Espiritismo No Brasil - Alice Beatriz Da Silva Gordo Lang

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ESPIRITISMO NO BRASIL Alice Beatriz da Silva Gordo Lang* Resumo: O espiritismo teve início na França com a codificação do Livro dos Espíri- tos por Allan Kardec (1804-1869), por meio de um diálogo com espíritos; difundiu-se na Europa e chegou ao Brasil ainda no século XIX. O espiritismo kardecista é filoso- fia, ciência e religião e, enquanto tal, uma religião mediúnica. As reflexões apresenta- das no texto baseiam-se em pesquisa realizada para construir a biografia do líder espírita Rino Curti (1922-2003) e delinear o histórico e atuação da Coligação Espírita Progressista por ele fundada. Utiliza a metodologia da história oral, recorrendo tam- bém à análise de documentação, bibliografia e observação de sessões mediúnicas. A análise apontou “não ditos”, “não perguntados” e não compreendidos” no momento. Facilidades e dificuldades do estudo de uma crença por um pesquisador não adepto são destacadas. Buscando compreender o espiritismo, utilizamos a perspectiva relacional proposta pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, especialmente os concei- tos de ‘campo’ e ‘capital’. Sugerimos a extensão do conceito de ‘campo’ para compre- ender esse universo que inclui o relacionamento entre encarnados e desencarnados. Palavras-chave: Religião. Espiritismo. Mediunidade. Abstract; The Spiritism began in France with the Encode written by Allan Kardec through a dialogue with the Spirits. From this dialogue resulted ‘The Spirits’ Book”. The Spiritism has quickly disseminated in Europe, and in the same century came to Brazil. Kardecist Spiritism is a science, a philosophy and a religion, and as a religion it is a mediunic one. These reflections are based on a research to build the spiritist leader Rino Curti’s (1922-2003) biography and to delineate the historic development and activities of the spiritist center created by him, named Coligação Espírita Progres- sista. Oral history methodology was used as well as documentary and bibliographic analysis and observation. This analysis pointed to the “not said”, the “not asked” and the “not undersatood” at that moment. Advantages and disadvantages, facilities and difficulties are discussed, involved in a study of a religious belief, made out by a researcher who can be member of the studied faith or be only an observer. Trying to understand Spiritism, we considered the relational concepts proposed by the French sociologist Pierre Bourdieu, especially the concepts of ‘field’ and ‘capital’. We suggest an extension of the concept of ‘field’, including the social positions occupied by people who are alive, and also by spirits. Keywords: Religion. Spiritism. Medianimity. * Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Centro de Estudos Rurais e Urbanos. E- mail: [email protected].

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Espiritismo no Brasil

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  • ESPIRITISMO NO BRASIL

    Alice Beatriz da Silva Gordo Lang*

    Resumo: O espiritismo teve incio na Frana com a codificao do Livro dos Espri-tos por Allan Kardec (1804-1869), por meio de um dilogo com espritos; difundiu-sena Europa e chegou ao Brasil ainda no sculo XIX. O espiritismo kardecista filoso-fia, cincia e religio e, enquanto tal, uma religio medinica. As reflexes apresenta-das no texto baseiam-se em pesquisa realizada para construir a biografia do lderesprita Rino Curti (1922-2003) e delinear o histrico e atuao da Coligao EspritaProgressista por ele fundada. Utiliza a metodologia da histria oral, recorrendo tam-bm anlise de documentao, bibliografia e observao de sesses medinicas. Aanlise apontou no ditos, no perguntados e no compreendidos no momento.Facilidades e dificuldades do estudo de uma crena por um pesquisador no adeptoso destacadas. Buscando compreender o espiritismo, utilizamos a perspectivarelacional proposta pelo socilogo francs Pierre Bourdieu, especialmente os concei-tos de campo e capital. Sugerimos a extenso do conceito de campo para compre-ender esse universo que inclui o relacionamento entre encarnados e desencarnados.

    Palavras-chave: Religio. Espiritismo. Mediunidade.

    Abstract; The Spiritism began in France with the Encode written by Allan Kardecthrough a dialogue with the Spirits. From this dialogue resulted The Spirits Book.The Spiritism has quickly disseminated in Europe, and in the same century came toBrazil. Kardecist Spiritism is a science, a philosophy and a religion, and as a religionit is a mediunic one. These reflections are based on a research to build the spiritistleader Rino Curtis (1922-2003) biography and to delineate the historic developmentand activities of the spiritist center created by him, named Coligao Esprita Progres-sista. Oral history methodology was used as well as documentary and bibliographicanalysis and observation. This analysis pointed to the not said, the not asked andthe not undersatood at that moment. Advantages and disadvantages, facilities anddifficulties are discussed, involved in a study of a religious belief, made out by aresearcher who can be member of the studied faith or be only an observer. Trying tounderstand Spiritism, we considered the relational concepts proposed by the Frenchsociologist Pierre Bourdieu, especially the concepts of field and capital. We suggestan extension of the concept of field, including the social positions occupied by peoplewho are alive, and also by spirits.

    Keywords: Religion. Spiritism. Medianimity.

    * Doutora em Sociologia pela Universidade de So Paulo. Pesquisadora do Centro de Estudos Rurais e Urbanos. E-mail: [email protected].

