os cobradores. Depois as negociações e as prestaçõesmensais.Euestavanomeiodeumaaula, tentandoensinaramatéria,esóouvia dentro da minha cabeça quanto devíamos e pensava naimpossibilidade de pagar. Ninguém nos dava atenção. Ninguém seimportava.Éramosasvítimas,masninguémligava.Sabecomoéisso?

Não era possível responder a essa pergunta. Lena apenas balançou acabeça. Havia anos que Janet contava versões atenuadas dessa mesma

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história.– Então foi chegando cada vez mais perto a época de Paul ir para a

faculdade,eapressãoaumentouaindamais.Não tínhamosnadaalémdoemprego.Nãotínhamoscomoaumentarnossarendaeasdívidassugavamtodososnossosrendimentos.Comopoderíamospagarumafaculdadeparaele?

–Seicomoé–disseLena,demonstrandosolidariedade.– Sabe coisa nenhuma. Pelo amor de Deus, não me venha com essa.

Vocêémédica.Podeatédizerqueentende,masnãodigaquesabecomoé.Lena apenasbalançou a cabeça, constatando a agressividadeda frase.

Janetprosseguiu:– Quando Phil viu o anúncio prometendo ummilhão, o que acha que

fizemos?– Ummilhão? – perguntou Lena, sem compreender o que a conversa

tinhaavercomadestruiçãodoescritórionofimdocorredor.–Dosestrangeiros.Elesdisseramquepodiamajudarpessoascomonós,

comsériosproblemas inanceiros.Erammuitopro issionais.Philsótratoucomeleson-line.Oesquemaeracomplicado,masnãoviolento.

Lenasentiuoscabelosdanucasearrepiarem.Deixoudeladoasnoçõesdechoqueeincoerênciaporcontadosofrimento.

– Phil nem me contou o que estavam tratando até terminar oplanejamentodacoisatoda.

–Quecoisatoda?–Oqueacha?–Aondevocêestáquerendochegar,Janet?Digalogodeumavez!Janetprosseguiunomesmotomduro,apesardaslágrimas.– Disseram que já tinham feito isso dúzias de vezes. Nenhum

investimento,nenhumadiantamento.Oquevocêteriadito?–Nãosei!Eunãofaçoamenorideiadoquevocêestáfalando!–Claroquefaz!Porfavor,Lena,acorde!Nósfizemostudoacontecer.Foi

ideianossa!Paraganhardinheiro.Nãopercebeuainda?Lenasentiaapenasqueumaraivamortíferase formavadentrodesie

precisou se controlar aomáximo para não pular na garganta de Janet earrancaraquelecoraçãomalvadodopeitodamulher.Nãoprecisavamaisdosdetalhes. Podia preencher as lacunas sozinha.OsRostenkowski eramos responsáveis pelo esquema todo, eles é que tinham arquitetado tudo.Jamais os perdoaria pelo que izeram, jamais. No entanto, no mesmoinstanteconcluiuqueomodo frio,quase insanocomque Janetrevelarao

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segredo a obrigava a controlar o ódio e o profundo desejo de vingança,parausaraquelamulherelocalizarSarah.

–Vocêsinventaramisso?–Não,foiele.–Querdizer,vocêsagitaramisso?Foiideiadosdois?–Maisoumenos.Nocomeço,seriaapenasumacriança.Maseleinsistiu

paraquefossemquatroe…–Qualcriança?Quemseria?–Sarah.Lenasentiuvontadedeatacaredestruiraquelemonstrohorrorosoque

estavanasuafrente.Nuncasentiranavidatamanhodesejodematar.Maisumavez,porém, lutoucontrao impulsoviolento, sabendoquearrebentaraquelamiserávelnãotrariaSarahdevolta.

–Ondeascriançasestão?–Nãosei.– Ah, sabe sim, sua desgraçada. É sua ilha. Você tem de saber. Onde

estãoascrianças?Janetapontouparaoescritório.–Estãoali.Aindanãoentendeu?Por um breve segundo, Lena pensou que as crianças estavam

escondidasnacasadosRostenkowskidesdeoinício.MaslogodeduziuqueJanethaviadestruídooescritóriopornãosaberondeeraocativeiro.Philtentara se matar, levando com ele as informações sobre as crianças, oudeixando-asnoescritório,escondidas.

–Philsabia,masvocênão?–Issomesmo.–NãotemmedodequeeuchameoFBIeLynnWitherspoon?OolharperdidodeJanetfoiarespostaqueLenaqueria.Elarelembrou

os últimos dias, as reações de Janet aos eventos, e se deu conta de queeram exageradas, irracionais mesmo para a irracionalidade da crise,estranhamenteforadesincroniacomseunormal,poisJanetviaoepisódiointeiroporoutroângulo.Quandoose-mailsdascriançaschegarameChasefoi preso, quando perceberam que o esquema dos sequestradoresacabaria sendodesvendado, Janet ePhil praticamente sumiramdomapa.Derepente,tudoseencaixavadireitinho.

–Nãomeimportaqueaspessoassaibam–disseJanet,apósumapausa.–Philsabeondeelesestão?– Não,mas conhece as pessoas com quem tratamos. Disse que tentou

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contatá-las novamente, mas os canais de comunicação foram cortadosassimquerecebemosodinheiro.

Lenateveasúbitaimpressãodeestartendoumsonho.Atéondeeleia?Depois que Sarah partiu para o acampamento, ela teria deitado no sofáparaumcochilo, e tudooque aconteceu em seguidanãopassaria deumlongopesadelo?Antesfosseassim.Ninguémnomundorealdeixariaqueaprópria ilhafossesequestradasemplenoconhecimentodasprovidênciasdossequestradoresarespeitodela.Sónumsonhoalguémagiriasemlevaremcontaoserroshumanos.

–Duvidoquesejaverdade–disseLena,tentandodespertar.Janetnãoreagiu.Levantou-sedamesadacozinhaevoltouaoescritório.

Lenaaencontrouláminutosdepois,debruçadasobrepilhasdepapéisquefolheava apática, distante e ensimesmada como um paciente no salão deconvivênciadeuma instituiçãoparadoentesmentais.A imagemarrancouLena do espinhoso reino da vingança e a levou a pensar no que seriapossívelnaquelascircunstâncias.Encontrava-senocentrodoesquema,nolugar que ela contava ser, desde o começo, a fonte de informação arespeitodeSarah.Oqueprecisavafazer,porém,paradesencavarosfatossecretos? Não sabia. Com di iculdade, tentava manter o raciocínio parapesar os prós e os contras. Seu subconsciente alertava que levar acon issão de Janet às autoridades no momento não seria nada útil epoderia até ser um passo para trás. Porém não sabia se conseguiriaguardarsóparasiapavorosarevelação.Mas,pensou,deveseroheroísmoexigidonabatalhaparaSarahvoltaraseusbraços.

Janetlevantoueiasairdoescritório.–Nãotemnada,aqui.–QuandoPhiltentouentraremcontatocomossequestradores?–Elenuncamantevecontatocomossequestradores,sócom…– Eu me re iro aos intermediários. Quando tentou entrar em contato

comeles?–Ontem.–Eoqueaconteceu?–Nadadeucerto.Telefone.E-mail.Nemsabemosdequepaíselessão.

Philcontouquemalconseguiamredigirumafraseinteiraeminglês.–Comoreceberamodinheiro?–Estánumaconta.Masnemfaledisso.–Seutomameaçadorinsinuava

queLenaerainsensívelportocarnoassunto.– Falo do que eu bem entender! – exclamou Lena. – A merda do

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dinheiro!– É isso aí, a merda do dinheiro! Onde você se escondeu quando

precisávamosdeajuda?Lenaviuqueaconversavoltariasempreàmesmaquestão.Temiaque

Janetperdessecontatocompletocomarealidade.– Se a informação não está aqui, precisamos ver Phil – disse Lena,

parandoJanetàporta,tentandoencará-la.–Nãoposso.–Vocênãotemescolha,Janet.Seforatéláefalarcomele,talvezsaiado

coma.–Nãopossofalarcomele–disseJanet.–Philnãoquerqueeufalecom

ele.Nãoquisconversarnanoitepassada.Ele…– Podemos trazê-lo de volta – insistiu Lena, enfrentando a teimosia

agressivadeJanet.–Como?– Podemos usarmedicamentos. Não seria uma volta permanente,mas

ele teria momentos de lucidez, poderia se comunicar. – Lena não tinhamuitacertezadisso,masestavaficandodesesperada.

–Sequiser,vá.Eunãovou.–Vaimeobrigarachamarapolíciaelevá-laàforça?–Tantofaz.Podechamar.Eunãovousairdaqui.LenareprimiuoimpulsodeagarrarJanetpelocabeloearrastá-lapara

foradecasa.–Ésuafilha,Janet.– Sei disso e quero que ela retorne, tanto quanto você quer a sua de

volta.–Quernada!–gritouLena,prensando Janetcontraaportacom força.

Osolhosdelasearregalaramdesurpresa.–Nuncamaisdigaisso!Vocêsópensa em si mesma! Não teria sido capaz de fazer isso a Linda se aamasse! Você não passa de um monstro, incapaz até de ir ao hospitaltentarsalvarsuafilha!

Os olhos vidrados de Janet não indicavam reação alguma. Sinal deencrenca,pensouLena.Argumentarestavaforadequestão.Elasegurouobraço de Janet com força e a puxou na direção da porta da frente, quedavaparaarua.

–Querpegarabolsa?Janetnãorespondeu.Lenaaempurrou,abriuaportadacasaesedeu

conta de que precisaria passar pelos repórteres de plantão. O policial

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saltou da cadeira e atravessou o gramado para ajudá-las. Seu olharinquisidorconvergiuparaLena.

– Por favor, preciso de ajuda para colocá-la no carro – disse Lena,depoismudoude ideia. –Não, pode deixar. Eu dou um jeito.Mantenha aimprensaafastada.

O policial deu meia-volta e desceu pelo acesso de braços estendidos,gritandocomoscâmeras,jáapostos.

–Nãopossofalarcomele–resmungouJanetenquantoiamparaocarrodeLena.

Semdizernada,Lenarezavaparaconseguiren iaramulhernoveículoantesqueelasurtasseporalgummotivo.Aoseaproximaremdaportadopassageiro, Lena olhou para as equipes de reportagem. Uma foto de seuolharsetornariainstantaneamenteosímbolodosequestro:amãedeumavítima ajudando outra, uma médica capaz de amparar uma amigadesesperada, o clima da tragédia concentrado numa única imagem. Pelomenos foi a interpretação geral até a verdade vir à tona. Então um bomobservador veria que as duas saíam numa espécie de diligência e queLenasentiaumavontadeassustadoradegritarparaascâmeraseparaomundo inteiro ouvir que Janet e Phil estavam metidos até o pescoçonaqueleesquemasórdido.

Lena empurrou Janet para dentro do carro, deu a volta e rezou paraestarfazendoacoisacerta.

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Trintaeum

O DETETIVE MARTIN, AVISADO DA PRESENÇA de Lena e Janet no hospital, asaguardava na saída do elevador. Cumprimentou as duas com umacarranca que Lena nunca vira, levando-a a imaginar que ele sabia daparticipaçãodosRostenkowski.EledisseaJanet:

–Sra.Rostenkowski,lamentooocorrido.Janet, que não abrira a boca no caminho até o hospital, só balançou a

cabeça.LenapercebeuqueMartinnãosabiadenada.–Algumanovidade?–perguntouJanet.– Não. Seu ilho e a irmã do Sr. Rostenkowski continuam falando com

ele,semobterresposta.Lena se esquecera de que Paul estava ali. Quando olhou para Janet,

notousuatensãopormencionaremonomedofilho.– Janet? Por que não ica um pouco com o detetive Martin enquanto

verificoqualéasituação?Nãoprecisoupersuadi-la.Ela largouocorponumapoltronaplásticano

corredor.OdetetiveMartinlançouumolharinquisidorparaLena,maselaoignoroueseguiuparaoquartodePhil.

Ellen e Paul continuavam no mesmo lugar onde os deixara. Olharamparaelacomalívio.

–Nãoadiantounadaatéagora–disseEllen,ePaulconcordoucomummovimentodecabeça,atrásdela.–FaloucomJanet?

–Sim.Elaveioparacácomigo.–Ah.Paul icou visivelmente tenso ao saber disso, piscando nervoso. Lena

percebeu que ele não queria ver a mãe. Pensou que o rapaz talvezsoubesse da verdade, que talvez nos minutos entre o momento queencontraram Phil e a chegada do socorro, Janet tenha revelado tudo,traumatizada. Ao se aproximar do leito, porém, um pensamento sombrioincomodouLena.EsePaulsoubessedetudodesdeocomeço?Ese izesseparte do esquema? Mas o garoto a itou com olhos inocentes, quaseassustados. Ele não sabe de nada, concluiu Lena, consciente de que seunível de con iança na humanidade vinha despencando desde que J.D.

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bateraàsuaporta.–Achoqueémelhorvocêsdois iremparaa saladeespera,no imdo

corredor.TalvezhajaalgumprogressoseeleperceberqueJanetestáaqui–dissefinalmente.

Os dois concordaram e obedeceram. Lena aproveitou o instante a sóscom Phil. Examinou seu rosto, coberto pela máscara de oxigênio, a pelemorena,afaceossuda,ocabelopretogrosso.Aofalarcomele,extravasoutodaasuaraiva:

–Torçoparaquepossameouvir,seu ilhodaputa.Esperoquesaialogodestecomaidiotaparapassarorestodavidapagandopeloquefez.Vocêéum merda, um covarde. Se tiver alguma informação sobre o sequestro,acho bom falar logo. Vou mandar a desgraçada da sua mulher entrar.Queroouvirtudooquevocêsabe.

Quando se deu conta, estava sacudindo o braço de Phil com violência.Recuperandoocontrole,elasaiuparabuscarJanet.

Martin percebeu o desequilíbrio de Lena. Perguntou se estava tudobem.Eladissequesim.PedindolicençaaJanet,elepuxouLenapelobraço,avançouumpoucopelocorredoredissequeprecisavaconversarcomela.Lenaapostavaqueelesabiadealgo.

–Nãosoumédico–começou,emvozbembaixa.–Masaquelasenhoranãomeparecenadabem.Nemolhouparao ilhoquandoelesaiu.Nãoseisefoiumaboaideiatrazê-laaqui.

– Ela precisava vir. É nossa única esperança – Lena deixou escapar eenrubesceu.

–Nossaúnicaesperança?–Desalvaravidadele.–Achamesmo?Lenanãoiacairemcontradição.PrecisavalevarJanetaoquartodePhil

imediatamente,porissorecorreuaseustatusprofissional.–Confieemmim.Podedarcerto.Jáviissofuncionarantes.Janet passou quase um minuto no quarto até itar o marido. Di ícil

decifrar o jeito como ela o olhava. Havia certa melancolia em seu rosto,umaexpressãotristonhaquemisturavaperdaeremorso.

–Falecomele–ordenouLena.–Aproxime-seefalecomele.Janetseassustoucomotomimperativo.–Como?– Como sempre faz. Pergunte a ele como entrar em contato com o

sujeito…sejaquemfor,sejaláqualforseunome.

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Janetenrubesceuehesitou.–Nãoadianta.Nãointeressaoquedizem.Elenãopodemeescutar.–Vocênãotemcomoafirmarisso.Precisatentar.–Elenuncameouve!Porquemeouviriaagora?–Comoassim,elenuncaaouve?Vocêsdois…– Eu não queria me meter nisso! Foi ideia dele! Tentei convencê-lo a

desistir,maselenãoquissaber!–Nãoacredito.–Éapuraverdade.Achaqueeuqueriaqueminhaprópria ilha fosse

sequestrada?–Mas icoulá,parada,enquantoJ.D.alevavaembora.Nemtentoudetê-

lo.– Não podia. Tudo iria por água abaixo… não ganharíamos nenhum

dinheiroassim.Lena viu que Janet perdia contato com a realidade e entendeu que

mencionar o dinheiro de lagrava o processo de distanciamento. EntãoobrigouJanetasevirareencararPhil.

–Falecomele.Digaquenãoteveacessoaodinheiro.–Nãoposso.–Fale!Lena segurou os ombros de Janet com irmeza, paramostrar que não

aceitava um não como resposta. Janet respirou fundo e seus olhos seencheramdelágrimas.Apósreunirforças,eladisse:

– Phil. Precisamos encontrar Linda, Phil! – Virou-se para Lena, quesoltaraseusombros:–Issoé…

– Continue tentando. – Lena ergueu as mãos, intimidando a mulher.Janetobedeceu.

–Phil,porfavor.Nãomedeixesozinhaaqui.Medigacomoencontrarosfacilitadores.

Lena quase engasgou ao ouvir a palavra. A frieza com que osRostenkowski agirammultiplicou-se por 10 ao ouvi-la usar um termo tãoclínico,estéril,insincero.Lenasufocouaânsia.