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    PANORAMA RELIGIOSO NO BRASIL ATUAL

    O censo demogrfico brasileiro de 2000 registrou 2.337.732 espri-tas declarados, total que corresponde apenas a 1,38% da populao residen-te. Contudo, a terceira religio em nmero de aderentes no pas de maioriacatlica (78,8%) e protestante (15,4%). Em menor nmero aparece a men-o a outras crenas (2,12%), enquanto 7,3% declararam-se ateus ou semdeclarao. De 1990 para 2000 houve uma sensvel diminuio do total decatlicos declarados, um aumento dos protestantes das vrias denomina-es e dos ateus ou sem religio declarada.

    De um modo bastante geral, o espiritismo pode ser compreendidocomo uma crena nos espritos e a aceitao da possesso como meio peloqual os espritos se comunicam com os vivos. A opo esprita engloba oskardecistas (2.262.401), adeptos de umbanda (397.431) e candombl(127.582), seitas estas de origem afro, alm de outras como xamanismo esanto daime com menor nmero de seguidores, seitas que pressupem co-nhecimento e uso de foras sobrenaturais. Trata-se de religies medinicas,considerando a mediunidade, de modo geral, como canal de comunicaoentre espritos desencarnados e encarnados (ver PIERUCCI; PRANDI, 1996;TEIXEIRA; MENEZES, 2006)

    Quanto aos espritas, nos dez anos que medeiam os censos de 1990 e2000 houve um crescimento dos kardecistas e diminuio dos adeptos daumbanda e do candombl. Haveria tambm uma sub-representao dos es-pritas no censo, dado que muitos espritas professam tambm outras religi-es e as apontam como nica opo religiosa. Os espritas concentram-seem maior nmero no meio urbano e tm nvel educacional mais alto que odos seguidores de outras religies.

    As reflexes apresentadas referem-se ao espiritismo de vertentekardecista, tambm conhecido como espiritismo de mesa branca. Contu-do, so inicialmente tecidas breves consideraes sobre as outras religiesmedinicas apontadas, com o intuito de estabelecer diferenas com relaoao espiritismo. Uma distino inicial a de que o espiritismo kardecista nose apresenta apenas como religio, assumindo o trplice aspecto de filoso-fia, cincia e religio. Contudo, como religio que o espiritismo aparecenos censos brasileiros.

    A umbanda acredita em um Deus nico e superior, chamado Olorumou Zambi; prope a obedincia a valores humanos como fraternidade, cari-dade e respeito ao prximo. H o culto aos Orixs, manifestaes divinasque se confundem com um elemento da natureza do planeta ou da prpriapersonalidade humana. Cada pessoa est ligada a um orix. Como uma re-ligio espritualista, a ligao entre os encarnados e os desencarnados se fazpor meio dos mdiuns. Os mdiuns de incorporao emprestam seus cor-pos para os guias (ou cavalos) e para os Orixs. A umbanda tem como

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    lugar de culto o templo, terreiro ou centro, que o local onde os umbandistasse encontram para realizao do culto aos Orixs e aos guias que na umbandase denominam giras.

    Candombl uma religio originria da frica, trazida ao Brasil porescravos. Oxal a divindade da criao. Cultuam os Orixs, de origemtotmica, que representam as foras que controlam a natureza e seus fenme-nos, tais como as guas, o vento, as florestas, os raios. Ritos e cerimniasrealizam-se em casas ou terreiros, de linhagem matriarcal uns e patriarcaloutros quanto direo. H um sincretismo entre o candombl e a religiocatlica, sincretismo que foi uma forma de defesa a que recorreram os cativosvisando a preservao da religio proibida pelos escravocratas no sculo XIX.

    Outras religies de possesso mencionadas no censo so, por exem-plo, xamanismo e santo daime. Xamanismo uma religio ou filosofia devida muito antiga. O trabalho xamnico busca beneficiar a vida, tendo opropsito de curar. Os xams, ao som de tambores, entram em estado alte-rado de conscincia, fora do tempo e do espao, para procurar, alm darealidade, informao e cura necessrias s suas comunidades. Busca a curade doenas fsicas, psquicas e espirituais e prov acompanhamento na morte,antes, durante e aps a morte fsica.

    Santo Daime, tambm conhecido como a religio da floresta, sur-giu na regio amaznica, apresentando-se como uma misso espiritual quevisa encaminhar os praticantes a processos de cura e regenerao, proces-sos catalizados por uma bebida sacramental psicoativa (ayhuasca). O auto-conhecimento um meio para obter sabedoria. H uma forte presena damsica nos rituais.

    Camargo (1961) prope a existncia de um continuum medinico,tendo como pontos extremos o kardecismo e a umbanda. Segundo o autor,o espiritismo propriamente dito a doutrina codificada por Allan Kardec,distinguindo-se pela conscincia, sobriedade e tica, enquanto a umbandaest marcada pela inconscincia, ritualismo e magia.

    O espiritismo de vertente kardecista distingue-se das outras religiesmedinicas atuantes no Brasil, dado que a doutrina esprita se assume comof raciocinada.

    O ESPIRITISMO E SUAS ORIGENS

    O espiritismo teve incio na Frana com a codificao do Livro dosEspritos por Allan Kardec em 1857. As primeiras manifestaes de espri-tos na linha que conduziu ao kardecismo ocorreram nos Estados Unidos,em uma propriedade rural em Hydesville, quando as irms Margaret e KatieFox, de doze e catorze anos, ouviram batidas na parede e as interpretaramcomo manifestaes inteligentes de espritos, dado que respondiam a per-

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    guntas por meio do nmero de batidas. A notcia logo se espalhou e atraiuinmeras pessoas. As irms Fox foram levadas Europa.

    Na Europa e na Inglaterra difundiu-se o fenmeno das mesas girantesque respondiam a perguntas; outras formas de manifestao da mesma ocor-rncia eram as mensagens escritas por um lpis acoplado ao bico de umacesta que tambm aconteciam na Frana. Esses fenmenos, atribudos aespritos, ocorriam atravs de pessoas que tinham o poder da mediunidade.

    Tais fatos atraram a ateno do pedagogo francs Hippolyte LonDnizard Rivail (1804-1869), j autor de livros em sua especialidade, quedecidiu investig-los. Foi auxiliado por um esprito que se apresentou comoo Esprito da Verdade e que respondia s questes que eram formuladas porKardec, dando origem ao Livro dos Espritos (1857), que mantm a estrutu-ra de perguntas e respostas, introduzindo os princpios bsicos da doutrinaesprita: a imortalidade da alma, a necessria evoluo do esprito conduzin-do perfeio, a reencarnao, a possibilidade de comunicao entre vivos eespritos atravs dos mdiuns (KARDEC, 1996).

    Seguindo o mesmo procedimento, Rivail escreveu outros livros: OLivro dos Mdiuns (1861), que trata das relaes medinicas, apontando asleis e condies do intercmbio espiritual; O Evangelho segundo o espiri-tismo (1864), explicitando o contedo moral da doutrina; O Cu e o Inferno(1865), discutindo as penas e gozos terrenos e futuros; A Gnese, os Mila-gres e as Predies (1868), tratando dos problemas gensicos e da evoluofsica da terra. Esses cinco livros formam o chamado Pentateuco esprita,cujo codificador foi Kardec, pois os livros seriam de autoria dos espritos.Rivail adotou o nome de Allan Kardec, que fora o seu em encarnao ante-rior como druda.

    A codificao foi elaborada em um momento histrico em que o pen-samento cientfico estava dominado pelo racionalismo e pelo evolucionismo.A perspectiva evolucionista foi proposta por Darwin em A origem das esp-cies por meio da seleo natural, livro lanado em 1859, que alcanouexpressiva vendagem na poca.

    Mostra Rino Curti que o espiritismo cincia, filosofia e religio,trs reas secularmente contrastantes em vrios aspectos, mas compatibi-lizadas no kardecismo que lhes infunde o mesmo mtodo, o mesmo sentidoevolutivo e unificao. Um ponto de vista que totalmente esprita. (LANG;JANOTTI, 2005, p. 180).

    O Livro dos Espritos teve imediata e grande aceitao, mas provo-cou uma forte reao da Igreja Catlica. A intolerncia catlica desenca-deou perseguies e levou queima de livros de Kardec que haviam sidoenviados a Barcelona, em 9 de outubro de 1861, episdio que ficou conhe-cido como o Auto de F de Barcelona.

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    DOUTRINA ESPRITA

    O espiritismo a terceira revelao. A primeira foi a de Moiss, asegunda de Jesus, que j anunciou a terceira: o Parcleto (ou o espiritismo).Cada revelao atendia quilo que estava ao alcance da poca compreender.

    A doutrina no foi concebida por Kardec, mas foi por ele codificada. a Doutrina dos Espritos e Kardec, o codificador. A doutrina esprita concebida como uma f raciocinada, ou seja, aceito somente aquilo quepassa pelo crivo da razo. Princpios fundamentais da doutrina esprita es-tabelecem:

    Deus o criador de tudo o que existe; alm do mundo dos vivos (ou dos encarnados) h o mundo dos

    espritos que existem em diferentes graus evolutivos: os imper-feitos, os bons, e os puros ou espritos de luz;

    aceita a reencarnao como condio para que o esprito possaprogredir, configurando a pluralidade de existncias; os espri-tos puros so aqueles que j se libertaram das encarnaes;

    todos os espritos evoluem sem cessar, embora possam renascerem condies sociais inferiores;

    as relaes dos espritos com os vivos so constantes e sempre exis-tiram. A mediunidade a faculdade que permite aos vivos a comu-nicao com os Espritos um dom que precisa ser desenvolvido.

    O ESPIRITISMO NO BRASIL

    O espiritismo logo chegou ao Brasil, trazido pelos mdicos homeopatase tambm mdiuns Bento Mure e Joo Vicente Martins, em 1840, sendo acei-to por um grupo de mdicos tambm homeopatas do Rio de Janeiro que for-maram o Grupo Confcio. O grupo recebeu uma mensagem espiritual in-formando que o Brasil fora escolhido como o pas para o qual iria se trans-plantar a rvore do Evangelho, onde o espiritismo iria se desenvolver.Ismael, mensageiro de Jesus, foi encarregado de cuidar do espiritismo nopas. O espiritismo se difundiu, vrios grupos se formaram e, em 1884, foifundada a Federao Esprita Brasileira com o fito de reuni-los.

    Um importante estudo sobre o espiritismo, considerando seu nasci-mento, evoluo e atualidade e comparando a manifestao religiosa noBrasil e na Frana foi apresentado por Aubre e Laplantine (1990).