Paranãovomitar,abriuaportaparasairetomarumpoucodear.–Nãoparedefalar.Jávolto.No corredor, Lena achou que fosse enjoar de novo, como durante o

desconfortomatinaldavéspera.Masanáuseapassoue,aoergueravista,deparoucomodetetiveMartin,queaencarava.

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–Nãosepreocupe,estoubem–disseela,respirandofundo.Martinnãoreagiu,pareciamuitodistante.Depoispiscouebalançouacabeça.

– Como estão as coisas lá dentro? – perguntou, apontando para oquarto.

–Janetestátentandofazê-loacordar.–Elanãoterámuitotempo.– Como assim? – Lena captou um toque de repugnância na voz de

Martin.–Lynnestáacaminhoparainterrogá-la.–Interrogá-la?– Ela me telefonou avisando que conseguiram informações novas.

Conversou com osWilliams, com osWalker. E… –Martin parou de falar,pareciadistante,avaliandoquantodeveriarevelaraela.

–Eoquê?–elaquissaber.– Pelo jeito os técnicos em segurança da informação do Citibank

detectaramumvínculoentreocomputadorusadoparaenviaropedidoderesgateeomicrodosRostenkowski.

– Como assim? – Lena até que foi convincente ao ingir ignorância. –Querodizer,elesentraramemcontatocomtodosquando…

–Antes.Mesesantes.–Aondequerchegar?– Só estou dizendo que surgiram dúvidas. E, com a tentativa de

suicídio…–Martindeixouafrasenoar.Lenaquaseconfessouquejásabiade tudo,mas, se izesse isso,Lynn iaquerer falar comela também.Enãopodiaseratrapalhadanomomento.PrecisavadasinformaçõesquesóPhilsabia.

ElabalançouacabeçaeMartinpercebeuquenãopretendiafazermaisperguntas.

– Deve haver algum engano. – Sem esperar a resposta, olhou para oquarto.

–Nãovaidizernadaaela,nãoé?–Não.Lena não conseguiu itar os olhos azuis do detetive. Quebrara uma

promessaquehaviafeitoasimesma.Mentiadenovo.

DavidpegouaTaconicParkwayatéAlbany,depoisaNorthway,paraas

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Adirondack. Não havia muito trânsito e resolveu ultrapassar o limite develocidade, às vezes alcançando 140 quilômetros por hora. Se fossesurpreendidoporumguarda, já imaginavaqueo convenceria a poupá-lodamultaseexplicassequalerasuamissão.Preenchiaashorasvagascomcenáriosvariadosparaseuêxito.SeuesforçoseriarecompensadoquandoSarah se jogasse em seus braços. Seguindo as instruções de Malone e omapa do Google no assento do carona, saiu da Northway e foi para asmontanhas.Seuotimismodiminuiu.

Esperavaencontrarvárias ileirasdeautomóveis, supunhaquemuitaspessoasparticipariamdabusca, comoele.Mashaviapoucomovimento.Amata dos dois lados da pista era densa, impenetrável mesmo sob a luzclaradosolmatinal.Quandochegounoaltodeumasubidaedeparoucomumapaisageminterminávelformadaporcolinasemontanhascobertasdeflorestasatéospicosdistantesescarpados,quasedeumeia-voltaedesistiu.Oqueestavapensando?

Encontrar Malone, 40 minutos depois, não ajudou muito. Em vez detopar com um morador local tarimbado, como imaginara, o cinquentãoexibia traçosdelicados, umapertodemão frouxo e se vestia com roupasnovasdaLand’sEnddospésàcabeça.

–Quebom,vocêachouagente–disseMalonequandoDavidestacionounafrentedacasa.Estavanoacesso,comcercade10outroshomenseumamulher, nenhum dos quais inspirava muito con iança. Apresentou-o atodoseDavidtentouafastarocansaçodaviagemeadecepçãodachegada.A última pessoa a quem o apresentaram era um homem de aparênciajovem, com 20 e poucos anos, vestindo camisa abotoada até o pescoço ecalçacáqui,quemalconseguiaretribuiroolhardeDavid.

– Este é Steve Popper, do jornal local. Pediu para ir conosco. Algumproblema? –Malone fez uma pergunta retórica, pois já estava decidido alevá-lo. David não queria um repórter na busca, mas não teve escolha,perdidoemterritóriodesconhecido.Paraobemouparaomal,Maloneeraseuguia.

Ozumbidoinsistentedeummonomotorfoiouvidoetodosergueramosolhosparaver,contraocéumatinal,asilhuetadeumaviãoquepercorriaumatrajetóriaoblíquasobreacidade.Antesqueoruídocessasse,MalonegritouparaDavid:

–Éumaviãodebusca!Davidmanteveosolhos ixosneleatéquedesapareceu.Quandobaixou

avista,Maloneestendeuummapatopográ icosobreocapôdocarroeas

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pessoasorodearam.–Chamamosissodeestratégia“dedosdamão”–disse,depoisquetodos

estavam organizados em semicírculo. – Cinco veículos diferentes partirãopor cinco estradas distintas, conforme a grade montada, procurandotrilhasquelevemàsestradase…

–Sehouvertrilhas–disseumdoshomens,obviamentecontinuandoumdebatesobreoplanoquecomeçaraantesdeDavidchegar.Outrostambéminterferiram.Davidviuaconfusãoseinstaurarepercebeumuitaincertezaentreosintegrantesdaequipe.SentiuumsúbitodesejodefalarcomLena.Tirou o telefone celular do bolso, viu que ainda havia algum sinal e seafastou do grupo para ligar para a mulher. Esperou, examinando orepórterqueoencaravahaviamuitotempoefaziaanotaçõesnumbloco.

Sarah cochilava quando a primeira luz da manhã surgiu a leste. Aoacordar,percebeuqueas três criançashaviamsaídodoquartoeouviuaconversa que travavam. Já era praticamente dia claro. Ela sabia que algoimportante ocorrera durante a noite, mas não conseguiu lembrar o queera.Derepente,serecordou:eraabrincadeiradepregarorabonoburro.Levantou-seefoiparaooutroquarto.

Ascriançasestavammeiodesorientadas.Franklincontinuava tentandofazercomqueonotebookfuncionasse,masosoutrosapenasconversavam,sentados. Depois da reação de Linda à sua revelação sobre o burro nanoite anterior, Sarah resolveu contar ao grupo o que pretendia fazer ecomoagiria.

–Nãopodemoscontinuaraqui–começou,interrompendoasconversas.–Precisamosvoltarparaaestrada.

Osoutrossentiramnelaumafirmezainédita.–Mas não sabemos o caminho – disse Linda, talvez se esquecendodo

queSarahlhedisserahorasantes.–Esepegarmosocaminhoerrado?–perguntouTommy.–Vamosnos

perderaindamais.–Nãovamosnosperder–retrucouSarah.–Garantoquenão.Franklinergueuavistaaoouvirafrase.ElesabiamuitobemqueSarah

não tinhacomoprometeraquilo,maseraexatamenteo tipodea irmaçãoque desejava ouvir. Ela falava como os adultos. Eles prometiam coisasassim para ajudar as crianças a superar seusmedos. “Garanto que vocênãovaiseafogar.Venha.Nadeatéaqui.”Franklinnãofariaumapromessa

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assimaosoutros.Conheciaasprobabilidadeseseriaincapazdementir.Noentanto,seSarahsedispunhaaassumirumcompromissodaqueles,estavadisposto a acompanhá-la. Vai ver ela sabe mesmo o caminho de volta,pensou.

–Voucomvocê–disse.–Equantoaosursos?–perguntouTommy.Passaraboapartedanoite

imaginandoque seupai viria salvá-lo, junto como irmão, e queos dois oabraçariam com força, sorridentes. Por algummotivo, quando imaginavaisso, via o pai e Jack portando ri les, embora soubesse que não eramcaçadores.Imaginouqueosrifleseramparaabaterosursos.

Sarahnãorespondeu.Nãotinhanadaadeclarararespeitodisso.Sabiaque conseguiria guiá-los até em casa. Tinha certeza. Mas, se os ursosaparecessem no meio do caminho… bem, ela nem queria pensar nessapossibilidade. Os ursos não vieram até a clareira? Sim. Portanto,permanecer ali não garantia a segurança deles. Pensava assim, mas nãosabiacomoexpressaressaideia,porissoficouquieta.

–Euvou–dissefinalmente,seguindoparaaporta.–Agora?–perguntouLinda.–Agora.– Você não pode me deixar para trás, Sarah. Precisamos icar juntas,

lembra?–Issofoinoacampamento.– O acampamento é aqui! – gritou Linda, a lita, com pavor de voltar à

mataeaterrorizadaporserabandonadaporSarah.Nenhumdeles acreditavamaisqueo Sr. Everett faziaparteda equipe

doArno.MasogritodeLindaoslevouasentirfaltadosmomentosemquese agarravam à esperança de que tudo fazia parte da programação doacampamento. Era muito melhor do que pensar que estavamcompletamentesozinhos.MasSarahnãoquisnemsaber.

–Nãoéoacampamento,não.Vamosembora.–Esaiuportaafora,paraosoldamanhã.Osoutrosaseguiram.

Assim que chegaram à clareira, Sarah virou o centro das atenções.Mesmomordendooslábios,elaimpunhaumanovaatitude,maisdecisiva,eempoucotempoosoutrosacercaramesperandoqueeladissessealgumacoisa.Seusolhosexaminaramoperímetrodaclareira.Umatrilhaconduziaao laguinho. Sabia que não devia ir por ali. Havia o caminho quepercorreram no passeio com o Sr. Everett. Podia ser aquele, mas eladuvidava. Sentia que os outros a observavam. “Ponha o rabo no burro”,

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pensou,mas não queria fechar os olhos. Diriam que ela estava tentandoadivinhar.

Sarah deu meia-volta em sentido horário e viu na sua frente umaespéciedepórtico.Umpardebétulasjovens,cujostroncosesbranquiçadosreluziam ao sol, distantes uma da outra cerca de um metro e meio,arqueadasnotopo,quasesetocando.Porentreostroncosesguios,viuumcaminho que seguia mata adentro. Sarah imaginou uma fada acenandocom a vara de condão que soltava faíscas coloridas para mostrar ocaminho.

–Éporali.–Suavozsooufirme.Os outros olharam na direção apontada. Franklin, já plenamente

convencidodacapacidadedeliderançadeSarah,deuaprimeiraindicaçãodequeaseguiria,avançandoumpouco.TommyeLindaoacompanharam,nãoporacreditaremna liderançadeSarah,comoFranklin,esimpornãoquereremficarparatrás.Tommyteveumaideia:

–Nãodeveríamoslevaralgumascoisas?–Porexemplo?–quissaberSarah,semparardeandar.–Nãosei.Coisasquetrouxemos,comoroupas.–Nãovamosprecisar.–Logochegaremosàestrada–acrescentouFranklin.Eletambémviaas

bétulascomooúnicocaminhopossívelparaasegurança.Tommy, que formulara a pergunta ao parar por ummomento, correu

para alcançar o grupo que passava por entre as árvores e descia umatrilha que alargava aos poucos, como se as árvores se afastassem paramostraraelesocaminho.

A con iança de Sarah aumentava conforme ela caminhava. Chegou afechar os olhos em alguns trechos, para garantir que seguia na direçãocerta.MasogritodeLindaassustoutodomundo.

–Oqueéaquilo?–perguntouamenina,apavorada.Dezmetrosadianteelesviramoquedecarapareceuserummontede

roupas, mas a pilha tinha forma de um corpo humano. Os quatro seaproximarameviramqueeraumcadáverhorroroso.Ocorpoeamochiladamoçahaviamsidoestraçalhadosporumurso,provavelmenteomesmoque rondara a cabana. A cena era medonha. Tommy enjoou e virou decostas.Osoutrosrecuaram,engasgados.

–Quemé?–indagouLinda.Ninguémrespondeu,masFranklinverbalizouomedogeral.–Foramosursos.–Derepenteeles consideraramoataque inevitável,

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indiscutível.–Achomelhoragentevoltar–disseTommy.LindaeFranklinconcordaram,masSarahobservava, imóvel,amistura

de roupas e equipamentos ensanguentados. Quando Tommy virou ecomeçouasubirnadireçãodaclareira,Franklinhesitouporumsegundo,masresolveusegui-lo.

–Sarah!Vamoslogo!–gritouLindaantesdesaircorrendotambém.Sarah sabia que precisava voltar com os outros, mas não se mexeu,

hipnotizadapelo corpo.Agachou-se sem tirarosolhosdele.O cadáverdoSr. Everett a fascinara também, mas não tivera tempo de olhar direito.Certavezentreouviraumaconversaentreospaisquenãodeveriaescutar.Lena mencionou um paciente que morrera naquele dia e contou quepassaraumtempãoolhandoparaocorpo.“Eumedeicontadequeagoraele sabia mais do que eu poderia aprender durante a vida inteira”,comentaraamãe,edesdeentãoSarahsentiavontadedeverumcadáver.

Ela se levantouminutos depois, quando Linda a chamou de dentro dacabana.Olhoupara a trilhaquepretendia seguir. Erao caminhode casa,Sarahsabiadisso.Olhoudenovoparaocorpo,umamassaensanguentadaquepareciafalarcomela.“Vocêtemrazão,ocaminhoéeste”,disse.

Uma enfermeira conferia os acessos intravenosos e ajeitava ostravesseirosdePhil,falandosemparar,enquantoLenaeJanetrecuavameaguardavamsuasaída.Lenaviuamãodelesemexerumpoucoebaternaguarda lateral da cama. Pensou que fosse por causa dosmovimentos daenfermeira. Mas a mão se levantou de novo, involuntariamente, e Lenaconcluiuqueeraconsequênciadeatividadecerebral.

–Continuefalandocomele–ordenouLena.Janetolhouparaamão,queselevantouedesceudenovo.–Phil.Phil,estámeouvindo?Lena se virou de costas e consultou o relógio. Temia que Lynn

Witherspoon chegasse a qualquermomento. Uma vozmasculina fez comquesevirasse.Ninguémentraranoquarto.ElaolhouparaPhil

–Foiele?–perguntou.–Foi.–Oquedisse?–Nãoentendi.

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Lena se aproximou. A aparência de Phil não mudara no geral, masagoraelemexiaaboca,comosequisesseselivrardamáscaradeoxigênio.Lenasedebruçouefaloualto.

–Phil,podemeouvir?Amãodireitadelesubiuedesceu,comoseestivesserespondendo.Lena

disseaJanet:–Falecomele.–Phil,estáouvindo?Nãohouveresposta.–Oqueperguntouaele?–Nada.Nãosei.AvozdePhil,quesoavacavernosaporcausadamáscara,foiouvidade

novo.–Paul.–Apalavrasoouclaramente.Lenalevouumsusto.Queriaarrancaramáscaradeoxigênio,mastemia

que Phil precisasse dela para continuar respirando. Falou com aenfermeira:

–Quemestádeplantão?–ODr.Halperin.Acabeidevê-lonesteandar.–Váchamá-lo.Aenfermeira iasairquandoaportaseabriueLynnentrounoquarto.

Lena sentiu raiva por ela chegar num momento tão impróprio, masrecorreuaseutreinamentomédico.

–Lamento,ninguémpodeficaraquinestemomento.–Nãoprecisoficar.SóqueroconversarcomaSra.Rostenkowski.–Agora,não.Ela…–Lamento,precisofalarcomelaagora.Lenaqueriapuxarapromotoraparaforadoquarto,contaroquesabia

eexplicarqueJaneteravitalparaasoluçãodocaso.MasintuiuqueissoaafastariaaindamaisdePhiledeseufugazmomentodeconsciência.ODr.Halperin, um sessentão sorridente de jaleco branco, entrou no quarto.Lenadirigiu-seaele.

–Dr.Halperin?–Elefezquesim.Lenaprosseguiu:–Conseguimosumareação, ele movimentou a mão e disse algumas palavras. Creio queresponde à esposa. – Lena apontou para Janet. – Ela precisa icar aqui,certo? – Lena olhou para Lynn, que não parecia disposta a obedecer omédico.

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Elepercebeuatensãoquereinavanoquarto.Aproximou-sedoleitodePhil e observou os movimentos da mão por um minuto. Afastou aspálpebrasdopacienteeiluminouapupilacomumalanternapequena.

– O que acha? – indagou Lena, lembrando que odiava quandoperguntavam isso durante um exame. Halperin demorou um pouco a sevoltar para ela, com uma carranca que fez Lena se lembrar da maneiracomofitaraospacientestantasvezes,emsituaçõessimilares.

–Nãovejomuitaevolução.Ficariasurpresoseafalafosseconsequênciadeestímuloexterno.

–Aesposadissealgoeelerespondeufalandoonomedofilho.– Dra. Trainor, sinto dizer, mas creio que está deixando as emoções

assumiremo lugardoraciocínio frio,nestecaso.Nãopossoa irmarquearecuperaçãodopacientesejaimpossível,talvezelesecurecompletamente.Maso sistemanervoso sofreu sériosdanos e, se ele superar as 36horasiniciais, as mais críticas, precisará de muita terapia só para pronunciarpalavrassimples,sentareandar.