    Mas os grupos mantinham-se desunidos. O mdico e poltico cearenseAdolpho Bezerra de Menezes, conhecido como o mdico dos pobres, teveconhecimento do espiritismo e a ele se converteu. Recebeu a misso depromover a unio dos grupos espritas. O Espiritismo chegou a vrios pon-

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    tos do pas, atuando atravs de centros e federaes. Em So Paulo, foifundada a Federao Esprita do Estado de So Paulo - FEESP, em 1936.

    MEDIUNIDADE

    O espiritismo cincia, filosofia e religio. Quanto ao terceiro aspecto, uma religio medinica. O mdium esprita o canal de comunicao entrevivos ou encarnados e mortos ou desencarnados. A mediunidade expressa-sede vrias formas: intuio, psicofonia (ou incorporao), psicografia, vidncia,materializao, transposio, materializao, manifestaes na arte.

    No sculo XX, poderosos mdiuns apareceram no Brasil, como ChicoXavier (1910-2003), mdium internacionalmente conhecido que chegou aser indicado para o Prmio Nobel da Paz. Chico Xavier, homem de poucoestudo, escreveu 409 livros ditados por vrios espritos: Emmanuel e AndrLus, em maior nmero, Humberto de Campos, Irmo X, Meimei, AutaSouza, Casemiro Cunha, Cornlio Pires, alm de Espritos diversos. O demaior vendagem Nosso Lar, ditado pelo esprito Andr Lus, que ultrapas-sou a casa de 2 milhes de exemplares vendidos.

    A psicografia foi seu dom mais conhecido, mas sua mediunidade semanifestava tambm por meio de psicofonia, vidncia e audincia. Desen-volveu uma grande obra de assistncia social em sua cidade natal, PedroLeopoldo e depois em Uberaba, no Estado de Minas Gerais. Seu mentor erao esprito Emmanuel, que em sua ltima encarnao teria sido o padre jesu-ta portugus Manuel da Nbrega, um dos fundadores da cidade de SoPaulo em 1554 (MAIOR, 2003).

    Um livro ditado a Chico Xavier pelo esprito Humberto de Campos -Brasil, corao do mundo, ptria do Evangelho, reiterava a informao deque o Brasil fora escolhido como o lugar onde o espiritismo iria se desen-volver (XAVIER, 1999). Em parceria com o mdium Waldo Vieira, ChicoXavier psicografou dezessete livros.

    Outros mdiuns bastante conhecidos no Brasil foram o mineiroEurpedes Barsanulfo e Jos Arig, entre outros. Eurpedes Barsanulfo (1880-1918) nasceu em Sacramento, no Tringulo Mineiro; tinha o dom de curar,o que fazia por meio de passes e remdios homeopticos, transpondo-seespiritualmente para curar doentes distantes; fundou o Colgio Allan Kardec,onde era ministrado o curso normal e a doutrina esprita era ensinada. JosArig (1921-1971) era tambm um mdium de cura que sofreu inmerosprocessos judiciais pelo exerccio de seu dom.

    Nos dias de hoje, o mdium Joo de Deus, nascido em 1942 no inte-rior de Gois, um poderoso mdium de cura que atende em Abadinia,Gois, no Centro Dom Incio de Loiola, atraindo pessoas de vrias partesdo pas e at do exterior. J foi acusado inmeras vezes de exerccio ilegalde medicina.

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    Em So Paulo, Lus Antonio Gasparetto tornou-se conhecido inici-almente como pintor medinico, reproduzindo quadros de pintores interna-cionalmente famosos. Tendo-se formado em psicologia, passou dedicar-se questo da auto-ajuda, orientando-se pela tica da prosperidade. Seuguia espiritual o preto velho Calunga. Com a famlia, organizou o CentroOs Caminheiros, onde profere palestras sobre auto-ajuda. A me, ZbiaGasparetto tambm mdium e escreveu numerosos livros ditados por es-pritos, especialmente por Lucius.

    Segundo Stoll (2003), Chico Xavier e Gasparetto representam duasformas de expresso da doutrina esprita com caractersticas especficas.So reinterpretaes de tradies, apoiadas em cdigos de cdigos de con-duta distintos, mesmo que apoiadas na verso original de Kardec.

    Os espritas renem-se em centros e sua atuao se faz em trs dire-es: assistncia espiritual, assistncia social e ensino. Os centros tm auto-nomia, alguns se integram nas federaes estaduais e na federal, outrosdesenvolvem sua atuao isoladamente.

    O ESTUDO REALIZADO

    As reflexes apresentadas baseiam-se em pesquisa realizada paraconstruir a biografia do lder esprita Rino Curti (1922-2003) e delinear ohistrico e atuao da Coligao Esprita Progressista por ele fundada edirigida na cidade de So Paulo. A pesquisa, realizada pela Profa. Maria deLourdes Monaco Janotti e pela autora, foi desenvolvida com a metodologiada histria oral e recorreu complementaridade de fontes orais, escritas eimagticas , alm de observao participante.1

    Tratava-se de um estudo acadmico e sem intenes de proselitismo.Buscvamos compreender esse fenmeno religioso com os olhos da histo-riadora (Janotti) e da sociloga (Lang). Utilizando metodologia da histriaoral na realizao da pesquisa, inmeras entrevistas foram feitas, gravadas,transcritas e analisadas: do lder professor Rino Curti e da esposa AnnaFlora coletamos histrias de vida; da filha do casal, de dirigentes do centroe mdiuns obtivemos relatos de vida; coletamos depoimentos de outras pes-soas ligadas ao centro; procedemos observao de sesses medinicasonde espritos se manifestaram atravs de mdiuns, recorremos anlise dadocumentao da Coligao Esprita Progressista, da obra escrita por RinoCurti e bibliografia relacionada ao tema. Em sesses medinicas presen-ciamos fenmenos de psicografia, vidncia e incorporao.

    As fontes orais coletadas por meio de entrevistas de Histria Oralassumem formas diferentes:

    1 Os resultados da pesquisa foram apresentados no livro de Lang e Janotti, Espiritismo progressista: pensamento eao de Rino Curti (2004). As presentes reflexes so de responsabilidade da autora deste texto.

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    a histria oral de vida o relato de um narrador sobre sua exis-tncia atravs do tempo, contando livremente sua vida, impri-mindo ao relato suas prprias categorias, impondo umordenamento e selecionando ele mesmo o que quer relatar;

    o relato oral de vida, uma histria de vida abreviada, focalizan-do determinados aspectos ou fases da vida do narrador;

    objetivo do depoimento oral no primordialmente a vida donarrador, mas a obteno de informaes e testemunho sobre suavivncia em determinadas situaes ou a participao em determi-nadas instituies que se quer estudar. Tenha-se presente que nascincias sociais o depoimento no tem o sentido de estabelecimen-to da verdade, mas de conhecimento de uma verso (LANG, 1996).

    O LDER RINO CURTI (1922-2003)

    Rino Curti nasceu em mola, Itlia, em 1922, em uma famlia catli-ca. Imigrou para o Brasil com a famlia aos catorze anos. Prosseguiu osestudos no Brasil, formou-se engenheiro pela Escola Politcnica de SoPaulo da Universidade de So Paulo. Foi Professor da Escola de Engenha-ria de So Carlos e da Escola Politcnica de So Paulo, tendo trabalhadocomo engenheiro em grandes firmas, como a Cosipa e a Cesp.

    Rino Curti conheceu o espiritismo por meio de sua futura esposa,Anna Flora, de famlia esprita e com dotes de mediunidade. Dizem que90% das pessoas chegam ao espiritismo pela dor e 10% pelo amor. O cami-nho pela dor configurado, por exemplo, pela perda de uma pessoa queri-da, por uma doena grave ou incurvel. O caminho do amor passa pelodesejo de melhor conhecer o espiritismo e os caminhos por ele abertos; essafoi a motivao de Rino Curti, atrado por conhecer a doutrina esprita.Rino Curti estudou profundamente e com grande empenho a doutrina. In-gressou na Federao Esprita do Estado de So Paulo FEESP, chegandoa diretor de ensino. Desenvolveu um sistema educacional de espiritismo eescreveu numerosos livros.

    Rino Curti conheceu as obras de Andr Luiz ditadas a Chico Xavier2e as estudou profundamente. Uma de suas iniciativas, bastante contestadapela diretoria da FEESP, foi a introduo de Andr Luiz na Federao, empalestras que despertaram grande interesse e aceitao dos freqentadores.

    Em virtude de desentendimentos, especialmente doutrinrios, RinoCurti deixou a Federao. Uma das principais divergncias dizia respeito concepo sobre os passes medinicos; a Federao adotava quarenta e dois

    2 Obras de Andr Luiz ditadas a Chico Xavier: Evoluo em dois mundos, Mecanismos da mediunidade, Os men-sageiros, No mundo maior, Nosso lar, Obreiros da vida eterna, Sinal Verde, entre outras.

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    tipos de passes e Rino Curti props que fossem adotados apenas cinco pas-ses, baseando-se em ensinamentos de Kardec que vinculam os passes aoobjetivo buscado e no posio das mos. So eles: PS passe de susten-tao, PN1 dirigido ao auxlio na obsesso simples, PN2 dirigido aoauxlio na obsesso por fascinao, PN3 dirigido ao auxlio na obsessopor subjugao, PN4 dirigido ao auxlio de curas fsicas, devendo esteser associado assistncia mdica (CURTI, 1985). Por outro lado, RinoCurti atribua maior importncia dimenso do ensino, enquanto as ativi-dades da Federao privilegiavam a assistncia social, ao lado da espiritual.Acreditava que pelo estudo que se chega reforma ntima que possibilitao aperfeioamento.

    Rino Curti deixou a Federao em 1984 e, acompanhado de seguido-res que aceitavam sua orientao, criou outro centro, a Coligao EspritaProgressista CEP. Na CEP, desenvolve-se a Assistncia Espiritual e a As-sistncia Social, mas grande nfase dada ao Ensino, ministrado mediantede cursos de nveis diversos. Rino Curti foi um lder extremamente respei-tado pelos seguidores.

    A COLIGAO ESPRITA PROGRESSISTA

    A Coligao Esprita Progressista, CEP, uma sociedade civil comestatutos registrados. Foi dirigida por uma diretoria presidida por Rino Cur-ti at a morte do lder em 2003. H uma equipe do Plano Espiritual que seliga CEP, equipe comandada pelo esprito Bezerra de Menezes. Tambmintegram essa equipe os espritos que, enquanto encarnados, foram o jorna-lista Medeiros e Albuquerque e os escritores Machado de Assis e Humbertode Campos, observando-se que estes no eram espritas na vida terrena. Osespritos manifestam-se nas reunies da diretoria atravs dos mdiuns, apro-vando ou no as decises tomadas. Os espritos Emmanuel, Sheila e AndrLuiz manifestam-se com frequncia nessas ocasies.