–Masoestímuloàsviasneuraisébenéficonoperíododerisco,certo?– Não me leve a mal. A presença da Sra. Rostenkowski e a sua não

atrapalham.Emilagresacontecem.Masmilagressãoimprevisíveis.E,comobemsabe,tentamosaomáximonosmanterdentrodoprevisível.

Ele consultou o prontuário de Phil e fez algumas anotações. Lynnesperava, con iante. Lena se deu conta de que se tornaria suspeita casoimpedisse que a promotora interrogasse a suspeita. Janet a olhou comoquemdiziaqueavisitaseencerrara.Halperinconcluiusuaparte:

–Lamentooquedissearespeitodesuasemoções,Dra.Trainor.Seiqueestápassandoporummomentoterrível.Meussentimentos.

Lenaretrucou:–Meus sentimentos,porquê?Minha ilhanãomorreu.Nãoprecisode

seuspêsames.Halperin resmungou desculpas antes de sair. Lynn aguardou alguns

segundosantesdefalar:–Sra.Rostenkowski,quermeacompanhar,porfavor?–Elapodevoltarlogo?–implorouLena,sabendoqueJanetnãovoltaria

mais.–Talvez.Janet enrubesceu, tomada de súbita emoção, e soltou um guincho

parecidocomoemitidoemsuacasa.Ogritoecoounoquarto.Elaseviroupara o marido. Lena pensou que fosse atacá-lo. Mas Janet se conteve e,

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apesar da agitação, deumeia-volta e abriu a porta para sair. Lynn olhoudemoradamenteparaLena,intrigada,antesdeseguirJanet.

Lena retornou a Phil. Amão não semexiamais. Sem reação, elemaispareciaumcadáver.OfracassodatentativadelocalizarSarahcomaquelepedaço inútil de carne caiu sobre Lena como uma pedra. Viu que nãoconseguiriaprosseguiresentiuumaenormefrustração.Estavasozinha.Enum hospital. O que poderia fazer? Mas os hospitais são o local para seresolver problemas. Seria forçada a regressar aomundo lá fora sabendoque estava num beco sem saída, que não tinha nada a fazer, excetoesperar? A ideia era intolerável. Phil, sereno debaixo das cobertas,zombavade suador como se estivesse gargalhando acordado. Ela não seconteve.Aproximou-seda cabeceirada camae lhedeuumabofetada tãoforte que a máscara de oxigênio entortou. Em seguida saiu, deixando-aassim,epassoucorrendopelaenfermeiraatônita.

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Trintaedois

QUANDO SARAH ENTROU NA CABANA, viu as outras crianças em estado dechoque.Franklintentavafazeronotebookfuncionardenovo.Tommybatiaumpedaçodemadeiranochão.ELinda,peloqueSarahouvia,choravanooutro quarto, deitada em posição fetal no colchão. Foi falar com a amiga,masquando se sentouao ladodela sentiuumpeso imensonaspernas, ocansaço que a derrubava. A força da gravidade parecia ter dobrado,obrigando-a a deitar de costas e icar olhando para amadeira podre dotelhado.Sarahfechouosolhos.

Lindaparoudechorarporuminstanteeresmungoualgoparaaamiga.Comonãoobteve resposta, fechouosolhos também.O calordodia fez asduas meninas caírem num sono profundo, enquanto os meninosperambulavaminquietospelooutroquarto.

Quandoacordou, Lindanão soubeporquanto tempodormira.Não viumais ninguém na cabana. O notebook estava no chão. O conteúdo damochiladoSr.Everettencontrava-seespalhadopelochalé,oisoporviradode lado, a água e o gelo a escorrer. Nuvens densas cobriam o céu,escurecendoosquartosedificultandoavisão.

Elagritoupelosoutros,masnãorecebeuresposta.Temiasair,por issoespiou pela porta e chamou de novo. Um vento frio vergava a grama naclareira. Espiou por uma janela, depois por outra, à procura de seuscompanheiros.A ansiedade aumentou e atingiuo augequando ela sentiuvontade de urinar. Chamou os outros mais uma vez. Nada. Incapaz desegurar a vontade, ela correu para o banheiro do lado de fora. Quasechegandolápercebeuummovimentonabordadaclareira,pertodatrilhaescolhidaporSarah,entreasbétulas.

– Sarah! – gritou Linda, deixando o banheiro de lado para correr nadireçãodomovimento.

De repente o movimento distante icou mais próximo e Linda parou.Precisou de um segundo para identi icar a forma que avançava em suadireção: era a caminhante morta, um bolo horrível de carne e panoensanguentados, curvados para a frente, com a mochila presa às costas,corcunda,apoucosmetrosdedistância.Orostomachucadodamulhersemexia,elatentavadizeralgumacoisa.

Aterrorizada, Linda gritou a plenos pulmões, mas não conseguiu semover.Tentourecuarumpasso,masseuspésse ixaramnochão fofoda

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clareira.Gritoudenovo.O barulho fez Sarah acordar de um sono pesado. No colchão do lado,

aindaadormecida,Lindaberravadesesperada.FranklineTommyolhavamparaeladaporta,assustados.SarahasacudiueLindapulouao toquedaamiga, já desperta. Não sabia onde estava, ainda confusa pelo pesadeloterrível.Elaselevantoueolhoupelajanela.

–Estáviva!– Viva? Quem está viva? – perguntou Sarah. Tommy e Franklin

correramparaespiarpelasjanelasdooutroquarto.–Acoisaquevimos.Estáláfora.– Você estava tendo um pesadelo – disse Franklin, virando-se, mas

ainda ressabiado, temendo o que poderia aguardá-los do lado de fora dacabana.

Lindaiaprotestar,masviuqueFranklintinharazãoe,emvezdesentiralívio,voltouachorar.

–Nuncamaisvousairdestechalé.Sarah balançou a cabeça, se levantou e seguiu para a porta, passando

porFranklineTommy.– Você que pensa. Precisamos ir agora, enquanto ainda está claro.

Conheçoocaminho.Tenhocerteza.–Nãová,Sarah!–gritouLinda.Ameninanãorespondeu.Seguiuemfrenteeostrêsaviramentrarna

clareira.–Devemoscontinuaraqui–Lindadisseaosoutros,numtomdesúplica.

Franklinbalançoua cabeça.Tommynãodissenadae saiudepressaparaalcançarSarah.

–Elasabeoqueestáfazendo–FranklintentouconvencerLinda.–Sabecoisanenhuma.Está…talvezestejaviva.Franklin não respondeu e saiu porta afora. Como se apenas a decisão

dosoutrosafizesseagir,Lindasaltoudocolchãoefoiatrásdeles.Sarah observou com cuidado e con irmou que o corpo não se movia,

quando desceu a trilha até onde ele estava. Esperou que os outros aalcançassem, para garantir que não desistiriam novamente. O cadáverparecia consolá-la, mais uma vez. Tommy icou olhando para ele quandoparouatrásdeSarah,eLinda,correndo,tropeçandoaotentaralcançá-los,choravamuitoaosejuntaraogrupo.

Sarah avançou até o corpo, parando a poucos metros dele. Lindasoluçou.Franklinresmungoualgoinaudível.Sarahmalolhavaparaacena

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terrível.Tentavaapenasmostraraosoutros,e talvezasimesma,quenãotemia o corpo à sua frente. Virou-se. A trilha em que estava sumia logoadiante,auns100metros.A lorestanãoeratãodensaondeestavam,masao longepareciaummardepinheiros,arbustos,árvoresenormesematoralo. Deu passos decididos rumo ao desconhecido. Os outros aacompanharam.Tommyfoioúltimoasairdali.Sócommuitoesforçoparoudeolharparaocadávermutilado.

A partir dos 300metros de altitude, as Adirondack, mesmo sob o solfortedomeio-dia, eramumavistamaravilhosa. SethCooper, quepilotavahelicópterosnaregiãodesdeseuretornodoVietnã,naprimaverade1970,ainda se comovia com as ondulações da paisagem, o re lexo da luz noslagosaltos,aricatexturadavegetação.Naqueledia,porém,deixoudeladoasimagenspoéticaseseconcentrounaimportantemissãoquerecebera.

Jennifer Simmons, guarda lorestal e sua jovem parceira, oacompanhava. Vinte e tantos anos, bonita, era nova no emprego, e Sethaindanãohaviatrabalhadocomela.Amoçaeramuitoprofissional.

–Assistiuaovídeo?–perguntou,semtirarosolhosdapaisagem.–Assisti.– Examinei a cena. Os arbustos atrás das crianças, arqueados pelo

vento, indicam uma posição acima dos 400 metros de altura. Por issoescolhiestaárea.

Seth não comentou a observação. Procurar quatro criançasdesaparecidasnãofaziapartedesuarotina,masnofundonãopassavademais uma busca. Avós perdidas, famílias que saíram das trilhas, atécaçadores icavamdesorientados– todosprecisavamserprocuradoscomosmesmosolhosdeáguia.Jennifer,naopiniãodeSeth,oajudariaamanterofoconamissão.

No ar por 35 minutos, eles já haviam sobrevoado sete vezes a áreademarcada, cobrindo cerca de um terço de seu trecho da grade. Amataabaixo, densa, poderia facilmente esconder quatro crianças de 9 ou 10anos.Sethseperguntouseelasseriamespertasobastanteparaprocuraráreas abertas e clareiras, em vez de seguir pelas trilhas ocultas pelavegetação alta. Pensava nisso quando uma pequena elevação coberta deabetos epinheirosbrancos surgiuna frentedeles e foi preciso aumentarumpoucoaaltitudedohelicópteroparapassarpor cimadela.Noaltodomorro, o sol forte re letia num laguinho escondido e Seth desviou a vista

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instintivamente,paraevitarqueoreflexoocegasse.Ao fazer isso, notou três corvos sobrevoando a super ície da água,

assustadoscomosrotores.Sethodiavacorvosdesdequeumdelesquaseoabateraaoserapanhadopelolemenadecolagem,15anosantes.Observouatentoovoodasaves.Jenniferosurpreendeucomumgrito.

–Temumcorpoali!Elaapontouparaolago.Setholhou,massóviuáguaelamanamargem.– Vi um cadáver no atracadouro do lago! – gritou Jennifer acima do

roncodosrotores,esticandoopescoçoparavermelhor.Elemanobrouparaaesquerdaevislumbrouumaestruturadecadente

no imdeumapequenaclareira.Deuavoltaparasobrevoaro laguinhoepairousobreele.Davaparaveropíerclaramente,eelesseaproximarammais,identificandoocorpoestiradodoSr.Everettsobreastábuas.

– Que merda – resmungou Seth, checando as coordenadas parainformá-lasaocentrodecontrole.

–Deveserosequestrador–disseJennifer,apontandoobinóculoparaocorpo.

– Ou um pescador que sofreu um infarto – retrucou o piloto,recordando-se do episódio emque localizara umadvogadodeNovaYorkdesaparecido havia muito tempo durante a busca por dois adolescentesqueseperderamnafloresta.

Enquantotransmitiaainformaçãopelorádio,Sethexaminouaárea.Nãoeramuitoescarpada,nãohaviapicosmuitoaltos.ARodovia49eravisívelapoucadistância.Imaginouqueocomandoconseguiriaenviarumaequipeaté lá no im da tarde, caso não houvesse um grupo de busca nasimediaçõesdolocal.

Ele também sabia que procurar as crianças pelo ar não seria fácil.Estavam perdidas no meio de uma mata densa e enorme, coberta porárvoresantigas,comobordosefaiasaltos,di íceisdevasculhar.Pensouemmaisumacoisaqueoperturbou.Naregiãoviviammuitosursos.

–MeuDeus!–exclamouJennifer,semafastarobinóculo.–Oquefoi?–Parecequeoscorvosjácomerammetadedacabeçadele.– E vão comer o resto – disse Seth, baixando o helicóptero mais um

pouco.

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AosairdoquartodePhil,LenaviuqueDavidligaraparaelaeretornoualigaçãopelocelular.Enquantootelefonetocava,elaselembroudetudooque acontecera com Phil e Janet após a partida de David. Não sabia seaqueleeraomomentoadequadoparadarasnotíciasaomarido.

–Oi,Lena–disseele,tendoaofundooroncodomotordeumcarro.–Oi.Ondevocêestá?–NocarrodeLesMalone.Eaí?Algumanovidade?–Não.Equantoavocê?– Recebemos um alerta dos guardas do parque algunsminutos atrás,

masnãosabemosdoquesetrata.Eraforadenossagrade.–Foradoquê?–Dagrade.Aáreaqueestamoscobrindonasbuscas.LenagostoudeouviravozdeDavid.Mesmocomosinalfracodocelular

elasentiasuaforça,aantigaenergiaquealevouaseapaixonarporele.–Podefalar?–Como?–Quero saber sevocêpode falar agora…–MasLenanãoqueria falar

sobre Phil numa ligação ruim em que o marido mal a escutava. – Ligueparamimquandopuderconversar,estábem?

–Podemosconversaragora.–Não.Émuitoimportante.–Tudobem.Vou…–suavozsumiu.Quandoaouviunovamente,Lenao

cortou.–Nãoestououvindo.David,liguemaistarde.Amovocê.Alinhacaiueelanãosoubedizerseeleouvirasuadeclaração.

Davidnãohaviaprestadomuitaatençãoàúltimapartedaconversaporcausa da transmissão para o rádio de Malone. Entreouvira a palavra“cadáver”. Quando inalmente desligou, Malone reduziu a velocidade dapicapeeparounoacostamento.

–Oquefoi?–perguntouDavid.– Um helicóptero da polícia estadual localizou um corpo, pelo jeito é o

cadávermencionadoporsuafilha.–Onde?– Não dava para saber pela descrição. Mas peguei as coordenadas.

Passeomapatopográfico.

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Davidentregouomapaquetraziaabertonocolo.Malonepassouváriosminutos examinando-o. Enquanto isso, Popper, que anotava informaçõesnumbloco,nobancotraseiro,debruçou-seumpoucoeperguntouaDavid:

–Erasuaesposanotelefone?Ele se virou, encarou o rapaz e não disse nada. Esperou que Malone

terminasse.–Achei.Bemali.Sim,temumlaguinho.Disseramqueeraumlagoeque

ocorposeencontravasobreopíer.Puxavida.–Oquefoi?– Duvido que haja grupos de busca a pé ali perto. Vai demorar um

poucoatéquecheguemaolocalparaverificar.–Querdizerqueohelicópteronão…–Nãohaviaondedescer.–Eascrianças?–Nenhumsinal,porenquanto.–Épossíveliratélá?–Sim,masnãotemoscertezadequetemavercomascrianças.–Quantoscadáverespodehavernaregião?–Maisdoquevocêcalcula.–Detodomodo,queroirparalá.MaloneolhouparaDavid.–Jápercebi.Masoutrosgruposchegarãoaolocalantesqueagentese

aproxime da área. Vamos manter o plano original e, se surgir algumanovidade,corremosparaajudar.

Davidnãogostou.Sentiu-senovamentemalportertomadoadecisãodeir com Malone. Não queria que outras pessoas encontrassem Sarah,percebeusubitamente.Admitiaqueeraumdesejo irracionalmas intenso.Queria ser o primeiro a abraçar a ilha, e não que um desconhecido aencontrasse.Elaforalevadaporestranhosemesmoqueoresponsávelporseuresgatenadativesseavercomosmonstrosquearaptaram,nãoseriaomesmosefosseDavidaencontrá-la.Outrostalvezalocalizassem,maselesabiaqueeraoúniconaquela lorestacapazderealmente levarSarahdevoltaparacasa.

Lenadesligou,frustradacomofatodenãoconseguirfalardireitocomomarido. Sentiu-se mais sozinha do que antes do telefonema. Não queria

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voltarparacasa.Asensaçãodequeprecisava icar láparareceberSarahsumira.Suacasanãopassavadeumaconstruçãocercadapelaimprensa.

Lembrou-se do pai, que provavelmente já chegara aMontreal, àquelaaltura.Paradanocorredor,nafrentedoquartodePhil,pegouonúmerodoamigodeRichardnoCanadáqueguardaranobolsodacalçajeanseligou.Ninguématendeu,nadadesecretáriaeletrônicaoucaixapostal.Desligoueolhou para o assistente do delegado, que lertava com a enfermeira, nopostodeenfermagem.Dirigiu-seaele:

–OndeestáodetetiveMartin?O policial apontou para o im do corredor. Lena o encontrou lá,

dormindosentadonumacadeira, comacabeçaencostadanaparede.Nãoquisacordá-lo.Ficouporaliumpouco,andandopara láeparacá,depoissentou-seao ladodele.Erammuitasasdúvidasemsuacabeça.Comonãopercebera os indícios do planomacabro dos Rostenkowski? Por que nãoperceberaqueJ.D.eraumimpostor?Comoforainocenteapontodecairnogolpe? A culpa a rondava. Disse a si mesma que a expectativa nos cega,masissonãodiminuiuseuremorso.