    Como em quase todos os centros espritas, a ao da CEP se faz nastrs direes: assistncia social, assistncia espiritual e ensino.

    A assistncia social prov remdios, roupas e alimentos a necessita-dos, alm de oferecer tratamento dentrio em um consultrio montado noprprio prdio e um curso para gestantes. Acreditam que mais beneficiadosso os que do que os que recebem, pois essa ao representa uma oportu-nidade para o exerccio da humildade, da tolerncia e da caridade, comoaponta um diretor:

    Em primeiro lugar, eu digo que elas no esto aqui para receber esmolas, que nsestamos aqui para ajud-los como irmos, auxili-las e que elas so muito importan-tes para ns, so mais importantes para ns do que ns para elas. (...) O trabalhoesprita melhor para quem o exerce do que para quem recebe o benefcio.

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    A assistncia espiritual feita por meio de palestras e passes. As pales-tras visam o aperfeioamento do indivduo que resulta da reforma ntima; ospasses, dados por mdiuns pela imposio das mos, seguem a orientaoaceita por Rino Curti e se fazem segundo o tipo de tratamento buscado.

    Grande nfase dada na CEP ao ensino, por acreditar Rino Curti ques mediante o conhecimento o esprito pode evoluir e tambm por reconhe-cer a necessidade de slida preparao intelectual dos dirigentes espritas.Dentro dessa orientao foram elaborados livros e organizados cursos: cur-sos para crianas, adolescentes e para adultos. Para adultos so dados osseguintes cursos: Bsico, Educao Medinica Esprita, Educao Evang-lica Esprita, Divulgador e Expositor Esprita, todos com durao de quatroanos e, finalmente, o Centro de Estudos, de durao permanente visando oaperfeioamento. Do Centro de Estudos se encarregava Rino Curti.

    Os dados da escola do conta do nmero de alunos encarnados. Con-tudo, conforme afirmam os mdiuns, alm dos alunos encarnados, os cur-sos contam tambm com numerosa assistncia de alunos desencarnados,como aponta um diretor e tambm mdium:

    Os mdiuns que trabalham nas classes transmitem mensagens como: A sala estcheia. Quando estvamos na Vergueiro (endereo anterior da CEP), cheguei a daraula para trs alunos, mas sabia que tinha espritos ouvindo. Eles tambm precisamaprender, j que no tiveram oportunidade de conhecer o Espiritismo quando encar-nados. Ento, confiamos que temos outra platia alm da dos encarnados. (LANG;JANOTTI, 2005, p. 173).

    Em uma festa de formatura a que assistimos, aps o discurso dorepresentante dos alunos, um mdium tomou a palavra e transmitiu o dis-curso dos espritos que haviam tambm concludo o curso. Como pesquisa-doras, estvamos presentes nessa sesso e foi possvel gravar e transcreveras palavras do esprito orador atravs do mdium:

    Queridos amigos, companheiros de jornada.O Plano Espiritual tambm est em festa, reunidos estamos alunos desencarnados quetambm se formam nesta oportunidade. Todos entrelaados, todos se dando as mosem prece agradecendo ao Divino Mestre pela oportunidade de aprendizado, pela opor-tunidade de sermos melhores hoje do que ramos quando iniciamos esta caminhada.Ao iniciarmos o aprendizado nesta Casa, os alunos encarnados e desencarnados sedeparam com dificuldades da mudana. A reforma ntima a primeira mola que im-pulsiona o aprendizado na escola. A disciplina aprendida de semana a semana, com ocomparecimento aos cursos, o instrumento que nos leva ao aprendizado efetivo. Aperseverana de que necessitamos para assimilar todo esse estudo nosso melhoraprendizado. medida que assimilamos a disciplina e que nos tornamos perseveran-tes, abrem-se nossa frente novas oportunidades, novas bnos nos so dadas, sen-timos dia a dia a necessidade de nos doarmos, de repartirmos o amor recebido comtodos os irmos de nossa caminhada; e o aprendizado lento. O aprendizado se fazpasso a passo, mas a partir do momento em que nos disciplinamos e nos tornamos

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    perseverantes, a caminhada quase que automtica. Depois de assimilarmos o apren-dizado no curso, achamos que j somos melhores, mas ao chegarmos ao final que seabre diante dos olhos o quanto ainda temos de percorrer, porque o que aprendemos nocurso a doutrina dos espritos que alerta para o amor. Passamos aps este aprendiza-do segunda etapa, que a que nos leva ao Mestre, que servir, e servir implica nosanularmos, servir implica nos doarmos, deixarmos de lado o nosso egosmo e ajudar-mos a quem precisa, muito mais do que ns mesmos, e nesse momento, meus ami-gos, que a bno do Pai nos abraa, porque estamos prontos para realmente efetivar-mos em ns todo o aprendizado que a escola nos ofereceu. Somos hoje gratos a essaescola, a seus dirigentes, a seus expositores e aos alunos, futuros trabalhadores daseara de Jesus. Muito temos a agradecer, mas sempre pouco diante do tanto querecebemos em todos esses anos. Falo em nome dos alunos desencarnados, mas possodizer que, embora sejamos em maior nmero, as nossas dificuldades so as mesmas,os nossos vcios a serem vencidos so os mesmos, e, espritos eternos que todos so-mos, no h diferena entre o nosso plano e o em que vocs esto agora. Ao mestrequerido agradeo e a todos que participaram do efetivo aprendizado e a todos essesalunos que hoje se formam. Tenho certeza que alguns de ns j estamos prontos a doarem favor do nosso prximo. Graas a Deus (LANG; JANOTTI, 2005, pp. 173-175).

    Mostram as palavras reproduzidas a busca dos espritos pelo aperfei-oamento, indicam as vrias fases em que espritos se encontram e sua pre-sena nas atividades do centro que tambm a eles direcionada.

    com base no curso e no treinamento que os mdiuns desenvolvemo dom da mediunidade e se tornam aptos a distinguir bons de maus espritose a agir apropriadamente, tanto com relao aos encarnados, quanto aosdesencarnados. Maus espritos, espritos obsessores, precisam ser recondu-zidos e encaminhados para o aperfeioamento.

    O prdio da Coligao Esprita Progressista, situado em So Paulona Rua Batura,3 bairro Vila das Mercs, foi construdo com quatro pavi-mentos, dedicados a cada rea de atuao: Assistncia Social, AssistnciaEspiritual, Divulgao, Ensino. A CEP publica a revista F Raciocinada elivros de Rino Curti vendidos na prpria sede da entidade, juntamente comos de outros autores espritas.

    ReflexesO estudo desse instigante universo levou a inmeras reflexes, das

    quais algumas so aqui apresentadas. Uma questo inicial diz respeito aoestudo de uma crena por um pesquisador que um seguidor dessa crena,fato mais comum, ou por aquele que apenas observador, podendo-se des-tacar vantagens, desvantagens, facilidades e dificuldades em cada uma dassituaes.4 Nesse sentido, Pierre Bourdieu observa:

    3 O nome da rua onde a CEP foi instalada bastante significativo, dado que o portugus Antonio Gonalves daSilva, o Batura, nascido em Portugal em 1839 e emigrado para o Brasil aos onze anos, foi o criador de diversoscentros espritas.

    4 Observo inicialmente que cheguei ao espiritismo por um caminho diverso de minha trajetria pessoal. No souesprita e a sociologia das religies no era at ento objeto de meus estudos. A tarefa proposta era escrever abiografia do lder Rino Curti e o histrico da Coligao Esprita Progressista.

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    O adepto da crena por ele analisada corre o risco de perder a objetividade e produziruma espcie de cincia edificante, pois suas convices fazem parte de sua identida-de. Por outro lado, no pertencendo ao campo estudado, o pesquisador poder des-considerar ou no obter informaes fundamentais para sua compreenso(BOURDIEU, 1990, p. 113).

    Vivemos a grande dificuldade de estudar uma crena no partilhadae, mais ainda, de pretender estudar o fenmeno religioso como um fatosocial em uma viso cientfica, mantendo iseno. No havia, por parte daspesquisadoras, qualquer inteno de proselitismo.

    A anlise do contedo das narrativas coletadas com recurso meto-dologia da histria oral, que pressupe a interao pesquisador-narrador,permitiu deduzir os no ditos, apreender os no perguntados e os nocompreendidos naquele momento e investigar mais diretamente sobre taisquestes. Quanto aos no ditos, preciso considerar o simples esqueci-mento e a omisso intencional, difceis de distinguir. Os no ditos poromisso deviam-se, em grande parte, ao fato de as pesquisadoras no seremespritas. Observamos que os entrevistados no falavam espontaneamentede fatos relacionados f. Apenas quando fatos e questes eram inferidospela anlise e observao e manifestando as pesquisadoras certo conheci-mento sobre os mesmos, os entrevistados falavam sobre eles e novas infor-maes e esclarecimentos podiam ser obtidos. Havia tambm os no per-guntados, referidos a tpicos que somente mais tarde foram avaliados comoimportantes para levar a um conhecimento mais profundo.

    Houve tambm os no compreendidos no momento em que foramobservados. Verificamos que compreender, no caso desse estudo, significa-va ultrapassar o limite da observao de suas manifestaes e se inserir dealgum modo na crena. Algumas respostas comearam ento a surgir, comouma relativa ao da mediunidade.

    Rino Curti afirmava que tinha mediunidade de inspirao, que seuslivros no eram psicografados, mas escritos com apoio em muita pesquisa,como o trabalho de todo intelectual. Em um contato informal, um mdiumcontou que Rino Curti submetia os textos elaborados apreciao do PlanoEspiritual atravs de mdiuns. O Plano Espiritual aprovava ou no os tex-tos, em muitos casos sugerindo alteraes para o melhor entendimento.