Olhou para Martin. Dormindo de boca aberta, ele mais parecia ummorto,a imagemdo fracasso.Ohospital, comseus leitosedoentes,vidaemorte,zumbiaemtornodelacomosezombassedesuacondição.“Vocênãopresta para nada. Sua ilha está desaparecida e você não faz nada paraencontrá-la. Estamos ajudando os pacientes, sabemos como temos queproceder.Evocê,oquesabe?”Martinroncou,masnãoacordou.Lenanãoconseguiu mais suportar o ar de fracasso estampado em seu rostoderrotado. Sacudiu o policial para que despertasse, mas se arrependeuimediatamente.Elepareciagrogue,desorientado.

–Oquefoi?!Lenanãosabiaoquedizer.Ouviuumtelefonetocar,pensouqueerao

seucelular,masconstatoualiviadaqueeraodele.–Telefone.Martin pegou o aparelho e seus olhos ganharam vida, como se

ressuscitasse.Levantou-se,identi icouoautordachamadaeseafastoudeLena.Quandoouviuumcelulartocandodenovo,elapensouqueeraoecodotoquedotelefonedodetetiveemsuamente.Maslogopercebeuqueeraoseu.ViuonomeWilliamse tevea impressãodequeMikeouPosabiamqueprecisavadeles.

– Lena, você está no hospital? – perguntouMike, sem cumprimentá-la.SuavozrevelavaumatensãoqueLenanuncaouvira.

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–Sim,eu…– Recebemos uma ligação de JohnWalker. Eles estão investigando os

Rostenkowski?–Creioquesim.LynnestáinterrogandoJanetnesteinstante.–Vocêacha…minhanossa,achaqueelespoderiamestarenvolvidos?–Achoquesim.–Lenatorceuparaqueaconversatomasseoutrorumo.–Oquesabe?Conversoucomela?Lenanãotinhacomoevitaraperguntadireta.Contouoquesabia,desde

a revelação na casa de Janet até a tentativa de fazer Phil falar. Quandoterminou,podiaouvirarespiraçãoentrecortadadeMike.

–Vocênãodesconfiounemumpoucodoenvolvimentodeles?Nãonotoumudançasdecomportamento?–Asperguntaseramquaseumaacusação.Vinda de um sujeito amigável como Mike, magoava muito. Lena pensouantesderesponder.

–Não–dissefinalmente.–Nãoosconheçotãobemassim.Mikebufouderaiva.–Porra,suas ilhasbrincavamjuntas! Janet temmerdanacabeça.Não

sabeondeestáaprópriafilha?Ela iapedirdesculpas,dizerquesentiamuito,mas icoucalada.Martin

seaproximouacenandoparaatrairsuaatenção.–Quemé?–perguntouele,baixinho.–MikeWilliams–respondeuelaemvozalta.–Digaaelequeavistaramumcorpo.DeveserdeEverett,opai.Lenarepassouainformação.–Eujásabia–retrucouMike.–Umamigomeuqueestánasmontanhas

Adirondackacaboude ligar.Vãomandaralguémdehelicóptero. –Ele fezumapausa.–Precisodesligar. Issoestámedeixando louco.Porra,nãodáparaacreditar!

–Sintomuito–disseLena,emboranãofosseaculpada.Mikesuspiroulongamente,apósumapausa.– Não é culpa sua, Lena. Lamento ter insinuado… É que não aguento

mais a pressão. Não viram as crianças nas proximidades do local ondeacharam o corpo. Isso signi ica que elas provavelmente tentaram voltarporcontaprópria.AchoqueTommynãoaguenta icarperdidonomeiodomatodessejeito.Estouapavorado.

Conversaram mais um pouco e desligaram. A admissão do medo nãosaiumaisda cabeçadeLena.Mike serviradeporto seguroparaela,masagora ele parecia à deriva. Martin voltara a falar ao telefone e Lena

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começou a caminhar pelo corredor, desorientada. Sarah, com seutemperamento forte, era uma menina independente quando estava emambiente conhecido. Agora, ela não passava de um pontinho na imensaloresta. Como acharia o caminho de volta? O que David e os outrospoderiamfazerparaencontrá-la?

Opisoreluzentedohospitalesuasparedesiluminadaspelaslâmpadasluorescentes se tornaram uma barreira súbita, um labirinto desinfetadoque isolava Lena de Sarah e da selva em que a ilha perambulava.Precisava sair. Caminhava empasso aceleradopara o elevador quando avozdeMartinadeteve:

– Lena, espere. – Ele se aproximou com ar preocupado. – Você estábem?

–Precisovoltarparacasa.–Nãopossolevá-la.Precisoficaraqui.–Estoudecarro.– Entendeu o que eu disse antes? Avistaram um corpo no lago,

enviaram uma equipe a pé para a área e pretendem descer alguém dehelicóptero.

– Mas as crianças não estão mais lá – disse Lena, esperando que aslágrimas que se formavam em seus olhos não escorressem pelo rosto.Precisavasairdoprédio.

– Bem – insistiuMartin, até entender que Lena tinha outros planos –,vocêsabequeestãointerrogandoaSra.Rostenkowski…

–Sei.Tambémseioqueelavaicontaraeles.Equenadadissotraráascriançasdevolta.Precisoirembora.Nãoaguentomaisisso!

–Espereumpouco.Vocêsabe!Comodescobriu?Elacontouavocê?–Contou.–Quando?–Quandofuiàcasadelahoje.–Oqueeladisse?– Que ela e Phil estavam por trás do esquema. Que foram eles que

tramaramtudo.Comumintermediáriooualgoassim.Precisoir!–Porquenãomecontou?–PorquepenseiqueelapudesseajudaralocalizarSarah.Acheique,se

falasse comPhil, ele despertaria do coma.Nãomepeçamais explicações.Issosómetiroudorumocerto.TalvezeununcamaisvejaSarah.Nãomeobrigueaficaraqui!

Martinobedeceu,nãoperguntoumaisnada,eLenaseguiudiretoparao

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estacionamentodohospital,procurandoachaveparaentrarnocarro.Napressao celular caiudobolsoda calça jeanse foipararna calçada.Elaopegou rapidamente e examinou para ver se ainda funcionava. ResolveuligarparaDavid,queatendeunoprimeirotoque.

– David – disse ela, sem saber direito por que havia ligado. Ouvia omotordocarronofundo.–Ondevocêestá?

–Subindoaserra…encontraramumcorpo…–Jáfiqueisabendo.Pretendeiratélá?–Não.Outraequipeéquevai.–David.NãoconsigomaisverSarah.Estouapavorada.Completamente

apavorada.–Vamosencontrá-la.Jáacharamocorpo.–Seidisso,masnãofazamínimadiferença.David permaneceu em silêncio por um bom tempo. Quando falou de

novo,sooudistante:–Lena, logovouestar foradaáreade cobertura.Era issooque iame

contarantes?–Não.EuqueriaavisarqueosRostenkowskiestavamportrásdoplano.–Queplano?–Dosequestro.Davidnãoreagiu,masLenapercebeuqueelefalavacomoutrapessoa.

Aligaçãocaiu.Ela icouparadadoladodocarro,esperandoomaridoligar,maso celularnão tocou.Embora fosseum inalde tardebemquente, elacomeçou a tremer. “Isso é consequência do trauma”, disse a si mesma,reconhecendo pela primeira vez que enfrentara uma experiênciatraumáticanosúltimosdias,que surtiraefeitoem todoo seucorpo.Alémdisso,sentiaqueSarahfugiadesuaslembrançasequeovínculotênuequeainda existia entre elas desaparecia. Quando se deu conta disso, icouaindamaishorrorizada.

Quaseparalisadapelaansiedade,Lenaseesforçouparaentrarnocarroe dirigir de volta para casa. O mundo que ameaçava ruir desde que omonitordoAcampamentoArnosaiudavannaentradadesuacasaagoraliteralmente caía aos pedaços. Sentiu que veria a rua desmoronar seolhassepeloretrovisor.Manteveaatençãonocaminhoenasesquinas,masnão deixava de pensar no pesadelo de Sarah longe de casa, inatingível.Duranteopercurso,pensouqueestavasofrendoumcolapsonervoso,quetalvezdevesse se internar.Mas logo chegou em sua rua.Aopassar pelosrepórteresamontoadosepeloassistentedodelegado,abriraportadecasa

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eentrarsozinhaetrêmula,sentiuqueperderaa ilhaparasempre.Ficouimóvel,atordoadademaisparairaalgumlugar,aterrorizadademaisparachorar.

Davidfalavaaocelularcomamulherquandoaligaçãocaiu.Ele,MaloneePoppertrafegavamporumaestradaasfaltadaqueconduziaàáreaondeocorpoforaencontradoedoisadolescentesdebicicleta interromperamavia,sinalizandoparaqueparassem.

Osrapazeseramdeumavilapróximaeresolveramparticipardabuscaquando ouviram falar da descoberta feita pelo helicóptero. Haviamencontradoumgrupodebuscadosguardasdoparqueno inícioda trilhaque levava ao laguinho, mas conheciam outra rota, mais ao sul, que nãoaparecia nos mapas. Resolveram ver se achavam alguma coisa na trilhaalternativa.

– Foi lá que encontramos o veículo – informou o mais alto dosadolescentesenquantoeleeoamigoguiavamDavid,MaloneePopperporumcaminhocobertodemato.

Minutosdepois,chegaramàpicapedoSr.Everett,escondidonomesmolugaremqueeleodeixara.

–AplacaédeJersey–comentouDavidaoespiarpelajanelatraseira.O restante da bagagem das crianças ainda estava lá, com a sacola de

Sarahporcima.ElesevirouedisseaMalone,quevinhalogoatrás:– É esse carro. – Olhando para os lados, tentou identi icar o caminho

seguidoporeles.Masamatadensaoscercava.OmaisbaixodosrapazesleuopensamentodeDavid.

–Éporali–apontou.Davidnãoviutrilhanenhuma.Continuaramtodosparados,semsabero

que fazerexatamente.Ele lembrouqueLenaacusaraosRostenkowskideserem os responsáveis pelo sequestro. Balançou a cabeça, devia terentendido errado. Era impossível haver qualquer ligação entre aquelepacato casal de professores, a van e a bagagem, que incluía as coisas deLinda.

Malone usou o celular para passar a informação adiante. Depois deouviraresposta,disse:

–Entendi.–Edesligou.–OenviadodocomandodeoperaçõesespeciaisdaMarinhadesceudo

helicóptero e chegou ao corpo. Identi icação positiva. – Falava em tom

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neutro,comoquemrepassadadosmilitares.–Eascrianças?–perguntouDavid.–Nenhumsinaldelas.

A informação de Malone sobre o agente especial da Marinha enviadoparaaáreanãoeraverdadeira.Elehaviaencontradoinúmerossinaisdascrianças, depois de examinar o corpo de Everett e entrar na cabana.Avisouquehaviaroupas,um isoporgrande,mochila,notebookecolchõesusados recentemente. Enquanto o helicóptero continuava sobrevoando otrecho,elepercorreuoperímetroembuscadesinaisqueindicassemparaondeascriançastinhamido. Interrompeuabuscaquandoouviubarulhosnamata, bemna sua frente. De cara, pensou ter encontrado as crianças.Mas o ruído aumentou e ele deparou com o grupo de guardas lorestaisque subira a pé e chegava na clareira. Eles tampouco acharam pistas nocaminho, não havia sinal das crianças nem da moça que subira paraacamparnaáreaedesaparecera.

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Trintaetrês

UM QUILÔMETRO E MEIO ADIANTE da clareira, a trilha seguida pelas criançaschegouao im.Estavamdiantedeumlongodeclivepedregosoentrerochasgrandesarredondadas.

–Ocaminhoéporaqui?–perguntouTommyeSarahdissequesópodiaser.

–Nãomelembrodepedrasassimnocaminho–comentouFranklin.– Não precisamos voltar pelo caminho que viemos – insistiu Sarah.

Linda lhe lançou um olhar inquisidor, mas o cansaço, a fome e osmosquitos que os atormentavam izeram com que ela desistisse dereclamar.

Franklinescorregouquandochegaramàmetadedadescidapedregosa.Torceu o tornozelo e icou com a perna presa até o joelho entre duasgrandespedrasdegranito.Asoutrascriançasopuxaramparacima,masotornozelo inchou e doía muito, latejando quando andava. Sentaram paradescansarumpouconafaixaensolaradaquepenetravaadensacopadasárvores.

–Quantotempoaindavaidemorar?–perguntouTommy.– Não sei bem – respondeu Sarah. – Mas vamos chegar logo. – Ela

tentava ao máximo agir e soar como uma pessoa adulta. Em seusubconsciente, porém, uma pergunta insistentemartelava: “O queminhamãe faria e diria?” Buscou forças na tentativa de imitar Lena. As outrascrianças dependiam de sua energia. A organização deles não passava deumcastelodecartas,maserasóoquelhesrestava.Sarahtinhacertezadeque,seficassemnaclareira,nuncaseriamencontrados.

Lindaouviuobarulhoprimeiroedeuumpulo.Osoutroso escutaramlogoemseguidaeelaapontounadireçãodeondevinhaosom.Quebrandoo silêncio damata, os rotores de um helicóptero foram ouvidos bem emcima deles, antes que esboçassem qualquer reação. Através da copa dasárvores,viramumasombraescurapassaracimadesuascabeças,oroncoensurdecedorlatejandonopeitoefazendoosouvidosdoerem.

Mas ele foi embora logo. Tentaram chamar a máquina voadora comgritosfracos,semêxito.

–Talvezestejamprocurandoagente–disseFranklin.–Achoquevêmnosbuscar.

–Émuitogrande–comentouTommy.–Ondepousaria?

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–Nãoprecisaaterrissar.–Franklinestavaexcitado.–Elesbaixamumacordaepuxamagenteparacima.

Ascrianças icaramquietas,atentasanovossonsdohelicóptero,masamata voltou à calma anterior. Ouviram o som agudo e longínquo dosrotores e Sarah começouaprocurarumaáreamais aberta.Viuumaqueservia,auns100metrosdali,maisparaoalto.

– Vamos logo! – gritou e todos a seguiram, menos Franklin, cujotornozelo ainda doía. Pararam durante a subida para escutar. O somaumentouumpouquinho.Estavamquasechegandonaáreaabertaquandoa aeronave voou acima deles e foi embora. Resolveram continuaresperando, mas após uns 15 ou 20 minutos sem sinal do helicóptero,desistiram.

VoltaramlentamenteparaondehaviamdeixadoFranklin.Sóaochegarno trecho aberto Sarah sedeu contadequeo sol já estavabaixono céu,seusraiospenetravamoblíquosàfolhagemenãovinhammaisdoalto.

–Consegueandar?–perguntouelaaFranklin.Ele tentara irmaropénochãoenquantoosoutroscorriamparao trechoacéuabertoe fezquesim.

–Porondevamos?–quissaberLinda.–Vaiescurecerdaquiapouco.Sarahnãosabiaocaminho.Subiramontanhasigni icavavoltar.Nãovia

uma trilha de inida à frente. Um vão entre arbustos espalhados pareciapromissor,entãotomouadecisãoimediatamente.

–Porali.–Nãotemtrilhanenhumaali–disseTommy.–Não,maséorumocerto.–Elanãoesperouadiscussão.Deuumpasso

nadireçãoescolhidaeosoutrosaseguiram,umatrásdooutro.

Para desespero de David, após a notícia de que a equipe de resgate,seguindo o caminho que o sequestrador devia ter tomado depois deabandonaroveículo,chegaraàcabana,Malone insistiuemquevoltassemparaacasadeleepassassemanoite lá.ElegarantiuaDavidqueabuscaseriaretomadaantesdoamanhecerequedormirumpoucorestaurariaasforçasdetodos.Davidnãoqueriasairdali,nãodavaamínimaparaosonoequeriapercorreramata,naesperançadequeSaraheasoutrascriançasviessemparaondeseencontrava.

Mas não estava no comando e antes do pôr do sol voltaram paraNorthville. Pararampara abastecer o veículo e Popper desceu para ir ao

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banheiro.David,nobancodafrente,virouparatráseviufolhasimpressasemcomputadordobradaseguardadasnoblocodePopper.Examinouumadelas, viu que tinha a ver combuscas nas Adirondack e pegou as outrasparadarumaolhada.

As informações eram frutodapesquisa feitapelo repórter. Constavamesforçosderesgatenaregiãodesdeosanos1800.Algumashistóriasbem-sucedidas, muitas recheadas de relatos heroicos, e uma delas, destacadaporPopper,envolviaummeninode10anosqueseperderadafamíliaem1973 durante uma caminhada. As autoridades logo foram avisadas dosumiço da criança e a área pela qual a família passara foi vasculhadadurantesemanas.Noentanto,omeninonuncamaisfoiencontrado.Quatroanos depois, os restos mortais dele foram avistados, a menos de 500metros de onde desaparecera, por um grupo de caminhada. Ninguémjamais conseguiu explicar como uma busca tão intensa e minuciosa nãoacharaogaroto.

Popper regressou quando David terminava de ler o artigo. Cada vezmaisagitado,conformeliaamatéria,DavidconfrontouPopper:

–Porquedestacouestareportagem,afinal?Apanhadodesurpresa,orepórternãosouberesponder.–Achaqueasequipesnãolocalizarãoascrianças,éisso?Malone voltou a tempo de ouvir David. Popper permanecia mudo de

surpresa. David jogou os papéis de volta para ele, virou para a frente edecretou:

–Vamosencontrarnossosfilhos.

Quando ouviu o ronco distante pela primeira vez, Sarah pensou quefosse uma estrada. Uma amiga sua morava perto da Hutch e quandobrincavam no quintal dela ouviam um tipo de zumbido grave e distante,vindo da rodovia. Deduziu que se aproximavam de uma estrada e suaúnica preocupação era conseguir que os carros que passavam em altavelocidadeparassemparapegá-los.

Conformeoruídosetornavamaisaudível,porém,concluiuquenãoeraobarulhodarodoviaqueescutava.

–Temumrioali–disseTommy.Avançaram mais uns 50 metros e viram, através da mata fechada, a

espuma branca de um regato de águas rápidas. Os quatro pararam,olhandoparaoobstáculo.Sarah,desapontada,esperandoalívio, sabia ser

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responsável por estarem ali. No pequeno vale cavado pelo rio, o sol nãobatiamais. Osmosquitos que atormentavam as crianças haviameia horaescolheramLindacomoalvoprincipaleaspicadasdeixaramsuapeletodamarcada.Seoruídodorionãofossetãoalto,elesteriamescutadooroncodeseusestômagos.Comotornozelomuitoinchado,Franklinmancavaeosatrasava.

Mesmo assim, nenhum deles chorava. Não atingiram um nívelparalisante de desespero. Os três ainda con iavam em Sarah, apesar dobecosemsaídaemqueelaosmetera.Ameninapercebeuissoeolhouemvolta, explorando possibilidades. O último trecho percorrido poderia serconsideradoumaespéciedetrilha.Nãoestavasinalizada,maseramelhordo que nada. Na margem do rio ela se dividia: um caminho seguia rioacima, o outro, rio abaixo, e um terceiro acompanhavaumdecliveque seafastavadabeirado rio. Ela sabiaqueprecisava escolherumadas rotas.Masnomomentotinhaaimpressãodequeseriaincapazdefazerisso.

–Vamosdescansar–sugeriueosoutrossentaramnaspedraseraízesexpostas.

Um baque seco atrás deles fez com que se virassem, poucos minutosdepoisdeseacomodarem.Nãoviramnada,masouviramabatidadenovo,destavezvindadeoutradireção,rioacima.Emseguidaescutarambarulhode folhagemegalhossendoempurrados.Derepentea imponentecabeçade um cervo de rabo branco,mastigando vigorosamente, surgiu nomeiodosarbustos.Eraummacho jovemdeolhosnegrosprofundosqueparoudemascareolhouparaascrianças,paralisadasemseuslugares.

Então, com uma fúria súbita que fez Linda pular para trás, o cervosaltou na direção do rio e seus cascos ecoaram na terra macia. Por umsegundo,deuaimpressãodequeavançariasobreascrianças,masdesvioue seguiu para as moitas que ladeavam as margens. Tommy engasgou.Franklin,quecorreraaopensarqueseriaatacado,mancavaporcausadotornozelotorcido,quedoíamuito.

QuandoocoraçãodisparadodeSarahvoltouaonormal, ela retomouocontroledasituação.

–Vamosparalá–disse,apontandoparaumabrigonaturalformadoportroncosdeárvorestombadas.

Escureciadepressa.Sarahnãosabiamaisparaondeseguir.Noentanto,qualquerquefosseocaminhoescolhido,exigiriamuitomaistempodoqueesperava. Não queria estar totalmente perdida quando caísse a noite. Osoutros a seguiram e se amontoaram debaixo dos troncos. Apuraram os

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ouvidos para detectar a presença de outros cervos, mas não escutaramnada. O ruído de fundo do riacho continuava e, conforme as criançasexaustasadormeciam,umaauma,ooutrosomaudíveleraavozsumidadeTommy,murmurandooqueselembravadoterço.

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Trintaequatro

LENANÃOSABIAQUANTOTEMPOhaviapassadoali,paradanafrentedaportadecasa. Entrar aumentara sua sensação de pânico, pois não sentia aproximidade de Sarah, como não sentira no hospital. Tentou absorver ootimismo de Martin e David a respeito do corpo encontrado, mas nãoconseguiu. Que lei da ísica, da óptica ou da geometria a irma que umobjetoparececadavezmaisdistanteconformenosaproximamosdele?

Entrounoquartoda ilha,torcendoparaqueaSarahrealvoltasseparaela ali, entre suas coisas, seus pôsteres e perfumes. Mas o cômodo nãoajudava em nada. Tudo era super icial, uma extensão de seu per il noFacebooksemaverdadeiraessênciadameninaqueLenaderaàluz.

Não pôde evitar um pensamento pavoroso: estava sendo preparadapara algo que iria acontecer, que a ausência de lembranças de Sarahprenunciavasuaperda.Eesseeraomodoqueseucorpoencontrouparasearmarcontraaterrívelconstataçãodatotalausênciadafilha.Deveserooposto completo da fé, pensou Lena, ou o sinal de uma sincronia muitoprofunda.

Então se lembrou das janelas da falsa van do Acampamento Arno,quando J.D. dava ré no veículo. Re lexos bloqueavam sua visão de Sarah.Mesmo assim, dera adeus à ilha. Agora tinha certeza. Nas lembrançasborradas, quase se via acenar. Por um longo instante, tentou se manterracional, afastando-se das águas revoltas da superstição. Finalmente,porém, a força da irracionalidade predominou. Lena sentiu que um gritolancinante se formava em sua barriga e deixou que ele saísse. Gritou onomedeSarahváriasvezes,choroudescontroladamente,nãoporcausadepalavras e pensamentos: era seu corpo que reagia aos ataques sofridos.Chorouatésentirânsia.Chorouatéaslágrimassecarem.Quandoiapegaroslençosdepapelnobanheiro,Davidligou.

–Estámeouvindobem?–perguntou.–Estou.–MaldavaparaouvirarespostadeLena.–Oquehouve?Vocêestábem?–Estavachorando.–ViasacoladeSarah.–Como?–Encontraramocarro,apicape,comabagagemdascriançasládentro.

Nãopudetocaremnadaporcausadasimpressõesdigitais,mas…

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Lena ansiava desesperada por um iapo de esperança como aquele,porémafundouaindamaisnodesespero.

–Elanãolevounenhumaroupa?–Nãosei.Sódeixaramduassacolas.Talvez…–Estouapavorada,David.Elanãoconseguirásairsozinhadafloresta.– Vamos encontrá-la. Tem muita gente procurando e outras pessoas

estãoacaminho.–Eseascriançasforamparaoladoerrado?Seestiveremperdidas…–Lena…– Eu não consigo mais sentir a presença dela. Ela não está comigo.

Entendeoquequerodizer?–Querida,vamosencontrá-la.Aqui…foimontadaumaoperaçãodealta

tecnologia.Davidnãoacreditavanisso,mastentavaevitarodescontroledeLena.– Alta tecnologia? Não deveríamos encontrá-la primeiro em nossos

corações?Davidnãorespondeudeimediato.–NãopareceaDra.Trainorfalando.– Sei disso,mas é por aí, não concorda? Ela se perdeu namata e não

conseguimosvê-la.–Váatéoquartodela,querida.Console-secomumafoto.–Jáfizisso,nãoadiantounada.David pensou no menino do artigo impresso por Popper, como os

responsáveis pela busca o tiveram debaixo de seu nariz e não oencontraram.Tentouafastaressepensamento.

–Nósaamamos,Lena.Nãoéesseomelhorjeitodevê-la?–Eu…nãosei–disseela,hesitante.A palavraamor era sempre problemática, mal de inida, amorfa,

mencionada sem amínima compreensão de seu signi icado. En im, talvezfosseaprofundidadeansiadaporLena.AocontráriodaimagemdeSarah,oudaspalavrasquedescreviamsuaessência, o amorque sentianãoerauma coisa nem uma ideia. Era um tecido vital que unia a todos sem omenor esforço. Atemporal, existia desde antes do nascimento de Sarah epermaneceriamuitotempodepoisdamortedetodoseles.

–Sim–disseamulher.–Éosuficiente.Daviddissequeacordariaantesdeamanhecer.Aáreaestavacheiade

repórteresevoluntáriosparaasbuscas.Semmencionaroartigoarespeito

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do menino, ele enfatizou seu inquebrantável otimismo em relação àscriançasperdidas.

Lenaseesforçouparaendossarootimismo:– Precisaremos pensar nas consequências, em todas as coisas de que

Sarahprecisaráaovoltarparacasa.–Seidisso–disseDavid.–Maselaédurona.–Nãoseiseissoéumaboacoisa.Ele queria que Lena deixasse de lado tanta negatividade, mas não

pretendia discutir com ela, não queria aumentar a ansiedade e ainsegurançadamulher.

–Lena,umacoisapelomenosvaimudarquandoelavoltarparacasa.–Oquê?–Nós.–Sim.–Seiqueelacaptavaatensãoentrenós.Masissojá icouparatrás,não

é?–Ficou.Etemmaisumacoisa.–Oquê?–Obebê–disseLenaemtomsuave.– Sabe que acordei esta manhã sem saber se você estava mesmo

grávidaouseeutinhasonhadoisso?–Estoumesmográvida.–Eusei.Elescomemoraramavindadeoutro ilhoporum instante,emsilêncio.

David enxugou as lágrimas e depois falou queprecisava desligar, dormirumpouco.

Lenasuspirouedisse:– Duvidomuito que eu consiga dormir. Eu queriamesmo era estar aí

comvocê.– Fique com Sarah, Lena. Em seus pensamentos, oriente nossa ilha a

meprocurar.As poucas lágrimas que restavam escorreram pelo rosto de Lena.

Trocaram jurasde amor edesligaram.OpedidodeDavidparaqueLenaservissedeguiapesouemseupeitotemeroso.Elafoiparaoquarto,deitounacamaeolhouparaoteto,pensandodeondeviriatamanhopoder.

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Otelefonedecasatocouumahoradepoiseaacordou,poiscochilaraumpouco.Desorientada,nãoreconheceuavozdopai.

–Oi,meubem,soueu.–Quemestáfalando?–Seupai.–Ah,oi,papai.Ondevocêestá?–Nãopossodizer,masparticipareidasbuscas,amanhã.Davidestálá?–Sim.–Mepasseonúmerodocelulardele,porfavor.Voutentarencontrá-lo.

Nãoseisevaiserpossível,precisopermaneceranônimo.Lena procurou o número na agenda de seu celular e o passou ao pai.

Richardentãoseconcentrounosdetalhespráticos.–Aindapareçoamericano,nãoé?–Claro,pai.–Assimquelocalizarmosascrianças,tereiquevoltar.Éumapena,meu

bem,masnãopodereiparticipardascomemoraçõesnemvisitarvocê.–Obrigada,papai.– Não precisa agradecer. Dê um abração em Sarahbell por mim, tá?

Amovocê.Tchau.Àquelaaltura,Lenaestavatotalmentedesperta.Apagoualuzdoquarto

ao se dirigir à cozinha, mas parou quando viu um retângulo esticado deluar no chão do quarto. Em sua mente, pegou o retângulo e acertou oscantos, como fazia desde a infância. Quando fez isso, parte de sua féretornou.Elaiadarumjeito.Tudoiaficarbem.

As crianças mal dormiram, amontoadas umas sobre as outras,protegidaspelos troncoscaídosemvoltadelas.Umsomdebaquepesadoasacordounomeiodanoite,masTommyostranquilizou,dizendoque,comcerteza,eraoutrocervo.

Os mosquitos zumbiam em volta deles, vindos da escuridão. QuandoSarah acordou, com os primeiros raios da manhã, porém, eles haviamsumido. A garoa ina provavelmente os espantou. Sob os troncos, ascrianças nem sentiam a chuva, mas quando Sarah esticou as pernas,afastandoacabeçadeLindadeseuombroparacolocaracabeçaparafora,pareciaqueestavasoboirrigadordoseugramado.

Sarah olhou novamente para as três trilhas que saíam dali. Uma

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pontadadepânicoapertouseuestômago.Nãosabiaaocertoqualdeveriaseguir.Comopoderiaguiá-los?

DaviddormiunumacamadearmarnosótãodeMaloneefoioprimeiroa acordar. Ouviu o tamborilar suave da chuva nas árvores lá fora, pelajanela, e temeu que o tempo ruim prejudicasse as buscas. Desceu asescadas no escuro e ligou a cafeteira que a mulher de Malone deixarapreparadananoiteanterior.SaiuparaavarandaeviuaruaprincipaldeNorthville lotadade vansde reportageme carros que circulavam comosfaróis ligados. Ao contrário da imprensa que cercava sua casa, aqueleajuntamentocriavaumaondadesolidariedadequeocomoveu.

Devoltaàcasa,acionouoGPSqueumamigodeMalonelheemprestara.A missão o assustava. O pessoal o tranquilizou, dizendo que os outrosmembros do grupo de busca não o perderiam de vista. No entanto,tambémexplicaramoque ele deveria fazer caso seperdesse. Essemedosomava-seaosreceiosreferentesaSaraheàsoutrascrianças.Osquatro,de 9 e 10 anos, não contavam com adultos na equipe, nem GPS, mapas,guias ou experiência. Só muita sorte os tiraria do meio da loresta semajuda.Semdúvidaprecisavaencontrá-los.

Lenasesurpreendeuaoverquechegavamnotíciasdeoutraspartesdomundo.LigaraatelevisãonaCNNparaassistiràcoberturadiretadolocalondeestavamsendofeitasasbuscas,emborafossemapenasseishorasdamanhãeelasoubessequeaequipederesgatesóiniciariasuasatividadesapartirdassete.OnoticiárioabriucomumalongareportagemacercadosesforçospararealizarumanovaconferênciadepazsobreoOrienteMédio,seguidaporumamatériasobreosproblemasdeumarepresanaChinaedepois foi ao ar uma confusão qualquer envolvendo uma celebridade naportadeumacasanoturnadeHollywood,nanoiteanterior.Irritada,Lenaquase atirou um livro na tevê. Mas a chamada para o bloco seguintemostravaimagensdeDavideprometiaumaentrevistacomo“paideumadascriançassequestradas”.

Olhou para a tela durante os comerciais de um sabão em pó e de umautomóvel.ODavidqueviranachamadapareciaoutrapessoa,enãoseumarido. As lentes distorceram seu rosto. O fato de ele estar na tevê adistanciava do homem com quem conversara poucas horas antes. Talvez

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fosse melhor desligar. Precisava sentir-se próxima dele e de Sarah. Porque se concentrar num carro prateado que percorria uma paisagemapocalíptica?

Oâncorareapareceuea telaseencheudepalavrase informações.DerepentesurgiuumarepórternaruaprincipaldeNorthville,quandojáeraquase noite. Ela relatava o sofrimento dos “bravos menininhos emenininhas” que haviam sido forçados a enfrentar um pesadelo e agoraperambulavam pelas “matas quase impenetráveis das montanhasAdirondack”.AvisãosombriaincomodouLenaeelaperdeuamaiorparteda entrevista com um guarda do parque. Então o rosto de David surgiu,dentro de uma casa. Olhava para o repórter, fora do enquadramento dacâmera.Elenãochoravaesoavasimpático.

–Vamosencontrá-los.Nãotenhodúvidanenhumaquantoaisso.O repórter perguntou algo e ele respondeu, mas o âncora começou a

falararespeitodoqueDaviddisseraeaimagemvoltouaserdeestúdio.ArápidamatériafezLenasedistrairenãoouvirmaisnadadoqueamulherestava dizendo. O âncora voltou para anunciar outra reportagem. EntãoLenaapertouumbotãonocontroleremotoedesligouatevê.

Todos acordaram, mas continuaram debaixo da proteção dos troncos,porcausadachuva.Aspicadasdos insetosdeformaramorostodeLinda.Comoolharperdidonovazio,Franklinmassageavao tornozeloepareciadistante. Tommy demonstrava disposição e compartilhou seu otimismo,semmuitosucesso.

–O Sr. Everett deve ter amigos.Talvez venhamaquiprocurarpor ele,certo?

Ninguém respondeu. Mas Sarah, em particular, re letiu a respeito esuspirou. Outro obstáculo. Já sentia muita ansiedade por conta do quefazer e quando, não precisava pensar nos amigos do Sr. Everett. Saiu doabrigo.

–Vamos,gente.Precisamoscontinuar.–Agora?–perguntouFranklin.–Nãodáparaficaraqui.Lindatambémselevantou.–Paraquallado?–Porali–disseSarah,apontandoparaocaminhoquesubia,afastando-

sedorio.Tomaraadecisãosempensar.Pensareraruim.Nãoajudavaem

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nada.–Temcerteza?–perguntouTommy.Sarahnãorespondeu.Olhouparaadireçãoescolhida.Malseavistavaa

trilha lamacenta, por causa da chuva. Sentia vontade de chorar.Mas nãopodia.Ergueuosbraços,comosequisesseafugentarqualquerobstáculoàsua frente. Suas passadas decididas convenceram os outros de que elasabiaoqueestavafazendo,porissoaseguirameLindaergueueagitouosbraçostambém,acreditandoqueaamigafizeraaquiloporalgummotivo.