    Compreendemos, ento, que esse tinha sido o caso em uma aula mi-nistrada pelo Professor Curti no Centro de Estudos, para uma platia dosestudantes mais avanados na doutrina, de mdiuns e de espritos que parti-cipavam para aprender e progredir. Rino Curti leu para a platia um captu-lo que havia terminado para um livro Adendos a mecanismos da mediu-nidade de Andr Luiz. A platia ouviu a leitura de olhos cerrados, sem quenenhuma anotao fosse feita. As luzes estavam desligadas, para que a cor-rente medinica no fosse interrompida. Terminada a leitura, foi dada pas-sividade, procedimento que possibilita aos espritos se manifestarem atra-vs dos mdiuns que os incorporam. Vimos o texto ser inteiramente analisa-

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    do pela palavra de alguns mdiuns. S mais tarde compreendemos o fenme-no observado. So dificuldades do pesquisador no adepto da crena.

    INTERPRETAO DOS RESULTADOS

    Tentamos interpretar e compreender a realidade constituda pelo es-piritismo, um surpreendente universo que tnhamos pela frente. As refle-xes foram elaboradas pela perspectiva das Cincias Sociais e no da cren-a, considerando o espiritismo como um fato social. Tentamos entender oespiritismo no contexto de uma sociedade na qual seus seguidores interfe-rem e atuam.

    A interpretao recorreu extenso do referencial terico adotado, aperspectiva relacional proposta por Pierre Bourdieu, para compreender esseuniverso que inclui o relacionamento entre encarnados e desencarnados.

    Para o estudo da realidade social, Bourdieu e Wacquant (1992, p.72)propem uma perspectiva relacional, admitindo que o que existe no mun-do social so relaes no interaes ou laos intersubjetivos entre osagentes, mas relaes objetivas que existem independentemente das cons-cincias e vontades individuais. Para a compreenso, Bourdieu sugere umconjunto de conceitos interrelacionados e que, por seu carter sistmico, seimplicam mutuamente. So os conceitos de campo, capital, habitus, estra-tgia, trajetria e estilo de vida. De modo mais especial, consideramos nes-ta anlise os conceitos de campo e capital.

    Campo definido por Bourdieu (1989) como um conjunto, ou umaconfigurao de relaes objetivas entre posies e no entre pessoas. Estasposies so definidas objetivamente em sua existncia pelas determina-es que impem a seus ocupantes, agentes ou instituies, com relao posse do capital deste campo, bem como pelas relaes objetivas no tocantes outras posies do mesmo campo. Assim, o campo visto como o espa-o social em que os agentes se situam ocupando determinadas posies e noqual lutam pela distribuio do capital especfico. Cada campo tem um ca-pital que lhe peculiar: capital econmico, capital social, capital cultural,capital simblico. A luta pela dominao faz que o campo se estruture ereestruture constantemente. Os campos obedecem a lgicas diversas.

    O capital especfico do campo religioso seria constitudo pelos bensde salvao e as diferentes religies visam o monoplio dos caminhos paraque os homens possam atingi-los (BOURDIEU, 1974). No caso do espiri-tismo, a reforma ntima o caminho para a evoluo espiritual, obedecendoao princpio esprita de que sem caridade no h salvao.

    No tocante ao espiritismo, h que considerar no apenas o relaciona-mento entre as posies ocupadas por encarnados e desencarnados, seja nadireo dos centros, seja entre os leigos, seja com relao queles no atin-gidos pela mensagem esprita. O relacionamento de posies sociais d conta

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    da realidade social, tal como normalmente considerada. Mas no esclareceuma realidade na qual, ao lado dos vivos esto os desencarnados, percebi-dos e vistos pela mediunidade, emitindo opinies, esclarecimentos e conse-lhos no caso de espritos bons em caminho de aperfeioamento, ou obsedi-ando os vivos no caso dos espritos malficos que devem ainda encontrar ocaminho da salvao e para tal devem ser encaminhados. A ao do centroesprita deve receber o aval do plano espiritual por meio de seus mentoresque se expressam atravs da mediunidade.

    O estudo suscita ao estudioso muitas indagaes, como a questo dopoder no espiritismo e nos centros espritas. Uma comparao com a estru-tura da Igreja Catlica aponta uma diferena significativa. Na Igreja Catli-ca h uma estrutura piramidal encabeada pelo Papa, chefe supremo deuma organizao hierrquica a quem a obedincia devida, representantedo Deus na terra. H a crena na infalibilidade do papa e a aceitao dedogmas, verdades reveladas e no necessariamente sujeitas razo.

    No espiritismo h uma autonomia de cada centro, relacionando-se ese reportando cada qual diretamente ao Plano Espiritual, no existindo umpoder nico centralizador. O poder temporal em cada centro, como no casoestudado, exercido pela diretoria executiva assessorada por mdiuns, al-guns com cargos na diretoria. Essa autonomia permite a criao de novoscentros, como ocorreu no caso da CEP. o caso tambm das inmerasdenominaes protestantes.

    Nesse campo relacional h que considerar as posies ocupadas porencarnados, por desencarnados e pelos mdiuns, intermedirios entre osespritos e os homens. Observamos que, para os espritas, existem espritosde condies diversas no processo evolutivo, atuando de formas tambmdiversas.

    Para a compreenso do espiritismo enquanto fato social, sugerimosuma extenso do conceito de campo proposto por Bourdieu, incluindo posi-es ocupadas por encarnados em seus diferentes papis sociais e tambmpor aquelas ocupadas por desencarnados, em diferentes estgios de evolu-o, cuja presena e atuao so vistas e sentidas pelos mdiuns.

    O espiritismo configura uma questo extremamente sugestiva quedemanda o aprofundamento dos estudos para uma mais profunda com-preenso.

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