CâmerasdevídeoefotógrafosaguardavamDavidquandoelechegounavandeMalonepara realizar a buscana áreade inida.Alguns repórterespediramumadeclaração,maselecontinuoucaminhandoatrásdeMalone,na direção da trilha. Policiais fardados mantinham a imprensa longe deDavid.Elesereuniuauns500metrosdalicommais15pessoas,algumasportandori les.Acopadasárvoressefechavanoalto,porissocaíapoucachuva no chão enlameado. David, usando tênis de corrida, não estavaadequadamentecalçadoparaatarefa.

Preocupava-se mais com os ri les, porém. Puxou Malone de lado eperguntouqualeraanecessidadedeles.

–Porqueelesprecisamportararmas?–Porquesim.–Qualarazão?Everettestámorto.– Mas os ursos não. – Malone falou como quem prefere cortar a

conversa.David de repente imaginou como seria encontrar as crianças bem na

hora em que um urso se preparava para atacá-las. Sentia-secompletamente deslocado ali. Tentou se lembrar do que tinham dito nanoiteanteriorsobrecontatocomursos.Nãocorra.Dessaorientaçãoeleselembrava.Encararosolhos?Agitarosbraços?

Oguardaflorestalresponsávelpelogrupopassouinstruções.–Queroquetodosocupemasposiçõesdesignadasporseusrespectivos

números. Um atrás do outro, seguiremos na direção norte-noroeste, aaproximadamente58graus, emanteremosumadistânciade500metros.Quando chegarmos ao inal da etapa, tocarei esta buzina de nevoeiro. Aoouviremochamado,caminhemnadireçãodospontosdesignados.Seviremalgo,gritemaplenospulmões.Algumadúvida?

– O que é o segundo número que nos forneceram? – perguntou um

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homem.– Trata-se do ponto de parada. É a interseção com a próxima grade.

Quandochegaremlá,viremerefaçamocaminhopercorrido,voltandoparacá.Assimcompletarãoamissãodehoje.

David vestiu a capa de chuva barata que comprara em Northville nanoiteanterior.PuxouoGPSea folhacomas instruçõesparaoperá-lo.Viuqueosoutrosfaziamomesmo.Emseguida,todosassumiramsuasposiçõese caminharam no rumo indicado pelo guarda do parque. Durante acaminhada, trocaram impressões sobre a precisão dos equipamentosutilizados.Davidprogramouoseua58graus,conformeaorientação,mas,seseguisseamarca,sairiadalinhaestabelecidaem45graus.LogosedeucontadequeabuscaporSarahnãosebaseavanaprecisão.Todososbem-intencionados participantes percorreriam em ziguezague a gradedeterminada. Falhas namovimentação poderiam levá-los a passar diretopelascrianças.PensounaconversacomLena.Precisavadelaparaguiá-lo.Oequipamento,concluiu,nãodariacontadatarefa.

Ocelulartocou.Nãoreconheceuonúmero,masatendeu.–David.ÉRichard–Eleprecisoudealgumtempoparasedarcontade

quefalavacomseusogro.–Richard!Oi!Ondeestá?–NasAdirondack,comumgrupodebusca,nonortedoestadodeNova

York.–Vocêveio?–Sim,masnãopossodarmaisdetalhes.Sabeemqualgradevocêestá?Poruminstante,Davidpensouquefossetrote,masavozinconfundível

deRichardnãodavamargemadúvidas.Entãoconsultousuasinstruções.–Quarentaenoveaosul.– Bem, estou do outro lado da crista da cordilheira, 20 ao norte. Acho

queissoébom.–Acha?Porquê?– Um de nós a encontrará. Preciso desligar. Dê um abraço bem forte

nelaseaachar,combinado?–Podedeixar.–David,vocêestábem?–Sim,estou.Muitosurpreso,acho.– Eu não podia alertá-lo. Você temmeu número de celular. Entre em

contato se souber de alguma coisa. Farei o mesmo – disse Richard edesligou.

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David icou sozinho quando o grupo de busca se dispersou. Não viamais ninguém à direita ou à esquerda. O vento soprava com força e achuva friadescianadiagonal, rodopiando.Viuqueaumidadeborravaasinstruções impressas, por isso asmemorizou e guardou a folha de papeldebaixo da capa de chuva. Quando ouviu a sirene de neblina, distante ajulgar pela intensidade do som, começou a caminhar na direção indicadapeloGPS.Nãohavia trilha,masa faltadevegetaçãorasteira facilitavaseuavanço. Estava nomeio de um bosque de pinheiros e o chão coberto degalhossecoserarelativamenteseco.Ergueuacabeça,olhouparaadireitae para a esquerda. Impossível não ver quatro crianças namata, pensou.Fixouavistanadireita.Pensoutervistoummovimentoali,masnãotinhacerteza. De qualquer maneira, poderia ser um dos colegas do grupo debusca. Ou não? Por que os participantes não usavam casacos amarelos,a inal?Certezaedúvidasealternavamconformeeleseguiaporumdeclivequemaisà frentedavalugaraumapequenasubida.Segundoa indicaçãodoGPS,eleprecisavacorrigirorumo,seguindoparaoladoesquerdo.Nãopodiaestarcerto,assimnãoseguiriaemlinhareta.Masresolveuseguirainstrução.Pelomenosporenquantoeramelhorconfiarnoequipamento.

Depois de andarem por mais de uma hora, Franklin pediu queparassem um pouco. Subiam outro aclive pedregoso e seu tornozeloinchadolatejavaedoía.Enquantoestavamsentadosdescansando,ouviramum som que pareceu o de um elefante, muito longe. Tommy chegou aperguntaremvozaltasepoderiahaverumanimaldessenaquelasmatas,masnemesperoupela resposta.Ninguémali sabiaoqueera,porém.Eosomnãoserepetiu.

Enquantotentavamdecifraroenigma,umcorvosobrevoouo local.Suapresença fezcomqueváriospassarinhosvoassem,alertandoosoutros.Ocorvo fez as crianças se lembrarem do Sr. Everett e sua inquietação eraevidente.Apesardotornozelomachucado,Franklinselevantouedissequeprecisavamseguiremfrente.

Sarah começou a subir a encosta pedregosa, mas a cada pedra quedeixava para trás sua ansiedade aumentava. Não tinha certeza do rumo.Quandochegaramaotopo, torceuparaobterumapistadocaminhocerto,masnãoviunadaquepudesseajudarenãocon iavamaisemseuinstinto.Nunca forao tipodemeninaque corriapara chamarospais aoprimeirosinal de di iculdades. Só os procurava quando era absolutamente

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necessário, se chegasse a um ponto em que não sabia mais como agir.Agora,pensou,estavaquasechegandoaumbecosemsaída.Ondeestavampapaiemamãe?

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Trintaecinco

APENAS EQUIPES REDUZIDAS PERMANECIAM NA frente das casas das famíliasWilliams,WalkereTrainor.NaentradadosRostenkowskinãohaviacarrosdereportagem.AnotíciadaprisãodeJanetvazaraeaaçãopassaraparaasede da polícia federal americana, em White Plains, depois que PaulRostenkowski,acompanhadopordoistios,partirademanhãbemcedo.

MikeWilliamsiasairparatrabalhar,masnemchegouatirarocarrodagaragem, pois se deu conta de que não conseguiria fazer nada enquantoseuspensamentosestivessemtotalmentefocadosnabusca.Pensouporuminstante em seguir para o norte, mas decidiu icar em casa e mantercontatocomseuamigonasAdirondackquetinharádiodapolícia.

JohnWalkerfoitrabalhar,poiseraabsolutamentenecessário.Precisavaassinarpessoalmenteoscontratosdeumatransaçãointernacionalquenãopodia seradiada.Umcarrodobanco foibuscá-loàsoitohorase icariaàdisposiçãoparatrazê-lodevoltaassimqueonegóciofossefechado.Sheilapassou a manhã em casa, acompanhada de cinco membros de suacongregação. Ela sugeriu que izessem um estudo da Bíblia, mas logo oencontro se transformounum grupo de apoio, comorações, quando umadasmulheresdissequesóestavaaliparaajudaratrazerFranklindevoltaparacasa.

ParaLena,nãoexistia infernopiordoqueesperarnotícias sentadanosofá. Atendeu uma ligação urgente do hospital, uma consultoria deemergênciaantesdarealizaçãodeumacomplicadacirurgiapulmonar.Aodesligar, sentiu que o vazio voltava e pensou por ummomento em ligarpara o trabalho, cuidar de outros casos, só para afastar aquela sensação.Massabiaqueoutrosmédicoscuidavamdoscasosdurantesuassupostasfériasequenãoseriacorretocomospacientestentarvoltarsóparaaliviarasmágoas.

Com muito esforço se convenceu a tomar uma ducha, mas primeirochecou as notícias na internet. Levou o celular para o banheiro. A águadescia gostosa,mas não queria demorar no banho: não se permitiria tersensaçõesreconfortantesatéabraçara ilha.Mesmoassimoritmodaáguaa capturou por um instante, e naqueles poucos segundos a mudançaaconteceu.Nãosabiaexplicaroqueera.Quandosaiudobanhoecomeçouaseenxugar,aimagemdoirrigadordojardim,movendo-separaláeparacá,voltouàsuamentee láse instalou.Aquilo,decerta forma, tinhaaver

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comoquesentiranochuveiro.Seguiu-seumaenxurradade imagens relacionadas: Sarah eos amigos

correndo, rindo, passandopelo irrigador; o quintal da casa de um amiga,enfeitadoparasuafestadeaniversário;e, inalmente,a ilhacomummaiôainda molhado, com uma venda tapando os olhos, sendo girada poralguém.

Lena se assustou com a última imagem. Assemelhava-se demais a umsequestro. Ela abriu o armário do banheiro e em seguida viu seu rostodesaparecer, voltando a vê-lo depois de pegar o hidratante e fechar aporta.Verseucabelomolhadonoespelhoafezdeixardeladoasbarreirasemergulharnacenadafestadeaniversário.

Sarah,comumavendanosolhos,haviasidogiradaváriasvezesepediaaospaiseàscriançasque icassemquietos.Nãoqueriaajuda.OsparentesolharamparaLenacomaquelaexpressãode“sópodiasercoisadeSarah”.E todos viram a menina andar um pouco, seguir para a esquerda,afastando-se da garagem. As crianças, tentadas a falar, tiveram que seesforçarparapermanecercaladas.

Então, recordou Lena, olhando seu re lexo no espelho, ocorreu umpequenomilagre.LenadisseaSarah,sememitirumasópalavra,querumotomar. Foi uma orientaçãomais forte do quemeros pensamentos. Talveztenha sidomais fortedoqueuma telecinesiaqualquer. Provinhadamaisíntima relação entre mãe e ilha, cuja força Lena sentira quando pegouSarah no colo pela primeira vez, aos 15 segundos de vida. Não haviadiferençaentreasduas,eramumasópessoa,eSarahreagiucomoseLenativessegritadonoouvidodela.Seguiunadireçãodoburro,mudouderumoeobedeceuquandoLenausouopoder recém-descobertoparaorientá-la.Após pequenas correções, ela pregou o rabo a poucos centímetros dopontoexatonotraseirodoburro.

Lena afastou aquela lembrança. Fechou os olhos e soltou a toalhaenroladaemseucorpo,quecaiunochão.Ficoualiempé,nua,quasesemrespirar, e parou de pensar em sua existência como um corpo distinto,separado domundo e de Sarah. Desta vez não tinha consciência de quediziaalgoaSarah,ordenandoqueseguisseemdeterminadadireção.Massabia,no fundodocoração,queestavaguiandoa ilha,mostrandoaelaocaminho.

O telefone tocou e o som tirou Lena do estado em que mergulhara,forçando-a a usar o raciocínio. Tentoumanter o vínculo com a ilha,maspensou que o telefonema pudesse ter alguma ligação com seus

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sentimentos.Elaatendeu.EraDavid.–Novidades?–perguntou,ansiosa.Avozdomaridofalhava.– Não. Estou nametade daminha rota. A coisa aqui estámuito di ícil,

Lena. Eles podem estar num local entre as áreas vasculhadas por duaspessoasenãoseremvistos.

Ela desligou sem dizer nada. Relaxou de novo e a água fria provocouarrepios na pele. Não sabia se era possível invocar a sensação de uniãoquesentiraantes.Elarecuouatéas imagensda festadeaniversário,masessanãoeraumamaneiranaturalderesgataras lembranças.Empânico,lutava para recuperar aquela essência. Sabia que precisava receber estagraça,abênçãodesentirapresençada ilha.Fé,pensou,precisavade fé.Deixou que os pensamentos se dissipassem. “Volte, Sarah. Fique comigo.Fiquecomigo.”

Franklin foi o último a chegar ao alto do aclive pedregoso e, quandoconseguiu, sentou e pôs a cabeça entre as mãos. Não havia nada lá.Nenhumcaminhoou trilha, sómata fechada.Sarah,depé,olhouacenaepercebeu que os outros a observavam. Não conseguiu esconder suaangústia.

–Qual é o caminho? –perguntouLinda, coma voz trêmula.Os outros,famintos,doloridos,exaustos,procuravamumsinalqueostranquilizasse.

Sarah sentiu que estava prestes a chorar. Era hora de seus paischegaram, para sentir a força dos braços do pai quando a levantava een iarorostonasaiasedosadamãe.Maselaeasoutrascriançasestavamaindamaislongedaestrada,doAcampamentoArno,ondequerqueelesesituasse,edesuacama.Estavamnomeiodonada.

Sentiu-se tonta, como se fosse cair e rolar pela ribanceira pedregosa.Mas não podia cair nem sentar nomomento. Os outros sim,mas não ela.Superouatonturaerespiroufundo.Recuperouoequilíbrioe,derepente,lembrou-se do que lhe dera coragem para avançar, quando estava naclareira: a brincadeira de pregar o rabo no burro. Ela ganhara. Sozinha.Nãosabiaparaqueladodeviair,masforaparaoladocertoevencera.

Sarahcerrouaspálpebras.Astrevaslheproporcionaramumasensaçãoreconfortante,comoseapazeasegurançaaenvolvessem.Deixouqueseucorpo girasse um pouco e abriu os olhos. Ainda observava a mesmaloresta,mas agora ela parecia radicalmente diferente. Era como se umafaixaasfaltadaseestendesseàfrente,serpenteandoporentreasárvores,

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driblando a vegetação rasteira. Agora, tinha certeza absoluta. Elapraticamentegritou,pararesponderàperguntadeLinda:

–Éporali!

David checava o GPS quando um som inconfundível de movimento àdireitaoassustou.

–Olá!Temalguémaí?Omovimentoparoueumavozrespondeu:– Olá! – Mais farfalhar das folhas e surgiu por entre as moitas um

sujeitomagroebarbudo,usandotraje impermeável,queestavana frentedeDavidna ilaeseapresentoucomoCarl.Osdois icaramdesapontadosporseencontrarem.

Depois de conversarem por alguns minutos, concluíram que um dosdois se desviou da linha reta que deveria percorrer. Isso signi icava queumdelesdeixaradecobriraáreadesignadaepoderia terpassadopelascriançassemvê-las.

Aáguaseacumulounaaba levantadadochapéudeCarlequandoelebaixouacabeçaelaescorreu.

–Achomelhornossepararmos,seguiratéotopoedescerparacobrirapartequeficoufaltando.

Carl deu-lhe as costas sem a menor cerimônia e saiu andando nadireção da qual viera, deixando David por conta própria. Ele precisavadescobrir por onde prosseguir. A ligação de Lena e seu inal abrupto opreocuparam.Eagora, isso.Olhouparaa teladoGPSesentiuvontadedejogaro aparelhonomeiodomato, omais longequepudesse.Olhouparatrás, examinou a rota por onde viera para chegar até o ponto emque seencontrava.

Como se fosse um vento a soprar por entre as árvores, a con iança orodeava. Os números que fossem para o inferno. Crescera no meio domato. Sabia que Sarah estava naquela loresta. Seguiria em frente,con iando nos seus instintos. Não se perderia. Caso se desviasse da rota,encontraria Carl de novo, ou um dos outros. Richard estava por ali, masonde? Não dissera que um dos dois encontraria Sarah? David corrigiu arota para desviar de umpequeno lamaçal perto do que parecia ser umafontenaturalecomeçouadarpassadasmaiores.Aofazerisso,ouviuavozdeLena,masnãodeummodomístico.Elanãodissenadaespecí ico,masamúsica e os sons que emitia quando conversavam eram inconfundíveis.

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Estavamjuntos.Sentiaissointensamente.

Depois da ducha, Lena se vestiu sem pressa. Pôs a roupa e sentou-sesem fazer absolutamente nada por um longo tempo. Ficou no quarto,olhandoparaatelaimóveldocomputador.Emboranãohouvesseatividadeperceptívelnomicro,Lenapercebeuumapresença,umaproximidadequenãoqueriaperder.Otelefonetocoumaisduasvezes,maselanãoatendeu,pensando que logo saberia o que era, em caso de boas notícias. Se fossenotíciaruimnãotinhapressaemsaber.Nomomento,sabiabem,“omelhorera não fazer nada”. Quando a frase lhe veio à mente, achou que erabobagem,comosefosseumavariaçãodojuramentodeHipócrates,“nuncacausardanooumal”.Noentanto,onadaaquese referianaverdadeeratudo,ovaziomaispareciaumvácuoqueanaturezaabominava,cheioatéabordade Sarah.Quema ilha era não importavamais. As questões todashaviam sido respondidas e continuariam a sê-lo enquanto LenaconseguisseesvaziaramenteesentirapresençadeSarah.

As horas passavam, a intensidade aumentava. Lena saiu do quarto elevoupelomenos45minutosparaprepararumatorrada.Ficousurpresaquando, sentada à mesa da cozinha, uma hora inteira passou no quepareciam ter sido apenas cinco minutos. Se não estivesse tão certa daligação com Sarah, teria pensado que estava perdendo o prumo,desligando-se da realidade. Talvez, pensou por um instante, seja assim aexperiência interior da loucura ou da esquizofrenia, a fronteira entre obem-estar que sentia interiormente e o mundo exterior, com suairracionalidade. Mas, se fosse esse o caso, se a perda da ilha a izessemergulharnoreinodadoençamental,Lenanãoseimportava.ElaeSarahestavam juntas. Fosse qual fosse a gravidade de sua doençamental, issonão tinha importância. A base de sua realidade era o sentimento queprotegia, cadavezmaiscapazdepermanecer,umsentimentoquecresciacomforçaepareciamaispotenteacadahora.Quandoasensaçãopassou,estava cada vezmenos relacionada a resultados, a guiar a ilha como sefosseumaviãodebrinquedocomcontroleremoto.NavisãodeLena,Sarahjátinhavoltadoparacasa.

Tommyoavistouprimeiro.Seguianafrentedogrupo,poisSarahhaviaparadoa imdeajudarFranklin.Otornozelooincomodava,alémdissoele

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perdera a fé na capacidade de Sarah de tirá-los da loresta. Sarah, cujacerteza sobre o caminho aumentara bastante na última hora, não queriadiscutir com Franklin. Só queria que continuassem andando. Sabiamuitobemqueestavacerta.OgritodeTommy,vindodafrente,aalertou.

Ele se agachou rapidamente e os outros, inclusive Sarah, izeram omesmo. Ela tinha certeza de que havia um urso adiante. A menina semoveulentamente,passouporLinda,queseagachara,echegouaTommy.Ele apontou. Ao longe, Sarah viu um homem que avançava por entre osarbustos, afastando-os enquanto descia por uma encosta suave e que, ajulgarpelavoz,praguejava.Mesmodistante,TommyeSarahnotaramseumauhumor,quelembravaodoSr.Everett.Acomparaçãonãoajudou.

–Eleestáprocurandoagente?–quissaberTommy.Sarah,con iandoqueocaminhoescolhidoestavacerto,nãosabiacomo

interpretar a presença daquele homem. Sua mente não imaginarasalvadores,apenasseuspais.Amãevinhasendoumapresençatãointensanas últimas horas que tinha certeza absoluta de que iria encontrá-la.Qualquer outro com quem cruzassem na loresta era uma ameaçapotencial. A questão anterior de Tommy a respeito dos amigos do Sr.Everettviremparapegá-losmartelavaemsuacabeçaeressurgiunaquelemomento.

– O que ele está carregando? – perguntou Sarah. Tommy se levantouumpouquinhoparavermelhor.

–Umaarma.Para Sarah, bastava. Os outros dois se aproximaram deles e Franklin

sussurrou:–Oquefoi?–ESarahopuxouparamaispertodesi.–Quieto–murmurouela.–ÉumdosamigosdoSr.Everett.Lindagemeu.Osquatrosedeitaramnochão.Ouviramramosestalando

aolongeetentaramidenti icarseoruídoaumentavaounão.Nãodemoroumuito e os sons cessaram completamente. Tommy se ergueu parainspecionaraáreaedisseaosoutrosqueoamigodoSr.Everettsumira.

Sarah decidiu que era melhor esperar mais, pois precisavam ir nadireçãoqueohomemseguira.Enquantoesperavam,elanotouqueagaroadiminuíra. Mal a percebia, agora. Embora não tenha posto em palavras,considerouapresençadoestranhoumaespéciedesinal,decon irmação.Seguiampelocaminhocerto, izerambememevitaroamigodoSr.Everett.Elasentiaapresençadamãe.Achuvaestavaparando.Iadartudocerto.

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Davidchegouaotopodeumaelevaçãoededuziuquedeviaseropontode retorno. Relutante, pegou o GPS e viu que a leitura indicava que elechegaramesmoaopontocitado.Masnãopretendiavoltarporonde tinhavindo. Queria seguir em frente. Sarah estava ali, em algum lugar, e nãoatrásdele.Nãoteriapassadodiretoporela.Avançoumaisuns500metrosatéverqueoterrenoadianteeraumdecliveacentuado.Recuouatéotopodomorro,viumovimentoàdireitaesedeucontadequeeraMalone,queestavaatrásdelenafila,retornando.

Seestavatãopertodele,concluiu,ouMalonedesviaranasuadireçãoouCarl,antes, saírado trajeto.Dequalquermaneira, seu trechodebuscaseestreitara.Decidiudescereseguirpelaesquerda,nadireçãodeCarl,paracobriroterrenoqueohomempoderiaterdeixadoescapar.

David almoçou um sanduíche, sem interromper a busca. A chuvadiminuía, então resolveu comer enquanto andava. Quando as nuvens sedispersaram, percebeu que o céu já baixo no horizonte indicava que elehavia caminhado por muito mais tempo do que calculava. Consultou orelógio: eram 15h20. Cobrira sua área em cinco horas. Precisava seapressarparaconseguirvoltarantesdeescurecer.

Cerca de 15 minutos depois, David chegou a um regato, não sepreocupou em procurar pela parte rasa, tentou atravessar pisando naspedras lisas espalhadas pela água, escorregou e caiu. Conseguiu selevantarechegaràoutramargem.Oladoesquerdodocorpoeossapatosicaram ensopados. Como não podia fazer nada a respeito, seguiu emfrente. Alguns metros adiante, porém, se deu conta de que não haviaatravessadooriachonasubidaequeamataàfrentenãopareciafamiliar.

ElepegouoGPS,masaleituraobtidanãofezsentidoparaele.Digitouascoordenadas iniciais, mas elas indicavam que o caminho era aquele deondevinha,dooutroladodoriacho.Parou,passouumtempoolhandoparaatela,paraorio,paraamatadesconhecidaàfrente.

Então riu. Estava perdido. No meio das montanhas Adirondack,procurando a ilha desaparecida, acabara se perdendo. Riu, pois aquilotudoeraumtremendoabsurdo.Areaçãoincoerentealiviouapressãoporalgumtempo.Emquedireçãodeveriairparasairdamata?QuecaminhoolevariaatéSarah?Entrouempânicosódepensaremlocalizara ilhaeseperderjuntocomela.Pegouocelular,masviuqueestavaforadaáreadecobertura.

Umditadomuitoantigosobreseguirorioquandoseestáperdidoveioà

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sua cabeça. Decidiu avançar ao longo da margem por um tempo. Nãovoltaria por onde tinha vindo, não entraria na loresta desconhecida.Caminhar com a perna esquerda da calça ensopada era desconfortável,mas tomara uma decisão e, conforme andava, já se sentiamais disposto.Seumovimentorompiaosilêncioqueocercava,faziafarfalharosarbustoseestalarosgalhossecoscaídosaseuspés.

Ele se perguntou, de repente, por que mantivera silêncio durante asubida inteira. Os guardas lorestais se esqueceram de dizer algo? Nãodeveriam gritar o nome das crianças enquanto caminhavam? Se nãofossemvistos,poderiamouvi-los.

– Sarah! –Gritou,meio constrangidopelo somde sua voz quepareciainvadirosilênciodamataemvolta.Maslogosuperouavergonha.–Sarah!

Agoraaplenospulmões,gritavaonomedetodasascriançasesóparouquandouma subidao forçou a fazerumapausapara recuperar o fôlego.Por que não instruíram os membros do grupo de busca a gritar pelascrianças? Haveria uma razão? Ele não se importava. Gritar era bom,ajudavaaafastarsuainsegurançaemrelaçãoaolocalondeseencontravaeparaondeiaepoderiamuitobemtrazersuafilhadevolta.

–Sarah!

Quando Lena ouviu a campainha, estava mergulhada em seuspensamentos, distante do mundo. Indo ver quem era, ela recuperou umpouco do senso de realidade, mas não todo. O detetive Martin percebeuissoquandoelaabriuaporta.

–Estouincomodando?–perguntou,recuandoumpasso.–Não.Eusóestava…–Lenadespertousubitamenteaopensarqueele

poderiateralgumanovidade.–Entre.Oquefoi?Martinnãosaiudolugar–TemosnovidadessobreosRostenkowski.–Oquê?– Phil morreu há 15 minutos. A imprensa só será informada daqui a

umahora.Lenaviuorostodohomemqueesbofetearano leitodohospital.Lutou

paraafastaraimagemdamente,paranãosentirnada.PrecisavaretomarocontatocomSarah.

–Lamento…Nãosei…

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–Enãoseisevãoacusaramulherdele.–Comoassim?– Lynn diz que não acredita nela. Acha que émaluca e inventou tudo

porcausadosofrimento.–Não.Elamecontou.Nãoinventounada.Martinsuspirou.–Seidisso.Vocêvaiprecisarseenvolver.–Tudobem,masnãoagora.Precisoficarsozinha.–Lamento,vocêprecisameacompanhar.–Nãodá.PrecisomeconectarcomSarah.Precisoestarcomela.Martin

permaneceuimpassível.Lenasabiaquesoavameioalterada.– Por favor – disse. – Mais tarde. Que diferença pode fazer? Ela não

sabeondeascriançasestão.–Eu sei.Mas recebi ordens. –Os olhos suaves dodetetivemostravam

firmeza.– Que se danem suas ordens! É da vida da minha ilha que estamos

falando!Lena bateu a porta e icou imóvel um tempo. Esperava que Martin

forçasse a entrada,mas ele não fez isso e ela passouminutos de agonia,tentando retornar ao lugar onde estivera, para o nada que a levaria aotudo.Entãofechouosolhos.

A imagemdeSarahbrincandodecolocaro rabonoburroressurgiue,com ela, a sensação de paz. A menina ainda estava lá, ouvindo a mãe,seguindosuasinstruções.Lenanãoousousemexer.

Estavam numa pequena depressão e a luz do início da tarde batiaindiretamente.Franklin tinhachoradomuitoduranteaúltimahora, adorno tornozelo e o desespero afastarama vergonha. Linda vinha criticandoSarah por causa da direção escolhida. Mas a menina tinha certeza docaminho e, como não desistia nem aceitava discutir o caso, os outros aseguiam.

Tommy mandou Franklin calar a boca de repente, à toa. Franklinobedeceu assustado eTommypediu a todos queprestassematenção aossons.Apenasosilêncioda lorestaeumsibilarsuavedoventonosgalhosmaisaltososcercava.

–Oquefoi?–perguntouSarah,finalmente.

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Tommy nem teve tempo de responder, eles escutaram outra vez umavoz distante, quase inaudível, que parecia gritar “Linda!”. A meninaengasgoudesusto.

Franklinergueuavozegritoudevolta:–Ei!–exclamouSarah,pulandoemcimadeleimediatamente.–Quieto!EseforumamigodoSr.Everett?Ouviramdenovoogritodistante.–Sarah!Ocoraçãodelacomeçouabatermais forte,odesejodequefosseopai

entrouemconflitocomoinstintodeproteção.–Vamosconferir–disseTommy,obviamenteesperançoso.Outrogrito

chamando por Sarah fez as crianças virarem o rosto ligeiramente nadireçãodosom.Avozsoavamaisfraca.

–Nãoéadireçãocerta–disseSarah.–Elefoiparalá.Enósprecisamosseguirporali.

–Nadadisso–interferiuFranklin.–Precisamosveri icar.Eleseguiunadireção do som, sem que ninguém o seguisse. O menino parou. Sarahmordeu o lábio, fechou os olhos outra vez e de repente foi como setomassemadecisãoporela.Abriuosolhoseseguiunadireçãoqueestavaindo antes. Linda e Tommy icaram entre Sarah, que ia para um lado, eFranklin, ameaçando seguir ao encontro da voz. Primeiro Tommy, depoisLinda, seguiram Sarah. Quando os três se afastaram tanto que Franklinmal os avistava na luz fraca do im da tarde, ele desistiu e voltoumancando,comosolhoscheiosdelágrimas.

–Esperem!Esperempormim!

O riacho terminava num brejo e David precisou contornar o lodaçal,caminhandouns500metrosparaadireita.Suavozperdiaaforça,maselecontinuavaagritaronomedascrianças.Quandochegouaumapartemaisaltaesecadoterreno,reconheceualgunsmarcosquememorizaraduranteasubida.Então,comose lesseplacasderua,ocaminhodevoltaaopontode partida icou claro, e icou evidente quando ele tinha que contornardeterminada pedra ou passar por cima de uma árvore caída. Parou degritaronomedascrianças,percebendoquetinhavasculhadotodaaáreapela qual icara responsável. Depois de 15 ou 20minutos de caminhadatranquila, ouviu vozes e identi icouumgrupodebusca, reunidopertodolocal de onde haviam partido no início do dia. A visão não o agradou. Se

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houvesse quatro crianças entre eles, teria corrido para encontrá-los.Assim,perderaadisposição.Maloneseviroueoviu:

–Estávamospreocupadoscomvocê.Cincoouseisoutrosmembrosdogrupoeoguardaflorestalsedirigiram

aDavid:–Vocêseperdeu?Poralgummotivo,elesentiuumimpulsodecutucarMalone.–Umpouco. –Dirigindo-se ao guarda lorestal, descarregou a raiva: –

Porquenãogritamosonomedascrianças?– Boa pergunta – disse o guarda, sorridente. Muito jovem, ruivo e

sardento, ele usava um chapéu pontudo e um pouco grande. – Lamentonãoterpensadonisso.Osgruposdebuscacostumavamagirassim,agentevêaspessoasagindoassimnos ilmes,masnãoachamosquesejaumaboatática,nocasodecrianças.Paraadultosperdidos,tudobem.Ascriançassedesorientammaisaindaaoouviremseusnomes,oupensamquevãolevaruma bronca, ou simplesmente não entendem o que está acontecendo.Melhortentaravisualização,apenas.

“Papofurado”,pensouDavid,masmordeualíngua.Oguardaretornouasuas tarefas com o grupo. Tentavam marcar num mapa topográ ico asrotas seguidas por cada um dos membros da equipe de resgate. Davidabriu o celular e viu que havia sinal. Afastou-se dos outros e ligou paracasa.

Lena sentia-se exausta. Abriu os olhos e se deu conta de que passaraumlongotemposentadanamesmaposição.Aluznasalaestavabemfraca.A exaustão provinha da intensidade de sua concentração. Não sentia ocorpo cansado, como se tivesse corrido uma maratona. Nem o peso dospensamentos.Oquesentiaeraumvazio,asalaparecendo lutuaremvoltadela. Sarah ocupava cada molécula de seu ser naquele instante. Suapresença mais forte fez Lena saber, sem sombra de dúvida, que a ilhaestavaperto,cadavezmaisperto.

Ela pulou quando ouviu o telefone tocar. Mas não queria serincomodadaaindaeoignorou.Quandoasecretáriaeletrônicafoiacionadae ela ouviu a voz de David, na cozinha, não conseguiu ignorar o que eledizia.

–Lena,soueu.Vamosencerrarasbuscasporhoje…Elacorreuparaatender.

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Sarah parou e seus três amigos izeram omesmo. A loresta à frenteadquiria um tomazulado, por conta da pouca claridade. Fechou os olhos,torcendoparaquesuabússola interior,queaguiaraatéali,voltasse,semêxito.Assustada,abriuosolhos.

– Não dá para continuar hoje – disse, tanto para si quanto para osoutros.

Lindagemeu.Tommyolhouparaafrente,comoseestivessevendoalgo.Franklincerrouospunhos.

– Não podemos passar mais uma noite no mato – reclamou. – Nãopodemos!

Masosoutrosperceberamquenãoteriamescolha.Logoestariaescurodemaisparacaminhar.Saraholhouemvolta,procurandoumlugarparaseabrigarem.Masdestaveznãohaviaesconderijosnaturais.

UmbaquesecoeofarfalhardosgalhosatrásdeleslevouLindaagritare os demais a se virarem num pulo. O som icoumais alto,mas eles nãoconseguiam ver nada. Com a mesma rapidez com que surgira, o somsumiu, deixando as crianças sozinhas com sua imaginação e uma longanoitepelafrente.Sarahachouqueiachorar.Erademaisparaela.Chegaraaofimdalinha.Queriaamãeeopai.

Agora.

Lenapegouotelefonenacozinhaeatendeu.–David?Soueu.–Oi.–Oquefoiquevocêdisse?–Quevamosencerrarasbuscasporhoje.Vamosvoltar.–Não,nãopodemfazerisso.Aindanãoescureceu.–Aquiestábemescuro. Jáéquasenoite. Jápercorremosnossasrotas.

Ninguém…–David,porfavor.Seiqueelaestámuitopertodevocê.–Ecomosabedisso?–Consigosentir.Nãodesistaainda.–Nãotenhoparaondeir,Lena.Jávasculhamosaáreatoda.–Elanãopodepassaroutranoiteaorelento.–Vamosrecomeçaramanhãbemcedo.

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–Não,David,porfavor.Nãodesista.David percebeu que Lena chegara ao limite, a tensão extenuante dos

últimos dias inalmente a abatera e ela surtara. Ele pensou que umamentirinhaseriamelhordoquequalquertentativaracionaldeconvencê-ladocontrário.

–Tudobem–disseele.–Voucontinuarprocurando.– Obrigada. Sarah está muito perto, eu sei. Posso sentir. Ela está aí

agora,comigo,comnósdois.Procureporela.Nem mesmo o som precário do celular atenuava o desespero, a

insensatezdopedido.–Fiquetranquila.Depoiseuligo.–Obrigada!Obrigada!David desligou e ia guardar o celular no bolso quando ele tocou. Não

reconheceuonúmero.–Alô?–Oi,David,éRichard.Nãodemossorteaqui,peloquevejo.–Poisé.–Estouseguindonasuadireção.Sepudermosnosencontraremalgum

lugardiscreto,eugostariadevervocê–disseosogro,comcertezamenosanimadodoquepelamanhã.

–AcabeidefalarcomLena.Ela…elaestá…–Como?–Nãosei.Achoqueseriamelhorvocêconversarcomela.Estavaquase

histérica.–Lena?–Estavaforadesi.– Preciso pegar uma carona agora. Espero que possa encontrá-lo

depois.RicharddesligoueDavidguardouocelular.Ogrupoderesgateinicioua

caminhadadevoltaparaaestradaeeleosseguiu.Odesânimoàfrenteeraevidente, mas alguns sujeitos riam baixinho, sabe-se lá do quê. A mataparecia se debruçar sobre David, como se também zombasse de suaincapacidadedelocalizara ilhaentreárvoresearbustos.AinsistênciadeLenaeraumareaçãoàzombaria,comoseDavidestivessenomeiodeumabatalha maluca entre a mãe desesperada e as forças implacáveis danatureza. A cada passo no sentido da estrada, a pressão da derrota e daagressãopesavammaisemsuascostas.

Teriasidotudoculpadele?DorelacionamentoestúpidocomTricia,que

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ofezperderoempregoeoafastouda ilhanahoradapartida?Sentiuumaprofunda raiva de si mesmo. Claro, havia os sequestradores, osRostenkowski e todo o resto, mas não teriam sido as suas falhasresponsáveispormeterSarahnaquelaencrenca?Nãosuportariafracassardenovoenãoencontrara ilha.Aspessoasàsuafrentepodiamiremboradandorisada,mascadapassoquedavaparasairda lorestaoafastavadeSarah,aumentandoaculpapelofracasso.

Derepente,elesoube.Deumeia-voltasempensaremnadaecomeçouacorrernadireçãode

ondeviera.– Sarah! – gritou enquanto corria. Os outros viraram rapidamente,

viram umpai descontrolado avançar feito um louco pelomeio domato eforamatrásdeleparaajudar,trazê-lodevoltaàrealidade.

David tropeçou numa raiz, caiu,mas depois se levantou e continuou acorrer,gritandosemparar:

–Sarah!Soueu!Papai!Seminterromperacorrida,eleapurouosouvidos.Avançavacegamente

pelomato,semseimportarcomosobstáculos,semprecorrendo,orostoeosbraçoscobertosdearranhões,acapadechuvabarataemfrangalhos.

Umasubidaacaboucomseufôlegoeelemalconseguiugritar.Chegandono topo, viu que tinha perdido a voz. No entanto, pensou ter ouvido umsom baixinho, à frente. Estaria imaginando coisas? Parou, tentou ouvirmelhor, mas o som de sua respiração ofegante o impedia de escutardireito.Elerecuperouofôlegoparagritardenovo.

–Sarah!Arespostaveiofraquinha,muitodistante,maseraumavozdecriança,a

vozdeSarah.–Papai!Davidouviuosgritosdos companheirosdebuscaatrásdele, abafando

outrossons.Avançounaescuridãoquasetotal.Aoparardenovo,avozdailhasooumaisalta,umpoucoàesquerda.Elegritou,ouviuumarespostaclaraeseguiunadireçãodavoz.

AgoraouviaSarah,mesmoduranteacorrida.Aproximava-sedelacadavezmais.Escutououtrosgritosinfantis.Estavamtodosjuntos.

Ameninaoavistouantesqueeleavisse.Suacapaamarelacontrastavacomamata.Elacorreuemsuadireção,gritandoaplenospulmões,comasoutrascriançaslogoatrás.

–Papai!

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Elesseencontraramnumforteabraço.SarahagarrouostraposdacapaatéDavid a erguer e abraçar com toda a força. Linda chegou, agarrandosua perna. Tommy e Franklin icaram um pouco recuados, mas sejuntaram a eles quando as lágrimas de Sarah e David se tornaramlágrimas de júbilo. Os membros da equipe de resgate pararam quandoviramDavideSarahrodopiaremdefelicidade.

– Não acreditei no que estava vendo – declararia um deles a umrepórter,mais tarde. –Aquele pai é umherói! Ele encontrou a ilha.Nãoseicomo,maseleconseguiu.

Depois de conversar comDavid, Lena desabou no sofá. Ele não soarasinceroquandodisseque insistirianabusca,mas ela tinhaqueacreditarnele.NãosentiamaisapresençadeSarah,comotinhasentidoodiainteiroaté aquele momento. Percebeu que a conexão se rompera e enterrou orosto no travesseiro. Mas não chorou. Imaginou Sheila diante de suacongregaçãoprofessando suaverdadeira fé. E assimLenamergulhouemsuaprópriaalma,emsuafé,confiandonomaridoenafilha.

Pouco antes de baterem na porta, antes de ouvir os repórteresavançarematé sua casa, ela entendeu. Sabia queDavid falara a verdade,quenãodesistiriadabuscaatéqueSaraheeleseencontrassem.Aoabriraporta,deparandocomosmicrofoneseosre letores,ela jásabia.Mesmoassim,perguntou:

–Oqueaconteceu?–Encontraramascrianças!–gritouumarepórter.Uma enxurrada de perguntas a sufocou, mas ela não conseguia dizer

nada.Escondeuorostoentreasmãos.Tempoeespaçodeixaramdeexistir.Percebeuqueagoraestavaparadanomesmolugaremqueseencontravaquando o falso monitor desceu da van para buscar a ilha. Ele haviadesaparecido. O pesadelo terminara. Omundo voltara ao normal. Os diasque mais pareciam séculos haviam passado e agora ela, David e Sarahestavam unidos de ummodo completamente novo, como nunca ocorreraantes. Sentiuanovavidaquecresciadentrode si semexer,participandodoencontro.Nãoprecisavamaisdaesperança.

Elesestavamtodosjuntos.

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Epílogo

SARAHDEVERIAENCONTRAROSOUTROSnafrentedoclube,às22h30,masnãoviuninguém. Estava cansada de enviar mensagens de texto para descobrirquantofaltavaparachegaremaolugarmarcado,porissoresolveuapenasesperar. Estava de bom humor, tinha acabado de tomar uma cervejinha,depoisdaaula.Faziacalor.Nãoseincomodavadeobservaravidanarua.

Aquelamoçadevia teramesma idadedeSarah,emboraamaquiagemexagerada tornasse mais di ícil determinar sua idade. Acompanhava umgrupo de góticos retrôs, todos de preto, com piercings e outros enfeites.“Que coisa horrível”, pensou Sarah. Mas a moça lhe pareceu familiar.Quandopassou,olhouparaela,quedeveterpercebido,poisvirouporummomento e a encarou antes de prosseguir. Parou adiante, porém, deumeia-volta,seafastoudogrupoesedirigiuaSarah.

–Sarah?Évocê?–Sim,soueu–respondeu,examinandoagarotadeperto.–Linda?As duas icaram ali paradas, olhando uma para a outra por um bom

tempo,umtantoconstrangidas.Dezanostinhamsepassadodesdequesedespediramcomosolhoscheiosdelágrimas,quandoopaideSarahdeixouLindanacasadatia,noBronx.Naépoca,nenhumadelassabiaexatamenteomotivo para Linda não voltar para sua casa em Pelham. Horas depois,quando Sarah ouviu da mãe qual fora o papel do Sr. e da Sra.Rostenkowski no sequestro, a mente jovem da menina não conseguiaseparar os pais da ilha. Aos gritos, exclamou que nunca mais na vidaqueriaveracaradeLinda.

–Estámorandonocentro?–perguntouLinda,nervosa,olhandoparaosamigos,semconseguirencararSarah.

–EstudonaUniversidadedeColúmbia.Evocê?Linda sentiu um aperto na garganta quando tentou falar. As lágrimas

escorreram pelo rosto, como dois riachos enegrecidos pelo rímel. Elapiscouebalançouacabeça.

–Vou voltar para a escola umdia, eu acho. Preciso…primeiroprecisoresolverumascoisas.

Os amigos de Linda a chamaram. Ela olhou para eles e se virou. Aslágrimascontinuavamaescorrer.

– Sinto muito – disse Linda apressada, com sinceridade na voz e noolhar. – Fazmuito tempoque eu estou esperandopara lhe dizer isso. Eu

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sintomuito.–Nãofoiculpasua.SarahmalhaviafaladoquandoLindabalançouacabeçavigorosamente,

virou-seeseguiunadireçãodosamigos,batendoopénochãocomforça,para pegar um dos rapazes pelo braço e seguir com eles rua abaixo. Ogarotovirou,olhouconfusoparaSarahefoiembora.

Quando Linda sumiu e a rua voltou ao normal, Sarah se perguntou serealmente vira a antiga amiga ou se fora apenas um espectro. Com opassardosanos,boapartedoqueaconteceranaquelaépocavoltavaàsuamente como sonho, mais do que como realidade. Os dias perdida nalorestasetornaramumemaranhadodecalor,árvores,umurso,cheirodebrejo,visãodecadáveresemdecomposição.Seupaialevaraparaacamparalgumasvezes–empartecomoterapia,percebeudepois–,masosdiasnomeiodomatoforammuitodiferentesdosmomentoscomoSr.Everetteasoutrascrianças.

Do resgate, ela se lembrava comose tivesse sidoumsonho.Depoisdaalegria de encontrar o pai, houvera assédio da imprensa, os repórteresen iandomicrofones na sua cara. E então, saído damultidão, um senhordisfarçado se aproximou dela e, em vez de afastá-lo, o pai deixou que ohomemaabraçasse.EleachamoudeSarahbelledissequeaamava.Suavoz parecia com a de seu avô que morava na Suécia. Mesmo depois,quando soube que aquele era de fato seu avô, o encontro continuou amanteraauradesonho.

Quando voltou para casa, reencontrou a mãe, e a vida começou aparecerrealnovamente.PorváriosdiasnãoconseguiuseafastardeLena,queadeixouabraçá-laquantoquis.Certanoite,oavôfoivisitá-losemcasa,semdisfarce, e seu forteabraçoprovouaSarahqueomundoreal, a inaldecontas,estavabemalinasuafrente.

A raiva que Sarah sentiu em relação a Linda diminuiu quando amãecontouqueaSra.Rostenkowskiforadeclaradaincapazdeserjulgadaporsua participação no sequestro e internada numa instituição para doentesmentais. Sarah soube que a amiga tinha ido morar com a tia, no Bronx.Quando voltou para a escola onde as duas estudavam, sentiu pena daamigaeadefendeudiantedosoutros,emboranãotivessemaisvontadedereataraamizade.

Tampouco quis reencontrar Tommy ou Franklin. Os pais mantiveramcontato com os garotos, por isso sabia que Franklin estava um ano nafrentedelaeestudavanaCalTech, equeTommyse tornaraum ídolodo

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futebolamericanoestadual,masrecusarabolsasemboasfaculdadesparaviajar pela América Latina. Sarah tentou imaginar os quatro juntosnovamente, o que diriam uns aos outros, mas não conseguiu ver issoacontecendo.

Só quando chegou ao último ano do ensino médio Sarah, graças aoincentivo de uma professora de redaçãomuito sensível, pesquisou o queicou conhecido como “o sequestro do acampamento”. Ler sobre o queacontecera consigo mesma aos 9 anos foi como ler a respeito de umaestranha. O sujeito que se apresentara como J.D. cumprira a pena eapareceu numa foto bem mais velho, com barba e de cabeça baixa,irreconhecível para Sarah. O dinheiro do resgate fora devolvido aos paisdepois que o Departamento de Estado interferiu em prol das famílias.Cinco anos depois, uma quadrilha de trá ico de mulheres búlgara foiidenti icada e nos computadores havia indícios de seu papel comointermediáriosno“sequestrodoacampamento”.Sarahpretendiafazerumtrabalhodefaculdadesobreosfatos,masviuqueaquilonãotinhanadaavercomela.Emvezdisso,escreveusobreonascimentodoirmão.

ElaouviraahistóriadeLenatantasvezesquefoifácilescreversobreoepisódio.Michaelnasceraduranteumatempestadedeneve.LenaeDavidtiveram di iculdade para chegar ao hospital, pois as estradas estavamcobertas. Sarah ia com eles, no banco traseiro. Quando inalmentechegaramaoacessodeemergência,Lenasevirouparaafilhacomosolhoscheiosd’água,sorrindocorajosamenteentreascontrações,edisse:

–Atédaquiapouco.Sarahbalançouacabeçaafirmativamente,semdaradeusàmãe.LongedeSarah,Lenateveumataquehistéricoquandoseaproximavam

dasaladeparto.Gritavaquenãoqueriatrazerobebêaomundo,queeleestava mais seguro dentro dela. David conversou com ela e só então oparto transcorreu sem incidentes. Sarah pôde entrar no quarto minutosapós o nascimento do irmão. Aquele embrulho gordinho abriu os olhosquandoameninachegoumaisperto.Elaosaudou:

– Oi, irmãozinho. Vamos tomar conta de você, está bem? – disse, sempensarnaspalavras.Ao erguer os olhos, viu que os pais se derramavamemlágrimas.

Quando terminou de escrever, Sarah tirou da cabeça o “sequestro doacampamento”esuasconsequências.

AapariçãodeLindanacalçada,nafrentedoclube,trouxeradevoltaossentimentosligadosaoeventotraumáticoedistante.Odesamparo,omedo,

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o isolamentodomundoedospais, tudovoltou.Sarah ia ligarparaamãe,para ouvir a voz reconfortante de Lena, quando se lembrou de que elaparticipava de um congresso na Costa Oeste. Reviver aquelas sensaçõeslevouSarahapensarmaisumavezemcomoamãeencontraraforçasparaencarar os desdobramentos do episódio. Nos meses seguintes aosequestro,Lenalargouacarreirademédicaparasededicarintegralmentea Sarah. É claro que essa decisão trouxera vários bene ícios à ilha.Durante esse tempo, ela aprendeu a aceitar o que acontecera e a nãodeixar que isso amarcassepara sempre, impedindo-ade levar umavidanormal. David concluiu que precisava trabalhar para pôr a cabeça emordemeconseguiuumbomempregonumaempresapromissoradeWhitePlains.LenaeDavidvoltaramaseapaixonar.Ohorrordoqueaconteceracoma ilhatransformaraorelacionamentodosdoiseolaremqueviviam,queagoraerasinônimodeamoresegurança.

MasSarahsabiaquehaviavestígiosdatragédiaemsuavida.Talveznãotão intensos quanto os da vida de Linda, mas reais e persistentes.Con iança ainda era um obstáculo, pensou Sarah, vendo as amigasdescendo a rua em sua direção, rindo de alguma coisa. Sobrevivera,absorvera a força da mãe, mas o mundo, seu mundo pelo menos, viviacheiodepilantrasqueaimpediamdeseentregarinteiramenteaosoutros.Aquelaspessoasqueseaproximavam,bonsamigos,poderiamumdiaseradmitidos na sua intimidade, a ponto de poder contar a elas o queacontecera? Poderia se apaixonar por alguém do modo como seus paistinham se apaixonado umpelo outro?Não sabia. O futuro era como umadensafloresta.Elafechouosolhos.Saberiaencontrarocaminho.

FIM